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Enquanto Sylvia corria pela floresta escura, os ramos de louros a atingiam e suas garras de madeira se emaranhavam no longo cabelo ondulante.
Não era sua culpa, entretanto. Mamãe estava com febre e Papai estava nas montanhas com um carregamento de maçãs. Sylvia tinha que tomar conta dos dois irmãos pequenos,
tinha apenas dezesseis anos, estava presa nessa montanha idiota e a vida não deveria ser tão injusta.
Ela tropeçou em uma raiz e quase caiu. Segurou a barra da saia de linho grosso e correu por entre as árvores, as sarças chicoteando-lhe os joelhos. Era apenas meia milha, mas em noites de novembro isso parecia uma eternidade, como se a fazenda Korban tivesse crescido para se unir às trevas.
A escuridão a envolveu, mas ela não podia pensar nisso. O fogo era seu trabalho e a família dependia de Korban. Todas as famílias antigas dependiam dele, especialmente aquelas que haviam lhe vendido as terras.
Estava agradecida pela grossa fatia de lua no céu, mas algumas vezes ela lhe revelava coisas que não queria ver. Sua respiração se tornava prateada sob sua luz, enquanto ela murmurava pequenos feitiços de segurança.
O solar parecia estar cada vez mais distante, como se a trilha tortuosa houvesse ganho novas curvas, mas por fim ela irrompeu nas largas pastagens que levavam à clareira. Ela não queria olhar para o solar, que se destacava escuro e aninhado contra o céu de Blue Ridge Mountain. Mas ela tinha que verificar a janela.
Escura.
Estava atrasada.
Sylvia correu para a casa, o coração na garganta, martelando forte. Pegou algumas achas de madeira da caixa de lenha e subiu pela escada dos fundos. Margaret estava fora, em uma viagem para um lugar chamado Boston Rouge, um lugar com um nome chique. Se pudesse apenas se apressar, talvez ninguém reparasse que estava atrasada.
É apenas um pequeno fogo bobo. Ninguém vai congelar por causa disso.
Ela caminhou pé-ante-pé pela sala, as tábuas rangendo e a denunciando. Parou perto da porta dele. Se batesse, seria descoberta. Melhor não dizer nada, acender o fogo e sair sorrateiramente.
O quarto estava escuro. Ela tinha receio de acender uma lamparina, pois, se houvesse hóspedes, um deles poderia vê-la. Sylvia fechou a porta atrás de si, com esperança de que as brasas ainda brilhassem o suficiente para que ela pudesse enxergar. As pedras da lareira, entretanto, estavam frias e o ambiente repleto do odor pungente de fogo apagado.
Ajoelhando-se, colocou a lenha no chão e tateou procurando o jornal e a lata de zinco contendo fósforos que mantinha ao lado do atiçador. Mesmo protegida do ar frio da noite, sentiu-se sufocada como se mergulhando nas águas de um sonho profundo e os menores movimentos exigiam um grande esforço. Os fósforos chocalharam quando esbarrou na caixa. Enrolou algumas folhas de jornal e as colocou sob a grade da lareira. Enquanto isso, um som baixo e áspero veio de algum lugar no quarto.
Sylvia riscou um fósforo, o qual brilhou rapidamente e depois apagou. Naquele segundo de luz, ela reparou em um movimento com o canto dos olhos. Tentando se apressar,
apesar da gravidade estar atuando contra si, riscou outro fósforo. Um vento de inverno soprou através do quarto e apagou a chama antes que pudesse tocá-la no papel.
Por que as janelas estão abertas?
Ephram nunca permitiu que abrissem as janelas de seu quarto. Seus dedos pareciam com odres quando ela buscou novamente os fósforos. O som baixo veio novamente, uma
exalação trêmula seguida pelo som inconfundível do estalo na coluna da cama. Ela fechou bem os olhos e, apesar do quarto estar escuro como breu, concentrou-se no
fósforo que pretendia riscar contra a pedra.
Uma voz surgiu, abafada e desesperada, tudo menos morta.
- Fo... fogo - disse ela.
O coração de Sylvia deu um pulo, como um coelho assustado. Ephram Korban estava no quarto, na cama. Não ousou olhar em sua direção, mas o mesmo poder que pesava
sobre seus membros fez seu pescoço lentamente girar na direção da cama. Abriu os olhos, mas nada viu além da escuridão.
- Enfeitice-me - disse ele, um pouco mais forte, quase com raiva, mas ainda abafado como se estivesse falando de dentro dos cobertores.
Ela assentiu lentamente, apesar de ele não poder vê-la no escuro. Ela também não podia vê-lo. Ainda assim...
Conforme olhou para a cama, a imagem se formando de memória em sua mente, ela podia imaginar Ephram deitado lá, o rosto austero, o cabelo e a barba por cima dos
travesseiros. Belo Ephram, que nunca adoeceu. Ephram, que permaneceu jovem e forte enquanto os trabalhadores e nativos desapareceram com suas rugas e histórias,
a respiração cansada e falhando. Ephram que se dizia nunca dormir.
Dois pequenos pontos de luz flutuavam sobre a negritude da cama, brilhando fracamente, a única coisa que ela conseguia ver no quarto. Tentou desviar a cabeça e riscar
o fósforo, mas agora havia sido tragada de seu sonambulismo para uma consciência desamparada.
Ela havia lavado os lençóis e sabia qual era o seu lado da cama. Os pontos aumentaram de tamanho, pairando próximo à cabeceira onde estavam os travesseiros. No local
onde deveriam estar os olhos de Ephram.
Os olhos ardiam em um vermelho profundo de uma brasa se apagando.
- Acenda o fogo. - disse ele asperamente, ao mesmo tempo em que um lampejo amarelo intenso brilhou dentro dos pontos vermelhos. Os olhos brilhantes ficaram borrados
dentro de suas lágrimas enquanto ela riscou o fósforo sobre a pedra. Ele acendeu e ela ateou fogo ao papel. Por fim, pode desviar o olhar daquela cama terrível e
daqueles olhos insuportáveis. Porém, foi obrigada a proferir aquelas palavras terríveis, as que Mamãe a havia ensinado.
O feitiço.
Ela as murmurou, na esperança de enfraquecer seu poder pela falta de volume. - Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá
o frio e que venha o fogo.
O fogo avivou e ela colocou alguns gravetos sobre a grade. Conforme a lenha crepitou e o calor irradiou em seu rosto, sentiu seus membros ganhando força, a pele
arranhada não mais ardendo.
Não ousando virar-se, agora que o quarto estava banhado na luz, ela ocupou-se em amontoar uma pilha de lenha suficiente para a noite sobre a grade. As lágrimas haviam
secado sobre o rosto, mas ainda sentia suas trilhas salgadas. Ela estava em apuros, tendo cometido a mais imperdoável das ofensas. Podia apenas manter o olhar nas
chamas, enquanto essas cresciam como água, em tons de vermelho, amarelo e azul, na direção da chaminé.
Uma mão a tocou suavemente no ombro. Ela olhou para cima e viu Ephram de pé ao seu lado, sorrindo. Seus olhos eram profundos, escuros e belos, vívidos à luz das
chamas.
Como fui boba, pensando que eram vermelhos.
- Desculpe-me - disse ela, as palavras quase inaudíveis sob o estalar da lenha e o martelar de seu coração - Eu não tive intenção de me atrasar.
Ephram nada disse, apenas movendo suas mãos dos ombros para o rosto e então para cima, sob o longo cabelo, até que seu dedão roçou sua orelha. Ela estremeceu, apesar
do calor do fogo.
Ela não pode evitar olhar para todos aqueles objetos finos, o espelho oval sobre a cômoda, as cortinas de veludo que pendiam do topo das janelas como cascatas púrpuras
luxuriantes, o acabamento de seda na borda do dossel.
- Obrigado - disse ele, a voz agora profunda e forte, e o olhar dela novamente se fixou em seu rosto coberto pela barba.
Disseram que se você cruzasse com ele durante a noite, seus olhos mudariam de cor, dourados, vermelhos e então amarelos, as cores do fogo. No entanto, agora seus
olhos estavam negros como carvão.
Disseram que quando ele estivesse na balaustrada sobre o telhado, que sua sombra se estenderia por duas milhas em todas as direções, que ele acendia velas negras
no porão, mas era o que os homens haviam falado. As meninas da casa haviam falado outras coisas, que Sylvia se recusava a acreditar.
Ele não era um monstro. Era um homem.
- Desculpe-me, estava atrasada - murmurou.
- Mas não atrasada demais.
Sylvia começou a se virar novamente para fogo, para dar força às suas palavras, para cumprir sua tarefa. Ela havia dito as palavras, do modo como sua mãe havia ensinado,
e agora havia cumprido seu papel.
Ele segurou seu queixo, sua face próxima à dela. - Nós queimamos juntos.
Ela não compreendeu as palavras e tudo o que sabia era que havia ansiado por esse momento muitas vezes enquanto deitada no colchão de palha no sótão da cabana. Aqueles
sonhos haviam chegado até ela, tomando seu corpo, trazendo sua pele à vida, as mãos de Ephram sobre sua carne. Mas, em suas fantasias, ela não estava tão assustada.
Então se deu conta do que havia de errado. Ele estava atrás e sobre ela, a face iluminada pelo fogo, enquanto ela se encontrava ajoelhada na lareira, olhando para
cima. De algum modo, entretanto, a sombra dele estava sobre sua face, mas ela não conseguia se fixar nesse pensamento, extrair sentido dele, pois outras sensações
a estavam inundando. A mão ardente traçou a curva suave de seu pescoço.
E de novo Sylvia foi sufocada em um sonho, apenas sob um poder diferente dessa vez, conforme se levantou e o deixou colocar os braços ao seu redor, enquanto seus
lábios, quentes e diabólicos, pressionavam os seus. Ela se perdeu em seu calor, força e grande sombra. Quando ele tomou sua mão nas dele e a levou para o fogo, ela
não chorou ou implorou. Ele era o mestre, afinal.
Suas mãos penetraram as chamas, unidas, queimadas, pele e ossos substituídos por fumaça e cinzas.
Não há dor. Como pode não haver dor?
A próxima coisa de que ela se deu conta foi de estar retirando a saia grosseira de menina do campo e a blusa feita em casa, e deles mais uma vez unindo-se, dessa
vez no chão, em frente ao fogo, o feitiço perdido em seus lábios e apenas Ephram em seus sentidos.
CAPÍTULO 1
Alturas. Sucesso.
Os paralelos eram tão óbvios agora, enquanto ele ficava de pé na beirada da ponte, o desfiladeiro íngreme abaixo como uma grande boca bocejante, altos picos de granito
mergulhando para longe numa morte distante.
- Vai pular? - disse a mulher atrás dele.
Mason Jackson tragou uma lufada do ar puro de Blue Montain Ridge. Se pelo menos fosse hélio.
As pessoas adiante dele já havia atravessado, entrando na floresta que levava à fazenda. Uma carroça havia levado a bagagem e Mason estava livre, exceto pelas pesadas
ferramentas na sua sacola de lona.
Peso suficiente para derrubá-lo rapidamente, muito, muito lá para baixo onde...
- Você está bem? - perguntou a mulher. A van já estava se afastando atrás deles, voltando pela trilha de cinco milhas que levava à estrada de Black Rock.
Mason assentiu. Ele olhou dentro daqueles olhos azuis, olhos que observou de tempos em tempos durante a subida. Pelo menos durante os momentos nos quais ele não
estava olhando pela janela para a queda vertiginosa ao lado da estrada.
- Estamos ficando para trás. - disse ela, tão pálida quanto ele imaginava estar. Ela era jovem, talvez perto dos trinta, como ele, e era atraente, com olhos grandes
e escuros e um longo cabelo preto. Mas ele não queria pensar sobre isso.
- Corra atrás deles, eu alcanço. - disse ele.
Ou, mais precisamente, vou correr montanha abaixo antes de colocar um pé naquela ponte.
- É forte o suficiente - disse ela - Aqueles cavalos devem pesar algumas toneladas.
- Claro. - disse ele, batendo de leve no parapeito de madeira. - Essa coisa é capaz de aguentar um tanque.
- Acrofobia. - disse ela -Todo mundo tem um tipo ou outro de fobia.
Oh-hou. Ela é inteligente. Isso pode ser ruim.
- Eu não conseguia nem brincar no trepa-trepa quando estava na escola. - disse ele.
- Vai ajudar se você segurar na minha mão, fechar os olhos e der um passo de cada vez? Ele sorriu, apesar da garganta apertada. - Isso é super legal de sua parte,
senhorita...
- Galloway. Anna Galloway.
- Mas como posso confiar em você e saber que não vai caminhar direto para uma daquelas saliências de rocha?
Ela retornou o sorriso e era atraente, apesar de um pouco tenso. - Você pode confiar em mim, mas talvez enquanto caminha possa fingir que está caminhando sobre uma
imensa calçada pavimentada, tão sólida quanto...
- Não. Isso não adianta, me assusta do mesmo jeito.
O vento mudou um pouco e a floresta outonal a volta deles estremeceu em tons dourados e vermelhos. Um leve odor de fumaça passou por eles.
- Bem, todos os quartos bons terão sido ocupados se esperarmos mais. - disse ela. - Não quero passar o tempo todo do retiro em um armário de vassouras.
- Depois de você. - disse ele, quase se esquecendo do desfiladeiro. Seus olhos eram tão profundos quanto a garganta logo abaixo e mergulhar neles poderia ser fatal
do mesmo modo.
Anna passou por ele e avançou pela ponte. Estendeu uma mão e segurou a bolsa com a outra. Era uma boa bolsa, marrom, sem ser chamativa nem excessivamente requintada.
Pequena, como a dona.
Ele pegou a mão de Anna e colocou a outra no corrimão. Certo, Mamma. Viu? Posso fazer sacrifícios pelo sucesso.
Conforme ele caminhou, olhou de soslaio, com receio de fechar os olhos, mas não confiando na escuridão. Fixou o olhar em um toco de carvalho no outro lado da ponte,
imaginando como acentuaria sua forma natural para esculpir uma gárgula ou um cão de guarda.
A ponte balançou uma vez devido à brisa que passou por entre os cabos e o estômago de Mason se contorceu. A mão de Anna apertou-se em torno da dele e o puxou com
mais insistência, o qual se apressou em sua direção. Então eles chegaram novamente em solo firme e ele deixou escapar uma risada de alívio.
Ela largou sua mão e ele limpou o suor da palma. Não havia notado que sua sacola de ferramentas ficara batendo em sua cintura, deixando um machucado.
- Muito obrigado, Anna. - disse ele, olhando para trás e sentindo-se tolo agora. Ela deu de ombros. - Uma fobia é uma fobia.
Ela já estava caminhando pela estrada poeirenta que levava à floresta. Ele se apressou para alcançá-la, as ferramentas tilintando.
- Então, qual é a sua? - perguntou ele, quando emparelhou com ela.
- A minha o quê?
- Sua fobia.
Ela franziu os lábios e adquiriu um ar melancólico. - A morte.
- Essa é uma das boas.
- Deixa as outras insignificantes, não é?
- Se você tiver sorte o suficiente para que a morte seja o fim de tudo.
Ele ponderou sobre isso enquanto caminhavam, os passos rápidos e curtos dela em compasso com suas passadas longas.
A floresta então acabou e o Solar Korban surgiu à frente deles como algo que saíra de um cartão postal antigo. Os campos abertos afundavam delicadamente em direção
a um pomar denso, gramados e dois celeiros unidos por uma cerca. O solar era uma construção de três andares, com pé-direito alto, como eram construídos no final
do século XIX, com seis colunas de estilo colonial dando suporte ao pórtico de entrada. Persianas negras emolduravam as janelas contra as madeiras brancas. Quatro
chaminés fumegavam, a fumaça rodopiando através dos carvalhos gigantes e álamos que circundavam a casa.
Sobre o telhado encontrava-se a balaustrada, uma área plana com um corrimão solitário. Mason se perguntou se alguma viúva já havia caminhado sobre essa balaustrada.
Provavelmente.
Uma coisa era certa sobre uma casa velha: você poderia ter certeza de que alguém havia morrido ali, provavelmente uma porção de alguéns.
Um pintor ou um fotógrafo provavelmente faria alguma insanidade para ter acesso à vista que a balaustrada fornecia. Mason talvez até cometesse um crime menor por
esse privilégio, exceto que agora estava estonteado com todo aquele ar puro à sua volta e a garganta mortal às suas costas. Pelo menos ele havia tido a oportunidade
de estudar os entalhes intrincados do Solar Korban da segurança do chão firme.
- Você se vira com os degraus da entrada? - perguntou Anna.
Mason franziu o cenho, incapaz de decidir se ela o estava provocando. - Acho que sim Sempre posso engatinhar, se for preciso. Eu sou bom em engatinhar.
- Boa sorte, então. - disse ela, saltando pelos degraus e entrando pela porta da frente. La dentro, o grupo estava se acomodando.
Ele quis gritar um "obrigado", mas Anna havia sumido dentro da casa.
- Boa sorte com sua fobia, também.
CAPÍTULO 2
- Você viu George? - perguntou a Srta. Mamie a Ransom Streater. Ela odiava se misturar com os ajudantes temporários, com exceção de Lilith, mas havia alguns momentos
nos quais ordens deviam ser dadas ou histórias consertadas e a melhor forma de se desviar de uma fofoca era criando outra.
- Não, senhora. - Ransom estava ao lado do celeiro, o chapéu nas mãos calejadas, o suor preso ao cabelo ralo. Ele cheirava a feno, esterco e metal enferrujado. À
volta do pescoço, estava uma correia de couro e ela sabia que estava amarrada a uma daquelas bolsinhas pitorescas. Esse povo das montanhas realmente acreditava que
raízes e pós mágicos tinham influência sobre os vivos e os mortos. Se ao menos eles tivessem a noção de que a magia era na verdade criada pelo poder da vontade e
não pela imaginação.
A magia estava no fazer. Como aquilo que ela segurava nos braços, a boneca a quem ela havia dado forma com amor e ternura imensos.
- Preciso de alguém para ajudar o escultor a procurar madeira amanhã. - disse ela.
- Sim, senhora. - O pomo de adão balançou uma vez.
- Quando foi a última vez que teve notícias de George?
- Hoje após o almoço, logo após o segundo grupo de hóspedes chegar. Disse que estava indo para Beechy Gap para verificar umas coisas.
A Srta. Mamie escondeu o sorriso. Então George havia ido a Beechy Gap. Ninguém da cidade sentiria sua falta por algumas semanas e então seria tarde demais.
E ela podia contar com Ransom para manter a boca fechada. Ransom sabia que tipos de acidentes aconteciam às pessoas à volta do Solar Korban, mesmo para àqueles que
tinham mandingas no pescoço e murmuravam encantamentos antigos. E um trabalho era apenas um trabalho.
Todo mundo possui uma missão de vida.
Algumas missões eram mais especiais que outras.
Ela retirou a boneca do embrulho de pano. Sua cabeça de maçã havia murchado em um rosto escuro e encarquilhado, a boca num esgar dolorido. O corpo era feito de freixo
entalhado e as pernas e braços de vinhas. Ransom afastou-se da boneca como se fosse uma cascavel.
- Você tomará conta de George para mim? - perguntou a Srta. Mamie.
- Ele era meu amigo. É o mínimo que posso fazer. - Uma sombra cruzou seu rosto. - Mas tenho que esperar até o amanhecer. Não posso ir a Beechy Gap de noite.
- A primeira coisa ao amanhecer, então. Não quero incomodar os hóspedes. Você sabe o que está por vir, não sabe?
- Uma lua azul de outubro. - disse ele. Seus olhos se desviaram para a porta do celeiro. Uma ferradura estava pendurada acima dela, as pontas viradas para cima,
o metal fosco sob a luz do sol que se punha. Como se a sorte realmente importasse.
- Você está conosco há bastante tempo.
- E quero ficar mais um bom tempo.
- Então não vai me decepcionar?
- Vou enterrá ele do jeito certo, com a prata nos óio. Tenho orgulho do meu trabalho.
- Ephram sempre disse ‘O orgulho fará você caminhar pelos túneis de sua alma’.
- Ephram Korban disse foi um bocado de coisa. E as pessoa disseram um outro bocado.
- Algumas dessas coisas podem até ser verdade - A Srta. Mamie acariciou a boneca, sofrendo de seu próprio momento de orgulho ao contemplar a composição habilidosamente
feita. Artesanato, diziam eles. A pequena boneca continha muito mais coisas do que as pessoas poderiam imaginar. - Com licença, tenho um jantar para servir.
Ransom inclinou-se levemente e arrumou as alças de seu avental. A Srta. Mamie o deixou alimentando os animais e dirigiu-se para o solar. Carregava a boneca como
se fosse um presente precioso de alguém muito amado. Apesar de a casa lhe ser familiar como a palma da própria mão, vê-la de longe sempre lhe dava uma lufada de
contentamento. Os campos, as árvores e o vento da montanha pareciam cantar seu nome.
Ela era seu lar. O lar deles. Para sempre.
CAPÍTULO 3
Anna Galloway abriu as cortinas da janela do quarto. Um pouco de pó levantou da vidraça com a movimentação de ar. Os raios de sol derramaram-se sobre seus ombros,
o brilho de outubro aquecendo o assoalho sob seus pés. O ar das montanhas era mais frio do que ela estava acostumada e mesmo o fogo crepitante não era capaz de acabar
com seus arrepios. Havia uma pintura de Ephram Korban pendurada na parede sobre a lareira, um pouco menor que a do andar de baixo, mas tão sotuma quanto ela. O escultor
com medo de alturas estava certo sobre uma coisa: Korban havia sido totalmente apaixonado por si mesmo.
Ela olhou ao longe, sobre os campos. Aqui estava ela, após uma longa espera. O lugar no qual deveria estar, por alguma razão. Era o fim do mundo, o lugar adequado
para finais. Afastou o fatalismo dos pensamentos e observou os cavalos galopando através do pasto. A visão de liberdade e paz a aqueceu.
- É tão lindo, né? - disse a mulher ao seu lado. Ela havia dito a Anna que seu nome era "Cris sem H" como se a ausência do H a tornasse mais forte e inflexível.
E como elas seriam colegas de quarto...
- É maravilhoso! - disse Anna - Do jeito como eu sonhei.
Cris já estava com o estojo de maquiagem, pincéis e blocos de desenho espalhados sobre a cama próxima da porta. Anna não tinha nada mais que uma pequena e organizada
pilha de livros sobre o criado-mudo. Sua postura com relação a posses materiais e confortos terrenos havia passado por uma mudança drástica no último ano. Você deve
viajar leve quando não sabe ao certo para onde está indo.
A dor cruzou seu abdômen, furtivamente dessa vez, uma agulha espetando em câmera lenta. Ela fechou os olhos e iniciou a contagem regressiva em grandes e gordos números.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola...
Quando chegou ao seis e a dor estava flutuando em algum lugar sobre o vale das Blue Ridge Mountains, a voz de Cris a trouxe de volta.
- Tipo, o que você faz?
Anna desviou o olhar da janela. Cris havia sentado na cama, escovando seu longo cabelo loiro. Anna estava feliz que a quimioterapia não havia feito o seu cabelo
cair, não apenas por vaidade, mas também porque ela gostaria de estar inteira quando chegasse a hora de partir.
- Eu escrevo artigos de pesquisa. - disse Anna.
- Ah, você é uma escritora.
- Não uma escritora de ficção, como Jefferson Spence. São textos mais voltados para a metafísica.
- Ciência e esse tipo de coisa?
Anna sentou-se na cama. A dor havia voltado, mas não tão aguda quanto antes. - Trabalhei no Rhine Research Center em Durham. Investigadora.
- Você se demitiu?
- Na verdade, não. Apenas terminei o trabalho.
- Rhine. Não é aquele negócio de percepção extrassensorial, fantasmas e coisas esquisitas? Como no Arquivo-X?
- Exceto que a verdade não está lá fora. Está aqui dentro. - Ela tocou na têmpora. - O poder da mente. E não lidamos com alienígenas. Eu era uma investigadora paranormal,
mas acabei virando um dinossauro, extinta quase que antes de começar.
- Você é muito jovem para ser um dinossauro.
- Tudo é eletrônico nos dias de hoje. Detectores de campos eletromagnéticos, gravadores subsônicos, câmeras infravermelhas. Se você não pode identificar em um computador,
eles pensam que não existe, mas eu acredito naquilo que vejo com meu coração.
Cris olhou à volta, como se notando pela primeira vez os cantos escuros e as sombras projetadas pelo fogo da lareira. - Você não veio aqui porque...
- Não se preocupe. Estou aqui por razões pessoais.
- Aham. Vi você de conversa com o cara musculoso com a sacola de lona, na porta de entrada.
- Não esse tipo de razão pessoal. Além disso, ele não faz o meu tipo.
- Dê alguns dias. Coisas estranhas acontecem.
- E você? Está aqui para se lançar numa jornada artística? - Anna apontou para os blocos de desenho. - Não lhe darei minha palestra sobre temperamento artístico
porque gosto de você.
- Ah, acho que meu marido está de caso com a secretária e me queria fora de casa para usar a banheira. Ele já me mandou para a Grécia durante o verão e para o Novo
México na primavera, para fazer aquele lance da Georgia O’Keeffe. Agora para as montanhas da Carolina do Norte.
- Pelo menos ele é generoso.
- Eu nunca serei uma artista de verdade, mas é alguma coisa para fazer durante os retiros além de ir atrás dos homens e beber. Mas minha Musa me permite esses pequenos
luxos também. Por falar nisso, reparei em um bar no prospecto. Quer me acompanhar em algo antes do jantar?
- Não, obrigada. Acho que vou descansar um pouco.
- Bem, não ande por aí escondida debaixo de um lençol. Posso achar que você é um fantasma.
- Se eu morrer, prometo que você será uma das primeiras a saber.
Anna recostou-se no travesseiro. Uma pena lhe espetou o pescoço. A porta fechada, os passos de Cris na direção do saguão de entrada, folhas mortas raspando no vidro
da janela. As paredes envelhecidas com a fumaça deixavam o quarto com um aroma reconfortante e a lamparina a óleo completava o calor da cena. Ela sentiu paz pela
primeira vez desde...
Não. Ela não pensaria sobre isso agora.
A dor retornara, uma convidada rude. Ela tentou o truque com os números, mas sua concentração acabou enredada com as memórias, como vinha acontecendo nos últimos
tempos. Desde que ela começara a sonhar com o Solar Korban.
Dez, um palito e uma argola...
A imagem de Stephen escorregou para dentro de sua mente entre o um e o zero. Stephen, com suas câmeras e brinquedos, sua barba e sua risada. Para ele, Anna era a
versão parapsicológica da garota de acampamento. Stephen não tinha necessidade de sentir os fantasmas. Ele podia provar sua existência.
Seus encontros nos cemitérios acabaram com ela caminhando sem destino sobre a grama e as lápides enquanto Stephen se preocupava em preparar seu equipamento. Na noite
em que ela sentira seu primeiro fantasma, brilhando ao lado do anjo de mármore no Cemitério Guilford, Stephen estava ocupado demais registrando leituras de campos
eletromagnéticos para olhar quando o chamou. O fantasma não esperou uma foto e dissipou-se como um nevoeiro ao sol, mas antes de voltar para o lugar de onde havia
surgido, os olhos assombrados fitaram intensamente os de Anna.
O olhar foi de entendimento mútuo.
Nove, um fiapo e uma argola...
Aquela havia sido a primeira investigação com Stephen. Eles dormiram juntos no chão do Hanger Hall de Asheville em uma noite de inverno na qual o vento estava muito
forte, mesmo para fantasmas. Duas semanas depois, em uma festa, ela o ouviu dizendo que a considerava uma "pessoa instável, mas adoravelmente instável".
Assim, após seis anos de estudo e pesquisas de campo, ela era apenas um pouco mais respeitável que uma vidente de 0800. Existiam céticos demais no mundo real, entre
os cientistas e aqueles que estavam sempre prontos para queimar uma bruxa na fogueira. Mas o riso de seus próprios colegas foi o que a levou a lugares grandes, assustadores
e vazios, nos quais ela podia caçar seus fantasmas sozinha.
Oito, um par de biscoitos...
Então veio a dor e o primeiro dos sonhos. Ela estava saindo da floresta, seus pés na grama macia e úmida, o gramado luxuriante como é possível apenas nos sonhos.
O solar estava a sua frente, as janelas escuras como olhos, as árvores à sua volta, nuas e contorcidas. Uma única linha de fumaça subia por uma das quatro chaminés,
contorcendo-se e ajuntando-se sobre o corrimão branco.
Então a fumaça tomou forma e uma mulher sussurrou "Anna", acordando-a, como aconteceu por tantas noites depois disso.
Sete, um canudo dobrado...
Sete era a intensidade da dor, ferroando seus intestinos.
Stephen apareceu no dia que ela descobriu que metástases do câncer de cólon haviam atingido seu fígado. Ele segurou sua mão e seus olhos se tornaram úmidos e vidrados,
por trás dos óculos grossos. A barba chegou a tremer, mas ele era muito prático, muito desconectado de suas emoções para dar-se conta do que representava o diagnóstico.
Para ele, a morte nada mais era que o cessar do batimento no pulso, uma mudança nas leituras de energia.
Isso foi o que sobrou do conceito de almas gêmeas.
Mesmo após Anna convencer os médicos de que não faria uma colostomia, aceitando a sentença de morte conforme o câncer corria por seus órgãos, Stephen ainda agia
como se a ciência pudesse intervir e salvá-la. Ele provavelmente chegou ao ponto de rezar para a ciência, a mais fria de todos os deuses. Ela recusou a oferta de
carona para casa na saída do hospital e aceitou o fato de que a solidão era um estado natural para quem haveria de se transformar rapidamente em um fantasma.
Seis, um nove no espelho...
Milagres acontecem, um dos oncologistas disse, mas ela não esperava que fosse acontecer no interior de um hospital, com tubos bombeando radiação para dentro de seu
corpo, lâminas removendo sua carne um pedaço de cada vez ou com os médicos marcando a contagem regressiva em um calendário na parede. E ela também parou de sonhar
no hospital. Apenas quando voltou para casa, nas pequenas horas do aconchego de sua cama, é que o Solar Korban voltou a ficar novamente à sua frente.
Noite após noite, conforme o sonho ficou cada vez mais longo e vívido, a forma sobre o telhado ganhou substância. Por fim, Anna podia ver claramente a face à distância,
o cabelo diáfano movendo- se como um véu. Os olhos azuis, o sorriso acolhedor, o buquê que segurava junto ao final do corrimão da balaustrada. Afinal a face tornou-se
reconhecível.
A mulher era Anna.
Cinco, uma pequena foice...
A dor estava mais suave agora, como neve sobre as flores.
Ela fez algumas pesquisas, sabendo que o solar lhe era familiar não somente pelas visitas nos sonhos. Ela encontrou algumas coisas sobre o solar nos arquivos de
Rhine. Ephram Korban demorou vinte e cinco anos construindo a fazenda em um despenhadeiro nos Apalaches e então pulou nos braços da morte atirando-se da balaustrada,
em um suposto suicídio. Alguns moradores locais na pequena cidade de Black Rock contam histórias de aparições, geralmente consideradas fofocas de empregados temporários.
Uma investigação de campo, logo após a casa ter sido restaurada como um retiro para artistas, não produziu nada de útil em termos de dados ou entusiasmo.
Mas talvez a dor de Korban, sua raiva, seus amores, suas esperanças e sonhos estivessem entranhados nas paredes do solar, como a tinta nas paredes de madeira. Talvez
essas madeiras, pedras e vidros tivessem absorvido a radiante energia de sua humanidade. Talvez assombrar não fosse uma escolha, mas, sim, uma obrigação.
Quatro, uma cruz com um braço...
Ela levitou no plano cinzento entre o sono e o pensamento, ponderando se conseguiria sonhar com o solar, agora que estava de fato aqui. Ela fechou a mente para os
cinco sentidos, restando apenas o outro, o sentido que Stephen havia ridicularizado, aquele que Anna havia escondido de seus poucos amigos e muitos pais adotivos.
A linha entre a sensibilidade e a esquisitice era tênue.
Três, forcado de inglês...
Apenas por um momento, ela foi arrancada do sono. Alguma coisa flutuou atrás do rodapé de bordo e correu ao longo das rachaduras entre as dimensões. Ela não queria
abrir os olhos, pois podia ver melhor com os olhos fechados.
Dois, um gancho vazio...
Ela sentiu olhos sobre si. Alguém a estava observando, talvez seu próprio fantasma, a mulher nascida da fumaça em seus sonhos, que segurava um buquê de boas-vindas
mortal.
Um, uma linha que divide...
A linha entre o algo e o nada, aqui e lá, cama e sepultura, amor e ódio, preto e branco.
Zero.
Nada. Nada.
Anna havia vindo por nada, havia nascido para nada, caminhado em direção ao nada e eram negros, tanto o passado quanto o futuro.
Ela abriu os olhos.
Não havia ninguém no quarto, nenhum fantasma contra a parede.
Apenas Korban, morto como o óleo da pintura, as feições escurecidas pelo tremular das chamas. Os raios solares haviam se alongado pelo quarto. A dor havia desaparecido.
Anna levantou-se e caminhou para fora a fim de esperar o pôr do sol, pensando se essa era a noite na qual ela finalmente encontraria a si mesma.
CAPÍTULO 4
Mason olhou para a grande pintura a óleo pendurada na parede sobre a lareira, que olhou de volta para ele intensa e severamente, tanto quanto qualquer um dos seus
instrutores de arte. O rosto sisudo do retrato dominava a sala, dez vezes maior que o tamanho natural. Os tons de pele da tinta a óleo eram tão realistas que Mason
podia imaginar a figura saltando para fora da moldura ornada. Uma placa de latão abaixo da pintura estava entalhada com o nome.
Ephram Korban.
Mason estudou os olhos negros. Eram as únicas feições que não exibiam o realismo do resto da tela. Os olhos eram mortos, opacos e completamente inanimados. Mas Mason
não era um pintor, de forma que não tinha méritos para julgar. Para o diabo com os críticos e, na verdade, ele estava mais interessado na moldura do que na pintura,
que parecia ser entalhada à mão.
Mason lançou um olhar atrás de si para as pessoas se ocupando na sala de estar. Pela porta, conseguia ver dois homens em aventais descarregando a carroça. Uma quarentona
de peitos avantajados usando um vestido negro parecia estar em todos os cantos ao mesmo tempo, dando ordens, distribuindo bebidas em longos copos umedecidos e apertando
mãos. Mason caminhou em direção à lareira. Apesar de o dia ter sido quente para um final de outubro, o fogo ardia sobre as pedras, amarelo, laranja e de outras cores
outonais.
A cornija da lareira também era entalhada à mão. Querubins e serafins em baixo-relevo, formas arredondadas rafaelitas aladas entre espessas nuvens curvilíneas. Mason
verificou os dedos para ver se estavam limpos e então tocou delicadamente nas figuras. Conforme suas mãos exploraram a superfície entalhada, notou que alguém havia
deixado uma taça com um resto de vinho tinto sobre a cornija. Os anéis que o copo poderia deixar sobre a tinta branca eram como sangue em solo virgem que demonstravam
a falta de respeito pelo trabalho ou pelo artífice.
Ele olhou novamente para os olhos da pintura e agora Ephram Korban parecia estar observando a sala, os olhos sombrios sobre aquelas pessoas que ousavam cruzar o
portal de seu domínio. O rosto parecia ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mason tocou a moldura...
- Encantadora, não é mesmo? - disse uma voz feminina estridente.
Mason girou, sua sacola quase tocando na taça de vinho. À sua frente encontrava-se a mulher rechonchuda vestida de preto, o cabelo negro em um coque alto. Seu sorriso
era congelado no rosto como se tivesse sido esculpido com formões.
- Sim. - disse Mason. - Quem quer que tenha feito os entalhes, deve ter passado algumas semanas sobre eles.
Ela deu uma risadinha, um som agudo e artificial. - Eu estava falando da pintura, bobinho. Ela brincou com um cordão de pérolas à volta do pescoço, as contas interrompidas
de forma vulgar por uma presilha de latão. Seus olhos escuros brilharam com toda a vida que os olhos de Korban não possuíam na pintura. Ele podia imaginar a mulher
à frente de um espelho, prendendo suas pérolas, verificando os dentes e ajustando o brilho nos olhos.
A mulher estendeu a mão e Mason a pegou, pensando se ele deveria se curvar e a beijar, como um afeminado francês em um filme de época. Sua pele era fria. Ela virou
a mão dele para cima e olhou para os dedos, balançando a cabeça. -Ah, então você é o escultor.
- Como?
- Calos. Nós não recebemos muitas pessoas com calos nas mãos aqui no solar. - Ela inclinou- se para frente, com um ar conspirador. - Pelo menos entre os convidados.
Os empregados ainda têm que trabalhar.
Mason assentiu. Ele olhou para baixo em direção aos tênis arranhados e aos buracos na calça jeans. As outras pessoas que estavam na van calçavam sapatos de couro,
Kenneth Coles, sandálias e roupas de catálogos que tinham nomes de grife. Ele não pertencia a esse lugar. Ele era um pobretão sulista proveniente da escória de uma
cidade madeireira, não importava o tipo de roupagem artística que ele tentasse colocar em sua história.
Mas cá estava ele, pronto para esculpir seu próprio sucesso.
- Faz um bom tempo que não recebemos um escultor por aqui. - disse ela, a mão fria ainda pendurada à sua. - Deixe-me ver se tenho seus dados de cabeça: "Mason Beufort
Jackson, graduado com honras na Escola de Artes de Adderly, no momento empregado na Rayford Hosiery em Sawyer Creek, Carolina do Norte. Vencedor do prêmio Grassroots
Consortium 2002. Comissionado pela Universidade de Westridge para criar uma escultura para o Alumni Hall". Agora, como era mesmo o nome da escultura?
Ela finalmente largou sua mão, pressionando a têmpora como se estivesse lendo uma página em sua mente e, então, estalou os dedos. - Dilúvio. Claro. Terrivelmente
encantador.
Mason riu consigo mesmo. Ele não havia se dado conta de quão pretensioso o nome soava até o momento em que passou por aqueles lábios bem alimentados. - Bem, era
com essas pessoas que eu andava na época. Avant-garde, mas ainda almoçando no McDonald.
A mulher emitiu novamente sua risada cacarejante e apontou para a sacola pendurada sobre seu ombro - São ferramentas?
- Sim, senhora.
- Espero ver você usando-as. - Sua mão fria ainda presa à dele. -Sou Mamie Godfeld. Insisto que você me chame de Srta. Mamie.
Ele olhou para o retrato de Korban e então de volta para a Srta. Mamie.
- Ah, você reparou. - disse ela.
- Os olhos.
- Eu sou a última descendente viva de Ephram Korban. Eu gerencio o solar, mantendo-o como um retiro para artistas, do jeito que ele pretendia. Mestre Korban sempre
apreciou o espírito criativo.
- Ele era um artista?
- Um artista frustrado. Um diletante, principalmente um colecionador.
Todos os artistas são frustrados. Não é esse o ponto?
Mason reparou em mais detalhes arquitetônicos da sala de estar. O arco sobre a entrada principal tinha três metros de altura, com vidraças quadradas na parte superior.
A sala possuía um pé-direito alto, as paredes e acabamentos brancos acentuados pelo trabalho em carvalho até a altura do peito. Duas colunas iônicas no centro da
sala suportavam uma imensa viga no teto.
- Esse é um lugar bonito. - disse Mason, pois claramente a Srta. Mamie esperava algum comentário de sua parte. Ele quase disse "adorável", um adjetivo que ele nunca
antes havia usado. Cinco minutos em um retiro caro nas montanhas e ele já estava ficando metido e desenvolvendo uma persona.
Que Deus não permita que você seja alguém na vida. Você é insuportável.
- Estou satisfeita que tenha lhe agradado. - disse ela. - Revivalismo colonial. Mestre Korban era orgulhoso de sua herança, motivo pelo qual ele estipulou que o
solar deveria ser preservado.
- Korban. Um nome judeu, não?
- Apenas no nome, mas não em espírito. Ele pegou sua herança de empréstimo, comprou a parte que não pôde tomar emprestado e roubou aquilo que não pôde comprar. No
final, ele possuía tudo.
Mason olhou mais uma vez para o retrato, medindo a tenacidade e arrogância das feições. - Parece que seu ancestral era o tipo de homem que não aceitava um não como
resposta.
- É bem verdade, mas ele também era muito generoso, conforme você bem sabe.
Mason sorriu, apesar de sentir como se houvesse um lagarto andando em sua garganta. Ele estava aqui por caridade. Ele nunca poderia arcar com os custos desse tipo
de retiro com o dinheiro que ganhava. Para resumir, ele estava ali como um símbolo de que a fazenda Korban e o conselho de artes poderiam revelar seu apoio magnânimo
às classes inferiores.
A Srta. Mamie olhou além dele, para onde um pequeno grupo de hóspedes estava conversando.
- Ali estão os queridos Sr. e Sra. Abramov. Os compositores clássicos, sabe?
Mason não sabia, mas continuou sorrindo do mesmo modo. O sorriso simbólico de gratidão.
- Perdoe-me, devo cumprimentá-los. Lilith lhe mostrará seu quarto e espero que você aproveite a estadia.
Ela relanceou os olhos para o retrato de Korban com uma expressão que se aproximava da melancolia e se foi, com um farfalhar de tecido. Mason olhou mais uma vez
o retrato. O fogo estalou, mandando brasas densas e vermelhas pela chaminé. Os olhos de Korban ainda pareciam mortos.
Mason estava se virando para sair em busca de sua bagagem quando o fogo estalou novamente. Por um breve instante, a face no retrato foi sobreposta pelas chamas,
como o reflexo do pôr do sol em um lago.
Ele lutou contra o súbito desejo de pegar uma machadinha de sua sacola e lançá-la sobre o sorriso inquietante de Ephran Korban.
- Parece que você está precisando de algo para lhe abrir os olhos. - disse uma voz atrás dele. Era Roth, o fotógrafo que sentara ao seu lado no banco da van. O homem
falava com um sotaque inglês esquisito, não inteiramente autêntico e com cheiro de álcool em seu hálito. Havia um martíni de prontidão em sua mão enrugada.
- Não, obrigado. - disse Mason.
- É final de tarde e somos todos crescidos por aqui. - Os olhos de Roth moveram-se por debaixo das sobrancelhas brancas. Seu rosto era magro e anguloso e Mason o
viu como uma escultura natural, a topografia envelhecida da pele, o escarpado do queixo, a planura da testa. Ele tinha o mau hábito de reduzir as pessoas às suas
formas essenciais, esquecendo que algum tipo de alma poderia existir por baixo da argila da criação.
- Eu não bebo.
- Ah, você é um daqueles malucos religiosos?
- Não sou nenhum tipo de maluco, até onde sei. Exceto pela parte de ouvir a voz de Deus saindo de um arbusto em chamas.
Roth riu, derramando um pouco do martíni. - Não se meta em confusão, filho. Você é terrivelmente jovem para cair nas garras desse povo. - disse ele, acenando com
a cabeça na direção das pessoas que a Srta. Mamie estava cumprimentando.- O que um pinto como você está fazendo num lugar como esse?
- Estou aqui como convidado. Ganhei uma bolsa do Conselho de Artes da Carolina do Norte e do Solar Korban. - Mason olhou para o fogo novamente. Nenhuma face contorcia-se
entre as cores brilhantes e nenhuma voz surgiu. Ele se forçou a relaxar.
- Um artista de verdade, hein? Não como aqueles - disse Roth, rolando os olhos na direção dos convidados bem vestidos da Srta. Mamie. - Muitos deles necessitam de
um retiro de artistas como precisam de outra conta-corrente. Uma porção de ternos caros cujo ápice da carreira artística consistiu em grudar feijões em um farrapo
de estopa velho.
Outro crítico. Passando adiante seus julgamentos sobre os talentos irrelevantes de terceiros. Pelo menos eles pagaram para estar aqui, ao contrário de Mason. - De
que parte da Inglaterra é você?
- Nenhuma gota de sangue inglês nesse corpo. - disse ele - Estive por lá como militar por um tempo e peguei um pouco do sotaque deles. É útil com as mulheres. -
disse ele piscando um olho acinzentado.
- Você veio fotografar, suponho. - Mason namorou uma garota que tinha um livro sobre o trabalho de Roth. Ele trabalhava com natureza, animais, arquitetura e um retrato
ocasional. Não conseguia atingir o glamour luminoso de um Leibovitz ou a sensibilidade visceral de um Mapplethorpe, mas suas fotografias possuíam sua própria marca
de honestidade bruta.
- Fui contratado por algumas revistas. - disse Roth - Tenho algumas encomendas de casa e jardim, cenas de montanhas, esse tipo de coisa. Quero fotografar aquela
ponte, entretanto. É a ponte de madeira mais alta dos Apalaches do sul, dizem por aí.
- Acredito nisso. Só de pensar já fico com vertigens.
- Você tem problema com altura?
- De onde venho , os prédios mais altos tem dois andares, se não contar os silos. Eu posso lidar com escadas, mas já começo a ter problemas com escadas de mão. Olhar
para baixo e ver cem metros.
- Uma queda daquelas de cada lado. - disse Roth, pegando outra bebida e saboreando a palidez do rosto de Mason. - Korban apreciava seu isolamento. Queria que o lugar
fosse como um daqueles castelos europeus.
Roth levantou o copo num brinde ao retrato de Korban. - Isso é para você, seu velho desgraçado.
A sacola de Mason estava se tornando pesada e ele estava ansioso para se acomodar e terminar o planejamento das peças nas quais gostaria de trabalhar. E o sotaque
de Roth era irritante.
Uma mulher atraente vestida de preto desceu as escadas, o vestido muito próximo de um autêntico gótico, o xale de renda sobre os ombros. Parecia ser um tipo de recepcionista.
Levou um casal que estava com o grupo da Srta. Mamie. O homem parecia estar na casa dos cinquenta, com uma papada proeminente, carrancudo, a mulher com os olhos
azuis e uma compleição clara de quem parecia ter saído de uma revista de moda. Subiram juntos as escadas, o homem pigarreando, as enormes pregas do pescoço balançando.
- Talvez eu o fotografe mais tarde. - disse Roth - Talvez à mesa, com uma pena de nanquim nas mãos. Não sou muito fã de trabalhos sobre personalidades, mas poderia
faturar uma grana com essas fotos.
- Quem é?
Roth sorriu como se Mason tivesse subitamente caído de uma carroça de nabos. - Jefferson Spence.
- Você quer dizer o Jefferson Spence? O romancista?
- O primeiro e único. O último grande escritor sulista. Faulkner, O’Connor e Wolfe, todos juntos no mesmo lugar, se você acreditar no que está escrito nas contracapas
dos livros.
Mason observou o escritor subir as escadas com dificuldade. - O que ele quer com uma colônia de artistas?
- Inspiração. Você não sabe muito sobre ele, não é?
- Nunca li nada dele. Sou mais no estilo Erskine Caldwell.
- Um crítico definiu o estilo de Spence como uma torrente de pomposidades. Mason riu. - Bem, foi bacana ele trazer a filha junto.
Roth balançou a cabeça. - Suponho que você também não leia as colunas de fofocas. Aquela não é a filha dele. Presumo que seja a mais nova mulher.
A voz da Srta. Mamie cresceu, sua risada preenchendo a sala de estar. A seu lado estava Anna. Seu olhar encontrou o de Mason, deu-lhe um meio sorriso e voltou a
atenção para a Srta. Mamie.
Roth reparou-a também. Seus olhos eram brilhantes como os de um lobo. - Bela ave. Mason fingiu não ouvir. - Com sua licença, tenho que esticar minhas pernas um pouco.
Roth fez um floreio cavalheiresco e saiu em busca de mais bebida. Mason ajustou a alça da sacola por sobre os ombros e dirigiu-se à porta de saída. A carroça havia
sumido, a trilha das rodas dirigindo-se a um dos celeiros, as marcas escuras do esterco dos cavalos marcando a estrada arenosa. O panfleto do Solar Korban havia
ressaltado o fato de que nenhum veículo motorizado estaria por perto para "perturbar os impulsos criativos". Da mesma forma, distrações como televisão, telefone
ou eletricidade também não existiam na fazenda.
Um episódio normal da Ilha de Gilligan, apenas sem as risadas de claque e as guinadas de roteiro. Que diabos estou fazendo aqui?
Alguém do grupo gritou - Deixe-me contar para vocês sobre uma ideia maravilhosa que tive para um romance. É sobre esse escritor que... - Mason deu uma última olhada
para o rosto de Korban e se lançou nos raios solares outonais.
CAPÍTULO 5
A dor possui diversos matizes, mas o medo, apenas um.
George Lawson pensou que havia experimentado todos os matizes de dor em seus cinquenta e três anos de vida. Dor branca, quando ela havia cortado parte do maxilar
com uma serra enquanto tentava podar uns arbustos, alguns anos atrás. Havia se familiarizado com uma dor azul-clara quando a artrite reumatoide havia dado uma longa
pincelada em sua coluna. E o soco acinzentado no estômago que havia durado meses após Selma tê-lo largado por um tecelão hippie no final do mandato de Rreagan.
Ele sentiu dor em uma centena de cores, laranjas, vermelhos intensos e verdes diversos. A dor também havia adquirido a mesma quantidade de formas e tamanhos. Mas
ele estava certo de que nunca antes havia sentido uma dor como aquela que o agarrava em um abraço de urso naquele momento. Ela era como todas as outras combinadas,
um arco-íris de dores, uma mancha de óleo na superfície de uma poça de água, tudo que os nervos conseguiam mandar de uma só vez e mais um pouco.
Mas o medo - O medo não era nada mais que negro. Maior, mais escuro, cegante e sufocante, crescendo como uma sombra sobre todas as outras cores. Medo negro enroscado
em sua garganta como um trapo sujo de graxa, como um pano ensopado de melado velho, como um pedaço de carvão.
George experimentou mover o braço esquerdo. Erro.
Dois grandes pregos haviam cravado seu bíceps ao chão. Ele conseguia sentir o sabor dos pregos, apesar de estar certo de que a única coisa que tinha na boca era
um pouco de pó, um pouco de sangue e uns dentes frouxos. E o medo.
O gosto era de metal, ferrugem e aquele sabor meio amargo, como de pólvora queimada e ferro quente, que enchem o ar de uma oficina quando o ferreiro trabalha. O
barracão desmoronado aquietou-se a sua volta com um gemido.
George sabia que era melhor abrir os olhos. Porque, em sua cabeça, ele estava olhando para dentro de um grande túnel negro e quanto mais fundo ele olhava, mais longe
da luz ele ficava. Ele estava escorregando em direção às trevas suavemente, como se estivesse sobre trilhos, e parte dele queria escorregar para dentro daquele lugar
frio e sem ar, logo após a curva.
Mas a outra parte dele estava assumindo o controle. A parte que tirou seu traseiro de dentro das selvas do Vietnã, a parte que o tirou da cama do hospital quando
os médicos disseram que ele estava a uma batida de coração do grande final, a parte que o levou de volta à luz do sol após meses de solidão. Era a parte que George
dera o nome de Velha Couraça. Como uma identidade secreta que ele assumia quando a coisa ficava feia. E ele realmente precisava da Velha Couraça agora, porque as
coisas não podiam ficar piores do que estavam.
Outro problema de manter os olhos fechados é que ele continuava a vê-la. A Mulher de Branco. Assim, forçou as pálpebras a se abrirem, graças à sua identidade secreta.
Farpas de madeira caíram sobre ele e grudaram-se a suas lágrimas. Algo morno e molhado escorria da têmpora direita, mas ele não estava realmente preocupado com isso
agora. Primeiro tentou descobrir o que era aquela coisa arroxeada e esquisita, aquela coisa espetada na viga sobre sua cabeça. Era estranhamente familiar, mas fora
de contexto, como um barco no meio de um campo de milho.
A coisa arroxeada estremeceu. Não, apenas escorregou um pouco na ponta quebrada da viga. Mesmo no lusco-fusco e sob a poeira que ainda voava, George conseguiu ver
que a coisa tinha cinco pequenos apêndices pendurados, como as tetas de uma vaca. Foi então que a identidade secreta de George assumiu o controle, como se tivesse
sido eletrificado por uma dúzia de xícaras de café.
- Então é uma maldita de uma mão, Garotão. Qual o problema? Quantas pessoas nesse mundo nasceram sem as mãos? Lembra-se de todos os combatentes do Vietnã que você
viu perderem todos os diachos de braços e pernas e que conseguiam apenas ficar se remexendo no chão como peixes na beira da praia? Então dê a volta por cima.
George engoliu em seco e o fragmento de vidro imaginário em sua boca desceu pela garganta. Os dedos mortos, lá em cima, estavam abertos, como que esperando um aperto
de mão. Ele esperava que a Velha Couraça não esticasse demais a linha dessa vez, porque a linha estava na tensão máxima.
- E como você é o único palhaço deitado aqui no meio dos destroços dessa porcaria de barracão, as chances são altas de que aquela mão seja sua, soldado.
George virou levemente a cabeça, de modo a não ver a mão. Girou os olhos para ver o corpo, mas não conseguia ver nada abaixo do peito devido aos escombros do telhado
que se amontoavam sobre sua barriga. Ele tentou mover os ombros, mas a dor irrompeu em chamas multicoloridas.
- Certo, soldado. Você vai ficar gemendo como uma bicha franzina ou vai se levantar e tirar essa bunda velha e enrugada daí?
George não tinha ideia de como ficaria de pé, pelo simples motivo de que não conseguia sentir as pernas.
- Desculpas, desculpas. Bem, Georgie, isso tudo podia ser muito pior. Porque, caso não tenha notado, tem uma telha de zinco a dez centímetros de seu pescoço e ela
poderia ter escorregado e feito um belo serviço em você. Se isso tivesse acontecido, nem estaríamos tendo essa conversinha encantadora.
O canto afiado do zinco refletiu a luz do sol se pondo. Enquanto ele olhava, o pedaço de telha escorregou mais para perto com um rangido metálico. Mais rangidos
vieram do alto, nos destroços invisíveis do beiral. Algo deslizou nas sombras suaves.
- Não, não era uma cobra. Nem precisa se preocupar com a atividade das cascavéis nessa época do ano, já que estão dando as últimas contorcidas antes de hibernarem.
Não, Georgie, não há cobrassssss por aqui.
George pensou na velha canção de Johnny Cash, sobre como as cobras rastejam durante a noite, mas ela estava errada. As cobras dormem à noite, pois são de sangue
frio. Ele sabia disso porque tinha procurado a informação.
George engoliu em seco novamente, tentando empurrar alguma coisa do ar das montanhas para dentro dos pulmões machucados. Mais sangue estava escorrendo do pulso decepado,
pendurado acima dele. A gota de sangue crescente estava pendurada na ponta de um tendão arrebentado. Ele se perguntou se era sua mão esquerda ou direita.
- Grande pensador você, Georgie. Mas vou lhe dizer uma coisa, já que você sempre precisou saber sobre as coisas. É a mão do martelo, aquela que limpa sua bunda,
a que apertou a mão do Senador Halliefield no churrasco republicano em Raleigh. É, aqueles dedos lá seguraram a bola de beisebol que lhe deu a vitória em seu último
ano do colégio. Aquelas são as juntas, que deram o soco bacana na cara do hippie com o qual Selma fugiu. Mas, olha lá, agora eles estão bem mortinhos, você vê? Águas
passadas. Acho melhor nos preocuparmos com a carne que você ainda tem.
George queria poder sentir os pés. Assim ele não ficaria com tanto medo de estar se tornando um daqueles peixes na beira da praia. Algo dentro de suas entranhas
dilaceradas contraiu-se e borbulhou. A cada inspiração rasa, as costelas quebradas iam mais fundo para dentro do peito em busca de carne para cortar. E quem ele
podia culpar?
- Ninguém, a não ser esse seu nariz imbecil, soldado. Tinha que mexer no que não era assunto seu, não é? Você tinha que saber, não é? Sempre teve que saber das coisas
e sempre terá. Mas, se você não cair fora dessa roubada na qual se meteu, sempre não durará mais que o entardecer, filho.
Claro, George gostava de saber sobre as coisas. Ele quis saber por que as libélulas eram também chamadas de "comida de cobra". Ele quis saber por que Selma havia
mexido nas molas da velha cama de casal que usavam. Ele quis saber por que aquela pintura de Ephram Korban pendurada no solar lhe dava sete tipos de arrepios diferentes.
Ele quis saber por que aquela bruxa da Sylvia e seu coleguinha Ransom o haviam avisado para ficar longe dessa parte da floresta. Acima de tudo, ele quis saber por
que a Mulher de Branco havia dançado no barracão segundos antes que ele desmoronasse à sua volta.
- Não vai te fazer bem algum agora, ficar pensando naquilo que você não vai encontrar resposta. - disse a voz distante da Velha Couraça - É melhor se concentrar
no que tem nas mãos, se você entende o que quero dizer.
Outra gota de sangue caiu em seu rosto, dessa vez no queixo. George pensou em levantar a mão e limpá-lo, mas então lembrou-se de que o braço que usava para se limpar
havia sido decepado na altura do pulso. A dor explodiu até a altura do ombro, brilhante e amarelo como Napalm.
George espiou por entre o madeirame acima. Uns poucos raios de luz passavam através do entulho, a poeira circulando lentamente pelo ar. Isso significava que restava
ainda um pouco do dia. O tempo havia ficado estranhamente espichado, do mesmo jeito que acontecera no Vietnã, quando os soldados haviam se agachado esperando a artilharia,
mesmo antes dos morteiros começarem a atirar.
- Ei, Georgie, me dá um pouco de crédito aqui. Eu te tirei dessa confusão, não tirei? Então não me deixe na mão agora. Mas preciso que me ajude, filho. Você precisa
ter um pouco de esperança, desgraçado.
Esperança. A esperança pega você de manhã e te coloca para dormir bem aconchegado de noite. Esperança era a última coisa a que você se apegava quando todo o resto
havia partido. O pensamento congelou George, ou talvez tenha sido o suor frio que lhe cobria o rosto.
- Estou aguentando. - sussurrou George. Ele, de modo geral, não conversava com a Velha Couraça, pois achava que somente gente esquisita respondia às vozes que tinham
dentro da cabeça. Mas até aí, com certeza havia um monte de pessoas malucas em volta do Solar Korban. Ransom Streater dizia conseguir ver pessoas que não estavam
lá, ou àqueles que haviam partido há muito tempo. George gostaria que algum deles tivesse uma visão agora, fizesse aquele negócio da Visão, do qual Abigail vivia
falando, e vissem-no preso debaixo do antigo barracão.
Mas o Solar Korban estava a quase uma milha de distância e quase ninguém andava por aquela parte da floresta. As chances eram de que ninguém estava à distância de
um grito, mesmo que George conseguisse encher seus pulmões o suficiente para dar um. As chances eram de que os outros funcionários estavam ocupados à volta do solar,
acomodando o último grupo de artistas. A Srta. Mamie observando se eles ousariam descansar mesmo que por um minuto. Assim, mesmo que ele conseguisse se arrastar
para fora dos escombros, acabaria por se esvair em sangue antes de conseguir chegar à trilha, que dirá até a estrada ou o solar.
Mas primeiro ele deveria se desvencilhar para depois se preocupar com o resto. Olhou para a direita, para o lado de seu corpo do qual estava faltando uma parte.
Uma sessão do telhado que estava relativamente intacta inclinava-se de um ponto logo acima de sua cintura até o chão, cinco metros adiante. O entulho acima dele
estava seguro apenas por uma única viga.
Se aquilo ceder...
- Então é Sayonara, panaca. - disse a Velha Couraça, de algum buraco do cérebro em choque de George, onde o desgraçado havia se escondido. - Agora mova-se.
Uma viga estava encostada em seu braço, a superfície áspera contra sua pele. Se ele conseguisse movê-la, talvez usá-la como alavanca, conseguiria livrar seu braço.
Moveu o braço e seu cotovelo bateu contra o chão de madeira. Seu braço direito deveria estar dormindo, pois agora voltava à vida formigando.
Empurrou a viga contra a lateral do corpo e o resultado logo veio. A ponta de seu braço explodiu numa onda de agonia. Era uma dor laranja, o laranja que saltava
das mãos do Tocha no Quarteto Fantástico que lia quando era criança. Ainda assim, empurrou a viga até encostá-la no toco de seu braço decepado.
- Muito bom, garotão. - disse a voz no comando - Dê-lhes o diabo. Apenas uma pergunta: o que você vai usar para apoiar a alavanca dessa gangorra sua?
A Velha Couraça tinha razão, por mais que George odiasse admiti-lo. Mas se ele desistisse agora, ter sobrevivido ao Vietnã, à Selma, ter pisado em uma cascavel e
ter sido picado não teriam valor algum. Escorregar naquele trilho rumo à escuridão seria muito mais fácil. Apenas como um experimento, pois ele tinha que saber,
fechou os olhos.
E ele estava mais profundamente no túnel agora. A luz na direção da vida estava mais difusa e borrada, enquanto ele acelerava, deslizando mais veloz e suavemente,
como num trenó sobre a neve.
George relaxou, muito embora estivesse tremendo, seu sangue faminto de oxigênio e o coração batendo como o martelo de um carpinteiro tentando vencer uma tempestade.
Porque lá, dentro do túnel, era certo desistir da esperança. Ninguém lá dentro a usaria contra ele. Sentiu que outros estavam lá, esperando para recebê-lo, encolhidos
nas sombras, àqueles que haviam escorregado antes dele. E ele estava contornando a curva, pois isso era fácil, era divertido, o suave som do escorregar martelando
em seu crânio.
E se houver COBRAS após a curva?
George abriu os olhos e lutou para sair do túnel, vendo que o sol ainda brilhava teimosamente no céu, em algum lugar acima, enquanto a mão desertora continuava pendurada,
aberta e pálida, usando um bracelete de lascas e sujeira. Ele quase desmaiou e se deu conta de que o choque estava se instalando em seu corpo.
Uma vez, em An Loc, alguns soldados estavam à toa bebendo latas de Schlitz enquanto George Jones controlava o toca-discos. Um jovem médico chamado Haley estava fumando
um baseado do tamanho de um cano de um fuzil e lhes contou por que o choque era o melhor amigo de um soldado moribundo.
- Para alguns tipos de dor, nem mesmo uma dose de morfina vai resolver. - Haley disse, uma nuvem de fumaça azul à volta da cabeça - Mas o choque, cara, ele desliga
você direitinho. A pressão sanguínea cai, a respiração fica leve, você fica todo suado e esquece até o nome de sua mãe. Uma pancada, você sangra e aí, cara, começa
a viajar.
Eles disseram pra Haley calar a boca e George havia conseguido se desviar de seu encontro fatal com o choque, pelo menos até hoje. Porém, deitado sob a pilha de
escombros e correndo os olhos pela lista de sintomas de Haley, ele já estava com três quartos do caminho andado. Ele ainda lembrava que sua mãe se chamava Beatrice
Anne.
A mão decepada estava deslizando pela ponta da madeira. Uma gota de sangue atingiu sua bochecha. George apertou os dentes moles e virou a viga sobre seu peito. Ele
empurrou com o coto do antebraço até que uma das pontas da tábua ficou sob a viga que prendia o braço esquerdo.
Ele tentou não olhar para o pulso machucado, enquanto sentia o sangue escorrer pela parte inferior do braço. Se ele não estancasse isso logo...
- Não fique com medo do que falou o Haley com o cérebro cheio de fumaça, garotão. Certas coisas um homem tem que fazer sozinho. E um consertador de coisas como você,
um verdadeiro faz- tudo - é claro que agora tem apenas metade das ferramentas que costumava ter, não é mesmo?
George queria gritar para a Velha Couraça calar a boca e deixá-lo em paz. Mas necessitava dela, necessitava daquela voz interna insultando-o mais do que nunca. Caminhando
pelas estradas e trilhas solitárias da fazenda Korban, ele aceitaria qualquer companhia disponível. Claro, alguns dos frequentadores do café Stony Hampton haviam
sussurrado sobre fantasmas e coisas similares ao redor da fazenda, mas depois do Vietnã, George chegara à conclusão de que os piores fantasmas eram aqueles que mandavam
seus filhos para a guerra.
Assim, quando ele viu um pálido movimento trêmulo dentro do barracão, não deu ouvidos aos rumores. Pensou ter sido um gambá ou uma coruja, nada que pudesse causar
muito dano. Mas George era pago para manter o local em bom estado e as criaturas afastadas ou, como disse a Srta. Mamie, "do mesmo modo como eram as coisas quando
Ephram ainda era o mestre desse lugar". Assim, George havia levantado a antiga lingueta de metal e empurrado a porta, esperando que quaisquer cobras fossem espantadas
pelo barulho.
- Mas não era um gambá e também não era uma coruja, não é? - sussurrou a Velha Couraça. George esbugalhou os olhos. Devia ter delirado. Era outro dos sintomas de
Haley. A viga sobre seu peito subia e descia no ritmo de sua respiração rápida. O sol estava baixo no horizonte, os ângulos das sombras agudos e espessos nos destroços.
O medo lhe deu um impulso de energia e ele elevou a viga. Seu toco de pulso gritou em tons de vermelho-fogo.
- Você está ouvindo? Não era nenhum maldito gambá, não é, garotão?
Agora ele desejava que a velha desgraçada calasse a boca. Ele precisava de foco, efetuar o serviço sujo rapidamente, não precisava... - - Poderiam ser cobrassss.
Ou talvez - A longa e deslizante sombra.
- Qualquer que tenha sido o truque quando pisou no interior do barracão. Porque se um homem não pudesse confiar em seus próprios olhos, seus dias como prestador
de serviço estavam contados. Mas agora, tudo o que importava era...
Aquela sombra escorregadia através da qual você podia ver.
... o próximo empurrão, alavancando a viga de cima do braço esquerdo. Seu peito entrou em uma erupção de faíscas azuis e quentes de dor, azul-demoníaco, tão intenso
que quase parecia branco. Mas a viga deu um pequeno gemido e elevou-se levemente, acordando os nervos transfixados por pregos de seu bíceps.
- Está se movendo, soldado! Ela se move! E a dor não é nada, não é? Diabos, já passeamos por lugares com essas dores. Dessa vez, será uma valsa afeminada no meio
das margaridas, garotão.
Uma valsa. A longa sombra branca estava valsando, como uma cortina soprada pelo vento, exceto...
- Claro que não era o rosto de uma coruja, garotão. A sombra possuía um rosto humano.
George gorgolejou e a saliva escorreu pelo rosto. Alavancou novamente a viga, elevando-a mais alguns preciosos centímetros e novos matizes de dor surgiram, amarelo-pus,
verde-elétrico, violeta-berrante, fitas enlouquecidas de agonia. Uma grande seção do telhado estremeceu e a mão amputada caiu em sua testa e pulou para longe.
Mas George nem notou, pois estava novamente dentro do túnel negro, descendo pelos trilhos, contornando a curva em direção à escuridão, a curva final para longe dos
que respiravam.
E, subitamente, ele se deu conta do que havia do outro lado da curva.
Ela o esperava, a sombra branca com grandes olhos redondos e suplicantes, a coisa com os braços abertos, uma das mãos segurando um buquê de flores mortas. Ela parecia
ainda mais assustada que George. Logo antes do galpão desabar, ele havia visto a longa cauda se contorcendo sob o laço de sua toca, uma cauda tão assustadora quanto
uma...
- As cobras rastejam à noite, Georgie.
- Não, elas não rastejam - disse George, a voz áspera e fraca - Eu sei que não o fazem porque estudei sobre isso.
Ele estava chorando, pois se deu conta de que não lembrava o nome de sua mãe. Mas o pesar não mais importava, nem a dor, nem os pregos em sua carne, nem a mão que
faltava, nem a poeira enchendo seus pulmões, nem a noite assustadora. Mesmo a Velha Couraça era um nada, apenas um fantasma distante da selva, uma teia de aranha,
um eco.
Tudo que importava eram os trilhos que agora o guiavam, a curva logo adiante e o túnel se abrindo para uma escuridão maior e etérea. Preto, além de todas as cores.
Ela estava esperando, acompanhada.
Johnny Cash estava certo e a enciclopédia estava errada.
As cobras rastejam à noite.
CAPÍTULO 6
Os campos eram verde-dourado e estendiam-se até a floresta circundante. Grandes montes de terra elevavam-se no horizonte, entalhados, lascados e arredondados pelo
mestre escultor, o Tempo. Mason agora sabia por que as montanhas eram chamadas de Blue Ridge, apesar das folhas outonais espalharem um tal conjunto de cores que
ele quase quis ser um pintor.
Laranja-abóbora, amarelo-verão estralado, dourado-milho e roxo-beterraba. Van Gogh teria arrancado a outra orelha para pintar esse lugar.
Exceto que um pensamento irrompeu por entre o ideal artístico de sacrifício. Mason se perguntou se a fieira histórica de artistas malucos não teria ficado esquizofrênica
ou envenenada pelo chumbo presente em suas tintas, mas, sim, pelo sussurrar de Musas exigentes.
Ele afastou o pensamento de sua mente porque parecia uma opção que apenas um maluco consideraria. Além do mais, ele desistira de pintar não por causa de falta de
vontade ou talento, mas por causa de sua natureza tátil. Sua mãe podia sentir a escultura com os dedos, mas uma pintura para ela não passava de uma interminável
obra em preto.
Alguns cavalos e vacas pastavam no campo que descia suavemente a partir da frente da casa. A terra aberta devia ter uns vinte acres, sem pedras e cuidadosamente
cultivada. Mason achou difícil acreditar que a terra macia desse lugar era cercada de desfiladeiros de granito por todos os lados.
Nem mesmo a trilha de um jato marcava o céu azul de outono, como se a fazenda estivesse longe da civilização não apenas em distância, mas também em tempo. Árvores
majestosas espraiavam seus ramos em espaços cuidadosamente planejados ao longo da trilha de carroça que se dirigia rumo oeste. Um pomar de maçãs cobria uma elevação
ao lado da pastagem, com árvores pintalgadas de frutos rosa e dourado. Uma grama vistosa serpenteava em um campo de trigo adiante, acabando no limite de uma floresta
densa.
Uma voz suave interrompeu seus devaneios - Agora você sabe por que os artistas deixam seus egos para trás e vêm para cá. Especialmente no outono.
Anna Galloway cruzou o portal, inclinou-se sobre o corrimão, fechou os olhos e inalou o ar pelo nariz com um gesto exagerado - Ah, ar fresco. Uma grande mudança
da atmosfera pretensiosa lá de dentro.
- Você é pintora? - perguntou Mason, o olhar ainda cruzando o campo, irritado por sua espetada nos artistas.
- Não.
- Nem eu.
- O que você é, então?
- Todo mundo tem que ser alguma coisa?
A mulher inclinou a cabeça para trás na direção da casa. - Se você ouviu a conversa deles, penso que sim.
- Bem, isso é um retiro, no fim das contas. Dê uns passos para trás e diga um "Nossa!", acho. - Ele não queria que ela notasse que estava fora de seu elemento. Ele
já sentia saudades das pequenas ruas sujas de Sawyer Creek, com seus postes de propagandas e quadros de avisos. Se estivesse em casa, agora estaria esquentando a
água para o chá e ligando o rádio no programa predileto de sua mãe.
- O que tem na sacola?
- Essa? Nada. Apenas algumas ferramentas.
- Que pena. - disse ela. - Você seria muito mais interessante se fosse um paraquedas.
Mason tentou não olhá-la fixamente, apesar de ser tudo o que gostaria de fazer. Era bonita, claro, mas também havia a impressão de que ela não permitiria que ele
se escondesse por detrás do papel que estava representando, aquele que utilizara para blefar durante a época da universidade.
Os olhos azuis eram penetrantes demais, viam além do rosto escorregadio das primeiras impressões. Ele demorou alguns segundos a mais para dar uma resposta mordaz.
- Não acha estranho eu andar com uma sacola de ferramentas para todo lado?
- Acho estranho você tê-la carregado por sobre a ponte. Como se esperasse que a arte pudesse ocorrer a qualquer momento.
Ele gostaria de poder contar a ela. As ferramentas não eram assim tão caras, mas elas chegaram às suas mãos a um preço muito grande. Ele pensou em Mama sozinha em
seu apartamento minúsculo em Sawyer Creek, sentada em sua poltrona, um gato em seu colo. Os olhos nunca piscando.
Essa mulher, que acabara de conhecer, era de uma perspicácia infernal e logo viu seu jeito inseguro com uma clareza invejável. Ele era pior que os demais, mesmo
quando fingia estar distante e não engolindo suas conversas pretensiosas e fúteis. Ele não estava certo se seu trabalho revelava algo sobre o mundo, mas ainda assim
estava determinado a esfregá-lo no rosto de todos para chamar a atenção.
Mason ajustou a sacola no ombro, sentindo o olhar da mulher sobre si. - Ferramentas para esculpir. - disse ele - Um martelo, uma machadinha, formões, goivas e algumas
lâminas.
- Você trabalha com madeira?
- Fiz um pouco de tudo. - Ele finalmente a encarou de frente, forçando-se a não piscar sob seu olhar penetrante. - Mas aqui trabalharei em madeira.
Ela concordou com a cabeça, como se já o tivesse esquecido. - Seis semanas não é muito tempo. Seria difícil conseguir fazer algo em pedra nesse período.
Seu sotaque era quase rural, como se ela tivesse tentado ser do campo, mas alguém a houvesse mandado para a universidade a fim de extirpar-lhe esse desejo, como
quem espreme uma espinha. Um dos cavalos, um grande ruão, galopou pela pastagem. Ela sorriu enquanto o observava.
- Que lugar, hein? - disse ele.
- Vi algumas fotos, mas elas certamente não fazem justiça. - Novamente ela soou distraída, como se Mason fosse tão entediante quanto os ricaços da Srta. Mamie.
Mason caminhou entre os arbustos e tateou as juntas esculpidas do corrimão. Colunas chanfradas sustentavam o pórtico, a tinta grossa e rachada onde as camadas haviam
se acumulado por décadas. A fundação de pedra do solar tinha uma grossa camada de musgo. Um impulso juvenil de impressionar a mulher o tomou de surpresa. - Arquitetura
de revivalismo colonial. - disse ele - Esse tal de Korban deve ter gasto um bom dinheiro nisso.
- Você sabe alguma coisa sobre ele?
- Apenas o que li no panfleto. Industrial, fez fortuna após a guerra hispano-americana, comprou essa montanha e construiu o solar como casa de verão. Dois mil acres
de terras conectadas à civilização apenas por aquela ponte de madeira.
Ele se odiou por ficar de papo. Não tinha vindo até o Solar Korban para ficar de conversa. Ele precisava se dedicar ao trabalho, não perder tempo com alguém que
parecia tão interessada nele quanto num pedaço de esparadrapo. Além disso, era de se supor que artistas fossem meio avoados, mesmo.
- Então você tem apenas a versão oficial da biografia. - disse ela - Fiz uma pequena pesquisa particular sobre ele. Esse é o meu trabalho.
- Você é uma escritora?
- Tipo isso.
- Deu para ver. Se perguntasse a minha opinião, diria que escritores são mais metidos e ferrados que artistas.
- Mas eu não perguntei. Como estava dizendo, Korban determinou em seu testamento que essa propriedade fosse mantida como era no final do século XIX. Ele estipulou
que o Solar Korban deveria tornar-se um retiro para artistas. Enquanto estava vivo, encorajou os empregados a encher a casa com artesanatos da região. Talvez ele
gostasse da ideia de sua casa estar repleta de energia criativa. Uma forma de se manter vivo.
- Aquele retrato, entretanto, é um pouco além da conta. - disse Mason -Ele deve ter tido um ego e tanto.
- Ele mesmo provavelmente era um artista. - Ela pareceu cansada, fez um gesto de dispensa e abriu um meio sorriso enlouquecedor. - Com licença, tenho que ir para
meu quarto.
Mason fumegou por dentro. Garota estúpida e narcisista, distraída e abrupta, tão nariz em pé quanto qualquer um daqueles Yankees conversando na sala de estar. Bancando
a gótica, pálida o suficiente mesmo sem maquiagem. Provavelmente usava a palavra "morte" para qualquer coisa que escrevesse.
Ele devia ter se esforçado mais na sua simulação, agido como alguém frágil. Talvez ele começasse a usar uma boina a fim de aparentar um ar sofisticado e deixasse
crescer um daqueles ridículos cavanhaques estilo Pierre. Isso arrancaria umas boas risadas do pessoal em Rayford Hosiery.
- Até mais tarde. - disse ele, tentando não parecer otimista demais. Então, sem saber de onde vieram as palavras, continuou - Espero que você encontre o que veio
procurar.
Ela se virou, encontrou seus olhos, novamente sérios. - Estou procurando a mim mesma. Diga- me se me encontrar.
E se foi, engolida pela grande casa branca que tinha o nome de Korban.
CAPÍTULO 7
- Podemos empurrar as camas para ficarem juntas. - disse Adam.
- Com certeza, e quando você rolar na cama dormindo, será o seu rabo que cairá na brecha entre os colchões.
- Fico me perguntando que tipo de cama os casados ganham.
- Provavelmente uns arreios presos aos balaústres da cama, com um espelho no teto.
- Não fique tão oprimido, Paul. Isso será romântico, como nos velhos tempos em que nos aconchegávamos nos sofá de sua irmã.
- É, até ela nos descobrir. Aquilo foi uma cena que não entrará num especial Disney para famílias.
Adam suspirou. Se apenas Paul não fosse tão cabeça-dura. Eles fariam dar certo. Eles sempre fizeram. E Deus não estava à solta para punir gente como eles, apesar
dos veementes rompantes dos direitistas raivosos.
- Escute. - disse Adam - Vamos empurrar as duas camas contra a parede e você pode ficar com o lado encostado nela. Assim, se alguém rolar para fora e bater a cabeça
no chão, serei eu.
Paul passou a mão no cabelo, exasperado. Umas mechas ficaram de pé, loiro-escuro e ondulado, como um jovem Robert Redford. Isso, combinado com seus olhos semicerrados
e cílios densos, faziam-no parecer sonolento. Adam gostava daquele ar sonolento e fora uma das primeiras coisas que o atraíram nele.
- Certo. - disse Paul - Vou parar de pegar no seu pé agora. Isso é para ser uma segunda lua de mel.
Adam sorriu. Os rompantes de Paul nunca duravam muito. - Isso significa que eu vou ganhar minha virgindade de volta?
Paul pegou um dos travesseiros de pena de baixo dos cobertores e o atirou. Adam se defendeu com facilidade. - Diga-me, você se encheu da Srta. Mamie?
- Ela poderia passar por uma drag queen se tivesse um pouquinho de pomo-de-adão.
Eles riram juntos. Adam disse - Você não mede as palavras e faz picadinho das pessoas. Na verdade, você faz picadinho de tudo.
- Vou fazer picadinho de você, se não se cuidar. E é por isso que você me ama.
- Bem, essa é uma das razões.
- Vamos desfazer as malas. Quero sair e encontrar pessoas.
- Isso é bem o seu tipo, mesmo. - disse Adam - Ficamos a centenas de quilômetros de qualquer lugar e aí você resolve que vai participar de alguma social.
- Vivo para festas, Princesa.
- Ei, é a minha herança que estamos gastando aqui. E não pense que vou deixar você se esquecer disso.
Paul fez seu beicinho de mentira como resposta.
Adam carregou a bagagem deles até o closet. Paul tinha três malas que combinavam e uma mala de casco duro para sua câmera de vídeo. Adam tinha apenas uma mochila
e uma bolsa com pesos.
- Além disso, - disse Adam - quando o dinheiro acabar, sempre podemos vender seu corpitcho lindo para comerciais da Calvin Klein.
- Só enquanto eu não tiver que beijar a Kate Moss. Ela me deixa nervoso.
- Se ela der uma olhadinha em você, vai querer ter um filho seu, bobo.
- Como se isso fosse acontecer um dia.
- Ei, deixa disso. Você daria um papai lindo.
- Chega dessa conversa. - disse Paul.
Adam começou a pendurar as camisas de algodão de Paul nos cabides, tomando cuidado para se manter de costas. Ele não queria que seu desapontamento fosse visto. Paul
era terminantemente contra a adoção, contra, na verdade, o compromisso derradeiro. E ninguém conseguia ser tão resoluto quanto Paul.
- Desculpe - disse Adam, as palavras abafadas dentro do closet. - Só pensei que, aqui nesse ambiente selvagem, longe de nossa antiga vida e pressões...
- Disse para não começar com o assunto.
- Você disse que poderíamos conversar sobre isso quando chegássemos aqui.
- Mas não disse que conversaríamos de cara. Quero relaxar um pouco e você está me deixando tenso.
- Não vamos brigar. É um modo péssimo de começar as férias.
- Preciso trabalhar um pouco, também. Como posso fazer alguma coisa se você fica me azucrinando com essa porcaria de história de "consolidar as coisas"?
Adam suspirou no interior escuro do closet. Ele terminou de guardar as roupas e então fingiu estar interessado no que acontecia lá fora da janela. Paul se divertiria
filmando algumas coisas nesse lugar. Um documentário belo e pacífico pela visão de um garoto de Boston.
Eles ficaram com um quarto no terceiro andar, menor que os demais que haviam visto enquanto a empregada os levava pelas escadas. A janela ficava encravada na cumeeira.
Todo o piso, paredes e teto do andar superior eram cobertos de madeiras encaixadas. Na subida, Adam havia perguntado à empregada sobre a escada estreita que levava
a uma pequena porta no teto. Ela lhe falou que levava à balaustrada do telhado e que aos hóspedes não era permitido o acesso a essa área. Ela havia dito isso, Adam
pensou, com um tom nervoso e uma pressa inquietante. Ele ficou pensando se algum hóspede, durante algum retiro anterior, havia sofrido algum acidente por lá.
Ele virou de costas para a janela, pronto para fazer as pazes. Se ele conseguisse fazer Paul falar sobre vídeo, a cisma logo estaria esquecida. - Então, você acha
que trouxe fitas suficientes?
- Tenho o suficiente para oito horas. Um pena que o orçamento não tenha me permitido comprar uma câmera Beta SP. Estou preso nessa digital vagabunda.
- Bem, você está trabalhando por contrato para a televisão pública. O que esperava, o orçamento do Titanic sem o Leo DiCaprio?
- Ei, eu ficaria felicíssimo com o orçamento do cabeleireiro dele. Fundos para documentários são o fundo do poço no que se refere a dinheiro nos dias de hoje. Talvez
eu devesse tentar "Mistérios do Inexplicável e outros Fenômenos Ocultos Esquecidos". Com toda essa conversa do solar ser mal- assombrado, quem sabe?
Adam sorriu, contando como vitória toda vez que Paul voltava para seu humor sarcástico. Paul não aceitava nenhum dinheiro de Adam para subsidiar seus vídeos, mas
por outro lado não tinha nenhum pudor de ser um "homem sustentado". Paul esticou-se em uma das estreitas camas e olhou para o teto. Talvez estivesse visualizando
a edição de alguma sequência de vídeo.
- Vou lhe dizer uma coisa. - disse Adam - Gostaria de ser abduzido por alienígenas enquanto você filma.
- Ouvi dizer que eles fazem todo tipo de experimento sexual bizarro.
- Parece melhor a cada segundo.
- Ei, o que eles podem fazer que eu não posso fazer melhor?
Adam atravessou o quarto. Paul estava com aquele olhar sonolento novamente. - Me beije, seu bobo.
Paul o beijou. Adam sentiu olhos os vigiando. Estranho.
- O que foi? - Perguntou Paul, a voz rouca.
- Não sei. - disse Adam. Ele olhou ao redor. Ninguém conseguiria vê-los pela janela e a porta estava trancada. Além da mobília, a única coisa no quarto era uma pintura
a óleo, uma réplica menor do homem cujo retrato encontrava-se na sala de estar.
Não vou ficar paranoico. Está tudo bem em ser gay, mesmo na região rural do sul. Está TUDO bem em voltar à natureza. Esse amor é tão real quanto qualquer outra coisa
no mundo.
Ele deslizou na cama ao lado de Paul, pensando se o velho careta do Korban desaprovaria o fato de dois garotos estarem se pegando no sótão. Korban estava morto e
Paul muito mais vivo.
CAPÍTULO 8
Mason estava cansado de sua caminhada ao longo das trilhas de carroças. Passara a tarde tentando clarear a mente, saboreando a solidão e a quietude da floresta da
montanha que cercava a fazenda. Lá, sob as antigas árvores, ninguém tinha nenhuma expectativa a seu respeito. Não tinha que ser uma nova estrela das artes, não era
as esperanças e sonhos de sua mãe e não tinha obrigação de provar seu valor ao pai mais implacável do mundo. No Solar Korban, ele era apenas um qualquer, com sua
pequena sacola de truques.
A sala de estar estava quase vazia quando Mason retornou ao solar, logo antes do pôr do sol. Balançou a cabeça para um casal de idosos com casacos que combinavam,
as mangas arregaçadas e as bebidas a postos. Roth e uma garota de pele escura estavam conversando, Roth gesticulando como se estivesse fotografando. A empregada
lúgubre estava ao pé das escadas, as mãos às costas, olhando para o retrato de Korban. Mason acenou para Roth e atravessou a sala, cuidando para não olhar para a
lareira. Estava com receio de ver algo que não estaria lá.
Ele tocou a empregada no ombro. Ela girou como se tivesse levado um choque e Mason deu um passo atrás e abriu as mãos em um gesto de desculpas. - Desculpe assustá-la,
mas é você que está mostrando os quartos para nós?
Ela forçou um sorriso e concordou com a cabeça. Mason forçou os olhos para ler o nome na placa de latão em seu peito. Lilith.
- Nome, por favor? - A voz um pouco acima de um sussurro. A risada de Roth ressoou do outro lado da sala, sem dúvida alimentada por mais uma de suas piadas.
- Jackson. - disse Mason.
- Sr. Jackson, você está atrasado. - Ela tentou sorrir novamente, mas o sorriso apenas adejou sobre seu rosto para depois se esconder nas sombras de sua boca. -
Segundo andar, ao final da ala sul.
- Espero que tenhamos banheiros. - disse ele, tentando um pouco de humor grosseiro - Sei que se espera que façamos uma viagem no tempo, mas não vi nenhuma casinha
de banheiro do lado de fora do solar.
- Banheiros compartilhados apenas para quartos conjugados. - disse ela, já subindo as escadas. -Você tem um banheiro privativo. Siga-me, por favor.
Mason relanceou os olhos uma última vez para a lareira e então para o rosto gigante de Korban. Mesmo com olhos sem vida e confinado a duas dimensões, o homem possuía
carisma. Mas até aí, também tinham carisma David Koresh, Charles Mason e Adolf Hitler. E o pai de Mason. A galeria dos otários. Mason balançou a cabeça e subiu as
escadas. Lilith não havia se oferecido para carregar sua sacola. Talvez ela tivesse reparado no quão possessivamente ele a segurava ou talvez a educação e maneiras
do século XIX ainda dominassem o solar.
Lilith deslizou sobre o piso de carvalho, o vestido farfalhando suavemente. Se ela fosse a um evento gótico na cidade, com certeza sua compleição doente se encaixaria
no contexto. Ela movia-se com uma graça que se contrapunha às suas feições emaciadas. Julgando por suas mãos ossudas e os ângulos de seu crânio, Mason esperava que
ela chocalhasse enquanto caminhava.
O segundo andar era tão suntuoso quanto o primeiro, com o mesmo pé-direito alto e acabamento nas paredes. Um par de candelabros flutuava sobre o grande saguão, cada
um com velas cor de creme presas em um anel de prata e envoltas em contas de cristais. Lâmpadas astrais queimavam à altura dos olhos a cada seis metros, as chamas
lançando luz suficiente para empurrar as sombras sobre o acabamento de madeira. Fileiras de três sólidas portas de bordo alinhavam-se em ambas as paredes e pinturas
a óleo de paisagens encaixavam-se nos intervalos entre as portas. A arte era de alta qualidade, todas com cenas do solar. Uma delas era da ponte de madeira que Mason
e os convidados haviam atravessado e a imagem trouxe de volta a lembrança de seu pânico. Ela, como as outras pinturas, não trazia a assinatura do artista.
Grandes retratos de Korban, com diferentes efeitos de luz daquele presente no retrato da sala de estar, mas possuindo o mesmo cenho de época, estavam pendurados
no final de cada corredor.
- Belas pinturas. - disse ele a Lilith.
- O Sr. Korban vivia para sua arte. Todos vivemos.
- Ah, você é uma delas? - ele brincou. Ou ele estava muito oprimido com o iminente fracasso como escultor ou ela estava preocupada, mas a brincadeira não obteve
sucesso.
- Costumava ser. - replicou Lilith.
Passaram em frente a uma porta aberta e Mason olhou para dentro. O corpanzil de Jefferson Spence se esparramava sobre uma cadeira de madeira enquanto o escritor
desempacotava seus papéis e os distribuía sobre a mesa. A Srta. Revista de Moda não estava à vista. Mason notou que o quarto possuía apenas uma cama e, então, rapidamente
desviou o olhar, censurando-se por ser curioso.
Lilith o levou a uma porta no final do corredor. Ela rangeu quando foi aberta. Lilith deu um passo para o lado, para que Mason pudesse entrar, mantendo os olhos
voltados para o chão.
- Obrigado. - disse Mason. Sua mala surrada, uma Samsonite com fita isolante segurando a alça no lugar, estava dentro do quarto. A suíte era grande, com uma cama
king size de dossel, mesas de cerejeira, escrivaninhas de castanheira e criados-mudos circulares. Janelas grandes e retangulares estavam nas paredes sul e oeste
e Mason deu-se conta de que o quarto receberia sol o dia todo. Isso era um luxo em um lugar que não apresentava eletricidade. O sol poente inundava o quarto com
uma coloração quente em tom de mel.
- Uau! Esse deve ser um dos melhores quartos. - disse ele.
A empregada ainda estava do lado de fora, como se estivesse com medo de respirar o ar do quarto.
- É a suíte mestre. - disse ela - Costumava ser o quarto de dormir de Ephram Korban.
- É por isso que tem o retrato dele na parede? - perguntou Mason, acenando com a cabeça na direção da pintura sobre a grande lareira do quarto. Era uma versão menor
da pintura pendurada na sala de estar, de um Korban um pouco mais moço. Os olhos, entretanto, eram do mesmo modo negros e sem vida, um leve indício de sorriso nos
lábios cruéis.
- A Srta. Mamie escolheu esse quarto especialmente para você. - disse Lilith sem emoção - Ela disse que você foi muito bem recomendado.
Mason jogou a sacola sobre a cama. As ferramentas tilintaram. - Espero corresponder às expectativas.
- Ninguém conseguiu ainda. - disse Lilith ainda esperando do lado de fora. Se ela estava brincando, não havia sinal disso em seu rosto.
- Ahn, não sei muito a respeito de lugares como esse. - disse ele, colocando a mão no bolso e caindo na sua rotina estilo "ah, que saco". Havia aprendido que as
pessoas eram mais condescendentes se pensassem que ele era um caipira burro pois suas expectativas seriam menores.
Ele conseguia o mesmo efeito com o sotaque sulista, apesar disso ter deixado de ser intencional. Ele suspeitava secretamente que seu sucesso em Adderly havia sido
em decorrência de seus instrutores sofisticados ficarem surpreendidos que um simples aldeão pudesse invadir sua confinada sociedade e competir com os membros da
elite cultural. - Você pode pensar que sou burro, mas eu deveria lhe dar gorjeta ou algo assim?
- Não, claro que não. E a Srta. Mamie me mataria se você tentasse. - Lilith conseguiu sorrir, aliviada por ter sido dispensada. Ela era mesmo atraente, de um jeito
nervoso e pálido, como uma princesa cuja cabeça estivesse para ser cortada. Ela não era bonita como a mulher de revista de moda com olhos azuis, mas Lilith provavelmente
não desdenharia os artistas caso também fosse um deles.
Lilith apontou para a porta na parede oeste. - O banheiro é ali.
- Ótimo. - Ele sentou-se na cama.
- Isso é tudo?
- A não ser que você queira tirar meus sapatos.
Ela deu um passo hesitante à frente, olhando para o chão.
- Ei, eu estava só brincando. - Ele deu uma risada que pareceu um cavalo engasgando com uma maçã.
Lilith abriu novamente o sorriso febril e então disse. - O jantar é às oito em ponto, Sr. Jackson. Não se atrase. A Srta. Mamie não apreciaria.
Então ela se foi. Mason voltou a atenção mais uma vez para a mobília. Uma luminária em cada criado-mudo, uma base oval de vidro preenchida com óleo pesado e envolvida
com adornos de latão. Um fogo crepitava na lareira, uma pilha de lenha empilhada próximo às pedras. Era um milagre que um lugar como esse não tivesse pegado fogo
em todos esses anos. Mason se recostou nos travesseiros e olhou para os padrões ondulados do gesso no teto.
Certo, Mase, isso foi o que você quis a ponto de se envolver com todos os problemas que teve. Você fez de tudo, exceto ficar nu e balançar as partes em frente ao
comitê de bolsas do Conselho de Artes. Você se desviou das críticas, vendeu sua marca de óleo de cobra e agora deu talvez o maior passo de sua carreira. Talvez até
de sua vida. Porque se você não produzir nada vendável por aqui, pode começar a procurar um abrigo para mendigos em Sawyer Creek.
E terá que olhar sua Mama nos olhos, mesmo que ela não o enxergue, e dizer que falhou, que os sonhos dela não foram fortes o suficiente e que você não acreditou
neles o suficiente.
Retinopatia diabética. Uma rápida deterioração da visão, exceto que ela nunca falara nada enquanto o túnel se fechava. Ela mentiu para os médicos por tempo suficiente
para que a doença se tornasse irreversível e Mason descobriu apenas quando era tarde demais. Ela era muito nova para ser aposentada por invalidez e não era pobre
o suficiente para ser tratada pelo governo, mas ainda podia ter seguido em frente e rolado as dívidas até, por fim, declarar falência. Mason tinha gasto o dinheiro
em Adderly, martelando em pedaços de madeira e ferro, tentando dar-lhes a forma de sonhos.
A pior parte era que Mason não sabia se a admirava por seu sacrifício ou se a desprezava por ser tão nobre. Agora ela se arrastava devido à deficiência e sobrevivia
às custas de qualquer coisa que Mason fosse capaz de conseguir de seu pagamento na fábrica. Mas aquele trabalho era passado agora, perdido devido à sua busca pela
arte. Ainda assim, Mama era sua maior fã.
- Nunca deixe de sonhar, querido. - disse ela por entre dentes que não tinha dinheiro para consertar. - Isso é tudo o que conseguimos desse mundo, nossos sonhos.
Mason levantou-se e caminhou pelo quarto, do mesmo jeito que costumava andar quando estava ansioso com alguma ideia, quando sentia os dedos coçarem, quando uma nova
escultura começava a tomar forma em sua mente. Era a mesma mistura de excitação e pavor, excitação porque a nova ideia era a melhor de todas, e pavor porque ele
sabia que o produto final nunca se igualava à ideia sonhada.
Exceto que dessa vez a ansiedade não era um efeito colateral da alegria.
Esse retiro era a imagem do maior de todos os grandes sonhos. Ele já havia decidido que se nenhum caminho ou reconhecimento fossem construídos durante esse retiro,
ele jogaria suas ferramentas sobre o corrimão da ponte que separava o Solar Korban do resto do mundo. Claro, a altura lhe daria algum trabalho pra fazer isso, mas
ele poderia se arrastar de olhos vendados, se fosse o caso. Ele ouviria o metal tilintando e martelando pelas rochas abaixo e deixaria os calos e bolhas se curarem
enquanto buscava um emprego de verdade.
Criatividade tinha um preço. Você tinha que pagá-lo, mesmo tendo a chance de fracassar. Médicos e advogados passavam dez anos na universidade e pagavam dezenas de
milhares de dólares. Criminosos pagavam com o risco de perder a liberdade. Soldados enfrentavam um custo ainda maior. Artistas pagavam com outras coisas, a mais
barata delas era a dor.
Não que ele se importasse de sofrer pela sua arte. Apenas pensava que Mama não precisava. Ele olhou para baixo e viu que os punhos estavam cerrados como martelos
raivosos, o ódio quase o deixando embriagado.
Ele parou de andar e se inclinou contra a janela, olhando pelo vidro antigo em direção às terras do solar. Apesar de estar a apenas dois andares do chão, teve que
se segurar para controlar a tontura.
Anna estava junto à cerca, acariciando um cavalo. O pôr do sol dourava o horizonte e a luz carinhosa a deixava etérea e bonita, uma princesa de faz de conta sobre
a grama. Os campos verdes e ondulados, o céu brilhante, o lago faiscante aos pés das pastagens e a mulher aparentemente sem peso pareciam trancados dentro de um
sonho.
De acordo com seu pai, sonhos eram apenas uma maldita perda de luz do dia.
Mason foi ao banheiro. O encanamento era primitivo, apesar dos metais serem ornados como o resto da casa. Uma banheira de ferro fundido ficava em um canto, a pia
era de mármore, com uma torneira prateada e um espelho emoldurado.
Ele virou para a privada de cerâmica e se aliviou, notando o pequeno tanque sifonado colocado alto na parede. Os canos por detrás da parede pularam e gemeram quando
ele deu a descarga. Lavou as mãos na pia, relanceando o olhar no espelho. Apesar de a água ser fria, o espelho ficou embaçado.
Ele o limpou com a manga da camisa. Ainda assim, o vapor permaneceu e ele franziu o cenho ante sua imagem distorcida. O rosto no espelho parecia um pouco lento para
responder aos movimentos, o triste e cansado rosto de um prisioneiro.
Quando retornou ao quarto, suas ferramentas estavam espalhadas sobre a cama. Pareciam zombar dele, desafiando-o a usá-las e falhar. Ele não se lembrava de tê-las
tirado da sacola. Será que estava assim tão distraído e nervoso?
O retrato de Korban reluziu sobre ele, o sorriso imaginário desaparecido. Korban era apenas outro capataz, um crítico frio e exigente. Um observador, fora do processo
criativo, mas pronto para julgar algo que ninguém, além do criador, poderia compreender. Apenas outro idiota com uma opinião.
Mason aproximou-se das ferramentas, atraído, como sempre, pelo seu poder. Curvou-se para elas, tocou nas goivas, formões e martelos, reconfortando-se com suas arestas
e pesos. Elas estavam famintas, precisavam dos dedos de Mason para ajudá-las a moldar o mundo. E Mason, por sua vez, precisava delas num vício simbiótico que criava
tanto quanto destruía.
Ele virou as costas para o retrato de Korban e limpou as ferramentas com um pedaço de camurça até que brilhassem à luz das chamas.
CAPÍTULO 9
Outubro era um caçador e sua presa era o verde do verão. O vento se movia pelas colinas como um falcão relutante; asas bem abertas, garras prontas, olhos duros e
vigilantes. Por debaixo da pele fria e dourada, a terra abalava-se sob sua passagem. A manhã retinha sua respiração acinzentada. Cada folha e broto tenros estremeciam
em temor.
Jefferson Spence olhou para as chaves do velho manual Royal. "Dentes de Cavalo", as chaves eram chamadas. George Washington possuía dentes de cavalo, de acordo com
a lenda. Spence sabia que estava desperdiçando seu tempo, procurando qualquer distração que o detivesse de iniciar outra sentença. Olhou para a chama tremeluzente
da lâmpada sobre sua mesa.
Olhou para o rosto de Ephram Korban na parede. Nesse mesmo quarto, vinte anos antes, Spence tinha escrito Seasons of Sleep, uma obra prima sob todos os prismas,
especialmente o dele. Todos os seus outros romances deixaram de alcançar essa glória, mas talvez a mágica pudesse retornar.
Palavras eram magia e talvez o velho Korban deixasse escapar um segredo ou dois, ou lhe sussurrasse alguma sabedoria perdida, colhida através de todos os anos pendurado
naquela parede.
- O que - disse Spence ao retrato, a voz preenchendo o recinto - você quer me dizer? Bridget perguntou do banheiro, com o sotaque suave da Georgia - O que foi, querido?
- Ter ou não ter. - disse ele.
- O que é que você não tem? Pensei que tivesse trazido tudo com você.
- Esqueça, meu doce. É melhor guardar uma alusão a Hemingway para um público melhor. Spence havia encontrado Bridget durante uma oficina de verão de literatura e
escrita na universidade da Georgia. Ele tinha ministrado a oficina durante os dias e passado a maior parte das noites espairecendo nos bares de Athens. A maior parte
dos alunos de último ano haviam se juntado a ele nas primeiras noites, mas a paixão pela autoindulgência e sua natureza brusca levaram o grupo a se dissolver. Na
quinta-feira da primeira semana, apenas os mais fiéis ainda orbitavam à sua volta como satélites brilhantes na direção do buraco negro da massa incalculável de Spence.
Três dessas fiéis eram elegíveis, sob os olhos de Spence: uma deusa africana de pele cor de bronze e cachos oleosos; uma loira magra com um jeito maligno de lamber
os lábios e um apetite insaciável pelos trabalhos de Richard Brautigan; e a doce Bridget. Como sempre, alguns estudantes masculinos haviam se amontoado e escrito
dicas para ele em troca de drinques. Spence tinha pouca paciência com escritores. Seu melhor conselho era passar mais tempo sobre o teclado que em frente a espelhos.
Mas a mente das mulheres era mais simples e desprovida de pretensões literárias.
Ele havia escolhido Bridget precisamente porque ela era inocente e, assim, seria a escolha mais corrupta das três.
- Botando a cachola para funcionar? - perguntou Bridget.
Ele podia sentir sua nudez. Talvez fosse o calor primal da pele fresca ou a energia animal que ela irradiava. - Não me interrompa quando eu estiver trabalhando.
- Só pensei...
- Desde quando você passou a elaborar pensamentos? Deixe essa atividade àqueles que possuem um cérebro.
Ele ouviu a porta se fechando com um sólido clique, em vez da batida de uma mulher mais confiante. Ele havia escolhido sabiamente.
Spence olhou para o papel inserido na Royal. Seis anos. Seis anos e tudo que ele tinha para mostrar era esse parágrafo que tinha reescrito centenas de vezes. Era
o mesmo parágrafo com o qual ele havia persuadido Bridget na primeira vez, o parágrafo que não havia ousado mostrar nem para seu agente nem para seu editor.
Ele sabia que havia chegado o tempo de se livrar de tudo aquilo, procurar uma perspectiva nova, convocar as musas antigas. Se havia um lugar no qual ele poderia
recuperar sua magia, esse lugar era o Solar Korban.
Ele colocou os dedos sobre as teclas. O som do chuveiro veio do banheiro e Bridget começou a cantar com a pequena e bela voz. "Stand By Me", a velha música de Ben
King. Ele digitou "Fique do meu lado" como parágrafo de abertura e então apertou os dentes e arrancou a folha da máquina. Rasgou a folha em quatro pedaços e os deixou
cair no chão.
Spence reclinou-se na cadeira e olhou pela janela. As copas das árvores balançavam ao vento que ficara mais forte com a proximidade da noite. Ele imaginou os odores
do outono, de maçãs caídas, machucadas e doces sob as árvores, de folhas de bétulas sob os sapatos, de cascas de cerejeiras rachando e exsudando a seiva transparente,
de tortas de abóbora e fumaça nas chaminés. Se apenas conseguisse encontrar as palavras para descrever essas coisas.
Spence retornou a atenção ao retrato de Korban na parede. Pensou em ir até o banheiro e ver Bridget se ensaboando, mas ela talvez tentasse excitá-lo. Toda nova beldade
achava que seria a escolhida, de dúzias que ele havia tentado, para acabar com o que tinha chamado de "A maldição de Hemingway".
E a cada novo fracasso, Spence sentia raiva e humildade. Apesar de agradecer a raiva, odiava a humildade.
Praguejou entre os dentes e colocou outra folha de papel na máquina. O papel era pesado, uma mistura de vinte por cento de algodão. Papel nobre. Imponente e problemático.
As palavras viriam. Elas tinham que vir. Ele ordenava que elas viessem. Spence olhou para o rosto de Korban - O que devo escrever, senhor?
O retrato olhou de volta, os olhos negros.
Os dedos de Spence pressionaram as teclas, o movimento barulhento vibrando pela mesa e ecoando pelo chão de madeira, o sino de retorno tinindo a cada trinta segundos.
A casa assentava-se entre os seios das colinas, entre as ondulações, sobre rios, sobre toda a Terra, alcançando até onde somente deuses poderiam viver. E, na casa,
na alta janela solitária pela qual ele podia vislumbrar o mundo que seria seu, o homem sorriu.
Eles tinham vindo, tinham atendido a seu chamado, àqueles que lhe dariam vida. Eles cantariam suas canções, entalhariam seu nome em seus corações, o pintariam pelo
céu. Vieram com suas poesias, suas imagens, suas palavras febris, seus sonhos. Vieram trazendo oferendas e ele lhes abençoaria de igual modo -
Spence estava tão perdido no ato de escrever, perdido como há anos não se sentia, que não notou quando Bridget caminhou nua e fumegante para dentro do quarto. Ele
trabalhava furiosamente, a língua pressionada contra os dentes. O talento estava retornando, fluindo como sangue por veias esquecidas. Ele não sabia a quem agradecer,
se a Bridget, Korban ou alguma musa desconhecida.
Ele se preocuparia com isso depois. Nesse momento, as palavras carregavam Spence para longe de si mesmo.
CAPÍTULO 10
Anna olhou para o prato. Da costela saiam sucos e vapores e, em outras circunstâncias, seria tentadora o suficiente para desafiar seus princípios vegetarianos. O
brócolis macio e as batatas vermelhas haviam invocado várias espetadas exploratórias de seu garfo. A torta de maçã era tão macia que se esfarelara sobre o prato
de porcelana.
Enquanto observava a lava açucarada escorrendo pela torta afora, pensava se deveria se preocupar com a dieta. Olhou para Jefferson Spence do outro lado da mesa e
não reparou em nenhuma hesitação em seu garfo. Ela comeu algumas garfadas rápidas de legumes e então mexeu um pouco na comida pelo prato para dar a impressão de
que havia se alimentado bem. Pelo modo com a Srta. Mamie havia sido meticulosa com relação aos detalhes do jantar, Anna quase se sentiu culpada por não apreciar
a comida.
A sala de jantar era um aposento longo colado à sala de estar. A sala continha quatro mesas, uma longa no centro, ocupada pelas pessoas que secretamente nomeou como
"cultos superlativos". As outras, menores, eram relegadas aos cantos da sala. Aparentemente, a Srta. Mamie havia tentado combinar as pessoas de interesses similares
quando as distribuiu em seus assentos. Isso significou colocar todos os com menos de cinquenta nas mesas menores.
Anna estava sentada com Cris e a mulher negra que tinha visto carregando uma câmera. À sua esquerda, o sujeito com o qual havia conversado na sacada, o escultor
tacitumo. Apesar de seu rosto ser comum, havia algo em seus olhos verde-acastanhados que continuavam a lhe atrair o olhar. Um fogo secreto, enterrado. Talvez fosse
apenas o reflexo das duas velas queimando no centro da mesa. Ou apenas um vislumbre de sua solidão desesperadora.
Cris havia murmurado uma prece antes do jantar. A mulher negra também havia baixado a cabeça. Anna não sentiu-se compelida a compartilhar esse ritual e aproveitou
a oportunidade para estudar as pessoas à mesa. O escultor havia mantido a cabeça baixa, mas os olhos abertos. Então Anna viu o que ele olhava: uma mosca havia circulado
a borda de seu prato, experimentando o molho de carne.
Ela escondeu o sorriso quando ele tentou, disfarçadamente, assoprar a mosca para longe. Quando Cris disse "Amém", ele rapidamente pegou o guardanapo do colo e o
abanou com um floreio. A mosca dirigiu-se para as luminárias a óleo do teto. Anna observou seu voo e, quando voltou a atenção para o jantar, o escultor a observava.
- A criatura maldita estava pronta para roubar meu jantar. - disse ele - Um ser perverso.
- Talvez fosse Belzebu. - disse ela - Mestre das moscas.
- Estava mais para Belzemosca. Sabe? Típica do sul.
Anna riu pela primeira vez em semanas. Os companheiros de mesa os olharam com cenhos franzidos. O homem se apresentou como sendo Mason e disse ser um trabalhador
têxtil aposentado do sopé da montanha. - Também sou um pretendente a escultor. - disse ele - Mas não me confundam com Henry Moore ou qualquer coisa do estilo.
- Ele não interpretou James Bond? - perguntou Cris.
- Não, aquele era Roger Moore.
Ele declinou polidamente do vinho oferecido quando Lilith trouxe o carafe. Anna aceitou uma taça, apesar de não ter a intenção de tomar mais que uns pequenos goles.
O conservadorismo que surgiu com a sentença de morte a surpreendeu. Quando se tem apenas uma pequena quantidade de tempo disponível, em vez de ficar embotado, você
tenta ficar mais consciente.
Seus olhos voltaram-se novamente para Mason. Ele estava observando Lilith como se estivesse interessado em mais que simplesmente um segundo guardanapo. Ela ficou
tão irritada quanto surpresa quando um clarão de ciúmes lhe cruzou o coração. Ela desprezava mesquinhez e, acima de tudo, possessividade era o último sentimento
que uma pessoa moribunda deveria ter. Stephen a havia ensinado que nunca se pode entender outra pessoa, muito menos possuir uma, e a ideia de almas gêmeas tinha
utilidade apenas em romances. Ela tomou um gole de vinho e deixou o ardor alcoólico a distrair por uns momentos. Em seguida, apresentou-se à mulher negra.
Ela se chamava Zainab e tinha nascido na Arábia Saudita. Era americana-árabe, mas apenas indiretamente pelo dinheiro do petróleo; seu pai havia sido um engenheiro
na Aramco. Zainab tinha vindo aos Estados Unidos para estudar em Stanford, antes que alguém do Oriente Médio tivesse que pular por entre círculos de fogo para imigrar,
e agora queria ser uma fotógrafa "quando crescesse".
- Nos Estados Unidos, você é considerada crescida quando tem quatorze anos. - disse Anna - Pelo menos se você acredita em revistas de moda. Claro, quando chega aos
quarenta, espera-se que você tenha a aparência de alguém com vinte e cinco.
- Ei. - disse Cris, entornando sua terceira taça de vinho - Eu tenho trinta em um corpinho de vinte e cinco. Acho que isso quer dizer que estou indo na direção certa.
Anna cortou a torta um pouco mais e empurrou a sobremesa para longe. Cris inclinou-se para Mason, os cílios movendo-se intensamente.
- Então, o que os rapazes do sopé da montanha fazem para se divertir? - perguntou Cris.
- Nós vamos até os lixões atrás do café local e atiramos pedras nos ratos. Os ratos em Sawyer Creek comem melhor que muitas famílias.
- Aposto que os ratos vivem bem por aqui. - disse Cris.
- Chamamos isso de "se dar bem na vida" na minha terra. - disse Mason estremecendo de falso nojo. - Estava conversando com um dos trabalhadores hoje. Ele me falou
sobre instalar ratoeiras e enterrar a comida para manter os ratos longe. Livrar-se do lixo é um problema por aqui.
- É impressionante como nem pensamos em determinadas coisas numa sociedade civilizada. - disse Anna.
- Quem é civilizado? - disse Cris rindo - Parece que nos encaminhamos para histórias do tipo "caminhei seis quilômetros pela neve para ir à escola".
- Eram quatro quilômetros sobre as dunas de areia, sem camelos, no lugar onde cresci. - disse Zainab.
- Eu vi uma das arrumadeiras com uma cesta de roupas sujas. Não ela. - disse Anna indicando Lilith, que estava abrindo uma garrafa de vinho na mesa principal. -
Imagine o que deve ser lavar à mão todas essas toalhas de linho e cortinas, para não mencionar os lençóis.
- Parece que os lençóis realmente precisam ser bem lavados, se você der ouvidos aos rumores por aqui. - disse Cris.
- Você quer dizer as histórias de fantasmas? - perguntou Mason.
A respiração de Anna ficou presa na garganta. Se ela desse um jeito de entrar em contato com fantasmas por aqui, não queria um monte de necromantes iniciantes fazendo
sessões notumas e mexendo com tábuas Ouija. Ela acreditava que tais coisas eram jogos desrespeitosos que enviavam os fantasmas correndo de volta para suas tumbas.
E se ela tivesse uma missão aqui, um último trabalho antes de sua alma partir, preferia cuidar disso sozinha.
- Estava falando de sexo, mas as histórias de fantasmas são interessantes também. - disse Cris, suas consoantes começando a ficar arrastadas.
Mason disse - De acordo com William Roth-
- Ah, eu o encontrei. - Os olhos marrons de Zainab iluminaram-se quando o interrompeu. - Na verdade, cheguei a conversar com ele. Sempre admirei seu trabalho, mas
ele não é o que achei que uma pessoa famosa seria. Ele é muito pé no chão. E possui um sotaque maravilhoso.
- Ele é uma figura, com certeza.
- Acho que ele está dando uma de charmoso. - disse Zainab, olhando-o sentado na mesa principal onde parecia estar participando de três conversas ao mesmo tempo.
- O que você estava dizendo sobre fantasmas? - perguntou Cris, como se só agora tivesse se dado conta de que a conversa pulara de assunto. - Anna mexe com essas
coisas-
Anna cortou a conversa com um olhar forte e um movimento sutil de cabeça. Não queria que todos pensassem que ela não era boa da cabeça, pelo menos não logo de saída.
- Roth disse que o Solar Korban é mal assombrado e que tentará tirar algumas fotos disso. - disse Mason - E o trabalhador que encontrei hoje certamente parecia um
pouco estranho.
- Aconteceu alguma coisa estranha com vocês desde que chegaram aqui? - perguntou Zainab.
- Eu não sei sobre fantasmas. Acho que vou acreditar neles quando os vir. Mas os quadros de Korban por todos os cantos estão me dando nos nervos. - Ele balançou
a cabeça na direção da parede sobre a cabeceira da mesa principal.
- Em um lugar velho como esse, - disse Anna - você sempre encontra uma tábua que range e rajadas de ar vindas de lugar algum. E todas essas lamparinas e velas lançam
um monte de sombras tremeluzentes. Não é de se estranhar que essas histórias existam.
- Claro. - disse Mason - Se fossem fantasmas de verdade, vocês acham que as pessoas voltariam ano após ano?
- E como eles conseguiriam manter os empregados? - perguntou Anna.
- Bem, eu não me importaria de ver um fantasma ou dois. - disse Cris - Deixaria o lugar um pouco mais animadinho. Gosto de coisas que se movem durante a noite. -
Cris sorriu para Mason com um tom lascivo.
Anna observou sua reação. É isso. Bem no centro da base do rebatedor. Três strikes ou uma rebatida longa.
Mason deu de ombros, aparentemente inconsciente da cantada de Cris. - Não sei. Acreditarei quando os vir.
Uma pequena e barata sensação de vitória queimou no peito de Anna. Então se desprezou pelo sentimento. O que ela tinha que se importar se Cris se enroscasse com
esse garoto do interior?
Após Stephen, homens não mais existiam. Fantasmas eram muito mais sólidos e confiáveis dos que eles.
A conversa foi encerrada quando a Srta. Mamie levantou da cadeira na cabeceira da mesa principal. Ela retiniu uma taça com uma colher e o ruído dos pratos e diálogos
diminuiu para um sussurro. Lilith e as outras empregadas ficaram atentas na entrada da sala de estar, cada uma segurando um jarro de prata.
- Senhoras e senhores, adoráveis hóspedes. - disse a Srta. Mamie, a voz enchendo a sala. Ela olhou para os rostos alinhados na mesa principal, claramente apreciando
o momento. - Amigos.
Anna já estava entediada. Esperava que o discurso fosse curto. A Srta. Mamie tomou ar como se fosse uma soprano pronta para iniciar uma ária.
- Gostaria de dar-lhes as boas-vindas ao Solar Korban. - disse a Srta. Mamie - Como já é do conhecimento da maioria, essa casa foi construída pelo meu avô, Ephran
Korban. Após seu falecimento, que Deus acolha sua alma, foi herdada pelo meu pai. Transformamos o solar em um retiro para artistas a fim de cumprir com o último
desejo de Ephram. Agora é minha responsabilidade levar à frente esse legado, e o faço com grande orgulho e prazer.
- E lucro! - cortou um sotaque britânico e uma risada incerta correu pela sala.
A Srta. Mamie sorriu - Isso também, Sr. Roth. Mas é mais do que simplesmente um meio de custear a preservação da fazenda. É um trabalho de amor, uma continuidade
da visão de Ephram. Ele próprio era um admirador de artistas e espero que cada um de vocês encontre plenitude enquanto estiver por aqui e, fazendo isso, ajudarão
a manter o sonho de Ephram vivo.
Anna olhou de soslaio para Mason. Ele estava olhando para a Srta. Mamie com visível curiosidade.
Hmmm. Ele não é tão bonito quanto pensei de início. Seu nariz é um pouco longo de perfil. E os dedos são muito grossos. Aposto que é desajeitado com mulheres.
Satisfeita de ter encontrado falhas suficientes, bebericou o vinho. A Srta. Mamie estava em meio a alimentar os fogos artísticos coletivos.
- ... então eu proponho um brinde, meus amigos. - disse a anfitriã, remexendo em suas pérolas. Ela levantou sua taça para o alto, virou-se e apontou-a na direção
do retrato de Korban. Muitos na sala a acompanharam. Anna pegou sua taça, mas mudou de ideia. Mason viu e fez um esgar.
Idiota. Provavelmente um daqueles tipos "sou mais sagrado que você". Um artista com complexo de superioridade. ISSO é uma raridade.
Ela agarrou a taça. Quando a Srta. Mamie bebeu, Anna tomou um grande gole. Era um vinho local de muscadíneas, um pouco doce demais para entornar, mas ela deu outro
grande gole para completar.
- Vocês são bem-vindos para me acompanhar no estúdio para drinques e conversas. - A Srta. Mamie completou. - Há um local apropriado para fumar no estúdio. Novamente,
agradeço a todos o prazer de suas companhias. Boa noite.
A sala de jantar irrompeu em conversas e barulho de louças. Cris balançou levemente onde estava sentada e colocou a mão no ombro de Mason para se equilibrar, recostando-se
nele.
Anna fingiu não notar. Estava atrás de fantasmas, droga. Fantasmas não fazem você de idiota como os homens.
Ela fugiu sorrateiramente escada acima. As luminárias emitiam um brilho quente sobre as madeiras. Entrou no quarto escuro e ficou de pé próximo à janela, olhando
para a fazendo envolta em penumbra. O céu estava tornando-se verde, quase preto pela escuridão que se aproximava do leste, a lua nascendo fraca e azulada.
Ela pegou a lanterna da mesa de cabeceira. Pelo menos uma conveniência moderna havia sido permitida, provavelmente por demanda da seguradora do solar. Ela acendeu
a luz e passou o foco de luz pelas paredes, desejando ver um espírito desassossegado, mas revelando apenas teias de aranha no forro.
Suspirou. Caçadora de gnomos. Era assim que Stephen a chamava.
- Deixe-me livre para fazer a investigação séria. - dizia ele - Você pode brincar de caça aos gnomos.
Um fantasma vivia nessa casa. Ela sabia disso com tanta certeza quanto sabia que estava morrendo. Ela o caçaria até o inferno se fosse preciso, pois gostaria de
estar certa uma vez na vida. Pelo menos, queria que Stephen soubesse que estava certa. Mesmo que fosse o próprio fantasma que ela encontrasse.
Pegou um casaco e colocou a lanterna no bolso. Uma longa caminhada solitária pela noite lhe faria bem.
CAPÍTULO 11
Uma droga.
Uma droga e uma porcaria.
Uma droga, uma porcaria e um lixo.
William Roth correu pelos adjetivos ruins em sua mente enquanto estudava os livros alinhados nas prateleiras do estúdio. Todos os livros eram de capa dura, muitos
com capa de couro e títulos dourados. O pó era a prova de sua inutilidade.
Uma boa encenação de cultura, isso é o que eles são. Porque todos eles são uma porcaria e... um embuste. Sim, DEFINITIVAMENTE um embuste.
Précis da Revolução Francesa. O Diário de Sir Wendell Swanswight. Talmud. Juris Studis.
Eles dariam bons pesos de papel. A única coisa realmente interessante era que encaixavam-se perfeitamente nas prateleiras. Roth bebericou seu uísque com gelo enquanto
andava em direção à pequena multidão que havia se juntado ao redor de Jefferson Spence. A voz trêmula do grande homem era ouvida em uma ou outra opinião didática.
Spence seguia sem desafios entre os admiradores.
A garota Árabe estava do outro lado da sala, com a sempre presente câmera no pescoço. Ele praticou mentalmente seu nome, mas era difícil fingir um sotaque britânico
ao dizê-lo. Zái-i-náb. Ele teria que ensiná-la algumas coisas sobre os códigos de conduta fotográficos. Você não se move atabalhoadamente por aí como um elefante
numa loja de cristais. Você espreita, espera, seduz o alvo com infinita paciência e cuidado. Você acalenta, cuida e, então - clique, obrigado!
Mas ele poderia ter Zainab a qualquer momento. Ela era uma presa fácil de ser retirada da manada. Era uma gazela ferida e Roth, seu leão. Primeiro ele tinha caças
maiores a espreitar.
Espere um instante, sujeito. Essa foi uma metáfora bem ruim. Você sabe, do tempo que passou na África, que é a leoa que caça enquanto os leões ficam lambendo as
bolas. Mas os americanos burros não sabem disso. Rei das Selvas, e a ideia é o que importa.
Ele estava pensando em seu sotaque de Manchester. Ele havia caído de paraquedas em Liverpool no meio da década de noventa, durante o breve retorno dos Beatles, e
depois ido para Yorkshire com o surgimento do filme "The Full Monty". Modismos vieram e se foram e, da mesma forma, seu sotaque. Algumas vezes ele escorregava na
construção de algumas frases, mas os americanos não notavam seus erros. O único momento no qual ele tinha que tomar cuidado era quando estava ao lado de um inglês
de verdade.
E aqui as chances eram muito remotas - pensou ele, sorrindo para si. Ele havia chegado à parte externa do círculo de Spence agora.
- E eles dizem que existem elementos hermenêuticos em "Look Homeward, Angel" - disse Spence, a papada balançando para dar ênfase. - Eu digo a vocês que Gant não
é mais que um símbolo do coração humano. Uma metáfora inconsistente sustentada por um bilhão de adjetivos. Se você enviasse isso para um editor nos dias de hoje,
ele diria "maravilhoso, agora você consegue fazer isso ficar parecido com Grisham?"
Os olhos da audiência brilharam em reverência. Esse homem era um mestre, com um charme maligno. Seu ego era tão grande quanto sua barriga. Ninguém ousava se opor
a seus efêmeros pronunciamentos.
Spence bebeu metade de seu martíni antes de continuar. - O pior livro do século XX? Provavelmente não. O prêmio abacaxi deveria ir para "Paris é uma Festa" de Hemingway.
Os críticos muito falaram sobre a tensão subliminar que supostamente existe no romance. Asneiras. Não é nada mais que um Hemingway enlatado, o suprassumo de Ernest.
Ernest tomado muito a sério, poder-se-ia dizer.
Spence fez uma pausa para risadas. Elas vieram.
Roth sorriu. Spence era um grande enganador, assim como ele. E ele jogava o jogo das celebridades com o mesmo sucesso. Roth ficava abismado com a constante fome
das pessoas por ídolos. Tragam-me seus falsos deuses. As massas necessitavam de ópio, e em grande quantidade.
Roth forçou seu caminho até ficar à esquerda de Spence, se espremendo entre uma garota de cabelos azuis e um velho corcunda. A garota bonitinha com belos seios estava
ao lado de Spence. Ela não havia dito uma palavra durante toda a noite, mesmo durante o jantar. Roth sabia, pois ficara observando os dois em sua mesa privativa.
Roth calculou as chances de conseguir afofa-la um pouco. Ela seria uma bela pena em seu chapéu de conquistador.
Spence apregoava sobre as instruções morais codificadas no "O Grande Gatsby". As pessoas concordavam com a cabeça e, ocasionalmente, alguém ousava dar um murmúrio.
Roth achou que era justo se fazer perceber. - Eu acho, Sr. Spence, quem sabe se algum editor não deveria dizer "Fitzgerald, meu filho, livre-se desse palhaço do
Gatsby e você terá um bom livro"?
Todos os olhares se viraram para Roth e então de volta a Spence. O escritor olhou para Roth como se medindo o alcance de seu adversário e então sorriu - Puramente
apócrifo. Mas há potencial na ideia. Senhor William Roth, não é mesmo?
- Sim, é um prazer conhecê-lo, meu bom homem. - disse Roth, estendendo a mão. Uma beliscada de prazer lhe cruzou o peito enquanto o populacho murmurava "ohs" e "ahs"
nesse encontro de deuses.
Spence terminou o drinque e entregou a taça vazia para sua companheira de belas curvas. - Então, o que acha da minha análise sobre Gatsby?
- Reluzente. E concordo que o livro de Wolfe é absolutamente fútil. - Pelo canto do olho, Roth observou as curvas da menina enquanto ela levava a taça ao bar.
Spence deixou a audiência de lado e virou-se de frente para Roth. O fotógrafo empurrou Spence até um canto da sala. As pessoas entenderam a deixa e dispersaram-se
em pequenos grupos, alguns fumando, outros em busca de mais drinques.
- O que o traz ao Solar Korban, Sr. Roth?
Roth balançou seu uísque na mão. - Negócios, senhor. Sempre negócios comigo.
- Mas isso é uma infelicidade. É exatamente o que o mundo precisa, outra batelada de quatrocentos negativos desse lugar. Ou você foi contratado para algumas fotos
publicitárias?
- Estou trabalhando de forma autônoma.
- Hmm. Estou trabalhando, também, acredite se quiser.
Roth sabia que Spence não tinha escrito um romance em anos. Ele havia trilhado seu caminho vociferando sua opinião sobre peças e ensaios e escrito uma introdução
mordaz à Coletânea Contemporânea de Poesias Sulistas, que provavelmente levou às lágrimas alguns dos poetas que contribuíram para a antologia. Os críticos desistiram
dele. Ele era como uma baleia encalhada - divertido de cutucar enquanto algum sangue pudesse ser derramado, mas algo a ser evitado depois de se tornar um cadáver
inchado e fedorento.
- Acho que esse lugar seria bastante inspirador para um homem do seu gênio. - disse Roth, mal disfarçando o sarcasmo.
Spence não mordeu a isca. Ele provavelmente lera muitos dos comunicados de imprensa de seu editor, nos quais se prometia uma nova obra prima de sua parte. - Esse
é o trabalho, Sr. Roth. Essa é a obra que merecerá o Prêmio Nobel de literatura. Já é tempo de um americano trazer para casa um troféu desses. Nada pessoal, entenda
bem.
Roth virou uma palma para cima em submissão. O sotaque britânico havia enganado mesmo Spence, um homem que havia treinado para observar o comportamento humano. A
namorada de Spence trouxe mais um drinque, o colocou obedientemente em suas mãos e voltou a sumir em sua sombra.
Roth sorriu para ela e então começou a laboriosa tarefa de conquistar a confiança de Spence.
CAPÍTULO 12
Uma caçadora de duendes idiota.
Anna deixou o facho de luz amarelada da lanterna guiá-la como se não tivesse vontade própria. Ela se viu andando na direção de uma trilha na floresta, para dentro
dos caminhos estreitos e gastos por debaixo dos louros. As folhas enceradas esfregavam-se no rosto e nas mãos dela. Grilos e gafanhotos lançavam seus coros dentro
da obscuridade da floresta negra.
Você segue e segue e nunca alcança. Você estende a mão e eles dançam para longe. Você corre e eles correm mais rápido. Você olha para dentro do escuro e não vê nada
além de escuridão.
Fantasmas jogavam de acordo com as próprias regras. Anna tinha a intuição de que eles não gostavam de descortinar segredos e não davam explicações. Os maiores segredos
da vida deviam ser insignificantes para aqueles que não mais viviam. Sem dúvida, todos os espíritos recebiam as instruções necessárias como um presente de boas-vindas
após a morte. Mas, talvez, os mortos precisassem de diversão. A eternidade certamente fica entediante depois de um tempo.
Anna não estava preocupada em se perder na floresta, mesmo que as luzes do Solar Korban tivessem desaparecido de vista. Depois de deixar a casa, ela parou no celeiro
e achou quatro cavalos em suas baias. Massageou seus pescoços e acarinhou os pelos duros sobre os focinhos.
Sentia-se confortada com o cheiro do animal. O aroma de capim e esterco trazia lembranças de uma de suas famílias adotivas, que mantinha uma fazenda na Virgínia
do Oeste. Anna havia se tornado mulher naquele verão. Sua primeira experiência sexual foi com um menino bonito, mas pouco inteligente, que vinha coletar os ovos
dia sim, dia não. Ela também passara horas no cemitério local, sentada entre as lápides ilegíveis e decadentes, pensando sobre as pessoas debaixo da terra e a parte
deles que poderia ter sobrevivido ao aperto de morte da terra e do apodrecimento.
Ela ainda pensava sobre isso, a curiosidade a enviando para a antropologia na Universidade de Duke e parapsicologia no Centro de Pesquisas Rhino e, agora, para dentro
da floresta. Estradas que nunca acabavam, uma busca que nunca encontrou nada. A lua e a luz das estrelas formavam vagamente o relevo da paisagem. Ela seguiu a crista
da elevação até o ponto que o terreno descia rapidamente. As pedras brilhavam como dentes podres na luz pálida. Além do campo de pedras encontrava-se a garganta
do vale escuro, pintado de prata pela geada.
As costelas e reentrâncias das montanhas de Blue Ridge rolavam em direção ao horizonte, o distante piscar da cidade de Black Rock encravada entre eles como pequenas
gemas azuis e laranja. No céu, uma pequena latinha voadora de humanidade, alguns passageiros provavelmente com receio de um acidente, alguns comendo nozes envelhecidas
e outros ansiando um cigarro. A maioria com pensamentos em parentes, esposas e amantes recentemente visitados ou esperando-os nos terminais do aeroporto à frente.
Todos com lugares para ir, coisas para procurar. Pessoas a quem pertencer. Esperanças, sonhos, futuros. Ela pensou naquele diálogo de Shirley Jackson "As jornadas
se encerram nos encontros dos amantes".
É, claro. Jornadas acabam em morte e amantes nunca se encontram.
Ela deixou as luzes que começaram a ficar borradas em seus olhos para trás e deixou de lado a autopiedade. Tinha a floresta para explorar. E sentiu uma pontada nas
entranhas, um instinto que ela aprendera a confiar, mesmo que Stephen não pudesse provar que era real. Existiam mortos por entre aquelas árvores e colinas.
Ela algumas vezes se perguntava se o câncer era uma progressão daquele instinto. Como se a morte fosse seu estado natural e a vida apenas uma interrupção a ser brevemente
suportada. Era como se, por direito, ela pertencesse aos mortos e sua percepção deles ficava cada vez mais forte quanto mais próxima de ser um deles ela ficava.
Era um pensamento mórbido. Ainda assim, ela não podia ignorar o simbolismo jungiano no ato de dar as costas àquelas tênues luzes da civilização para entrar na floresta
sozinha.
Na busca de si própria.
E se FOSSE possível encontrar outro espírito, tocá-lo, compartilhar a consciência das almas, criar alguma que tivesse uma vida além dos vivos e dos mortos? Ou tal
tipo de desejo é apenas mais uma grotesca forma de vaidade?
Ela observou o cone de luz da lanterna conforme ele balançou à sua frente na trilha. Quanto mais velha ficava, e mais próxima da morte e intensa na busca de si mesma,
mais solitária ela ficava. E se havia algo que a assustava, que poderia assustar alguém que já havia visto fantasmas, era o pensamento de que qualquer alma, consciência
ou força de vida que continuasse após a morte o faria só, isolada e perdida para sempre.
Anna se deu conta de que estava a cerca de um quilômetro e meio do solar agora e estava começando a ficar cansada. Essa era uma das coisas que ela mais odiava em
sua doença. Sua força era lentamente drenada, escorrendo dessa vida para a outra.
Ela parou e brincou com a lanterna ao longo da elevação à sua frente. Ruídos noturno s rastejavam por entre as copas das árvores, a agitação dos animais noturno
s e o incansável vento da montanha. Uma fragrância de pinheiro e a umidade fria do anoitecer a revigoraram. A trilha havia cortado várias outras maiores que ela
havia cruzado antes com outra estrada para carroças. Seguiu seu instinto, aquele que a dirigira pela noite como a lua comanda as marés.
A trilha terminava sob um bosque de bálsamos e então se abria para um campo de grama densa. Uma cabana dominava a clareira, frágil e oscilante sobre os alicerces
de pedras. Uma chaminé aos pedaços, cinza à luz fraca das estrelas, penetrava no telhado de zinco inclinado. Os vidros das janelas eram como olhos escuros procurando
companhia.
Era para encontrar isso que Anna tinha vindo. Ela caminhou pela pastagem, as barras das calças molhadas pelo orvalho congelado na grama. Uma grande pedra redonda
estava ao pé da entrada, pálida como a barriga de um peixe. Ela pisou na pedra e olhou para dentro da cabana escura.
A cabana a desejava.
Talvez não a casa, mas o que quer que tivesse vivido e morrido ali. Alguma coisa havia aprisionado uma alma humana àquele lugar, um evento terrível o suficiente
para deixar uma marca psíquica, assim como a luz queimava um filme fotográfico.
O ar vibrava com uma música inaudível. Os pequenos pelos na nuca de Anna se ouriçaram como pequenas agulhas magnéticas. A despeito do frio da noite, suas axilas
ficaram molhadas de suor. Um medo preternatural correu por suas veias, ameaçando sobrepujar a curiosidade.
Algo flutuou além da porta, tênue e frágil como que ainda não familiarizado com a própria substância.
Ou talvez fosse apenas o vento soprando por alguma fenda da parede de tábuas sobrepostas. Anna apontou a lanterna para um buraco na madeira, logo acima da maçaneta.
Um tremeluzir de uma sombra branca preencheu o buraco e depois se dissolveu.
Ela colocou o pé sobre a varanda. Uma forma, um rosto se imprimiu nos grãos da madeira. Uma pequena voz sussurrou com o vento, suave e oca, como uma flauta distante:
- Estive esperando.
Anna conteve o impulso de fugir. Apesar de acreditar em fantasmas, a estranheza súbita de encontrar um sempre a atingia como um balde de água fria. E esse... esse
havia falado.
Anna afastou-se, a lanterna fixa na porta.
- Não se vá. - disse a voz fria e mouca. Os músculos dela congelaram-se. Ela lutou contra o próprio corpo enquanto o coração trovejava nos ouvidos. A voz voltou,
mais baixa, implorando: - Por favor.
Era a voz de uma criança. O medo dela misturou-se com simpatia, ambos fundindo-se na necessidade de compreender. Os fantasmas ficavam jovens para sempre?
Anna voltou a subir na pedra e depois na varanda. As tábuas rangeram sob seus pés. Algo adejou sob o beiral e então uniu-se ao céu noturno . Um morcego.
- O que você quer? - disse Anna, tentando manter a voz firme. A lanterna iluminou a porta, mostrando apenas madeira e metal enferrujado.
- Você é ela?
- Ela?
- Ajude-me! - veio novamente a voz implorante, enfraquecendo, quase perdida. - Ajude-nos! Anna levantou a tramela de ferro e abriu a porta, jogando a luz da lanterna
no interior da casa.
Ela vislumbrou uma pequena figura, um rosto jovem enquadrado por longos cachos, algumas dobras de tecido fluindo por baixo dos olhos suplicantes. A visão lentamente
se desfazendo.
- Fique! - disse Anna, tanto um pedido quanto uma ordem desesperada.
Mas a forma desvaneceu, os lábios fantasmagóricos entreabertos como se quisesse falar, sobrando por fim somente os olhos, flutuando, flutuando, tornando-se parte
de uma sombra menor e, então, nada. Os olhos haviam sido impressos na memória de Anna. Nunca os esqueceria. Os olhos pareciam - assombrados.
- Olá? - chamou Anna. O chamado morreu no vazio da cabana. Ela moveu a luz pelo cômodo. Algumas prateleiras ficavam em um canto, uma viga grosseira por cima da lareira.
Uma longa mesa marcava o que teria sido a cozinha. Havia uma fila de figuras humanas toscamente entalhadas sobre a mesa, os membros nodosos em ângulos grotescos.
Anna tocou em uma das figuras. Tinha cerca de trinta centímetros de altura, sem pintura ou verniz, a madeira escura e seca pelo tempo. O corpo havia sido feito de
uma raiz, os braços e pernas de vinhas torcidas. A cabeça era uma fruta enrugada, marrom como maçã seca, os olhos e a boca em um sorriso deformado.
Pareciam algum tipo de artesanato, algo que um antigo morador escocês teria entalhado durante os longos meses de inverno para distrair seus filhos. Mas as figuras
estavam arranjadas sobre a mesa como se fossem relíquias religiosas. Uma estava envolta em casca de bétula para simular um vestido. Outra possuía uma guirlanda de
flores.
Anna apontou a luz para a estátua encurvada mais próxima. O orifício da boca possuía uma substância cinza parecida com papel. Arranhou-a com a ponta da unha e a
substância caiu sobre a mesa. Anna imediatamente identificou o objeto pelas marcas mosqueadas e textura geométrica.
Pele de cobra.
Anna caminhou para a parte posterior da mesa, olhando na mesma direção que as figuras. Uma velha lareira estava ao outro lado da sala, as pedras escurecidas pela
fumaça de dez mil fogos. O monte de cinzas não deixava evidência de quando a lareira havia sido usada pela última vez. Os cantos da sala estavam grossos com teias
de aranha, que ondulavam diafanamente ao sabor da brisa que entrava por entre as frestas dos troncos.
A metade do teto estava coberta com um sótão. Anna subiu a escada frágil, mas viu apenas poeira e algumas folhas, marcando o ninho de um roedor.
Estava verificando a cozinha primitiva quando ouviu um ruído do lado de fora. O luar na janela foi rapidamente interrompido. Será que o fantasma havia retornado?
Anna correu para fora, segurando a lanterna na altura do peito. Uma figura humana curvada cruzou o campo, na direção da floresta atrás da cabana. Um xale puído ondulava
às suas costas, sob o vento noturno que havia aumentado.
- Espere! - Anna deu um passo e tropeçou em uma madeira solta, caindo da varanda sobre o pulso, no chão de terra batida. Um choque elétrico de dor lhe correu braço
acima. No tempo que levou para ficar de pé e pegar a lanterna, a pessoa ou coisa havia desaparecido dentro das árvores negras.
Anna a seguiu. Quando atingiu a borda da floresta, esperou e aguçou os ouvidos. A noite continha centenas de sons: o vento gemendo pelos ramos, galhos rangendo,
folhas roçando contra cascas, animais perturbados em seus sonos, aves escondidas chilreando. Qualquer tentativa de ouvir passadas era inútil.
Deve ter sido humano. Anna não sentia nenhuma energia etérea para seguir. Ela se perguntou se a pessoa com o xale havia visto o fantasma. Ou será que era a pessoa
que arranjava as figuras em cima da mesa naquela paródia de ritual? Será que ela realmente havia visto um fantasma ou será que foi vítima de um truque elaborado?
Será que estava assim tão desesperada para achar uma prova de vida após a morte que sua mente estava lhe pregando peças?
Esfregou o pulso por alguns instantes. Ninguém, nem mesmo Anna, sabia de seu destino naquela noite. O fantasma havia sido real, estava certa disso. Os bonecos provavelmente
eram o trabalho de algum hóspede do solar e foram deixados para trás como um presente ou tributo. Ou talvez apenas uma tolice de algum dos trabalhadores locais.
Ela se virou e seguiu o facho de luz da lanterna, voltando ao Solar Korban, incomodada com a estranha sensação de estar voltando para casa.
Deu-se conta de por que havia vindo ao Solar Korban. Foi um equívoco achar que havia sido sua escolha, que precisava fazer contato com as próprias razões. De todos
os lugares supostamente assombrados nos quais poderia passar seus últimos dias, ela não havia simplesmente escolhido esse no meio das montanhas. Não havia sonhado
várias vezes com esse lugar pelo fato de ter guardado no inconsciente a leitura de um velho jornal paranormal.
Não, ela havia sido chamada.
O estalido de um graveto quebrando lhe chamou à realidade. Algo grande havia emergido das sombras da floresta. Anna levantou a lanterna, pronta para usar como um
bastão, se necessário. O facho de luz cruzou uma figura negra e lúgubre.
- Você! - disse ela.
Mason levantou as mãos como se quisesse se desviar de sua ira. - Eu a vi!
- O fantasma?
- Que fantasma? Vi uma velha espiando você e, então, ela correu pela floresta. Tentei segui-la, mas ela conhece essas velhas trilhas muito melhor que eu.
- Como ousa me seguir? Que tipo de pessoa é você, algum tipo de voyeur pervertido?
- Não, eu apenas... Bem, a festa da Srta. Mamie estava me deixando a ponto de morrer de tédio e não pude deixar de ficar curioso, depois de toda aquela conversa
sobre fantasmas. Quando a vi deixando o solar -
- Seu idiota arrogante! - Ela o empurrou para o lado e seguiu bufando pela trilha, não se importando de deixá-lo na escuridão. Ela apenas desejava que os fantasmas
fossem realmente malignos, assim um deles poderia arrancar-lhe a cabeça idiota. Com um pouco de sorte, ele se perderia nas trilhas e teria que passar a noite na
floresta, acordando enregelado, machucado e infeliz. Ela come<;:ou a correr e disse para si mesma que era o vento, nao a raiva ou a vergonha, que enchia seus olhos
de lagrimas.
CAPÍTULO 13
A Srta. Mamie retirou as pérolas e as colocou na cômoda, junto com as fitas de veludo púrpura e garrafas de água de rosas. Olhou-se no espelho, trazendo a lamparina
mais para perto de forma a poder verificar a pele. Qualquer um que olhasse para suas pequenas rugas à volta da boca e fios prateados nas têmporas pensaria que ela
estava próxima dos cinquenta anos. Nada mal, considerando que faria cento e vinte.
Ephram havia prometido mantê-la jovem, e ele sempre cumpria suas promessas. Era um perfeito cavalheiro. Isso fora o que primeiro a atraíra nele, o porquê de ela
ter se apaixonado. Sua possessão era completa e perfeita.
Ela abriu o medalhão do colar. Em seu interior, estava o rosto jovem de Ephram em sépia, os traços definidos, o leve ângulo do nariz, barba e costeletas espessas
sobre o colarinho rígido. Ah, aqueles olhos negros, aqueles olhos frios e escaldantes que haviam tomado seu coração e aprisionado sua alma, que haviam incendiado
seu desejo. Ele sempre teve poder, mesmo quando era mortal.
Mas agora, agora...
- Agora estamos prontos. - disse ele do espelho - Como prometi.
Seu coração acelerou e as palmas das mãos ficaram úmidas. Colocou a mão sobre a superfície suave do espelho. O rosto de Ephram brilhou no reflexo da lareira. Uma
fiada de maçãs descascadas estava pendurada em um barbante, secando ao fogo, esculpidas na forma de cabeças, com orelhas e narizes protuberantes. Os olhos e bocas
brilhavam como cicatrizes. As faces tomariam forma enquanto secavam, adquirindo suas feições únicas.
- Você gosta delas? - perguntou ela.
- Você escolheu bem. - A voz de Ephram era baixa e sibilante.
- Elas o alimentarão, com o tempo. - A Srta. Mamie olhou para os olhos sedutores e sentiu um jorro de calor. Seu amor nunca havia falhado.
Os olhos de seu marido morto brilharam numa tempestade de vermelho e dourado. - Mesmo agora, seus sonhos me dão força. E a lua azul está vindo novamente.
- Assim como na noite em que você morreu.
- Por favor, meu amor. Você sabe que não aprecio essa palavra. Ela soa tão... permanente.
- E Sylvia? - disse a Srta. Mamie, baixando os olhos e antecipando sua raiva.
- O que tem ela? Ela é apenas uma velha mulher-bruxa com um saco de penas, ervas e ossos velhos. Seu poder não é nada mais que o patético poder da sugestão. Mas
o meu! - sua voz aumentou, trovejante, até que ela receou que os hóspedes pudessem ouvi-lo. - O meu é o poder que dá forma aos dois lados.
- Tantos anos. - A Srta. Mamie correu as mãos pelas bordas do gorro de dormir. - Não sei se posso aguentar muito mais.
- Paciência, meu amor. Esses são especiais. Esses são os verdadeiros construtores. Eles me esculpem, me escrevem, me pintam para a vida. Suas mãos me dão forma,
suas mentes me dão substância. Eles me constroem do mesmo jeito que você os constrói. E em breve, Margaret... -
Ephram estendeu a mão por entre as névoas que circulavam dentro do espelho e encostou a palma da mão no vidro. A Srta. Mamie colocou os dedos no espelho, ansiando
a cruel eletricidade da excitação de seu toque. Seu marido morto sorriu.
- Em breve, todos aqueles que sacrificamos encontrarão seus lares, suas verdadeiras vidas eternas, em mim. Terei o que qualquer mestre e senhor merecem.
- O que qualquer mestre e senhor merecem. - repetiu ela num sussurro. Então as névoas se desfizeram. Ephram colapsou sob a forma de uma fumaça etérea e o espelho
ficou novamente claro.
Ela estudou o próprio rosto. Era uma mulher de sorte. Suas esperanças e sonhos estavam prestes a renascer. Logo Ephram poderia escapar do espelho, das paredes, da
casa. Logo ela poderia novamente tocar em sua carne.
Ela foi para a cama, solitária em sua luxúria. Paciência, ela disse a si mesma. Ephram havia prometido, e Ephram sempre cumpria suas promessas.
CAPÍTULO 14
- Priciso de uma coisa mais forti.
- Ocê não divia aparecer aqui durante o dia, Ransom. E se ôce for visto?
- Tô cum medo. Num vou aparecê aqui no escuro. Já é ruim se ocê pode vê, e tá ficando mais ruim.
- Ocê foi seguido?
- Não pelos hóspede. A Srta. Mamie falô que não é permitido í pras banda de Beechy Gap. Mas os ôtro - Ransom baixou o tom de voz e baixou a cabeça como se temesse
que as paredes nodosas da cabana estivessem ouvindo. - ôce sabe, eles - eles tão agora pra todo lugar.
Sylvia Hartley se curvou e cuspiu na lareira. O líquido chiou e estalou, evaporando por fim contra a lenha em chamas. Ela correu as costas da mão coriácea contra
a boca murcha e olhou para Ransom, vislumbrando as décadas tão negras quanto as pedras debaixo da grade da lareira.
- Deus sabe que tá ficando mais ruim. - disse ela finalmente concordando. Ela puxou o xale desgastado à volta do pescoço.
- O último feitiço funcionô bem por um tempo. Eles ficaram tudo assustado. Mas agora, eles ficam só rindo de mim quando faço meus trabáio.
Sylvia pensou que Ransom deveria ter mais fé. Esse era o segredo: fé. Todos os encantamentos do mundo não valiam absolutamente nada se você não acreditasse. Ransom
era cristão por nascimento e não havia problemas com isso. Mas quando você descia até as raízes das coisas, algumas delas eram bem mais antigas e profundas que religião.
Era uma pena o que acontecera a George Lawson. George era alguém de fora, não nascera nas montanhas. Ele não sabia com o que estava lidando. Com os encantamentos
corretos, talvez tivesse se desviado dos pequenos jogos de Ephram.
Mas talvez não. Ransom estava certo. Eles estavam ficando mais fortes. Ephram estava ficando mais forte. E agora George estava do lado deles também, junto com todas
as outras pessoas que Ephram havia pego nos últimos cem anos.
- Ocê se importa de virá as coisa ali no fogão? - disse ela.
Ransom cruzou a cabana na direção do pequeno fogão azul. Virou as tortas na frigideira, o cheiro de milho sapecado enchendo a cozinha.
- Eles não fica mais invisívi. - disse ele, de costas para ela. - Custumava sê só o Korban e ocê via ele só na Casa Grande, aqui e acolá. Mas os ôtro, eles tem andado.
- A lua azul é a de otubro. Hora de fazê magia. Magia certa ô magia errada.
- Quê cê qué fazê? - a voz de Ransom tremeu.
Ela não o culpava por estar com medo. Ela também estava, mas não ousava transparecê-lo. - Primero vô come um pouco. Dispois acho que vô vê o que o gato trôxe pra
mim.
Ransom lhe estendeu um prato feito de lata martelada. Ele havia colocado uma fatia de porco frito junto com a torta de frigideira. Banha liquefeita escorria no fundo
do prato e pingava por um pequeno buraco do metal. Sylvia colocou o prato no braço da cadeira de balanço de forma que a banha não manchasse sua roupa.
- São as pessoa, num é? - perguntou Ransom, o fogo tornando seus olhos brilhantes. - As pessoa que tão na Casa Grande.
Sylvia nada disse, mordendo o porco com os pedaços de dentes que lhe restavam. Havia um pedaço generoso de carne no meio da gordura. Ransom sempre fazia com que
ela ganhasse um dos melhores pedaços quando eles matavam e defumavam um porco no solar. Ela se deu conta de que comia quase tão bem quanto os hóspedes.
Ela engoliu a carne e tomou um copo de chá de sassafrás. Por fim, falou, olhando para dentro do fogo, para as chamas amarelas, laranjas e azuis. - São as pessoa.
E a moça. Aquela cum a Visão.
Ainda que sua voz fosse suave, as palavras eram densas como um trovão no ar úmido da cabana. Toda a floresta havia se aquietado, como se as árvores estivessem se
inclinando para ouvir a conversa. Ela tinha certeza de que um pássaro estivera cantando uma alegre canção de nascer do sol alguns minutos atrás.
- Primero ele pegô os morto, agora qué os vivo também. - disse Ransom -Tem que existi um trabáio que ocê possa fazê e usá contra ele.
- Ocê sisquece. Nóis tem que jogá pelas regra. Mas Ephram Korban, ele não joga por regra ninhuma. Nem dos ômi, nem di Deus, nem por ninhuma das minha magia com raiz,
pena de gavião e cerveja.
Ransom tocou no bolso de seu avental.
- Mas continua no caminho certo da crença, filho. - disse ela - As cinza de uma oração são mais poderosa que as chama do inferno.
- Mió eu voltá. Tenho que cuidá dos bicho. E a Srta. Mamie tem ficado de olho ni mim.
- Então vai.
- Ocê vai ficá bem?
- Fiquei bem esse tempo todo, num foi? Mas é bom a gente ficá de ôio um no ôtro.
Ransom concordou com a cabeça. Seu rosto estava nas sombras, além do alcance da luz do fogo, e ela não foi capaz de ver sua expressão. O sol inundou o cômodo quando
ele abriu a porta e saiu. Ela franziu o rosto à invasão da luz e esperou o som da tramela de madeira descendo. Então voltou o olhar para o fogo e garfou outro naco
de bolo de milho.
O fogo...
Sylvia olhou para as mãos enrugadas.
Se pelo menos ela tivesse sentido dor. Os ferimentos sem dor eram os que saravam mais lentamente.
O prato de lata estava vazio em seu colo. Ela estremeceu e cuspiu nas cinzas. Ela não estava certa de qual dor era maior, o carinho de Ephram ou ele a ter deixado.
Ela sabia que Ephram voltaria. Mas até aí, ele nunca havia realmente partido. Ele não havia morrido quando ela o empurrou da balaustrada do telhado. Havia apenas
se fundido com a casa. Porque ela o havia matado em uma lua azul de outubro.
Como ele havia prometido, madeiras e pedras tinham se transformado em sua carne, a fumaça em sua respiração, os espelhos em seus olhos e as sombras no sangue inquieto
de seu espírito. E seu coração queimava nas chamas da eternidade.
Ela estremeceu novamente no calor do dia e pegou os fósforos.
CAPÍTULO 15
A casa projetava uma sobra sobre o gramado no nascer do sol. Mason estava cansado, o rosto marcado pelos devaneios noturnos. Havia dormido mal, a mente invadida
por imagens febris de Anna, sua mãe, Ephram Korban, Lilith e uma dúzia de outros rostos perdidos em meio a brumas. Ele estremeceu enquanto caminhava por detrás do
solar, seguindo uma trilha desgastada por entre os anexos. Subiu por degraus feitos de dormentes de trilhos de trem até um terraço junto à floresta.
A porta no anexo menor estava aberta e um senhor com macacão emergiu das sombras. Mason acenou, enquanto o homem esfregava as mãos, a respiração condensando no ar
frio, como uma fumaça branca.
- Brrr! - disse ele, cerrando os dentes. - Tão frio aqui quanto o coração de uma mulher.
- O quê? - perguntou Mason. Ele havia suposto que o anexo era um galpão de armazenagem ou algo no estilo. O galpão, como o solar, era construído com toras rejuntadas
com cimento amarelado. Um odor de umidade e cedro saía de dentro dele.
- Refrigeração. - disse o homem. Quando abriu a boca para se lamentar, Mason viu que ele tinha dentes restantes apenas para jogar um rápido jogo de moinho. Seu macacão
ameaçava engoli-lo, as costas curvadas pelos anos de trabalho. O homem jogou a cabeça na direção da porta aberta e entrou no galpão, dizendo - Vem, dá uma olhada.
Mason o seguiu. O ar frio flutuou sobre seu rosto. Um monte de feno cobria o centro do chão de terra batida. O velho inclinou-se e removeu um pouco do feno, expondo
faixas prateadas brilhantes.
- Gelo. - disse o homem - Enterramo ele dentro da serragem e ele dura o verão todo. Ocê não achô que ele durasse tanto, né?
- Fiquei imaginando como vocês mantinham a comida fria sem eletricidade. - disse Mason - E a segurança sanitária e os inspetores de saúde?
- Tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban. Duas coisa diferente.
O velho apontou um caminho que subia a oeste, coberto por álamos. Trilhas de carroça cruzavam o campo, curvando-se sobre a colina como duas cobras vermelhas. - Tem
uma lagoinha lá pra cima.
- disse ele - Uma fonte nasce no meio das pedra. A cerca impede os bicho de bebê a água, modi que é limpa. Quando o inverno tá frio de lascar a gente sobe lá e corta
uns bloco grande de gelo.
- Parece um trabalho duro. Se eu entendi bem, maquinário pesado não é permitido por aqui.
- Ah, nóis tem máquina. Uma carroça é uma máquina. Um cavalo também. E craro que tem nóis. Mason voltou para o sol e o homem fechou a porta atrás de si. Sua mão
nodosa remexeu no bolso da frente do macacão como se estivesse procurando um cigarro. Ele puxou algo parecido com um retalho de pano cheio de nós, com uma pena presa
na ponta. Ele balançou o pano em um formato de cruz na frente da porta da geladeira. O movimento denotava a fluidez que advém da prática, parecendo natural, a despeito
da estranheza.
Mason esperava que o homem falasse algo sobre esse ritual, mas o pano com nós foi rapidamente guardado. - O que há no outro galpão? - Mason perguntou depois de um
tempo.
- Ali é a despensa. Eles põe as coisa ali que não precisa de frio, abóbora, pepino e mio. Uma fonti de água passa por ali, é encanada e levada pro solar.
Mason olhou para onde o homem apontava e viu um filete de água escorrendo por uma parede de terra preta. Sarças emaranhavam-se nas margens do arroio, as vinhas avermelhadas
curvavam-se à morte outonal. - Vocês coletam as frutas também?
- Sim sinhô, e as maçã também. Tem muita maçã por aqui. Ocê vai comê alguma coisa feita de maçã todas as veiz. Torta, panqueca, maçã frita, assada, com canela, de
todo jeito. Nóis tem uma horta também, e... -
- Ransom!
Ambos se viraram na direção da voz aguda. A Srta. Mamie estava na sacada, inclinando-se sobre o parapeito.
- Sim, Srta. Mamie. - respondeu. Qualquer sinal de animação parecia ter sido drenado dele e Mason teve a nítida impressão de que o homem estava prestes a desaparecer
dentro do macacão.
- Ransom, você sabe que não deve importunar os hóspedes. - disse a Srta. Mamie em um tom alto e artificialmente alegre.
- Eu tava só- Ransom tentou brevemente, mas depois pareceu pensar melhor. Ele estudou cuidadosamente as pontas de suas botas gastas. O sol brilhou sobre os fios
do cabelo prateado penteados de modo a cobrir a cabeça calva. - Sim, Srta. Mamie.
A anfitriã permaneceu triunfante no parapeito da sacada e sua atenção dirigiu-se para Mason. - O senhor dormiu bem, Sr. Jackson?
- Sim, senhora. - mentiu ele, olhando rapidamente para Ransom. O homem parecia ter levado uma surra com vara de marmelo. - Hum... obrigado por me hospedar na suíte
mestre. É muito confortável.
- Excelente. - Ela juntou as mãos, as pérolas rolando sobre o peito. - Ephram Korban teria ficado encantado. Você conhece nosso lema: ‘o isolamento grandioso do
Solar Korban incendiará a imaginação e estimulará o espírito criativo’.
- Li o panfleto, - disse Mason - e já estou com algumas ideias, mas talvez precise de alguma ajuda para começar. Seria possível o Ransom aqui me ajudar a coletar
um pouco de boa madeira para esculpir?
A Srta. Mamie franziu o cenho e suas sobrancelhas ficaram retas. O rosto adquiriu o mesmo ar que tinha quando observava os retratos de Korban. Mason deu-se conta
de que havia desafiado sua autoridade, ainda que apenas de leve. Subitamente, sentiu-se mal por colocar Ransom sob o olhar dela. A Srta. Mamie cruzou os braços,
como uma professora decidindo qual castigo dar a um aluno desobediente.
Após alguns momentos, falou: - É claro que não há problemas. Logo que ele cumprir com suas tarefas. Você acabou suas tarefas, Ransom?
Ransom manteve os olhos abaixados. - Sim, sinhora. Estou livre até o almoço. Depois tenho que cuidar da criação e da produção.
A Srta. Mamie sorriu e sua voz adquiriu novamente o tom jovial. - Excelente. E é melhor aquela escultura ficar perfeita, Sr. Jackson. Estamos contando com você.
- Estou bem animado e inspirado. - disse Ransom - Por sinal, existe algum lugar no qual possa trabalhar sem incomodar ninguém? Algumas vezes, trabalho até tarde
e não há nenhum jeito de entalhar madeira sem fazer um barulho infernal.
- Existe um estúdio no porão. Ordenarei a Lilith para mostrá-lo a você após o almoço.
- Não há necessidade de perturbá-la. Tenho certeza de que ela já está atarefada demais com os outros hóspedes. Por que não deixa o Ransom me mostrar o local?
Uma sombra passou pelo rosto da Srta. Mamie e sua voz ficou subitamente fria. - Ransom não tem permissão para entrar no estúdio.
Mason deu uma olhadela para Ransom e viu o canto de sua boca estremecer. Meu Deus. Ele está morrendo de medo dela!
A Srta. Mamie deu-lhes as costas e voltou para o solar, os saltos estalando pela sacada de madeira. A sineta da porta cantou enquanto entrava. Ransom expirou como
se estivesse segurando o fôlego nos últimos minutos.
- Que chefe maravilhosa você tem. - disse Mason quando Ransom finalmente o olhou nos olhos.
- Cuidado. - disse ele pelo canto da boca. - Ela provavelmente tá olhando de uma das janela.
- Você está de brincadeira!
- Só me segue. - sussurrou ele e, então, disse em voz alta. - O barracão é logo dispois daquelas árvore.
Depois que eles andaram por uma trilha lateral até que a casa estivesse fora de vista, Mason perguntou: - Ela é sempre desse jeito?
A confiança de Ransom aumentou conforme se afastavam da casa. - Ah, ela não falou por mal. É o jeito dela, só isso. Tudo tem que ser desse jeito. E ela se preocupa
demais.
- Há quanto tempo você trabalha aqui, Ransom? Você não se importa que eu o chame de Ransom, não é?
- Respeito pelos mais velho. Gosto disso, Sr. Jackson.
- Pode me chamar de Mason, pois espero que possamos ficar amigos.
Ransom olhou para trás pela trilha. - Só do lado de fora da casa, filho. Só do lado de fora.
- Entendi.
- De todo jeito, ocê tava perguntando quanto tempo faiz qui eu trabáio aqui e a resposta é "desdi sempre". Nasci aqui, numa cabana lá pras banda daquelas árvore.
Lugar chamado Beechy Gap. Mesma cabana que meu vô nasceu, e meu pai, também. Cabana ainda de pé.
- Todos trabalharam por aqui?
- É. O vô tinha umas terra na parte norte, quando o Korban começô a compra as terra tudo aqui. O vô vendeu e virô impregado como parte do acordo. Acho que nóis,
os Streaters, sempre tivemo ligação com a terra, de um jeito ô de ôtro. A história da família é que meu tatara-sei-la-o-quê avô Jeremiah Streater foi um dos primero
que veio pra essas banda. Veio junto com o Daniel Boone, dizem por aí.
- Daniel Boone viveu aqui, também?
- Olha, ele tentô. Tinha uma cabana de caça perto do pé da montanha. Mas eles tomaram suas terra. Eles sempre toma suas terra, sabe?
Ransom não soava amargo. Havia dito isso como se fosse uma verdade universal, algo com o qual você podia contar, não importasse o quê. O sol nasce, o galo canta,
o orvalho seca, eles lhe tomam as terras.
- O barracão é acolá. - disse Ransom, dirigindo-se para uma clareira ladeada por álamos. Continuou a história, o ritmo das palavras cadenciado pelos passos das pernas
magras.
- O vô foi trabaiá direto com o Korban, limpando o pomar e abrindo as estrada. Ele e dois tios meu. Eles alisaram a terra na enxada, socaram cum barras de ferro
e parelha de mulas. O Korban era maluco com madeira para o fogo, desdi o começo. Fez eles serrá as árvores com umas serra velha e empilhar a lenha na beira da estrada.
- E o Korban tinha a paisage toda planejada. O povo achava ele meio ruim da cabeça, transformando essa montanha velha da peste num lugar parecendo um castelo. Mas
o dinhero era verdinho. O Korban pagava um dólar por dia, um dinheirão que ninguém nunca tinha ouvido falá naquela época. Ele era cheio do dinheiro das fábrica dele.
- Eu trabalhei nas tecelage dele. - disse Mason - Mas não dá pra dizer que fui alguém importante nelas. Eu só trocava as bobina por uns trocado.
- Não é pra se envergonhá de trabalho honesto, filho. - Ransom parou e olhou na direção do canto de um corvo. O cheiro de folhas úmidas e floresta apodrecendo preencheu
o nariz de Mason. Notou que respirava mais pesado que o velho, com quase três vezes a sua idade. Ransom começou a caminhar novamente e continuou a história.
- Quando terminaram a estrada, foram trabaiá na ponte. Nos velhos tempo, o único jeito de chegá aqui era um caminho que subia pela parede sul dos dispenhadero. Você
viu aquela queda na subida pra cá.
- Vi, sim. Lá do fundo. - O estômago de Mason começou a se contorcer com a lembrança da majestade e terror da visão. Ele ficou envergonhado com a respiração curta
e tentou escondê-la.
- Aquela trilha é como os primero pionero, Boone, Jeremiah e mais um punhado deles, chegaram aqui em cima. Dizem que os índio Cherokee e Catawba usaram ela antes,
caçando aqui em cima. Os branco trouxeram a criação pra cá, lutando e empurrando os ôtros bicho nos precipício. Mas o Korban queria uma ponte. E o que o Korban queria,
o Korban sempre conseguia.
- Já me dei conta disso. - Uma construção robusta ficava à frente, enfiada entre os ramos baixos de um pinheiro. O telhado estava abarrotado de espículas de pinheiro.
Ransom conduziu Mason até ele.
- Era umas oito famílias que dividiam o topo da montanha. O Korban comprou tudo e colocou eles pra trabaiá, construindo a casa grande e juntando pedra pra fazer
o alicerce da casa. Ele contratô as muié pra plantá as maçã e os jardim. Até as criança ajudaram, ganhando um quarto de dólar por dia mais a comida.
- Ninguém notou que eles estavam fazendo o mesmo tipo de trabalho, só que agora tinham um patrão?
A trilha alargou e as marcas de carroça levavam para dentro do coração da floresta e ao outro lado da clareira. Ransom subiu as escadas retorcidas que levavam ao
barracão e então parou. Mason estava contente que afinal a caminhada pela subida havia finalmente diminuído o ritmo do senhor.
- Você não tem dinheiro, tem? - Ransom perguntou, elevando uma sobrancelha branca.
- Bem, na verdade não. Meus pais trabalhavam a semana toda apenas para sobreviver. - Mason não mencionou que seu pai trabalhava apenas dois dias e que os restantes
ficava bêbado, que todo domingo pela manhã saía religiosamente para agradecer as bebidas que tomaria de noite. Nenhuma prece passou pelos seus lábios que não fosse
o bafo de bourbon. Exceto, talvez, quando estava deitado no hospital, quando a cirrose o escoltou rumo ao túmulo depois de uma vida de autodestruição.
- As pessoa pra essas banda se matavam para ganhar o dinheiro do Korban. Eram umas pessoa pobre que só. Os único trocado que viam na vida era umas duas vez no ano
quando botavam uns troço pra vender no lombo de uma mula e desciam pra cidade de Black Rock pra vender. Então, quando o Korban apareceu do nada oferecendo dinheiro
pela terra, não foi vergonha pra ninguém vendê.
- Acho que venderia as minhas terras também, se tivesse a chance. - disse Mason. Ele estava pensando no Dilúvio, sua primeira escultura sob encomenda e a pior porcaria
que ele já fizera. Também a mais bem-sucedida.
Ransom mexeu no bolso do macacão e novamente puxou o pano com a pena. Ele o balançou de modo estranho à frente da fechadura de ferro fundido na porta do abrigo.
- Hum... para que serve essa pena? - perguntou Mason.
- Pra enxontá. - disse Ransom, como se todo mundo conhecesse esse tipo de feitiço. Ele abriu a porta. Antes de entrar, chutou o batente da porta com tanta força
que o macacão dançou no corpo esquelético. - É, ainda tá forte.
Mason queria perguntar exatamente o que Ransom estava espantando, mas não sabia que palavras usar. Ele anotou isso como sendo mais uma das esquisitices do solar.
Comparado a histórias de fantasmas, os retratos vigilantes de Korban, a empregada nervosa e corações incandescentes à luz do dia, o que eram as excentricidades desse
senhor? Perto de Anna, Ransom era praticamente um modelo de sanidade e razão.
Eles entraram no pequeno barraco, Ransom espreitando as vigas do teto. A luz entrava pelas janelas simples na parede sul. Bancadas de trabalho alinhavam-se ao fundo,
empilhadas junto com arreios quebrados e arados enferrujados, ferramentas de marcenaria e baldes de pregos. Pás gastas, picaretas e machados estavam próximos à porta.
Uma longa serra vai-e-vem estava presa à parede com pregos, alguns dentes faltando. O canto do barraco era uma bagunça de plainas de madeira, martelos, cordas e
roldanas. O interior cheirava a ferro e couro.
Mason começou escolhendo o equipamento que eles poderiam precisar. Se tivesse sorte, conseguiriam achar um pedaço de nogueira ou talvez de bordo. Mas provavelmente
teriam que serrá- lo de algum tronco caído. Ele estava testando o peso de uma machadinha quando notou Ransom novamente olhando para o telhado. - O céu não vai cair
em cima de nós, vai?
- Nunca si sabe.
- Estamos o quê? Uns trezentos metros acima do nível do mar? Um pouco menos de céu para cair em cima de nós.
Ransom nem se deu ao trabalho de sorrir da piada, apenas coçou uma bochecha enrugada. Talvez Mason tivesse julgado mal o velho. Aqueles olhos brilhantes e incansáveis
sugeriam que o homem não era avesso ao humor. Mas ele deveria ter suas razões para ficar solene.
- Encontrô o que pricisava? - perguntou Ransom, esperando próximo à porta.
- Claro. Você se incomoda de pegar esse malho à sua esquerda? Talvez possamos precisar dele para umas pancadas mais pesadas.
Quando saíram do barraco, pararam na clareira e organizaram as ferramentas para melhor carregarem. Ransom estava com uma expressão que Mason poderia descrever como
sendo de "alívio".
- Qual o problema? - perguntou Mason.
- Um hômi tem o direito de ficá assustado, não tem?
O que há para ficar assustado aqui? Será que existiam predadores à espreita na floresta? - Assustado com o quê?
- A Srta. Mamie disse para não contar. - Ransom parecia quase uma criança. Mason se perguntou que tipo de controle tinha aquela mulher sobre Ransom. O homem disse
o nome dela com uma reverência amedrontada, a mão movendo-se pelo macacão na direção do bolso onde guardava o pano enfeitiçado.
- Olha, se houver algum tipo de perigo, você deveria me dizer, pois eu posso alertar os outros hóspedes. Além disso, pensei que éramos amigos.
Ransom olhou para as árvores na direção do sol, que começava sua jornada em direção ao oeste.
- Eu conto. Mas nunca conte pra Srta. Mamie que eu falei.
- É claro que não.
Ransom soltou a respiração lentamente. - Nóis recebe quatro grupo de convidado todo ano.
Nóis fica um mês parado entre cada grupo, pra consertar as coisa, que a gente fica tão atarefado quando eles tão aqui que não dá tempo de fazer mais nada. Alguém
tem que sair por aí e vê se as cabana e os anexo e essas coisa não tão caindo aos pedaço. O Korban dexô nas últimas vontade dele que tudo tinha que ficá igualzinho
era.
- Trêis de nóis é que fazia isso. Nóis sempre trocava, um cuidando da criação, o outro cuidando das pranta e jardim e o outro consertando as coisa. A Srta. Lilith,
a empregada e a cozinhera cuidavam da casa e da cozinha.
- Encontrei a Lilith. Garota bonita.
Ransom balançou a cabeça negativamente. - Ela não faz mal pros ôio. Continuando, ontem um de nóis, George Lawson, estava em Beechy Gap verificando a véia casa do
Easley. Era uma das casa original da família. A última Easley trabaiô naquela casa até casá com um dos artista que veio pra cá e se mudar pra Charlotte uns ano atráis.
- Bem, meu amigo George, ele foi pra essa casa véia dos Easley. Não sei que foi que conteceu, não vi nenhuma ferramenta nem nada, di modi que não sei dizê se ele
tava fazendo algum trabáio de carpintaria. Mas a joça toda do barracão caiu em cima dele. - Ransom cerrou os dentes. - Morreu bem digavarzinho o infeliz.
- Sinto muito, Ransom. O que os policiais disseram sobre isso?
- Como já falei procê, tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban.
Mason não compreendia. Esse lugar era remoto, mas uma morte acidental deveria requerer algum tipo de investigação.
- George era um bom ômi. E não era burro, não. Passou pelo Vietnã, e divia tê algum senso na cabeça. Ele só cruzou a porta errada, só isso. - Ransom deu a indicação
de que acrescentaria algo à última frase, mas mudou de ideia.
- Para que lado é Beechy Gap?
Ransom indicou o norte com a cabeça. - Dispois daquela crista acolá.
- Não me importaria de dar uma olhada uma hora dessas.
- Não. Os hóspede são proibido de ir lá.
- Terreno ruim?
Ransom o olhou diretamente nos olhos pela primeira vez desde que deixaram o barracão. - Algumas coisa não fazem parte do acordo. Ocê vai descobri que tem um montão
de lugar por aqui na Fazenda Korban que são proibido pros hóspede.
Ransom tirou o patuá do bolso e o moveu na direção do barracão novamente. - Agora, sobre essas madeira suas. Tenho que voltar logo, logo.
Eles pegaram as ferramentas e saíram da trilha em direção à floresta.
CAPÍTULO 16
Adam caminhou junto à cerca, a mente cheia de odores selvagens. Tinha certeza de que os poluentes de Manhattan haviam obstruído permanentemente seus seios nasais,
mas talvez um pouco de ar puro da montanha adicionasse um ano de vida aos seis que a cidade lhe havia roubado. O silêncio quase perfeito era misterioso e ele havia
quase passado por um surto noturno , pois a parte de si que dormia alimentava-se das sirenes constantes, buzinas de carros e alarmes antifurto. E todo esse espaço
aberto era muito antinatural. Não admira que esses caipiras fossem estereotipados como exilados grisalhos e malucos. Não havia absolutamente nada para impôr um nível
mínimo de sanidade e civilização sobre eles, de forma que eles podiam simplesmente criar suas próprias regras.
Paul estava em algum lugar filmando. Sem dúvida, mergulhado em seu novo projeto, o mundo reduzido ao que seu visor enquadrava. Melhor assim. Apesar de a solidão
ser esquisita em si, especialmente na amplidão da fazenda, ele precisava de uma folga da companhia de Paul. Ele falara com Roth, o fotógrafo esquisito, e reparou
na mesma introspecção artística que lhe atormentava em Paul.
Adam viu um homem perto do celeiro, vestido com roupas de trabalho. Não era um dos operários que ajudaram a descarregar a carroça. Provavelmente alguém responsável
pelos estábulos ou por cuidar do jardim que seguia em pequenas linhas no vale baixo. O homem abanou para Adam, que olhou para o solar, distante algumas centenas
de metros, e então aproximou-se do celeiro.
- Olá! - disse o homem. Suas mãos estavam socadas dentro dos bolsos da calça jeans. Uma pá encontrava-se apoiada à parede, ao seu lado.
- Oi. - disse Adam.
- Pelo jeito, você é um dos hóspedes.
- Chegamos ontem.
- O que achou do lugar até agora?
- É... diferente do que estou acostumado. Mas isso é parte da aventura.
- Sim, o desconhecido é sempre assustador no começo. Mas, uma vez que se acostuma, você começa a gostar.
Adam olhou para a área cercada além do jardim. Um grunhido rolou pelo campo.
- Porcos. - disse o homem - Quase na época de ferver a água e abater alguns deles. O rosto de Adam deve ter expressado seu asco.
O homem riu. - Não se preocupe, filho. Você não vai sujar as mãos de sangue. Mas a carne não chega sozinha na mesa do jantar.
- Prefiro minha carne sem os ossos. - disse Adam.
- A Srta. Mamie a serve do jeito que quiser. Mas tenha cuidado, ela é conhecida por tirar uma casquinha dos hóspedes. Especialmente daqueles que são homens e jovens.
Mesmo um corvo velho como aquele precisa de se divertir aqui e ali.
- Obrigado pelo aviso, mas ela realmente não faz meu tipo. - disse ele.
O homem se inclinou para frente como um conspirador, o rosto emergindo das sombras do celeiro. - Diga-me, você pode me fazer um favor?
- O que é? - Adam olhou novamente para o solar. Fumaça subia das quatro chaminés, mas afora isso, parecia sem vida. Mesmo a brisa parecia ter sucumbido.
- Cave um buraco para mim. Eu pago você.
- Não quero me meter em confusão. A Srta. Mamie parece ter essa questão dos hóspedes ficarem separados dos funcionários.
O homem lambeu os lábios. - Eu me preocupo com a Srta. Mamie. Mas tenho um braço machucado e minhas costas doem muito. A dor está infernal nesse momento.
- Certo, então. - disse Adam. Pegou a pá e testou seu balanço.
O homem retirou a mão direita do bolso e apontou para uma macieira acinzentada e moribunda, solitária no meio de uma pequena clareira. - Bem ali, no meio das raízes.
- disse ele - Grande o suficiente para caber uma caixa de sapatos.
O homem seguiu Adam até o local e o viu deslizar a lâmina brilhante para dentro do chão, revirando a terra preta. Em poucos minutos, ele havia feito o buraco de
acordo com o que o homem pedira.
- Assim está muito bom. - disse o homem - Eu posso terminar agora, muito obrigado.
- O que você está enterrando aí?
- Estou dando um jeito nas coisas para Ransom. Ele não vale nada, mas está aqui há tanto tempo que consegue se livrar até de assassinato. Tenho que terminar esse
trabalho para ele.
- Bem, tenha uma boa manhã. Preciso voltar ao meu quarto.
- Aqui. - disse ele, a mão voltando ao bolso. - Uma pequena compensação pelo seu trabalho.
- Não, imagina! - disse Adam, levantando as mãos em protesto. O cabo da pá havia esquentado a pele em volta de suas palmas, talvez o início de um bolha.
- Você não quer me magoar, não é mesmo? - disse o homem - Nós da montanha somos muito orgulhosos com essas coisas.
- Certo, então.
O homem estendeu a mão fechada e então abriu a palma para Adam, mostrando uma pequena coisa verde.
- Um trevo de quatro folhas. - disse o homem.
Adam sorriu - Eu vou precisar de toda sorte que puder encontrar.
Caminhou de volta ao celeiro, então virou-se e disse - Por falar nisso, meu nome é Adam.
- Lawson - disse o homem, agora acocorado sobre o buraco como se suas costas tivessem se curado milagrosamente - George Lawson.
CAPÍTULO 17
Anna acordou com a luz do sol entrando inclinada pela janela e, por um momento, não conseguiu se lembrar de onde estava. Então tudo voltou: Solar Korban, Mason,
a cabana na floresta com as figuras misteriosas, o espírito triste da garota que encontrara.
Por que o fantasma havia pedido a ajuda dela? E quem era a pessoa com o xale que correra para a floresta? Anna empurrou para longe as teias de aranha da memória.
Ela não havia sonhado na noite anterior, a não ser que toda a caminhada na floresta tenha sido fruto de sua imaginação.
- Teve uma boa noite de sono? - perguntou Cris de sua cama, do outro lado do quarto.
- Dormi feito uma pedra. Não durmo assim há anos. Acho que mesmo uma garota da cidade se beneficia com paz e quietude.
Cris, com a voz áspera do sono e da ressaca, disse: - Sei o que quer dizer. Em Modesto, uma sirene acorda você a cada quinze minutos. Que estranho.
- O que é estranho? - Anna olhou para o retrato de Korban e então para o fogo, que deveria ter sido realimentado por algum dos serventes durante a noite.
- Pela primeira vez, desde que eu era uma criança, consigo me lembrar de meus sonhos.
- Mesmo? - Anna pensou em seu sonho recorrente, de seu eu fantasmagórico na balaustrada do telhado, segurando aquele buquê assombrado e assustador.
- É. Estava correndo pelo pomar, lá fora, e estava com longas roupas de dormir esvoaçando atrás de mim. Sabe, todos aqueles laços vitorianos que você vê nas propagandas
de romances góticos? Estava correndo em câmera lenta, como se o vento estivesse me empurrando para trás, ou algo parecido.
- O velho tema de sonho de "correr e nunca alcançar". - disse Anna. -Eu os tive na reta final das provas ou algumas vezes quando enviei algum artigo para uma revista.
Ou quando sonhei a última vez com Stephen. Quando foi isso, cerca de um ano atrás?
- Eu não estava fugindo. - A voz de Cris diminuiu um pouco enquanto ela relembrava os detalhes do sonho. - Eu estava correndo para alguma coisa. Esperando nas sombras,
logo na margem da floresta. Era tão real. Podia sentir o orvalho nos pés descalços, o ar frio em contato com o rosto, o calor... -
Anna se levantou do travesseiro e viu Cris, o cabelo embaraçado, os olhos turvos, mas as maçãs do rosto coradas.
- O calor lá embaixo. - terminou Cris, como se estivesse assustada com a força da lembrança.
- E eu fiquei apenas correndo. Podia sentir a casa atrás de mim, quase como que olhando, como se quisesse que eu... Então eu estava do outro lado do campo. Essa
sombra, moveu-se sob as árvores, tocou-me, mas não podia ver seu rosto. Do ponto onde me tocou no ombro, o calor se expandiu, me preenchendo...
Os olhos bem abertos de Cris estavam fixos no outro lado da sala e dentro do sonho. - Foi bem intenso. - ela sussurrou.
Anna não estava acostumada com as pessoas compartilhando detalhes íntimos com ela. Ser órfã a havia ensinado a se manter numa distância emocional segura. Ela mantinha
segredo mesmo sobre os poucos interesses românticos de sua vida, mantendo uma grande parte de si mesma escondida. Agora essa mulher que ela conhecera ontem estava
compartilhando um sonho sensual. Mas talvez fosse outra coisa. - Você provavelmente encontrou companhia. Mason, talvez.
Cris sorriu. - Não, definitivamente eu teria me lembrado se alguma coisa tivesse acontecido com ele. Eu não estava tão bêbada.
Anna forçou um interesse que não sentia no sonho de Cris como uma penitência por pensar em Mason. - O que você acha que esse sonho significa?
- Que eu sou um caso sem solução?
Como se os sonhos tivessem significado. Sonhos não eram mais que um erro das sinapses, uma descarga de energia elétrica sobrando, do mesmo modo que faíscas saíam
do distribuidor em um carro. Sonhos eram ondas aleatórias no cérebro, não importa o que os professores do programa de ciências do comportamento em Duke a tivessem
ensinado.
Basicamente, sonhos eram um absurdo. Tanto os que ocorriam dormindo quanto os sonhos acordados. Especialmente quando eles o compeliam a visitar um solar perdido
no meio das Montanhas Apalaches, onde você procuraria o próprio fantasma.
Especialmente nesses casos.
- Talvez seja apenas seu subconsciente revelando a sensação de liberdade recém-descoberta.
- disse Anna, buscando alguns conceitos esquecidos de suas aulas de psicologia. - Mesmo porque você tem todo o tempo do mundo, sem prazos, sem marido para agradar.
Nada além de você mesma e o que quiser fazer. Talvez seja apenas natural que essa sensação de alívio se expresse sob essa forma romântica.
- Uau! Isso foi bom. Mal posso esperar para chegar em casa e contar isso para meu terapeuta. Anna ia adicionar mais alguma coisa sobre frustração sexual devido à
vestimenta vitoriana do sonho. Mas isso era cínico e obtuso demais, mesmo para Anna.
- Ou talvez fosse apenas um sonho. - disse ela, temendo a diarreia sanguinolenta que lhe dava as boas-vindas todos os dias pela manhã.
- Provavelmente. - disse Cris.
Anna empurrou a coberta para longe e sentou, arrepiando-se por debaixo da camisola. - Hora de fazer um depósito no banheiro.
- Vá em frente. Preciso ficar aqui um minuto para me recompor. Vou dar uma fugida até o andar de baixo e roubar um pouco de cafeína. Quer algo?
- Não, obrigada.
Quando Anna retornou ao quarto, Cris estava pegando seus cadernos de desenho, uma caneca de café fumegando no criado-mudo. - Esbarrei em Jefferson Spence. Sabe aquele
escritor gordo? É bacana estar aqui com pessoas realmente famosas.
Anna deu de ombros. - Tivemos que estudar seu Seasons of Sleep em literatura americana. O livro me dava sono, se você quer saber.
- Ele escreveu esse aqui no solar. Dizem que ele escreve sobre pessoas reais e apenas muda os nomes para não ser processado. Pergunto-me se estaremos em seu próximo
livro.
Anna foi até seu armário para escolher uma roupa. - Eu serei a biruta caçadora de fantasmas com um grande nariz e você poderá ser -
- A perua doméstica que fica molhada sonhando.
- Só que não será assim tão simples no livro. - disse Anna, e então fungou delicadamente. - Você será provavelmente a Vênus trêmula, agarrando-se e contorcendo-se
sobre os lençóis, as costas arqueadas de prazer em direção ao teto negro, ao céu infindável, à prisão notuma e assim por diante.
Cris riu com tanta força que espirrou parte de seu café. Uma batida veio da porta. Anna cruzou os braços, sem saber o que a camisola revelava, ou não. Ela evitava
espelhos já fazia um tempo.
Cris aparentemente tinha menos modéstia, tendo descido as escadas na camisola amarela que ainda vestia. - Entre! - gritou ela. - Estamos decentes aqui dentro.
A Srta. Mamie entrou no quarto, as mãos unidas, um sorriso no rosto que poderia ter sido esculpido em madeira. - As senhoritas dormiram bem?
- Mais ou menos. - disse Cris - As camas são muito confortáveis.
- E você, Srta. Galloway? Saiu tarde da noite ontem? - Os olhos da Srta. Mamie refletiram a luz quente e ondulante do fogo.
A Srta. Mamie a estava repreendendo ou apenas de conversa? A anfitriã sabia que Anna era uma parapsicóloga. Ela não vira nenhuma razão para mentir em sua ficha de
inscrição. Na verdade, aprendera a ter um orgulho teimoso sobre suas peculiaridades.
Assim, não viu nenhuma razão para mentir agora. - Dei uma caminhada. - disse ela - Naquela elevação na direção leste.
- Você achou o que estava procurando? - Não havia nenhuma dúvida sobre o tom de desafio na voz da anfitriã.
- Não. - Não era uma mentira. Ela não estava certa do que estava procurando, além de seu próprio fantasma.
- Talvez venha até você, Srta. Galloway. Seja otimista. - A Srta. Mamie franziu os lábios em um sorriso reptiliano e olhou para o retrato de Ephram Korban.
- Você tem uma casa bem esquisita. - disse Cris.
- A casa é dele. - disse a Srta. Mamie, com um leve inclinar na direção do retrato. Ela tocou o medalhão pendente no colar de pérolas que lhe circundava o pescoço.
- Eu apenas mantenho os fogos acesos.
Ela as deixou para se vestirem e especularem sobre o comportamento críptico da anfitriã.
CAPÍTULO 18
- Por aqui, Sr. Jackson.
Lilith desceu pelas escadas estreitas. Mason reposicionou o pedaço de bordo de dez quilos nos braços e a seguiu escada abaixo. O ar bolorento e úmido grudou-se no
rosto de Mason. Ele olhou para dentro do porão negro, certificando-se de que cada passo era sólido antes de dar o próximo.
Lilith o esperou no fim das escadas, segurando uma lanterna na altura do ombro. Quando Mason finalmente chegou ao piso do porão, olhou para as sombras ondulantes
e sombrias, tentando perceber a distribuição das coisas. Pequenas janelas basculantes foram colocadas altas nas paredes, logo acima do nível do chão externo, mas
apenas uma nesga de luz acinzentada passava por elas. O odor de podridão seca deu lugar a uma ruína mais profunda e antiga.
Ele tropeçou e sua sacola de ferramentas chocou-se contra seu quadril. A alça estava começando a penetrar em sua pele onde a sacola pendurava-se em seu ombro. Lilith
o direcionou por entre alguns pilares grossos de madeira, um monte de mobília velha e uma pequena porta. A chama da lamparina refletiu nas garrafas de vinho empoeiradas
que se empilhavam nas prateleiras da passagem estreita.
- Por que é tão quente aqui? - perguntou Mason, a voz engolida pelo espaço vazio.
- Calefação central. - disse Lilith - O Sr. Korban insistia no fogo para aquecê-lo. Mason se perguntou se seria capaz de trabalhar ali por longos períodos de tempo.
Esculpir geralmente lhe fazia suar copiosamente. O trabalho era tão físico quanto de inspiração. Apenas nos toques finais, nos detalhamentos finais e polimento,
é que o trabalho deixava de ser tão exaustivo.
- Onde é o fogão? - perguntou ele.
Lilith apontou para dentro da escuridão à esquerda do final do porão. - Há um aposento separado lá, de forma que os trabalhadores possam manter o fogo aceso pelo
lado de fora da casa. Os encanamentos correm pela casa toda.
Ela elevou a lanterna e Mason viu os dutos metálicos no teto.
- Aquecimento por circulação de ar. - disse ele - Isso era bem sofisticado para a época, não é?
- Não sou historiadora, Sr. Jackson. A Srta. Mamie seria a pessoa certa para responder a essas perguntas.
Lilith o levou a uma área que não era exatamente um aposento. Era mais um espaço dividido por pilares de madeira e prateleiras. Um armário grosseiramente acabado
encontrava-se ao lado do que ele adivinhou ser seu estúdio.
- Espero que isso sirva. - disse ela - Tivemos poucos escultores no solar, ao contrário de pintores, que foram muitos. E um velho cavalheiro que fazia xilogravuras.
Todos eles conseguiram trabalhar aqui.
- Ah, você pinta?
- Eu costumava pintar.
Ele não quis comentar a mudança de carreira dela. Sua própria mudança estava no limiar de acontecer. - Talvez um pouco de espírito criativo tenha penetrado nessas
paredes.
- Talvez sim, Sr. Jackson. Talvez mais do que o senhor imagina.
Ela era um pouco estranha, Mason decidiu. Se ela não fosse tão fria, Mason se arriscaria a conhecê-la melhor. Mas era melhor que ele se concentrasse em seu trabalho.
Além disso, tinha certeza de que a Srta. Mamie não aprovaria que seu pessoal se envolvesse com os hóspedes, não importando o quanto os hóspedes se envolvessem uns
com os outros.
Uma mesa grossa encontrava-se no meio do espaço. Mason colocou o pedaço de madeira sobre ela com um baque sólido. Retirou a sacola do ombro e também a depositou
sobre a mesa. Ficaria escuro aqui, mesmo durante o dia, mas ele não se importava. No fim das contas, trabalhava mais por toque e instinto mesmo.
- Isso seria tudo? - Novamente, Lilith parecia com pressa de ficar longe dele. Ou talvez não fosse dele. Talvez quisesse ficar distante desse lugar escuro e claustrofóbico
onde Mason passaria uma boa parte de seu tempo.
- Então, serei amaldiçoado com a escuridão? - perguntou ele.
- Como?
Ele apontou a lanterna. - Presumo que você levará isso junto.
- Ah, entendo. - ela moveu-se na direção das prateleiras e, sob a luz da lanterna, viu um amontoado de velas meio queimadas. - Tem fósforos sobre aquele armário.
Ela esperou até que Mason acendesse duas velas grossas. Ele também encontrou uma lamparina a óleo na prateleira inferior e puxou o pavio. Ele tinha apenas tocado
a ponta da vela no pavio da lamparina quando ela disse - Boa sorte! - e se foi.
Conforme os ecos de seus passos sumiram na direção da escada, ele murmurou para si mesmo - Nossa, não é uma surpresa as pessoas contarem histórias sobre esse lugar.
Mason acendeu uma vela a mais e espalhou suas ferramentas sobre a mesa. Ele contemplou os gumes afiados das lâminas antes de dirigir a atenção ao bloco de bordo
vermelho. Então começou a caminhar, a mente mergulhando naquele poço misterioso onde as ideias borbulhavam.
Seu pé tocou em algo, causando um ruído abafado. Ele trouxe a lamparina para baixo para ver no que havia tropeçado. Era uma tela emoldurada, a parte de trás acinzentada
pelo tempo. Ele a virou.
Na tela, estava uma reprodução perfeita do Solar Korban em uma noite de tempestade, pintada na mesma técnica que as outras pinturas a óleo da casa. O solar fora
desenhado em escala perfeita, tão encaixado na paisagem que a casa parecia ter brotado do chão. Na pintura, estava o orifício do nó de madeira que Mason havia visto
mais cedo naquela manhã, debaixo de uma janela no segundo andar.
Mas o realismo fotográfico não era a única coisa que deixava a pintura tão forte. O solar era vibrante, como se balançasse contra uma tormenta imaginária. As árvores
estavam enfurecidas com o vento e nuvens negras pairavam sobre o telhado achatado do solar. Mason tocou gentilmente na pintura e uma eletricidade subiu pelo seu
braço. Ele se perguntou por que uma pintura tão bonita estaria relegada ao ar destrutivo de um porão.
Ele a encostou na mesa e aproximou a lamparina, com cuidado para não danificar o acabamento. Olhou detidamente cada centímetro quadrado da pintura, correndo delicadamente
os dedos sobre as cristas deixadas pelas pinceladas. Os ângulos das empenas eram geometricamente precisos, as sombras proporcionais, a escolha de cores verdadeira
ao olho humano. Mesmo as cascas das árvores possuíam uma textura complexa.
Ele estava olhando o topo do solar, estudando o parapeito da balaustrada, quando reparou na única falha da pintura. O artista havia inadvertidamente borrado as cores.
Havia um borrão cinza na balaustrada. O artista poderia ter facilmente consertado o defeito, mas por alguma razão não o fizera. Ainda assim, a pintura era perfeita
demais para permanecer escondida na escuridão.
Mason não soube dizer quanto tempo ficou olhando para a tela. Ela possuía um poder hipnótico tão intenso que parecia sugá-lo para dentro de seu turbilhão. Por fim,
ele balançou a cabeça, dando- se conta de que se não começasse a esculpir, desperdiçaria o primeiro dia de sua última chance. Encostou a pintura fora do caminho
em um pilar de madeira, prometendo a si mesmo que perguntaria mais tarde sobre ela à Srta. Mamie.
Ele iniciou o trabalho removendo a casca do tronco de bordo, incomodado pelo fato de que sua mente voltava à pintura.
- Vamos, seu desgraçado. - xingou - É a hora da verdade. Pense em sua mãe em Sawyer Creek, murchando por causa do sacrifício que fez por você. Sozinha no escuro.
Ele ouviu a voz em sua mente, lhe dizendo para se agarrar aos próprios sonhos. Ele arrumou suas ferramentas, a goiva, a machadinha, o maço, o enxó e uma dúzia de
formões com diferentes ângulos e formatos. Ainda assim, nenhuma ideia lhe ocorreu. Ele olhou à volta, para as sombras que as velas tremulantes criavam.
Alguém o estava observando na escuridão à volta.
Um sussurro leve no canto. Mason levantou a lamparina. Uma coisa pequena e escura se destacava das sombras menos intensas e movia-se na direção da prateleira de
vinhos.
Um rato. Os dedos de Mason curvaram-se dentro dos sapatos. Ele odiava roedores. Quando era mais jovem, logo antes de seu pai falecer, a família vivera em um trailer
alugado. O estacionamento de trailers ficava próximo a um depósito de lixo e os ratos se multiplicavam em proporções bíblicas graças à quantidade de comida.
Uma noite, ele ouviu sons raspados dentro do colchão sobre o qual dormia. Ligou a luz e observou, horrorizado, ratos recém-nascidos caindo de dentro do colchão por
um rasgo no tecido. Igualmente repulsivo foi observar o velho gato cinza da família engolindo os ratos inteiros, um por um, conforme saíam do buraco. A rata devia
estar doente, ou algo parecido, porque seu colchão cheirou à morte por semanas a fio após esse evento. Mas Mason já havia feito de sua cama uma cadeira de reclinar
que ficava do outro lado da sala de estar.
Outra memória mais antiga surgiu, mas ele a empurrou com força para dentro das trevas sonolentas.
Essa criatura no porão era apenas um camundongo. Mason podia lidar com isso. Camundongos eram tímidos, enquanto ratos eram seres a serem desprezados, com as longas
caudas, jeito intencional e olhos que brilhavam com inteligência desafiadora.
Ele tentou novamente se concentrar no trabalho. Talvez o camundongo tivesse sido sua Musa. Outros artistas falavam sobre o espírito que os movia, que se movia dentro
deles. Mason não compreendia isso. Tudo o que ele possuía eram teimosia e raiva para movê-lo.
Ele se dirigiu ao tronco que Ransom o havia ajudado a livrar de uma árvore caída. - Certo, que tipos de segredos você esconde aí por dentro?
Ele estudou o padrão de crescimento dos anéis e acariciou os grãos da madeira. A seiva morta pulsou. Uma lufada de ar assobiou por dentro dos dutos de aquecimento.
- O que você quer se tornar? - ele pegou sua machadinha. O som da corrente de ar quente transformou-se em uma risada baixa. Ele sentiu uma mão à volta da sua, um
bolsão de ar morno para guiá-lo.
Sua voz aumentou - O que diabos você quer de mim?
Mason afundou a lâmina de metal profundamente no cerne da madeira. O eco seco da pancada soou quase como um suspiro de contentamento.
CAPÍTULO 19
Roth estava irritado. Havia rodado três rolos de filme, enquadrando primeiro a casa na luz matinal suave e inclinada e, então, sob a luz solar mais intensa e sombras
mais marcantes, conforme o dia progrediu. Ele havia caminhado um bom pedaço do caminho arenoso para conseguir montar uma série de perspectivas de aproximação pela
teleobjetiva, trabalhando com um tripé. Ele conseguira uma razoável profundidade de foco, manipulando o obturador, de forma que a casa parecia pequena com relação
à floresta que a envolvia. Então, ele fizera um trabalho fotográfico manual, mais de perto, para dar o efeito oposto, levando o expectador a ter a impressão de que
o solar se agigantava contra as árvores e colinas.
Tudo isso era um bom trabalho, mas corriqueiro, e ele queria tentar algo diferente. Ele queria fotografar a ponte. A ponte pequena e batida pelo tempo daria um excelente
motivo de conversa como a capa de seu livro de fotografias, com seus despenhadeiros dramáticos e vistas enevoadas.
Ele estava certo de que desejava fotografar a ponte, mas quando caminhou sobre as árvores pela estrada a ideia já não lhe pareceu tão incrível assim. O dia estava
tão quente que, mesmo na sombra, sua testa estava banhada em suor. Um espasmo de náusea e tontura lhe cruzou o corpo. Antes de contornar a última curva, onde o terreno
do solar dava lugar às rochas do despenhadeiro, ele decidiu que a ponte seria um grande desperdício de filme fotográfico.
Assim, caminhou de volta ao Solar Korban, sob uma súbita brisa leve, e sentiu-se melhor conforme o suor secou. Tirou mais algumas fotos da casa dos mesmos locais
de antes. Era tudo uma baboseira.
- Vou ficar maluco. - murmurou ele por entre os dentes.
- O que disse?
A voz feminina veio de algum lugar à sua direita. Ele olhou para debaixo das sombras das árvores, na esperança de que tivesse mantido seu sotaque inglês enquanto
estava praguejando. Não poderia haver deslize.
- Eu estava dizendo "Que monte de tédio" - disse ele.
Ele a via agora, sentada em um toco, ao lado do sicômoro. Estava com o caderno de esboços em seu colo e um carvão entre os dedos. Roth olhou para suas longas pernas,
apreciando que o dia estivesse quente o suficiente para que ela usasse um short.
- Está tirando fotos? - perguntou ela.
Fotos. Turistas e crianças tiravam fotos. Roth enquadrava o vital, capturava o essencial e imortalizava o divinamente apropriado.
Moça estúpida. Ainda assim, em sua experiência, quanto mais vazio o espaço superior, mais apertado o espaço lá de baixo.
De qualquer forma, ele estava ficando frustrado com seu trabalho. Talvez estivesse no momento certo de arranjar uma companhia para a noite. - Sim, minha querida.
- disse ele, levantando a câmera e apontando para ela.
Ela olhou para o outro lado.
- Não seja tímida, meu amor. Deixe minha câmera feliz. Não vou nem dizer para você falar "xis" ou qualquer coisa do estilo. - Ele aproximou a imagem com o zoom em
seu decote sem que ela reparasse.
Ela olhou para cima e sorriu, ele acionou o disparador e então colocou a câmera de lado. - Diga-me, você não estava naquele pequeno encontro da Srta. Mamie após
o jantar ontem?
- Sim. Vi você. William Roth, não é?
Roth amava quando as pessoas fingiam que não estavam impressionadas com sua celebridade, mas ela não conseguiu esconder o pequeno brilho em seus olhos. Talvez ele
não fosse uma estrela de cinema, mas ter o nome reconhecido definitivamente era útil na sua aproximação com as meninas. - Todinho seu. - disse Roth - E a quem tenho
o prazer?
- Cris Whitfield. Cris, sem o h. - Ela estendeu a mão, dando-se conta de que estava suja com carvão, trazendo-a de volta ao colo.
- Encantado. - Ele esticou o pescoço como se fosse olhar o que ela estava desenhando, mas na verdade observando seu colo. - O que está desenhando?
- A casa. - disse ela, acenando com a cabeça na direção do solar.
- Se importa se eu der uma olhada?
Ela deu de ombros e virou o caderno de esboço para ele. Ele aproveitou a oportunidade para ficar de pé ao lado dela.
- Não sou muito boa nisso. - disse Cris.
Parece muito boa, pela pequena espiada que dei.
- A casa não é um motivo fácil. - disse ele, pegando o esboço. - Eu não conseguiria fazer um esboço dela. Não posso nem imaginar como seria terrivelmente assustador
um desenho dela feito por mim...
Ele estava esperando um desenho primário no papel, algo que o lobo mau conseguisse assoprar com os pulmões a meia capacidade. Mas não esse... manicômio que a mulher
havia desenhado. Nada que parecesse vir dessa pequena menina com rabo de cavalo que parecia uma perua de beira de praia e que provavelmente estudara reiki, yoga
ou qualquer outra dessas bobagens da nova era que estavam na moda.
Porque o desenho era certamente do solar, mas muito mais que apenas isso.
Era decadente, escuro e pessimista, uma mistura de Dali e Goya. Acharam algumas pinturas de Goya após sua morte, escondidas em sua casa porque ninguém conseguia
ficar olhando para elas. Roth lutou contra o desejo de tocar no esboço.
O carvão estava espesso como uma pelagem animal. As sombras do pórtico eram agudas e abruptas e Roth quase conseguia imaginar criaturas aladas voando naquela escuridão.
As janelas das empenas eram como olhos de soslaio, a grande porta da frente como uma bocarra cavernosa. Ele olhou do desenho para a casa e, apenas por um segundo,
tão pequeno que ele se convenceu de que estava imaginando coisas, a casa pareceu com o que ela havia desenhado, trêmula e latejante como uma criatura viva e rosnando.
- Que diabos, garota. - ele finalmente conseguiu proferir - De onde surgiu isso?
Ela olhou timidamente para baixo na direção de suas botas de caminhada. Quando ela deu de ombros, ele apenas reparou nos seios balançando. - Não sei dizer. - disse
ela - Apenas aconteceu.
Roth balançou a cabeça.
- Nunca fiz nada tão bom assim. - disse ela - Quero dizer, eu não sou mesmo boa nisso.
- Parece profissional, para mim.
- Não esse desenho. Eu sei que é bom. Mas não é por minha causa. É por causa da casa.
- A casa? - Roth pensou em como não conseguia se forçar a fotografar nada além da casa. E como se sentiu quase ao ponto de desfalecer quando estava andando na direção
da ponte. Pelo menos até o momento em que voltara a ver a casa novamente.
- É como se ela tivesse essa... energia. - disse Cris - Quando eu estava desenhando, o carvão praticamente parecia estar se movendo sozinho.
- Como sugestão hipnótica e essas bobagens? - ele bufou, mas então se arrependeu. Desprezo não era o caminho para o coração de uma mulher, ou para qualquer outra
parte dela.
O lábio de Cris se curvou. Ela fechou o caderno de desenho com força. O desenho assombrado e distorcido ainda se demorou na mente de Roth.
- Todos são críticos. - disse ela - Por que você não volta a pressionar esses pequenos botões de sua máquina?
Ela passou furiosa por ele, chutando as folhas. Roth observou-a caminhando na estrada em direção à casa. Ele moveu a tira que estava lhe machucando o pescoço e então
verificou a câmera empoleirada no tripé.
Que se vá!, pensou ele. O que me importa um desenho barato, mesmo? Artistas são um bando de idiotas, falando sobre "significados" e "espírito criativo" e coisas
sem sentido. Tudo se resumia a dinheiro, poder e sexo, e como garantir uma maior quantidade de cada um deles.
Ele apontou a câmera para o solar. Cris pulou sobre os degraus da entrada até a varanda.
Enquanto ela desaparecia na porta da frente, Roth não pôde deixar de lado o sentimento de que a casa a havia engolido inteira.
CAPÍTULO 20
A floresta parecia diferente à luz do dia. Seus limites eram mais arredondados, os galhos menos ameaçadores, as sombras sob as copas menos sólidas e sufocantes.
Anna aspirou o ar da tarde, sentindo-se viva e renovada. O Solar Korban e as montanhas estavam trazendo de volta seu apetite, fazendo-a esquecer-se da longa sombra
para qual o câncer a estava empurrando.
Ela tomou à direita na encruzilhada, lembrando-se do poema de Robert Frost sobre as estradas menos trilhadas, pois o caminho da direita era pouco mais que uma trilha
deixada pelos animais. Mas a trilha levava a um pequeno monte, um crânio macio de terra vestindo um chapéu de grama. No meio da clareira, ficava uma cerca quadrada
de ferro, dentro da qual se espalhavam lápides brancas e cinzas.
- Então é aqui que vocês mantêm os mortos. - disse ela para o céu.
Anna caminhou até a cerca e olhou para os lados, mas a floresta estava silenciosa. Esse não seria o primeiro cemitério no qual ela entraria sem permissão. Ela se
puxou pela cerca, segurando-se no motivo floral e nos ferros retorcidos, a fim de evitar ser empalada nas pontas afiadas.
Dois grandes monumentos de mármore, bonitos, apesar de desgastados pelo tempo, dominavam o cemitério. No primeiro lia-se Ephram Elijah Korban, 1859-1918. Chamado
cedo demais.
Ao lado desse, levemente menos ornado, lia-se simplesmente Margaret. Anna ajoelhou-se e pressionou a palma da mão sobre o jazigo de Ephram.
- Alguém em casa, Srta. Galloway?
Anna olhou para cima. A Srta. Mamie estava junto à cerca, de algum modo tendo cruzado vinte metros de terreno aberto sem que Anna percebesse.
- Só saí para dar uma caminhada e fiquei curiosa.
- Você sabe o que dizem sobre a curiosidade e o gato, não é mesmo? A maior parte de nossos hóspedes respeita os limites impostos pelas cercas.
- Você diz os hóspedes que andam, ou aqueles que flutuam?
A risada estridente da Srta. Mamie ecoou pelos monumentos. - Ah, essas histórias de fantasmas. Não pude resistir à aprovação de sua ficha de inscrição, sabe? Pesquisadora
paranormal. Era perfeito demais.
- É uma forma de arte tanto quanto pintura ou literatura. É tudo uma questão de busca, não é?
- Esperta. E exatamente o que você está procurando, Anna?
- Suponho que vá saber, quando encontrar.
- Pode-se apenas ter esperança. Ou talvez você não tenha que procurar. Talvez o que esteja procurando encontre você primeiro.
- Então você não se importaria comigo perambulando pelo seu cemitério? A Srta. Mamie olhou para o jazigo de Korban. - Sinta-se em casa.
- Obrigada.
- Mas não se atrase para o jantar. E tenha cuidado para não ser pega de surpresa pela noite. - A Srta. Mamie começou a se afastar, então falou: - Você é um daqueles,
não é?
- Daqueles o quê?
- Que as pessoas da montanha chamam de "dotados". Terceira visão. O poder de ver aquilo que as pessoas não conseguem.
- Não sou tão especial.
- Essas histórias de fantasmas são tão deliciosas. E boas para os negócios, também. Que artista, que se diz vivendo no limite, poderia deixar passar a chance de
vir para cá? Se você encontrar alguma coisa, me dirá, não é?
- Juro de coração.
- Não jure com tanta fé. Não ainda, pelo menos.
Anna olhou a mulher cruzar pela grama e entrar na floresta, então se voltou para as lápides que tinham escorregado pelo monte. Ela as explorou, lendo os nomes. Hartley,
Streater, Aldridge, McFall. Então, as lápides deram lugar a simples lajes, em alguns casos pedaços brutos de granito apontando para o céu como uma lembrança desamparada
de uma vida há muito esquecida.
Será que sua morte seria assim tão sem importância? Será que sua marca seria assim tão insignificante? Será que isso importava?
No limite das pedras espalhadas, onde a cerca encontrava-se com a floresta, uma lápide entalhada ficava à sombra de um velho cedro. Anna aproximou-se e leu "Rachel
Faye Hartley" no mármore. Um buquê de flores ornadas estava entalhado sobre o nome.
- Rachel Faye, Rachel Faye. - murmurou - Alguém deve tê-la amado.
E apesar de Rachel Faye Hartley ser apenas pó, Anna sentiu uma leve inveja dela.
CAPÍTULO 21
Sylvia observou da floresta até que a Srta. Mamie partiu. Anna parecia pequena e perdida no cemitério, conversando com as lápides, procurando fantasmas entre as
folhas das gramas. A garota possuía a Visão, isso era pacífico. Mas outra coisa certa era aquela aura negra à sua volta, agarrando-se à sua carne como um arco-íris
noturno .
Anna estava se preparando para morrer.
Sylvia ajeitou o xale à sua volta, segurando-o com a mão nodosa. A outra segurava seu bastão de caminhada, no qual ela se recostou descansando para sua jornada de
volta à Beechy Gap. Ela não saía muito nos dias de hoje, especialmente agora que os fantoches de Korban estavam soltos por aí. As coisas estavam ficando agitadas
e parte disso tinha a ver com a lua azul que se aproximava.
Outra parte tinha a ver com aquela garota no cemitério, aquela que ficara olhando por um tempo a lápide de Rachel Faye Hartley.
- Ocê vai se juntá a ela logo, logo. - disse Sylvia ao louro que a rodeava. - Se o Ephram deixar, quer dizê.
O sol estava mergulhando na hora que Anna pulou a cerca novamente, cheia de energia para uma pessoa tão doente. Anna não conhecia os caminhos antigos, era fraca
no poder dos encantamentos e coisas do estilo. A garota não entenderia o poder curativo das raízes, ossos de poder e modos especiais de se dizer certas coisas. Mas
talvez o dom estivesse apenas enterrado dentro dela e não perdido para sempre. Pois o sangue corria espesso, mais espesso que água. E a magia corria pelos túneis
da alma, como Ephram sempre dizia.
Mas Ephram era um mentiroso.
Tanto antes quanto depois de morrer.
Uma coruja piou, um som tão solitário quanto o vento numa noite de inverno. Sinal de morte, um piado durante o dia. Mas, nos últimos tempos, havia sinais de morte
em todo lugar, vindo a todo momento. Sylvia proferiu um encantamento de passagem segura e deslizou para dentro da floresta, apressando-se para casa da melhor forma
que conseguia, antes que o sol beijasse a borda das montanhas.
CAPÍTULO 22
- Querido?
Spence tamborilou nas teclas da máquina de escrever, fingindo não ouvi-la.
- Jeff? - Bridget colocou uma mão em seu ombro.
Ele parou de escrever e olhou-a. - Você sabe que não deve me incomodar quando estou trabalhando.
- Mas você nem veio para a cama à noite passada!
Ele odiava o tom lamentoso de sua voz, sua necessidade de agradar. Ele desprezava sua preocupação. Mais que tudo, estava incomodado com a distração.
- Espero que a máquina de escrever não a tenha mantido acordada. - Ele não se importava realmente. Estava fazendo progresso, na perseguição da Musa esquiva, e isso
era tudo o que importava.
- Não, não é isso. - disse Bridget - Você precisa descansar.
- Haverá tempo de sobra para descansar depois que eu estiver morto. No momento, me sinto particular e efusivamente vivo. Assim, seja gentil comigo e me deixe continuar.
- Mas você não almoçou. Isso não é do seu feitio.
Spence se perguntou se isso era algum tipo de alfinetada com relação ao seu peso, mas Bridget nunca o criticara. Ela não possuía a imaginação necessária para atacar
com palavras. Spence era o mestre reinante nesse contexto.
- Também não é do meu feitio interromper meu trabalho para ter uma conversinha romântica. - disse ele, e então esticou o som das vogais em seu sotaque estilo Ashley
Wilkes. - Agooraa, por que você não faaz como Scarlett e se peerde no ventoo?
- Não seja malvado, querido. Estou só tentando ajudar. Quero que você fique feliz e sei que só fica feliz quando está trabalhando em algum projeto.
- Então, deixe-me extasiado. - disse ele - Saia.
Um pequeno soluço surgiu na garganta de Bridget. Spence o ignorou, voltando sua atenção à página meio escrita e às outras trinta páginas empilhadas ao lado da máquina
de escrever. Ele faria alguma revisão, sabia disso, mas era um trabalho excelente. Seu melhor em muitos anos. E ele não queria que acabasse.
A porta se abriu e ele falou para Bridget sem nem olhar para trás. - Vejo você no jantar. - mentiu ele.
A porta se fechou suavemente. Spence riu para si. Ela não tivera autoestima suficiente para bater a porta com raiva. Ela se desculparia à noite, pensando que a pequena
cena fora sua culpa.
Ela era, de longe, uma das melhores conspurcações que Spence já engendrara, de todas as professoras casadas, jovens agentes literárias e editoras assistentes que
já haviam se apaixonado por ele. Mas, no final, elas não eram nada, apenas um saco de ossos sem significado, andaimes para lhe dar um alento enquanto estava solitário
e rabugento. Quando ele estava trabalhando, e trabalhando bem, não precisava do amor de ninguém, exceto o seu próprio.
- E o seu, claro. - Spence disse para o retrato de Korban, apesar da carranca de seu benfeitor. Spence pegou o manuscrito e começou a lê-lo. A graça da linguagem,
a estrutura frasal enxuta, as descrições poderosas, tudo estava soberbo. Nunca foi tímido sobre se cumprimentar por um bom trabalho, mas agora ele estava realmente
superando os seus limites literários. Ele os superaria todos, de Chaucer a King, passando por Keats.
Ele não questionava a origem das palavras. Esse era um mistério que ele preferia deixar para aqueles cuja subsistência derivava da vivissecção acadêmica das pequenas
humanidades. Mas ele nunca antes havia escrito com tanta facilidade como o tinha feito na noite passada e hoje.
Escrita automática. Era como ele sentia.
O que Spence sempre chamara, durante as raras ocasiões nas quais a pena fluía tão livremente, de "escrita fantasma". Como se o papel e a máquina de escrever estivessem
sugando as palavras do ar. Como se os dedos soubessem as próximas palavras antes de o cérebro as pensar. Como se nem estivessem lá.
Apropriado ao manuscrito, ser chamado de escrita fantasma, pensou ele. Tinha um toque gótico, algo mais escuro que a literatura sulista que fizera dele o queridinho
de Nova Iorque. E tinha esse protagonista, o homem belo, barbado e estranho cujo nome ele ainda não decidira. Isso era estranho, estar tão adiante no manuscrito
e ainda nem saber o nome do personagem principal.
Ele se pegou olhando, pela milésima vez, para a pintura de Korban, pendurada sobre a mesa. Então, fechou os olhos. Após um momento, continuou a escrita fantasma.
CAPÍTULO 23
- Você ouviu isso?
- Ouviu o quê?
- Um som de batida.
Adam forçou os ouvidos. Paul provavelmente estava sendo só paranoico. Ele saiu de fininho e fumou um baseado antes do jantar. Paul era duas coisas quando estava
chapado: paranoico e tarado.
- Provavelmente aquele escritor gordo currando aquela bisca no quarto abaixo do nosso. - disse Adam.
- Se for isso, eles devem ser o casal mais mal coordenado da história da humanidade. E o mais rápido também.
- Agora só quero pensar em nós. - disse Adam, descansando a cabeça no ombro de Paul. - Obrigado pelos momentos maravilhosos.
- Não, obrigado a você.
- E eu prometo não mencionar o tema da adoção por pelo menos uma semana.
- Você acabou de tocar no assunto.
Paul. - Esqueça que eu falei qualquer coisa.
Adam puxou as cobertas até o queixo e curvou o corpo contra o calor de Paul. Adam estava preocupado que tivesse problemas para dormir. A fazenda no topo da montanha
era muito silenciosa para um garoto da cidade e Adam nunca havia experimentado esse tipo de escuridão quase total.
- O que você acha de ligarmos o rádio escondido? - perguntou ele.
- Você trouxe as pilhas?
- Sim. Pensei que poderíamos querer um pouco de contato com o mundo exterior. O rádio está na minha mala.
- Vou ter que passar por cima de você para pegá-lo.
- Eu não mordo.
- Eu estou muito cansado, de qualquer forma. "Frescura", como diria aquele fotógrafo metido.
- Você bebeu vinho demais, só isso. E sabe como a maconha deixa você.
- Hoje foi por diversão. Amanhã, vou voltar a trabalhar.
Adam pegou o rádio, trouxe-o para a cama e o ligou. Ele girou o botão de sintonia, mudou de FM para AM, mas nada além de estática. - Acho que as ondas de rádio são
bloqueadas pelas montanhas.
- Ou as músicas pop são censuradas aqui para cima.
Eles deitaram por alguns instantes na escuridão. A casa estava parada e silenciosa. As brasas haviam diminuído na lareira e Adam não estava com vontade de pegar
um fósforo para acender a lamparina ao lado da mesa.
- Estive pensando. - disse Paul.
- Novidades de imprensa. Parem as impressoras.
Paul cutucou Adam nas costelas. Adam fez cócegas em resposta.
- Falando sério. - disse Paul - Estou pensando em fazer um documentário sobre esse lugar.
- Esse lugar?
- Solar Korban. É único, e poderia fazer algumas filmagens dramáticas. A história de Ephram Korban parece ser bem interessante, também. Um industrial com complexo
de Deus.
- Um documentário histórico?
- Algo no estilo.
- E todas essas filmagens que você já fez, todas essas semanas nos Adirondacks e Alleghenies?
- Vou deixar guardado. Posso usá-las a qualquer momento.
- Não sei, Paul. As pessoas que estão financiando você podem ficar irritadas. Afinal de contas, você assinou um contrato para um documentário sobre a natureza apalachiana.
- Ao diabo com esses comitês de custeio. Faço o que quero.
Paul estava forçando um pouco seu lado Orson Welles. Mesmo no escuro, Adam podia vê-lo fazendo o famoso beicinho.
E daí que Paul havia gasto meses filmando e ainda tivesse semanas de pós-produção, edição e script pela frente? Eram detalhes técnicos. Paul queria ser um artista,
o autor, o visionário imprudente, recusando teimosamente se vender.
Não importava o custo.
Mas Adam não estava com vontade de argumentar. Não depois dos momentos bons que tiveram.
- Por que você não dorme com a ideia na cabeça e amanhã conversamos mais sobre o assunto?
- Adam bateu de leve no bíceps bem desenvolvido de Paul. Carregar uma câmera de dez quilos e um cinto de baterias pelas montanhas durante todo o verão realmente
o haviam deixado em forma.
- Quero dizer, isso é como um mundo alienígena ou algo parecido. - disse Paul -Sem eletricidade, as pessoas vivendo como se fazia cem anos atrás. E os empregados,
todos ainda vivem aqui, como servos à volta de um castelo.
Adam estava escorregando para o sono, apesar da excitação de Paul. - Ahã. - murmurou.
Ele deve ter caído no sono, pois estava de pé sobre uma torre, o vento soprando pelos cabelos, árvores negras balançando abaixo dele...
Não, não era uma torre. Ele reconhecia o terreno à volta do solar. Ele estava no topo da casa, naquela área plana demarcada por um parapeito branco... - como era
mesmo que a empregada o havia chamado? Ah sim, balaustrada - ... e Adam se viu subindo sobre o parapeito, olhando para o caminho de pedras vinte metros abaixo, as
nuvens lhe dizendo para pular, empurrando... Então ele estava voando, caindo, o vento lhe balançando, porque...
- Adam! Acorde! - Paul estava balançando seu ombro. Paul havia sentado na cama, os cobertores à volta de sua cintura. Uma boa quantidade de tempo devia ter passado,
pois o luar entrava pela janela.
- O que foi? - Adam ainda estava embotado pelo sonho e pelas bebidas do jantar.
Paul apontou para a porta, seus olhos grandes e úmidos na penumbra. - Eu vi algo. Uma mulher, acho. Toda vestida de branco. Ela era branca.
- Isso são os Apalaches do sul, Paul. Aqui todo mundo é branco. - Adam afastou os fragmentos do pesadelo.
- Não, não era desse jeito. Dava para ver através dela.
Adam bufou sonolento. - Isso é o que acontece quando você fuma mato panamenho. É de surpreender que você não tenha visto o fantasma de J. Edgar Hoover vestido de
drag queen.
- Não estou brincando, Adam.
Adam colocou a mão no peito de Paul. O coração de seu namorado estava batendo forte.
- Volte para debaixo das cobertas. - disse Adam - Você deve ter adormecido e tido um pesadelo esquisito. Acho que tive um também.
Paul deitou de costas, a respiração rápida e curta. Adam abriu os olhos momentaneamente para ver que Paul estava olhando para o teto. - Sem bebidas ou maconha amanhã,
certo?
Houve um período de silêncio, um que alguém saturado do barulho de Nova Iorque pudesse realmente apreciar. Finalmente Paul disse: - Eu disse a você que andei trabalhando.
Adam conhecia aquele tom. Eles haviam discutido o suficiente para umas férias. Adoção, o vídeo de Paul, seu uso de drogas. E agora Paul estava vendo coisas. Adam
subitamente ponderou se sua relação sobreviveria a seis semanas no Solar Korban.
Ele virou de costas para Paul e se enterrou nos travesseiros.
- Ela segurava flores. - disse Paul.
CAPÍTULO 24
As mãos de Mason doíam. Serragem e cavacos estavam espalhados pelo chão à volta de seus pés. Farpas de madeira haviam penetrado pela parte de cima de seus tênis
e estavam machucando a pele à volta de seus tornozelos. Ele largou o formão e o maço sobre a mesa e se afastou para olhar a escultura.
Ele havia trabalhado com fervor, sem pensar sobre qual veio da madeira seguir, quais partes extirpar, onde cortar. Limpou a testa com a manga da camisa de flanela.
O recinto havia esquentado. As velas haviam derretido fazia muito tempo e o nível do óleo estava baixo na lamparina. Ele deve ter trabalhado por horas, mas a dor
em seus membros era a única prova da passagem do tempo.
Exceto pelo busto à sua frente, sobre a mesa.
Ele nunca havia tentado um busto antes. Aproximou a lamparina, examinando a escultura com olhos críticos. Ele não conseguia ver nenhuma falha, nada fora de proporção.
Mesmo as curvas das orelhas eram naturais e vivas, as sobrancelhas delicadamente entalhadas. A escultura era fiel ao seu objeto.
Fiel DEMAIS, pensou Mason. Estou muito longe de ter a capacidade de produzir algo assim. Tive alguns sucessos em minha caminhada. Mas isso... Jesus Cristo crucificado,
não poderia ter entalhado o rosto de Korban tão bem nem se conhecesse o cidadão.
Mas era a cabeça de Korban na mesa, o Korban que preenchia as imensas pinturas a óleo nos andares de cima, a mesma face que flutuava sobre a lareira no quarto de
Mason. O mais impressionante de tudo era que os olhos possuíam poder, do mesmo modo que nas pinturas. Isso era ridículo. Os olhos eram de bordo, madeira sem vida.
Ainda assim...
Era quase como se a figura tivesse vida. Como se a verdadeira forma da madeira sempre tivesse sido essa, como se o busto sempre tivesse existido e estivesse preso
dentro da árvore. O rosto esteve encarcerado e Mason apenas inserira a chave e abrira a porta.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. - Não tenho a mínima ideia de onde veio, - disse ele para o busto - mas você fará os críticos me amarem.
O amor dos críticos significava sucesso, e isso significava dinheiro. Sucesso significava que nunca mais teria que colocar os pés em outra fábrica enquanto vivesse,
ele não teria que assoar pedras cinzas do nariz a cada folga e não teria que esperar a sirene para lhe dizer quando ir ao banheiro ou comprar um chocolate ou correr
junto com os outros operários para o estacionamento na hora de ir embora. Claro, ele ainda tinha anos de entalhes pela frente, mas o sucesso começava com um primeiro
grande triunfo.
Ele já estava planejando encomendas corporativas, o trem de luxo dos artistas. Compraria uma casa para sua mãe, algum programa para auxiliá-la a ler, um computador
caro e, por fim, outros meios de compensá-la pelos anos de deficiência e trabalho duro. Melhor de tudo, ele poderia fazê-la sorrir.
Ou talvez ele tivesse sido sugado pela Imagem de Sonho, o pico de adrenalina que vinha após um trabalho ser terminado. Ainda tinha que tratar a madeira, passar a
lixa fina e fazer o polimento. Uma centena de coisas ainda podia dar errado. Mesmo seco como estava o bordo, depois de anos na floresta, a madeira poderia rachar
e quebrar.
Mason massageou o ombro. Suas roupas estavam úmidas de suor. O esgotamento que havia crescido sob a superfície agora se avolumou e quebrou como uma grande onda.
Apesar de estar cansado, estava muito agitado para dormir. Ele deu uma última olhada para o busto de Korban e então o cobriu com uma velha lona que estava jogada
em um canto.
Os primeiros raios vermelhos do amanhecer penetravam como lanças pelas janelas basculantes. A barba por fazer coçava no rosto de Mason. Em sua vida pregressa, estaria
já na terceira xícara de café, esperando na esquina o furgão para levá-lo ao trabalho. O começo de um novo dia era igual ao de outros mil.
Mason fez o caminho de volta para sair do porão, inclinando-se para passar por debaixo e vigas e desviando das mobílias. Ele finalmente encontrou as escadas e subiu
para o piso principal. O cheiro de ovos, bacon e biscoitos vinha em ondas da ala leste e o barulho de louças tilintou de um aposento distante. A barriga de Mason
rosnou. Um casal de velhos passou por ele no saguão de entrada, o vapor subindo das xícaras de café. Eles lhe cumprimentaram de modo cauteloso. Mason deu-se conta,
então, de que provavelmente estava com uma aparência suja e cansada, como um fugitivo lunático que arrombara um consultório médico.
Quando Mason chegou a seu quarto, olhou novamente para a pintura de Korban, maravilhando-se com o quanto sua escultura se parecia com a figura sisuda da pintura.
Mas o rosto parecia menos sisudo nessa manhã. E os olhos tinham adquirido mais brilho...
Não seja tão IDIOTA, ele se repreendeu com o sotaque de William Roth.
Mason tomou um longo banho quente e depois deitou-se na cama, enquanto o amanhecer se insinuava pelas frestas da cortina. Com a visão cansada de sua mente, ele viu
primeiro o rosto de Korban, que lentamente se dissolveu, mostrando o rosto de Anna. Então, sua mãe, as feições cansadas, ainda mais tristes pela luz patética de
esperança que, de algum modo, ainda brilhava em seus olhos. Ransom, segurando seu patuá. Korban, as pupilas negras guardando segredos escusos. Anna, suave e vulnerável,
abrigando seus próprios segredos.
Korban. Sua mãe. O busto. Anna.
A Srta. Mamie. Ransom.
KorbanAnnaSrta.MamieAnnaKorban. Anna.
Ele decidiu que gostava mais do rosto de Anna e pensou nela até adormecer e sonhar com madeira.
CAPÍTULO 25
Anna acordou antes que o primeiro canto do galo quebrasse o silêncio negro. Do outro lado do quarto, Cris rolava em seu sono. A escuridão atrás dos olhos fechados
de Anna não era tão completa quanto a escuridão dentro do quarto. Lampejos de azul e vermelho brilharam por dentro de suas pálpebras.
Ela vestiu seu roupão e foi ao banheiro. O encanamento antigo se utilizava de gravidade para funcionar a descarga e a pressão da água era inconsistente, apesar do
aquecimento central garantir bastante água quente. Ela acendeu uma lamparina dourada antes de desligar sua lanterna e então entrou no chuveiro e abriu as torneiras.
Sob o surdo tamborilar da água, ela esqueceu a dor na barriga. Ela não havia sonhado na noite passada, apesar das perguntas terem rodopiado loucamente enquanto escorregava
para o sono.
Onde estava seu fantasma? Quem era Rachel Faye Hartley? Por que a Srta. Mamie era tão curiosa a respeito de seu "dom"? Quanto tempo restante ela tinha? O que aconteceria
quando esse tempo acabasse?
E a maior de todas: alguém daria a mínima?
Ela abriu a cortina do chuveiro e se envolveu na toalha. O banheiro havia esfriado e, com o chuveiro desligado, o vapor desprendia-se pesado de sua pele. Ele cobriu
o espelho sobre a pia e, apesar de não estar com vontade de cobrir as olheiras que formavam-se abaixo de seus olhos, ela queria ter certeza de que poderia passar
por forte e animada.
Ela estava para pegar a toalha de rosto a fim de secar o espelho quando o banheiro ficou ainda mais frio, como se um vento tivesse penetrado uma fresta sob a porta.
Sua face embaçada no espelho espirava vapor.
Então, a água acumulada no espelho começou a escorrer em veios e Anna não conseguia acreditar em seus olhos. Porque mesmo alguém que via fantasmas não via coisas
desse tipo.
Letras se formaram, como que desenhadas pela ponta de um dedo invisível, os símbolos prateados na luz suave da lamparina: "V-Á".
Ela viu os próprios olhos arregalados refletidos na palavra, enquanto um segundo conjunto de letras se formou na superfície do espelho: "F-O-R-A".
- Vá fora? - Anna sussurrou, a mente agora transformando os símbolos em palavras.
Seria isso um tipo de mensagem? De quem? Vá para fora do quê? Será que alguma coisa a queria fora da casa?
Mas outra palavra estava se formando, enquanto o vapor ameaçava se transformar em gelo e o tremor começava a se instalar em sua pele.
"C-O-N-G-E-L-A-R" logo acima da borda do espelho.
Anna lutou para respirar, os pulmões parecendo duas pedras congeladas. Então as letras ficaram borradas, o vapor frio se acumulou, escorreu espelho abaixo e as palavras
se foram.
- Vá fora congelar. - disse Anna.
Ela se secou rapidamente e voltou apressada para o quarto para avivar o fogo.
CAPÍTULO 26
- Vai ficar lindo.
A Srta. Mamie olhava amorosamente o busto que Mason havia entalhado. O escultor tinha talento. Ephram havia escolhido sabiamente. Mas Ephram sempre escolhia bem,
no amor, na vida e agora na morte.
- O Sr. Jackson trabalhou até tarde da noite. - disse Lilith segurando a lamparina alto para que a luz iluminasse todas as feições conhecidas de Korban. - Ele não
descerá aqui por um tempo.
A Srta. Mamie sentia tanta vontade de acariciar o rosto de Korban que isso lhe doía, mas ela não ousava drenar nada de sua energia. Ela era de Ephram. Ela o tocaria
novamente e logo. A lua azul estava apenas a duas noites no tempo.
Lilith foi para o canto do estúdio e levantou a pintura a óleo. - Essa era minha favorita. - disse ela.
- Largue isso. Acabou seu tempo de pintar. E o dele também. Coloque-se em seu lugar.
Lilith retornou a pintura para as sombras. Lilith era apenas outra empregada, outra ferramenta para construir a ponte de Ephram para esse mundo. Mas o espírito de
Lilith ainda pairava no ar, um eco distante de sonhos que ela havia criado, sonhos que alimentavam Ephram e mantinham sua alma adormecida. Ela era como os outros,
faminta demais por seu próprio retorno, obcecada demais pela própria fuga.
Ela não sabia que nunca escaparia.
- Você pode ir agora. - disse a Srta. Mamie - Ajude com o almoço. Irei logo em seguida.
Lilith deu outro olhar perdido para a pintura.
Como se ela alguma vez tivesse sido uma artista tão talentosa quanto Ephram.
Ah, Lilith tinha tentado, fizera sacrifícios, mas estava apenas aprendendo o básico quando se afogara na lagoa atrás do celeiro. O seu túnel espiritual sempre a
levava lá, para aquele porão escuro onde uma vez ela ousara criar.
Lilith subiu as escadas e fechou a porta do porão. Estavam a sós.
- Ah, Ephram. - disse a Srta. Mamie para o busto - É melhor do que qualquer coisa que eu tenha imaginado.
O carvalho flexionou e se esticou, os olhos piscaram entre as pálpebras de madeira. Então os lábios se abriram. - Sim. O encaixe é muito bom.
Ela se agachou de forma que seus olhos estivessem no mesmo nível. Ela tocou o rosto áspero e correu a mão pela barba entalhada.
- Está funcionando. - sussurrou ela - Bem do jeito que você disse.
A sobrancelha rígida se elevou. - Demorará um tempo para eu me acostumar. Logo, Margaret, meu amor, terei braços para abraçar você novamente. Mãos com as quais pintar,
olhos para novamente ver o mundo, pernas para caminhar a seu lado. Mas o escultor deve trabalhar mais arduamente. Tem que estar pronto a tempo.
- Farei com que comece essa noite. - Ela ficou pensando como seriam os braços quando Mason Jackson terminasse a estátua em tamanho real. Talvez eles ficassem rústicos
e desajeitados.
Mas revestir-se de madeira com certeza seria melhor que ficar confinado à pedra dura, às paredes sem vida e à grama fria do solar. Ephram depois poderia utilizar
sua magia para suavizar a madeira, domá-la, torná-la macia.
Seu poder estava aumentando conforme a lua azul se aproximava. Ela podia sentir nos ossos, como se ele fosse um leito de brasas pronto para explodir em labaredas.
Ele estava convocando seus servos, aqueles que haviam morrido sob sua magia, aqueles que temiam as coisas escuras e serpenteantes existentes nos túneis de suas almas.
Ele devorava seus sonhos e os alimentava com medo. E ela havia ajudado entalhando seus bonecos, escondidos naquela velha cabana em Beechy Gap, de forma que suas
almas nunca poderiam deixar a montanha.
- Logo. - disse a Srta. Mamie, a palavra como uma longa e dolorida promessa.
Isso era o fim de décadas de espera, de ações negras e morte, de armações, roubos e escravidão. O tempo não era nada para Ephram, mas a Srta. Mamie ainda se agarrava
à impaciência da mortalidade. Possessões funcionavam em ambas as direções, o cabo puxando igualmente forte nos vivos e nos mortos.
Os lábios de madeira de Ephram se juntaram e então se esticaram em um sorriso. - Deixar as paredes me deixa fraco.
- Você será inteiro novamente. Só mais duas noites.
- E Anna?
- Ela está fraca. Morrendo.
- Ah. Bons sonhos.
O busto sorriu, os olhos fechados, a fronte cerrada em concentração. - Faça com que ele me termine. - disse Ephram, com esforço.
- O Sr. Jackson tem paixão. - disse a Srta. Mamie - Ele o ama, o adora, quer lhe agradar.
- Ele adora apenas a carne de seu trabalho. Seu espírito é meu.
- Todos pertencemos a você. Todos sonhamos com você.
- Como deveriam.
- E quando você atrair Sylvia para o solar -
- Você não deve mencionar o nome dela. - Os olhos no busto se abriram, brilhando com tons de laranja e vermelho. Ela se encolheu, esperando que Ephram a punisse,
que lhe devolvesse os anos todos, roubasse o dom da juventude. Ela ajoelhou-se, a cabeça baixa, lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Você sabe por que eu nunca a levei pelo túnel de sua alma? - disse Ephram, a voz fria, morta há muito tempo e quase fatigada.
A Srta. Mamie enxugou os olhos e fungou com esperança. - Por que você me ama?
Esse era o único sonho que valia a pena ter, o único que sobreviveria após a morte. O amor os absolveria do mal, faria com que as mortes, os truques espirituais
e a tortura de coisas mortas valessem a pena e fosse um ato nobre. O amor perdoaria o que Deus não perdoa.
A risada de Ephram foi áspera e abrupta, preenchendo o ar parado do porão. Ela olhou dentro dos olhos quentes e cruéis.
- Não, não, não. - disse ele, mais confortável agora dentro da madeira, penetrando os ângulos, fendas e espaços entalhados até que ela se tornou seu rosto. - Eu
a poupei porque preciso de você. Você é a única pessoa que nunca me trairia.
Sylvia o havia traído, apesar de a Srta. Mamie não querer lembrá-lo disso. Sua ira contra Sylvia poderia se voltar contra ela novamente, como geralmente acontecia.
Mas a Srta. Mamie poderia saber o que o incomodava se fizesse as perguntas corretas.
- Eu tenho que saber. - disse ela, sem ar, o estúdio sufocando-a - Você me ama mais que tudo?
O busto suspirou. A Srta. Mamie pensou se um homem morto seria capaz de mentir. Não, não Ephram. Ele nunca mentira e sempre cumprira suas promessas.
- Margaret, existe apenas você. Para sempre. Por que acha que fiquei aqui, acorrentado a essa casa com você?
Se apenas ela pudesse ter certeza. Mas um lar de amor não podia ser construído sobre alicerces de dúvida. - Então por que você manteve Sylvia viva, também?
O silêncio preencheu o porão, as sombras esperando impacientemente nos limites da luz que a lamparina fornecia. Ela apenas ousou desafiá-lo porque sabia, com a lua
azul aproximando-se, que Ephram precisava dela mais que nunca. E ela queria que ambos se possuíssem, mente, corpo e espírito. Sem segredos.
- Eu a mantive velha. - disse Ephram - E nunca a trouxe para dentro de meu coração. Existe apenas espaço para você aqui, dentro de mim, em meu lado morto. E logo,
quando possuir pernas, caminharemos lado a lado, juntos.
A Srta. Mamie secou as lágrimas. Como poderia ter duvidado dele?
Ela não pôde evitar, se inclinou para frente, manteve seu rosto encostado à madeira, encostou a pele contra os lábios incandescentes de seu amante.
Então, ele se foi, de volta para as paredes onde o fogo poderia aquecer sua alma.
CAPÍTULO 27
Mason acordou a tempo de perder o almoço. Em sua boca, parecia que tinha uma meia suja entalada. Alguém havia alimentado o fogo enquanto ele dormia. Ele vestiu sua
outra calça jeans e uma camisa de flanela vermelha. Ele pensou na escultura enquanto escovava os dentes, pensando se realmente a terminara em uma única noite.
Ele estudou o reflexo no espelho do banheiro. Olheiras escuras envolviam seus olhos. Não estava acostumado a trabalhar em horários estranhos. Ele geralmente seguia
a teoria de trabalho do "devagar e sempre", e nunca antes fora varrido por uma tormenta criativa como aquela que dera origem ao busto. Não admira que os chamados
"verdadeiros visionários" tenham queimado e se partido tão jovens.
- Ah sim, sou um verdadeiro visionário, com certeza. - disse para seu reflexo turvo. - Duplamente visionário.
O reflexo brilhou um pouco e ele esfregou os olhos. Uma onda de tontura o acometeu e ele tentou se equilibrar. Uma mão segurou a pia e a outra pressionou o espelho.
O vidro era quente sob sua palma. Por um breve momento, Mason viu o busto que havia esculpido em vez de seu próprio reflexo e, então, a alucinação passou. Franziu
o cenho e jogou água no rosto. Já era ruim o suficiente ver o rosto de Korban em todas as telas à volta, mas se o desgraçado fosse ficar flutuando para sempre diante
de seus olhos, então talvez Mason precisasse de uma pausa. Ou um psicólogo.
Os andares acima estavam quietos. Descendo pelas escadas, ouviu os barulhos crescentes daquilo que ele cogitou ser a cozinha. Empregadas carregavam a comida pela
porta para a saída à esquerda das escadas. Ele se perguntou se alguém se importaria se ele desse uma entradinha para comer.
Mason colocou a cabeça pela porta basculante. Uma mulher gorda e severa lutava com uma frigideira de ferro fundido junto à pia, algumas bolhas de sabão presas à
bochecha.
- Olá! - chamou Mason - Está tudo bem se eu roubar um sanduíche?
Ela o encarou enfurecida. Ele olhou por sobre o ombro e viu-a acenando rapidamente para um balcão ao lado do fogão. Um pão feito em casa encontrava-se sobre uma
tábua, três ou quatro fatias empilhadas ao lado.
A maior parte do almoço havia sido limpo, mas o odor de truta frita ainda flutuava pelo ar. Mason passou por um longo fogão com grades metálicas. Havia uma porta
de cada lado para estocar lenha e uma grande abertura no meio para o forno. Um fogão menor ficava ao canto, os encanamentos saindo para cima e dobrando-se pela parede.
Mason ficou maravilhado com o pensamento de alguém cozinhando com esses utensílios primitivos, que dirá criar as refeições suntuosas servidas para os hóspedes pomposos
do solar.
Mason pegou duas fatias de pão. - Algo para colocar no meio delas?
A cozinheira o olhou ameaçadoramente e limpou a faca de açougueiro com seu pano de pratos. - Ali, na caixa de gelo. - ela disse, com um sotaque bávaro, apontando
a faca na direção do que parecia ser uma cômoda atarracada com portas, em vez de gavetas.
Mason abriu uma das portas e sentiu uma lufada de ar frio. Nas prateleiras de metal, estavam alguns ovos em um cesto, uma grossa roda de queijo, um pote com creme,
um pedaço de presunto com osso e algumas frutas e vegetais. Um bloco de gelo assentava-se na prateleira mais alta, seus cantos arredondados pelo derretimento. A
água pingava dentro de uma bandeja ao fundo da caixa de gelo.
Mason tirou o queijo e o presunto, colocou-os sobre o balcão e pegou uma pequena faca de um suporte de madeira. Cortou algumas fatias de cada um deles e os colocou
sobre uma fatia de pão. Ele podia sentir os olhos da cozinheira em suas costas.
- Não se preocupe, vou limpar tudo depois. - O sorriso de Mason não evocou nenhuma mudança em seus olhos duros. Ele pegou algumas folhas de alface, adicionou-as
ao sanduíche, colocou outra fatia de pão e amassou tudo.
- É assim que fazemos em Sawyer Creek. - disse ele, dando uma mordida.
A cozinheira franziu o cenho e voltou aos pratos sujos. Foi aí que Mason viu a pintura na parede, sobre a porta. Outro retrato de Korban. Esse era pintado em sombras
profundas, os olhos frios como nos outros retratos. Será que havia algum cômodo da casa que não tivesse o olhar severo desse homem implacável?
Uma cafeteira estava sobre o fogão menor. Algumas canecas de café penduradas em ganchos em um suporte junto da pia. Mason caminhou à volta do balcão e estendeu a
mão para pegar uma.
- Com licença. - disse ele, quando a cozinheira estremeceu. Mason perdeu o equilíbrio, ainda tonto com o sono fora de hora. Ele tirou a mão para evitar cair por
cima dela.
Quando ele a tocou no ombro, ela deu um grito e deixou cair o prato, que se partiu no chão. Mason deu um passo para trás e olhou para a mão.
Não. Isso não pode ter acontecido.
A porta se abriu e a Srta. Mamie entrou na cozinha, o rosto contorcido em desaprovação.
- Desculpe, foi minha culpa. - disse Mason. Ele estava para mencionar que ficaria feliz em pagar pelo prato quando se lembrou de que não possuía dinheiro.
- Gertrude? - disse a Srta. Mamie. Seus olhos pareceram ficar ainda mais escuros enquanto a face da cozinheira ficava pálida. A cozinheira olhou para o retrato de
Korban sobre a pia.
- Não, de verdade, fui eu. - disse Mason - Eu estava pegando uma xícara...
- Hóspedes geralmente não são permitidos na área da cozinha, Sr. Jackson, por razões que, tenho certeza, o senhor entenderá.
- Ah, claro. Eu estava de saída. - Ele pegou o sanduíche e caminhou para a porta.
- De volta ao trabalho agora, Gertrude. - disse a Srta. Mamie. A cozinheira imediatamente afundou os braços na água ensaboada com os pratos, assustada demais para
parar e varrer os fragmentos de cerâmica espalhados pelo chão.
A Srta. Mamie manteve a porta aberta para que Mason pudesse passar e o seguiu para o saguão de entrada. - Está gostando de seu trabalho no porão? - perguntou ela,
mais uma vez sorridente, como se o incidente na cozinha nunca tivesse acontecido.
- É perfeito. - disse Mason, continuando pelo saguão, ainda desconfortável. - É bem privado e com espaço suficiente para que eu possa usar as ferramentas. E as paredes
possuem isolamento suficiente para que eu possa trabalhar sem incomodar ninguém.
- Encantador. - disse ela - Mestre Korban ficaria satisfeito.
- Fica calor demais aqui embaixo, algumas vezes.
- Bem, temos que manter o fogo central aceso. Nós nos orgulhamos de ter água quente vinte e quatro horas por dia.
- Claro, compreendo. Não é intolerável ou algo assim. A pior parte é ficar suado e cheirando mal, eu não gostaria de espantar seus hóspedes.
- É para isso que temos água quente, Sr. Jackson.
Mason chegou à porta do porão. Ele tinha que descer e ver se realmente havia esculpido o busto de Korban ou se a noite anterior havia sido um sonho. Ele se perguntou
se a Srta. Mamie o seguiria.
- Bem, vejo você no jantar, acho. - disse ele, esperando junto à porta.
Ela colocou uma mão fria em seu braço. - Você receberá mais madeira essa noite, não é? Ransom já pegou a carroça.
- Bem, tenho que terminar algo antes.
- Ah, pensei que você faria uma escultura em tamanho real.
Mason vasculhou a memória. Será que ele tinha mencionado algo assim? Uma figura humana? Ele sequer havia pensado sobre isso? Talvez suas fantasias estivessem ficando
tão agigantadas que ele estava falando bobagens sobre elas antes de sequer começar a esculpir.
- Sim, estava pensando em algo nesse estilo. - disse ele.
- Você será bem-sucedido, mas deverá ter a energia certa para isso acontecer. Mestre Korban sempre disse que o trabalho árduo é a própria recompensa. Você sabe o
que dizem sobre mãos sem trabalho.
Mason ergueu a mão que não estava segurando o sanduíche. - Bem, melhor eu trabalhar, então. A Srta. Mamie deixou escapar um olhar de expectativa enquanto ele abria
a porta. Mason não gostaria de mostrar seu trabalho para ninguém até que tivesse certeza de tê-lo acabado.
- Vou falar com Ransom sobre a madeira. - disse, entrando pela porta. Ele a fechou atrás de si, tateando no escuro. Quando finalmente conseguiu descer os degraus,
seus olhos haviam se ajustado à penumbra deixada pelas pequenas janelas, altas na parede.
Ele chegou à bancada e levantou o pano. Da mesa, Korban olhou-o direto nos olhos. Não, não Korban. Apenas uma réplica bem detalhada.
Mas apenas por um momento...
Calma, rapaz. Você está com o sono atrasado, só isso.
Então Mason olhou para sua mão, lembrando-se de como a havia sentido quando tocara na cozinheira. Quando havia passado através da cozinheira.
Lembrando-se de como sua mão havia mergulhado na carne dela, como se ela fosse feita de pão encharcado. Lembrando-se de como sua mão havia queimado.
Certo, então você está com mais problemas que simplesmente a falta de sono. Você com certeza bateu na cabeça com o maço, à noite passada.
Talvez a fome fosse a culpada. Ele deu outra mordida no sanduíche.
Sim, fome. Era melhor ele engordar durante sua estadia. Talvez os dias à frente fossem magros. A não ser que ele conseguisse continuar produzindo coisas como isso.
A escultura era a prova sólida de sua habilidade. Detalhes finos e vívidos. Cada pálpebra bem definida. Os lábios posicionados em um sorriso irônico entre o bigode
e a barba, prontos para se abrir e iniciar uma conversa. Mesmo quando ele se virou, sentiu como se os olhos o estivessem seguindo.
Ele achou uma velha vassoura e varreu as aparas de madeira para um canto. Então, ele viu a velha pintura onde a havia deixado, de encontro ao armário. Ele havia
esquecido de perguntar a respeito dela para a Srta. Mamie.
Mason pegou a pintura da paisagem com a casa, segurando-a no alto para poder admirar as pinceladas à luz do dia. Sim, linda, se apenas o artista houvesse consertado
aquele pequeno borrão.
O borrão havia aumentando, desde a noite anterior. A área cinza havia crescido a ponto de cobrir dois pilares da balaustrada.
Deve ter sido uma falha na pintura. Mas Mason nunca ouvira falar de uma pintura se deteriorando tão rapidamente. Apesar de completamente seca, a pintura era tudo,
menos antiga.
Ou talvez fosse apenas sua imaginação.
O incrível borrão que aumentava, Ransom e seus patuás, Anna e suas visões de fantasmas, a esquisita Lilith, a cozinheira incorpórea. Claro, ele poderia colocar a
culpa de todas aquelas coisas na sua imaginação. Mas é como dizem, melhor culpar alguém que a si próprio.
Estresse.
Porque era isso, o último grande brado de guerra, a bolada toda, a última cartada, o passo final. O último grande sonho. Porque se ele não produzisse algo aqui,
era de volta para a fábrica de tecidos, provavelmente para sempre.
E ISSO deixaria Mama orgulhosa, não é mesmo? Após todo seu sacrifício.
Mason terminou o sanduíche, mesmo tendo perdido o apetite. Esse busto poderia não ser sua obra-prima. A Srta. Mamie estava certa: maior era melhor.
CAPÍTULO 28
- Fez alguma filmagem hoje pela manhã? - Adam encostou-se na escrivaninha e cruzou os braços.
Paul colocou a câmera de lado. - Tenho que economizar as baterias. Tenho só quatro agora. Isso me dá umas oito horas de rodagem. E não há como recarregá-las por
aqui.
Adam observou Paul guardar o equipamento no closet. Seu companheiro tinha um corpo bonito, ele tinha que admitir. Mas Adam algumas vezes se perguntava se a relação
tinha sido construída com base em algo mais que simplesmente a atração física. Paul gostava da Times Square e o lugar dava arrepios em Adam. Paul gostava de cafeterias
e festas, enquanto Adam gostava de se enrodilhar em um sofá com um bom livro. No fundo, Paul era MTV tarde da noite e Adam um VH-1 de final de semana.
E ainda havia a questão da adoção. Adam estava pronto para criar um filho, para compartilhar o amor de seu coração. Ele tinha dinheiro de sobra de sua herança, o
suficiente para pagar as taxas de adoção aos advogados, o suficiente para os tribunais ficarem satisfeitos que Adam possuía as qualidades parentais desejáveis: poderia
comprar qualquer brinquedo obscenamente caro para o natal, para que a criança não se sentisse um pária, esnobado pelos amigos e eternamente desprezado pelos comerciais.
Adam estava com receio de que, em alguma parte escondida de si, ele apenas quisesse a criança para prender Paul. Seu amante era um espírito livre e o havia magoado
sem saber, viajando com um homem mais velho em um cruzeiro antes de Adam ter coragem e abrir seu coração. Paul havia sido fiel desde então, mas Adam pensava que
a tentação certa ainda não havia aparecido. Na verdade, pensava que isso nem poderia ser chamado de fidelidade, até que isso tudo sobrevivesse a um teste.
- O que você quer fazer à noite? - perguntou Paul. - Descer para umas bebidas?
- Você poderia ter me encontrado para almoçar.
- Olhe, não temos que passar cada maldito minuto juntos, temos?
Adam não respondeu, pois algo se moveu no espelho, um tremor lançado pela lareira.
- O que há de errado? - disse Paul.
Adam esfregou os olhos. - Nada. Estou só um pouco esquisito, acho.
Paul sorriu. - Ah sim. Talvez você tenha visto a mulher vestida de branco. E você pensou que eu estivesse mentindo.
- Muitas coisas esquisitas estão acontecendo. Acabei de ver...
- Viu o quê?
- Não sei dizer. Só o reflexo da pintura. Sinto como se... como se tudo estivesse ficando fora de controle. Quero dizer, estamos brigando o tempo todo e eu devo
me preocupar com seu vídeo idiota e você não liga a mínima para o que digo. E esse lugar está me deixando nervoso.
- Deixa disso, é só nosso terceiro dia aqui.
- E esses problemas vão simplesmente desaparecer?
O rosto de Paul se fechou de raiva. - Eu não tenho tempo para isso agora. Para falar a verdade, eu nunca tenho tempo para essas discussões sem sentido. Tudo o que
você quer fazer é andar em círculos.
- Olha só, eu não ligo de pagar por essas férias, mas pensei que você trabalharia em seu projeto -
- Ah, lá vamos nós com essa besteira de novo! Você e seu dinheiro.
Adam estava à beira das lágrimas. Paul desprezava lágrimas e diria que Adam estava sendo apenas uma mocinha sensível. E diria isso com um ar de superioridade de
alguém cujas emoções estão sempre sob controle. Exceto a raiva.
- Ô, princesa. - disse Paul, vindo até ele e o abraçando. - Alguém deixou você nervosa? Você precisa de outra transa para não ficar chateada?
- Vá embora. - Adam tirou os braços de Paul de sua cintura. - Seu desgraçado.
A visão de Adam turvou-se de raiva. Isso era loucura. Ele nunca perdia o controle desse jeito.
- Certo, princesa. - disse Paul - Não me espere.
Adam sentou-se na cama depois de a porta bater. Ele gostaria de nunca ter vindo ao Solar Korban. Levantou-se e segurou o poste da cama com força, separando as camas
de solteiro. Quando ele as tinha colocado uma em cada canto do quarto, levantou os olhos e olhou para a pintura de Korban,
- Paul pode ficar com a mulher de branco e eu fico com você. O fogo rugiu em aprovação.
CAPÍTULO 29
Os cavalos eram belos e esguios, os músculos se movendo com graça. Não era surpresa serem os animais preferidos de Anna. Uma vez, antes do laudo fatal do oncologista,
ela havia sonhado em ter um estábulo e criar cavalos. Mas esse sonho era agora fugaz e irreal como todos os outros, não importa se o sonho fosse o Solar Korban,
Stephen ou seu próprio fantasma.
Ela ouviu uma melodia assoviada, que pareceu ser "Yankee Doodle" e se virou para ver Mason caminhando pela estrada na direção do celeiro. Ele acenou e parou ao lado
dela na cerca, olhando as pastagens como se observasse um filme projetado contra as montanhas distantes.
- Então, como está indo a caçada aos fantasmas? - perguntou ele.
Ela não precisava disso. Stephen era ruim o suficiente, mas pelo menos acreditava em fantasmas, apesar dos seus serem leituras de energia em vez de almas. Mason
era apenas um otário egoísta, provavelmente um ateu cego, convencido a ponto de pensar que nada existia após a respiração cessar. Ateus eram mais proselitistas e
presunçosos que qualquer cristão que Anna tenha encontrado.
- Sabe de uma coisa? - disse ela. - Pessoas como você merecem ser assombradas. Mason abriu os braços em rendição magoada. - O que foi que eu disse?
- Você não precisa dizer em palavras. Seus olhos dizem o suficiente. Eles dizem "Que maluca adorável. Ela é fácil de se deixar impressionar pelo grande artista que
sou e é apenas uma questão de tempo até que ela caia na minha cama".
- Você deve ter me confundido com William Roth.
- Desculpe-me. - disse ela, sabendo que estava descarregando sua raiva e frustração em um transeunte relativamente inocente. Mas ninguém era completamente inocente.
- Estou apenas um pouco fora de mim nesse momento.
- Quer falar sobre isso?
- Claro. Como se você fosse entender.
- Olha só, eu vejo você dando longas caminhadas, bisbilhotando por aí com sua lanterna. Então você gosta de ficar sozinha. Tudo bem, eu também. Mas se coisas estranhas
estão acontecendo comigo, elas provavelmente também estão acontecendo com você. Talvez até coisas piores, porque nem morto eu iria lá no escuro. - Mason indicou
a floresta que, mesmo com a explosão de cores outonais, parecia produzir sombras agudas e ameaçadoras.
- De que coisas estranhas você está falando? Pensei que era cético.
- Ah. Notei que havia aguçado sua curiosidade científica, pelo menos. Você viu George por aí?
- George?
Mason chegou mais perto, baixando a voz como se quisesse evitar qualquer bisbilhotice. - Quanto tempo alguém tem que estar morto antes de virar um fantasma?
Anna olhou para o Solar Korban através das árvores, para a balaustrada com seu parapeito fino, onde a figura de seu sonho ficava de pé sob o luar. - Talvez isso
possa acontecer mesmo antes de a pessoa morrer.
- Certo. Que tal essa? Você pode ser assombrado por algo dentro da sua cabeça? Porque estou vendo Ephram Korban toda vez que fecho os olhos, o vejo no espelho, o
vejo na lareira, minhas mãos entalham seu maldito rosto mesmo quando quero trabalhar em algo diferente.
- Acho que os psicólogos chamam isso de "transtorno obsessivo-compulsivo". Mas isso descreve todos os artistas que conheço. E talvez noventa por cento de todos os
homens.
- Ei, não somos todos babacas! E espero sinceramente que você não tente massacrar todo mundo que tiver um sonho. Alguns artistas são pessoas normais que fazem coisas
simplesmente porque não sabem se comunicar com as outras pessoas.
- E alguns de nós são tão normais que procuram uma prova de vida após a morte porque essa vida é uma droga de tantas formas diferentes e porque os humanos sempre
nos desapontam. Fantasmas são mais fáceis de acreditar que a maioria das pessoas que já encontrei.
- Empate, então. Obviamente nós dois somos completamente malucos. Por um segundo eu pensei que não teríamos nada em comum.
Aquilo trouxe um sorriso pouco familiar aos lábios de Anna. - Tudo bem. Vamos começar de novo. Acho que você ouviu as histórias de fantasmas. Sobre como Ephram Korban
pulou para a morte da balaustrada do telhado, apesar de que as melhores lendas dizem que foi um de seus empregados que o empurrou pelas razões de sempre.
- E que razões seriam essas?
- Amor correspondido e não correspondido. Por que mais alguém tentaria matar outra pessoa? E, de acordo com as fofocas e mesmo alguns artigos de parapsicologia,
o espírito de Korban vagueia por essas terras, tentando achar um jeito de voltar para o solar no qual investiu tanto de seu tempo, dinheiro e energia.
- Você não acredita nisso, não é?
A manada de cavalos ouviu um chamado do celeiro e partiu galopando. - Gostaria de ser assim tão livre. - disse ela - Talvez eu volte como um cavalo na próxima vida.
- O lado ruim disso é que você tem que morrer primeiro. Como Ephram Korban.
- Bem, ele possui uma sepultura logo após aquela colina, mas isso não é mais que um buraco no chão. Não vi seu fantasma.
- Você realmente acredita que existem fantasmas aqui?
- Sei que existem. Quando o fogo de sua vida se apaga, você deixa um pouco de fumaça atrás de si. E não me peça para provar isso ou você me lembrará alguém que passei
o último ano tentando esquecer.
- Vou acreditar em você. Talvez eu peça a Ransom para me emprestar um de seus patuás. Dizem que isso mantém os espíritos inquietos à distância.
- Mal não fará. - disse Anna - Vou até o celeiro. Gostaria de me acompanhar?
- Estou indo para lá, de qualquer forma. A Srta. Mamie exigiu que Ransom me ajudasse a trazer um tronco grande para que eu possa esculpir uma estátua de tamanho
real.
- Ah, pobres artistas sofredores. Sempre tendo que agradar os críticos.
- Ah, pobres críticos, sempre tendo que inventar grandes frases cínicas.
Quando chegaram ao celeiro, Ransom havia levado os cavalos até um abrigo coberto construído em uma de suas alas. Ele olhou a cilha sob a barriga do grande garanhão,
cujas orelhas abanaram como se isso fosse um jogo familiar. Duas lamparinas brilhavam dentro do celeiro, penduradas em ganchos enferrujados. Tiras de couro e pedaços
brilhantes de metal pendiam de uma das paredes e quatro celas estavam alinhadas em uma bancada, abaixo dos arreios.
- Ora, olá, jovens. - disse Ransom, saudando-os. Ele olhou um pouco mais demoradamente para Anna e depois olhou para o céu franzindo o rosto.
- Precisa de ajuda? - perguntou Anna.
- Não, preciso de nada não, mas gosto da companhia. Ocê sabe algo sobre os cavalo?
- Um lado deles come e o outro não. - disse Mason.
- E um lado deles vai chutar você na virilha se continuar sendo idiota desse jeito. - Anna acariciou o nariz do castanho e segundos depois ele estava cheirando seu
pescoço, bufando suavemente pelas narinas. Se pelo menos ela fosse assim tão boa com homens. Quando ela ainda ligava para esse tipo de coisa, de qualquer forma.
Ou fantasmas. Seria uma boa mudança de ares se eles pudessem sair correndo do mundo dos mortos e virem correndo de braços abertos e sorrindo.
Ela esticou as rédeas no freio e passou o couro pelos anéis de ferro. - Esses caras são ótimos.
- disse ela para Ransom.
- Eles cum certeza gostam docê.
- Fui criada junto com cavalos uma vez.
- Uma vez? - perguntou Mason.
- Uma longa história, uma de várias. - disse ela.
- Se cuida aí, Mason. - disse Ransom - Uma muié cheia de segredo é notícia ruim. Ocês pode me ajudá a empurrá essa carroça pra fora?
Eles entraram no celeiro, Ransom parando para abrir as portas de correr. Ele estava prestes a entrar quando olhou para a parte superior da porta e segurou o patuá
à volta do pescoço. Ele o balançou e fechou os olhos, murmurando algo de forma ritmada que Anna não conseguiu ouvir.
- Maldição se eles não mudaram de novo. - disse Ransom. Ele rolou um barril de madeira até a porta, o escalou com as pernas trêmulas e ficou de pé, girando a ferradura
pregada sobre a porta. Ele a virou de forma que as pontas apontaram para cima, em direção ao céu.
- A sorte não funciona para o outro lado? - perguntou Anna.
- Esse feitiço é muito mais véio do que ocê pode pensar. Essa coisa significa "sorte" pra muitas pessoa, mas eles acabam usando isso dismais e a coisa toda perde
força e as pessoa deixam de acreditar nelas. Mêma coisa com os trêvo de quatro fôia.
- Com certeza, eles são deliciosamente mágicos, como cereal matinal.
- Costumavam ser e davam às pessoas o poder de ver fantasmas e bruxas. Nos tempos em que as pessoas acreditavam nisso.
Anna viu o olhar de Mason. - Então, só pra tirar a dúvida, ferradura para baixo é ruim, certo?
- É praticamente a mesma coisa que abrir uma porta para todo tipo de coisa morta que você consiga imaginar. Eu gosto que os mortos continuem assim. - Novamente,
ele lançou para Anna aquele olhar distante e entristecido. - Que pena que nem todo mundo para essas bandas pense do mesmo jeito.
Mason ajudou Ransom a descer do barril. Anna levou os cavalos para um moirão de madeira e depois seguiu os homens para dentro do celeiro. Os vários veículos movidos
a cavalo estavam alinhados perto da parede. A carroça de feno estava próxima à porta. A seu lado, alinhavam-se dois trenós, uma charrete com a capota aberta e uma
carruagem refinada com um lampião em cada canto. Todos eram restaurados e mantidos em tão boas condições que deixariam os colecionadores de antiguidades com os dedos
coçando. O aroma de óleo de sementes de algodão e couro lutava com o cheiro do feno pelo domínio do celeiro.
Uma grande colheitadeira para feno encontrava-se a um canto, levemente enferrujada. Havia um único assento para o operador e a atrelagem à frente para os animais
de tração. Os grandes dentes metálicos curvavam-se no ar como garras.
- Aquilo é uma máquina com aparência sinistra. - disse Mason.
- Verdade. - disse Ransom, retirando os calços da roda da carroça. - Aquilo é o catavento, a parte afiada que parece um forcado. E ocê também pode ver o braço cortadô
de capim. Funciona com as roda girando. Nóis ainda colhe o feno do jeito dificir aqui.
- Aposto que os cavalos adoram. - disse Anna.
- É sim, e eles são sabido o suficiente pra sabê que vão comê o feno quando o frio chegá.
- Você colherá algum enquanto estivermos por aqui? - perguntou ela, pensando como seria divertido ajudar. Trabalho físico pesado fazia maravilhas com a mente deprimida
e cheia de autopiedade. - Alguns dos campos à volta estão com o capim bem alto.
- Nóis tivemo que esperá um cisco porque os sinal estavam no coração.
- No coração?
- Não é o tempo certo de cortá aveia, trigo ou qualqué outra pranta de colher. É o tempo certo só de colher as coisa morta.
Mason limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - Ugh. Esse feno está me sufocando. - ele olhou para Anna e disse: - Desculpe ser tão rude. Esse é o jeito que fazemos
em Sawyer Creek.
- No caso docê não ter arreparado, isso aqui não é Sawyer Creek. - disse Ransom. Ele os levou para a traseira da carroça e pegou a atrelagem. - Encaixa os ombro
aí agora, vai.
Eles manobraram a carroça para fora do celeiro e em direção ao abrigo. Enquanto Anna e Ransom atrelavam os animais, Mason explorou o celeiro. Alguns minutos depois,
ele colocou a cabeça para fora. - Ei, o que há debaixo do alçapão?
Ransom acariciou a crina da égua castanha. - Batata, batata doce, repôio, maçã, nabo. Uma adega pras coisa que num precisa de ficar tão fria.
- Posso dar uma olhada?
Ransom foi até a bancada e calçou um par de luvas de couro rústicas. - Todinha sua.
Anna seguiu Mason até o canto do celeiro, onde o alçapão se encontrava, entre duas pilhas de feno.
- Tem umas porta no andar de baixo, onde o celeiro se assenta contra a colina. - disse Ransom. -Nóis pode colocá direto dos pomar e jardim direto aqui dentro, pôpa
um esforço danado. Aí tem um túnel que leva diretinho pra casa principal. O Ephram Korban resolveu cavar essa coisa nos caso de tê uma nevasca de repente. Ele sempre
tava falando sobre "os túnel da alma" ou coisa parecida, por alguma razão. Eu acho que ele era maluco da cabeça, se alguma das lenda que eu ouvi forem de verdade.
- Ou talvez todas as lendas sejam verdadeiras e o sujeito seja totalmente maluco. - disse Anna.
Mason ajoelhou-se e levantou a pesada porta de madeira. A adega cheirava a bolor adocicado e terra, com uma suave nuance de frutas podres. A escuridão abaixo possuía
peso, como óleo negro. Uma escada frágil levava para algo que parecia não ter fundo.
- Não tem nada de interessante lá embaixo. - disse Ransom - A não ser que ocê queira sentar e prosear com os rato.
- Ratos? - Mason deixou a porta cair com uma pancada seca, levantando poeira dos batentes. Anna lutou contra um espirro.
Ransom sorriu, os dentes esparsos amarelos na luz fraca dos lampiões. - Ratos tão grande quanto sua côxa, filho.
- Odeio ratos. - disse Mason - Cresci com eles. Faziam um barulho como uma cavalaria, atrás das paredes do meu quarto. O que mais odeio são os olhos saltados e úmidos,
como se medindo você de alto a baixo.
- Não se procupa. - disse Ransom - Eles têm demais pra comê lá embaixo e não precisam mordê os hospede.
- A Srta. Mamie provavelmente os repreenderia por terem maus modos.
Anna riu. Talvez Mason não fosse assim tão ruim. Pelo menos ele não tinha medo de mostrar suas fraquezas. Ao contrário dela.
Mason ficou de pé e limpou as mãos no jeans. Algo flutuou das vigas e roçou no rosto de Anna e ela esfregou como se fossem teias de aranha.
- Jesus Cristo, não me diga que era um morcego! - disse Mason - Eles não são mais que ratos com asas!
- Era só um gaio azul. - disse Ransom - Sorte sua, mocinha. Se um gaio azul voa na sua frente é sinal que vai ser beijada.
- Ótimo! - disse ela - E eu que pensei que ganharia meus beijos lançando feitiços em homens desavisados.
- Acredita no que bem entender. - disse Ransom - Mas eu digo que ocê vê os sinal melhor que ninguém. Agora, é mió a gente se aprumar com o trabáio.
Mason limpou as mãos em um velho cobertor de montaria pendurado numa viga. - Então, Ransom, você tem tempo para me ajudar a encontrar um tronco grande que seja exato
para uma estátua?
- Mas por que ocê acha que a gente tá preparando a carroça, abestado? A Srta. Mamie sempre se mete pra consegui as coisa que qué.
- É, estou começando a descobrir isso.
- Vamo embora então, antes que fique escuro. Acho que vamos descer de Beechy Gap, onde nóis tivemo umas ventania forte alguns inverno atrás. Quer vir junto, moça?
- Não, obrigada. Tenho algumas coisas para fazer também.
- Eu digo que algumas coisa tem que ser feita sozinho. - disse ele.
Anna não tinha certeza do que pensar sobre Ransom. Ele ficava dando deixas, mas um grande pavor se insinuava atrás de seu olhar. Talvez tivesse seus próprios segredos.
Ela esperou até que Mason e Ransom subissem e sentassem no banco da carroça e então deu as rédeas a Ransom.
- Vejo você à noite, certo? - Mason perguntou.
Anna sentiu um meio sorriso no rosto e não estava segura para que lado queria que seus lábios apontassem. - Veremos.
Ransom balançou as rédeas e a parelha dirigiu-se para a estrada, que se dirigia para a floresta como uma fita arenosa. Ela fechou as portas do celeiro e olhou para
a ferradura.
Estava com as pontas viradas para baixo novamente.
Coisas mortas chegando.
Ela olhou para a floresta.
Sob a copa de um arbusto, entre os louros e sarças, estava de pé a mulher de branco, o buquê nas mãos em desafio. O fantasma olhou para Anna como um espelho, então
virou-se e deslizou por entre as árvores.
- Certo então, droga! - disse Anna - Vou brincar de esconde-esconde com você, droga. Conforme entrou na floresta, se perguntou como poderia pegar seu próprio fantasma.
E, antes de mais nada, por que ele se esconderia dela? Ransom estava certo sobre uma coisa: uma mulher com segredos geralmente era uma coisa ruim.
CAPÍTULO 30
E a noite se espalhou, escorrendo como um óleo morno sobre as colinas, expandindo, preenchendo os vales e subindo pelas encostas dos Apalaches. A noite tornou-se
um oceano, um banho de sangue negro. A noite tornou-se o céu. A noite tornou-se a boca que engolia a noite anterior, todas as noites anteriores, todas as noites
por vir, a noite - Spence dedilhou, os dedos batendo nas teclas lisas. Ele era um autômato agora. Não havia mundo, nem quarto, nem o cheiro da lamparina e suor,
nem doce Bridget por perto, apenas o campo de batalha luminoso de uma página meio preenchida. Nenhuma noite lá fora além da janela, apenas a noite que tomava vida
por meio de suas palavras, a noite que se avolumava numa onda dentro de suas veias, que bombeava escuridão através de suas extremidades, que queimava no forno cor
de ébano de seu coração.
Ele estava levemente consciente do fio de baba que lhe escorria pelo queixo. Ele sorriu e a baba pingou em sua camisa de algodão. A saliva era de outro plano, uma
realidade tão entediante, sem vida e sem sentido, comparada com o mundo mágico que se desenrolava sob seus dedos. Seus pulsos doíam e os dedos estavam rígidos, os
olhos lacrimejando com o esforço, mas todos esses problemas eram da carne, enquanto seu trabalho era de Palavra.
O mestre e o papel o pressionavam adiante. Ordenavam que prosseguisse. Tropeteavam o sinal de ataque. Faziam dele um deus, embora um deus menor.
Porque ele era apenas um servo do grande deus Palavra, o primeiro e único. Palavra que dava e tomava, Palavra que lhe fornecia apenas o suficiente para que encontrasse
a metáfora celestial e não perecesse, Palavra que vociferava de arbustos chamejantes, tábulas entalhadas e nuvens poderosas.
Uma mão tocou em seu ombro, uma intrusão de algum lugar naquele plano melancólico de solo e substância. Ah, essa deve ser a Musa, que também era uma escrava de Palavra,
que fez a palavra de poeira e um fragmento de osso, a Musa que ofereceu o fruto, a Musa que serviu de adjetivo para seu nome impróprio.
- Jeff. - cantou ela, e adorável era sua música. Ele queria chorar, mas as lágrimas turvariam sua gloriosa página. E o momento de vaidade de Spence quebrou o feitiço,
enfurecendo o deus que era Palavra.
Ele parou de datilografar e olhou à volta, piscando.
- Venha para a cama, querido. - disse a Musa - Você não dormiu nas últimas trinta e seis horas.
Um grosso monte de folhas estava empilhado ao lado de sua mesa. Seus olhos queimavam e ele forçou as pálpebras secas a se fecharem. A Musa o estava levando para
longe do mundo de Palavra, para dentro de seu templo macio. Talvez a Musa não fosse sua amiga, no final, mas uma inimiga. - O que você quer?
Ela não era mais a Musa, apenas Bridget, a estudante da Georgia tremendo em uma camisola, os mamilos duros com o ar gelado.
- Estou preocupada com você. - Ela se inclinou sobre ele e envolveu seu peito com os braços. Spence deixou a cadeira se inclinar para trás. Agora que o encanto de
Palavra havia sido quebrado, a ansiedade inundou seus membros. Um canto de seu olho tremeu.
Bridget o beijou no pescoço, logo abaixo da linha de sua barba curta. - Você está trabalhando tão arduamente. Por que não vem para a cama?
- Não posso trabalhar se estiver na cama. - Sua irritabilidade havia ressurgido agora que as palavras haviam parado de fluir.
- Estou me sentindo solitária, querido.
Ela o havia perdoado dos maus tratos do dia anterior. Ou teria sido na noite anterior? Ou cem anos atrás? O tempo perdia o significado no Solar Korban.
- Querido, querido, querido. - disse ele, deixando cada palavra flutuar pelo ar como um laço.
- O que é a sua solidão comparada à grande perda que o mundo teria se eu deixasse meu trabalho inacabado?
- Eu sei que é importante. Eu apenas não sou como você. Preciso de um pouco de companhia às vezes.
- Tenho certeza de que você pode usar seus não tão pequenos dotes e arranjar alguém para dividir sua cama. Você pode jogar seus joguinhos de amor em outro lugar,
com minhas bênçãos.
Bridget tirou os braços de seu peito. Spence girou a cadeira para contemplar seu brinquedinho. Suas curvas graciosas ondulavam debaixo do tecido colante da camisola.
Um tesouro. Uma coisa bela e inútil.
- Jeff, não quero outra pessoa. Eu amo você.
Essa distração estava ficando interessante. Talvez Palavra o perdoasse por alguns momentos de ociosidade. Com certeza, mesmo Ephram Korban jogava jogos emocionais
na sua época.
- Amor. - disse ele, e a palavra fluiu como se estivesse sendo proferida por Sir Laurence Olivier em pessoa, derretendo-se em sua língua. A oratória clássica estava
ressurgindo, nascendo dos ossos de seu peito, através dos pulmões e garganta, o ar transformado em sabedoria. A única coisa que sempre mudava era o público.
- Amor, a vaidade suprema. - disse ele - Todo amor é amor-próprio. Maternal, fraternal, sexual, filial, religioso ou sacrifical. Todo amor é uma masturbação. E assim,
eu lhe dou permissão para amar-se, uma vez que parece ser o que você está exigindo de mim.
- Querido, não seja tão... tão...
- Inflexível. Do latim "Inflexibile". Sinônimos: rígido, implacável, impassível. Ah, como eu queria que isso fosse verdade! Mas a mente abraça aquilo do qual a carne
se encolhe envergonhada.
- Não faça isso. Você sabe que eu não ligo para o seu - sobre o seu - problema.
Spence riu, sua papada balançando do êxtase de sua autoestima. Ele acarinhou seus cabelos, um clichê de romances, borlas de seda e anéis de ouro. O rosto dela estava
rosado de paixão, os lábios levemente entreabertos enquanto suspirava com seu toque. Sua pele brilhava como mel à luz da lareira.
- Nosso problema. - disse ele.
Ela havia cruzado o limite. Isso demandava uma resposta.
Sua mão se fechou à volta de seu cabelo. Ele puxou sua cabeça para frente, pegando o manuscrito com a mão livre. Ele bateu com as páginas soltas em seu rosto, feliz
com o som de tapa que o papel fez contra sua pele. As páginas flutuaram para o chão enquanto ela gemia.
- Recolha as páginas. - disse ele, torcendo seu cabelo, forçando-a a se ajoelhar. Ela era miúda e sem condições de lutar contra seu volume. Ela soluçou enquanto
juntava as folhas. Ele a colocou de pé com violência, apesar de ela ter colhido apenas algumas páginas do manuscrito.
- Leia! - disse ele, ameaçadoramente frio.
Os olhos dela estavam arregalados, o rosto banhado em lágrimas, o lábio inferior tremendo.
- Leia. - disse ele novamente, agora calmo.
Os olhos marejados percorreram a página, os ombros sacudidos por soluços, os seios balançando miseravelmente de encontro à prisão de cetim.
- Alto. - Ele era novamente Jefferson Davis Spence, a lenda, o artigo genuíno. Sem mais ilusões de musas ou deuses literários esquecidos, sem aspirações sublimes,
sem simbioses com a máquina de escrever. Agora ele poderia simplesmente se concentrar na arte da crueldade.
- "A noite espalhou sua s-sujeira como espiões, como moscas." - ela leu, a voz tremendo. - "A n-noite caminhou pela noite, escalou sua espinha como uma escada, a
noite estalou os ossos de sua própria prisão..."
Spence relaxou o aperto em seu cabelo e a acariciou. Fechou os olhos, perdido no ritmo de sua própria prosa.
- "... a noite rosnou, chiou como uma cobra, crepitou como uma fogueira, a noite adentrou a si própria, banhou-se com a própria língua, devorou a própria cauda..."
Ah, a Musa estava novamente cantando. Tudo o que ela precisava era da partitura adequada.
- "... a noite tinha o sabor de carvão e cinzas, de alcaçuz, a noite tinha o sabor de dentes - sim, dentes frios... vá congelar lá fora..."
A voz dela diminuiu, mas Spence ainda balançava-se na cadeira, para frente e para trás, como uma criança ninada pela própria tagarelice.
- Jeff? - ela deu um passo cuidadoso para trás.
- Você parou de ler. Não mandei você parar de ler.
- Isso aqui... isso aqui é...
Spence sorriu, o rosto quente com a satisfação com esse pequeno, mas afetuoso tributo ao ápice de seu amor-próprio. Ele se abraçou ao paroxismo do êxtase, esperando
a ejaculação do louvor.
- Isso aqui é uma droga! - Ela largou o manuscrito no chão. - Você tem gasto todo seu talento nisso? Nessa... porcaria?
Spence, antecipando uma torrente de doce validação, não registrou a princípio as palavras. Mas o tom era claro. Mesmo com o sotaque sulista, as palavras eram exatamente
as da Sra. Eileen Foxx, sua professora da quinta série. Foxx botox, como as crianças a chamavam, pois ainda não eram espertas o suficiente para conectar seu nome
a algo lascivo ou a funções corpóreas.
A Sra. Foxx o espezinhara na frente de toda a classe porque ele cometera a temeridade de soletrar incorretamente a palavra "receber". Ele ficou de pé junto ao quadro
negro, respirando o pó de milhares de erros, enquanto todas as outras crianças rugiam em gargalhadas, aliviadas de não serem eles dessa vez. A umidade quente se
espalhou abaixo de sua cintura, sua pequena bexiga vazia, e as risadas mudaram de tom, alcançando o nível de uma lenda escolar.
E naquela tarde ensolarada de primavera, na escola elementar de Fairfield, uma nova regra gramatical foi formulada.
Nasceu também naquele dia Jefferson Spence, o escritor. Aquele que abusaria mais que Faulkner, que seria mais másculo que Hemingway, que seria mais predador que
Tom Wolf. E, apesar de não conseguir voltar no tempo e agarrar a Sra. Foxx pelas costuras de seu blazer de tecido barato e esmagar seus lábios sempre franzidos,
ele poderia agir agora. Ele poderia se embater contra os críticos, zombadores e papagaios, todas as outras Eileen Foxx do mundo que mereciam uma retribuição.
Ele varreu violentamente sua mão de encontro ao rosto da falsa Musa. Ela gemeu e caiu de volta na cama, um braço batendo na cabeceira de latão e o outro cruzado
sobre o peito. Uma gota de sangue escorria de sua boca e a narina também estava vermelha. Conforme seu rosto esquentava pela pancada, seus olhos o encaravam com
toda a severidade de Eileen Foxx.
Ele se desviou de seu olhar.
Ah, Ephram sorriu. Ephram, que havia oferecido apoio enquanto ele escrevia Tempo de Dormir. Ephram, um aliado em um universo de mentes pequenas, presas às suas quintas
séries, e que nunca poderiam compreendê-lo.
Não era que ele sempre falhava com as mulheres ou que sua produção literária era inconstante. Não era falha do equipamento. Eram eles. Sempre fora eles.
Eles haviam ficado entre ele e a verdadeira luz, o caminho brilhante, a Palavra em chamas. Quem necessitava de mero prazer físico? O que uma pessoa necessitava era
um banho de prazer, a eliminação da distração.
Necessitava tornar-se um com a Palavra. Uma comunhão reduzida a sua forma mais simples. Spence colocou os dedos sobre as teclas frias da máquina de escrever. A lamparina
chiou em aprovação, a lareira retumbou com quente deleite. Ele olhou novamente para Ephram, então para a página em branco, sua maior aliada e sua mais temida inimiga.
Ele mal se deu conta da porta se fechando atrás de si. Empurrou os dedos para baixo, procurando a aprovação do verdadeiro deus Palavra. As mãos se moveram de acordo
com uma vontade própria, como se envolvidas em luvas vivas.
CAPÍTULO 31
Anna seguiu tropeçando por entre as árvores, cansada, mas determinada, a figura fantasmagórica sempre no limite de sua visão. A lua havia nascido em sincronia com
o pôr do sol, apenas uma leve curva cortada de sua circunferência branca. A lanterna era desnecessária nas clareiras e trechos descampados, mas a lua não conseguia
penetrar as sombras frias debaixo da abóbada da floresta.
A mulher fantasma aparecia e sumia, como se lutasse para manter sua aparência. Anna a chamou várias vezes, mas nem o vento havia respondido. A floresta estava silenciosa
e mesmo os grilos pareciam se encolher de pavor. O ar estava enregelante e o orvalho se grudava pesadamente nas folhas que lhe roçavam o rosto e os ombros. O jogo
de esconde-esconde parecia durar para sempre, com se Anna tivesse que caçar seu espírito para toda a eternidade, as duas unidas em um purgatório compartilhado de
solidão.
Anna pensou que o fantasma a estava levando para a cabana na qual ela havia visto o espírito da menina em sua primeira noite no solar. Mas sua guia turística do
mundo dos mortos subiu a colina quando chegaram ao campo no qual estava a casa, para cima na direção das encostas íngremes de Beechy Gap. Anna seguiu por entre as
pedras de granito que se elevavam do chão como fósseis desgastados. A trilha ficou mais estreita e inclinada e a vegetação lentamente mudou para pinheiros.
Anna se esgueirou por uma longa saliência rochosa e plana. Ela estava na parte mais alta de uma crista rochosa. O grande mar de montanhas se estendia até o horizonte.
Um sussurro do vento se agitou, mas desistiu e aquietou-se.
As árvores eram mais esparsas aqui e a respiração saía de sua boca em um vapor que dava a impressão de que sua alma estivesse sendo consumida em chamas. Mesmo o
tremeluzir familiar de Sírius e o brilho alaranjado e constante de Satumo não lhe deram conforto. Ela estava sozinha, exceto pela mulher translúcida que agora flutuava
sobre a poeira e pedras frias da escarpa. O fantasma a chamou para seguir com um abanar do buquê de flores.
A lanterna de Anna brilhou sobre um amontoado de vigas e tábuas quebradas e espalhadas sobre uma extensão do terreno. A mulher fantasma estava entre as ruínas do
velho barracão, a figura etérea atravessada por uma dúzia de fragmentos de madeira. O fantasma abriu a boca, tentando formar uma linguagem perdida. Pequenos pedaços
de vidro brilharam no facho de luz da lanterna.
Anna deslizou pela rocha na direção dos entulhos. Um pedaço de madeira apontava tristemente para o céu. Ela se aproximou, atendendo o chamado do fantasma. A mulher
estava esperando de pé, os olhos vazios, o buquê estendido, como um sinal de boas-vindas ou de desculpas.
Então a noite caiu.
Uma das vigas quebradas elevou-se do chão e cortou o céu, em um arco pelo ar, como se arremessada por um gigante invisível. A madeira pesada bateu na barriga de
Anna. A lanterna caiu a seus pés, o facho de luz lançando um risco fino de laranja na direção dos arbustos.
Anna se dobrou para frente, lanças de dor cruzaram suas entranhas, pregos enferrujados penetrando seus templos, seus dentes mordendo telhas de zinco. Mas era mais
que a agonia do câncer. Essa dor era profunda e mortalmente séria. Seu pulso direito fora esmagado em um torno afiado.
Anna fechou os olhos e caiu no chão.
Nenhuma contagem regressiva poderia controlar essa dor. Através do martelar de seu pulso, ela podia ouvir tremores nos destroços do galpão. O cheiro de madeira podre
e decomposição assaltou suas narinas enquanto ela se contorcia sobre as folhas enlameadas.
Na confusão das ruínas, ela viu um túnel, uma longa, escura e fira boca aberta em sua direção. Uma brisa fétida foi soprada das profundezas do túnel, mas deve ter
sido sua imaginação, pois o túnel levava para dentro da terra. Seu suor era como lascas de gelo em seu rosto, o frio pincelando seus ossos e ela se lembrou das palavras
escritas no espelho do banheiro. Vá congelar fora.
Então ela ouviu a voz, um lamento suave e lúgubre que se lançou sobre as colinas.
Anna abriu os olhos com dificuldade, a visão borrada por lágrimas de dor. Duas formas vagavam sobre as ruínas, a mulher fantasma ajoelhando-se e um segundo fantasma
crescendo e pairando sobre o primeiro. O outro fantasma era de um homem em calças jeans azuis, camisa de flanela, botas de trabalho, as roupas translúcidas como
sua pele leitosa e doente. Alguns farrapos de carne pendiam de uma das mangas de sua camisa. A outra mão segurava o pedaço de madeira que a havia atingido. Ele olhou
para o fantasma da mulher, os olhos tão profundos e escuros quanto havia sido o túnel.
Um brilho estava à volta da cabeça do homem, uma aura de energia maligna. Sua face ectoplasmática estava distorcida de raiva, os lábios repuxados para trás mostrando
os dentes estragados. Ele largou o pedaço de madeira e colocou sua única mão à volta do pescoço da mulher. Anna podia ver a força de seus dedos quando ele apertou
a carne irreal. A garganta de Anna queimou de dor e a mulher fantasma emitiu um grito mudo, lutou por alguns instantes como um lençol pego pelo vento em um arbusto
de sarça e, então, despareceu, novamente um cadáver, morta uma segunda vez, o buquê caindo de seus dedos e desaparecendo no nevoeiro.
Anna rolou, ficou de quatro e começou a engatinhar para longe. Os fogos cáusticos ainda queimavam em seu interior, mas agora uma onda negra de medo a inundava, momentaneamente
se sobrepondo à dor crua. Ela olhou para trás e viu que a aura do homem havia ficado mais brilhante, como se matar um espírito houvesse alimentado algum fogo interior
infernal. Ele sorriu para ela, a língua deslizante como uma enguia e os olhos derramando uma escuridão que rivalizava a da noite.
A boca abriu-se: - É você, Selma?
Pelo menos o fantasma se lembrava da linguagem, apesar de seu tom ser enlouquecido.
- Sou eu, - disse ele - George. Sabia que você voltaria. Korban prometeu.
Voltar? Voltar de ONDE?
- Não sou a Selma. - disse Anna, tentando levantar-se, mas o peso do céu noturno era grande demais.
- Eu tenho um presente que estava guardando para você. Nós temos túneis da alma, Selma. O fantasma segurou algo na mão, algo que se mexia como um pequeno animal
no cinto de um caçador. Anna pensou inicialmente que era o buquê. Então a coisa se contorceu.
Era sua outra mão, aquela que havia perdido seu lugar no final do braço direito do homem. Enquanto ela se debatia na sujeira, o espírito jogou a mão em sua direção.
Ela caiu sobre os dedos e caminhou na direção dela como uma aranha. A risada do fantasma ecoou sobre o morro sombrio. - Uma mão gloriosa, Selma.
Anna virou-se e tentou novamente se levantar, mas a dor a tinha deixado tonta, confusa e desajeitada.
A mão decepada se agarrou a seu tornozelo.
Isso era impossível. Fantasmas não tinham substância, pelo menos não uma substância que tivesse uma solidez no mundo real.
Mas isso É o mundo real. E algumas vezes não é no que você acredita, mas no QUANTO você acredita.
Ela acreditava em fantasmas. Eles existiam. Você não poderia simplesmente se livrar da fé como alguém retira a água de uma jarra.
Péssimo.
Porque agora ela conseguira aquilo que sempre quis. Contato físico com os mortos.
Seu tornozelo estava amortecido, gelo fervente, fogo líquido, coroado com lâminas cegas.
Os dedos penetraram em sua carne. Anna foi empurrada de barriga no chão. Ela agitou os braços no ar, tentando agarrar um ramo de um pinheiro próximo, mas a mão a
puxou para trás antes que ela pudesse segurá-lo. Na direção do entulho. Onde ele a esperava.
- Vamos, Selma. Não deixe o garotão aqui esperando. - a voz do fantasma havia mudado, ficando mais profunda.
Ela enterrou os dedos no chão, agarrando as pedras afiadas e agulhas de pinheiro. Ela gemeu, dando-se conta de que estava respirando pela primeira vez desde que
havia presenciado a luta espectral.
Respire.
Isso significava que ela estava viva. Ainda não era um fantasma. Mas se esse espírito tinha o poder de assassinar fantasmas, o que poderia fazer com os vivos?
A mão puxou novamente, arrastando-a por um metro de terra úmida. Folhas molhadas entraram debaixo de sua camisa, deixando sua barriga gelada.
O estranho som derramou-se sobre o morro, como o grito de uma pomba morrendo. Anna olhou para o homem fantasma, seu sorriso esticando e derramando vermelho, laranja
e amarelo, as cores se juntando em uma aura maligna que o circundava como se estivesse iluminado pelo fogo do inferno.
Anna escorregou mais um pouco na direção das ruínas, chutando desesperadamente a mão. Era como chutar um peixe podre. Foi puxada novamente e a ponta afiada de um
pedaço de madeira pressionou contra a parte de trás de sua perna. A coisa a estava arrastando na direção das pontas agudas da madeira quebrada e os dentes afiados
das telhas metálicas rasgadas.
Ela seria sacrificada nas estacas. Mas por quê?
Por que um fantasma iria querer matá-la?
- As cobras rastejam de noite, querida. - disse ele - Cobras rastejam de noite. Mais pressão para trás.
A madeira afiada contra sua perna entrou em sua carne e enviou faíscas brilhantes de dor para os andares superiores de seu sistema nervoso. Uma tábua bateu em sua
vértebra, retumbando em sua espinha como se fosse um xilofone. Vidro quebrado penetrou seu joelho, cortando o tecido da calça e queimando como ácido. As chamas de
sua barriga expandiram-se para seu tórax e sua cabeça, enviando lava para seus membros. Ela fechou os olhos e viu as faixas de luz contra a escuridão das pálpebras,
como brasas estalando ou estrelas cadentes. Por trás das faixas, estava o túnel negro, expandindo-se inexoravelmente para fora e, brilhando ao seu final, a mulher
de branco.
Então é assim que é morrer.
Ela viera para o Solar Korban para encontrar seu fantasma, empurrada pelo poder profético de seu sonho. Isso era o que ela queria. Exceto que ela nunca esperava
que houvesse tanta dor. Mais fragmentos, farpas e pregos retorcidos entraram por sua pele quando os destroços inclinaram-se com seu peso.
Garota boba. Acho que você estava errada sobre um monte de coisas. Você pensava que a morte seria fria, mas é quente, quente, e o túnel é tão profundo.
A mão em seu tornozelo puxou, insistente, tenaz. Então a mão agarrou seu ombro.
E palavras vieram de algum lugar sobre ela, como a voz de um aJ1io insano. - Frio se va, frio se va, frio se va.
A dor desapareceu, apenas a escuridão permaneceu.
CAPÍTULO 32
Colocar o tronco na carroça, depois para dentro do solar e por fim no porão havia sido uma tarefa árdua. Ransom se recusara a descer as escadas para o porão, mas
a Srta. Mamie havia convocado ociosos que estavam bebendo no estúdio, exigindo sua ajuda. Paul, Adam, William Roth, Zainab e mesmo Lilith. Tinha sido um milagre
que eles não tivessem derrubado o tronco sobre os próprios pés, mas por fim ele havia ficado de pé, escorado por algumas tábuas e arames presos a pregos nas vigas
superiores.
- É melhor isso virar uma estátua depois de todo esse trabalho. - Havia falado a Srta. Mamie da entrada do porão antes de bater a porta e deixar Mason sozinho.
Não. Não sozinho.
Ele levantou o pano. O rosto de Ephram Korban olhava para ele. Será que Mason realmente havia entalhado essa perfeição? Mas o trabalho não estava completo. Agora
que Korban tinha um rosto, ele precisava de pernas, braços, mãos e um coração de carvalho.
Essa seria e escultura que renderia a Mason Beaufort Jackson uma menção nas revistas especializadas. Esqueça The Artist’s magazine ou Art Times. Essa criança iria
jogá-lo para dentro das páginas de uma Newsweek. Mason começou a escrever as manchetes e artigos em sua mente. Para começar, a Sculpture.
GAROTO DO INTERIOR ALÇA VOO
Se você ouvisse falar que um artista chamava-se "Mason Jackson", automaticamente assumiria que ele havia adotado um nome artístico.
(Espere um minuto, "nome artístico" era apenas para atores e escritores. Certo, chame de pseudônimo então. O autor do artigo acertaria o termo.)
Mas não há nada fictício sobre esse escultor emergente. Jackson foi chamado de "Michelangelo dos Apalaches". Esse jovem artista sulista poder ter os pés plantados
na terra do luar e rampas de esqui, mas suas mãos estão em um plano mais celestial. A série de esculturas de Jackson, As Analogias Korban, estão expostas para a
aclamação ampla no Museu de Arte Moderna da Filadélfia e logo cruzarão o oceano para Londres e Paris, onde os críticos já colocaram a pesada coroa de "Gênio" sobre
sua cabeça inigualável.
O tour de force de Jackson é a poderosa estátua Korban Emergente (ilustrada ao lado), que ele chama de "um produto de orientação semidivina". A masculinidade Rodinesca
e a massividade do trabalho impressionaram os mais céticos críticos, mas existe uma delicadeza singular em sua obra.
Não menos que Wiston DeBussey considerou a peça perfeita. Ele afirma que Mason é um "mestre inquietante" da madeira, um meio que tão poucos artistas ousam trabalhar
nos dias de hoje.
"É como se não existisse diferença entre a madeira e a pele humana", proferiu DeBussey em um raro momento de expansividade, "Jackson soprou uma vida orgânica em
cada veio contorcido. um observador quase espera olhar para baixo e ver raízes, como se a estátua estivesse se alimentando do sal e da água da terra."
Mas Jackson perde pouco tempo com a apreciação, oferecendo poucos detalhes na mente por detrás do homem.
"Cada peça é conceitualizada através do sonho de uma imagem." disse Jackson, de seu estúdio-fazenda em Sawyer Creek, uma pequena cidade encravada no sopé das montanhas
da Carolina do Norte. "E eu não tenho absolutamente nada a ver com essa parte do processo. Meu trabalho é colher esse frágil presente e de alguma forma não fazer
uma interpretação errada com as mãos humanas desajeitadas. Porque o que importa é o sonho, não o sonhador."
Se Mason começasse a falar desse jeito, Junior lhe daria uma cotovelada nas costelas e Mama o proibiria de ver televisão aberta. Esse tipo de bobagem lhe presentearia
com alguns olhares estranhos na fábrica, onde ficava mais à vontade que em um museu de arte. Ele poderia se enganar achando que era bom no que fazia, mas enganar
os outros era bem mais difícil. Se quisesse enganar o mundo todo, essa peça monstruosa de carvalho à sua frente teria que se transformar na imagem de sonho mais
maravilhosa jamais concebida.
Primeiro, ele teria que retirar a casca.
Depois, encontrar o homem escondido em seu interior.
Ele levantou a machadinha e olhou para os cantos escuros do porão. Ele não pertencia a uma fábrica. Era para isso que ele havia nascido, a razão para vir ao Solar
Korban. Ele nunca se sentira tão vivo.
Com a machadinha no alto, pensou nas palavras de Anna, como o espírito de Ephram Korban vivia naquelas paredes. Como a alma poderia ser nada mais que a soma dos
sonhos mortais de uma pessoa. Como sonhos poderiam se converter em cinzas.
Não. Esse sonho era real.
A machadinha penetrou na madeira.
CAPÍTULO 33
A mão esquelética no ombro de Anna puxou sua camisa e a levantou. Então era isso, o homem fantasma a tinha pego. Ela finalmente descobriria como era estar morta.
Ou talvez ela já fosse um fantasma, porque a pior parte da dor estava desaparecendo.
Anna tentou ficar de pé, mas suas pernas eram como fumaça úmida. Ela se apoiou sobre um joelho ensanguentado, procurando suporte nas madeiras do entulho. Abriu os
olhos para encarar a coisa morta, resignando-se a engatinhar para dentro do túnel escuro.
Mas o que a segurava não era um espírito errante. Era uma velha.
- Ocê precisa se cuidar um bom tanto mais, sô. - disse a mulher.
Seu rosto era enrugado, a luz do luar revelando as veias inchadas, as sobrancelhas brancas como gelo. Mas os olhos azuis encravados naquelas dobras de pele eram
brilhantes, jovens e inteligentes. E Anna reconheceu o xale que estava enrolado sobre os ombros curvados da mulher.
- Você estava na cabana...
- Fica quietinha, criança. Eu vejo o que ocê vê e nóis duas vêmo muita coisa. Vâmo simbora daqui e então a gente pode tê uma prosa cumprida.
Anna ficou de pé, empurrando as madeiras quebradas para longe de suas pernas. A dor havia sumido e o anel de fogo à volta de seu tornozelo se desfeito. A lua estava
alta agora, próxima de seu zênite.
Anna olhou o entulho. Poderia ter sido um sonho, não fosse pelas roupas e a pele rasgada.
- Vâmo pra longe daqui. George teve que saí correndo hoje, mas presta atenção que ainda não tá na sua hora.
A velha guiou Anna para longe dos destroços do barracão. Ela era surpreendentemente forte para alguém que tinha a aparência de ter oitenta anos. Anna observou-a
subir sobre a plataforma de rochas com a agilidade de uma cabra montesa, apesar de usar um bastão grosso para se apoiar. Anna procurou sua lanterna, mas ela devia
ter rolado para dentro de algum arbusto fora da vista. Ela se apressou atrás da mulher.
A velha parou sobre a rocha olhando a vastidão das montanhas. O céu estava acinzentado, mas Anna conseguia ver as cristas e curvas da terra estendendo-se até o horizonte.
- Korban quase pegou ocê dessa vez. - disse a mulher sem se virar para Anna. - Achei mió aproveitá a chance de avisá ocê antes. Mas o velho Ephram sempre foi sem
as paciência.
- Você quer dizer Ephram Korban?
- O dono dessas paragem. Ou pelo menos ele gosta de pensar isso.
- Mas você está falando no presente. Ele está morto.
- Como se fizesse arguma diferença. - Ela cuspiu de cima da pedra nas árvores abaixo.
- Quem era aquela mulher que vi? - A cabeça de Anna estava clareando um pouco. - E a garotinha na cabana?
A velha riu, mas era um gargarejo alquebrado, pesado pelo cinismo. - Ocê tem a visão, é, tem sim. Soube disso da primera veiz que botei meus ôio em ocê. Agora, chega
de pergunta até nóis tá longe desse lugar. Porque esse lugar é do Korban.
Anna seguiu a mulher para fora da rocha e para baixo do morro por uma trilha estreita, espantada de ver como os velhos sapatos de couro duro da nrulher desviavam
de raizes e pedras, o bastao batendo agilmente na terra em busca de apoio. Elas se dirigiram para o cmne atnis de Beechy Gap.
Anna parou para recuperar o folego, esfregando o abdomen-Uma pergunta. O que significa "va fora congelar"?
- "Va congelar fora"... Velho feitiço da montanha. Significa "o que esta morto, continua morto". Anna teria que se lembrar disso. Ela esperava, ao contrario do que
Ransom havia falado sobre ferraduras e trevos de quatro folhas, que esse pequeoo feiti<;:o nao tivesse se desgastado como tempo.
CAPÍTULO 34
Adam havia passado suas longas horas de insônia tentando se livrar dos pensamentos que orbitavam sua mente como lixo espacial. E a maior parte desses pensamentos
era sobre perguntar à Srta. Mamie se havia algum jeito de cancelar sua estadia no solar. Ele não ligava para reembolso. Paul poderia ficar com sua câmera, seus lábio
carnudos e sua arrogância pelas seis semanas restantes, no que lhe dizia respeito. Tudo o que Adam precisava era se ver livre desse lugar.
Eles tiveram outra discussão, dessa vez no estúdio após carregar o tronco para o porão. Paul estava se exibindo para William Roth, que atirava na direção de várias
mulheres ao mesmo tempo, e Adam tentou levar Paul para um canto para que pudessem conversar. Paul zombou e disse: - Por que não vai para a cama, princesa? Sei que
você fica entediada falando sobre outra coisa que não você mesma.
Adam finalmente havia conseguido dormir próximo do que pareceu ser a meia-noite, apesar de a lua estar tão brilhante que parecia que o tempo não havia passado. E
novamente ele havia tido o sonho, o sonho da queda da balaustrada. Mas dessa vez ele reconhecera o homem que estava tentando empurrá-lo do topo da casa. Era o homem
que ele imaginara ter visto no closet quando Paul estava guardando sua câmera. O homem no retrato. Ephram Korban.
E novamente Korban havia pressionado Adam sobre o parapeito. A madeira dura pressionada contra sua cintura. Mesmo enquanto estava sonhando, deu-se conta de que não
deveria estar sentindo dor durante um sonho.
Mas todos os seus sentidos estavam funcionando: ele podia sentir o doce odor das faias, ouvir o tilintar metálico do riacho, saborear o odor rançoso de cemitério
presente no hálito fétido da respiração de Korban, ver as estrelas girando loucamente no céu quando ele finalmente o empurrou por cima do parapeito.
- Você não tem nenhuma vaidade. - disse Korban - Não posso me alimentar de seus sonhos. Eles são feitos de ar.
Os dedos de Adam se emaranharam na barba do homem, tentando desesperadamente se agarrar aos pelos grossos. Mas enquanto Korban o empurrava para longe, seus pelos
eram arrancados. E exatamente quando Adam caiu, soltando-se do casaco de lã de Korban, ele olhou para dentro de seus olhos.
Os olhos brilharam de um negro carvão até ficarem de uma cor âmbar. As mãos implacáveis de Korban soltaram os braços de Adam, que gritou enquanto era arremessado
para o chão, vinte metros abaixo.
O ar assoviou à sua volta como uma chaleira em agonia.
O grande abismo do espaço girou sobre ele, mais e mais distante, sua suavidade perdida enquanto ele estendia as mãos para o céu a procura de algo para se segurar.
As janelas da casa brilharam em faixas luminosas, as vidraças borrando em sua visão periférica. Seu sangue correu para os pés. Esse sonho era muito mais estranho
que qualquer outro que ele havia tido. Porque as pessoas deveriam acordar quando sentiam coisas em seus sonhos.
Mas Adam estava ciente do impacto quando sua cabeça bateu no círculo pavimentado da estrada. Ele ouviu claramente o ruído dos ossos sendo esmagados, quando a espinha
se dobrou como uma ave de papel, engasgando-se quando a respiração lhe foi brutalmente arrancada dos pulmões, quando mordeu a língua na metade e a parte amputada
foi espremida entre os dentes que se quebravam, sentiu o gosto do próprio sangue morno e quando vomitou no momento que a bacia quebrada perfurou o estômago e os
rins.
Enquanto sua carne arruinada se espalhava e vazava pelo chão, pôde ver claramente seus olhos ao lado da cabeça. Eles brilharam na sua direção, as íris marrons perdidas
nos globos brancos, as pupilas dilatadas com o choque e o medo, nada de pálpebras para esconder sua reprovação. Mesmo dormindo, ele reconheceu o absurdo de ver seus
próprios olhos. Mal podia esperar para contar isso para Paul.
Exceto que você não deve sentir dor em um sonho. E o que mais poderia ser isso senão dor? Esse lençol vermelho que caíra sobre ele como uma centena de guilhotinas
sulfurosas. Bandas de eletricidade explodiram pelo corpo destroçado, os nervos gritando como quatro sirenes em um quartel de bombeiros. Adam tentou rir. Não era
engraçado, experimentar essa inundação alaranjada em seu cérebro, quando com certeza ele estava morto?
Mas espere um segundo. Será que você pode sonhar que está morto?
Mas como você sabe que está morto? Esse era o tipo de coisa que lhe daria uma dor de cabeça se não soubesse que estava dormindo. Mas Adam estava com dor de cabeça,
de qualquer forma. Ele se ajoelhou para juntar o cérebro derramado, arrumando-o num montinho e depois o colocando de volta no crânio quebrado.
Quando seus dedos rasparam as convoluções fumegantes do próprio cérebro, ele notou que seu corpo estava espalhado à sua frente. Isso era estranho, surreal, daliesco.
Ele esperava ser acordado a qualquer instante e se ver rindo entre os travesseiros. Mas ele não acordou. Ele ficou de pé, observando a poça vermelha que se espalhou
por debaixo de seu corpo e à volta de sua cabeça. Um fragmento de fêmur aparecia em uma das coxas, à mostra por entre o tecido cinza de seu pijama. O osso brilhava
branco e úmido na luz pálida da lua. A cabeça estava virada de lado na direção dos degraus que levavam ao Solar Korban.
Mas sua cabeça real, pelo menos aquela que abrigava sua alma, estava olhando para cima, na direção do portal negro.
Formas vazaram pela bocarra, formas brancas e finas, como teias de aranha sendo sopradas pela brisa de uma vassoura.
Algumas coalesceram em formas mais ou menos humanas, homens, mulheres, uma garotinha, os rostos brancos, os olhos negros como o interior do saguão de entrada. Algumas
delas em saias vitorianas, ou calças com culotes, alguns homens com sobretudos e chapéus de feltro, algumas mulheres com gorros, outras com coques altos. Os jovens
com calças curtas, as meias remendadas e sapatos de couro de bico quadrado, as meninas em vestidos lisos e fitas nas tranças. Um bebê se materializou aos pés de
uma mulher, a fralda rasgada pendurada às pernas rasgadas.
Adam deu um passo para trás quando eles se aproximaram. Eles não estavam caminhando, mas sim flutuavam, deslizavam, voavam, os braços abertos, as bocas indolentes
com um sorriso cheio de propósito. Eram cerca de doze figuras e ele viu Lilith entre eles, a camareira com o vestido flutuante, mas ela era mais enevoada que os
demais. A cozinheira gorda, que ele havia visto antes colocando os pratos para lavar, estava secando as mãos no avental.
Ele gritou, mas ninguém consegue escutá-lo quando você está morto.
Havia passado, e muito, o tempo de acordar.
* * *
Ele tentou correr, mas permaneceu transfixado, congelado, tão frio quanto uma lápide no inverno de dezembro.
As figuras se reuniram à volta do corpo estendido no chão, os fantasmas - sim, claro que eram fantasmas, se eu vou realmente ter um pesadelo, que seja da pior espécie
- se misturaram e se uniram, sem mostrar nenhuma preocupação com as convenções sociais do espaço pessoal. E Adam, agora mais fascinado que aterrorizado, também olhou
para baixo, na direção do objeto da atenção deles.
Era ele, ele mesmo, a pessoa antes conhecida como Adam Andrews. Lá estava a verruga em seu queixo, a pequena cicatriz branca em seu cotovelo, de quando ele caíra
de bicicleta com nove anos, a curva estranha de seu segundo dedo, que ele destroncara gravemente jogando futebol no colégio. Lá estava sua mão, as unhas cortadas
desigualmente, alguns fios da barba de Korban ainda presos em seus dedos rígidos. Lá estava o anel prateado com a granada que Paul havia lhe dado.
Lá estava seu sangue, sua carne e seu corpo.
Um som baixo preencheu o pátio, se estendendo através da colina, um hino fúnebre que lembrava Adam o canto de baleias que ouvira. Era uma linguagem bizarra, sonora
e triste. As sílabas do som desafinado se uniram em um caos, um ruído coagulado e denso. Estava emanando do solar, como se a porta de entrada fosse a garganta da
casa.
Os fantasmas viraram-se para a porta, solenes apenas como os fantasmas conseguem ser. Adam engoliu em seco, olhou para as mãos e viu que eram feitas do mesmo nevoeiro
que os outros, tecido das mesmas fibras imateriais. Ela era um fantasma. Isso significava...
Ele estava realmente morto.
Riu para si mesmo e fechou os olhos sonhadores. Ele teria que esquecer que estava bravo com Paul, pelo menos até lhe contar sobre o sonho. Ele se perguntou se estaria
roncando e então lembrou- se de que havia separado as camas de forma que não podia contar com a cutucada de Paul em suas costelas.
E agora, ele adoraria receber cócegas, ser acariciado até acordar, puxar o corpo de Paul para perto, sentir algum calor humano.
* * *
Porque estar morto era um assunto enregelante. Ele devia ter chutado as cobertas para longe durante o sono.
Sim, claro. Qualquer coisa maluca faz sentido se você analisar por tempo suficiente. E decidir deixar Paul deve ter agitado algumas coisas estranhas na selva Jungiana.
Mas por que sua mente não deveria lhe dar um susto às vezes enquanto você está dormindo? E o que poderia ser um tema melhor para umas férias que esse parque temático
de gente morta? Qual era aquele velho filme preto e branco, mesmo? Ah, Carnaval de Almas, dançando com os mortos, acorde e diga "Era tudo um sonho". E o velho Ephram
Korban É o tipo de coisa que induz pesadelos.
Então, por que não aproveitar e seguir com a procissão? Você acordará em breve, de volta ao mundo real com seus problemas reais, do tipo como lidar com Paul, de
verdade.
Ele abriu os olhos e se viu ainda dentro do pesadelo.
Os fantasmas estavam se curvando, levantando o cadáver. Divertido, Adam juntou-se a eles. Quando um dos braços rolou para fora, ele o pegou e o dobrou por cima do
peito. Os fantasmas elevaram o corpo e caminharam na direção da porta do solar, pálidos companheiros em uma procissão silenciosa. Adam seguiu atrás deles enquanto
subiam os degraus. Esperando à porta estava seu malfeitor, Korban.
O homem abriu um sorriso frio de triunfo, os olhos como esferas de ônix.
- Bem-vindo ao seu túnel da alma, Adam. - disse Korban.
Por um momento, Adam esqueceu que estava sonhando. Korban segurou a porta aberta enquanto a procissão adentrava a escuridão. Adam foi incapaz de deixar de acompanhá-los.
O rosto de Korban flutuava por perto e o homem estendeu um braço de boas-vindas. Conforme Adam escorregou para dentro da escuridão que o esperava, ele descobriu
que não era o solar que o estava engolindo.
O saguão de entrada era um túnel, um tubo de paredes rígidas de pedra vitrificada, uma boca sempre escancarada, toda negra, além da luz e das coisas que a luz poderia
atingir. Adam estremeceu, mais frio agora que o gelo fantasmagórico, não querendo mais brincar de ter o pesadelo.
Hora de acordar...
Porque Korban estava se transformando, os olhos deixando de serem órbitas escuras para se tornarem sóis odiosos.
Porque Korban estava brilhando com um calor repugnante, Korban o estava prendendo, pegando- o por dentro, dentro de seu peito, dentro de seu coração-
POR FAVOR POR FAVOR POR FAVOR ACORDE!
Os dedos de Korban apertaram e uma nova dor irrompeu, uma dor além da compreensão humana, tão intensa que mesmo o Adam morto e sonhando gritou. Korban o puxou para
dentro do túnel e ele soube o que o estava aguardando à frente era pior que qualquer coisa que seu cérebro poderia imaginar.
Ele gritou novamente, gritou e gritou, fechou os olhos de sonho de forma que não visse o que estava à frente...
Mas ele sabia o que estava à frente, a coisa que ele havia enterrado tão profundamente em sua mente que ela havia esquecido. E como todas as coisas esquecidas à
força, havia apenas ficado mais poderosa com os longos anos de hibernação. E quando uma lembrança enterrada finalmente se liberta de seu caixão e cava seu caminho
rumo à liberdade, ela não terá um olhar carinhoso para com o coveiro.
Essa era uma lembrança que possuía dentes.
Ele gritou novamente e a mão em seu peito estava balançando, balançando-o -
- Acorde, Adam!
Ele abriu os olhos, mas ainda estava vendo os vislumbres de sua lembrança enterrada, a imagem fazendo com que jogasse os braços para a frente em pânico. Ele atingiu
Paul no ombro.
- Ei!
Paul estava ao lado da cama de Adam apenas de cueca. Adam olhou para ele, sem piscar. Um leve brilho da lua penetrava pela janela e o fogo lançava uma luz avermelhada
nas paredes.
- Você devia estar tendo um pesadelo dos diabos. - disse Paul.
Adam ficou deitado imóvel, rolando os olhos nas órbitas, o peito dolorido da lembrança da dor. A colcha estava enrolada à sua volta. Relanceou os olhos para os cantos
do quarto, para a porta do closet, esperando a lembrança exumada mostrar sua cara na primeira sombra que encontrasse. Olhou para o retrato sobre a lareira, observando
os lábios de Korban abrirem-se e darem as boas-vindas dentro do túnel.
- Quero dizer, você conseguiu até me acordar com sua agitação, - disse Paul e então adicionou, com um leve tom de zombaria - e eu estava do outro lado do quarto.
Adam flexionou os dedos, esticou-se e limpou o suor da testa e do lábio superior.
Ele respirou profundamente, uma respiração doce e acordada, e nada nunca foi tão saboroso, nem o chocolate com cereja de seu sundae favorito, nem o mais seco dos
Chardonnay e nem mesmo o primeiro beijo de um amante.
Paul colocou as mãos na cintura, agora impaciente. - Você sonhou com minha mulher de branco? Ou você vai continuar sem falar comigo?
Adam abriu a boca, contente por descobrir que a ponta de sua língua ainda estava no lugar.
- Você está certo sobre uma coisa. - Adam sussurrou, as palavras secas em sua garganta. - Era um pesadelo dos diabos.
CAPÍTULO 35
Lindo.
Spence segurou a página de tal forma que o luar vindo da janela brilhasse em cheio nas palavras. Estivera esperando aqui. Todos esses anos. As bênçãos da Musa, a
doce inspiração, o sonho adormecido da criação. O Dom.
A casa havia lhe dado outra obra-prima.
Ele reclinou-se na cadeira e riu. O som ecoou nas madeiras do quarto, chocalhou a cômoda no espelho, riu de volta das paredes, curvou-se à volta da cornija da lareira,
reverberou nas pedras e espiralou no ar como poeira ao vento. O retrato de Korban sorriu de forma maligna em um entendimento secreto.
O quarto estava muito melhor agora que estava vazio. Havia Spence e a Royal. Spence e as palavras. E o mundo além das palavras?
O mundo não importava. O que importava era a interpretação, a reflexão humana, o esculpir da ilusão. A arte. Simbolismo.
As palavras.
As palavras de Spence.
E daí que os últimos romances haviam se desviado de curso, não haviam se sustentado, haviam perdido a vida dentro de sepulturas de indecisão? O que importava era
que Spence havia sido ungido. Os críticos o amavam. A coluna de crítica literária do New York Times o havia colocado não uma, mas duas vezes na primeira página.
E as pessoas insignificantes, os escritores iniciantes, as multidões das cafeterias e os patéticos professores universitários de literatura devoraram seus livros,
como peixes comedores de lodo. Isso foi antes de os programas de entrevista na televisão indicarem os best-sellers da moda com seus gostos do tipo siga-o-líder em
uma política de uma-mão-lava-a-outra.
Não que as pessoas insignificantes importassem, a não ser pelo fato de fornecerem o estímulo de adoração pelas massas. Spence não escrevia para elas. Ele também
não escrevia para os críticos. Eles eram tão cegos quanto Homero havia sido, estufados como se tivessem dado alguma contribuição para o processo criativo, javalis
que não conseguiriam reconhecer que estavam se alimentando nos mesmos cochos onde cuspiam. Mesmo os editores não eram mais que intrusos, mais apaixonados pelo produto
do que pela arte.
Nos últimos tempos, a carreira de Spence estava mais voltada para a busca. Deveria haver um modo de desvendar as camadas do simbolismo, adentrar no coração do significado.
Alcançar a verdade das coisas sem a distração do som da máquina de escrever, sem os dedos desajeitados que serviam como os agentes do cérebro. Evidente que havia
algum tipo maior de clareza, que não o preto da tinta no branco do papel.
Ele atingiria isso, em breve. Em seu pináculo espiritual, o momento em que toda a história humana, todas as leis do universo, todas as teologias, todos os grãos
de poeira poderiam ser condensados na mais pura forma. Quando tudo poderia se tornar uma unidade.
Uma única e verdadeira Palavra.
Spence suspirou. Até atingir esse estado divino, que comandava a essência, ele teria que trabalhar com essas ferramentas idiotas de linguagem. Edgar Allan Poe sempre
discursava sobre a "unidade do efeito", como cada palavra tem que contribuir para o todo. Aquele homem paranoico e embebido em absinto estava no caminho certo, mas
não seria melhor simplesmente encontrar uma única palavra que fosse o efeito?
Pelo menos ele poderia amar o que havia escrito, a despeito das falhas morais. Ele leu o último parágrafo escrito:
E ele, tornando-se Noite, encontrou seus membros, seu sangue e prazer, estendendo-se sobre as colinas. Escapando das pedras negras e frias que foram sua prisão,
da montanha que era seu sepulcro, da casa que era seu coração. Seus dedos agora eram mais que meras árvores, seus olhos mais que espelhos, seus dentes mais que madeira
quebrada. Ele, tornando-se Noite, poderia espalhar suas águas escuras, poderia elevar suas marés em praias distantes, poderia engolfar e afogar tudo o que não fosse
escuridão à sua volta e que não mais o ameaçaria.
A Noite andava em ambos os lados do nascente, mais uma vez imperiosa e sonhadora.
Spence colocou a página sobre a mesa. Esfregou os olhos. Dois dias. Ele estava escrevendo por dois dias?
Sua barriga roncou. Ele gostaria de comer algo. Bridget estaria esperando no café da manhã. Talvez ele até considerasse perdoá-la.
Ele colocou outra folha em branco na Royal antes de deixar o quarto, para que ela o estivesse esperando quando retornasse. Ele a olhou da porta. O papel branco o
olhava acusadoramente.
- Não se preocupe, a Palavra voltará. - respondeu ele para o quarto, para a casa ou para o que quer que estivesse esperando naquelas paredes. Então fechou a porta.
CAPÍTULO 36
Sylvia atravessou a cabana e jogou um pouco de sal no fogo para manter os feitiços afastados. Depois colocou um cataplasma sobre o joelho de Anna, onde os cortes
eram mais profundos. Um pouco da mistura gosmenta vazou pelo tecido e escorreu pela perna.
- Isso deve de consertá ocê direitinho. - disse Sylvia - Num é?
- É o de sempre. Fulige de chaminé e melado cozido com um pôco de breu de pinhêro. É mió enrolá um corte com têia de aranha, mas não tem muita aranha aqui pra cima.
- Isso não vai causar uma infecção?
- Nada é mais limpo que fulige de chaminé. É limpo pelo fogo, sabe?
Cicatrizaria bem. Sylvia não achava que poderia consertar as outras coisas que estavam erradas com Anna, as células ruins que estavam queimando dentro dela. E achava
que não deveria, mesmo que soubesse quais ervas usar. Parte de ter o poder para curar era saber quando a natureza deveria seguir seu próprio curso. Saber quando
os mortos deveriam permanecer mortos e quando os vivos deveriam seguir os rumos de sua alma.
Anna estava marcada, tão claramente como se seu destino houvesse sido escrito por um juiz. A pena disso era que ela estava apenas começando a vida, apenas começando
a compreender seus dons poderosos e assustadores. Mas Sylvia sabia que a doença na jovem também havia tornado seus poderes mais fortes. Era por isso que havia sido
tão fácil Korban chamá-la ao solar.
Anna pressionou o cataplasma sobre o joelho e bebeu da caneca de barro feita à mão. - Obrigado, senhorita -
- Sylvia. Sylvia Hartley.
- E obrigada pela água. Nunca experimentei uma água tão boa quanto essa que vocês têm aqui na montanha.
Sylvia aquiesceu com a cabeça e lançou um graveto ao fogo.
Anna estava apenas jogando conversa fora. Ninguém gostava de lembrar eventos ruins recentes. E Sylvia havia aprendido ao longo dos anos que esperar com paciência
era a única coisa na qual uma pessoa poderia se tornar realmente boa. Ela havia esperado um longo tempo pela lua azul de outubro.
- Você quase foi convocada.
- É assim que você chama quando um fantasma quase mata você?
- É. A gente chama de má sorte também. - Sylvia ficou de pé e pescou a chaleira pendurada em um gancho acima do fogo. Colocou um pouco da água fumegante na xícara
de Anna e foi até o armário para pegar algumas folhas de dentro de um pote de cerâmica. Voltou e quebrou algumas folhas dentro da água quente.
- Tem cheiro bom. Parece com menta. - Anna absorver o odor.
- É. Menta com um cisco de raiz de cerejêra. Vai diminui sua dor de cabeça.
- Como você sabe?
- Eles sempre me dão uma dor de cabeça, quando tô espantando eles. Esses que tão recém- morto são fácil de vê, mas são mais turrão de ir embora pra dentro da cova.
Anna bebericou o chá e deu a Sylvia um olhar de soslaio. - E como eles ainda não "convocaram" você?
Sylvia deu uma risada que pareceu mais um soluço molhado.
- Tenho meus osso de gato e minhas raiz de cobra e meus pó de lagarto... tenho também um armário cheio de pranta e pele de bicho. E aqui minha proteção especiar.
Sylvia remexeu sob o xale em algum lugar próximo ao coração. Ela virou a palma para fora, para mostrar a Anna uma pequena coisa branca que Sylvia não trocaria nem
por um saco de ouro.
- Um pé de coelho? - As sobrancelhas escuras de Anna formaram pontas de flechas em sua testa.
- Num é só um pé de coêio, moça. É o pé trasêro esquerdo de um coelho de sepultura, morto numa meia-noite de inverno.
- Outro dos símbolos antigos, como Ransom me falou.
- Eles querem dizê o tanto que ocê quisé que eles diga. É tudo sobre o quanto ocê acredita neles.
Anna colocou a xícara sobre a mesa rústica. Ela estremeceu, a despeito de estar próxima do fogo.
- Que noite. Sinto como se fosse uma velha de mil anos.
- Véia? Não espero que ocê me dê crédito nisso, mas eu tenho cento e cinco anos, um pôco mais, um pôco menos. Mas talvez ocê credite. Eu num credito muito também.
Eu mantenho minhas força e tudo mais, mas eu credito que isso tem de haver com o Korban. Como se ele tivesse esticando minhas idade pra que eu num môrra enquanto
ele num acabá comigo antes.
Anna apoiou o queixo sobre as mãos. O fogo refletiu em seus olhos esverdeados.
Os zôio. Deus, ela é a image cuspida de Rachel.
- O que Korban quer? - perguntou Anna. - Estudei fantasmas por um bom tempo, mas a maior parte deles queria apenas escapar daqui. Desse mundo, quero dizer.
Sylvia olhou para o fogo junto com Anna. O sol estava começando a se insinuar ao leste, mas o aposento ainda estava escuro, como se a noite hesitasse em ir embora.
- Korban qué tudo de volta. Tudo que foi dele um dia e um pôco mais.
- Por quê?
- Por quê? - Sylvia havia pensado sobre isso inúmeras vezes ao longo dos anos, mas ainda não sabia a resposta correta. - Chamá-lo de maligno seria chovê no moiado.
Talvez ele fosse mau quando tivesse vivo, mas agora ele tá é muito pió. Ele gostava era de possuí as coisa, mudá elas pra se encaixá no seu mundo. Acho que ele ainda
faz isso. Será que é mau quando alguém qué ficá com tudo que amô?
- Não estou certa de ter amado algum dia.
As palavras apertaram o coração de Sylvia. Korban havia convocado Anna por uma boa razão. Não importava o que Rachel havia tentado fazer. Talvez ninguém nunca escapasse
de lá, morto ou vivo.
- Ephram... - a voz de Sylvia diminuiu, incerta. Ela tinha novamente dezesseis anos, estranha, mas com um coração flamejante, como se tanto o mundo quanto ela fossem
jovens e ainda cheios de promessas. - Eu amei o Ephram. Todo mundo amô. As muié, pra modo de bem dizer. Ele era muito bonito a seu modo, mas não era só as aparência.
Tinha algo nele, um magnetismo. Ninguém conseguia arresisti ele por muito tempo.
- Eu consegui um emprego na casa, como todas as muié que vivia nessa montanha naquele tempo. Os hômi tavam tudo atarefado, trabaiando pra limpá a terra e manter
as coisa em ordi. Ninguém disse nada quando o povo começô a morrê. O machado de arguém saía voando e rachava alguma cabeça, uma árvore caía em cima das costa de
arguém, achavam uma pessoa afogada na lagoa, as carne inchada e a língua azul pra fora. Era tudo acidente, nas nossa cabeça. "Uma maré de azar", nóis dizia uns pros
ôtro, mas nóis tudo sabía que num era bem assim.
Sylvia apertou os punhos contra o peito. Ela nunca havia contado a ninguém essa próxima parte. Ela havia mantido essa história quieta e em paz no fundo de sua mente,
como um lagarto em uma fenda segura. Mas essa criança tinha coisas piores pelas quais passar. O sofrimento de Sylvia não era nada comparado a isso.
- Uma noite o fogo da lareira dele se apagou. Eu fiquei morta de medo. Esse era o meu trabáio e era uma coisa que toda santa vez eu via o Ephram, o que não era lá
muito seguido. Mas cada vez que eu via o sujeito, por Deus, ocê nunca esquecia e ficava se lembrando disso na sua cabeça, o rosto dele, as mão, a voz, até seu coração
doê. Pelo menos era o jeito que a coisa funcionava comigo, mas acho que era assim com a muierada toda.
Sylvia ficou em silêncio. Mesmo através das décadas, o momento ainda estava vívido. Ela foi invadida pela inundação morna da paixão misturada com o terror. Seus
olhos estavam enevoados e ela não lutou contra isso dessa vez, apenas deixando as lágrimas rolarem pelo rosto.
- O Ephram, ele tava no quarto. Mas era como se sua vida fosse o fogo. Ele tava só deitado na cama, engasgando, mais ou menos. Eu tava muito assustada, criança,
ocê não imagina o tanto que eu tava assustada.
Sylvia fungou. - Mas, de novo, talvez ôce possa imaginá. Esqueci que ocê acabou de tê um encontro esquisito. E ele me fez acendê aquele fogo e dizê as palavra que
nunca divia de ter dito.
Anna tocou no ombro de Sylvia. O gesto lhe deu forças para continuar.
- Quando eu por fim acendi o fogo, Ephram veio até eu. Ele me abraçô e eu oiei dentro dos olho negro dele e eu teria feito qualquer coisa por ele. E ele me bejô
e fez tudo o mais que queria. Mas uma coisa era certa, eu queria tanto quanto ele. E quando a coisa acabô, ele me mandô imbora. Não disse uma palavra que seja, apenas
abotoô a camisa e remexeu no fogo um pôco, como se eu fosse um pedaço de carne de um bicho que ele tivesse caçado.
- Eu quase que nunca mais oiêi ele de novo, tava com tanto medo. Medo tanto dele me querê quanto dele não me querê. Mas umas semana dispois, minhas regra passaram.
Deus de misericórida, aí eu fiquei com medo mesmo. Mas não tinha nenhum ôtro sinal, dismodi qui segui minha vida, esperando e rezando. Os mês passaram, veio o inverno
e veio a primavera. No verão, minha barriga começô a crescê, mas só um tiquinho. Foi aí que eu fiquei sabendo. E eu fiquei sabendo que tava errado, pelo jeito devagar
que tava a coisa.
O coração de Sylvia estava trovejando agora. E a velha raiva e o amor perdido a estavam preenchendo, envenenando-a novamente. Anna pegou a mão dela e a apertou.
Isso acalmou um pouco Sylvia. Ela tinha que fazer isso, pelas duas.
- Korban gostava de ficá em cima da casa no meio da noite. Lá na balaustrada. O pôvo falava que ele ficava lá convocando as coisa escura, as criatura invisível que
se arrastava e flutuava em volta da noite. Mas nessa época eu já sabia o que ele tava fazendo.
- Ele tava chamando seus convocado. Mandando eles fazê seu trabáio ruim. Enfeitiçando eles. Eu subi as escada uma noite. Era lua cheia, uma lua azul de outubro,
igual a que vai ser amanhã. Lembro do chero de sassafrás no ar e de um sereno tão grosso que ocê podia senti na pele. O alçapãozinho que levava pro teiado tava aberto,
dismodi qui eu botei a cabeça pra fora e vi ele junto do parapeito, olhando pra desolação iluminada pela lua.
O fogo estalou e emitiu um longo chiado. Sylvia fechou os olhos e terminou a história antes que Korban tivesse forças para impedi-la.
- Eu subi divagarinho até a balaustrada e ele ainda tava de costas pra mim. Quando firmei os pé no chão, fiquei de pé e, por Deus, como o vento soprava forte. Como
se fosse a respiração de todo o céu solta de uma só vez. Eu corri até o Ephram, minhas rôpa balançando atrás de mim no vento. Ele se virô quando eu alcancei ele.
A boca de Anna estava aberta, a xícara entre os dedos frouxos. O fogo cuspiu, jogando uma brasa na direção dela. Sylvia a alcançou com o sapato e esmagou-a no chão.
Isso é um sinal de que tá marcada pra morrer, tanto quanto qualquer um. Quando uma brasa voa na sua direção, ocê tá frito.
- E o que aconteceu? - Anna perguntou, os olhos arregalados. Como se estivesse em uma varanda distante trocando histórias inventadas de fantasmas. Como se aquilo
não fosse real.
- Eu empurrei ele pra fora do parapeito. E ele deixou. Nem tentou levantá a mão pra se defende. Só ficou sorrindo enquanto caía. Ocê nunca ouviu um grito daquele
tipo, criança. É do tipo que os coêio dão quando uma coruja crava as garra no pescoço dele. Só que muito mais longo e mais alto.
- Mas tinha uma risada misturada nisso também. Foi aí que me dei conta de que não seria assim fácil se livra do Ephram Korban.
Anna balançou a cabeça. Sylvia podia ver que ela estava pensando sobre o assunto, organizando, tentando fazer as peças se encaixarem. Foi bom ter contado a história,
depois de tantos anos. Talvez agora ela pudesse morrer com o coração leve, se e quando sua hora chegasse. - E o seu bebê? - perguntou Anna.
Sylvia olhou para dentro do fogo. Estava cansada, esmagada pelo peso de mais de um século de assombrações. Mantê-los à distância por todos esses anos não havia sido
fácil, especialmente quando ficaram em maior número. Ela esperava que seus patuás, sua fé e seus encantamentos fossem suficientes. Existiam várias bonecas naquela
pequena cabana, um bando de gente morta.
- O sol tá nascendo. - disse ela. - Ocê tá segura o suficiente agora. Nóis duas precisamo de dá uma caminhada.
CAPÍTULO 37
Malditos pássaros.
William Roth esperava pegar um falcão de cauda vermelha no ar, ou pelo menos algo colorido como um gaio azul ou um cardeal. O jeito escolhido pela natureza foi dar
cores aos machos das espécies, enquanto as fêmeas foram feitas para se misturar com o ambiente. Se pelo menos as fêmeas humanas se comportassem desse jeito, seguissem
a ordem das coisas. Cris e aquela pequena joia chamada Zainab eram tão esquivas quanto as aves dos Apalaches. As únicas coisas aladas por perto eram os corvos, pretos,
feios, observando das árvores à espera de um funeral.
Roth olhou através de suas lentes para o sol que nascia. As montanhas setentrionais dos Apalaches o lembravam das montanhas da Escócia, arredondadas e ricas. Ele
faria alguns rolos de paisagens, que eram sempre as preferidas das revistas de viagens e similares. Se fosse para ele não ter sorte com as mulheres, poderia pelo
menos fazer o dinheiro para pagar as contas.
Ela caminhou para fora das árvores onde a ponte se estendia pelo grande vale de granito e vegetação arbustiva. Muito abaixo, corria um pequeno rio prateado, escorrendo
entre as grandes pedras em seu caminho para o oceano. Korban realmente sabia como viver. Construir uma mansão no topo do mundo, ter uma casa cheia de serventes jovens,
brincar de artista e aproveitar o que a vida tinha de melhor. Quem poderia culpá-lo por não querer deixar essas coisas para trás? Se Roth fosse Korban, ele certamente
viraria um fantasma e ficaria por aqui.
Roth riu de leve. Ele havia visto fotos que as pessoas diziam ser de fantasmas. Roth conseguia repetir o truque simplesmente borrando um negativo ou brincando com
luzes em um quarto escuro. Se fosse dada a ele uma hora, poderia produzir uma centena de exposições duplas ou triplas e ele nem precisaria de um computador para
fazê-lo. Ele poderia colocar Elvis na lua, poderia fazer Ephram Korban flutuar sobre a casa, poderia colocar a cabeça de Cris Whitfield no corpo nu de Marilyn Monroe.
Isso seria um projeto digno de fazer. Ou talvez a garota do Spence, que ele vira antes do amanhecer, vagando pelo solar com um olhar vazio e uma marca azulada no
rosto. Spence deve ter brincado de forma um pouco mais rude que o normal. Talvez Roth pudesse se esconder no banheiro deles e fazer algumas fotos com iluminação
da lareira do velho desgraçado fazendo-a trabalhar. Depois chantageá-lo ou vender as fotos para um tabloide, de um jeito ou de outro ganhando alguns trocados.
Ele caminhou na direção da ponte, mudou para lentes mais longas e avançou o filme. O ar soprou à sua volta, um vento de montanha que podia enregelar os ossos. Mas
não era apenas o vento. Os corvos haviam voado da floresta e agora se empoleiravam sobre os corrimões da ponte. Dezenas deles. Olhando para Roth com os olhos de
vidro negro. Esperando.
- Que inferno. - disse ele.
- O inferno está apenas na mente, Sr. Roth.
Ele se virou e Lilith estava de pé no meio da ponte. Mas que diabos? De onde ela havia surgido?
- Espero que não esteja pensando em nos deixar.
- Hum. Estava só estudando a vista. - disse, levantando a câmera. - A vista deste lugar é perfeitamente adorável.
Ele a olhou atentamente. O vestido preto aderia a seu corpo de um jeito dramático. Ela era um pouco pálida e o lembrava das garotas do norte da Inglaterra, das cidades
industriais onde o nevoeiro e a chuva encurtavam os dias de sol. Ainda assim, ela era jovem e tinha curvas. Se as garotas que serviam eram boas o suficiente para
Korban, por que não seriam para o Senhor William Metelão Roth?
- Muitas coisas agradáveis para se ver por aqui. - disse ele, sorrindo. Mulheres jovens gostavam de seu sorriso. Ou fingiam gostar, o que dava no mesmo.
- Sim. Eu costumava pintá-las. Antes de trabalhar para Ephram Korban.
- Trabalhar para Korban? Ele morreu faz um bom tempo, e você é bem jovem. Ela deu seu próprio sorriso, misterioso e efêmero. Uma ave tímida, aquela.
- Diga-me. - disse ele, tocando gentilmente nas lentes - Você se importa se eu fotografar a mais bela coisa que encontrei desde que cheguei aqui?
- Fique à vontade, Sr. Roth.
Ele levantou a câmera e apontou na direção dela, ajustou o zoom sobre seus seios, focando em um dos mamilos. Sutiãs não eram parte desse uniforme, aparentemente.
Provavelmente calcinhas também não. Essa garota era definitivamente eficiente.
Ele tirou algumas fotos de seu rosto, belamente enquadrado pelos cabelos e olhos negros como os corvos, a pele lisa como as rochas na chuva, os lábios espertos e
vivos com um sorriso. Quando devotou atenção suficiente para adulá-la, disse: - Você nunca tira uma folga? Não me importaria de conhecê-la melhor. Tirar algumas
fotos em um ambiente um pouco mais reservado.
- Isso pode se arranjado, Sr. Roth.
- Pode me chamar de William, amor.
Ela imitou seu sotaque falso. - Certo, William Amor.
Tinha senso de humor, também. Ela seria um prazer de conquistar. Roth moveu-se em sua direção, esperando ficar próximo o suficiente para que ela apreciasse o brilho
de seus olhos acinzentados. Algo passou próximo a seu rosto e ele abanou com a mão.
Deus salve a maldita rainha, era uma aranha!
Ele deu um passo para trás e viu a teia entre ele e Lilith, estendendo-se pela ponte como um arame dourado, o orvalho matinal captando o nascer do sol. Ele detestava
aranhas. Da África ao Ártico, os pequenos seres pulam sobre você com suas presas afiadas. Ele havia lido, não lembrava onde, que não importava onde você estivesse
na Terra, haveria uma aranha a dois metros de você, e acreditava nisso.
Ele olhou para as madeiras toscas da ponte. A desgraçada com listras amarelas estava se dirigindo para uma rachadura, o cérebro de aracnídeo provavelmente rindo
às custas de Roth. Ele pisou com a bota na aranha, raspando nos veios da madeira, mandando sua alma de aranha para o inferno onde, com um pouco de sorte, Deus as
alimentava com nada mais que DDT.
- Desculpe, amor. - disse ele para Lilith - Espero que ela não a tenha incomodado.
O sorriso perpassou os lábios finos, rápido como um inseto. - Você não a matou, você a entregou.
- Como assim?
- Coisas vivas nunca morrem, elas apenas se movem pelos túneis mais profundos da alma.
- Hum, certo, certo.
- Agora, se você me desculpar, A Srta. Mamie provavelmente está se perguntando onde estou. Não posso ficar longe da casa por muito tempo.
Ela passou por Roth e ele sentiu o sopro de sua fragrância. Ele apreciava esse tipo de coisa, colecionava fragrâncias do mesmo modo que outros colecionavam números
de telefone ou roupas íntimas. Essa cheirava um pouco como terra e um pouco como fruta madura e suculenta.
Ela parou no final da ponte. - Eu o vejo depois, então.
- Não perderia isso por nada na vida. - disse ele e observou seu belo e pequeno traseiro balançar enquanto ela caminhava pela estrada arenosa que levava ao solar.
Quando ela desapareceu no meio das árvores, ele voltou a atenção para a paisagem. As escarpas haviam perdido o brilho, agora que o sol havia nascido. Era melhor
ele pegar as coisas e voltar.
Os corvos observaram enquanto ele colocava as lentes nos estojos. Os malditos pássaros não tinham medo. Ele pensou em enxotá-los, dispersando-os pelo vale. Ah, deixa
pra lá. O dia era promissor com a bela e suave Lilith na agenda.
Ele estava se preparando para voltar para o solar e tomar café da manhã quando viu a teia novamente. Ainda esticada com aqueles padrões finos e sinistros, no mesmo
lugar. Lilith havia passado por dentro dela. E ainda estava lá, inteira e perfeita, pronta para pegar coisas do ar.
Esse lugar o deixaria maluco se não tomasse cuidado.
CAPÍTULO 38
Mason arrancou a casca do carvalho, empolgado com o cheiro tânico da madeira. Ele trabalhou com a machadinha, raspando como se estivesse tirando a pele de um animal.
O tronco estava escorado com algumas tábuas velhas, complicado de trabalhar à volta, mas a arte nunca era um processo fácil. Com os arames que aumentavam o suporte,
o carvalho havia esperado seu toque como um amante masoquista e desnudo em uma câmara de tortura.
As faixas avermelhadas de casca empilhavam-se a seus pés e ele tropeçava nelas conforme tocava na superfície lisa da madeira. Aqui ficariam os braços, um joelho
aqui, um ombro forte lá. Esse nó poderia ser um pulso.
Ele não havia mentido para a Srta. Mamie. A estátua valeria o trabalho. Nada realmente grande era criado sem algum grau de risco. Sofrer pela arte, esse era o ingresso
para o topo. Sacrificar tudo e todos, especialmente a si mesmo.
Mason manejou a machadinha de lado, na área que seria o pescoço. Ele a puxou para trás e bateu novamente, e de novo, o contorno da forma impresso em sua mente, suas
mãos certas do que fazer. Ele entalhou até que seu ombro e bíceps queimaram, removendo as sessões de madeira morta que bloqueavam a emergência da verdadeira forma.
As chamas nas extremidades das velas vibravam conforme o ar se agitava com os impactos e sua respiração.
Quando não pôde mais levantar o braço, Mason deu um passo para trás e afastou as aparas de madeira com o sapato. Moveu-se através do espaço do estúdio e estudou
o tronco de diferentes ângulos. A altura dos ombros, o ângulo do cotovelo, a distância entre os pés, tudo tinha que ser precisamente medido. Enquanto estava dando
um passo para trás para ter outro ângulo de visão, tropeçou na pintura a óleo que havia escorado no armário.
Ele se ajoelhou e pegou-a. Novamente, foi atingido por sua beleza singular. Como ele se sentiria se seu trabalho nunca saísse do porão, se ficasse para sempre nas
trevas, para nunca ser apreciado e admirado? Seu trabalho seria melhor que isso, mas o pintor tinha talento. As pinceladas macias e as cores, o tom de branco do
solar, o esplendor da floresta notuma, as nuvens turbulentas tão vivas quanto a realidade.
Ele olhou mais de perto, para o topo do solar. O borrão junto da balaustrada estava mais claro agora e havia se estendido por vários centímetros sobre a pintura.
Mason olhou para dentro do nevoeiro e piscou. Havia ângulos e formas no borrão. Ele trouxe a lamparina da mesa e a inclinou na direção da pintura.
Mason traçou o formato de uma das figuras com o dedo. A forma era de um branco acinzentado mais profundo que o borrão, sugerindo uma figura humana. Mais formas flutuavam
além dela, além da linha pálida e grossa que retratava o parapeito da balaustrada. Pessoas?
Pessoas ficariam deslocadas naquela pintura. O solar era o motivo, uma imagem tão dominante por si própria que manchá-la com humanidade seria um insulto cruel. Será
que alguém mais havia feito a mesma observação que Mason e tentado cobrir aquelas pessoas no telhado? Ou o artista se dera conta, ao completar a obra, e tentara
corrigir isso antes que o óleo secasse?
A Srta. Mamie saberia, ou talvez Lilith, que mostrara interesse na pintura. Talvez lhe fosse permitido levar a pintura para seu quarto e pendurá-la ao lado do retrato
de Korban Um mestre e seu dominio.
Ele encostou a pintura novamente no armário. Seu próprio trabalho era mais importante. Esse era o primeiro lema de um artista. Dever criativo em primeiro lugar,
tudo o mais em segundo.
Alem disso, Mama estava observando.
A madeira o chamou na linguagem dos não nascidos. Ele respondeu, com formão e garras, dentes e machadinha, lamina afiada e alma faminta.
CAPÍTULO 39
Adam encontrou a Srta. Mamie após o café da manhã. Estava sentada em uma cadeira da biblioteca com as mãos sobre o colo. Estava vestida em um tom verde-floresta,
o vestido mostrando a pele pálida de seu colo. Ela havia trocado seu colar de pérolas por um colarinho apertado de seda.
Ela levantou as mãos, revelando alguns pedaços de madeira espalhados sobre um tecido. Tinha uma faca em uma das mãos, cavacos de madeira aderidos à lâmina. Enquanto
Adam observava, ela cortou um pedaço grosso de vinha e começou a enrolá-lo no que pareceu o torso de uma boneca. A cabeça da boneca parecia uma fruta escura e enrugada,
as feições esticadas e distorcidas pela secagem.
Os Abramov estavam na outra extremidade da biblioteca, distantes da lareira e da luz do sol que penetrava pelas janelas altas. Eles estavam tocando um minueto em
andante que lembrava Mozart. As notas ricas vibraram contra a pele de Adam.
Ele se sentou no sofá à frente da Srta. Mamie e curvou a cabeça em silêncio respeitoso. Observou os dedos dos músicos pairarem sobre as cordas. O duo cresceu seu
tempo e então passou por uma recapitulação, brincando com a melodia antes de finalmente sustentar as notas tônicas e quintas do finalle. Adam e a Srta. Mamie aplaudiram
juntos.
- Bravo! - disse ela - Extraordinariamente delicado. Ephram Korban ficaria satisfeito. Enquanto os Abramov começavam uma nova peça, Adam reclinou-se na direção da
Srta. Mamie - Como está a senhorita?
- Muito bem, Sr. Andrews. Você gosta do meu pequeno hobby? Um antigo artesanato apalachiano, ensinado pelo próprio Ephram. Dizem que quando você entalha uma boneca
dessas, está criando um lar para uma alma perdida.
- Parece ruim para as mãos.
- Mas elas são presentes amáveis. O que pensa dessa aqui?
Ela segurou a figura encarquilhada, com os membros retorcidos dando um ar aleijado ao triste objeto. Era horrível, os olhos toscos, um maior que o outro.
- É maravilhoso. Penso que Daniel Boone não teria conseguido fazer melhor.
- Está apreciando a hospedagem até agora?
- Na verdade, gostaria de falar sobre isso com a senhorita. Decidi encurtar minha estadia. Tenho, hmm, negócios urgentes para resolver.
A sobrancelha da Srta. Mamie escureceu e ela apertou os lábios. Largou a pequena figura de madeira e ela caiu ao chão, a pequena e estranha cabeça rolando para longe.
- Ah, minha nossa, que queda enorme. - disse ela, em um tom tão baixo que Adam mal a ouviu.
Adam levantou a mão. - Não estou pedindo um reembolso. Meu colega de quarto ficará.
A Srta. Mamie olhou pela janela. Uma nuvem deve ter passado sobre o sol, pois a biblioteca ficou mais escura. A melodia dos Abramov mudou para um tom mais soturno
e começou a revolver em torno de um agitato.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
- Eu sei que a van não retornará nas próximas semanas. Gostaria de saber se seria possível outro tipo de solução.
- Você não compreendeu. Ninguém pode sair. Especialmente você.
O rosto da Sra. Abramov se fechou, enquanto ela aumentava o ritmo de sua melodia caótica. Havia restado pouco da beleza original da música que estava sendo extraída
dos instrumentos pelo casal fazia poucos minutos. As notas agora eram mais um lamento torturado que uma música.
Adam olhou pela janela. - Um dos empregados não pode me levar a cavalo? Eu vi dois dos hóspedes em montarias outro dia.
- Ainda não é a hora. - disse a Srta. Mamie, finalmente desviando o olhar da janela. Seus olhos brilhavam com algo que Adam considerou ser raiva. - A festa é hoje
à noite. Um encontro encantador, sob a luz do luar na balaustrada do telhado. É como uma tradição sagrada no Solar Korban.
- Posso pagar mais pelo trabalho. Sei que isso é muito inconveniente.
* * *
A Srta. Mamie pareceu furiosa e tocou o medalhão fora de moda pendurado em seu colarinho. - Ele... ele não quer que você se vá.
- Paul?
A Srta. Mamie pareceu se recuperar um pouco. - Black Rock é a meio dia de distância em um cavalo. E você pertence a esse lugar.
A música de cordas aumentou em intensidade, fragmentando-se em um caos cromático.
- Vou a pé, então.
A música parou abruptamente, tremendo no ar, constrangida em seu isolamento.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
Adam seguiu seu olhar até o retrato de Korban sobre a lareira, a mesma face que lhe havia sussurrado palavras no pesadelo que tivera sobre os túneis da alma. Adam
estremeceu. A própria casa ficou sotuma, como se as paredes estivessem escuras de irritação. O ar estava pesado e mesmo o fogo da lareira não deixava o ambiente
mais animado. Adam aproximou-se da lareira e esfregou as mãos, tentando eliminar os restos do pesadelo de sua mente.
Ele olhou para a boneca quebrada. Um pedaço de tecido estava inserido no interior de uma fenda do torso. Algodão cinza, como de seu pijama.
- Continuem a tocar. - disse a Srta. Mamie aos Abramov.
CAPÍTULO 40
Roth encontrou Spence na área de fumantes, sentado em uma cadeira de balanço cujas pernas pareciam se curvar para fora com o esforço de sustentá-lo.
- Como está nosso Shakespeare? - perguntou Roth.
O escritor já bebera algo, provavelmente uísque, a julgar por sua aparência. Não eram nem dez horas da manhã. Spence certamente estava vivendo conforme sua reputação.
Roth havia suspeitado que o escritor havia afetado uma indulgência ao álcool tão falsa quanto suas conquistas ou o sotaque de Roth.
- Melhor impossível, como sempre. - disse Spence, o rosto pálido e os olhos quase rosas pela falta de sono.
- Você gostaria de alimentar os críticos com uma pá, não é mesmo? Quero dizer, eles foram terrivelmente duros com você nos últimos anos.
Spence deixou sair um suspiro úmido, sua papada flexionando como um verme gordo. - Existe apenas um crítico que eu gostaria de acertar. Meu primeiro.
Roth se sentou em uma cadeira de vime finamente trançado e colocou a bolsa da câmera no chão. Se trabalhasse direito, um Spence aos frangalhos seria uma excelente
adição à galeria de celebridades doentes de Roth. Porque Spence estava cabeça e pescoço à frente de uma corrida rumo a um desfiladeiro invisível.
- Sua velha mãe, aposto. - disse Roth - Elas podem ser bem opressoras.
- Minha mãe era uma santa. O crítico a que me refiro está morto faz um bom tempo. Mas tenho minhas esperanças de que Deus misericordioso me colocará frente à frente
com ele na vida além túmulo.
Roth sorriu. - Claro, de que serve o céu se você não pode se vingar de seus velhos inimigos? Spence tomou um grande gole de uísque. - Você está me entediando Sr.
Roth. Eu odeio tédio.
- Escute, amigo, tive essa ideia...
- Deixe-me adivinhar. Você tem um livro que gostaria que eu escrevesse e vamos dividir o dinheiro depois que eu fizer o trabalho.
- Não tão simples assim. Estava pensando em um livro grande sobre Korban. Farei as fotografias, farei a parte de pesquisa, converterei alguns desses retratos em
arquivos digitais. Tudo o que você tem que fazer é colocar seu nome na capa e digitar algumas páginas de introdução.
- Meu nome não é mais o que foi um dia.
- Esse projeto é muito natural. Um ricaço excêntrico constrói para si um império rural e então morre de um jeito misterioso. Podemos inclusive adicionar a parte
de assombrações. Não tenho problemas com inserir alguns orbes transparentes ou pó de pirlimpimpim sobre o negativo.
- Falando de fadas. - disse Spence. Através dos vidros da varanda, puderam ver um jovem carregando uma câmera de vídeo para a floresta.
- O amiguinho dele permite que saia assim sozinho? Pareceu ser do tipo grudento e ciumento.
- Roth havia sido levado a experimentar meninos esporadicamente, quando não havia meninas por perto. Homens tinham arestas meio rudes para seu gosto, mas ofereciam
um elemento de perigo que nenhuma mulher conseguia igualar. Ainda assim, Spence era empertigado com esses assuntos, de forma que era melhor parecer homem. Ele não
fez nenhum comentário.
- Ephram Korban teria desprezado esse tipo de fraqueza moral depravada. - disse Spence.
- Você fala como se o conhecesse.
- Não, mas eu o compreendo. Posso senti-lo. Essa casa lhe pertenceu, mais do que uma simples possessão material.
- Ah, você acredita nessa viagem de fantasma?
- Eu senti o espírito me animar.
Roth se perguntou quantas bebidas o homem havia derrubado com o café da manhã. - Então, por que não um livro? Podemos fazer como um tributo, se você achar melhor.
Spence levantou-se com esforço. - Antes quero escrever um romance barato, algo com vampiros, um papa marciano ou uma conspiração governamental. Com uma trama amorosa
suspeita. Alguém tem que ter algum tipo de amor para fazer a panela esquentar.
- Pense sobre isso.
- Com licença, tenho um trabalho a fazer. Trabalho de verdade. - Spence carregou o copo vazio para a biblioteca, sem dúvida para enchê-lo.
Roth se sentou à sombra da varanda. Imaginou Spence morto em uma banheira, o corpo gordo, tripas esbranquiçadas à vista em uma foto de duas páginas em um tabloide.
Moby Dick. Essa seria uma fotografia que valeria mais que mil palavras. E vários milhares de dólares.
Como fazer aquele coração cansado explodir? Talvez um sexo a três com Bridget e Lilith? Ou talvez Paul e Adam sobre ele? Com sua homofobia, Spence provavelmente
tinha alguns bons esqueletos guardados no armário.
Roth sorriu. Havia um jeito mais fácil, um que não envolvia a cumplicidade de terceiros.
Se Spence estava tão apaixonado por seu maldito trabalho, o que aconteceria se ele acabasse na lareira? Melhor ainda, ele poderia colocar a culpa em algum fantasma.
Quem poderia provar o contrário?
CAPÍTULO 41
O vento passou pelas árvores que circundavam o cemitério, uma música solitária para um lugar final de descanso, no alto da montanha. Sylvia apoiou-se em seu bastão,
olhando a partir da cerca, o corpo muito frágil para arriscar-se em uma escalada. A velha ajoelhou-se na grama, procurando pelo chão por um minuto, então pegou algo
e passou pela cerca para Anna. Era um trevo de quatro folhas.
- Para dar sorte? - perguntou ela.
- Melhor que sorte. Deixa ocê vê os morto.
- Eu já faço isso.
- Só quando eles qué. Esse aí dá o poder sobre eles. - Sylvia acenou com a cabeça na direção da sepultura de Rachel Faye Hartley. - Aquela ali é que ocê vai querer
chamá.
- Chamar?
- Que venha o fogo, e o morto aparece. Diz isso trêis vêis. É o feitiço.
- Não posso fazer isso.
- Tá no seu sangue. Só tem que acreditá.
Anna olhou para a pedra fria, as flores esculpidas por alguma mão delicada, um buquê que nunca murchava. Ela acreditava em fantasmas e assim os via. E desde que
ela havia chagado ao Solar Korban, os via melhor que nunca. Talvez sempre tivesse sido uma questão de fé. Parte da crença poderia vir dos espíritos mortos e o fantasma
tinha que se imaginar de volta ao reino dos vivos.
Talvez Anna e o fantasma tivessem que se encontrar na metade do caminho em uma união de almas tristes e escravizadas, e se ela apenas tivesse que recitar um velho
encantamento das montanhas, isso não era pedir demais. O fantasma, nesse caso uma pessoa que vivera com o nome de Rachel Faye Hartley, é que teria que fazer o real
esforço. Afinal de contas, seria Rachel que teria que sair da eterna e negra paz dos escombros para ascender e retornar a um mundo que talvez fosse melhor esquecer.
Um mundo que tinha apenas uma promessa de dor e solidão.
Anna olhou para o trevo. Será que conseguiria acreditar nessa magia? Com o câncer devorando sua carne, ela teria que colocar toda sua fé na permanente existência
da alma ou, de outra forma, seria melhor ela própria pular do telhado do Solar Korban. Sem fé, de que adiantava?
Ela fechou os olhos e disse as palavras. - Que venha o fogo, que venha o fogo, que venha o fogo.
Um calafrio a envolveu, uma suave friagem imortal. Quando ela abriu os olhos, a mulher de branco estava a sua frente, o buquê em suas mãos diáfanas. Era como se
Anna estivesse olhando em algum espelho, pois se reconheceu no rosto pálido e transparente.
- Anna. - disse a mulher, naquele mesmo tom murmurado que assombrava seus sonhos, que a havia chamado na trilha e a levado pela floresta até onde o espírito de George
Lawson a havia agarrado com a mão decepada.
- Você. - disse Anna - Foi você que me chamou para vir para cá. Não foi Ephram Korban!
- Você se tornou uma linda mulher, como sempre imaginei. - As palavras eram como jatos de água fria.
- Do que você está falando?
- Odiei mandar você para longe. Pensei que era o único jeito de salvá-la dele. Mas eu não sabia.
- Mandar-me embora? - Anna olhou para Sylvia, que puxou mais o xale à volta dos ombros ossudos. Sylvia balançou a cabeça, o rosto cansado, as rugas aumentando, como
se houvesse envelhecido cinquenta anos desde que chegara ao cemitério. Anna olhou para o fantasma de Rachel, de volta para Sylvia e novamente para o fantasma. Seus
olhos eram do mesmo formato, a sobrancelha arqueada escura, o mesmo ar de mistério. Iguais às de Anna.
Iguais às de Anna.
- Você é ela. - A constatação cortou Anna com a lenta certeza de uma geleira se movendo, mais implacável que o câncer, uma verdade impossível que era ainda mais
horrível porque o impossível tornara-se ordinário.
O sangue de Anna congelou-se nas veias, tão duro quanto a geada que ainda brilhava nas sombras das lápides.
- É tudo minha culpa. - disse Rachel - Esse é o meu pesar, isso é o que me assombra no túnel da minha alma. O medo que Ephram usa para me controlar.
- Ephram Korban. O que me importa ele? - As lágrimas de Anna corriam sobre o rosto como que traçados por dedos sem vida. Os lábios fantasmagóricos abriram-se e a
forma de Rachel brilhou sob o nascer do sol. - Foi duro para mim perder você, pior que morrer. Pior ainda que estar morta. Porque estar morta é a mesma coisa que
estar viva, só que pior.
- Duro para você. - disse Anna - Todas as noites, em cada novo lar adotivo, cada vez que algum estranho me dava abrigo, eu rezei para Deus que você deveria sofrer.
Mesmo nunca tendo conhecido você. Porque nunca pertenci!
- Eu também sofri!
- Eu odiei você por não ter estado lá, por nunca ter existido. E agora eu encontro você e você ainda não existe.
- Você não entende, Anna. Precisamos de você.
- Precisar, precisar, precisar! E eu? Eu também tive necessidades. - Anna jogou o trevo na grama da sepultura, os soluços a sacudindo. - Vá embora. Eu não acredito
em você.
- Anna. - disse Sylvia - Ela pode tá morta, mas ela tem sangue.
- Você pode ficar com seu sangue. Para mim, chega! - Anna moveu-se entre as pedras, a visão borrada pelas lágrimas, mal ciente de seus pés, apenas querendo estar
distante, de volta ao mundo ordinário da dor, da solidão comum.
A voz de Rachel atravessou a grama, enfraquecida, como que vazando de dentro da boca de um túnel interminável. - Ele nos assombra, Anna. Estamos mortos e ele ainda
nos assombra.
Anna sequer diminuiu o ritmo. Ela havia vindo para cá para encontrar seu próprio fantasma. Agora ela havia feito isso e era ainda pior do que poderia ter imaginado.
Seu fantasma não conseguiu lhe dar conforto e o consolo de uma vida após a morte. Seu fantasma lhe trouxera a promessa de solidão eterna, a prova de que ela nunca
pertenceria, não importa qual lado da sepultura a reivindicasse.
- Ocê não tem ideia de como é. - gritou Sylvia atrás dela, as palavras varridas pelo vento de outubro. - É muito pió perdê uma fia. Eu sei do que tô falando. Porque
eu perdi a Rachel.
Anna parou próximo da sombra do mausoléu de Ephram Korban. Ela se virou e o movimento pareceu tão lento quanto o giro da terra, rugas de pesar raivoso em sua face,
a carne anestesiada por essa nova verdade impossível.
Ephram Korban e Sylvia. Então Rachel.
E Anna.
O nome de Korban flutuou à sua frente como uma neblina úmida, como se as letras esculpidas no mausoléu dessem peso às palavras de Sylvia. Sangue. O sangue de Ephram
Korban corria nela, tão manchado como aquele lado ancestral que a havia amaldiçoado com a Visão, tudo atado a essa montanha antiga em solo apalachiano, uma terra
entristecida que não podia nem segurar seus cadáveres.
Sylvia chamou mais uma vez, mas Anna não estava escutando. Ela pulou a cerca, o coração em fogo com um único desejo.
Que os mortos continuassem mortos.
Que os mortos continuassem mortos para sempre.
CAPÍTULO 42
Mason limpou o suor da testa. Ele havia tirado a camiseta, mas o estúdio ainda era quente demais. Lascas de carvalho estavam sobre seus braços e peito. Seus ombros
haviam cruzado o ponto de simplesmente doer. A dor havia se transformado em um tambor surdo batendo constantemente no fundo de sua cabeça.
Seu instrutor de escultura em Adderly, Dennis Graves, havia lhe dito que a chave para a arte estava na resistência. A primeira peça de Mason havia sido a palavra
"resistência" em um bloco de pinheiro. Aquele esforço desajeitado hoje encontrava-se deitado sobre o aparelho de televisão agora morto de sua mãe. Mason havia dado
a escultura a ela como uma criança do jardim de infância traz para casa uma pintura feita com os dedos. Isso foi antes de sua cegueira, apesar de que, quando sua
visão se fora, ela o segurava no colo e corria os dedos sobre as letras.
Algum dia ele lhe daria outra escultura com uma palavra só pra ela: "sonhos".
Ele a faria em bronze ou cobre, algo durável. Talvez até granito. Mas a palavra seria muito pesada. Talvez ela ficasse pesada mesmo com pau balsa ou ar.
Mason havia terminado a etapa com a machadinha e o enxó. A forma grosseira estava terminada. O céu havia ficado escuro no porão de pequenas janelas. Não sabia se
isso significava chuva ou se o fim do dia se aproximava. Ele havia perdido há muito a noção do tempo.
Mason trabalhou com seu formão largo e maço, aplainando sessões do carvalho. Os veios estavam cooperando, como se estivessem com pressa de adquirirem logo sua forma
final. A estátua estava se revelando muito rapidamente e não era possível que ele já estivesse tão adiantado assim. Era quase como se a madeira estivesse bombeando
de volta a energia através de suas ferramentas para suas mãos.
Claro, Mase. Qualquer coisa que queira pensar. Liberdade criativa.
E olhe só, os ombros estão retos, um dos braços de Korban estará cruzado sobre o estômago, o outros atrás, nas costas. Uma postura aristocrática. Um homem que sabe
a que veio.
O espaço vazio do porão engolia os sons de metal no metal e metal na madeira.
Saia daí, Korban. Sei que está aí, em algum lugar no interior desse pedaço esquecido de carvalho. CANTE para mim, seu velho desgraçado e belo. Levante-se e caminhe.
Mason fechou os olhos rapidamente quando um jato de poeira veio na direção de seu rosto. Ele direcionou o formão para um espaço ao lado do braço esquerdo da estátua.
Resistência. Sonhos.
Ele teria que mandar outra palavra para Dennis Graves. Espírito.
Você tem que ter espírito, de outra forma, está perdido. O material tem que ter espírito. Você não conseguiria espremer alma de uma pedra. Ela deveria já existir,
teria que ter existido para sempre, esperando lá para que o artista a liberasse.
O vento da respiração do espírito soprou dos quatro cantos. É de lá que vinham essas imagens de sonhos. Não eram novas visões ou ideias de verdade. Eram coisas que
já existiam, que apenas tinham que ser reveladas para as mentes humanas.
Certo. Certo. Agora você está se perdendo, cabeça de bagre.
A pretensão artística é esperada, e toda aquela balela poderia se tornar útil depois de você ser "descoberto". Mas agora, a realidade é que você está levando uma
surra de trabalho e não consegue parar. Você deveria dar uma pausa para comer e descansar.
Mas VOCÊ NÃO CONSEGUE PARAR.
Mason enrugou o rosto numa careta e martelou o formão no flanco do quadril. Ele achava que não era um bom sinal quando as pessoas começavam debates filosóficos consigo
mesmas. Ele deveria estar em um transe criativo. Ele queria isso, procurara isso, rezara por isso para os deuses dos sonhos impossíveis.
Olhou para o busto de Korban e ele pareceu sorrir de volta de cima da mesa. Os lábios de madeira se separaram: - Então, por que você não consegue parar?
Posso parar quando quiser.
- Certamente. Eu acredito em você, Sr. Jackson.
Olhe, você não pode simplesmente ligar e desligar a criatividade quando quiser. Você deve acompanhá-la enquanto tiver condições, deve segurar a mão da Musa enquanto
ela quiser dançar com você.
- Ótimo. Sem argumentos. Mas vamos ver você parar.
Certo. Mas quero que você saiba que os músculos dos meus ombros, braços e dedos gritarão de dor porque eles estão mais apertados que um carretel de linha industrial.
Além disso, estou fazendo isso pela Mama, não por mim.
O busto disse: - Desculpas, desculpas.
Vou mostrar a você. Lá vamos nós...
Mason acertou o formão. Cinco centímetros de madeira vermelha foram arrancados de um lugar que seria o joelho de Korban. Ele reposicionou a lâmina e preparou o maço
para outra pancada.
O busto riu, um som parecido com o farfalhar de roedores. - Você não está parando.
Certo. Deixe o meu caso em paz. Apenas tenho que me ACOSTUMAR com a ideia.
Mason entalhou outra apara de carvalho e então olhou para suas ferramentas espalhadas pelo chão por entre a sujeira de madeira.
Viu? Posso desviar os meus olhos se quiser. Apenas como um experimento, vou pensar em outra coisa além da estátua de Ephram Korban. Consideremos, por exemplo, a
adorável Anna Galloway...
Mason pausou, uma gota de suor dependurada na ponta de seu nariz.
- Ah, então é justo que Anna faça seu coração cantar. - disse o busto - Você pode tê-la, sabia? Quando acabar. Eu prometo. E eu sempre cumpro minhas promessas.
Mason apertou os dentes e deu ao martelo um balanço mais forte que o normal. Ele poderia parar a qualquer momento que quisesse. Ele não queria pensar nela agora.
Não queria pensar, não queria pensar, não queria pensar -
- Com quem estava falando, eu me pergunto?
Mason girou, o martelo na mão, levantado como se fosse atacar um agressor. William Roth afastou-se, os olhos acinzentados arregalados de surpresa. Ele quase deixou
cair as garrafas que estavam em seus braços.
- Calma, companheiro.
Mason baixou o martelo. A magia estava quebrada. - Desculpe-me, acho que me deixei entusiasmar, por um instante.
* * *
- Pareceu mais que apenas um instante para mim. Você tem trabalhado nessa coisa sem parar?
Mason aquiesceu. A dor na parte de trás das costas mandou as primeiras pontadas vermelhas a seu cérebro. Ele esfregou seu bíceps direito.
Roth olhou por trás de Mason para a estátua. - Meu Deus, como você conseguiu fazer tanto assim já? Você deve estar trabalhando como se fosse uma manada de castores!
Mason olhou para a estátua e tentou vê-la como Roth a via.
Todos os membros estavam claramente sugeridos na madeira e era distinguível a figura humana. A cabeça era um bloco sem feições, mas em proporções exatas com o resto
do corpo. As pernas se erguiam da base com vibração e força.
- Está surgindo. - disse Mason - Prometi a Srta. Mamie que ficaria encantadora.
- Por que a pressa? Você vai acabar arrebentando uma artéria, se continuar desse jeito.
- Diga-me, posso lhe perguntar uma coisa? - disse Mason.
- Contanto que abaixe o martelo.
Mason colocou o martelo sobre a mesa ao lado do busto. - Dê uma olhada nessa pintura. Roth colocou as garrafas sobre a mesa e Mason levantou a tela na direção da
luz da lamparina mais próxima.
Roth franziu os lábios em aprovação. - Uma pintura e tanto.
- O que você vê naquele borrão ali, no topo do solar? Junto do parapeito da balaustrada? Roth se curvou na direção da pintura e observou as formas. - Parecem pessoas,
para mim.
Pergunto-me quem teria arruinado a pintura.
- Você acreditaria se eu lhe dissesse que não existiam pessoas ali dois dias atrás?
Roth olhou para Mason e então de volta para a pintura. - Eu diria que seu traseiro está apitando mais que uma chaleira, de tanto trabalhar.
- Bem, talvez tenha alguma coisa a ver com os produtos químicos usados na pintura. Isso me intrigou, só isso. Como sou um artista, sei o que significa chegar próximo
da perfeição.
Roth deu sua risada alta. - Não se iluda com toda essa conversa ruim sobre artista. É tudo uma questão de oportunidade de vender o que puder.
Mason esfregou o queixo e sentiu a barba por fazer. Ele estava negligenciando sua higiene. Podia sentir o odor de suas axilas. Para Roth, o estúdio deveria estar
fedendo como a lavanderia de uma academia de ginástica. Mason ajoelhou-se e retirou a camiseta, balançando os cavacos de madeira. Olhou de soslaio para a estátua
e sentiu-se culpado por pensar em abandoná-la.
- O que está fazendo por aqui? - perguntou a Roth, antes que sua mente ficasse fixa em Korban novamente.
- Preciso revelar alguns negativos. A Srta. Mamie disse que poderia usar a adega. Escuro o suficiente por aqui, não acha?
- E quente também. Eles devem manter essa fornalha a toda. É do outro lado daquela parede ali. Eu os ouço alimentando-a a cada três ou quatro horas.
- Esse tal de Korban não deve ter sido muito do tipo "salvem as árvores".
Mason olhou novamente para a estátua. - Talvez, de algum modo insano, ele seja as árvores.
- Vá pegar um pouco de sol, Mason. Você está ficando fora de órbita.
- Talvez você tenha razão.
- Relaxe um pouco, divirta-se outro tanto. - Roth sorriu, brilhando seus dentes vulpinos. - Vá tentar a sorte com aquela garota, a Anna. Ela é o seu estilo.
- Não, obrigado. Tenho preocupações suficientes. Melhor colocar um pouco de comida para dentro, para que eu possa terminar essa coisa.
Das escadas, Mason deu uma última olhada na estátua que se tornaria Ephram Korban. Ficaria maravilhosa. Demris Graves comeria seu martelo de iiNeja. Essa cria<;:ao
estava se moldando para tornar-se um deus.
CAPÍTULO 43
Spence chorou.
A beleza, a elegância da prosa, estava se derramando sobre ele como a maré negra em seu romance. Ele podia senti-la se aproximando. Com cada sentença, cada preposição,
cada pontuação, ele se aproximava da Palavra.
As chaves tilintaram quando bateram na carruagem, o sino badalante do retorno anunciando a gloria vindoura. Spence mal podia enxergar a página através do borrão
de suas lágrimas, mesmo com o sol se pondo pela janela, mas ele não tinha necessidade de ver. O escritor fantasma estava comandando seus dedos, fazendo-os voar sobre
as teclas, as palavras nem remotamente mais suas.
Spence se perguntou se isso faria diferença. A palavra autor era derivada de autoridade. Ele sempre se orgulhara de estar sob controle e de sua maestria sobre a
linguagem, dos malabarismos com o alfabeto, truques com os verbos, do esplendor dos substantivos. Mas isso era uma escrita inabitada, uma linguagem mais profunda,
as fendas entre o som e o pensamento. Comunicação que adentrava diretamente no coração da verdade.
Ele estava vagamente ciente da presença de Bridget na cama. Ele iria até ela quando a escuridão chegasse. Uma nova força surgira em sua carne, seu sangue rejuvenescido,
seu poder de efetuar restaurado. As dádivas e bênçãos da Palavra. O ato do sacrifício sempre retornava algum poder para aquele que se sacrificava.
O quarto estava frio, mesmo com o fogo crepitando e subindo pela chaminé como se ansiasse pela liberdade do céu. Seus dedos estavam duros como pingentes de gelo,
mas ainda assim acionavam as teclas, a música de cubos de gelo em um copo. Ephram Korban observava Spence do retrato, o mais encorajador dos editores, os olhos negros
sugerindo guinadas na trama.
Bridget poderia esperar, impaciente e ansiosa no calor da cama. Por agora, havia apenas a página. A última página.
Spence suspirou. O final era sempre uma pequena morte. Aquela palavra agridoce, "Fim".
Talvez Fim fosse a única e verdadeira Palavra. A única palavra que sempre tivera importância.
CAPÍTULO 44
O solar deu as boas-vindas a Anna quando ela chegou. O acabamento escuro, o pé-direito alto e o fogo rugindo na lareira da sala de estar. E Korban, o velho benevolente
Ephran, Vovô Ephram, sorriu amavelmente de seu posto vigilante sobre a lareira.
Talvez ela realmente pertencesse a esse lugar. Tanto quanto qualquer outro. Ela não pertencia a nenhum outro lugar, no fim das contas. E o Solar Korban era o fim
do mundo, o tipo de lugar no qual Anna merecia passar seus últimos dias, andando por esses cumes batidos pelo vento no meio do duro coração do inverno apalachiano.
Se morresse aqui, seu espírito atenderia ao verdadeiro chamado, seu fantasma poderia flutuar sobre o solar do mesmo modo como vira várias vezes em seu sonho.
E era isso assim tão ruim?
Contanto que Rachel Faye Hartley permanecesse na sepultura ou assombrasse as trilhas de Beechy Gap, nunca cruzando esse portal de pedra e madeira, Anna poderia ficar
tão satisfeita quanto qualquer coisa moribunda e inquieta. Olhar pela balaustrada do telhado, como uma viúva sem um marido pelo qual chorar, nem mesmo uma mãe, esperando
pelo que quer que viesse depois da passagem para a eternidade. Poderia uma vida após a morte ser pior que sua vida atual, pela qual ela passara sem nenhum efeito
positivo, nunca sabendo o completo e misterioso poder do amor?
Não. A morte nunca poderia ser tão ruim quanto sua vida, uma vida que o câncer invadira, na qual ela havia sido abandonada, na qual andara um milhão de tristes quilômetros
sozinha.
- Anna?
Deus. Não ele, não agora. Ela limpou rapidamente os olhos, fingindo que haviam sido atingidos pela fumaça que veio da chaminé quando o vento deu uma guinada. - Oi,
Mason.
- Estou contente de encontrar você. Estava precisando lhe perguntar algo.
- Contanto que não seja pessoal.
- Ei, você está bem? Parece um pouco mexida.
- Como se tivesse visto um fantasma? - Anna conseguiu dar uma risada amarga.
- Bem, é mais ou menos isso que gostaria de perguntar a você. Porque há uma pintura do Solar Korban lá em baixo no porão - Anna moveu-se para perto do calor convidativo
da lareira do saguão de entrada, esfregando as mãos. O movimento tinha a intenção de manter uma certa distância entre ela e Mason, mas ele se aproximou desconfortavelmente
dela. Ele olhou os corredores e então falou, a voz mais baixa.
- A pintura tem um borrão sobre o telhado - disse ele - e o modo como a pintura está se degradando, parece que o artista talvez tenha escondido algumas figuras em
uma camada mais profunda da pintura, como uma imagem subliminar. Porque o borrão está começando a se parecer com pessoas.
- Os artistas não reciclam suas telas algumas vezes? Talvez o pintor tenha pintado por cima de um erro ou esboço rápido.
- Bem, foi isso que eu pensei, também. Mas agora consigo ver seus rostos.
Anna olhou para o retrato de Korban, se perguntando quantas vezes aquele rosto havia vivido na imaginação febril de algum pintor, quantas incontáveis horas seu parente
a muito morto havia se sentado em repouso empertigado como um objeto de adoração. Mesmo Cris havia comentado sobre como o solar e o rosto de Korban ficavam rondando
sua mente até que tudo que seus dedos conseguiam era desenhá-lo em carvão, tinta e lápis de cor. E Mason havia contado para Anna sobre o busto de Korban, como a
imagem do falecido assombrava seu sono e o impulsionava a trabalhar obsessivamente.
- Deixe-me adivinhar. - disse Anna - Uma das faces é Ephram Korban. Porque você o vê cada vez que fecha os olhos.
- Uma delas é Ephram Korban. - ele olhou de lado para o retrato, como se não confiasse de ficar de costas para ele. - Mas isso não é tão estranho, considerando que
ninguém parece fazer algo criativo aqui que não envolva o desgraçado, de um jeito ou de outro.
- Ele parece tão encantador, não é?
- Tão encantador quanto um ninho de serpentes, talvez.
- Korban foi bastante pintado por aqui. Grande coisa. O que mais tem de estranho na pintura?
- Um dos outros rostos. Quer dizer, o óleo da pintura está seco, e pelo pó na moldura, pode ter um ano ou vinte. Talvez mais. E você me disse que nunca esteve aqui
antes.
- Nunca minto, a não ser que tenha uma boa razão. - A não ser para mim mesma. Venho mentindo para mim mesma desde que aprendi a falar.
- Então, como você é uma caçadora de fantasmas, talvez fique interessada em saber como o seu rosto está nela.
O fogo cuspiu uma brasa nas pedras da lareira, na direção de Anna. Mason a esmagou com o pé.
- Mostre-me. - disse Anna.
CAPÍTULO 45
William Roth tirou os negativos de dentro do frasco de vidro com movimentos de quem tem prática. Ele havia desenrolado centenas de rolos de filme, mas essa era a
primeira vez que fazia isso dentro de uma adega. Uma luz vermelha teria sido útil, mas isso não era pior que revelar no interior de uma tenda no Sudão ou em uma
barraca na Amazônia. Ele misturou os compostos químicos sob a luz da lanterna, depois apagou-a, revelou os negativos e lavou-os com água.
Faltava apenas secar o filme. O ar do porão era parado, o que impediria a poeira pesada de aderir à emulsão. Havia poeira para todo lado nesse lugar, junto com as
cinzas dos fogos constantes. E aquele sujeito, Mason, com todos os seus cavacos e pó.
Roth tateou ao longo da superfície de trabalho, encontrou os fósforos e o globo de vidro aquecido da lamparina, então riscou o fósforo e encostou ao pavio. Ele havia
estendido um barbante cruzando a sala e dependurou os seis rolos de filme com a ajuda de prendedores de roupa que pegara emprestado com a servente. Após pendurar
a última tira, colocando um prendedor adicional na ponta para esticar a celulose, aproximou a lamparina para observar seu trabalho de perto.
Ah, ali estavam as fotografias da ponte, e mesmo sem cores e com os tons de preto, branco e cinza invertidos, ele podia dizer quais fotos adicionariam à lenda que
era Roth. Ele olhou pelos quadrados das imagens, chegando àqueles da ponte e de Lilith.
- Mas que diabos? - Ele aproximou mais a lamparina, mesmo correndo o risco de encurvar a celulose pelo calor.
Ali estava a ponte, onde desaparecia dentro dos pinheiros que levavam de volta à civilização de Black Rock. Os corvos esquisitos estavam perfeitamente delineados
sobre os corrimões e a teia de aranha congelada pendurava-se como uma renda negra sobre as fotos. Mas Lilith não aparecia em nenhuma delas.
Roth esfregou os olhos. Talvez ele tivesse avançado o filme demais, tirado as fotos dela após o filme ter acabado. Isso era o tipo de coisa que um amador faria,
vovós e titias, mas não um mestre. Quando fora a última vez que Roth cometera um erro?
- Mas que porcaria desgraçada! -murmurou ele, seu sotaque agora uma mistura de Manchester e classes baixas de Cleveland. Talvez fosse o momento para um drinque,
relaxar junto à lareira e descansar um pouco. Os benefícios da fama e de um carisma falso talvez fossem efêmeros se ele continuasse desse jeito. Em especial porque
Spence estava se mostrando duro como uma parede de pedras. Se a sorte de Roth não melhorasse logo, ele poderia começar a culpar a maldição de Korban ou alguma coisa
do estilo.
Ele levantou a lamparina, as bases empoeiradas das garrafas à sua volta como olhos ancestrais. Ele tirou uma das garrafas da estante. O vidro escuro tinha apenas
uma etiqueta simples, engarrafado aqui mesmo na fazenda. À tinta, alguém havia escrito 1909. Provavelmente um ano decente. Decente o suficiente para apagar a lembrança
da ponte, de qualquer forma. E talvez decente o suficiente para aquecer seu coração e as pernas da bela e suave Lilith.
Roth colocou a garrafa embaixo do braço e deixou o porão, as fotografias confiadas à escuridão.
CAPÍTULO 46
- Ela não vai me deixar partir. - disse Adam.
- Droga. - Paul deu outra tragada de seu baseado. O odor doce da maconha espalhou-se pela varanda traseira. - Uma pena, princesa.
Era o terceiro baseado de Paul naquele dia. Uma conversa racional seria impossível. Mas até aí, não tinha sido sempre assim? Não havia muita coisa restante para
discutir, de qualquer forma.
Adam estava encostado no parapeito, observando as montanhas. Paul estava em uma das cadeiras de balanço, não se preocupando em chegar sua cadeira mais perto de Adam.
O som do piano vazava da biblioteca, sufocando a canção matinal dos pássaros. Alguém riu embriagadamente dentro da casa, sem dúvida outro artista sofredor que havia
se autoinfligido a miséria de ir embora.
Adam não possuía nem essa patética desculpa para seus pesadelos. Porque havia ido dormir sóbrio e sua mente estava demasiadamente límpida, preservando cada pequeno
detalhe de sua morte e subsequente ressurreição.
- Sabe de uma coisa? - O rosto de Paul parecia sinistro enquanto ele dava uma profunda tragada. Ele segurou a respiração e então a expeliu na direção de Adam com
um floreio. - Talvez se você desse uma relaxada, poderia aproveitar melhor a vida. Você sempre tem que ser tão sério assim sobre tudo?
Um garoto certinho de Manhattan. Esse era Adam, com certeza. Preocupado com fundos de investimentos quando a maior parte das pessoas estava se preocupando com encontrar
um amante para a noite, decidindo qual banda era e melhor do momento ou escolhendo um novo estilista para suas roupas. Pelo menos Adam não era egoísta. Era por isso
que fazer a relação dar certo era tão importante para ele. Era por isso que queria adotar uma criança.
Ele queria compartilhar o que tinha a oferecer, doar-se. Ele queria um lar no coração de alguém. Só que agora ele temia que não fosse no de Paul.
- Coloque para fora. - disse Adam - Vá em frente e me destrua. Isso é tudo o que você tem feito desde que chegamos aqui, mesmo. Pode acabar com isso logo.
Paul deu uma risadinha. - O mártir. Pregos nas palmas das mãos, uma lança entre as costelas. Pobre garoto. Você me deu uma ideia para meu próximo vídeo. O nobre
sofrimento de Adam Andrews. Filmado no modo lamento contínuo.
Idiota. Idiota.
Adam fechou um punho, a raiva misturando-se com o medo, criando uma mistura quente que queimava em suas entranhas. Mas perder o controle daria a vitória final a
Paul. Ele sempre perdia com graça. E tinha uma grande experiência nisso.
Ele forçou a voz a ficar calma e baixa. - Olha, já que estou preso aqui por mais cinco semanas, podemos pelo menos ser civilizados um com o outro? Desse jeito, podemos
depois olhar para esse dia e fingir que não foi assim tão ruim.
A cadeira gemeu quando Paul se levantou e a brasa da guimba do baseado voou até a grama ao lado da varanda. Paul caminhou até Adam e inclinou-se até que seu rosto
estivesse tão próximo que Adam podia sentir o cheiro da machona e bebida em seu hálito.
- Agora você está sendo sensato. - disse Paul - Já que estamos presos um ao outro, podemos aproveitar.
Adam tentou esquivar-se do contato, mas Paul o abraçou, a respiração quente no pescoço de Adam.
- Paul, acho que não...
- Shh. Você fica todo excitado e ligado nesse Ephram Korban, falando dele em seus sonhos, mas é provável que eu esteja mais disponível.
- Não posso, sabendo que você não liga para mim. Agora pare com isso, a Srta. Mamie pode nos ver.
Paul deu um passo para trás e olhou nos olhos de Adam. Sorriu. Seu maldito cabelo estava desgrenhado e ele estava mortalmente belo, e sabia disso.
De súbito, seu rosto mudou, contorcido, e Ephram Korban, aquele rosto cruel e maligno do pesadelo de Adam, olhou para ele como uma máscara de halloween.
E o sonho voltou com todo seu fulgor e realismo, Korban jogando-o sobre o parapeito da balaustrada, só que dessa vez ele o estava beijando, a respiração quente e
fétida, a língua como uma cobra insistente, a boca lhe roubando o ar dos pulmões. Então, drenado e vazio, Korban sugando-o para dentro do longo túnel em direção
ao que Adam sabia que o esperava logo após a curva. A coisa que ele mais temia.
Para Adam, não haveria nada. Nessa parte de seu túnel, após ele passar pelos fantasmas, entraria no seu pesadelo de infância. No pesadelo de sufocamento, sem visão,
sem som, sem toque, exceto a escuridão pressionando à sua volta. Nenhum sabor, a não ser o suave nada desprovido de ar.
Nenhum sentimento a não ser o medo que vinha com o isolamento. E o terrível conhecimento de que aquela bolha era completa, intacta, imutável. Solidão eterna.
Seria por isso seu desejo desesperado de adotar? Fazer com que alguém precisasse dele? De forma que a criança não pudesse deixá-lo, pelo menos por muitos anos? Anos
que a textura preto e branco da vida seria mantida distante.
Ele piscou e era Paul à sua frente, não Ephram Korban. As notas do piano eram como agulhas de gelo sopradas pelo vento.
Apenas uma lembrança ruim. Que idade você tinha quando teve pela primeira vez esse sonho de sufocação? Três, quatro? Antes mesmo de saber sobre palavras?
E essa casa trouxe isso de volta, o sonho voltou farejando seus calcanhares como um estranho cão negro que o seguiu até em casa. Um cão que não chega próximo o suficiente
para ser cuidado, mas que também não fica distante o suficiente para ser esquecido.
Adam não sabia o que significava o sonho e ele também não estava interessado na opinião de um psicólogo. Apenas sabia que não queria ficar só. Mesmo que isso significasse
render-se, perder, agarrar e aferrar-se em desespero. Ele colocou os braços à volta de Paul, agarrando-se a ele como se estivesse sobre areia movediça.
O sonho da morte. Ephram Korban. Os fantasmas. Tudo parte disso. A casa poderia abocanhá-los com suas presas e então engoli-lo para dentro de seu estômago negro.
Engoli-lo sozinho, a não ser que ele levasse alguém consigo para dentro do vácuo silencioso.
- Eu me preocupo com você. - murmurou Paul em seu ouvido. - Não vê isso?
Paul se preocupava com a pele, com a carne. Mas tudo bem. Era tudo o que eles eram, de qualquer modo. Eles não possuíam espírito. Duas almas nunca poderiam juntar-se
em uma, nem mesmo nos sonhos.
Adam deixou escapar uma respiração rápida. Ele odiava os sentimentos que inundavam seu corpo, a paixão que o traía. Mas amor e ódio eram basicamente a mesma coisa,
e ambos eram melhores do que não sentir nada. Qualquer coisa era melhor do que o sufocamento da solidão que o esperava no seu túnel da alma. Ele puxou Paul para
perto.
- Eu tenho uma ideia. - disse Paul - Vamos para cima do telhado. Vamos subir aquelas escadinhas. Brincar um pouco lá onde você teve aquele sonho. E prometo não empurrá-lo
lá de cima.
- Isso é o que sempre dizem. - disse Adam - E a próxima coisa que você percebe é que está olhando para o próprio fantasma.
- Confie em mim. - Paul pegou sua mão e o levou para dentro.
Quando entraram na casa, Adam se deu conta de que as pessoas nunca entregavam seus corações, não importava o quão inclinadas, desesperadas ou solitárias estivessem.
Corações sempre tinham que ser roubados. Pela força ou pela enganação. Amor era assassinato, morte por roubo cardíaco e as alternativas eram muito piores.
Os olhos pintados de Korban os olharam, brilhando com fria empatia, sábio perante a futilidade dos sonhos humanos.
CAPÍTULO 47
Anna segurou a lamparina mais alto. O ar no porão cheirava a madeira e podridão, as sombras rondando os cantos como coisas sólidas. A estátua de Mason esgueirou-se
com o tremeluzir da chama, as formas grosseiras sugerindo uma força obscena. O busto de Korban era ainda mais inquietante, pois a face havia ficado mais vívida com
o polimento da madeira. Havia sido entalhada com todo o amor que Deus havia invocado para criar Adão e Eva.
- O que quer dizer? - perguntou Mason.
- Acho que quer dizer que você é obcecado.
- Estou falando da pintura.
- Você fez tudo isso desde ontem?
- Ei, os críticos me amarão, Mama ficará orgulhosa, sou o Michelangelo da montanha, o herói não identificado da escultura, blá, blá, blá. Mas olhe a maldita pintura.
Anna olhou. Lá, na balaustrada do telhado, estava um grupo de figuras em relevo branco contra o fundo escuro. Mais à frente estava a mulher que Anna havia visto
em seus sonhos, a mulher com o longo vestido fluido, o buquê nas mãos. A boca da mulher estava aberta, pega em um grito ou sussurro, os olhos suplicantes, implorando
liberdade para as formas às suas costas.
- Essa é você. - disse Mason.
- Não. A princípio, pensei que fosse.
- Você viu essa pintura antes?
- Em meus sonhos. No último ano, desde que descobri... desde que decidi vir para o Solar Korban.
- Se não é você, então quem é?
- Você não acreditaria se eu lhe contasse.
Mason balançou o braço indicando seu trabalho. - Eu me tornei um gênio do dia para a noite, cada vez que fecho os olhos, Korban está exatamente ali, me dizendo para
voltar ao trabalho, você, Ransom e metade dos hóspedes convencidos de que essa casa é mal assombrada e essa pintura pintou a si própria sem ninguém ver. Agora me
diga no que não vou acreditar.
- Certo. Prometa que não vai rir.
- Não estou com humor para rir desde que cheguei aqui. Sou um artista sério, não sabia disso?
- Ah, claro. Você tem "sofrimento" escrito na testa. É seu escudo contra o mundo. Essa é sua desculpa para manter as pessoas distantes. Você é tão duro quanto a
madeira dessa maldita estátua.
Os olhos de Mason brilharam com raiva e, por um momento, Anna viu Stephen, a máscara de raiva incontida com a aceitação de Anna sobre a morte iminente, os cálculos
sobre o que ela perderia, o desprezo quando ele soube que ela estava de partida para uma casa "mal assombrada" que nunca registrara nenhum dado empírico anômalo.
Mason agarrou seu braço, apertando-o o suficiente para machucar. - Agora me escute. Quando eu tinha seis anos de idade, minha mãe comprou um pacote de massa de modelar.
Foi como mágica, enterrar meus dedos naquele negócio, torcendo e moldando do jeito que queria. Pela primeira vez na vida, eu tinha controle sobre alguma coisa.
- Eu fiz um dinossauro para minha mãe, copiando de uma figura de um livro. Eu inclusive coloquei uma fileira de placas ósseas em sua espinha e espinhos em seu rabo,
dois longos chifres e olhos que pareciam que poderiam encarar um T. Rex. Mama adorou. Pela primeira vez na vida, havia feito algo que a deixara orgulhosa.
Mason apertou mais forte e Anna temeu que ele tivesse perdido a razão e que quebraria seu braço como se fosse uma de suas espátulas de modelagem. Ele falava cada
vez mais rápido, o rosto vermelho, os olhos negros e distantes. - E meu pai chegou, viu o dinossauro, derrubou-o no chão e pisou em cima. Chamou-me de um maldito
sonhador, um idiota preguiçoso. Eu ainda consigo ver aquela pegada no chão, as marcas de sua bota na massa. Fez com que me sentisse bem especial, pode crer.
- E você é especial porque vê coisas que não existem. Bem, deixe-me lhe dizer uma coisa, pequena senhorita esquisita, essa não é uma de suas histórias de acampamento.
Isso está acontecendo e é real. - Ele a empurrou para perto da pintura. - Você consegue ver que está acontecendo.
Ela se soltou torcendo o braço e se distanciou com a lamparina. O movimento da luz fez as sombras mudarem de lugar, dando a ilusão de que a estátua havia mudado
de posição junto com as tábuas e o fio que as seguravam. Ela olhou para dentro da pequena chama da lamparina, onde o laranja dava lugar ao azul e então ao amarelo.
Talvez, se ela queimasse os olhos, nunca mais veria outro fantasma no pequeno tempo que ainda lhe restava. Cega para a Visão ou para qualquer visão.
- Essa não sou eu. - disse ela, ordenando que as lágrimas evaporassem. - É minha mãe.
- Sua mãe?!
- Ela está aqui. Morta. Ela é um deles agora. E eles podem ficar com ela, no que me toque.
- Um de quem? Espere um segundo. Não estou entendendo nada.
- Junte-se ao clube. Eu entendi cada vez menos durante o dia.
Ela bateu com a lamparina sobre a bancada de trabalho de Mason com força suficiente para tilintar os vidros. As trevas saltaram sobre eles enquanto a chama fraquejava,
mas então iniciaram o lento retrocesso na direção de Anna. - Aqui. Você vai precisar disso, pois fica bem escuro quando sua cabeça estiver dentro de seu rabo, Mason.
Anna subiu as escadas, agradecendo o ar frio que se derramava sobre ela como dedos feitos de nevoeiro. Então a dor veio novamente, em ondas gentis, lembrando-a da
areia que escorria lentamente na fresta da ampulheta que dividia o passado do futuro. Logo, a areia acabaria e a escuridão viria cobrar sua alma. Logo, mas definitivamente
não logo o suficiente.
A cada degrau ela batia o pé e repetia seu pequeno ritual de contagem regressiva.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola... Oito, um par de biscoitos...
- Anna. Espere!
Sete, um canudo dobrado... Seis, um nove no espelho...
- Sinto muito.
Ela também sentia.
Cinco, uma pequena foice... Quatro, uma cruz com um braço...
- Estou assustado.
Junte-se ao clube.
Três, forcado de inglês... Dois, um gancho vazio...
Um, uma linha que divide...
- Ajude-me.
Zero.
Nada. Nada.
Ela abriu a porta e andou pelo corredor, dentro das artérias da casa, atenta para sua respiração contida e paciente, seu coração morno e acolhedor. A aceitação lhe
trouxe paz. Esse era o primeiro e último lugar ao qual ela pertencera. Sylvia Hartley estava certa. Ela teve que voltar ao lar.
CAPÍTULO 48
Ela teve que voltar ao lar. Sylvia moeu a raiz seca, o sangue correndo pelas veias como neve derretida pelas pedras no final do inverno. Apenas mais algumas horas
até o pôr do sol e o nascer da lua azul. Sylvia havia rezado por essa noite por quase cem anos e as cinzas de uma prece são mais fortes que os fogos mais quentes
do inferno.
Os espíritos reviraram-se na terra, giraram em seus túneis, inquietos, perturbados pelo poder crescente de Ephram Korban. Ela conhecia Ephram melhor que ninguém,
melhor até mesmo que Margaret ou "Senhorita Mamie", como ela passou a se chamar. Muitas foram as noites nas quais a voz de Ephram assombrou o vento de Beechy Gap,
sussurrando para Sylvia, fazendo-a se arrastar atrás de seus patuás. E ele estava evocando uma tempestade agora, havia convocado George Lawson e um dos novos hóspedes,
outros ainda por vir. No próximo nascer do sol, Korban os teria todos. Mesmo Anna. Especialmente Anna.
Sylvia pegou o frasco com ossos de gato, espalhando alguns no almofariz. Sua mão doeu ao segurar a pedra, mas o pó teria que ser tão fino quanto poeira de sepultura.
Ela socou a mistura novamente, macerou as ervas secas, tremendo. O fogo crepitou, o que ela considerou um bom augúrio.
Sua fé seria suficiente? Ela tinha os feitiços, passara toda a vida ensaiando para essa noite. Por tempo demais ela havia caminhado por essas montanhas, colhendo
raízes e lendas, cruzando as fronteiras para conversar com os mortos, mesmo quando esses apenas queriam ficar em paz. O feitiço agarrou-se a seus lábios rachados
como as balbucias de um delírio febril.
Quando fosse o momento certo, ela o diria. Gelo e fogo. Ephram Korban era como gelo e fogo. Morto e vivo. Ambos iguais, quando você chega à raiz de tudo.
Ela pegou uma pequena caixa de cedro de uma reentrância da longa parede. O pedaço de tecido estava cinza com a idade, manchado com o fruto da alma de quem o havia
usado. Sylvia o encostou aos lábios, murmurando "vá para fora congelar", beijou-o e colocou-o no pequeno monte de pó no almofariz.
Ela pilou a pedra de encontro ao tecido, as fibras se desfazendo, das cinzas às cinzas, do pó ao pó, do gelo ao fogo.
CAPÍTULO 49
Roth lambeu os lábios. Essa era a parte boa. A garota havia caído em sua conversa boba. Engolido o anzol, a linha e a chumbada. O que lhe deu uma ideia do que ele
faria com Lilith quando conseguisse entrar em seu quarto.
Ela o levou por uma pequena porta na copa, uma que ele nunca havia reparado antes, um lugar de descanso e sombras que parecia ideal para as classes inferiores. Imagine,
os serventes estavam sempre presentes, como se nunca precisassem dormir. Uma vez, ele vira uma empregada cuidando do fogo na sala de estar às três da manhã, e os
trabalhadores chegavam a toda hora com cargas de lenha.
Roth seguiu Lilith, que descia por uma escada estreita. Essa era uma sessão separada do porão, separada por paredes da área onde Mason trabalhava e Roth havia revelado
seus negativos. Quando a porta se fechou atrás deles, estavam em uma escuridão completa. Nenhum dos dois tinha uma lamparina e a inabilidade de ver excitou Roth,
fazendo sua pele vibrar de ansiedade. Ou talvez fosse o ar morto e frio, a sensação de clausura que faziam seu coração acelerar.
Ela havia sido fácil e ansiosa, certo. A maior parte das mulheres agia como se dar uma rapidinha à luz do dia fosse uma afronta aos deuses. Lilith nem mesmo havia
terminado sua primeira taça de vinho antes de se inclinar para Roth, dando a ele seu sorriso especial, olhando dentro dos olhos cinzentos que nenhuma mulher em sã
consciência poderia resistir.
Ela estendeu uma mão, deixando a outra na parede para não perder o equilíbrio. Ele tocou o cabelo de Lilith e deslizou a mão para baixo onde deveria estar seu ombro,
mas ela se manteve alguns passos à sua frente. Ela não havia falado desde que ele fizera sua sugestão, apenas sorrira em submissão e inclinara a cabeça para a porta
secreta. Ela gostava de jogos, se gostava.
Roth desceu do piso de madeira para uma área dura e plana. Então ouviu o fósforo riscando alguns passos a frente e o brilho de uma chama apareceu. O rosto de Lilith
era um círculo de luz, mas era impossível, porque ela estava ao seu lado. O vestido preto deixava seu corpo invisível e, por um momento, suas mãos e rosto pareciam
estar flutuando pelo ar. Ele largou o cabelo dela, ou o que quer que estivesse tocando, e deu um pulo para trás quando ela acendeu uma vela.
- Devemos ter fogo. - murmurou ela, a voz rouca. Roth olhou para sua mão e viu que estava coberta de teias de aranha. Ele gemeu e limpou a mão na calça.
Ela riu de leve. - Isso o assustou, Sr. Roth?
- Odeio aranhas, lembra? Desde que eu tinha nove anos e uma delas entrou na minha boca enquanto me arrastava sob a varanda. Tive pesadelos por uma semana seguida
após isso.
- Pobre garoto. Você está a salvo comigo.
- Espero que não a salvo demais, hum? Eu vivo para o perigo e você está parecendo bem perigosa agora, meu amor.
Quando a vela finalmente pegou fogo, ele pôde perceber os cantos penumbrentos do aposento, se perguntando se havia aranhas espreitando nas sombras. Dois metros de
você, diziam. Contanto que elas permanecessem a dois metros. Ele notou uma alcova, que possuía outra vela. Como ela havia acendido aquela? Talvez aquele aposento
levasse a outro, mas então ele viu as costas de Lilith e seu próprio rosto. Um espelho, tão grande quanto a cama sob ele, refletia o aposento. Garota levada.
Ele lambeu os lábios e correu a língua sobre os dentes. O aposento era pequeno e as paredes de alvenaria, tão grossas que nenhum som poderia escapar. Talvez ela
apreciasse soltar a voz quando estivesse dando uma. Nada a que Roth se opusesse.
O aposento estava livre de mobília, tirando a cama, e isso incomodou Roth por um momento. Não havia cobertores sobre o colchão, apenas um tecido de linho que necessitava
urgentemente de uma lavagem. O lugar era tão desanimador quanto a cela de um monge. Mas ele esqueceu de tudo isso quando Lilith colocou a vela sobre a lareira e
sentou-se na cama, olhando para ele com olhos devassos.
Olhos negros. Mais profundos que um bastão de carvão de Newcastle. Ele não viu as coisas que desejava ver. Ele gostava que as garotas tivessem um pouco de medo,
ou pelo menos um pouco de apreensão. Fazia com que se esforçassem mais para agradar.
Mas ele não se apegaria a detalhes. Todas eram iguais, depois de tudo feito. E a pele dela tinha uma aparência suficientemente cremosa. Ele havia pensado que ela
coraria um pouco, mas Lilith apenas sorriu novamente, e algo naquele sorriso o incomodou.
- Você não vai se envolver em confusão, não é? Se envolvendo com os hóspedes? - perguntou ele, mais para quebrar o silêncio do que por preocupação real.
- A Srta. Mamie diz que a satisfação dos hóspedes é o segredo para bons negócios. - disse ela e, novamente, o sorriso endiabrado estava em seus lábios. Por um momento,
Roth se sentiu como o seduzido ao invés do sedutor. Era sua fama, seu charme, sua aura de poder que a havia atraído.
Seu coração batia forte e ele moveu-se pelo aposento em direção à cama. Ela deitou-se sobre a cama, abrindo os braços, abrindo-se para ele.
- Sou tão bonita como uma pintura, Sr. Roth?
Ele engoliu em seco. Talvez fosse todo aquele vinho que ele havia bebido, mas estava ficando excitado rápido demais. Sentiu-se como um menino de escola idiota olhando
para uma revista de sacanagem. Ele não gostava de perder o controle. Nenhuma garota podia mexer com suas emoções tão facilmente.
Os seios dela haviam se achatado debaixo do colarinho do vestido e ela levantou os joelhos de modo que suas pernas ficaram abertas. O vestido escorregou pelas coxas
e Roth não pôde desviar o olhar para longe do espaço escuro entre os quadris dela. Ele nunca havia ficado tão duro na vida.
Ou talvez fosse essa casa, aquela coceira esquisita que havia sentido bem lá no fundo de sua cabeça desde que chegara. A coceira parecia ter aumentado e se espalhado
pelos membros. Fogo, era isso que era. Um pequeno jato de calor expandindo em um brilho.
Ele se ajoelhou, querendo tocá-la. Ele teria que ir devagar ou se tornaria um animal. Ele não queria apenas dar umazinha, ele queria que fosse devagar e gostoso.
Elas gostavam disso. Ele gostava de ouvi-las gemendo e implorando para que acabasse.
Mas agora ele estava com receio de que estivesse escorregando, de que o poder e controle tivessem mudado de dono e que ela estivesse ditando as regras. Suas mãos
tremeram quando as estendeu na direção dela e ele ficou subitamente bravo consigo. Ele nunca tremia. Ele havia tirado fotos de rinocerontes atacando a dez metros
de distância, com uma câmera à mão livre, e elas haviam saído tão claras e focadas como o cartaz com letras do oftalmologista.
Então ele fez o que sempre fazia quando queria prolongar ou negar sua paixão: pensou sobre seu trabalho. A batelada de negativos que ele revelara essa manhã. Algo
neles o havia incomodado, mas não conseguia lembrar direito no momento. Definitivamente, o vinho o pegara de jeito. E sua raiva contra Spence também havia toldado
seus pensamentos. Bem, apenas um modo de exorcizar o diabo.
Ele colocou as mãos na parte inferior das coxas dela. Sua pele era tépida, a mesma temperatura do aposento. Estranho, mas ele a esquentaria rapidamente. Nada como
um pouco de fricção para consertar aquilo. Mas ainda não.
Roth subiu na cama, pensou em remover as calças, mas decidiu esperar. As mãos de Lilith estavam em seus ombros, à volta de seu pescoço, puxando seu rosto na direção
do dela. Que diabos, não há motivo para fazê-la sofrer mais. Por alguma razão, a falta de calor no corpo dela o excitou ainda mais. Talvez fosse esse aposento com
jeito de cripta que a deixasse gelada. Ele tomou como desafio pessoal avivar seu fogo.
Seus lábios se pressionaram contra os dela e a língua dele moveu-se incertamente na boca dela. Para uma garota atirada, ela estava agindo como se nunca houvesse
beijado antes. Ele hesitou, pois algo estava errado dentro da boca dela.
Roth pressionou seu corpo sobre o de Lilith, o corpo dela moldando-se ao seu mesmo com o vestido. Os seios dela comprimiram-se debaixo dele e ele gostou do que sentiu.
Mas ele estava sendo cuidadoso para não gostar demais daquilo. Devagar e gostoso era o jeito correto, ainda que seu sangue estivesse bombeando forte por sua carne.
O que era isso dentro da boca dela?
Era como o resto dela, um pouco fria demais. Qual era a temperatura debaixo da terra, constantes dezenove graus ou algo assim? Mas com certeza a boca dela deveria
ser quente e não tão seca. Era quase como se ele estivesse colocando a língua no interior de um bolso de camisa. Ele esperava que ela não fosse seca assim em todos
os lugares.
Lilith gemeu dentro de sua boca. Ela não tinha nenhum líquido?
Ela se contorceu debaixo dele e ele esqueceu de quão esquisita era sua língua. Ele pegou o ombro do vestido e começou a puxá-lo para expor um pouco mais de carne
sob a luz da vela.
- Sim. - gemeu ela.
- Sim. - disse outra voz. Que diabos?
Provavelmente apenas um eco nas paredes de pedra. Um truque de acústica.
Mas o ar morto do aposento engolia o som inteiro em vez de deixá-lo reverberar.
Roth captou um leve movimento que o distraiu do fluxo de sangue abaixo da cintura. Então ele se lembrou do espelho e o olhou. Talvez se observasse e visse aquele
traseiro adorável debaixo dele, poderia reavivar sua excitação.
No espelho, seu rosto ficou maior, como se estivesse se vendo por uma lente. E por que aquilo estava errado?
Foi apenas por uma fração de segundo, mas tempo suficiente para que ele se desse conta de que o espelho estava caindo sobre a cama, sobre eles, como que em câmera
lenta. E aquele espelho deveria pesar uns cinquenta quilos. Se ele quebrasse...
Se ele se quebrasse, Roth poderia ficar gravemente ferido. Gravemente.
Mas ele não podia se mover, pois Lilith tinha seus membros à sua volta e, com os diabos, ela era forte. Ele gemeu enquanto tentava se livrar dela, mas ela tinha
muitos braços, braços demais, arranhando e se agarrando. Viu seu reflexo no espelho e ela não era mais Lilith, mas uma aranha negra, achatada e grossa, as presas
próximas a seus lábios, procurando um beijo de alma.
Viúva negra, sua mente gritou para ele, ela sempre devora seu parceiro.
Olhando para cima, ele mal reconheceu seu reflexo, os olhos grandes, a boca um túnel negro, as pontas dos oito braços de Lilith se agarrando a ele, os pelos dos
palpos tocando sua carne.
Mas antes que a dor conseguisse lançar sua teia, o espelho estava sobre ele e conforme o vidro se quebrou, não era seu rosto nele, mas o de Korban.
Então os fragmentos prateados penetraram sua carne e Lilith deixou correr seu veneno, levando-o para o longo túnel negro, Ephrarn Korban sorrindo para ele, segurando
uma colher que se revolvia como o remexer frenético das aranhas.
- Hora de tomar seu xarope, Sr Roth - disse Korban.
CAPÍTULO 50
- Como está nossa estátua? - A Srta. Mamie esperava que sua impaciência estivesse profundamente enterrada, do mesmo modo que suas emoções, a não ser quando sob o
olhar penetrante de Ephram.
- Ficará adorável. - disse Mason, de pé à porta de seu quarto, os olhos inchados, o cabelo desfeito. - Quer entrar?
Ela e Ephram haviam passado muitas noites preciosas ali, horas que pareciam ainda mais doces com a distância dos anos. Mas o quarto a perturbava porque para sempre
teria o fedor e as máculas deixadas por Sylvia, como se as paredes ainda carregassem as lembranças dos pecados de Ephram. Ela poderia perdoar, com certeza. Todas
as mulheres perdoam, era como o amor funcionava, mas ela nunca poderia esquecer. Mesmo que Ephram a fizesse viver mil anos.
Mason abriu a porta e ela olhou além dele na direção da lareira, o orvalho secando na janela, o rosto sorridente de Ephram na parede.
- Eu só tenho um minutinho. - disse ela - Estou atarefada me preparando para a festa.
- Festa?
- A festa da lua azul. É uma tradição no Solar Korban. Sua presença é obrigatória.
- Claro. Acho que tenho tempo para isso.
- Não tempo demais, espero. Sei que você é dedicado a seu trabalho.
- Isso me lembra uma coisa. Você sabe algo sobre a pintura que retrata o solar e está lá no porão?
O ódio preencheu a Srta. Mamie, queimou-a, chamuscou-a como o amor de seu marido morto. Ela não mais se importava se Mason visse as chamas em seus olhos. Ele não
poderia escapar, de qualquer forma. Ele estava tão preso à casa quanto ela.
Ela forçou um sorriso, a boa anfitriã. - Mestre Korban, receio. Ele tentou a sorte como pintor.
A raiva abriu um túnel negro em seu coração, o fio pelo qual Ephram mantinha seu controle sobre ela. Um vento gélido soprou da boca do túnel, congelando seu peito.
A ameaça e a promessa de Ephram. Ele precisava que ela sentisse medo tanto quanto precisava das emoções dos outros. Ela apenas desejava que seu amor fosse tudo o
que ele exigia dela. Mas simplesmente amor nunca era suficiente.
- Ele era talentoso. - Mason não deve ter reparado seu tormento. Ela era eficiente em escondê-lo, depois de todas essas décadas.
- Um de seus maiores pesares foi nunca tê-la acabado. - disse ela - Existe algo melancólico no último trabalho de um artista, mesmo quando os talentos do artista
são ordinários e mortais. As pessoas sempre têm esperança de deixar uma impressão que viverá após suas mortes.
- Nossa vaidade. - disse Mason - E isso nos deixa loucos. Porque sabemos que nunca vamos atingir a perfeição.
- Perfeição. - A Srta. Mamie não precisava da pintura a sua frente para lembrá-la. Ela poderia fechar os olhos e ver a casa, as janelas iluminadas, as nuvens baixas,
a balaustrada sobre o telhado. Ela poderia sentir o gosto da brisa que soprava do nordeste, cortante após sua jornada sobre a tundra canadense. Música de cordas
movia-se pelo ar, fumaça saía das chaminés na direção do olho redondo da lua. E Ephram os chamou para cima, convocando seus escravos espirituais e enviando-os atrás
de Rachel Faye Hartley.
Ephram não gostava que sua própria família tivesse segredos escondidos dele. Rachel havia fugido, saltado para a morte da balaustrada do telhado. Rachel havia levado
seus segredos consigo para a sepultura, mas também os trouxera de volta de lá.
A dor cresceu dentro da Srta. Mamie, consumindo-a em um fulgor de ódio. Ephram e Sylvia estavam ligados pelo sangue. A família bastarda sempre teria um lugar maior
em seu coração eterno, não importava os sacrifícios que a Srta. Mamie pudesse fazer. Não importava quão profunda fosse sua devoção. E aquela pintura, a que Ephram
denominava seu trabalho em andamento, era uma lembrança eterna disso tudo.
Ela se virou, na direção do corredor, o retrato de Ephram próximo o suficiente para ser tocado.
- Aquela pintura deveria ter sido queimada há muito tempo. - disse ela.
- Anna disse que a mãe dela estava na pintura.
- Esqueça Anna. Concentre-se apenas em sua estátua.
- Anna disse que nunca esteve aqui. Como Korban poderia ter sabido? Ele também está na pintura. E alguém que se parece com você.
- Ilusões. - disse a Srta. Mamie - Nunca confie em um artista, pois os sonhos são enganadores e as visões, efêmeras.
- Posso confiar em alguém?
- Confie em seu coração. Sr. Jackson. Essa é a única coisa na qual vale a pena confiar.
- Meu coração está sendo puxado em três direções diferentes.
Ela estudou o rosto do jovem. Ele era muito parecido com Ephram em alguns modos, teimoso e orgulhoso, com receio da fraqueza e do fracasso. Mas Ephram havia tomado
as rédeas de sua vida, determinado a não deixar nada inacabado em seu trabalho. Obcecado com o controle de seu mundo.
- Acho que você deve apenas partir seu coração em pedaços suficientes para seguir em frente. Contanto que o maior pedaço fique com a estátua.
- Não se preocupe. Eu a deixarei orgulhosa. Deixarei todos orgulhosos.
- Tenho certeza de que deixará. Eu o vejo à noite. Não se atrase.
A porta se fechou. A Srta. Mamie tocou no medalhão à volta do pescoço. Quando Ephram novamente estivesse vestindo carne, ele provaria que o amor nunca morre. Sylvia,
Rachel, Anna, Lilith e todas as outras seriam esquecidas, seriam cinzas de lembranças, esvanecendo, morrendo e, por fim, perdidas nas trevas. Enquanto a Srta. Mamie
e Ephram continuariam em fogo, juntos para sempre.
CAPÍTULO 51
Anna se sentou em sua cama, enrolada em um cobertor. O quarto havia ficado frio durante a tarde, a temperatura caindo com o fogo baixo. Ela se pegou olhando o retrato
de Ephram Korban, procurando em seu rosto feições genéticas que foram passadas para ela. Korban, Rachel e Sylvia. E no meio disso tudo um pai sem rosto, que a tirara
da montanha, a abandonara apenas com um primeiro nome e morrera em vez de retornar às montanhas. Pelas próprias mãos e um laço, de acordo com Sylvia.
Ela havia ficado sem rumo por tanto tempo, sem raízes e desconectada, e agora ela pertencia a pessoas demais. Sua linhagem de sangue era muito retorcida, as gerações
torcidas por qualquer que fosse a magia que diminuísse a passagem do tempo no solar. Porque se Sylvia tinha cento e cinco anos e Anna vinte e seis, então Rachel
havia morrido a menos de três décadas atrás. Ou talvez quando morresse, se tornasse atemporal, os anos não mais contando.
Houve uma batida na porta e Cris entrou. - Oi, garota. O que há de novo?
- Apenas remoendo umas coisas.
- Ei, isso não é jeito de passar o tempo em um retiro de artistas. Deixe isso para os idiotas que pensam que está tudo bem passar fome em nome da arte. Ou para fotógrafos
cabeça de bagre.
- Ah, e o ponto disso é?
- É exatamente esse o ponto. Se não importa, se é apenas um sonho molhado solitário, por que não se divertir?
- Talvez você esteja certa. Estou levando as coisas um pouco a sério demais.
- Esse é o espírito. - Cris foi para o banheiro, parando à porta. - Desculpe-me. É meu período. Lua cheia hoje.
- Fiquei sabendo.
- E uma grande festa no telhado. A Srta. Mamie disse que não deveríamos perdê-la. Se Mason estiver por lá, talvez você se dê bem. - Cris piscou o olho e então fechou
a porta. Anna apertou o cobertor mais à volta dos ombros.
Quando Cris saiu, vasculhou seu armário por um casaco. - Ei, você andou mexendo no meu bloco de desenhos?
- Não estive aqui o dia todo.
Cris o segurou para que ela visse. Espalhados em uma grande folha de papel, em riscos cortantes de lápis vermelho, estavam as palavras Vá congelar lá fora e volte
em fogo.
- Talvez tenha sido uma das camareiras. - disse Anna - Um bilhete avisando para colocar mais lenha no fogo.
- Está ficando frio, certo. Outubro nas montanhas. Se não fosse pelas folhas caindo, eu preferiria o Rio de Janeiro. Vejo você à noite. - Cris abanou e a deixou,
amarrando o cabelo em um rabo de cavalo enquanto saía.
Anna observou os veios da madeira na porta enquanto essa se fechava. Uma forme se sobrepôs contra os painéis de carvalho escuro. Uma mão pálida, segurando um buquê,
a mulher com olhos desesperados. E aquela única palavra sussurrada - Anna.
Descansar em paz aparentemente não era permitido nem para os mortos nem para os vivos.
CAPÍTULO 52
Mason queria ter trazido uma lamparina, uma vez que a tarde ficara subitamente escura, nuvens pesadas lambendo as montanhas vindas do noroeste, como fumaça de fogos
numa pradaria distante. Pelo menos, ele estava fora da casa, longe do olhar questionador da Srta. Mamie. Ele não queria ir para o porão, pelo menos não até sua mente
ficar clara. Anna estava certa, ele estava obcecado e era muito mais que apenas uma busca pela apreciação de sua arte.
Ele andou pela estrada na direção do celeiro. Era hora de Ransom alimentar e tratar dos cavalos. Talvez Anna estivesse ajudando. Como Mason, ela provavelmente preferia
a companhia do velho da montanha que daqueles arruaceiros toscos no solar. E ela era doida por cavalos.
Se ele a visse, poderia se desculpar, falar abertamente. Talvez tentar entendê-la. Ela sabia de mais coisas do que havia dito e, ao contrário dos outros hóspedes,
reconhecia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo no Solar Korban. E os dois tinham outra coisa em comum.
Porque, apesar de ela tentar muito esconder, algum tipo de sofrimento se escondia dentro dela, águas turbulentas abaixo da superfície calma. Ou talvez ele apenas
gostasse de olhar dentro de seus olhos azuis e sua imaginação tinha se encarregado do resto. A imaginação sempre havia sido sua bênção e sua maldição, sua porta
de saída de uma vida na fábrica têxtil, um demônio que se agarrava às suas costas a cada momento de sua vida acordado e uma grande parte dos momentos nos quais estava
dormindo.
Ele seguiu a linha da cerca, parando uma vez para olhar para o solar. Várias das janelas estavam iluminadas, mas a maior parte de sua fachada era escura e desinteressante.
Algumas notas altas de piano soaram na brisa. Ele olhou para o telhado, no espaço plano sobre as janelas das empenas onde o parapeito demarcava a balaustrada. Algumas
pessoas se moviam além do parapeito branco, provavelmente os empregados preparando a festa. Mason comparou o solar real com a pintura do porão.
Não havia competição. O solar real era muito mais assustador. Ele não engoliu a mentira de Anna sobre nunca ter estado antes no solar, apesar de Korban ter pintado
o quadro décadas antes de ela nascer. Mason havia memorizado seu rosto bem o suficiente para saber que com certeza era Anna que estava naquela pintura, completa
com buquê, vestido branco e tudo o mais.
A Srta. Mamie também não gostava daquela pintura. Ela agira quase como se tivesse medo dela, apesar da óbvia adoração a Korban. Ele balançou a cabeça. Por que ela
era tão insistente sobre ele terminar a estátua? Ela parecia mais ansiosa para vê-la pronta que o próprio Mason, como se tivesse seus próprios críticos a quem agradar.
Ele colocou as mãos nos bolsos. A floresta parecia mais próxima e escura, como se tivesse caminhado para perto enquanto ninguém estava olhando. Uma coruja piou de
seu poleiro nas árvores à sua direita. Ele caminhou mais rápido.
Imaginação.
Certo, Mase. Grande sonho. Korban no cérebro.
O sonho era apenas uma pilha fedida do que quer que seja que ele havia pisado. O celeiro estava à frente, uma luz tênue de um lampião quadrado escapando pela porta.
Mason se apressou na direção dela. Ele olhou sobre a porta e viu que a ferradura estava com as pontas voltadas para baixo. Não conseguia se lembrar se essa era a
posição boa ou a que chamava os fantasmas. Ele quase ficou com vontade de ter um patuá para balançar na frente da porta.
Mason entrou, os passos abafados pelo feno espalhado sobre as tábuas do assoalho. Ele não viu Ransom nem Anna. O cheiro de arreios de couro e o odor adocicado do
sorgo da ração dos cavalos pairava no ar. A porta oposta, que levava ao campo, estava fechada. Ele engoliu e estava para chamar quando ouviu a voz de Ransom entre
as carroças: - Vai simbora George... Ocê não tem nada pra assuntá por essas banda.
As sombras da charrete e das carroças estavam altas nas paredes, as aduelas, raios e pontas dos forcados lançando sombras ondulantes sobre as paredes de madeira.
Ransom falou novamente e, dessa vez, Mason o achou, agachado ao lado de uma das carroças.
- Eu tenho meus patuá, George. É procê me deixá em paz, diacho. - Os olhos do faz-tudo estavam arregalados, olhando para o assoalho cinzento.
Não era George o nome do sujeito que morrera em um acidente? Será que Ransom acreditava em fantasmas e as crenças locais finalmente o deixaram maluco?
Então Mason viu George.
E George parecia morto, com os olhos ocos afundados em sua substância vaporosa em uma forma impossível, o coto do antebraço apontando para cima. George parecia tão
morto que Mason podia ver através dele. E George estava sorrindo, como se estar morto fosse a melhor coisa que lhe tivesse acontecido.
- Fui mandado para convocar você, Ransom, velho amigo. - As palavras pareciam vir de todos os cantos do celeiro, raspando como folhas secas que haviam sido sopradas
pelos ventos de invernos passados. Um arrepio correu pela espinha de Mason, seu escalpo arrepiou-se, ele se sentiu como se fosse desmaiar.
Porque isso não era um sonho.
Ele não poderia colocar a culpa em sua imaginação por isso.
- Vai simbora, danado. - disse Ransom, a voz trêmula. Ele manteve os olhos fixos na coisa- George e não reparou em Mason. George deu um passo para frente.
Mas não era um PASSO, não é mesmo, Mason? Porque George não moveu um músculo, apenas flutuou para frente, como um espantalho escorregando em um arame.
Ar frio irradiava da coisa-George, gelando o espaço confinado do celeiro. Mason não estava pronto para chamar aquilo de fantasma. Porque, quando ele falara para
Anna que apenas acreditaria quando os visse, na verdade estava mentindo. Ele ainda não acreditava.
E ele não acreditava no que estava pendurado na única mão da coisa-George. A mão decepada, os dedos leitosos flexionando como se ansiosos para dar uma boa pegada
no pescoço de alguém.
- Vamos, Ransom. - disse a voz de cemitério - Machuca só por um segundo. E não é assim tão ruim lá dentro, depois que passa pelas cobras.
- Por que, George? Eu nunca fiz nada procê, homi. - Os olhos de Ransom estavam arregalados de terror. - Ocê era bom, um homi de bem. No que ocê foi se meter?
A gargalhada balançou o telhado de zinco. O coração de Mason deu um salto mortal.
- Eu me enfiei em um túnel, velho amigo. Porque eu tinha que saber. Agora me deixe convocar você para vir junto. Korban não gosta de ficar esperando.
Houve um rangido enferrujado e o forcado rolou para frente. Os olhos de Ransom olharam para os lados procurando uma saída. Ele viu Mason.
- O patuá não tá funcionando, Mason. Como pode o patuá não funcioná?
George se virou na direção de Mason, novamente sem mover nenhuma de suas extremidades esfarrapadas e enevoadas. - Há muito espaço por lá, rapaz. O túnel não tem
fundo.
Ransom se encolheu entre a charrete e uma carroça e Mason virou-se para correr. Tarde demais. A porta do celeiro moveu-se sozinha e bateu, trancando-os do lado de
dentro.
Mason correu ao longo da parede, deixando uma boa distância entre ele e o fantasma - você acabou de chamá-lo de FANTASMA, Mason. E isso não é um bom sinal - até
que ele ficou ao lado da charrete. Ele caiu de joelhos, os ossos batendo nas tábuas do assoalho. Ele engatinhou para o lado de Ransom. - Que diabos é aquela coisa,
Ransom?
Ransom olhou por entre os raios da roda da carroça. Mason podia sentir o odor de medo do homem, sal, cobre e gengibre.
- É sobre isso que vinha avisando ocê, fio. Ele é um deles agora. Do povo do Korban.
- Eu não acredito em fantasmas.
O patuá de Ransom estava firmemente seguro em seu punho. - Isso num importa é de nada, porque agora os fantasma acredita nocê.
A forma flutuou para frente, os braços levantados, o coto esfarrapado da amputação tremulando com o movimento. Mason se pegou olhando para o coto, se perguntando
por que um fantasma não estaria inteiro.
Fantasma - você o chamou de fantasma novamente, Mason.
O forcado estalou, rolando de seu canto na direção deles.
- Vá simbora. - gritou o velho, com a voz alquebrada - Tenho meus poder de espantá ocê.
- Vem brincar comigo, Ransom. - disse a coisa-George - É solitário lá dentro, só as cobras para fazer companhia. Podemos ficar juntos e conversar sobre os velhos
tempos. E Korban tem trabalho para todo mundo.
Ransom levantou seu patuá. - Tá vendo isso? Tenho meu pó de lagarto, mil em rama, raiz e espada de São Jorge. É procê ir embora.
George gargalhou novamente e um trovão chocalhou nas vigas do celeiro, os cavalos relinchando nos estábulos ao lado.
- Não acredite em todas as pequenas coisas que falam para você. - disse George - É só um bocado de velhas histórias. Porque não é nisso que você acredita, não é
mesmo, Ransom?
- É no quanto. - disse Ransom, derrotado, olhando para o pequeno farrapo de pano que envolvia suas ervas e pós. O pano estava atado com um pedaço de fita azul. Um
pó branco escapava pela abertura.
Subitamente, Ransom ficou de pé e jogou o patuá em George. - Cinzas de uma oração, George!
Mason estava congelado pelo próprio medo e uma estranha fascinação enquanto o patuá se abria e os conteúdos se espalhavam em uma nuvem de verde e poeira cinza. O
material flutuou sobre o fantasma, misturou-se com seu vapor, foi pego numa lufada de vento da fresta debaixo da porta e rodopiou à volta da forma.
George brilhou, esmaeceu brevemente, chiou como uma vela cuja cera estava por acabar...
Jesus Cristo, está funcionando. ESTÁ FUNCION...
A nuvem de ervas assentou-se no assoalho e George limpou os olhos.
- Agora vocês rapazes me deixaram realmente furioso. - disse o fantasma, a voz neutra e fria, vazando dos cantos do celeiro como um nevoeiro. - Eu tentei ser bacana,
Ransom. Só eu e você, dando uma longa caminhada para dentro do túnel como dois bons amigos. Mas você tentou lançar um feitiço em mim.
George balançou a cabeça translúcida. O movimento gerou uma brisa que congelou Mason até os ossos. Ransom se encolheu tensamente atrás da roda da carroça. O fantasma
flutuou para frente, compassadamente, agora a apenas sete metros de distância, quatro, três. Um ruído metálico enferrujado encheu o celeiro.
George levantou a mão amputada. - Eles me tomaram a mão do martelo, Ransom. Ele a tomou de mim.
O fantasma pareceu quase tristonho, como que debatendo internamente se seguiria ou não as ordens de um observador ausente. Mas as profundas cavernas de seus olhos
brilharam novamente, tremulando em bronze e ouro e radiando laranja, o rosto contorcendo-se em algo que deixava as feições humanas quase irreconhecíveis. Era como
um couro murcho, vincado e rachado, com pústulas no lugar dos olhos. A voz soou novamente, mas não era a voz de George, era uma combinação de dúzias de vozes, uma
congregação, um coral de almas perdidas. - Venha, Ransom. Estamos esperando você.
Os cavalos escoicearam as portas dos estábulos. Um bezerro berrou no campo lá fora. A charrete e as carroças balançavam loucamente. O lampião caiu ao chão e as sombras
subiram pelas paredes como insetos gigantescos.
O bezerro berrou novamente, e mais uma vez, o som se sobressaindo na cacofonia.
- O bezerro berrou três vezes. - sussurrou Ransom - Sinal certo de morte.
Mason encolheu-se ao seu lado, querendo perguntar o que diabos estava acontecendo. Mas sua língua parecia um pedaço de arreio contra o céu da boca. Ele tinha quase
certeza de que não conseguiria que ela articulasse uma palavra. Ransom olhou para George e então para a porta fechada. A porta estava muito distante.
Mason tocou na manga de Ransom, mas era tarde. Ransom tentou correr para a porta. O fantasma nada fez enquanto as botas de Ransom martelavam o assoalho do celeiro.
Mason se perguntou se deveria correr também. Ransom moveu-se rapidamente, os braços balançando enlouquecidos.
Ele vai conseguir!
Ransom estava a cerca de dois metros da porta quando a ceifadeira pulou - PULOU, pensou Mason, como um gato - com um gemido de metal e madeira tensionados, as hastes
enferrujadas do arado de vento rodando para baixo e para frente. Ransom virou-se e encarou a máquina antiga como que implorando por clemência.
Seus olhos encontraram-se com os de Mason e ele sabia que nunca esqueceria aquele olhar, mesmo que tivesse sorte, conseguisse escapar de George e vivesse mais de
cem anos. O rosto de Ransom ficou branco, o sangue drenado de sua pele como se tentando se esconder nos órgãos que a ceifadeira não poderia atingir. Os olhos de
Ransom eram esferas úmidas de terror. A pele coriácea de sua mandíbula esticando enquanto ele abria a boca para gritar, rezar ou balbuciar algum encantamento antigo
das montanhas.
Então a ceifadeira varreu para frente, empalando Ransom e o empurrando com força para trás. Seu corpo bateu na porta, sendo cravado nela por duas dúzias de enormes
pregos de aço. Ransom gorgolejou e um vapor avermelhado foi cuspido de sua boca. Os olhos se perderam dentro do túnel no qual a morte o havia lançado.
A carroça e a charrete pararam de balançar, as paredes voltaram a seus lugares e um silêncio súbito vibrou pelo ar. O corpo do velho pendeu nos vergalhões como um
pedaço de carne crua na ponta de um garfo. Mason se forçou a desviar o olhar das vísceras e da carnificina. O lampião lançou um jato de luz, como se as chamas fossem
alimentadas pelo vento da alma de Ransom deixando seu corpo.
George flutuou na direção de Mason, que deu um passo para trás.
- Você não está aqui. - disse Mason. Ele levantou as mãos, as palmas abertas. - Eu não acredito em você, então você não existe.
O fantasma parou e olhou para a própria carne diáfana. Após algumas batidas de coração, ele olhou novamente para Mason e sorriu.
- Eu menti. Não importa naquilo que acreditamos. - disse ele suavemente, flutuando mais um metro na direção dele. - É no que Korban acredita.
O fantasma estendeu a mão para frente, a mão na mão, em um cumprimento. Frio como mármore e morto como terra de sepultura.
Mason se virou e correu, esperando o pulo da ceifadeira ou ser agarrado pela mão do fantasma. Ele perdeu o chão em uma abertura entre as tábuas do assoalho e caiu.
Olhou para os pés e viu o alçapão do porão de depósito de vegetais.
Ele se arrastou para trás e abriu o alçapão, mergulhando para dentro dele. Agarrou o primeiro degrau da escada e puxou-se para dentro da escuridão úmida do porão.
Se poções e rezas não deram certo, então um alçapão não era o que iria parar um fantasma. Mas seus músculos assumiram o controle e seu lado racional foi silenciado.
Ele estava com metade do corpo para dentro do porão quando o alçapão bateu violentamente em suas costas. Uma onda prateada de dor lhe subiu a espinha. Então ele
sentiu algo agarrando o tecido de suas calças. Uma pancada suave, caminhante.
Dedos.
Ele chutou e balançou as pernas, agarrou o segundo degrau e puxou-se para dentro da escuridão. Ele ficou sem peso por um momento, o estômago encolhendo-se de vertigem.
Então, ele estava caindo, uma gota dentro da eternidade, que era muito rápida para um grito. A porta bateu nos caixilhos acima dele e ele estatelou-se no chão do
porão. O ar foi espremido para fora de seus pulmões, mas isso não importava porque ele não estava certo se estivera respirando desde que entrara no celeiro.
O porão estava imerso no mais completo breu, exceto por algumas nesgas de luz que passavam pelas frestas do assoalho acima dele. Ele tentou mover os braços e algo
caiu ao chão. Ele tateou e espremeu a coisa em sua mão, sentindo-a. Ela havia caído sobre uma caixa de batatas.
Mason rolou e ficou sobre os pés, encolhendo-se atrás da caixa. Ele tentou lembrar o que Ransom havia falado sobre outra porta do outro lado do porão e sobre um
túnel que conectava-se com o solar. George talvez já estivesse aqui em baixo. Quão bem será que os fantasmas enxergavam no escuro?
Botas e pés marchando podiam ser ouvidos alto e pesados sobre ele, dando-se conta de que seu pulso estava martelando nos ouvidos. Ele abriu a boca para ouvir melhor.
Estava tudo quieto lá em cima. Mason sentiu o odor de terra e maçãs verdes. Tentou determinar o arranjo das coisas no porão, descobrir onde ficava a saída, mas ele
havia perdido a orientação no escuro.
Ele poderia achar a escada novamente, mas um alçapão funcionava para ambos os lados. O que o estaria esperando quando subisse? A ceifadeira, com seus vergalhões
ensanguentados? George, pronto para dar-lhe uma mãozinha? Ou talvez Ransom, cheio de furos, agora um deles, o que quer que eles fossem?
Ele pensou em Anna e na sua autoconfiança serena, sua força interna disfarçada de distração. Ela dizia entender sobre fantasmas e não havia ridicularizado as crenças
de Ransom. Ela não ficaria histérica se visse um fantasma. Ela saberia o que fazer, se ele pudesse chegar até ela. Mas o que alguém vivo poderia saber sobre fantasmas?
Seus pensamentos acelerados foram interrompidos por um som suave. Primeiro, ele pensou que fosse o ranger da ceifadeira flexionando suas garras metálicas no celeiro.
Mas o som era áspero e não metálico.
Era o raspar de dedos no tecido. A mão.
Ele chutou e se contorceu e mais batatas caíram na terra fria.
Os barulhos soaram novamente, de todos os lados, de muitas fontes diferentes para serem cinco dedos fantasmagóricos.
Então ele reconheceu o som, um com o qual ele se familiarizara enquanto vivera no lixão de Sawyer Creek.
Não era um som áspero, era um pequeno guincho. Ratos.
CAPÍTULO 53
- Vá embora. - disse Anna ao fantasma que havia saído da parede e agora estava à sua frente em esplendor evanescente. Rachel deslizou para perto, o buquê triste
estendido como desculpa ou pesar. - Nunca quis magoá-la, Anna.
- Então por que me trouxe de volta? Por que simplesmente não me deixou morrer feliz e sem saber de nada, sem ninguém para odiar?
- Precisamos de você, Anna. Eu preciso de você.
- Precisar, precisar, precisar. Você alguma vez pensou que eu poderia ter precisado de alguém, em todas aquelas noites nas quais chorei até adormecer? E agora você
espera que eu sinta pena de você apenas porque você está morta?
- Não sou apenas eu, Anna. Ele prendeu todos aqui.
Os mortos tinham poder de escolha sobre onde suas almas se conectariam com o mundo real? Será que a passagem abria-se em um lugar particular para cada pessoa ou
os fantasmas pairavam sobre seus locais prediletos de assombração porque eles desejavam voltar à existência? Essas eram as perguntas que os parapsicólogos de linha
dura nunca perguntavam. Eles estavam ocupados demais tentando validar sua própria existência para sentir qualquer empatia por aqueles espíritos condenados a vagar
pela eternidade.
Mas Anna não estava se sentindo muito empática naquele momento. - E se você fosse livre, para onde iria?
Rachel olhou pela janela, para as montanhas que se estendiam pelo horizonte. - Para longe. - disse ela.
- E Korban prendeu sua alma aqui? Por que ele faria isso?
- Ele deseja possuir tudo que sempre teve e muito mais. Ele quer ser servido e adorado. Ele possui sonhos não realizados. Mas acho que é amor que o prende aqui.
Talvez, por trás de tudo, ele sinta medo de ficar só.
- Outro ponto em comum com a família, além do sangue. - disse Anna - Bem, não ligo de ficar só, não mais. Porque encontrei o que sempre quis e agora descobri que
na verdade nunca quis isso.
- Temos os túneis da alma, Anna. Onde encontramos as coisas que assombraram nossas vidas e sonhos. Em meu túnel, sou incapaz de salvar você e vejo Korban distorcer
seu poder até que ele o sirva. Nossa família tem a Visão, Sylvia e eu, mas ela é mais forte em você. Porque você pode ver os fantasmas mesmo sem ter que apelar para
feitiços ou encantamentos.
- Talvez os encantamentos me ajudem. - disse Anna -Não existe um que faz com que os mortos permaneçam mortos? "Vá para fora congelar", é isso?
- Não o pronuncie, Anna. Porque logo você também será convocada e Ephram será muito forte para qualquer um de nós detê-lo.
Anna levantou-se da cama. - Vá para fora congelar.
Rachel dissolveu-se um pouco, o buquê esmaecendo em fibras transparentes em sua mãos, os olhos repletos de tristeza etérea. - Você é nossa última esperança. A última
esperança de Sylvia.
- Vá para fora congelar.
Rachel apagou-se contra a porta - Sylvia! - murmurou ela.
- Vá para fora congelar. A terceira vez é um encantamento.
Rachel desapareceu. Anna olhou para o retrato de Ephram Korban. - Você pode ficar com ela, eu não ligo.
Anna colocou a jaqueta, pegou a lanterna e saiu para uma caminhada, desejando estar tão longe de Rachel quanto possível. Se Rachel iria ficar no Solar Korban, ela
daria uma volta até Beechy Gap.
Rachel havia dito que Sylvia sabia algum tipo de segredo. Talvez Sylvia soubesse um encantamento que mantivesse todos os fantasmas longe. Anna havia dedicado uma
grande parte de sua vida caçando fantasmas. Agora que eles estavam por todos os lados, ela nunca mais queria ver outro enquanto estivesse viva. Ou mesmo depois disso.
CAPÍTULO 54
Mason deu um pulo para trás, encostando as costas em uma parede de terra úmida. Outra batata doce rolou para o chão. Pelo menos ele esperava que fosse uma batata
doce. Mais guinchos romperam da escuridão, um coro de gemidos à sua volta.
Ele preferia muito mais encarar de frente o fantasma de George Lawson, mão decepada, ceifadeira ensanguentada e tudo o mais que ficar ali no escuro. Ele pensou em
dar uma corrida até a escada, mas estava desorientado. Era mais provável que ele desse de cara num barril de maçãs ou tropeçasse nas caixas espalhadas pelo chão
de terra. E cair levaria seu rosto para o nível deles.
De sua esquerda, veio o som raspado e fendido de dentes mordendo zinco. Talvez dois metros adiante, mas era difícil saber com certeza na escuridão. O aposento era
como um caixão, com o ar estagnado, sem cantos ou arestas que fizessem qualquer diferença para quem estivesse preso dentro dele. Ele se encolheu em uma bola, olhando
para as fendas nas madeiras, para as linhas amarelas que eram seu único conforto. Ele sentiu o cheiro do próprio suor de pânico e se perguntou se isso traria os
ratos mais para perto.
As folhas rasparam pelo assoalho acima e então a porta do celeiro foi aberta com um gemido enferrujado. Isso foi seguido por um ruído surdo e Mason imaginou o corpo
de Ransom batendo nas tábuas, os membros balançando inutilmente. Então o lampião foi levado e Mason fechou os olhos contra uma escuridão como nunca antes havia visto.
Não. Tinha havido uma escuridão pior.
Engraçado como as coisas retornam. Talvez fosse um dos túneis de sua alma. Uma lembrança enterrada a tanto tempo que a carne havia apodrecido de seus ossos, que
o esqueleto havia começado a retornar ao pó, que sua existência não podia mais ser provada. Mas uma pequena faísca sempre permanece, aquela brasa escondida, apenas
esperando por um sopro de vento para trazer o corpo de volta à vida, para ressuscitar a lembrança em toda sua glória horrível.
Engraçado como acontecera.
A lembrança era isso. Só que não podia ser real. Ou havia sido na primeira vez que fora no escuro? Não fazia diferença. Porque eles eram o mesmo, o passado e o presente,
entrelaçados no mesmo medo terrível.
Os guinchos.
Os ratos, rolando pelo escuro como aquelas batatas doces ou brinquedos de criança. Quantos?
Um já era demais. Quantos guinchos? Mason prendeu a respiração para poder ouvir. Dez. Quinze. Quarenta.
Mama estava fora da cidade. Alguém havia morrido, era tudo que Mason sabia, porque ele nunca vira Mama chorando tanto. E Mason sentira a mudança nela quando o havia
dado todos aqueles beijos e abraços e o colocado no colo por todas aquelas horas. Então ela se foi.
E Papai, Papai com suas garrafas, foi tudo o que Mason viu depois disso. Ele deitou em seu berço, os cobertores molhados, muito assustado para chorar. Se ele chorasse,
talvez Mama viesse. Mas se ela não viesse, Papai viria. Papai só ficaria furioso, gritaria e quebraria alguma coisa.
Então Mason não disse nada. O tempo passou ele nada disse. Não havia sol na janela, apena a luz que Papai acendia e apagava. Papai dormiu no chão uma vez e Mason
olhou pelas barras de madeira do berço e o viu, com sua garrafa vazia derrubada, a bebida espalhada pelo chão.
Papai acordou, esfregou os olhos, bocejou, olhou para Mason, deixou-o molhado. Papai apagou a luz e, conforme a porta se fechava, Mason lembrava daquela cunha de
luz desaparecendo, do quão assustado ele estava conforme ela ficava menor e menor, então de quando a porta bateu e a escuridão era maior, espessa, total.
O tempo passou, ou melhor, não passou, o pequeno coração de Mason bombeando, batendo e gritando. Chorar seria pior. Mama não estava lá e seu choro poderia trazê-los.
Ele fechou os olhos e os abriu novamente. Uma escuridão era da mesma cor de outra.
Agachando-se no porão, Mason fechou os olhos e os abriu novamente, tentando afastar a memória piscando os olhos. Cobriu o rosto com as mãos. Ele se lembrava de ter
lido em algum lugar que os ratos sempre atacavam suas partes mais macias primeiro, os olhos, a língua e os genitais. Ele não tinha mãos suficientes para todos esses
lugares.
Essa era a lembrança, a primeira vez. As descobertas que o escuro proporciona. O roçar na parede. O tatear de garras pela madeira. O guincho de prazer com a descoberta.
Estava tão escuro no aposento que ele não conseguia nem ver os olhinhos brilhantes quando finalmente tentou.
Mas Mason os ouvia, mesmo com os cobertores molhados cobrindo sua cabeça. As lambidas suaves de suas línguas no líquido. A garrafa de Papai. O líquido derramado
os havia atraído. Seria suficiente para saciá-los? Iriam embora?
Por favor, por favor, vão embora.
Os guinchos agora soavam como risadas, como um sorriso contido, molhado de saliva. Ir embora? Claro que eles não irão embora, essa era a escuridão e eles reinavam
na escuridão. Eles andaram até o berço, a cauda raspando atrás de si. Não, não, NÃO.
Isso era agora e não uma lembrança, ele não era uma pequena criança, ele não tinha mais medo dos ratos. E como o porão estava mais escuro que o mundo lá fora, ele
conseguia ver o contorno da porta. Tudo o que ele precisava fazer era abrir os olhos.
A voz de Mama chegou até seus ouvidos e ele não tinha certeza se as palavras eram faladas ou apenas imaginadas: - É SEMPRE a lembrança, Mason. A Grande Imagem do
Sonho. Nunca deixe seus sonhos se irem. Eles são a única coisa que você tem nesse mundo.
E algo rápido, molhado e quente raspou em seu rosto, logo abaixo de seu olho esquerdo. Pode ter sido apenas a ponta do cobertor deslizando, sim, claro, era isso,
ratos não comem pequenos meninos, isso não são pequenas patinhas pressionando suas pernas, é apenas sua imaginação, e você sempre teve uma imaginação fértil, não
é mesmo?
E você viveu o bastante para aprender que a escuridão não se espalha para sempre, que ratos não dominam tudo à sua volta, apenas seus sonhos, E SONHOS SÃO Á ÚNICA
COISA QUE VOCÊ TEM NESSE MUNDO.
E Mama finalmente chegou em casa, abriu a porta, acendeu a luz e o segurou, mas era tarde demais, dias, anos tarde demais, pois os ratos haviam devorado você, devorado
seus olhos e agora é sempre escuro, e eles reinam no escuro, e Mama não pode mais abrir a porta porque eles devoraram os olhos dela também. Ela fica somente sentada
na cadeira em seu ninho de ratos em Sawyer Creek e...
- Parece que ocê tá numa bela enrascada.
A voz, vinda de lugar nenhum e de todos os lugares, parecia fazer parte da escuridão. E a escuridão tinha que ter cores diferentes, porque um profundo túnel negro
se abriu a sua frente, como uma garganta. De pé, ao lado da boca do túnel, estava Ransom Streater, ferimentos escorrendo e tudo o mais, uma perfeita linha de perfurações
cruzando o peito do macacão, um dos botões torcidos.
Ransom estava sorrindo com sua boca de gambá, a cabeça careca e os olhos mortos, mortos, mortos.
- Korban me mandô até seu lugar ruim. - disse Ransom - Ocê devia de ver o meu. O meu é pió que o seu, pode acreditar em eu. Mas o Korban disse que se eu for um bom
ajudante, que eu vou sair do meu lugar ruim logo, logo. Tudo que tenho de fazê é levá ocê junto comigo pra fora desse lugar.
- Onde estou?
- Uái, no coração, é onde ocê tá. Mas o Korban qué mandá ocê de volta. Diz que ocê tem trabáio pra fazê.
- Que trabalho? - Mason abriu mais os olhos, ainda que os ratos estivessem famintos e os olhos fossem macios e suculentos. Mas a imagem não mudou e Ransom continuava
de pé, brilhando à sua frente, com o túnel por detrás, longo, negro, profundo e frio, com a diferença de que agora havia uma luz vermelha ao final, uma luz preciosa,
bela, sem ratos, Mama estava abrindo a porta.
Mason ficou de pé, ouviu os ratos correndo para seus buracos invisíveis. Ele disse a única coisa que lhe passou pela cabeça. - Você está morto.
- E não é um passeio no parque, posso jurar procê. - Ransom tocou em seus ferimentos, as sobrancelhas levantando-se quando ele colocou o dedo no orifício entre as
costelas. - Pelo menos ocê teve escolha.
Mason aproximou-se, a luz sinalizando. Ele olhou brevemente para a escuridão atrás de si, ouviu o barulho dos bigodes, garras e dentes molhados. Estremeceu. Korban
manteria esse lugar o esperando.
Mas a melhor coisa a fazer era colocar os medos para trás, por tanto tempo quanto possível. Negar sua existência. Enterrá-los.
- Aonde leva o túnel, Ransom?
- Para o fim, uái. Pra onde mais ele levaria?
Mason engoliu em seco. Ele lembrava que Ransom, o velho e vivo Ransom, havia lhe dito que o túnel levava de volta às fundações do solar. Ele pensou em correr para
a escada, mas ouvia os guinchos e línguas lambendo. Então, a voz de Mama derramou-se pela negra garganta do túnel. - Sonhos são tudo que temos, Mason. Agora venha
para cá e deixe sua Mama orgulhosa.
E não era apenas a voz de Mama, aqui na fazenda escura e suja de Korban, que o incomodava. Era a sugestão de guinchos em suas palavras, como se escorressem à volta
de grandes e curvos dentes de um roedor.
Mason seguiu Ransom para dentro do túnel negro, piscando conforme a luz ficou intoleravelmente forte. Uma lamparina estava acesa sobre a mesa. Mason estava no estúdio,
a estátua inacabada esperando à sua frente.
- Túneis da alma, Mason. - disse Mama - Estarei observando.
Mason virou-se a tempo de ver a longa e hedionda cauda cinzenta desaparecendo para dentro do túnel. Ransom permaneceu nas sombras do porão. - Nóis tudo tem trabáio.
Minha parcela é esperá no túnel. A sua é desse lado, por agora.
Mason ajoelhou-se, tremendo, e pegou uma goiva. Segurou seu maço a aproximou-se da estátua, estudando a forma grosseira de carvalho. Ephram Korban estava ali em
algum lugar, do mesmo modo que habitava tudo. No coração de tudo.
Mama mentiu. Ela disse que os sonhos são tudo que temos nesse mundo. Mas temos pesadelos, também. E lembranças.
E algumas vezes não é possível saber a diferença.
Mason atacou a madeira como se sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO 55
Sylvia abriu a porta antes que Anna chegasse à cabana. - Tava esperando ocê.
Anna passou por ela sem esperar convite. Sylvia olhou para o tecido dobrado sobre a lareira, o que envolvia seu encantamento. Todos os truques do livro e alguns
que havia ouvido muito tempo atrás à volta de fogueiras, estavam moídos e espalhados dentro daquele pedaço de tecido, e palavras haviam sido ditas sobre a mistura
que poucos lábios ousariam dizer. Mas agora não era o momento de ficar assustada ou com dúvidas.
- Esquenta seus osso aí. - disse Sylvia, movendo-se para uma velha cadeira de vime próxima ao fogo. - Essa noite é uma daquelas que a gente tem certeza de que o
inverno frio tá logo ali na curva da estrada.
- Você não me contou tudo. - disse Anna, indo direto à questão, mas ajoelhando-se em vez de se sentar.
- Tem certas coisa que sabê delas é demais. Já é ruim o suficiente que ocê tenha a Visão. Mas se ocê não tomá cuidado onde pisa, logo, logo vai tá é do lado errado
da morte.
- Mas por que minha mã... não, não minha mãe, quero dizer Rachel Hartley, pensa que eu sou algum tipo de salvação para os assombrados? Por que ela me chamou até
aqui? Se Korban já os tem, o que eu posso fazer? Só porque eu vejo fantasmas não quer dizer que eu tenha poderes especiais.
- Lembra o que foi que eu falei procê sobre poder? Não é naquilo que ocê acredita que importa, é quanto você acredita. - Sylvia manteve os olhos fixos nas chamas
que dançavam, não deixando seu olhar deslizar até o tecido dobrado, não importando o quanto eles quisessem dar uma espiada.
- Eu não devo nada a Rachel. - disse Anna - Você disse que o sangue corre mais grosso que a água. Mas isso não é tudo o que faz as pessoas pertencerem umas às outras.
- Criança, eu sei como dói. Eu me odiei pelas minhas fraqueza, meu pecado com Korban. Eu tentei cem vezes me dizê que ele causou isso, ele me enfeitiçô e fez tudo
acontecer. Mas é sempre fácil mentir pra ocê mêma, num é? É fácil empurrá tudo pra debaixo do tapete e esperá que ninguém vai vê a verdade, muito menos ocê.
É claro, mulher, você sabe a verdade, não é? Ephram deixou você matá-lo sob uma lua azul de forma que seu espírito pudesse entrar na casa. Mas você nunca imaginou
que Ephram acabaria convocando e colecionando todos os que morressem em suas terras. E você com certeza nunca imaginou que ele manteria a Srta. Mamie jovem, transformando
amor em veneno.
- Seu pecado foi há muito tempo. - disse Anna - Você deveria ter sido capaz de se perdoar após todos esses anos.
- Eu sempre fiquei com medo de dexá a coisa solta e caí de amores por ele. - disse Sylvia - Ocê não tem ideia de quantas veiz eu quis que aquela noite acontecesse
de novo, mas ao mesmo tempo eu tava toda cheia de nó por dentro com medo. Talvez fosse tudo obra do Ephram, um dos truque dele. Mas é uma coisa assustadora e terrível
quando seu coração é roubado desse jeito. E também é assustador e terrível queimá de ódio por alguma coisa.
- Mas Rachel...
- Eu amei ela, do mesmo jeitinho que ela ama ocê. E do mesmo tanto que o Ephram me amou.
- Você disse que a Srta. Mamie estava mantendo ele vivo. Isso e os espíritos daqueles que ele prendeu no solar. Aqueles que ele usa como combustível, algum tipo
de sifão da alma, alimentando- se de seus sonhos e dores.
- Pelo que ocê acha que o Ephram queima? - Sylvia curvou-se e pegou o atiçador, cutucando a lenha até que as faíscas subiram pela chaminé. - Os morto é igual os
vivo. Eles querem coisa que não podem tê. Os sonho inacabado de Ephram, uma fome danada. É por isso que ocê tá aqui.
Sylvia sentiu o tremor em seus membros, o sangue circulando asperamente pelas veias estreitas. Ela havia sido velha por tempo demais. Tinha arrependimentos demais,
havia se entregado para o pior tipo de calhorda possível. Se pelo menos pudesse fechar os olhos e descansar em paz. Mas Ephram Korban não permitiria.
Sylvia estava presa a esse lugar, viesse fogo ou enchente, e Rachel havia descoberto muito tarde que o que pertencia a Ephram sempre retornava. A morte de Rachel
nesse lugar foi a única chance de Anna. Porque Ephram encontraria Anna, aquele dom da Visão brilhando como um farol espectral no céu noturno .
- E meu pai? - perguntou Anna - Você tem alguma fotografia dele?
- As pessoa não tem fotos por aqui não, ainda mais aqueles que querem continuá morto. Já ouviu falar da magia das boneca? Onde eles roubam seu rosto e dispois sua
alma? Ocê é a única que pode livrá eles do Ephram.
- Não me importo com isso. - disse Anna - Os mortos ainda estarão mortos e eu continuarei sem nada. Pelo menos, se eu morrer no solar, terei um lugar aquecido para
assombrar.
Sylvia deixou as lágrimas rolarem. Essa era uma boa arma para se usar às vezes. Anna caiu na armadilha, aproximou-se e a abraçou.
- Rachel deu a vida pra que ocê pudesse escapá. - sussurrou Sylvia no ouvido de Anna - Se Ephram pegá a Rachel agora, ocê vai perdê ela pra sempre. E ainda tem os
que tão preso na casa, nem todos eles são pecador. Como aquela garota fantasma, Becky, que ocê viu na primeira noite aqui. Aquela criança nunca machucô uma mosca.
Se algum espírito merece ficar livre, é o dela.
Anna cerrou os punhos. - O que devo fazer? Sou só uma pessoa. Estou fraca, estou morrendo, minha alma não está na melhor das formas, pra começar. Como diabos posso
acreditar?
- Ocê deve segui seu coração, Anna. - Sylvia foi até a janela - O sol tá pra se pôr. Ocê sabe o que isso singifica.
- Sim, sim, sim. A lua azul.
Sylvia cruzou o aposento, mancando lentamente, amaldiçoando silenciosamente Ephram por entortar seus ossos e enrugar sua pele. Ela colocou a mão no ombro de Anna,
deixou uma lágrima se acumular no olho e então disse: - Ocê apenas segue seu coração. Isso é que significa acreditar.
Sylvia lhe deu outro abraço, dessa vez correspondido, agarrado, com um desespero que poderia ter nascido de uma vida de solidão. Sylvia finalmente a soltou e deu
um passo para trás. - É mió ocê voltá pra casa agora. A Srta. Mamie tá esperando.
Anna voltou para a floresta que escurecia. O vento estava cortante, frio o suficiente para deixar o orvalho precoce endurecido. Essa era uma noite para congelar,
pensou Sylvia. Uma noite para os mortos.
Ela fechou a porta da cabana e foi até a lareira, acariciou o tecido dobrado e ofereceu cinzas de orações para seu conteúdo.
CAPÍTULO 56
- Estão adiantados, cavalheiros. - disse a Srta. Mamie.
- Só apreciando a vista. - disse Paul, os pés no parapeito, uma taça de vinho nas mãos.
- Um pôr do sol encantador. - disse ela.
Adam olhou para o horizonte, as montanhas cobertas com ouro derretido, as encostas enrugadas em diferentes tons de cores e sombras. O vento carregava a promessa
de mudança, o ar repleto dos últimos odores agridoces do outono. Talvez fosse por isso que ele andava tão rabugento nos últimos dias. O inverno sempre se parecia
com morte para ele, uma terra árida e cinzenta para ser suportada, tanto quanto os pesadelos de sua infância. E ele havia culpado Paul por isso, aquela mudança sazonal
que o deixara inquieto por dentro.
- Não está contente de ter ficado, Sr. Andrews? - perguntou a Srta. Mamie.
Adam e Paul trocaram olhares. - Sim. - disse Adam - Eu tenho tendências melodramáticas algumas vezes. Não é mesmo, Paul?
- Com certeza, bonequinha. - ele bateu de leve na mão de Adam, o que a Srta. Mamie poderia tomar como sendo um gesto de suporte moral, mais que um gesto romântico.
- Esse é o melhor momento de nossas vidas.
Paul virou-se para a Srta. Mamie. - Está tudo bem se eu trouxer minha câmera de vídeo? Essa paisagem está de matar.
A Srta. Mamie sorriu. - Por que não? Penso que essa noite será memorável e valerá a pena ter um registro disso.
Lilith se aproximou, encheu o copo de Paul e ofereceu vinho para Adam, que levantou a mão recusando polidamente. - Não, obrigado. Sou o motorista hoje.
A risada da Srta. Mamie foi carregada pelo vento. - Ah, você é engraçado. Não me admira que Ephram goste tanto de você.
- Por falar nisso, estou surpreso que não haja um retrato dele nessa balaustrada. - disse Paul.
- Esse era um de seus lugares favoritos, quando estava vivo. Ele amava uma boa festa, especialmente na lua cheia.
Os Abramov estavam sentados de encontro ao parapeito próximo ao bar, afinando os instrumentos. A queda de temperatura afetava a madeira e eles tinham que ajustar
constantemente a tensão das cordas. Enquanto tocavam uma série de escalas, a mudança de tom dava à música uma qualidade discordante e atonal.
- Os Abramov prometeram um dueto original. - disse a Srta. Mamie - Composto especialmente para a ocasião. Agora, se vocês me derem licença, tenho alguns preparativos
a fazer.
Após sua partida, Adam se inclinou para frente em sua cadeira e segurou o parapeito, ousando olhar por cima dele para o pequeno telhado sobre a varanda e para o
arco da estrada no pátio, vinte metros abaixo. O local onde ele havia morrido. Ele engoliu em seco, fechou os olhos e sentou-se novamente na cadeira.
- Qual é o problema, princesa? - perguntou Paul - Você ficou pálida.
- Não devia ter tomado a segunda taça de vinho.
- Como posso transformá-lo numa garota festiva se você não suporta mais bebida que isso? A noite é uma criança.
- Sim, mas parece que tenho cem anos, agora.
Paul deu um tapinha no joelho de Adam. - Você fica aqui e descansa seus velhos ossos, então. Vou pegar minha câmera.
- E talvez dar uns tapas no seu baseado?
Paul deu aquele sorriso endiabrado e irresistível. - Ele me deixa mais criativo. E todo o resto.
- Guarde um pouco para mim.
- Você não mudou nadinha, não importa o que eles digam. - Paul olhou à volta, inclinou-se para frente e beijou Adam no rosto. - Como disse a moça, será uma noite
inesquecível.
Adam observou enquanto Paul cruzava a balaustrada e descia pela escada. Lilith e a cozinheira mal encarada estavam preparando a mesa com o bufê. Os Abramov retornaram
seus instrumentos para os estojos e agora estavam longe do parapeito, conversando com a mulher mediterrânea, Zainab. A fumaça saía das quatro chaminés, subindo acima
das árvores que circundavam o solar.
Adam encolheu-se na cadeira, tremendo. Ele não se importaria se houvesse uma fogueira agora. O outono estava morrendo e o inverno, chegando. Frio, cinza e sufocação.
Uma pena que essa noite não pudesse durar para sempre.
CAPÍTULO 57
O suor escorria como o sangue de um ferimento de espingarda, seus músculos gritando enquanto Mason passava a goiva sob a inclinação do que seriam as maçãs do rosto
de Korban. Ele raspou o formão na madeira dos ombros com sua mão esquerda. Ele nunca havia entalhado com ambas as mãos ao mesmo tempo, mas qualquer coisa era possível
agora. A madeira parecia descascar por vontade própria. Estavam com pressa, tanto ele quanto a estátua.
A voz veio novamente do busto, a voz que o havia pressionado a continuar, deixando Mason em um frenesi de cortes, entalhes e marteladas. Isso o havia assustado,
de início, mas agora a voz era apenas a de outro instrutor, talvez o mais exigente de todos com quem ele trabalhara.
Esse era o mais exigente dos críticos, também. O túnel o estava esperando, se ele falhasse.
O berço negro, os ratos, sua Mama com a voz guinchada e a longa cauda cinza.
- Mais no ombro, seu idiota. - disse o busto.
Mason olhou para o busto, para Korban, para sua criação, sua primeira obra-prima. A lamparina na bancada deixava o lado esquerdo do busto nas sombras.
Os lábios de madeira moveram-se novamente. - Rápido. Eles estão esperando.
- Quem? - a sílaba de Mason foi um sussurro. O ar do porão estava carregado com uma estática sobrenatural. Os pelos nas costas de suas mãos arrepiaram-se. Chamas
rugiam na chaminé central, do outro lado da parede de pedra.
- Siga com o trabalho, escultor.
- Preciso descansar.
- Você terá tempo de sobra para descansar depois.
Mason largou as ferramentas sobre a bancada, secou a sobrancelha e caiu de exaustão no chão de concreto. Então ele viu a pintura de Korban do solar, que alguém devia
ter alterado enquanto Mason não estava por perto. Porque as pessoas agora eram claramente visíveis, em grossas pinceladas de tinta. A mulher com o buquê havia se
movido para frente, além do parapeito, e sua posição havia mudado, os braços abertos, os olhos arregalados. Ela estava caindo.
E Mason não ligava para o que Anna havia dito, toda aquela bobagem sobre aquela mulher ser sua mãe, porque aquele era o rosto de Anna, aqueles eram os olhos de Anna
e aquela mulher tinha um meio sorriso misterioso que ninguém mais no mundo poderia ter.
- Ah! - disse o busto - Então é a mulher que você deseja, no fim das contas. A preciosa Anna.
- O que tem ela? - Mason estava além do ponto de duvidar de sua sanidade. Alguns artistas diziam que seus trabalhos falavam com eles, então escutar a voz de Korban
talvez não fosse assim tão estranho. Mas a linha divisória, o passo a mais que transformava um gênio em uma alma torturada com um certificado, ocorria quando o artista
começava a responder ao objeto em questão.
- Você pode tê-la, assim que me acabar. Já prometi fama a você. E eu sempre cumpro minhas promessas.
A resposta de Mason foi pegar o formão da bancada. Levantou o maço, dobrando o cotovelo para testar seu peso. Pensou em girar o corpo e enterrar a ponta grossa de
ferro entre os olhos de Korban.
Uma pancada de um maço quebraria o busto em dois pedaços. Mas como você poderia matar algo que já estava morto?
A estátua tremeu diante dele, os membros ainda grosseiros flexionando-se. O veios quebraram-se ao longo de um antebraço e o bloco da cabeça inclinou-se, um pequeno
nó soltando-se de onde Mason planejara entalhar a boca.
- Acabe-me. - gemeu o buraco do nó da madeira.
Mason largou o martelo e deu um passo para trás, suor, poeira e medo queimando seus olhos. Os braços de madeira moveram-se em sua direção, cavacos de carvalho caindo
das mãos toscas. Mason bateu de encontro à bancada, derrubando o busto. Ele olhou para baixo e viu os olhos fixos nele. Era o mesmo olhar frio que havia nas pinturas
de Korban espalhadas pela casa. Perfeito demais.
- E Anna? - perguntou Mason.
- Prometo que vocês dois ficarão juntos. Seremos uma grande família feliz.
Isso fazia sentido, tanto sentido quanto Mama olhando do túnel e provavelmente também uma versão bêbada e de olhos vermelhos de seu pai. Como nos velhos tempos,
com ratos nas paredes, as trevas por todos os lados e seu pai desmaiado no chão. Se conseguisse levar Anna junto com ele para esse lugar, as trevas poderiam ser
um pouco mais suportáveis. Korban sempre mantinha suas promessas. Como você poderia não confiar naqueles olhos maravilhosos e sábios?
Mason pegou a machadinha. Os críticos haviam se pronunciado. Mais entalhes na esquerda. Faça com perfeição. Grande imagem de sonho trazida à vida. Crie.
Madeira. Carne. Coração. Sonho.
CAPÍTULO 58
Anna sentiu-se como se estivesse de volta a um de seus sonhos, aqueles que haviam preenchido suas noites durante o último ano. Como ela havia feito tantas vezes
antes, na terra perdida dos sonhos, aproximou-se do solar pela floresta. A grande forma da casa cresceu por entre as árvores que a circundavam como enormes guardiões.
As janelas eram olhos, brilhantes e frios, mesmo com a luz de dezenas de fogos em seu interior. As chaminés vomitavam uma respiração de transição efêmera, matéria
em energia, substância em calor. A porta da frente murmurava boas-vindas suaves, a escuridão de seu interior prometendo paz.
Mas esse sonho acordado tinha características além de todos os outros, como se um sétimo sentido tivesse se somado ao sexto. A grama era grossa sob os sapatos e
uma geada brilhante se grudava à pele da terra. O céu estava brilhante tanto a oeste quanto a leste, pintado de lavanda e marrom por um pincel enorme e incerto.
O vento havia se tornado um suspiro e a rendição do outono pairava pelo ar frio. O solar esperava. Ephram Korban esperava.
Esse é o lugar ao qual pertenço? Estou realmente voltando ao lar?
Sylvia havia dito que Anna era um combustível. Que Korban iria consumi-la, usá-la, transformar sua alma em cinzas.
E o que isso importava? Que seu amor, ódio, raiva e orgulho fluíssem para dentro da casa. Para Ephram Korban. Ninguém a tinha desejado mesmo.
Ela riu estonteada quando cruzou a varanda, a energia estática bruta da casa fluindo para seu corpo, aquecendo-a, fazendo-a sentir-se maravilhosa. Voltando ao lar,
lar era onde seu coração estava.
A Srta. Mamie estava esperando. Ela abriu a porta e abriu caminho para Anna entrar, abrindo os braços em boas-vindas. - Ephram disse que você viria.
Anna sentiu-se embriagada. Mesmo sua dor estava cedendo, os fogos do câncer morrendo em seu interior. Ela ofereceria tudo. Korban poderia ter sua dor, sua solidão,
seu sentimento de nunca ter pertencido. Bon appétit.
Sim, ela havia retornado ao lar. Esse lugar havia aberto sua alma, havia permitido que ela visse fantasmas. Havia dado o que ela queria. Ela poderia morrer feliz
aqui.
- Você está adorável essa noite. - disse a Srta. Mamie. As palavras soaram como se viessem de um lugar muito distante. O fogo rugiu e estalou no final da sala de
estar. Anna olhou para o retrato de Korban sobre a lareira. Avô. Com os olhos tão brilhantes e amorosos.
Como ela pôde resistir a unir-se novamente à sua família? Que o círculo fique novamente completo. O que importava se as pessoas estavam vivas ou mortas? Quando você
vai a fundo na questão, há realmente alguma diferença?
Um, uma linha que divide... Então Zero. Nada. Tudo igual.
Anna olhou para a casa com novos olhos. As colunas, os cantos, os entalhes na lareira, os painéis de madeira avermelhada, os pisos de carvalho lustrados. Ela não
culpava Korban por nunca querer sair desse belo lugar. Ela também não queria ir embora agora.
- Você chegou bem a tempo para a festa. - disse s Srta. Mamie - Lá em cima na balaustrada.
Combustível. Pintar.
Alguma coisa sobre a pintura. Ela lá em cima, ao lado do fogo. Mason.
- O que foi, querida? - A Srta. Mamie colocou uma mão fria no queixo de Anna - Você não está se sentido doente, está?
- Onde está Mason?
- O escultor? Está ocupado agora, mas ele se juntará a nós. Assim que acabar.
Anna se deixou conduzir às escadas. Algo nas paredes a incomodava, algo que ela sabia que deveria lembrar. Mas elas estavam subindo agora, a Srta. Mamie mostrando
o caminho. Chegaram ao segundo andar e Anna olhou pelo corredor na direção de seu quarto. As lâmpadas astrais ao longo do corredor pareciam brilhar e depois diminuir,
como que alimentadas por uma respiração lenta e tranquila.
Elas alcançaram o terceiro andar. Anna não havia visitado essa parte do solar antes, apesar de resquícios apagados de alguma memória ancestral a cutucarem por dentro.
As paredes eram cobertas com tábuas de pinho barato, como as usadas em vagões de trens. Sem pinturas. Havia portas que deveriam levar a outros quartos e janelas
de empena em cada extremidade do andar. Uma lanterna de condutor em uma mesa feita à mão próximo ao corrimão da escada era a única luz.
A lanterna.
Mason tinha uma como essa no porão.
Onde estava Mason? Ela tentou se lembrar de seu rosto, mas ele estava perdido no meio do nevoeiro de sua cabeça, junto com tudo o mais. As paredes vibraram, incharam
e contraíram-se. A casa estava se movendo ao ritmo de sua respiração. Ela começou a ficar tonta, então a Srta. Mamie a encostou em uma pequena escada.
Anna olhou para cima, como que pelo olho do mundo, para as nuvens que captavam o brilho prateado da lua. A balaustrada. O topo do fim do mundo. Onde seus próprios
fantasmas a aguardavam.
Ela forçou os braços e pernas a subirem. Era hora de encontrar a si própria.
CAPÍTULO 59
Spence havia encontrado a Palavra.
Ele sentiu - não, soube - o que estaria esperando no final de seu último parágrafo.
A verdade vem em momentos improváveis. O único e verdadeiro Deus vem nas formas mais estranhas. Todos os dons tinham peso. Cada dom demanda um valor igual em sacrifício.
As paredes vibrantes e inchadas da casa o haviam distraído, a princípio. Apenas outro mal, outra coisa para roubar sua atenção, para desviá-lo da estrada para a
glória. Bridget engasgou e gritou quando elas tomaram forma, quando as imagens diáfanas caíram do teto e subiram do assoalho de carvalho, quando elas flutuaram oca
e friamente pelo quarto.
Spence as enxotou impacientemente. O verdadeiro caminho brilhante acenava para ele e tudo o mais eram bobagens e excesso literário. O caminho verdadeiro levava à
próxima sentença, que levava a próxima palavra a se lançar na polpa de madeira, enquanto o metal martelava a tinta no papel e lhe dava existência.
A noite estava pronta, a respiração emprestada e mantida prisioneira, pulmões de ébano e terra, pés de granito, braços ceifando os momentos de dormir dos olhos daqueles
que não enxergavam. Outubro gritava, um tapete de geada, uma reviravolta do vento marrom, o final de algo. O tempo andava para trás, frio para água quente e dura.
Vá para fora congelar e volte...
Ele se inclinou para frente na cadeira, sem se preocupar se o ar enregelante drenava suas forças. Ele não precisava gastar sua carne com Bridget. Ele estava tendo
uma relação melhor aqui, ele e a Palavra verdadeira. Sombras brancas moveram-se pelo quarto em silêncio, o fogo congelado, seus dedos coçando.
Volte para... o quê?
A Palavra estava lá, provocando, esperando, impulsionando-o, corpo e alma, para frente, flutuando fora do alcance.
- Deixe-me lhe dizer, colega, o que você está esperando?
Spence pensou inicialmente que as palavras haviam vindo de sua própria mente, como se um diálogo entrecortado estivesse tentando forçar caminho rumo à superfície
da narrativa. O fogo rugiu e ainda assim uma brisa gelada lhe escorregava pela nuca. Seus dedos se apoiaram na mesa.
A voz voltou novamente, não uma Musa, não Bridget, não Korban. - Anda logo com isso, homem. Não é o diabo do fim do mundo ainda.
Spence virou-se, lançou um olhar furioso ao fotógrafo que estava no canto do quarto, a face obscurecida pelas sombras. - Maldito seja você, por que não bateu na
porta? Não suporto interrupções quando estou trabalhando.
O sotaque de Roth diminuiu, tornando-se anasalado como no meio-oeste. -Nós temos túneis da alma, Jeff. E adivinhe quem está dentro do seu?
- Você está louco. - disse Spence - Venha para onde eu possa vê-lo.
O fotógrafo fez um leve movimento com a mão na direção do quadro de Korban. - Ele disse que você pode levar sua máquina de escrever, mas que todas as teclas estarão
emperradas.
Spence tentou se levantar, a raiva vibrando dentro dele e enviando um brilho forte de dor para a têmpora esquerda.
Roth riu, a voz se tornando aguda, acelerada como aquela voz aguda e estridente do passado de Spence. A voz da Srta. Eileen Foxx. - X tem som de CH, igual como em
XIXI - disse ela, o corpo de Roth sacudindo com a risada de júbilo.
- F-f-foxx Botox? - disse Spence, confuso, o peito crivado de dor. O calor se espalhou por sua genitália, uma umidade estranha, quase agradável.
Roth moveu-se novamente para as sombras e desapareceu. A última advertência de Eileen Foxx pairou no ar como uma ameaça. - É melhor você passar de ano, Jefferson,
ou estarei esperando. Sim senhooorrrr, e você ficará após a escola comigo.
Spence ficou olhando o fogo até que a umidade entre suas pernas ficou gelada, então virou-se novamente para a máquina de escrever, as palavras na página quase como
símbolos entalhados por uma civilização perdida. Elas não tinham mais significado, mas ele sabia que não estavam completas. Ele necessitava daquela palavra.
A sala inteira riria dele novamente se ele não encontrasse a palavra.
CAPÍTULO 60
Mason levantou novamente o formão, o maço na mão direita escorregadia. A pilha de cavacos de madeira estava da altura dos tornozelos à sua volta, a estátua entalhada
em uma forma reconhecível. A cabeça ainda necessitava de muito trabalho, mas os braços e pernas estavam lá, o torso tão forte e feio quanto um coto. Isso era uma
obra-prima horrível, um toque de mestre rústico, uma visão criativa que ninguém deveria ver.
Olhos.
A coisa necessitava de olhos, para poder ver. E quando ela pudesse ver, então o quê?
- Você não está trabalhando, escultor. - disse o busto.
- Estou pensando. - disse Mason.
- Você pensará quando eu mandar você pensar. Agora acabe.
Acabar. E ele poderia ter tudo, fama, fortuna, a aprovação de Mama. E a garota. Ah, não se esqueça da garota.
Ele olhou para a pintura novamente. A figura de Anna havia mudado de posição, estava definitivamente caindo e os braços agora estavam bem abertos, o buquê escorregando
de seus dedos, o meio sorriso mudado para um longo túnel redondo de um grito.
Anna. Algo sobre Anna que ele deveria lembrar, se conseguisse pensar em algo além da estátua. Os sussurros escaparam novamente dos cantos do porão e ele temeu que
o túnel houvesse se aberto novamente, que Mama sairia e o cheiraria, com o nariz pontudo de roedor, lhe mostraria os dentes afiados, balançaria os bigodes e falaria
sobre o poder dos sonhos.
Mas o sussurro se espalhou novamente e a voz agora era a de Anna: - Mason. A voz vinha da pintura.
- Não lhe dê ouvidos, escultor. - disse o busto - Preciso de você. Dê-me meus olhos. E minha boca. Estou com fome.
Anna falou novamente da pintura: - Ele o está consumindo, Mason. Ele está consumindo a todos nós.
- Trabalhe! - ordenou o busto.
- Consumindo nossos sonhos. - disse Anna - Quanto mais próxima fico da morte, mais eu entendo.
Próxima da morte? Anna?
Ele tinha que encontrá-la. Algo estava errado. Algo estava errado com ele. Ele olhou para as mãos machucadas, as ferramentas, as coisas que deram forma a essas monstruosidades
à sua frente. De onde tinham vindo essas gárgulas? Não de sua imaginação, isso era certo.
- Sonhe-me para a vida. - ordenou o busto - Não pare agora. Sonhar com Korban.
Não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Bons ou maus, trazendo-lhe fama ou não. Deixando sua Mama orgulhosa, ou não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Não os de Korban.
Mason levantou o formão, pressionando-o contra o peito da estátua, levou o braço atrás e bateu com força no formão. O busto gritou. Mason bateu com o martelo no
busto, lançando-o ao chão.
- Escultooooor! - Korban rugiu, uma voz como milhares de fogos devorando o ar do estúdio, sacudindo os pilares da casa.
A estátua estremeceu, os membros moveram-se com o gemido das farpas de madeira e ela se libertou dos pregos que a mantinham equilibrada. As mãos de madeira se moveram
e ficaram enroscadas nos arames. As pernas haviam sido divididas em baixo, mas os pés não haviam sido refinados, meros pedaços de carvalhos recobertos com casca.
Os pés pesados arrastaram-se pelo chão.
Movendo-se na direção dele.
Mason chutou a bancada, derrubando a lamparina sobre ela. A chama se apagou quando o globo de vidro quebrou. Eles estavam na escuridão.
Ele e Korban.
Exceto que Korban estava acostumado à escuridão, Korban alimentava-se da escuridão, Korban era a escuridão.
Mason tateou à frente do rosto e moveu-se naquilo que achou ser a direção das escadas. Ele tropeçou sobre algo metálico e então caiu nos braços da estátua animada,
os ossos se chocando contra a madeira...
Não, eram apenas os postes da velha cama. Mas agora ele estava confuso, todas as direções pareciam a mesma e ele ouvia o contorcer e guinchar atrás de si. Ruídos
de roedores.
Não, não, não, não, não o berço.
E na trilha desse pensamento veio outro, igualmente assustador. Ele havia ansiado por criar uma obra de arte eterna. E ele havia feito isso. Isso era seu sucesso
imortal.
Os braços da estátua estalavam enquanto procuravam seu criador, o som igual ao de ossos secos quebrando. Korban estava se esticando, experimentando o novo corpo
na escuridão. O belo e desajeitado corpo, entalhado pelo toque amoroso de Mason.
- Estou cego. - disse a voz abafada de Korban, como se estivesse mastigando serragem. - Você não terminou meus olhos.
Os dedos de Mason tatearam nos pilares de suporte. Ele abaixou-se atrás deles e ajoelhou-se no escuro. Tentou controlar a respiração, mas não conseguia. As batidas
fortes de seu coração o denunciariam. Os pesados pés de madeira arrastaram-se em sua direção.
Se ele está cego, também está surdo. A não ser que parte dele ainda esteja no busto. Se for assim, talvez ele também possa CHEIRAR você.
Mason estremeceu violentamente com a imagem de um rato encostando-se às suas costas, os bigodes balançando e o nariz contorcendo-se enquanto cheirava o ar à procura
de suporte. Korban era um rato, um rei roedor, pronto para pegá-lo. A cauda grossa escorregou no chão frio de concreto. Mason pressionou as pálpebras até que a dor
expulsou a imagem em uma explosão de verde brilhante.
- Venha cá, escultor. - disse Korban, a voz mais clara agora, mais estridente. Será que ele havia se movido novamente para o busto?
Os pés desajeitados escorregaram mais próximos e, então, foram para longe.
Onde estão as escadas?
- Não me traia. - disse Korban. A voz preencheu o estúdio, mas os ecos foram tragados pelo ar parado.
A estátua deve ter encontrado o busto e o levantado do chão. Qual dos dois estava incorporado por Korban? Ou ele habitava os dois ao mesmo tempo? Se ele podia preencher
a casa toda de uma vez, então com certeza ir e vir entre alguns pedaços de madeira seca não era nenhum truque complexo.
Dois passos pesados para frente. O som áspero ou era a estranha e trabalhosa respiração de Korban ou era o ar quente passando pelos encanamentos sobre sua cabeça.
- Precisamos um do outro. - murmurou Korban.
Fama, fortuna e a garota. E tudo que Mason tinha que fazer era continuar fazendo aquilo pelo qual vivera e ansiara até hoje, o que estava em seu sangue, aquilo para
o qual nascera e pelo qual valia o risco de morrer.
Criar.
Trazer os sonhos à vida. Ele nascera para criar.
Ele poderia fazer Korban e Korban poderia fazê-lo. O que Anna havia dito? Não era no que você acreditava, mas o quanto você acreditava. Ele acreditava em sua arte.
Mason ficou tentado a estender o braço e tocá-lo, acariciar os músculos suaves e a pele de madeira.
Esse seria seu trabalho eterno. Seria simples, na verdade. Apenas transferir as feições que havia feito no busto para a estátua. Trazer Korban total e finalmente
à vida.
Ele ouviu um estalido, um som suave que poderia ter sido um riso contido. Ou o suspiro de um rato.
- Acabe-me. - sussurrou Korban.
Render-se seria tão fácil. Render-se a um sonho. Por que se preocupar em fugir dos desejos mais profundos de seu coração, o chamado dos fogos de sua alma?
A voz de Anna veio da escuridão, do canto onde ficava a pintura: - Ele devorará seus sonhos, Mason.
Mason se lançou desordenadamente na direção das escadas e subiu-as tropeçando, o porão vívido com os estalos furiosos de madeira e o escorregar de coisas invisíveis,
o túnel frio de escuridão lambendo seus calcanhares e ameaçando engoli-lo para sempre.
CAPÍTULO 61
Sylvia parou defronte à porta da frente. Ela não havia estado na casa por muitos anos. Desde a morte de Rachel. Um arrepio cruzou-lhe o corpo, trazido por mais que
simplesmente a friagem de outono. Isso era como entrar em uma igreja, terreno sagrado, um lugar onde as almas andavam livremente.
Ela apertou o patuá que havia escondido dentro da blusa, junto do calor de seu coração. Estava assustada, mas tinha fé. A lua estava subindo, lançando uma luz fria
sobre as montanhas como se um novo dia estivesse nascendo. Talvez estivesse. Um dia de noite sem fim, onde as coisas renascem, quando as promessas negras eram mantidas
e rompidas. Quando os feitiços carregavam o peso das preces.
Sylvia abriu a porta sem bater. Ephram sabia que ela estava ali, com certeza. Não havia necessidade de ser sorrateira. E os outros, eles moviam-se nas paredes, agitavam-se
no porão, espiavam por entre as frestas das pedras da lareira.
O retrato de Ephram quase lhe roubou o que havia restado de sua respiração. Ela havia visto aquele rosto em milhares de sonhos, metade deles pesadelos, a outra metade,
o tipo de sonho que lhe deixa envergonhado quando você acorda.
- Olhe para mim. - murmurou ela.
Ephram olhou para ela com os escuros olhos pintados.
- Tô véia. - disse ela - Eu fiquei viva por meio da magia todos esses ano. Andando por aí, esperando essa lua azul sua. Bem, tô aqui agora e não tô bem certa do
que ocê tem a pretensão de fazer sobre esse assunto.
A pintura caiu da parede, a moldura pesada se quebrando, a tela dobrando-se. Quando uma pintura cai, é um sinal certo de que o modelo está para morrer. Mas quando
uma pintura de uma pessoa morta cai...
As chamas rugiram pela chaminé, dedos de fogo voaram na direção de Sylvia, lembrando-a da noite no chão do quarto de Korban, a noite que plantara a semente de Rachel
profundamente dentro dela. Uma noite de fogo gelado.
E essa era outra noite de calores proibidos, uma noite de geada e chamas. Ela se dirigiu para a escada, deixando o rosto de Ephram caído no chão de madeira, próximo
ao calor da lareira. Eles estavam esperando na balaustrada do telhado, sob a lua nascente. Anna, a Srta. Mamie e Lilith. Ephram se juntaria em breve e Sylvia não
perderia isso por nada no mundo. Nesse mundo ou em qualquer outro além dele.
Ela apertou o patuá até os dedos doerem, o coração pulsando de fé enquanto subia as escadas.
CAPÍTULO 62
Mason mergulhou para dentro da luz do corredor como se fosse água benta. Ele bateu a porta do porão e escorregou a trava metálica, trancando-a. Por que havia uma
tranca do lado de fora? O que era mantido no porão que necessitava de um tranca?
Agora que estava fora do ar sufocante do porão, sua mente começou a clarear. E os pensamentos que vieram eram quase tão assustadores quanto o transe criativo que
o havia consumido de dentro para fora. Ele encostou-se na porta, o coração batendo forte.
Bela jogada, Mase. No caso de você ter esquecido, esse cara está morto a mais de oitenta anos e você acha que PORTAS vão pará-lo agora?!
Mas Korban havia sido desajeitado e enrijecido quando movera-se para a estátua. Isso porque o fantasma ou espírito ou o que quer seja tinha se movido para dentro
de um objeto feito pelo homem. Porque Korban precisava daquela energia, daquele fazimento, antes de tomar para si aquele objeto de incorporação.
Então, talvez, ele passe através da PORTA, cabeça de bagre. Parece que ele não precisa seguir nenhum tipo de regra por aqui.
Talvez. Mason socou a porta frustrado. A porta retumbou em resposta como se mãos de madeira batessem do outro lado. Mason olhou pelo corredor.
- Socorro! - gritou ele. Com certeza alguém ouviria o barulho e veria que havia algo de errado. Havia movimentação no fim do corredor. A porta da copa abriu-se.
- Graças a Deus! - disse Mason, caminhando para longe da porta do porão. Um de seus painéis de madeira trincou e rachou-se com as batidas. - Tem um... hmm...
Mason ainda estava procurando as palavras quando se deu conta de que seriam desnecessárias. A cozinheira tinha saído da copa, um cutelo na mão gorda. Ele podia ver
o cabo de madeira da faca. Toda ela, até sua ponta brilhante. Ele estava vendo através da mão da mulher.
Ela era feita da mesma substância leitosa que Ransom e George. O que significava...
Mason olhou para a direita. O corredor terminava em uma pequena porta. Ele teria que passar pela - ou através - da cozinheira para chegar ou à porta da frente ou
à porta dos fundos da casa. E ele tinha a sensação de que deveria se apressar, pois as paredes estavam começando a zumbir com aquela estranha energia estática que
ele sentira no porão.
A porta do porão estilhaçou e cedeu, e as mãos avermelhadas de carvalho da Korban passaram pelo buraco. A cozinheira, subitamente sólida, bloqueou o corredor com
o corpanzil etéreo. Seu lábio estava curvado como se tivesse acabado de cheirar manteiga rançosa. O cutelo dançou à sua frente, a lâmina de metal refletindo as chamas
das lamparinas.
Mason afastou-se dela, apesar de não haver para onde correr. Korban lançou o braço em sua direção pela da fenda na porta, acertando Mason na cabeça com um punho
rústico. Uma escuridão repleta de faíscas inundou seu crânio enquanto ele caía ao chão. Quando ele piscou para se desvencilhar da inconsciência, sangue escorria
de seu escalpo e ele viu redemoinhos nos veios da madeira da parede.
A parede estava se movendo, ou sua cabeça estava rodando. Não, era a parede. Havia algo dentro da parede.
Um rosto tomou forma e emergiu da madeira. A face esboçou um sorriso quando projetou-se para dentro do corredor. O fantasma de George Lawson abanou a mão reserva
e flutuou na direção de Mason.
Korban destruiu a trava metálica e a porta do porão abriu-se. Mason se forçou a ficar de pé e correu na direção da cozinheira, esperando que ela fosse tão macia
quanto parecia. Ele se abaixou e mergulhou entre suas pernas, do modo como havia sido ensinado nas aulas de futebol em Sawyer Creek. Seus ossos rangeram quando ele
afundou na carne gelada e ele ouviu algo estalando em seu ombro.
Fantasmas não deveriam ser sólidos. Mas até aí, fantasmas não deveriam ser. O cutelo assobiou pelo ar e ele olhou para cima a tempo de ver o rosto da cozinheira,
morto e inalterado. Seria a mesma expressão que ela teria cortando cenouras para um refogado.
Ele tentou rolar para a esquerda, mas o cutelo ricocheteou na parte de cima de seu braço. Ele soltou uma respiração agonizante e as gotas de sangue voaram sobre
seu rosto quando ela levantou o cutelo para outra investida. Ele engatinhou como uma aranha aleijada pelo chão, desviando-se dela, os pés pesados de Korban trovejando
pelo corredor.
Mason pulou para a escada, agarrando o corrimão para se puxar para cima. Seu coração bateu violentamente, enviando jorros de sangue do ferimento enquanto ele se
rebocava escada acima. O sangue foi, de uma forma inusitada, uma lembrança de que ele ainda estava vivo. Em um mundo onde sonhos transformavam-se em pesadelos, sangue
era bem-vindo e a dor significava que ainda se podia sentir.
Mason alcançou o segundo andar e olhou na direção da suíte mestre. William Roth encontrava-se nas sombras, ao lado da porta fechada de Spence.
- Corra! - gritou Mason, tentando desesperadamente fechar a abertura rasgada no braço. - Os fantasmas... Korban...
Então todas as palavras se perderam quando Roth foi banhado pela luz das lâmpadas astrais. O rosto do fotógrafo estava pendurado aos farrapos, um zigue-zague de
cicatrizes recentes fazendo seu sorriso ficar deformado. Os globos oculares estavam brancos, como lentes vazias.
O fotógrafo mostrou um punho pálido enquanto Mason tentava coordenar as cordas vocais em um grito.
- Olá, companheiro. - disse o fantasma-Roth, as palavras balbuciadas e abafadas. Os lábios cortados abriram-se novamente e coisas viscosas caíram da boca morta e
comaçaram a caminhar sobre a roupa estraçalhada. Aranhas.
Ambas as pontas do corredor escureceram. Um vento forte apagou todas as lamparinas nas paredes. Era o longo túnel negro, correndo em sua direção de ambos os lados,
e que levariam Mason de volta aos ratos.
A voz de Ransom ressoou das paredes: - Têmo túnel de alma procê, Mason.
A estátua cambaleou escada acima, como um manequim embriagado. Mason espiou por sobre o corrimão e viu o busto aninhado no braço da estátua, como um bebê carregado
pela mãe.
Os lábios do busto se separaram e um lamento ecoou da madeira, como se toda a casa se juntasse à voz de Korban: - Acabe-MEEEEE!
Mason correu para as escadas. O terceiro andar estava escuro. Apenas os fachos leitosos de luar através das janelas impediam que Mason corresse a toda contra uma
parede. Ele tentou sugar ar para os pulmões, mas o ar negro era como uma coisa sólida, espesso e sufocante. Ele ouviu as vozes e olhou para cima, vendo um quadrado
de claridade.
O alçapão para a balaustrada do telhado!
Onde o fantasma de Anna havia gritado na pintura.
CAPÍTULO 63
A lua cheia nasceu cortando por entre os galhos das árvores. A floresta brilhou com a geada e a respiração de Anna brilhava à sua frente. A Srta. Mamie levou-a até
o parapeito e Anna olhou para as terras à volta, que seriam seu lar. Ela pertencia a essa casa, a essa montanha, a Ephram Korban.
- Você é linda. - disse a Srta. Mamie, levantando a lamparina até o rosto de Anna. - Posso ver por que Ephram deseja tanto você. Por isso e pelo seu dom.
Os Abramov se sentaram em suas cadeiras, aproximaram os instrumentos de seus corpos como um encontro de amantes. Paul encaixou a câmera em um tripé, Adam observando-o.
Cris e Zainab conversavam próximas ao bar, Lilith rindo e reabastecendo seus copos. Os outros hóspedes estavam em um grupo na outra extremidade do parapeito, conversando
em vozes baixas e animadas.
- Você sabe por que está aqui, não é mesmo, Anna? - perguntou a Srta. Mamie.
- Porque eu pertenço a esse lugar. - As palavras eram de outra pessoa.
- Eu também. - disse Sylvia e a Srta. Mamie se virou, encarando a velha.
- Não. - disse a Srta. Mamie, o rosto queimando de ódio. - Essa é a noite de Ephram. Ele me disse que você nunca retornaria, que ele a havia usado.
- O Ephram precisa de mim mais que precisa docê.
- Eu o mantive vivo e ele me manteve jovem. Olhe para você, seu saco patético de ossos. E pensou que ele poderia amar alguém como você!
- O amô é como uma porta que abre pros dois lado. A morte é igual. Gelo e fogo. Mas ocê nunca haveria de saber, num é? Ocê não sabe de nada de magia, nem de feitiços,
nem de fé nem de qualquer das coisa que prenderam o espírito do Ephram nessa casa por todos esse tempo.
- Você é uma bruxa louca, balbuciando sobre ervas e pós. É de mim que ele precisa. Sei como fazer as bonecas!
- Bem, ele vai chegar loguinho e daí ocê vai podê perguntar direto pra ele. Agora, o que vamô fazê com a pequena Anna?
- Anna?
Anna levantou a cabeça com a menção de seu nome, a noite como água, o mundo em câmera lenta. Os Abramov iniciaram o dueto solene, os arcos deslizando sobre as cordas
com suave melancolia, as notas vibrando ao vento. Essa era a casa de Anna. Ela não era Anna Galloway, nunca havia sido. Aquela vida era um sonho, o câncer letal
era um sino que havia sido badalado para trazê- la para casa, a morte apenas uma lenta transição que a levaria de volta para si mesma.
Ela era Anna Korban.
E ela se moveria por essas paredes para sempre.
O frio do mundo tornou-se o gelo dentro dela, o coração congelado da eternidade, enquanto ela se encaminhava para aquela linha divisória.
- E ela? - perguntou Sylvia.
- Ah, Anna morre. - disse a Srta. Mamie - Pela última vez.
CAPÍTULO 64
Mason subiu a escada aos tropeções na direção da balaustrada e para o ar frio da noite.
A presença de um grande espaço à sua volta, e a altura à volta, fez sua cabeça rodar e o estômago embrulhar. O mar de noite e as distantes montanhas ondulantes ao
fundo sugaram a força de suas pernas como se os ossos tivessem sumido. Ele se forçou a não pensar no chão lá embaixo, por todos os lados. O patético medo de alturas
empalideceu frente aos novos medos que ele havia descoberto.
Mason piscou, o sangue sobre os olhos, e olhou para a cena surreal na balaustrada. Anna estava junto ao parapeito, entre a Srta. Mamie e uma velha trajando um vestido
imundo e um xale rasgado. Pareciam estar discutindo sobre Anna, que tinha uma aparência drogada ou sonolenta, cambaleando na estranha luz lançada pela lua. O suor
de Mason esfriou no ar outonal e ele tocou na ferida no ombro. A dor o trouxe com violência para a realidade e ele correu para Anna.
- A pintura! - disse ele - Você estava me chamando!
- Quem é você? - perguntou Anna.
- Onde está a estátua? - perguntou a Srta. Mamie - Você não a deixou sozinha lá embaixo, deixou?
Ele olhou atrás de si, para a portinhola. - Temos que dar o fora daqui, Anna!
Mason pegou o braço dela e o frio da pele o inundou como um choque elétrico. Ele olhou dentro dos olhos dela e viu uma escuridão interna sem fim. Túneis. Seus olhos
eram túneis da alma, levando-a a morte ou abrindo-se de uma negritude interna ainda maior.
Antes que ele pudesse sacudi-la ou perguntar o que estava errado, a estátua colocou a cabeça disforme para fora da portinhola de acesso à balaustrada. Gritos emergiram
dentre os convidados enquanto a estátua se levantava toscamente sobre o piso, os membros pesados estalando e batendo, o formão de Mason ainda cravado no peito, o
busto aninhado debaixo do braço grosso. Os Abramov pararam a música no meio de um arpeggio. Uma taça se quebrou. A Srta. Mamie engasgou e correu na direção da forma
inacabada. - Ephram!
A estátua ficou de pé sobre pernas instáveis, o busto aninhado olhando furiosamente para Mason com uma raiva fervente nos olhos. A Srta. Mamie lançou os braços à
volta do torso de madeira.
A velha meteu a mão no interior de seu xale e puxou um envelope de tecido de dentro. Ela o desdobrou, aproximando-se da estátua com passos lentos. - Trouxe aquilo
que ocê queria, Ephram.
Mason olhou da velha para Anna. Ambas tinham os mesmos olhos cinzentos e Mason se deu conta de por que pareciam tão familiares. Porque eram os olhos que ele havia
tão carinhosamente esculpido no busto de Ephram Korban.
Ele novamente estendeu os braços para Anna, para puxá-la na direção da portinhola, incapaz de pensar em algo que não fosse fugir dali. Três lances de escada, a casa
repleta de fantasmas. Korban nunca os deixaria sair. Mas eles tinham que tentar.
Antes que Mason sequer conseguisse mover as pernas, o fantasma apareceu junto do parapeito, a imagem cuspida de Anna. Ela segurava um buquê de flores à sua frente.
Exatamente como a mulher na pintura.
- Mãe. - disse Anna.
CAPÍTULO 65
Esse não era o modo como a Srta. Mamie havia imaginado essa noite, o modo que ela havia desejado durante todas as milhares de horas solitárias, quando tinha nada
mais que o rosto de Ephram no espelho, seu espírito na lareira, as palavras vindas de um retrato.
Essa noite deveria ser perfeita, uma união de duas almas, tudo o mais esquecido. Ephram e sua amada Margareth, juntos novamente, unidos tanto na vida quanto na morte.
Com sonhos a serem concretizados.
E lá estava aquela encarquilhada Sylvia, que tentara o pobre Ephram tanto tempo atrás. E agora Rachel havia chegado. Rachel, que nunca deveria ter estado na casa.
Essa era a razão de ela e os serventes de Korban a terem perseguido, terem-na feito pular para a morte. Ephram havia dito que aqueles que o traíssem nunca ficariam
livres, mas àqueles que o servissem seria permitido uma segunda e derradeira morte. Era por isso que a Srta. Mamie havia entalhado as bonecas com cabeça de maçã,
os pequenos fantoches que abrigavam as almas escravizadas.
- O escultor não acabou seu trabalho. - disse a Srta. Mamie para a estátua. O busto respondeu: - Ele terminará.
Sylvia ajoelhou-se ante a estátua, desdobrou o tecido, levantou um punhado de pó nas mãos enrugadas. - Cinzas de uma oração, Ephram. Fiz como ocê me disse.
A Srta. Mamie agarrou-se à estátua, seu amado Ephram, que estava vestindo carne depois de todos esses anos sob a forma de fumaça e sombras. - Do que ela está falando,
Ephram?
A estátua varreu os braços de carvalho, arremessando a Srta. Mamie ao assoalho da balaustrada. Ela se virou e ficou de quatro, a roupa rasgada, o belo vestido que
havia guardado para a lua azul aos farrapos. Para a segunda lua de mel.
- Ephram? - perguntou ela.
- Ele não precisa docê. - disse Sylvia.
A Srta. Mamie engatinhou até ele e abraçou as pernas ásperas. - Ephram! Você me ama! A estátua a chutou para longe. - Enfeitice-me, Sylvia.
- Me devolve meus anos primêro. - disse Sylvia - Me faz jovem de novo. Como ocê prometeu.
- Enfeitice-me!
- Ocê disse que sempre cumpre suas promessa. - Sylvia levantou o tecido repleto de poções mágicas.
- Do que ela está falando, Ephram? - perguntou a Srta. Mamie. Subitamente, ela sentiu-se fria, como se um glaciar houvesse cortado seu coração. Olhou para as mãos.
A pele se enrugou perante seus olhos enquanto rugas profundas vincavam a pele, pequenos rios de idade correndo escuros sob a luz do luar. Ela tocou no rosto, a pele
se esticando e enrijecendo-se sobre o crânio, ao mesmo tempo que cedia sobre o queixo.
Oh, Deus, ela estava envelhecendo!
- Você me prometeu, Ephram. - disse ela - Juntos para sempre.
A estátua e o busto se juntaram em uma gargalhada. Os hóspedes correram para a portinhola, mas Lilith a fechou e ficou sobre ela. - Ninguém deixa o Solar Korban.
- disse ela, sorrindo como um esqueleto.
CAPÍTULO 66
Anna caminhou na direção de Rachel, movendo-se como se nadasse em uma água escura. - O que você está fazendo aqui?
- Tentei avisá-la, mas você não ouvia.
- Sobre Sylvia?
- Ela sempre amou Korban. Foi por isso que ela o matou, para agradá-lo. É por isso que ela aprendeu magia, feitiços e poções, que mantiveram o espírito dele vivo
até que pudesse finalmente trazê-lo de volta.
- Isso é tudo uma loucura, um sonho bizarro. - disse Mason.
Anna lhe deu um meio sorriso. Será que ele não conseguia ver o óbvio? Tudo era tão mais fácil quando você estava morto. Porque os mortos não precisam mais sonhar.
CAPÍTULO 67
- Estou vendo, mas não estou acreditando. - disse Paul, a cabeça inclinada para o visor da câmera. - Isso é demais. Romero após LSD, John Carpenter em contenção
de despesas.
Adam deu um puxão em seu braço. - Temos que dar o fora daqui!
- Documentário chocante! Não perderia isso por nada no mundo.
- Que diabos, Paul, isso é como no meu sonho. Você não vê? Todo mundo está morto.
Paul levantou os olhos da câmera, dando o sorriso de garotão. - Nem todos, princesa. Só você.
- Não faça isso. - disse ele.
- Ou você está trabalhando para o cara desse lado, ou o serve do outro lado. Você pode morrer, se quiser, mas eu prefiro ser o próximo Alfred Hitchcock, como Korban
me prometeu.
- Não estou morto, seu idiota miserável.
Paul riu. - Como queira.
Adam olhou para sua mão, que segurava a manga da camisa de Paul.
Os dedos passavam pelo tecido, agarrando o vazio. Ele colocou a mão no peito. Quando mesmo que seu coração parara de bater?
Jesus amado, tenha piedade de mim, quando meu coração parou de bater?
Paul apontou para o parapeito e para o caminho pavimentado à frente da casa. Adam não pôde se conter e olhou.
Havia uma forma, lá embaixo, torcida, rasgada e quebrada. Dois metros de comprimento, vestida com um pijama cinza, escurecida com líquido. A forma estava mortalmente
imóvel.
E só. Terrivelmente só.
CAPÍTULO 68
Spence colocou um dedo trêmulo sobre a Royal. Os fantasmas passavam por ele, a carne nebulosa gelando o quarto. Roth havia ido embora, Bridget estava perdida em
algum lugar.
Spence pressionou uma tecla.
F.
A única e verdadeira Palavra, se desvelando, mostrando a pele dourada, abrindo a carne para ele. Um convite para entrar.
A agitação dos fantasmas fez as páginas do manuscrito voarem enquanto as formas brancas se infiltravam no teto. O maior trabalho de todos os tempos. Eles podiam
levá-lo de volta à sala de aula de Aileen Foxx, mas dessa vez ele teria algo para mostrar a eles, para calar as pequenas bocas moles e impressionar os olhos cruéis
e sem vida. Ele tinha a prova de sua superioridade.
Suas entranhas doíam, o suor escorria nas axilas, o couro cabeludo latejava. A tensão elétrica dos fantasmas fez o cabelo no dorso de suas mãos se arrepiar. Ele
pressionou outra tecla e um "o" bateu ao lado do F.
Ele pensou que a única e verdadeira Palavra seria algo mais nobre e raro, algo com sete sílabas que apenas os gigantes literários e dicionários saberiam. Engraçado
que a palavra era comum, elementar. Mas as opiniões de Spence não tinham mais peso agora.
Ele era apenas um instrumento, a espada e o cetro, a pena, a pederneira e o aço. A Palavra era o início e o fim das coisas.
Vá para fora congelar e volte em fo...
Ele bateu o "g", chorando ao final de seu trabalho, já sentindo o velho vazio, já sentindo necessitar novamente de Bridget. Alguém para salvá-lo de si mesmo.
Ele olhou para Ephram Korban, para o rosto amável, os olhos encorajadores, os lábios generosos que lhe haviam fornecido cada palavra desse trabalho descomunal.
- Obrigado, senhor. - disse Spence.
Os fantasmas haviam ido embora, agora. Sem distrações. Sem desculpas. Apenas ele mesmo, a Palavra e Korban. Enquanto ele observava, o retrato ficou escuro, como
uma velha televisão se apagando.
Ele procurou as teclas, cego pelas lágrimas, e colocou o dedo desajeitado e imerecedor sobre a letra magnífica.
CAPÍTULO 69
Sylvia sentiu um jato de energia correndo pelas veias, o cansaço escorregando para longe, o doce sumo da juventude derramando-se sobre ela como uma cachoeira de
água refrescante. Ela inclinou a cabeça para trás e riu. Deixe que a Srta. Mamie volte ao pó. Ephram amara apenas uma, aquela que havia feito os sacrifícios. A que
tivera fé. Aquela que havia rasgado o vestido fúnebre ensanguentado da própria filha, que havia quebrado ossos de coruja, penas de corvos, raízes e dúzias de outras
coisas.
A que dera os patuás errados para Ransom. A que construíra a ponte para Ephram voltar para esse mundo por meio das cinzas de mil orações. Aquela que havia pronunciado
os feitiços, que havia enviado a magia para os ventos e trazido Anna, a que fisgara Anna na carne mais profunda de seu coração e a enfeitiçara, deixando-a cega para
que a morte pudesse completar o círculo.
Ah, Sylvia tinha fé, com certeza, e ela desejava todos os frutos dessa fé. Ela desejava Ephram de volta.
Ela se levantou, novamente com dezesseis anos, ansiosa por oferecer a nova virgindade ao homem que roubara sua alma, que havia incendiado a chama eterna de seu coração.
Ela jogou uma pitada do pó sobre a estátua, imaginando aqueles grandes braços amando-a, aqueles lábios rústicos e quentes sobre sua pele, aqueles olhos queimando
dentro dos seus para sempre.
- Fale. - disse a estátua.
Ela sussurrou, tremendo: - Vá para fora congelar e volte em fogo.
CAPÍTULO 70
Com as palavras de Sylvia, as quatro colunas de fumaça das chaminés se insinuaram, adensando- se em um nevoeiro espesso. A fumaça enviou seus dedos esfarrapados
na direção de Anna, costurando entre Mason, Sylvia e a estátua que abrigava parte da alma de Ephram Korban. O busto, que continha o resto do poder invisível e eterno
de Ephram, sorriu para Anna com afeição perversa.
Mason abanou a fumaça com as mãos, mas ela escorregava através dele e os dedos cinzas, iluminados pela lua, rastejaram sobre Anna como vermes enregelados. Eles encontraram
a parte macia de sua garganta e tornaram-se sólidos, apertando em uma força gentil, quase erótica. Ela levantou as mãos para empurrá-los para longe, mas relaxou
sob a carícia insistente.
Seus pulmões queimavam pela falta de ar e uma tontura gélida correu por sua espinha para a base do crânio. Anna tentou falar, Mason a tinha segura pelos ombros e
a balançava, enquanto ela estava parcialmente consciente do movimento na balaustrada. Mas a maré cinza estava adentrando pelos cantos de sua visão, empurrada por
uma grande onda negra de vazio.
Ela não soube dizer quando a mudança aconteceu. A linha havia sido mais tênue do que ela jamais imaginara. Por alguns breves momentos, ela estava em ambos os lados,
viva e morta ao mesmo tempo, mas esse momento passou e ela cruzou a barreira. Ela finalmente se encontrou, seu verdadeiro eu. Ela tornou-se o fantasma que sempre
quis ser.
A dor interior havia sumido. Em seu lugar, um vácuo inquietante, uma ânsia vazia. Solidão. Ela estava morta e ainda não pertencia.
E a morte era igual à vida, porque o mundo era o mesmo: Sylvia sussurrando algo para a estátua, a Srta. Mamie ajoelhada e soluçando, as mãos sobre o rosto como que
tentando segurar a carne no lugar, Lilith flutuando sob o luar, os Abramov sentados com olhos vazios, agora tocando um tom fúnebre, Mason sobre ela, gritando sobre
uma pintura falante, Korban em madeira, sonhos se tornando realidade e todo tipo de loucura. Será que ele não via que nada disso importava?
Morte e vida, as duas eram iguais agora.
Rachel flutuou à sua frente, segurando o buquê. - Sinto muito, Anna. Eu a abandonei. Anna estendeu as mãos para o buquê. Seu corpo caiu ao chão.
- Anna! - Mason pulou em sua direção, tentando segurá-la e amparar a queda, mas o corpo que ela havia abandonado caiu para longe dele. Ela ouviu sua carne tombando
sobre as tábuas do assoalho da balaustrada, mas seu espírito continuou caindo. Através da casa, através desse espaço de negra inanidade que se tornaria seu lar.
A morte não era uma libertação. Morte, pelo menos no entendimento de Ephram Korban, era apenas mais uma prisão, repleta das mesmas sombras e sofrimentos da vida.
Com a diferença que aqui não havia escapatória nem esperança e ainda ninguém a quem pertencer.
- Anna! - A voz de Rachel, um vento gemente de dentro de uma sepultura, um chamado desesperado.
Ainda assim, Anna caiu.
CAPÍTULO 71
Mason segurou Anna nos braços. Seu rosto estava pálido, os olhos vidrados e arregalados. Ele encostou a bochecha em sua boca. Sem respiração.
Sem respiração.
Raiva e medo cresceram dentro dele, as lágrimas queimando nos olhos. Ele olhou para aquela lua estufada e obscena. Ela estava morta. E era culpa dele. Ele havia
falhado.
Ele gentilmente a deitou no chão, limpando o sangue de seu rosto, e virou-se para a estátua. A velha que Korban chamara de Sylvia havia mudado, estava jovem, o rosto
contorcido num sorriso sinistro. Mason ficou de pé, apesar da longa queda além do parapeito lhe deixar tonto e da sensação de estar no topo do mundo torcer suas
entranhas de terror.
- Vá para fora congelar. - Sylvia repetiu, a pele vibrante e fresca ao luar. Anna não havia lhe falado algo sobre gelo e fogo?
Deus, por que ele não conseguia se lembrar? E será que isso importava?
Porque essa estátua, sua criação, sua maldita imagem de sonho, estava de pé sobre a balaustrada como um monstruoso ídolo de madeira, nascido da vaidade, fé e amor.
Sim, amor. Porque Mason havia amado seu trabalho.
- Você me terminará, não é mesmo, escultor? - disse o busto calmamente, aninhado entre os grossos braços da estátua. - Você me ama. Todos me amam.
-Você havia me prometido Anna. - disse Mason.
- Ah, ela. Ela não é nada. Um mal necessário. E você aprenderá que a carne é efêmera, mas o espírito é eterno. Não é verdade, minha querida Sylvia?
- Quando você dá seu coração a alguém, você a possui. - disse a mulher. E apesar de agora possuir uma beleza que rivalizava com a de Anna, as sombras à volta de
seus olhos eram mais velhas que as montanhas Apalaches, escuras, frias e repletas de segredos.
- Então pague seu débito. - disse Ephram - complete o feitiço.
- A tercêra vez é um encantamento. - disse ela - Mas primêro, tem uma promessa que ocê tem que cumprir.
- Promessa? Qual promessa? - A estátua levantou os olhos para a lua e os veios de carvalho brilharam como centenas de diamantes. Geada. Ela havia congelado a madeira.
Gelo e fogo.
Mason não estava certo da conexão entre as duas palavras. Mas ele entendia fogo. A lamparina da Srta. Mamie brilhava perto do parapeito, onde ela a havia deixado
quando Korban surgira. Mason pensou se ele conseguiria pegá-la antes de Korban achar que já era hora de começar a jogar corpos do topo de sua casa.
CAPÍTULO 72
- Anna. - chamou Rachel novamente. Anna abriu os olhos para a escuridão.
A escuridão não era absoluta. Ela piscou.
- Onde estou? - perguntou ela, a voz flutuando como se dita por uma centena de línguas.
- No porão.
- Da casa?
- Todos nós vivemos aqui. - disse outra pessoa, e uma mão estava na sua, pequena e fria.
- Você! - disse Anna - A pequena garota da cabana, a que Sylvia chamou de Becky.
- Você veio nos ajudar. - E a menina sorriu.
- Eu não posso ajudar você. - disse Anna. E agora ela via Rachel, etérea e brilhante contra uma cortina de escuridão.
- Eu tive que esperar você morrer, Anna. - disse Rachel - Você tem o dom, mais forte ainda que o meu. Korban me matou porque sabia que eu era mais forte que Sylvia.
Mas não como você. Quando você estava viva, você tinha a Visão. Mas agora que morreu, você tem a Terceira Visão.
- Terceira Visão?
- O poder de olhar da morte em direção à vida. O poder de nos unir. De manter nossos sonhos, de um jeito que Ephram nunca pôde, porque ele os queria para si. Ele
desejava nossos medo e ódio, mas se esqueceu da fé. Porque nós acreditamos em você, Anna.
- Acreditar. Assim fala a maior mentirosa do mundo. - Ela queria poder rir, mas em sua grande terra de nada e desesperança, um som desses não poderia existir.
- Acredite. - disse Rachel - Torne-se o veículo. Una nossos sonhos, nossos sonhos reais. Deixe nossos sonhos invadirem você, para que possamos finalmente morrer.
- Você quer morrer?
- Mais do que qualquer coisa. - disse a garota.
- Ajude-nos. - disse outra voz vinda da fumaça cinzenta desse novo mundo de morte.
- Livre-nos de Korban. - disse outra e ainda outra mais. Quantas almas Korban havia aprisionado ao longo dos anos? Quantas das poções de Sylvia e feitiços haviam
lançado sua magia de aprisionamento?
- Siga seu coração. - disse Rachel.
- Meu coração. Ele apenas me leva ao inferno.
- Ele pertence aos vivos.
- Não. Eu pertenço a esse lugar.
- Sylvia mentiu, não eu.
- Não confio em nenhum de vocês. Por que deveria acreditar?
- Escute. Não sou sua mãe.
- Você não é minha mãe?!
- O poder de Ephram é que ele permite que você veja apenas o que quer ver. Ele lhe dá o que você deseja. Por que você acha que finalmente pode ver os mortos?
Anna não pensou que seria possível descer a um congelamento maior que a morte, mas a revelação fez sua alma girar. Ela havia sido uma idiota. Como poderia encontrar
seu próprio fantasma?
- Sylvia usou você. - disse Rachel - Ela me usou também. Somos apenas gravetos para serem lançados em seu fogo sacrifical.
- Odiei você. - disse Anna - Quando Sylvia me disse que você era minha mãe, achei que finalmente havia encontrado alguém para culpar. Agora sou só eu e estou tão
perdida quanto sempre estive.
- Sinto muito. Eu quis lhe avisar, mas Ephram me controla também. Tudo o que desejo agora é nunca ter nascido.
-- Isso vale para mim também. - disse Anna.
- Você não está só, Anna. Algo aconteceu. O feitiço de aprisionamento foi quebrado.
- As bonecas. - disse Adam.
- Adam? - perguntou Anna. Seus olhos da alma não podiam vê-lo nas sombras. - Você está morto?
- Eles dizem que estou, então devo estar.
- O que tem as bonecas? - perguntou Rachel.
- A Srta. Mamie as fez. - disse Adam - Entalhadas, com pequenas cabeças de maçã. Eu vi a minha, apenas não sabia do que se tratava. Acho que ela esculpiu uma para
cada um que morreu.
- Ela está morta. - disse Anna - Acho que ela nunca esculpiu uma para si.
- Então ela não pode mais nos prender. - disse Rachel - Estamos livres.
- Não livres. - disse Anna - Não até que Ephram tenha sido morto pela derradeira vez.
- Salve-nos. - disse Becky.
- Tire-nos daqui. - disse Adam.
- Você é a escolhida. - disse Rachel - Você foi trazida para cá por um motivo.
Outras vozes vieram da escuridão à volta, implorando, encorajando. Anna sentiu a energia delas fluindo para si, uma corrente de calor que rodopiou seu coração morto.
- A Terceira Visão, Anna. - disse Rachel - Não sou sua mãe, mas estaria orgulhosa se fosse. Porque você é forte. Até mesmo mais forte que Ephram.
- Não sei. - disse Anna - O que devo fazer?
- Diga. O que Sylvia lhe ensinou. Só que de trás para frente.
- Gelo e fogo?
- Sim. E acredite nisso. Os vivos permanecem vivos, os mortos se vão.
Vivos. Talvez viver não fosse assim tão ruim, mesmo com dor, pesar e fracasso. Mas pelo menos a vida oferecia esperança, segundas chances, escolhas. O que era essa
dor que crescia em sua alma agora? A dor da esperança, o desejo de uma carne esquecida, o arrependimento das coisas por fazer e das palavras não ditas?
Ela pensou em Mason na balaustrada, enfrentando o monstro de madeira que havia feito, um monstro que assombraria essa montanha como nenhum fantasma conseguiria.
Assombraria como um deus, com raiva, poder e arrogância, como se todas as coisas vivas lhe pertencessem.
- Saia o fogo, entre o gelo. - disse Rachel. - Diga isso.
Anna abriu a boca morta e sonhadora. Dezenas de vozes se juntaram à dela, Becky, Adam, Rachel, todas se unindo em um coro, um cântico de esperança, uma ânsia pela
liberdade final. - Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo.
Um, uma linha que divide...
Dois, um gancho vazio...
Três, forcado de inglês...
A terceira vez é um encantamento, abrindo a porta. Para um aposento de esperança. Uma casa de fé. Uma casa para a alma de Anna Galloway.
Ela era Anna. Ela estava viva.
Ela abriu os olhos, viu o círculo alvo da lua, sentiu o frio de outubro na pele, sentiu o sabor da fumaça que saía das chaminés, sentiu o cheiro das folhas apodrecidas
levado pelo vento, ouviu o distante rugir do coração de Ephram Korban. Ela colocou a mão sobre o próprio coração. Batendo. Em ritmo com o dele. E com o dos espíritos
que ela carregava dentro de si, as esperanças e sonhos combinados dos mortos descontentes.
Combustível.
Ephram desejava combustível, ela lhe daria combustível.
Ela se levantou e, apesar de seu corpo ainda estar deitado sobre a balaustrada, ela não precisava de carne para sua tarefa. Tudo o que ela precisava era a fé de
seu espírito. Porque ela finalmente havia encontrado algo ao qual pertencer, algo que lhe oferecia mais que apenas uma escuridão sem fim, algo maior que ela mesma.
Sua casa estava cheia e Korban era uma casa dividida. Presa entre gelo e fogo.
CAPÍTULO 73
A Srta. Mamie se levantou, o corpo cadavérico e seco.
Onde estava sua a carne, a beleza que Ephram lhe havia dado? Ela queria um espelho, porque espelhos nunca mentiam. E nem Ephram. Porque Ephram a amava. Ele a havia
matado por alguma razão, com certeza.
Talvez o amor deles teria lugar do outro lado, não no lado mortal. Aquilo era a única coisa que fazia sentido. Ela ainda tinha olhos, podia ver o mundo mortal e
podia sentir todos os estranhos sabores da morte, e a morte era igual a vida, apenas melhor.
Ela iria para Ephram agora, sob seus termos, do modo como ele a havia criado. Mas por que Sylvia ainda estava viva? E novamente jovem e bela?
Ephram poderia explicar tudo isso. Afinal, eles teriam a eternidade para isso.
Ela caminhou na direção dele, apesar de seu espírito estar costurado ao céu noturno , pesado e espesso, e ela lutou para caminhar sobre a trama de escuridão.
Uma aura desfocada brilhava sobre os cortes grosseiros dos ombros da estátua. Ephram elevou o busto de bordo como se fosse um troféu, mostrando-se para o mundo,
mostrando para o mundo o homem que possuía os dois lados.
- Manda ela embora. - disse Sylvia para ele - Aí eu termino o feitiço.
- Sylvia. - disse Ephram, a estátua e o busto falando em uníssono. - Eu lhe dei tudo.
- Quero isso mais que tudo o resto. Não vai sê bastante ter seu coração. Quero ela fora do seu coração pra sempre!
- Você foi a única que amei.
- Sim, mas isso é a mesminha coisa que ocê falô pra ela. Mas ocê mentiu pra uma de nós. A Srta. Mamie lutou contra a gravidade que a empurrava para a escuridão.
Túneis da alma, Ephram havia dito que todos tínhamos túneis da alma. Qual é o meu, Ephram? O que eu temo mais que tudo na vida?
Sylvia olhava com grandes olhos apaixonados para o belo tronco de carvalho. Seus feitiços haviam trazido uma horda enevoada, juntando-se à volta da estátua como
adoradores aos pés de um profeta renascido:
Ransom, confuso e triste, os dedos remexendo no patuá que não tinha poder. George Lawson, oferecendo a mão decepada como um tributo.
Os Abramov, os instrumentos esquecidos, a música ainda sendo tocada sozinha. Lilith, brilhando mais e menos, como uma pintura inacabada.
William Roth, aranhas saindo pelos olhos.
O busto sorriu para o céu noturno . - Adeus, Margaret.
A Srta. Mamie moveu a mão para o medalhão. Mas ele havia desaparecido. Estava junto do vestido vazio e o pó do corpo decomposto. Então ela percebeu que já se encontrava
em seu túnel. Porque esse era seu maior medo, e agora ela veria seu amor indesejado esvaindo-se em um ralo escuro, seu sacrifício recusado, um século de promessas
resultando em nada.
Ela sentiu a alma se esvanecendo ao vento, para ser carregada na direção das montanhas, onde Ephram estaria sempre fora do alcance.
CAPÍTULO 74
Não mesmo.
Nem em um milhão de anos!
Mas Mason não podia negar. O corpo de Anna havia tremido ao seu lado. Os cílios se agitaram.
O peito elevou-se levemente por baixo da mancha de sangue que Mason lhe havia deixado na camisa. A respiração resfriou o suor na palma de sua mão. Ela estava de
volta.
E mesmo no medo e estarrecimento, um jato de prazer correu por seu sangue, uma felicidade como ele nunca havia sentido. Isso tudo era um sonho maluco, tinha que
ser, mas os sonhos eram tudo agora.
Mason olhou para a adorável madeira avermelhada da estátua que ele havia feito, para os espíritos à sua volta, para o busto de bordo que exigia que Sylvia terminasse
o feitiço.
Os olhos de Anna se abriram, as íris não mais azuis. Eram vermelhas, então amarelas e laranjas, brilhando em todas as cores do fogo.
E ela se levantou, exceto que o corpo continuou sobre o piso da balaustrada. Ficou de pé. Um fantasma, mas ainda assim seu corpo respirava.
Ela estava em ambos os lados ao mesmo tempo, morta e viva.
- Ela... ela não devia de voltar! - Sylvia gemeu, voltando a se curvar como uma velha, apesar de sua juventude. - Ocê matô ela como matô Rachel!
- Eu preciso dela. - disse Korban - Ela é parte da casa. Agora termine o feitiço. Eu mantive minha promessa. Margaret se foi.
Os lábios vivos de Anna se abriram em um glorioso meio sorriso, as palavras escorrendo como um coral de vozes moribundas: - É o fogo, Mason.
Ele tocou no queixo dela, quente com o calor humano. - Você confia em mim? - murmurou ele, o tipo de coisa que diria apenas em um sonho. Mas não tinha mais nada
a perder.
Talvez isso fosse a arte verdadeira, a criação que lhe dava retorno, o trabalho que completava a si mesmo. Essa era a maior de todas as imagens de sonho.
- Talvez. - disse Anna - O Fogo.
"Talvez" era o suficiente para arriscar tudo. Mason sabia o que tinha que fazer, o que deveria ter feito muito tempo atrás. Ele abaixou-se para a lamparina, vendo
os olhos de Anna em suas chamas intoxicantes.
CAPÍTULO 75
Oh, Deus, algo estava errado.
Sylvia jogou o pó do patuá sobre Ephram e pressionou o vestido fúnebre de Rachel sobre seu coração.
Anna não deveria ter voltado. Ela tinha que estar morta e assombrando a casa, servindo Ephram, servindo com seus sangue, energia e poder. Mas lá estava ela, respirando,
piscando e sussurrando com o escultor.
E os olhos de Anna não estavam corretos. Pessoas demais olhavam por eles, todos furiosos como cobras presas em uma caixa.
Ela faria com que ele se livrasse de Anna também, do mesmo modo como se livrara da Srta. Mamie. E de Rachel. Ela ficaria livre de todas elas. Apenas ela e Ephram.
Ela estava ansiosa para testar o novo corpo. Um século de espera era tempo demais. Ela gastara dez mil feitiços nesse homem e era hora de um pouco de compensação.
O belo busto abriu a boca. Seria esquisito beijar aquela coisa, fazer amor com uma estátua que nem tinha todas as partes ainda, mas sempre diziam que o amor achava
um jeito. E ela teria a eternidade para aprender como domá-lo para sempre e ensiná-lo o valor de seus encantamentos, invocações e feitiços. Ser desejada para sempre.
Ela abriu a boca para dizer o feitiço a última vez.
- Vá para fora congelar e volte em...
CAPÍTULO 76
Anna sabia que esse era o momento, o tempo da encruzilhada eterna. O momento para os fantasmas morrerem.
- Aqui vai o seu maldito fogo! - gritou Mason sobre a música louca e as folhas esvoaçantes. Ele agarrou a lamparina, a carne da mão chiando, e pulou na direção de
Ephram, gritando na direção do céu. Levantou a lamparina sobre a cabeça e jogou-a na direção da estátua.
Anna liderou o salto para fora do corpo, o espírito um canal para os sonhos aprisionados e esperanças perdidas de todas as almas penadas.
Combustível.
A lanterna se quebrou na estátua, o óleo espesso embebendo o carvalho, as chamas azuis, vermelhas e laranjas lambendo a forma desequilibrada de Korban. Uma língua
de fogo correu sobre seu braço, ateando fogo ao busto de bordo. Gritos gêmeos rasgaram a noite enquanto o fogo crescia rugindo, açoitado pelo fogo ensandecido.
O peito de Anna esvaziou-se enquanto os fantasmas torturados do solar passavam através dela, voavam sobre as tábuas da balaustrada e enxameavam à volta de seu odiado
mestre. Seu combustível alimentou dez vezes o fogo, vinte vezes, enquanto a estátua tombava e dançava em agonia. O busto caiu ao chão, os lábios arregaçados em uma
dor infinita. Mason chutou-o na direção da estátua, de volta para a coluna infernal de fogo.
Anna afastou-se cambaleando, livre de todos os espíritos, a não ser o seu. A luta era estonteante demais para se observar, mesmo com Segunda ou Terceira Visão. Uma
fumaça ácida saía pelas chaminés do solar, faíscas vermelhas e brilhantes voando pelo ar.
O solar oscilou, as paredes se curvando e estalando, as vigas quebrando como ossos secos. As empenas gemeram na angústia do colapso. Línguas de fumaça derramaram-se
pelas portas e janelas, enrolando-se nos pilares e escurecendo o céu.
Korban girou na escuridão em uma valsa enlouquecida de morte, Sylvia ajoelhando-se a seus pés, os vivos e mortos tentando desordenadamente escapar do fogo que ardia
em ambos os lados da linha divisória entre a vida e a morte.
CAPÍTULO 77
Uma parede de chamas cruzava a balaustrada, cortando a fuga pela portinhola. Mason semicerrou os olhos contra a fumaça, os nervos da mão chamuscada gritando em ondas
alternadas de dor vermelha e laranja, a cabeça e o braço em agonia pelos machucados. Ele caminhou tropegamente até o parapeito e olhou para baixo, a escuridão lhe
dando vertigens.
Uma mão o tocou e ele se virou, pronto para se render, para deixar Ephram Korban tragá-lo para dentro de seu pesadelo interminável.
Era Anna.
- As árvores. - disse ela - Acho que conseguiremos alcançá-las.
- Eu não consigo. - disse ele, a garganta seca. - Alturas.
- Todos temos que enfrentar nossos medos cedo ou tarde. E você acabou de queimar sua obra-prima. O que mais você tem a perder?
- Você.
- Certo, então. Venha, pois eu sou egoísta demais para sobreviver a esse inferno todo sozinha.
Ela subiu no parapeito no ponto mais distante possível das chamas. Um choupo balançava-se nas correntes de ar geradas pelo fogo, os galhos roçando o parapeito. Vidro
quebrou-se abaixo, as chamas explodindo para fora das janelas e rugindo pelas bocas das chaminés. A casa toda oscilava e rachava com os espasmos da destruição.
- Ephram Korban. - disse Anna - Ele está morrendo junto com a casa.
Ela agarrou os ramos, puxou-se na direção da árvore e virou-se para Mason. - Depressa!
Ele tomou a mão dela, fechou os olhos e lançou uma perna à volta do ramo grosso. Seu estômago se contorceu, sentindo o espaço abaixo dele, a longa e profunda abertura
entre seu frágil corpo e o chão...
Não pense, Mason.
Ela voltou dos mortos e você está preocupado com uma coisinha à toa como cair daqui.
Mas não era com a queda que ele estava preocupado, mas sim com a aterrissagem. O morrer. Porque ele havia visto os olhos ocos e ausentes daqueles que haviam contemplado
os túneis negros. Ele preferia a cegueira a qualquer daqueles horrores escondidos, aqueles segredos de sua alma que chafurdavam muito longe da luz.
Ele caminhou precariamente sobre o ramo, a mão dela segurando sua camisa ensanguentada e, no momento que eles alcançaram o tronco, ele estava segurando a sua também.
As paredes estavam desabando. Era o fim. Spence olhou para o papel, para a Palavra.
F-o-g-o.
Chamas se infiltraram por entre as frestas do assoalho, a fumaça irrompeu da lareira. A vidraça se estilhaçou para fora e as chamas jorraram por debaixo da porta
do closet como água colorida.
Uma voz aguda gritou através do estalar do fogo: - Saia, Jeff!
A Musa? Ele olhou de sua mesa, confuso. O trabalho era lindo. Deslocado desse caos maligno, dessa destruição, desse inferno Dantesco. Mas a Palavra - a palavra não
poderia ferir seu criador, poderia?
Ele estivera enganado. A Palavra mentira. Korban havia mentido.
O escritor era o mestre. A linguagem sua escrava.
O quarto estava tomado pela fumaça agora. Bridget, gritando do corredor, abaixou-se fora de vista. Spence inclinou-se para frente, as molas da cadeira rangendo.
Ele tentou pegar o manuscrito, mas labaredas famintas subiram pela parte de trás da escrivaninha.
Ele ficou de pé, os olhos turvos e os dedos insensíveis. A fumaça entrou por suas boca e garganta, enquanto ele começou a se mover para a porta. Ele não podia deixar
seu manuscrito. Virou- se com esforço, tonto com a falta de oxigênio. As páginas haviam se tornado uma fogueira, as sentenças virando vapor, a Palavra perdida no
calor de sua própria mentira gloriosa.
Spence cambaleou até o dormente da porta, uma pontada de arrependimento no peito. Ele não havia pressionado a tecla do ponto final. Ele não havia terminado seu manuscrito.
Ele tentou novamente retornar para o quarto, mas o teto estava desabando, a casa entrando em colapso, a máquina de escrever perdida numa maré de amarelo e vermelho.
O fogo sugou o oxigênio pela janela e uma brisa escaldante enviou uma folha de papel pela porta. Spence a agarrou, segurando-a de encontro ao peito.
Chorando, ele se arrastou pelo corredor, tossindo e cuspindo.
CAPÍTULO 78
- ... fogo. - murmurou Sylvia, terminando de pronunciar o feitiço, apesar de agora ser muito, muito tarde.
Todos aqueles anos de espera, de sacrifício, de decepções estavam perdidos. Os anos que Ephram lhe tinha dado de volta, os anos roubados de Margaret, estavam sumindo,
recuando para o passado. Por direito, eles deveriam ser seus. Ephram deveria ter sido seu.
Seu amante de madeira se contorcia e se curvava sobre a balaustrada queimada e descascada. Por trás da parede de chamas, ele havia perdido um pouco de sua majestade.
Mas ainda tinha poder, aquele magnetismo que a havia levado a sacrificar tudo por ele. Ele estava morrendo novamente, a terceira e última vez, e precisava dela.
Ela sentiu isso de forma tão intensa quanto sentiu o cabelo encolhendo com as chamas e a umidade da pele evaporando com o calor.
- Sylviaaaaa!! - rugiu ele, ou talvez tivessem sido apenas as línguas de fogo.
Ela se arrastou em sua direção, para dentro do fogo. Ao contrário da última vez que vira Ephram, dessa vez o fogo queimou seu corpo e sua alma.
Quando as chamas lhe roubaram a respiração, enquanto os olhos secaram nas órbitas e o cérebro ferveu, ela compreendeu que a possessão funcionava para os dois lados.
Quando você dá seu coração a alguém, essa pessoa possui você. E você a possui em retorno.
Para os dois lados. Gelo e fogo.
E dor, uma agonia congelante de dor. A coisa chamada amor. Uma coisa suicida e assassina.
CAPÍTULO 79
Anna desceu, trançando por entre os galhos. Mason estava logo atrás, descendo com um cuidado nervoso. O calor do solar rugia sobre ela, pedaços de madeira e cinzas
voando na ventania do incêndio. A sensação a lembrou de que estava viva, de que a morte que ela recepcionara com carinho era agora uma coisa contra a qual lutava
para fugir. Talvez estar vivo significasse nada mais que lutar para ficar distante da morte.
Talvez.
Ou talvez Rachel estivesse certa. Você deve viver para algo maior que si, pertencer a algo que valha a pena. Então você se torna merecedor de seu descanso.
- Segure-se, Mason, estamos quase chegando.
- Ótimo. Porque eu acho que a casa está ruindo.
Eles finalmente alcançaram o chão, Mason cambaleando, fraco pelos ferimentos. Ela lhe deu suporte, levando-o através do jardim do solar, para longe. O calor havia
derretido a geada e a grama estava molhada, o vapor elevando-se. Quando alcançaram uma distância segura, ela e Mason caíram ao chão, livrando os pulmões da fumaça,
observando a pira funeral de Korban conforme estendia seus longos dedos na direção da lua.
As grandes estruturas enegrecidas da casa delineavam-se contra o céu e Anna viu o rosto de Korban nas chamas, centenas de vezes o tamanho original, encarcerado em
seu próprio túnel negro, aquele no qual seus sonhos morriam, onde seus servos o abandonavam e onde seu coração se transformava em cinzas. O túnel no qual ele não
tinha nada e no qual seu trabalho permanecia para sempre inacabado.
As grandes empenas dobraram-se, os parapeitos caindo para os lados. As colunas iônicas quebraram-se e o pórtico desmoronou com um trovão. As janelas jorravam chamas,
as paredes amontoadas umas sobre as outras, o piano lançando um acorde metálico quando caiu no porão. Vidros quebravam, chamas rugiam e a fumaça afunilava-se para
o topo da casa como uma garganta maligna no fim do mundo.
- Olhe! - disse Anna, apontando para o outro lado do pátio coberto de geada, na orla da floresta. Pequenas bonecas de madeira moviam-se entre as sombras.
- Alguns deles escaparam. - disse Mason - Eles estão vivos, não é?
- Claro. - Ela se deu conta de que sua Segunda Visão havia sido cegada, de algum modo, havia perecido junto com os fantasmas de si mesma que ela havia dado a Ephram
Korban.
Havia se livrado de um fardo.
Cavalos galopavam pelo campo, relinchando de pavor. Então a noite foi dilacerada por um guincho hediondo que ecoou sobre as montanhas. O chão tremeu, as árvores
curvaram-se para trás e o celeiro ruiu. As cercas também caíram, brilhando como ossos úmidos ao luar.
- Ele está levando tudo consigo. - disse Anna.
- Isso significa que ele está...?
- Morto? Se é que sabemos o que isso pode significar agora.
Ele colocou seu braço à volta dela e ela relaxou contra ele, agradecida pelo seu calor. - Acho que é tudo um sonho. Mas sonhos não são grande coisa. Acho melhor
estar acordado.
- Eu tambem.
Eles se sentaram na grarna, observando o fogo diminuir, e esperaram o alvorecer.
CAPÍTULO 80
- A ponte se foi. - disse Cris - Não sobrou nada, a não ser alguns troncos na borda do penhasco.
- Não estou surpresa. - disse Anna - Korban levou com ele tudo que lhe pertencia. Um maníaco por controle até o final.
O sol da manhã elevou-se sobre as montanhas, derretendo a geada restante e um nevoeiro elevou- se do chão como uma alma penada, juntando-se às últimas colunas fumarentas
dos escombros do solar. Anna e Mason se sentaram sobre montes de feno, junto com Zainab e Paul. Anna havia atrelado dois cavalos a um abrigo próximo, enquanto os
demais e o gado pastavam no pomar, não mais contidos por cercas das doces lâminas da grama de outono. Porcos chafurdavam próximos ao limite de uma pequena lagoa
ao pé do declive e as corruíras cantavam como se o mundo houvesse sido renovado.
Anna olhou para Mason novamente. Ele segurava a mão dentro de um barril de água, onde um cano derramava água fria das encostas. Ele estava com queimaduras de segundo
grau. Provavelmente ficariam cicatrizes, mas os ferimentos eventualmente se curariam.
TUDO eventualmente se cura, pensou Anna. Mesmo que você não tenha o poder de patuás, feitiços e ervas. Ou o poder sobre a vida e a morte.
Paul rasgou uma faixa da cintura da camisa, mergulhou-a na água e a amarrou à volta do ferimento do braço de Mason. - Fui escoteiro. - disse ele.
- Sênior? - gemeu Mason.
- Não, lobinho.
- Sinto muito pelo seu amigo.
- É, vou lidar com isso depois que parar de mentir para mim mesmo. Depois de entender o que aconteceu.
- Todos temos a nossa culpa com a qual lidar. - disse Mason - E aprendemos com nossos erros.
- Eu com certeza gostaria de ter salvo minhas filmagens. Poderia ter ficado rico e famoso. Quem vai acreditar nisso tudo agora?
- Você não ia querer nenhuma prova disso. - disse Mason - E se se der conta do que tem que pagar para atingir o sucesso, não é tanto assim.
- Ele está em choque? - perguntou Anna a Paul.
Paul olhou nos olhos de Mason e então mediu seu pulso. - Não. Talvez meio desequilibrado, mas...
- Você não vai se livrar de mim assim tão fácil. - disse Mason.
- Ficar em choque não é algo tão ruim. - disse Anna - É o melhor amigo de um soldado moribundo.
- De onde diabos veio isso?!
- Não sei. Só pipocou em minha cabeça.
Paul ficou de pé e esfregou os olhos. - Acho que estamos todos sofrendo de desorientação. Ou talvez de histeria. Porque minha câmera não mentiu para mim.
- Tudo teve que ir. - disse Anna - Porque tudo pertencia a Ephram Korban.
- Então como vamos provar que tudo isso foi real?
- Acho que não vamos querer provar nada. - disse Mason.
- Estou curiosa para saber se eles viram a fumaça no vale. - disse Cris.
- Provavelmente não. - disse Anna - Já estaríamos ouvindo a sirene de um helicóptero da Guarda Florestal, a essas alturas.
Era estranho ser lembrado de que havia outro mundo além do topo dessa montanha, um mundo de sanidade e ordem, onde os mortos permaneciam sob a terra, na maioria
das vezes, e as pessoas ficavam à deriva em suas próprias vidas. Anna ficou de pé, caminhando em direção aos escombros do celeiro. - Foi uma boa coisa que o departamento
de incêndios florestais não chegasse aqui a tempo de apagar o incêndio. Dessa forma, nada de Ephram restará por aqui.
- Contaremos a eles, então? - perguntou Mason - Quero dizer, o que realmente aconteceu?
- Tenho uma teoria. - disse Anna - Mas uma teoria é tão útil nessa situação quanto um palito de fósforo no inferno. Supostamente, existem algumas antigas trilhas
que descem pelo lado da montanha. Vou achar uma, descer a cavalo até o rio e depois segui-lo até encontrar uma estrada.
- Precisa de companhia? - perguntou Mason.
- Não do tipo que fica tonta com alturas. Além disso, você precisa se cuidar.
- Vou com você. - disse Zainab.
Anna balançou a cabeça. - Não. Precisam de você por aqui. E tenho uma boa experiência com cavalos. Vou mais rápido se for sozinha.
Paul concordou com a cabeça. - O escritor está com problemas para respirar. Engoliu fumaça demais. Boa sorte, Anna.
Paul, Cris e Zainab caminharam pela estrada na direção de onde Spence e Bridget estavam, próximos à fundação da casa como fantasmas que se sentiam obrigados a assombrar
o lugar. Mas não existiam mais fantasmas no Solar Korban. Todos haviam partido, para qualquer que fosse o destino que lhes estava reservado antes de a Srta. Mamie
trancafiá-los dentro das bonecas toscas e Korban sequestrar seu voo noturno rumo à eternidade.
O Solar Korban era nada mais que uma pilha de cinzas, carvão e brasas. E Korban não era nada, apenas uma lembrança incinerada, um fulgor na panela cósmica. Um sonho
já meio esquecido, mais esquecido a cada segundo que passava, e Anna tinha certeza de que o magnífico mausoléu de mármore continha apenas um punhado de pó, as palavras
Chamado cedo demais desgastadas como a mentira que eram.
Antes do nascer do sol, ela caminhou até Beechy Gap e visitou o local onde vira as estranhas figuras entalhadas. A cabana havia sumido, uma pequena pilhas de cinzas
marcando sua existência.
As figuras deviam ter deixado de existir, também, dirigindo-se para os céus em fogo e fumaça. Livres afinal.
Anna procurou cela e arreios entre os escombros do celeiro. Levantou uma tábua quebrada e viu a face branca de Ransom, uma trilha de sangue seco no canto da boca.
O pedaço de pano de seu patuá estava firmemente preso entre os dedos da mão rígida. Ela o cobriu antes que Mason o visse.
Os mortos mereciam respeito. A morte não era romântica ou glamourosa. Ela estava cansada de se preocupar com seus motivos, esperanças e sonhos infindáveis. Sua fascinação
havia desaparecido. Ela não tinha mais desejo de algum dia ver um fantasma, especialmente o dela.
Mesmo Rachel, apesar de que as duas haviam compartilhado uma conexão íntima muito mais profunda que a de uma mãe com a filha.
Talvez esse tenha sido o modo pelo qual Anna estava destinada a pertencer. Aquele era seu povo, sua conexão, um parentesco espiritual, não importa o quão breve.
De um modo esquisito, talvez eles estivessem habitando seu interior, seu sangue, nas células cancerosas que devoravam seus órgãos e a empurravam inexoravelmente
rumo à escuridão final. Ela era um fantasma tanto quanto uma mortal. Uma estranha em duas terras estranhas.
Mas todos eles eram. Cada coisa orgânica que algum dia aspirou a fagulha da vida. A morte começa com o nascimento.
E daí?
Será que ela realmente esperava que, tornando-se um fantasma, compreenderia o que era tornar-se um? Ela havia vivido por vinte e seis anos e nem sequer se aproximara
do sentido da vida nesse período. Por que a morte deveria ser um mistério menor para aqueles que a experimentavam?
No tocante ao agora, o ar estava fresco e a dor interna ao redor de seis, um nove no espelho, ou talvez um cinco, uma pequena foice. Uma enorme distância de um zero.
Ela poderia viver por aqueles que haviam partido e por aqueles que ainda estavam por vir. Semanas ou meses, tudo era um precioso e efêmero presente.
Anna viu um brilho prateado entre os escombros, moveu algumas vigas e encontrou rédeas, logo em seguida uma cela e cobertores. Ela os retirou do entulho. Mason observou
com interesse enquanto ela arreava um dos cavalos.
Um pouco da fumaça que ela respirara se acumulou nos pulmões e começou a subir. Ela limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - É assim que eles fazer em Sawyer Creek?
Mason sorriu. Não era um sorriso assim tão ruim, apesar do rosto estar manchado de fumaça, cinzas e cansaço.
Ela carregou o cobertor até ele e o colocou sobre seus ombros.
- Melhor você ficar aquecido, melhor prevenir. - disse ela.
- Vá para fora congelar?
- Isso não é engraçado.
- Eu sei.
CAPÍTULO 81
Spence pegou um pedaço de cinza enegrecida enquanto se sentava no chão. Não. Não era a Palavra.
Ele pegou outro e mais um.
A Palavra resistiria. Um simples fogo não poderia destruí-la. Ele tossiu. As cinzas haviam se grudado às suas lágrimas, deixando o rosto grosso e empelotado. Ele
tossiu novamente, o estômago se agitando.
- Por que você não vai para longe desse lugar? A fumaça não lhe faz bem. Ele se virou. A Musa?
Não. Briget, a Miss Pêssego da Geórgia, sua última sacanagem.
- Seu fanfarrão idiota. - disse Bridget. - Fique feliz que aquela porcaria se queimou. Talvez um dia você possa escrever uma história de verdade, algo que não se
pareça com merda de cavalo.
Real? Como ela ousava criticar...
- E você pode me deixar de fora dela. - Ela se afastou, parou e se virou, com a mão sobre a boca. - Não sei o que vi em você. Mas com certeza agora consigo lhe ver
com clareza.
- Não me deixe!
- Acredito que você mencionou que essa é sua parte preferida. "FIM". Bem, acho que aprecio ela também.
Spence a observou se afastando. Ela não importava. Era apenas outra muleta, um esboço de personagem. Alguém do populacho. Ele ficou sob a chuva de cinza e negro,
esperando a Palavra pairar sobre ele.
Talvez se ele conseguisse se lembrar da história, trazê-la novamente à vida, ela o levaria novamente à Palavra.
Algo sobre a noite? Ele tocou na folha de papel amassada dentro do casaco. Talvez depois, após se passarem alguns anos, ele seria capaz de lê-la. E talvez ela contivesse
alguma pista do longo encanto da noite.
Mas a noite estava partindo, retirando-se na direção das montanhas azuladas, encaminhando-se para outros escritores, outros veículos. Ela lançaria sua capa amorosa
em outra parte do mundo, lançaria seus dons em outras paragens, sussurraria sentenças secretas. E Spence estava novamente só, com nada mais que suas palavras.
As cinzas continuaram a chover.
CAPÍTULO 82
Mason tentou curvar os dedos da mão direita queimada. Um choque de dor subiu pelo braço, parando brevemente no corte do ombro, apenas para ganhar impulso antes de
atingir o cérebro. Ele mordeu a língua para evitar gritar.
Talvez isso fosse o significado de sofrer, afinal de contas. A arte do sacrifício. Não era sobre resistir à inanição, lutar por reconhecimento, lutar contra o medo
do fracasso. Talvez fosse sobre acabar e deixar ir embora. E se dar conta de que os sonhos que você traz à vida algumas vezes não tinham lugar no mundo real e era
melhor deixá-los quietos no mundo dos sonhos.
Os críticos mais severos não estavam em Nova Iorque ou Paris. Eles não estavam nas escolas de arte e não vestiam boinas, ostentavam cavanhaques nem bebiam expressos.
Algumas vezes, eles viviam em seu espelho.
- Como você está? - perguntou Anna, apertando o arreio à volta da barriga do cavalo. Ela tinha mãos fortes.
- Bem, acho que não vou poder esculpir por um tempo. - Mason pensou nas ferramentas, enterradas em algum lugar sobre as camadas de cinzas e ossos no porão. Ele não
tinha vontade de vê- las novamente.
Anna concordou com a cabeça, ajustou a cela e acariciou as orelhas do cavalo, que bufou de prazer.
Ele tinha que perguntar. - Como foi... você sabe?
- Estar morta? - Os olhos azuis fixaram-se em um ponto distante além do alcance da vista.
- Aham.
- Alguém que me ama disse que é igual estar viva, só que pior.
Mason olhou para a coluna de fumaça. O vento a estava empurrando para longe e ele sentiu o cheiro de maçãs. Agora que o sol havia saído, o céu estava azul como só
ficava no inverno.
Dezembro chegaria com a neve suave, as noites ficariam curtas novamente e a primavera chegaria. Grama cresceria sobre as ruínas, vinhas se enrolariam nos pilares
enegrecidos. O granito dormiria debaixo da pele de terra. O sol nasceria e se poria, as estações seguiriam seu curso, os ponteiros incansáveis dos relógios girariam
apenas em uma direção.
Adiante.
- O que pretende fazer depois? - perguntou Mason.
- Não sei ainda. Acho que estou curada da metafísica. Deixe os mortos descansarem. Eles mereceram. - Ela colocou um pé no estribo e montou no cavalo. Era uma combinação
natural.
- E você?
- Depende. Assim que chegar a Sawyer Creek, vou dizer a Mama que os sonhos não são a única coisa que temos nesse mundo.
- Verdade? O que mais temos?
- Dor.
- Sonhos e dor. Que mistura adorável. Talvez você possa adicionar “fé” a sua lista.
O tipo de mistura da qual talvez o amor fosse feito.
Mason pensou se algum dia descobriria. Ele olhou para o chão e viu um pouco de cor no meio de uma pilha de feno solto. Ele chutou o feno para longe e, então, viu
flores. Um buquê de flores do campo. Flores da montanha, recém-colhidas e doces, os talos envolvidos em uma fita limpa. Ele o entregou para Anna. - Alguém deve ter
deixado isso para você.
Ela pegou o buquê e o cheirou. - Os mortos permanecem mortos. - murmurou ela. - E que descansem em paz.
Anna entrelaçou o buquê no bridão, relaxou as rédeas e o cavalo levantou a cabeça.
- Vejo você em breve, Mason. Cuide-se!
Ela sacudiu as rédeas e o cavalo iniciou a jornada pela estrada de terra.
- Ei, Anna! - gritou ele - Você estava falando sério quando disse aquilo lá na balaustrada?
Ela não parou, mas virou-se na cela e olhou para trás. Ela gritou sobre o ruído ritmado dos cascos do cavalo. - Sobre confiar em você? Talvez!
Anna deu-lhe um meio sorriso e o deixou pensando para qual das perguntas a resposta era talvez.
Enquanto Sylvia corria pela floresta escura, os ramos de louros a atingiam e suas garras de madeira se emaranhavam no longo cabelo ondulante.
Não era sua culpa, entretanto. Mamãe estava com febre e Papai estava nas montanhas com um carregamento de maçãs. Sylvia tinha que tomar conta dos dois irmãos pequenos,
tinha apenas dezesseis anos, estava presa nessa montanha idiota e a vida não deveria ser tão injusta.
Ela tropeçou em uma raiz e quase caiu. Segurou a barra da saia de linho grosso e correu por entre as árvores, as sarças chicoteando-lhe os joelhos. Era apenas meia milha, mas em noites de novembro isso parecia uma eternidade, como se a fazenda Korban tivesse crescido para se unir às trevas.
A escuridão a envolveu, mas ela não podia pensar nisso. O fogo era seu trabalho e a família dependia de Korban. Todas as famílias antigas dependiam dele, especialmente aquelas que haviam lhe vendido as terras.
Estava agradecida pela grossa fatia de lua no céu, mas algumas vezes ela lhe revelava coisas que não queria ver. Sua respiração se tornava prateada sob sua luz, enquanto ela murmurava pequenos feitiços de segurança.
O solar parecia estar cada vez mais distante, como se a trilha tortuosa houvesse ganho novas curvas, mas por fim ela irrompeu nas largas pastagens que levavam à clareira. Ela não queria olhar para o solar, que se destacava escuro e aninhado contra o céu de Blue Ridge Mountain. Mas ela tinha que verificar a janela.
Escura.
Estava atrasada.
Sylvia correu para a casa, o coração na garganta, martelando forte. Pegou algumas achas de madeira da caixa de lenha e subiu pela escada dos fundos. Margaret estava fora, em uma viagem para um lugar chamado Boston Rouge, um lugar com um nome chique. Se pudesse apenas se apressar, talvez ninguém reparasse que estava atrasada.
É apenas um pequeno fogo bobo. Ninguém vai congelar por causa disso.
Ela caminhou pé-ante-pé pela sala, as tábuas rangendo e a denunciando. Parou perto da porta dele. Se batesse, seria descoberta. Melhor não dizer nada, acender o fogo e sair sorrateiramente.
O quarto estava escuro. Ela tinha receio de acender uma lamparina, pois, se houvesse hóspedes, um deles poderia vê-la. Sylvia fechou a porta atrás de si, com esperança de que as brasas ainda brilhassem o suficiente para que ela pudesse enxergar. As pedras da lareira, entretanto, estavam frias e o ambiente repleto do odor pungente de fogo apagado.
Ajoelhando-se, colocou a lenha no chão e tateou procurando o jornal e a lata de zinco contendo fósforos que mantinha ao lado do atiçador. Mesmo protegida do ar frio da noite, sentiu-se sufocada como se mergulhando nas águas de um sonho profundo e os menores movimentos exigiam um grande esforço. Os fósforos chocalharam quando esbarrou na caixa. Enrolou algumas folhas de jornal e as colocou sob a grade da lareira. Enquanto isso, um som baixo e áspero veio de algum lugar no quarto.
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Sylvia riscou um fósforo, o qual brilhou rapidamente e depois apagou. Naquele segundo de luz, ela reparou em um movimento com o canto dos olhos. Tentando se apressar,
apesar da gravidade estar atuando contra si, riscou outro fósforo. Um vento de inverno soprou através do quarto e apagou a chama antes que pudesse tocá-la no papel.
Por que as janelas estão abertas?
Ephram nunca permitiu que abrissem as janelas de seu quarto. Seus dedos pareciam com odres quando ela buscou novamente os fósforos. O som baixo veio novamente, uma
exalação trêmula seguida pelo som inconfundível do estalo na coluna da cama. Ela fechou bem os olhos e, apesar do quarto estar escuro como breu, concentrou-se no
fósforo que pretendia riscar contra a pedra.
Uma voz surgiu, abafada e desesperada, tudo menos morta.
- Fo... fogo - disse ela.
O coração de Sylvia deu um pulo, como um coelho assustado. Ephram Korban estava no quarto, na cama. Não ousou olhar em sua direção, mas o mesmo poder que pesava
sobre seus membros fez seu pescoço lentamente girar na direção da cama. Abriu os olhos, mas nada viu além da escuridão.
- Enfeitice-me - disse ele, um pouco mais forte, quase com raiva, mas ainda abafado como se estivesse falando de dentro dos cobertores.
Ela assentiu lentamente, apesar de ele não poder vê-la no escuro. Ela também não podia vê-lo. Ainda assim...
Conforme olhou para a cama, a imagem se formando de memória em sua mente, ela podia imaginar Ephram deitado lá, o rosto austero, o cabelo e a barba por cima dos
travesseiros. Belo Ephram, que nunca adoeceu. Ephram, que permaneceu jovem e forte enquanto os trabalhadores e nativos desapareceram com suas rugas e histórias,
a respiração cansada e falhando. Ephram que se dizia nunca dormir.
Dois pequenos pontos de luz flutuavam sobre a negritude da cama, brilhando fracamente, a única coisa que ela conseguia ver no quarto. Tentou desviar a cabeça e riscar
o fósforo, mas agora havia sido tragada de seu sonambulismo para uma consciência desamparada.
Ela havia lavado os lençóis e sabia qual era o seu lado da cama. Os pontos aumentaram de tamanho, pairando próximo à cabeceira onde estavam os travesseiros. No local
onde deveriam estar os olhos de Ephram.
Os olhos ardiam em um vermelho profundo de uma brasa se apagando.
- Acenda o fogo. - disse ele asperamente, ao mesmo tempo em que um lampejo amarelo intenso brilhou dentro dos pontos vermelhos. Os olhos brilhantes ficaram borrados
dentro de suas lágrimas enquanto ela riscou o fósforo sobre a pedra. Ele acendeu e ela ateou fogo ao papel. Por fim, pode desviar o olhar daquela cama terrível e
daqueles olhos insuportáveis. Porém, foi obrigada a proferir aquelas palavras terríveis, as que Mamãe a havia ensinado.
O feitiço.
Ela as murmurou, na esperança de enfraquecer seu poder pela falta de volume. - Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá
o frio e que venha o fogo.
O fogo avivou e ela colocou alguns gravetos sobre a grade. Conforme a lenha crepitou e o calor irradiou em seu rosto, sentiu seus membros ganhando força, a pele
arranhada não mais ardendo.
Não ousando virar-se, agora que o quarto estava banhado na luz, ela ocupou-se em amontoar uma pilha de lenha suficiente para a noite sobre a grade. As lágrimas haviam
secado sobre o rosto, mas ainda sentia suas trilhas salgadas. Ela estava em apuros, tendo cometido a mais imperdoável das ofensas. Podia apenas manter o olhar nas
chamas, enquanto essas cresciam como água, em tons de vermelho, amarelo e azul, na direção da chaminé.
Uma mão a tocou suavemente no ombro. Ela olhou para cima e viu Ephram de pé ao seu lado, sorrindo. Seus olhos eram profundos, escuros e belos, vívidos à luz das
chamas.
Como fui boba, pensando que eram vermelhos.
- Desculpe-me - disse ela, as palavras quase inaudíveis sob o estalar da lenha e o martelar de seu coração - Eu não tive intenção de me atrasar.
Ephram nada disse, apenas movendo suas mãos dos ombros para o rosto e então para cima, sob o longo cabelo, até que seu dedão roçou sua orelha. Ela estremeceu, apesar
do calor do fogo.
Ela não pode evitar olhar para todos aqueles objetos finos, o espelho oval sobre a cômoda, as cortinas de veludo que pendiam do topo das janelas como cascatas púrpuras
luxuriantes, o acabamento de seda na borda do dossel.
- Obrigado - disse ele, a voz agora profunda e forte, e o olhar dela novamente se fixou em seu rosto coberto pela barba.
Disseram que se você cruzasse com ele durante a noite, seus olhos mudariam de cor, dourados, vermelhos e então amarelos, as cores do fogo. No entanto, agora seus
olhos estavam negros como carvão.
Disseram que quando ele estivesse na balaustrada sobre o telhado, que sua sombra se estenderia por duas milhas em todas as direções, que ele acendia velas negras
no porão, mas era o que os homens haviam falado. As meninas da casa haviam falado outras coisas, que Sylvia se recusava a acreditar.
Ele não era um monstro. Era um homem.
- Desculpe-me, estava atrasada - murmurou.
- Mas não atrasada demais.
Sylvia começou a se virar novamente para fogo, para dar força às suas palavras, para cumprir sua tarefa. Ela havia dito as palavras, do modo como sua mãe havia ensinado,
e agora havia cumprido seu papel.
Ele segurou seu queixo, sua face próxima à dela. - Nós queimamos juntos.
Ela não compreendeu as palavras e tudo o que sabia era que havia ansiado por esse momento muitas vezes enquanto deitada no colchão de palha no sótão da cabana. Aqueles
sonhos haviam chegado até ela, tomando seu corpo, trazendo sua pele à vida, as mãos de Ephram sobre sua carne. Mas, em suas fantasias, ela não estava tão assustada.
Então se deu conta do que havia de errado. Ele estava atrás e sobre ela, a face iluminada pelo fogo, enquanto ela se encontrava ajoelhada na lareira, olhando para
cima. De algum modo, entretanto, a sombra dele estava sobre sua face, mas ela não conseguia se fixar nesse pensamento, extrair sentido dele, pois outras sensações
a estavam inundando. A mão ardente traçou a curva suave de seu pescoço.
E de novo Sylvia foi sufocada em um sonho, apenas sob um poder diferente dessa vez, conforme se levantou e o deixou colocar os braços ao seu redor, enquanto seus
lábios, quentes e diabólicos, pressionavam os seus. Ela se perdeu em seu calor, força e grande sombra. Quando ele tomou sua mão nas dele e a levou para o fogo, ela
não chorou ou implorou. Ele era o mestre, afinal.
Suas mãos penetraram as chamas, unidas, queimadas, pele e ossos substituídos por fumaça e cinzas.
Não há dor. Como pode não haver dor?
A próxima coisa de que ela se deu conta foi de estar retirando a saia grosseira de menina do campo e a blusa feita em casa, e deles mais uma vez unindo-se, dessa
vez no chão, em frente ao fogo, o feitiço perdido em seus lábios e apenas Ephram em seus sentidos.
CAPÍTULO 1
Alturas. Sucesso.
Os paralelos eram tão óbvios agora, enquanto ele ficava de pé na beirada da ponte, o desfiladeiro íngreme abaixo como uma grande boca bocejante, altos picos de granito
mergulhando para longe numa morte distante.
- Vai pular? - disse a mulher atrás dele.
Mason Jackson tragou uma lufada do ar puro de Blue Montain Ridge. Se pelo menos fosse hélio.
As pessoas adiante dele já havia atravessado, entrando na floresta que levava à fazenda. Uma carroça havia levado a bagagem e Mason estava livre, exceto pelas pesadas
ferramentas na sua sacola de lona.
Peso suficiente para derrubá-lo rapidamente, muito, muito lá para baixo onde...
- Você está bem? - perguntou a mulher. A van já estava se afastando atrás deles, voltando pela trilha de cinco milhas que levava à estrada de Black Rock.
Mason assentiu. Ele olhou dentro daqueles olhos azuis, olhos que observou de tempos em tempos durante a subida. Pelo menos durante os momentos nos quais ele não
estava olhando pela janela para a queda vertiginosa ao lado da estrada.
- Estamos ficando para trás. - disse ela, tão pálida quanto ele imaginava estar. Ela era jovem, talvez perto dos trinta, como ele, e era atraente, com olhos grandes
e escuros e um longo cabelo preto. Mas ele não queria pensar sobre isso.
- Corra atrás deles, eu alcanço. - disse ele.
Ou, mais precisamente, vou correr montanha abaixo antes de colocar um pé naquela ponte.
- É forte o suficiente - disse ela - Aqueles cavalos devem pesar algumas toneladas.
- Claro. - disse ele, batendo de leve no parapeito de madeira. - Essa coisa é capaz de aguentar um tanque.
- Acrofobia. - disse ela -Todo mundo tem um tipo ou outro de fobia.
Oh-hou. Ela é inteligente. Isso pode ser ruim.
- Eu não conseguia nem brincar no trepa-trepa quando estava na escola. - disse ele.
- Vai ajudar se você segurar na minha mão, fechar os olhos e der um passo de cada vez? Ele sorriu, apesar da garganta apertada. - Isso é super legal de sua parte,
senhorita...
- Galloway. Anna Galloway.
- Mas como posso confiar em você e saber que não vai caminhar direto para uma daquelas saliências de rocha?
Ela retornou o sorriso e era atraente, apesar de um pouco tenso. - Você pode confiar em mim, mas talvez enquanto caminha possa fingir que está caminhando sobre uma
imensa calçada pavimentada, tão sólida quanto...
- Não. Isso não adianta, me assusta do mesmo jeito.
O vento mudou um pouco e a floresta outonal a volta deles estremeceu em tons dourados e vermelhos. Um leve odor de fumaça passou por eles.
- Bem, todos os quartos bons terão sido ocupados se esperarmos mais. - disse ela. - Não quero passar o tempo todo do retiro em um armário de vassouras.
- Depois de você. - disse ele, quase se esquecendo do desfiladeiro. Seus olhos eram tão profundos quanto a garganta logo abaixo e mergulhar neles poderia ser fatal
do mesmo modo.
Anna passou por ele e avançou pela ponte. Estendeu uma mão e segurou a bolsa com a outra. Era uma boa bolsa, marrom, sem ser chamativa nem excessivamente requintada.
Pequena, como a dona.
Ele pegou a mão de Anna e colocou a outra no corrimão. Certo, Mamma. Viu? Posso fazer sacrifícios pelo sucesso.
Conforme ele caminhou, olhou de soslaio, com receio de fechar os olhos, mas não confiando na escuridão. Fixou o olhar em um toco de carvalho no outro lado da ponte,
imaginando como acentuaria sua forma natural para esculpir uma gárgula ou um cão de guarda.
A ponte balançou uma vez devido à brisa que passou por entre os cabos e o estômago de Mason se contorceu. A mão de Anna apertou-se em torno da dele e o puxou com
mais insistência, o qual se apressou em sua direção. Então eles chegaram novamente em solo firme e ele deixou escapar uma risada de alívio.
Ela largou sua mão e ele limpou o suor da palma. Não havia notado que sua sacola de ferramentas ficara batendo em sua cintura, deixando um machucado.
- Muito obrigado, Anna. - disse ele, olhando para trás e sentindo-se tolo agora. Ela deu de ombros. - Uma fobia é uma fobia.
Ela já estava caminhando pela estrada poeirenta que levava à floresta. Ele se apressou para alcançá-la, as ferramentas tilintando.
- Então, qual é a sua? - perguntou ele, quando emparelhou com ela.
- A minha o quê?
- Sua fobia.
Ela franziu os lábios e adquiriu um ar melancólico. - A morte.
- Essa é uma das boas.
- Deixa as outras insignificantes, não é?
- Se você tiver sorte o suficiente para que a morte seja o fim de tudo.
Ele ponderou sobre isso enquanto caminhavam, os passos rápidos e curtos dela em compasso com suas passadas longas.
A floresta então acabou e o Solar Korban surgiu à frente deles como algo que saíra de um cartão postal antigo. Os campos abertos afundavam delicadamente em direção
a um pomar denso, gramados e dois celeiros unidos por uma cerca. O solar era uma construção de três andares, com pé-direito alto, como eram construídos no final
do século XIX, com seis colunas de estilo colonial dando suporte ao pórtico de entrada. Persianas negras emolduravam as janelas contra as madeiras brancas. Quatro
chaminés fumegavam, a fumaça rodopiando através dos carvalhos gigantes e álamos que circundavam a casa.
Sobre o telhado encontrava-se a balaustrada, uma área plana com um corrimão solitário. Mason se perguntou se alguma viúva já havia caminhado sobre essa balaustrada.
Provavelmente.
Uma coisa era certa sobre uma casa velha: você poderia ter certeza de que alguém havia morrido ali, provavelmente uma porção de alguéns.
Um pintor ou um fotógrafo provavelmente faria alguma insanidade para ter acesso à vista que a balaustrada fornecia. Mason talvez até cometesse um crime menor por
esse privilégio, exceto que agora estava estonteado com todo aquele ar puro à sua volta e a garganta mortal às suas costas. Pelo menos ele havia tido a oportunidade
de estudar os entalhes intrincados do Solar Korban da segurança do chão firme.
- Você se vira com os degraus da entrada? - perguntou Anna.
Mason franziu o cenho, incapaz de decidir se ela o estava provocando. - Acho que sim Sempre posso engatinhar, se for preciso. Eu sou bom em engatinhar.
- Boa sorte, então. - disse ela, saltando pelos degraus e entrando pela porta da frente. La dentro, o grupo estava se acomodando.
Ele quis gritar um "obrigado", mas Anna havia sumido dentro da casa.
- Boa sorte com sua fobia, também.
CAPÍTULO 2
- Você viu George? - perguntou a Srta. Mamie a Ransom Streater. Ela odiava se misturar com os ajudantes temporários, com exceção de Lilith, mas havia alguns momentos
nos quais ordens deviam ser dadas ou histórias consertadas e a melhor forma de se desviar de uma fofoca era criando outra.
- Não, senhora. - Ransom estava ao lado do celeiro, o chapéu nas mãos calejadas, o suor preso ao cabelo ralo. Ele cheirava a feno, esterco e metal enferrujado. À
volta do pescoço, estava uma correia de couro e ela sabia que estava amarrada a uma daquelas bolsinhas pitorescas. Esse povo das montanhas realmente acreditava que
raízes e pós mágicos tinham influência sobre os vivos e os mortos. Se ao menos eles tivessem a noção de que a magia era na verdade criada pelo poder da vontade e
não pela imaginação.
A magia estava no fazer. Como aquilo que ela segurava nos braços, a boneca a quem ela havia dado forma com amor e ternura imensos.
- Preciso de alguém para ajudar o escultor a procurar madeira amanhã. - disse ela.
- Sim, senhora. - O pomo de adão balançou uma vez.
- Quando foi a última vez que teve notícias de George?
- Hoje após o almoço, logo após o segundo grupo de hóspedes chegar. Disse que estava indo para Beechy Gap para verificar umas coisas.
A Srta. Mamie escondeu o sorriso. Então George havia ido a Beechy Gap. Ninguém da cidade sentiria sua falta por algumas semanas e então seria tarde demais.
E ela podia contar com Ransom para manter a boca fechada. Ransom sabia que tipos de acidentes aconteciam às pessoas à volta do Solar Korban, mesmo para àqueles que
tinham mandingas no pescoço e murmuravam encantamentos antigos. E um trabalho era apenas um trabalho.
Todo mundo possui uma missão de vida.
Algumas missões eram mais especiais que outras.
Ela retirou a boneca do embrulho de pano. Sua cabeça de maçã havia murchado em um rosto escuro e encarquilhado, a boca num esgar dolorido. O corpo era feito de freixo
entalhado e as pernas e braços de vinhas. Ransom afastou-se da boneca como se fosse uma cascavel.
- Você tomará conta de George para mim? - perguntou a Srta. Mamie.
- Ele era meu amigo. É o mínimo que posso fazer. - Uma sombra cruzou seu rosto. - Mas tenho que esperar até o amanhecer. Não posso ir a Beechy Gap de noite.
- A primeira coisa ao amanhecer, então. Não quero incomodar os hóspedes. Você sabe o que está por vir, não sabe?
- Uma lua azul de outubro. - disse ele. Seus olhos se desviaram para a porta do celeiro. Uma ferradura estava pendurada acima dela, as pontas viradas para cima,
o metal fosco sob a luz do sol que se punha. Como se a sorte realmente importasse.
- Você está conosco há bastante tempo.
- E quero ficar mais um bom tempo.
- Então não vai me decepcionar?
- Vou enterrá ele do jeito certo, com a prata nos óio. Tenho orgulho do meu trabalho.
- Ephram sempre disse ‘O orgulho fará você caminhar pelos túneis de sua alma’.
- Ephram Korban disse foi um bocado de coisa. E as pessoa disseram um outro bocado.
- Algumas dessas coisas podem até ser verdade - A Srta. Mamie acariciou a boneca, sofrendo de seu próprio momento de orgulho ao contemplar a composição habilidosamente
feita. Artesanato, diziam eles. A pequena boneca continha muito mais coisas do que as pessoas poderiam imaginar. - Com licença, tenho um jantar para servir.
Ransom inclinou-se levemente e arrumou as alças de seu avental. A Srta. Mamie o deixou alimentando os animais e dirigiu-se para o solar. Carregava a boneca como
se fosse um presente precioso de alguém muito amado. Apesar de a casa lhe ser familiar como a palma da própria mão, vê-la de longe sempre lhe dava uma lufada de
contentamento. Os campos, as árvores e o vento da montanha pareciam cantar seu nome.
Ela era seu lar. O lar deles. Para sempre.
CAPÍTULO 3
Anna Galloway abriu as cortinas da janela do quarto. Um pouco de pó levantou da vidraça com a movimentação de ar. Os raios de sol derramaram-se sobre seus ombros,
o brilho de outubro aquecendo o assoalho sob seus pés. O ar das montanhas era mais frio do que ela estava acostumada e mesmo o fogo crepitante não era capaz de acabar
com seus arrepios. Havia uma pintura de Ephram Korban pendurada na parede sobre a lareira, um pouco menor que a do andar de baixo, mas tão sotuma quanto ela. O escultor
com medo de alturas estava certo sobre uma coisa: Korban havia sido totalmente apaixonado por si mesmo.
Ela olhou ao longe, sobre os campos. Aqui estava ela, após uma longa espera. O lugar no qual deveria estar, por alguma razão. Era o fim do mundo, o lugar adequado
para finais. Afastou o fatalismo dos pensamentos e observou os cavalos galopando através do pasto. A visão de liberdade e paz a aqueceu.
- É tão lindo, né? - disse a mulher ao seu lado. Ela havia dito a Anna que seu nome era "Cris sem H" como se a ausência do H a tornasse mais forte e inflexível.
E como elas seriam colegas de quarto...
- É maravilhoso! - disse Anna - Do jeito como eu sonhei.
Cris já estava com o estojo de maquiagem, pincéis e blocos de desenho espalhados sobre a cama próxima da porta. Anna não tinha nada mais que uma pequena e organizada
pilha de livros sobre o criado-mudo. Sua postura com relação a posses materiais e confortos terrenos havia passado por uma mudança drástica no último ano. Você deve
viajar leve quando não sabe ao certo para onde está indo.
A dor cruzou seu abdômen, furtivamente dessa vez, uma agulha espetando em câmera lenta. Ela fechou os olhos e iniciou a contagem regressiva em grandes e gordos números.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola...
Quando chegou ao seis e a dor estava flutuando em algum lugar sobre o vale das Blue Ridge Mountains, a voz de Cris a trouxe de volta.
- Tipo, o que você faz?
Anna desviou o olhar da janela. Cris havia sentado na cama, escovando seu longo cabelo loiro. Anna estava feliz que a quimioterapia não havia feito o seu cabelo
cair, não apenas por vaidade, mas também porque ela gostaria de estar inteira quando chegasse a hora de partir.
- Eu escrevo artigos de pesquisa. - disse Anna.
- Ah, você é uma escritora.
- Não uma escritora de ficção, como Jefferson Spence. São textos mais voltados para a metafísica.
- Ciência e esse tipo de coisa?
Anna sentou-se na cama. A dor havia voltado, mas não tão aguda quanto antes. - Trabalhei no Rhine Research Center em Durham. Investigadora.
- Você se demitiu?
- Na verdade, não. Apenas terminei o trabalho.
- Rhine. Não é aquele negócio de percepção extrassensorial, fantasmas e coisas esquisitas? Como no Arquivo-X?
- Exceto que a verdade não está lá fora. Está aqui dentro. - Ela tocou na têmpora. - O poder da mente. E não lidamos com alienígenas. Eu era uma investigadora paranormal,
mas acabei virando um dinossauro, extinta quase que antes de começar.
- Você é muito jovem para ser um dinossauro.
- Tudo é eletrônico nos dias de hoje. Detectores de campos eletromagnéticos, gravadores subsônicos, câmeras infravermelhas. Se você não pode identificar em um computador,
eles pensam que não existe, mas eu acredito naquilo que vejo com meu coração.
Cris olhou à volta, como se notando pela primeira vez os cantos escuros e as sombras projetadas pelo fogo da lareira. - Você não veio aqui porque...
- Não se preocupe. Estou aqui por razões pessoais.
- Aham. Vi você de conversa com o cara musculoso com a sacola de lona, na porta de entrada.
- Não esse tipo de razão pessoal. Além disso, ele não faz o meu tipo.
- Dê alguns dias. Coisas estranhas acontecem.
- E você? Está aqui para se lançar numa jornada artística? - Anna apontou para os blocos de desenho. - Não lhe darei minha palestra sobre temperamento artístico
porque gosto de você.
- Ah, acho que meu marido está de caso com a secretária e me queria fora de casa para usar a banheira. Ele já me mandou para a Grécia durante o verão e para o Novo
México na primavera, para fazer aquele lance da Georgia O’Keeffe. Agora para as montanhas da Carolina do Norte.
- Pelo menos ele é generoso.
- Eu nunca serei uma artista de verdade, mas é alguma coisa para fazer durante os retiros além de ir atrás dos homens e beber. Mas minha Musa me permite esses pequenos
luxos também. Por falar nisso, reparei em um bar no prospecto. Quer me acompanhar em algo antes do jantar?
- Não, obrigada. Acho que vou descansar um pouco.
- Bem, não ande por aí escondida debaixo de um lençol. Posso achar que você é um fantasma.
- Se eu morrer, prometo que você será uma das primeiras a saber.
Anna recostou-se no travesseiro. Uma pena lhe espetou o pescoço. A porta fechada, os passos de Cris na direção do saguão de entrada, folhas mortas raspando no vidro
da janela. As paredes envelhecidas com a fumaça deixavam o quarto com um aroma reconfortante e a lamparina a óleo completava o calor da cena. Ela sentiu paz pela
primeira vez desde...
Não. Ela não pensaria sobre isso agora.
A dor retornara, uma convidada rude. Ela tentou o truque com os números, mas sua concentração acabou enredada com as memórias, como vinha acontecendo nos últimos
tempos. Desde que ela começara a sonhar com o Solar Korban.
Dez, um palito e uma argola...
A imagem de Stephen escorregou para dentro de sua mente entre o um e o zero. Stephen, com suas câmeras e brinquedos, sua barba e sua risada. Para ele, Anna era a
versão parapsicológica da garota de acampamento. Stephen não tinha necessidade de sentir os fantasmas. Ele podia provar sua existência.
Seus encontros nos cemitérios acabaram com ela caminhando sem destino sobre a grama e as lápides enquanto Stephen se preocupava em preparar seu equipamento. Na noite
em que ela sentira seu primeiro fantasma, brilhando ao lado do anjo de mármore no Cemitério Guilford, Stephen estava ocupado demais registrando leituras de campos
eletromagnéticos para olhar quando o chamou. O fantasma não esperou uma foto e dissipou-se como um nevoeiro ao sol, mas antes de voltar para o lugar de onde havia
surgido, os olhos assombrados fitaram intensamente os de Anna.
O olhar foi de entendimento mútuo.
Nove, um fiapo e uma argola...
Aquela havia sido a primeira investigação com Stephen. Eles dormiram juntos no chão do Hanger Hall de Asheville em uma noite de inverno na qual o vento estava muito
forte, mesmo para fantasmas. Duas semanas depois, em uma festa, ela o ouviu dizendo que a considerava uma "pessoa instável, mas adoravelmente instável".
Assim, após seis anos de estudo e pesquisas de campo, ela era apenas um pouco mais respeitável que uma vidente de 0800. Existiam céticos demais no mundo real, entre
os cientistas e aqueles que estavam sempre prontos para queimar uma bruxa na fogueira. Mas o riso de seus próprios colegas foi o que a levou a lugares grandes, assustadores
e vazios, nos quais ela podia caçar seus fantasmas sozinha.
Oito, um par de biscoitos...
Então veio a dor e o primeiro dos sonhos. Ela estava saindo da floresta, seus pés na grama macia e úmida, o gramado luxuriante como é possível apenas nos sonhos.
O solar estava a sua frente, as janelas escuras como olhos, as árvores à sua volta, nuas e contorcidas. Uma única linha de fumaça subia por uma das quatro chaminés,
contorcendo-se e ajuntando-se sobre o corrimão branco.
Então a fumaça tomou forma e uma mulher sussurrou "Anna", acordando-a, como aconteceu por tantas noites depois disso.
Sete, um canudo dobrado...
Sete era a intensidade da dor, ferroando seus intestinos.
Stephen apareceu no dia que ela descobriu que metástases do câncer de cólon haviam atingido seu fígado. Ele segurou sua mão e seus olhos se tornaram úmidos e vidrados,
por trás dos óculos grossos. A barba chegou a tremer, mas ele era muito prático, muito desconectado de suas emoções para dar-se conta do que representava o diagnóstico.
Para ele, a morte nada mais era que o cessar do batimento no pulso, uma mudança nas leituras de energia.
Isso foi o que sobrou do conceito de almas gêmeas.
Mesmo após Anna convencer os médicos de que não faria uma colostomia, aceitando a sentença de morte conforme o câncer corria por seus órgãos, Stephen ainda agia
como se a ciência pudesse intervir e salvá-la. Ele provavelmente chegou ao ponto de rezar para a ciência, a mais fria de todos os deuses. Ela recusou a oferta de
carona para casa na saída do hospital e aceitou o fato de que a solidão era um estado natural para quem haveria de se transformar rapidamente em um fantasma.
Seis, um nove no espelho...
Milagres acontecem, um dos oncologistas disse, mas ela não esperava que fosse acontecer no interior de um hospital, com tubos bombeando radiação para dentro de seu
corpo, lâminas removendo sua carne um pedaço de cada vez ou com os médicos marcando a contagem regressiva em um calendário na parede. E ela também parou de sonhar
no hospital. Apenas quando voltou para casa, nas pequenas horas do aconchego de sua cama, é que o Solar Korban voltou a ficar novamente à sua frente.
Noite após noite, conforme o sonho ficou cada vez mais longo e vívido, a forma sobre o telhado ganhou substância. Por fim, Anna podia ver claramente a face à distância,
o cabelo diáfano movendo- se como um véu. Os olhos azuis, o sorriso acolhedor, o buquê que segurava junto ao final do corrimão da balaustrada. Afinal a face tornou-se
reconhecível.
A mulher era Anna.
Cinco, uma pequena foice...
A dor estava mais suave agora, como neve sobre as flores.
Ela fez algumas pesquisas, sabendo que o solar lhe era familiar não somente pelas visitas nos sonhos. Ela encontrou algumas coisas sobre o solar nos arquivos de
Rhine. Ephram Korban demorou vinte e cinco anos construindo a fazenda em um despenhadeiro nos Apalaches e então pulou nos braços da morte atirando-se da balaustrada,
em um suposto suicídio. Alguns moradores locais na pequena cidade de Black Rock contam histórias de aparições, geralmente consideradas fofocas de empregados temporários.
Uma investigação de campo, logo após a casa ter sido restaurada como um retiro para artistas, não produziu nada de útil em termos de dados ou entusiasmo.
Mas talvez a dor de Korban, sua raiva, seus amores, suas esperanças e sonhos estivessem entranhados nas paredes do solar, como a tinta nas paredes de madeira. Talvez
essas madeiras, pedras e vidros tivessem absorvido a radiante energia de sua humanidade. Talvez assombrar não fosse uma escolha, mas, sim, uma obrigação.
Quatro, uma cruz com um braço...
Ela levitou no plano cinzento entre o sono e o pensamento, ponderando se conseguiria sonhar com o solar, agora que estava de fato aqui. Ela fechou a mente para os
cinco sentidos, restando apenas o outro, o sentido que Stephen havia ridicularizado, aquele que Anna havia escondido de seus poucos amigos e muitos pais adotivos.
A linha entre a sensibilidade e a esquisitice era tênue.
Três, forcado de inglês...
Apenas por um momento, ela foi arrancada do sono. Alguma coisa flutuou atrás do rodapé de bordo e correu ao longo das rachaduras entre as dimensões. Ela não queria
abrir os olhos, pois podia ver melhor com os olhos fechados.
Dois, um gancho vazio...
Ela sentiu olhos sobre si. Alguém a estava observando, talvez seu próprio fantasma, a mulher nascida da fumaça em seus sonhos, que segurava um buquê de boas-vindas
mortal.
Um, uma linha que divide...
A linha entre o algo e o nada, aqui e lá, cama e sepultura, amor e ódio, preto e branco.
Zero.
Nada. Nada.
Anna havia vindo por nada, havia nascido para nada, caminhado em direção ao nada e eram negros, tanto o passado quanto o futuro.
Ela abriu os olhos.
Não havia ninguém no quarto, nenhum fantasma contra a parede.
Apenas Korban, morto como o óleo da pintura, as feições escurecidas pelo tremular das chamas. Os raios solares haviam se alongado pelo quarto. A dor havia desaparecido.
Anna levantou-se e caminhou para fora a fim de esperar o pôr do sol, pensando se essa era a noite na qual ela finalmente encontraria a si mesma.
CAPÍTULO 4
Mason olhou para a grande pintura a óleo pendurada na parede sobre a lareira, que olhou de volta para ele intensa e severamente, tanto quanto qualquer um dos seus
instrutores de arte. O rosto sisudo do retrato dominava a sala, dez vezes maior que o tamanho natural. Os tons de pele da tinta a óleo eram tão realistas que Mason
podia imaginar a figura saltando para fora da moldura ornada. Uma placa de latão abaixo da pintura estava entalhada com o nome.
Ephram Korban.
Mason estudou os olhos negros. Eram as únicas feições que não exibiam o realismo do resto da tela. Os olhos eram mortos, opacos e completamente inanimados. Mas Mason
não era um pintor, de forma que não tinha méritos para julgar. Para o diabo com os críticos e, na verdade, ele estava mais interessado na moldura do que na pintura,
que parecia ser entalhada à mão.
Mason lançou um olhar atrás de si para as pessoas se ocupando na sala de estar. Pela porta, conseguia ver dois homens em aventais descarregando a carroça. Uma quarentona
de peitos avantajados usando um vestido negro parecia estar em todos os cantos ao mesmo tempo, dando ordens, distribuindo bebidas em longos copos umedecidos e apertando
mãos. Mason caminhou em direção à lareira. Apesar de o dia ter sido quente para um final de outubro, o fogo ardia sobre as pedras, amarelo, laranja e de outras cores
outonais.
A cornija da lareira também era entalhada à mão. Querubins e serafins em baixo-relevo, formas arredondadas rafaelitas aladas entre espessas nuvens curvilíneas. Mason
verificou os dedos para ver se estavam limpos e então tocou delicadamente nas figuras. Conforme suas mãos exploraram a superfície entalhada, notou que alguém havia
deixado uma taça com um resto de vinho tinto sobre a cornija. Os anéis que o copo poderia deixar sobre a tinta branca eram como sangue em solo virgem que demonstravam
a falta de respeito pelo trabalho ou pelo artífice.
Ele olhou novamente para os olhos da pintura e agora Ephram Korban parecia estar observando a sala, os olhos sombrios sobre aquelas pessoas que ousavam cruzar o
portal de seu domínio. O rosto parecia ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mason tocou a moldura...
- Encantadora, não é mesmo? - disse uma voz feminina estridente.
Mason girou, sua sacola quase tocando na taça de vinho. À sua frente encontrava-se a mulher rechonchuda vestida de preto, o cabelo negro em um coque alto. Seu sorriso
era congelado no rosto como se tivesse sido esculpido com formões.
- Sim. - disse Mason. - Quem quer que tenha feito os entalhes, deve ter passado algumas semanas sobre eles.
Ela deu uma risadinha, um som agudo e artificial. - Eu estava falando da pintura, bobinho. Ela brincou com um cordão de pérolas à volta do pescoço, as contas interrompidas
de forma vulgar por uma presilha de latão. Seus olhos escuros brilharam com toda a vida que os olhos de Korban não possuíam na pintura. Ele podia imaginar a mulher
à frente de um espelho, prendendo suas pérolas, verificando os dentes e ajustando o brilho nos olhos.
A mulher estendeu a mão e Mason a pegou, pensando se ele deveria se curvar e a beijar, como um afeminado francês em um filme de época. Sua pele era fria. Ela virou
a mão dele para cima e olhou para os dedos, balançando a cabeça. -Ah, então você é o escultor.
- Como?
- Calos. Nós não recebemos muitas pessoas com calos nas mãos aqui no solar. - Ela inclinou- se para frente, com um ar conspirador. - Pelo menos entre os convidados.
Os empregados ainda têm que trabalhar.
Mason assentiu. Ele olhou para baixo em direção aos tênis arranhados e aos buracos na calça jeans. As outras pessoas que estavam na van calçavam sapatos de couro,
Kenneth Coles, sandálias e roupas de catálogos que tinham nomes de grife. Ele não pertencia a esse lugar. Ele era um pobretão sulista proveniente da escória de uma
cidade madeireira, não importava o tipo de roupagem artística que ele tentasse colocar em sua história.
Mas cá estava ele, pronto para esculpir seu próprio sucesso.
- Faz um bom tempo que não recebemos um escultor por aqui. - disse ela, a mão fria ainda pendurada à sua. - Deixe-me ver se tenho seus dados de cabeça: "Mason Beufort
Jackson, graduado com honras na Escola de Artes de Adderly, no momento empregado na Rayford Hosiery em Sawyer Creek, Carolina do Norte. Vencedor do prêmio Grassroots
Consortium 2002. Comissionado pela Universidade de Westridge para criar uma escultura para o Alumni Hall". Agora, como era mesmo o nome da escultura?
Ela finalmente largou sua mão, pressionando a têmpora como se estivesse lendo uma página em sua mente e, então, estalou os dedos. - Dilúvio. Claro. Terrivelmente
encantador.
Mason riu consigo mesmo. Ele não havia se dado conta de quão pretensioso o nome soava até o momento em que passou por aqueles lábios bem alimentados. - Bem, era
com essas pessoas que eu andava na época. Avant-garde, mas ainda almoçando no McDonald.
A mulher emitiu novamente sua risada cacarejante e apontou para a sacola pendurada sobre seu ombro - São ferramentas?
- Sim, senhora.
- Espero ver você usando-as. - Sua mão fria ainda presa à dele. -Sou Mamie Godfeld. Insisto que você me chame de Srta. Mamie.
Ele olhou para o retrato de Korban e então de volta para a Srta. Mamie.
- Ah, você reparou. - disse ela.
- Os olhos.
- Eu sou a última descendente viva de Ephram Korban. Eu gerencio o solar, mantendo-o como um retiro para artistas, do jeito que ele pretendia. Mestre Korban sempre
apreciou o espírito criativo.
- Ele era um artista?
- Um artista frustrado. Um diletante, principalmente um colecionador.
Todos os artistas são frustrados. Não é esse o ponto?
Mason reparou em mais detalhes arquitetônicos da sala de estar. O arco sobre a entrada principal tinha três metros de altura, com vidraças quadradas na parte superior.
A sala possuía um pé-direito alto, as paredes e acabamentos brancos acentuados pelo trabalho em carvalho até a altura do peito. Duas colunas iônicas no centro da
sala suportavam uma imensa viga no teto.
- Esse é um lugar bonito. - disse Mason, pois claramente a Srta. Mamie esperava algum comentário de sua parte. Ele quase disse "adorável", um adjetivo que ele nunca
antes havia usado. Cinco minutos em um retiro caro nas montanhas e ele já estava ficando metido e desenvolvendo uma persona.
Que Deus não permita que você seja alguém na vida. Você é insuportável.
- Estou satisfeita que tenha lhe agradado. - disse ela. - Revivalismo colonial. Mestre Korban era orgulhoso de sua herança, motivo pelo qual ele estipulou que o
solar deveria ser preservado.
- Korban. Um nome judeu, não?
- Apenas no nome, mas não em espírito. Ele pegou sua herança de empréstimo, comprou a parte que não pôde tomar emprestado e roubou aquilo que não pôde comprar. No
final, ele possuía tudo.
Mason olhou mais uma vez para o retrato, medindo a tenacidade e arrogância das feições. - Parece que seu ancestral era o tipo de homem que não aceitava um não como
resposta.
- É bem verdade, mas ele também era muito generoso, conforme você bem sabe.
Mason sorriu, apesar de sentir como se houvesse um lagarto andando em sua garganta. Ele estava aqui por caridade. Ele nunca poderia arcar com os custos desse tipo
de retiro com o dinheiro que ganhava. Para resumir, ele estava ali como um símbolo de que a fazenda Korban e o conselho de artes poderiam revelar seu apoio magnânimo
às classes inferiores.
A Srta. Mamie olhou além dele, para onde um pequeno grupo de hóspedes estava conversando.
- Ali estão os queridos Sr. e Sra. Abramov. Os compositores clássicos, sabe?
Mason não sabia, mas continuou sorrindo do mesmo modo. O sorriso simbólico de gratidão.
- Perdoe-me, devo cumprimentá-los. Lilith lhe mostrará seu quarto e espero que você aproveite a estadia.
Ela relanceou os olhos para o retrato de Korban com uma expressão que se aproximava da melancolia e se foi, com um farfalhar de tecido. Mason olhou mais uma vez
o retrato. O fogo estalou, mandando brasas densas e vermelhas pela chaminé. Os olhos de Korban ainda pareciam mortos.
Mason estava se virando para sair em busca de sua bagagem quando o fogo estalou novamente. Por um breve instante, a face no retrato foi sobreposta pelas chamas,
como o reflexo do pôr do sol em um lago.
Ele lutou contra o súbito desejo de pegar uma machadinha de sua sacola e lançá-la sobre o sorriso inquietante de Ephran Korban.
- Parece que você está precisando de algo para lhe abrir os olhos. - disse uma voz atrás dele. Era Roth, o fotógrafo que sentara ao seu lado no banco da van. O homem
falava com um sotaque inglês esquisito, não inteiramente autêntico e com cheiro de álcool em seu hálito. Havia um martíni de prontidão em sua mão enrugada.
- Não, obrigado. - disse Mason.
- É final de tarde e somos todos crescidos por aqui. - Os olhos de Roth moveram-se por debaixo das sobrancelhas brancas. Seu rosto era magro e anguloso e Mason o
viu como uma escultura natural, a topografia envelhecida da pele, o escarpado do queixo, a planura da testa. Ele tinha o mau hábito de reduzir as pessoas às suas
formas essenciais, esquecendo que algum tipo de alma poderia existir por baixo da argila da criação.
- Eu não bebo.
- Ah, você é um daqueles malucos religiosos?
- Não sou nenhum tipo de maluco, até onde sei. Exceto pela parte de ouvir a voz de Deus saindo de um arbusto em chamas.
Roth riu, derramando um pouco do martíni. - Não se meta em confusão, filho. Você é terrivelmente jovem para cair nas garras desse povo. - disse ele, acenando com
a cabeça na direção das pessoas que a Srta. Mamie estava cumprimentando.- O que um pinto como você está fazendo num lugar como esse?
- Estou aqui como convidado. Ganhei uma bolsa do Conselho de Artes da Carolina do Norte e do Solar Korban. - Mason olhou para o fogo novamente. Nenhuma face contorcia-se
entre as cores brilhantes e nenhuma voz surgiu. Ele se forçou a relaxar.
- Um artista de verdade, hein? Não como aqueles - disse Roth, rolando os olhos na direção dos convidados bem vestidos da Srta. Mamie. - Muitos deles necessitam de
um retiro de artistas como precisam de outra conta-corrente. Uma porção de ternos caros cujo ápice da carreira artística consistiu em grudar feijões em um farrapo
de estopa velho.
Outro crítico. Passando adiante seus julgamentos sobre os talentos irrelevantes de terceiros. Pelo menos eles pagaram para estar aqui, ao contrário de Mason. - De
que parte da Inglaterra é você?
- Nenhuma gota de sangue inglês nesse corpo. - disse ele - Estive por lá como militar por um tempo e peguei um pouco do sotaque deles. É útil com as mulheres. -
disse ele piscando um olho acinzentado.
- Você veio fotografar, suponho. - Mason namorou uma garota que tinha um livro sobre o trabalho de Roth. Ele trabalhava com natureza, animais, arquitetura e um retrato
ocasional. Não conseguia atingir o glamour luminoso de um Leibovitz ou a sensibilidade visceral de um Mapplethorpe, mas suas fotografias possuíam sua própria marca
de honestidade bruta.
- Fui contratado por algumas revistas. - disse Roth - Tenho algumas encomendas de casa e jardim, cenas de montanhas, esse tipo de coisa. Quero fotografar aquela
ponte, entretanto. É a ponte de madeira mais alta dos Apalaches do sul, dizem por aí.
- Acredito nisso. Só de pensar já fico com vertigens.
- Você tem problema com altura?
- De onde venho , os prédios mais altos tem dois andares, se não contar os silos. Eu posso lidar com escadas, mas já começo a ter problemas com escadas de mão. Olhar
para baixo e ver cem metros.
- Uma queda daquelas de cada lado. - disse Roth, pegando outra bebida e saboreando a palidez do rosto de Mason. - Korban apreciava seu isolamento. Queria que o lugar
fosse como um daqueles castelos europeus.
Roth levantou o copo num brinde ao retrato de Korban. - Isso é para você, seu velho desgraçado.
A sacola de Mason estava se tornando pesada e ele estava ansioso para se acomodar e terminar o planejamento das peças nas quais gostaria de trabalhar. E o sotaque
de Roth era irritante.
Uma mulher atraente vestida de preto desceu as escadas, o vestido muito próximo de um autêntico gótico, o xale de renda sobre os ombros. Parecia ser um tipo de recepcionista.
Levou um casal que estava com o grupo da Srta. Mamie. O homem parecia estar na casa dos cinquenta, com uma papada proeminente, carrancudo, a mulher com os olhos
azuis e uma compleição clara de quem parecia ter saído de uma revista de moda. Subiram juntos as escadas, o homem pigarreando, as enormes pregas do pescoço balançando.
- Talvez eu o fotografe mais tarde. - disse Roth - Talvez à mesa, com uma pena de nanquim nas mãos. Não sou muito fã de trabalhos sobre personalidades, mas poderia
faturar uma grana com essas fotos.
- Quem é?
Roth sorriu como se Mason tivesse subitamente caído de uma carroça de nabos. - Jefferson Spence.
- Você quer dizer o Jefferson Spence? O romancista?
- O primeiro e único. O último grande escritor sulista. Faulkner, O’Connor e Wolfe, todos juntos no mesmo lugar, se você acreditar no que está escrito nas contracapas
dos livros.
Mason observou o escritor subir as escadas com dificuldade. - O que ele quer com uma colônia de artistas?
- Inspiração. Você não sabe muito sobre ele, não é?
- Nunca li nada dele. Sou mais no estilo Erskine Caldwell.
- Um crítico definiu o estilo de Spence como uma torrente de pomposidades. Mason riu. - Bem, foi bacana ele trazer a filha junto.
Roth balançou a cabeça. - Suponho que você também não leia as colunas de fofocas. Aquela não é a filha dele. Presumo que seja a mais nova mulher.
A voz da Srta. Mamie cresceu, sua risada preenchendo a sala de estar. A seu lado estava Anna. Seu olhar encontrou o de Mason, deu-lhe um meio sorriso e voltou a
atenção para a Srta. Mamie.
Roth reparou-a também. Seus olhos eram brilhantes como os de um lobo. - Bela ave. Mason fingiu não ouvir. - Com sua licença, tenho que esticar minhas pernas um pouco.
Roth fez um floreio cavalheiresco e saiu em busca de mais bebida. Mason ajustou a alça da sacola por sobre os ombros e dirigiu-se à porta de saída. A carroça havia
sumido, a trilha das rodas dirigindo-se a um dos celeiros, as marcas escuras do esterco dos cavalos marcando a estrada arenosa. O panfleto do Solar Korban havia
ressaltado o fato de que nenhum veículo motorizado estaria por perto para "perturbar os impulsos criativos". Da mesma forma, distrações como televisão, telefone
ou eletricidade também não existiam na fazenda.
Um episódio normal da Ilha de Gilligan, apenas sem as risadas de claque e as guinadas de roteiro. Que diabos estou fazendo aqui?
Alguém do grupo gritou - Deixe-me contar para vocês sobre uma ideia maravilhosa que tive para um romance. É sobre esse escritor que... - Mason deu uma última olhada
para o rosto de Korban e se lançou nos raios solares outonais.
CAPÍTULO 5
A dor possui diversos matizes, mas o medo, apenas um.
George Lawson pensou que havia experimentado todos os matizes de dor em seus cinquenta e três anos de vida. Dor branca, quando ela havia cortado parte do maxilar
com uma serra enquanto tentava podar uns arbustos, alguns anos atrás. Havia se familiarizado com uma dor azul-clara quando a artrite reumatoide havia dado uma longa
pincelada em sua coluna. E o soco acinzentado no estômago que havia durado meses após Selma tê-lo largado por um tecelão hippie no final do mandato de Rreagan.
Ele sentiu dor em uma centena de cores, laranjas, vermelhos intensos e verdes diversos. A dor também havia adquirido a mesma quantidade de formas e tamanhos. Mas
ele estava certo de que nunca antes havia sentido uma dor como aquela que o agarrava em um abraço de urso naquele momento. Ela era como todas as outras combinadas,
um arco-íris de dores, uma mancha de óleo na superfície de uma poça de água, tudo que os nervos conseguiam mandar de uma só vez e mais um pouco.
Mas o medo - O medo não era nada mais que negro. Maior, mais escuro, cegante e sufocante, crescendo como uma sombra sobre todas as outras cores. Medo negro enroscado
em sua garganta como um trapo sujo de graxa, como um pano ensopado de melado velho, como um pedaço de carvão.
George experimentou mover o braço esquerdo. Erro.
Dois grandes pregos haviam cravado seu bíceps ao chão. Ele conseguia sentir o sabor dos pregos, apesar de estar certo de que a única coisa que tinha na boca era
um pouco de pó, um pouco de sangue e uns dentes frouxos. E o medo.
O gosto era de metal, ferrugem e aquele sabor meio amargo, como de pólvora queimada e ferro quente, que enchem o ar de uma oficina quando o ferreiro trabalha. O
barracão desmoronado aquietou-se a sua volta com um gemido.
George sabia que era melhor abrir os olhos. Porque, em sua cabeça, ele estava olhando para dentro de um grande túnel negro e quanto mais fundo ele olhava, mais longe
da luz ele ficava. Ele estava escorregando em direção às trevas suavemente, como se estivesse sobre trilhos, e parte dele queria escorregar para dentro daquele lugar
frio e sem ar, logo após a curva.
Mas a outra parte dele estava assumindo o controle. A parte que tirou seu traseiro de dentro das selvas do Vietnã, a parte que o tirou da cama do hospital quando
os médicos disseram que ele estava a uma batida de coração do grande final, a parte que o levou de volta à luz do sol após meses de solidão. Era a parte que George
dera o nome de Velha Couraça. Como uma identidade secreta que ele assumia quando a coisa ficava feia. E ele realmente precisava da Velha Couraça agora, porque as
coisas não podiam ficar piores do que estavam.
Outro problema de manter os olhos fechados é que ele continuava a vê-la. A Mulher de Branco. Assim, forçou as pálpebras a se abrirem, graças à sua identidade secreta.
Farpas de madeira caíram sobre ele e grudaram-se a suas lágrimas. Algo morno e molhado escorria da têmpora direita, mas ele não estava realmente preocupado com isso
agora. Primeiro tentou descobrir o que era aquela coisa arroxeada e esquisita, aquela coisa espetada na viga sobre sua cabeça. Era estranhamente familiar, mas fora
de contexto, como um barco no meio de um campo de milho.
A coisa arroxeada estremeceu. Não, apenas escorregou um pouco na ponta quebrada da viga. Mesmo no lusco-fusco e sob a poeira que ainda voava, George conseguiu ver
que a coisa tinha cinco pequenos apêndices pendurados, como as tetas de uma vaca. Foi então que a identidade secreta de George assumiu o controle, como se tivesse
sido eletrificado por uma dúzia de xícaras de café.
- Então é uma maldita de uma mão, Garotão. Qual o problema? Quantas pessoas nesse mundo nasceram sem as mãos? Lembra-se de todos os combatentes do Vietnã que você
viu perderem todos os diachos de braços e pernas e que conseguiam apenas ficar se remexendo no chão como peixes na beira da praia? Então dê a volta por cima.
George engoliu em seco e o fragmento de vidro imaginário em sua boca desceu pela garganta. Os dedos mortos, lá em cima, estavam abertos, como que esperando um aperto
de mão. Ele esperava que a Velha Couraça não esticasse demais a linha dessa vez, porque a linha estava na tensão máxima.
- E como você é o único palhaço deitado aqui no meio dos destroços dessa porcaria de barracão, as chances são altas de que aquela mão seja sua, soldado.
George virou levemente a cabeça, de modo a não ver a mão. Girou os olhos para ver o corpo, mas não conseguia ver nada abaixo do peito devido aos escombros do telhado
que se amontoavam sobre sua barriga. Ele tentou mover os ombros, mas a dor irrompeu em chamas multicoloridas.
- Certo, soldado. Você vai ficar gemendo como uma bicha franzina ou vai se levantar e tirar essa bunda velha e enrugada daí?
George não tinha ideia de como ficaria de pé, pelo simples motivo de que não conseguia sentir as pernas.
- Desculpas, desculpas. Bem, Georgie, isso tudo podia ser muito pior. Porque, caso não tenha notado, tem uma telha de zinco a dez centímetros de seu pescoço e ela
poderia ter escorregado e feito um belo serviço em você. Se isso tivesse acontecido, nem estaríamos tendo essa conversinha encantadora.
O canto afiado do zinco refletiu a luz do sol se pondo. Enquanto ele olhava, o pedaço de telha escorregou mais para perto com um rangido metálico. Mais rangidos
vieram do alto, nos destroços invisíveis do beiral. Algo deslizou nas sombras suaves.
- Não, não era uma cobra. Nem precisa se preocupar com a atividade das cascavéis nessa época do ano, já que estão dando as últimas contorcidas antes de hibernarem.
Não, Georgie, não há cobrassssss por aqui.
George pensou na velha canção de Johnny Cash, sobre como as cobras rastejam durante a noite, mas ela estava errada. As cobras dormem à noite, pois são de sangue
frio. Ele sabia disso porque tinha procurado a informação.
George engoliu em seco novamente, tentando empurrar alguma coisa do ar das montanhas para dentro dos pulmões machucados. Mais sangue estava escorrendo do pulso decepado,
pendurado acima dele. A gota de sangue crescente estava pendurada na ponta de um tendão arrebentado. Ele se perguntou se era sua mão esquerda ou direita.
- Grande pensador você, Georgie. Mas vou lhe dizer uma coisa, já que você sempre precisou saber sobre as coisas. É a mão do martelo, aquela que limpa sua bunda,
a que apertou a mão do Senador Halliefield no churrasco republicano em Raleigh. É, aqueles dedos lá seguraram a bola de beisebol que lhe deu a vitória em seu último
ano do colégio. Aquelas são as juntas, que deram o soco bacana na cara do hippie com o qual Selma fugiu. Mas, olha lá, agora eles estão bem mortinhos, você vê? Águas
passadas. Acho melhor nos preocuparmos com a carne que você ainda tem.
George queria poder sentir os pés. Assim ele não ficaria com tanto medo de estar se tornando um daqueles peixes na beira da praia. Algo dentro de suas entranhas
dilaceradas contraiu-se e borbulhou. A cada inspiração rasa, as costelas quebradas iam mais fundo para dentro do peito em busca de carne para cortar. E quem ele
podia culpar?
- Ninguém, a não ser esse seu nariz imbecil, soldado. Tinha que mexer no que não era assunto seu, não é? Você tinha que saber, não é? Sempre teve que saber das coisas
e sempre terá. Mas, se você não cair fora dessa roubada na qual se meteu, sempre não durará mais que o entardecer, filho.
Claro, George gostava de saber sobre as coisas. Ele quis saber por que as libélulas eram também chamadas de "comida de cobra". Ele quis saber por que Selma havia
mexido nas molas da velha cama de casal que usavam. Ele quis saber por que aquela pintura de Ephram Korban pendurada no solar lhe dava sete tipos de arrepios diferentes.
Ele quis saber por que aquela bruxa da Sylvia e seu coleguinha Ransom o haviam avisado para ficar longe dessa parte da floresta. Acima de tudo, ele quis saber por
que a Mulher de Branco havia dançado no barracão segundos antes que ele desmoronasse à sua volta.
- Não vai te fazer bem algum agora, ficar pensando naquilo que você não vai encontrar resposta. - disse a voz distante da Velha Couraça - É melhor se concentrar
no que tem nas mãos, se você entende o que quero dizer.
Outra gota de sangue caiu em seu rosto, dessa vez no queixo. George pensou em levantar a mão e limpá-lo, mas então lembrou-se de que o braço que usava para se limpar
havia sido decepado na altura do pulso. A dor explodiu até a altura do ombro, brilhante e amarelo como Napalm.
George espiou por entre o madeirame acima. Uns poucos raios de luz passavam através do entulho, a poeira circulando lentamente pelo ar. Isso significava que restava
ainda um pouco do dia. O tempo havia ficado estranhamente espichado, do mesmo jeito que acontecera no Vietnã, quando os soldados haviam se agachado esperando a artilharia,
mesmo antes dos morteiros começarem a atirar.
- Ei, Georgie, me dá um pouco de crédito aqui. Eu te tirei dessa confusão, não tirei? Então não me deixe na mão agora. Mas preciso que me ajude, filho. Você precisa
ter um pouco de esperança, desgraçado.
Esperança. A esperança pega você de manhã e te coloca para dormir bem aconchegado de noite. Esperança era a última coisa a que você se apegava quando todo o resto
havia partido. O pensamento congelou George, ou talvez tenha sido o suor frio que lhe cobria o rosto.
- Estou aguentando. - sussurrou George. Ele, de modo geral, não conversava com a Velha Couraça, pois achava que somente gente esquisita respondia às vozes que tinham
dentro da cabeça. Mas até aí, com certeza havia um monte de pessoas malucas em volta do Solar Korban. Ransom Streater dizia conseguir ver pessoas que não estavam
lá, ou àqueles que haviam partido há muito tempo. George gostaria que algum deles tivesse uma visão agora, fizesse aquele negócio da Visão, do qual Abigail vivia
falando, e vissem-no preso debaixo do antigo barracão.
Mas o Solar Korban estava a quase uma milha de distância e quase ninguém andava por aquela parte da floresta. As chances eram de que ninguém estava à distância de
um grito, mesmo que George conseguisse encher seus pulmões o suficiente para dar um. As chances eram de que os outros funcionários estavam ocupados à volta do solar,
acomodando o último grupo de artistas. A Srta. Mamie observando se eles ousariam descansar mesmo que por um minuto. Assim, mesmo que ele conseguisse se arrastar
para fora dos escombros, acabaria por se esvair em sangue antes de conseguir chegar à trilha, que dirá até a estrada ou o solar.
Mas primeiro ele deveria se desvencilhar para depois se preocupar com o resto. Olhou para a direita, para o lado de seu corpo do qual estava faltando uma parte.
Uma sessão do telhado que estava relativamente intacta inclinava-se de um ponto logo acima de sua cintura até o chão, cinco metros adiante. O entulho acima dele
estava seguro apenas por uma única viga.
Se aquilo ceder...
- Então é Sayonara, panaca. - disse a Velha Couraça, de algum buraco do cérebro em choque de George, onde o desgraçado havia se escondido. - Agora mova-se.
Uma viga estava encostada em seu braço, a superfície áspera contra sua pele. Se ele conseguisse movê-la, talvez usá-la como alavanca, conseguiria livrar seu braço.
Moveu o braço e seu cotovelo bateu contra o chão de madeira. Seu braço direito deveria estar dormindo, pois agora voltava à vida formigando.
Empurrou a viga contra a lateral do corpo e o resultado logo veio. A ponta de seu braço explodiu numa onda de agonia. Era uma dor laranja, o laranja que saltava
das mãos do Tocha no Quarteto Fantástico que lia quando era criança. Ainda assim, empurrou a viga até encostá-la no toco de seu braço decepado.
- Muito bom, garotão. - disse a voz no comando - Dê-lhes o diabo. Apenas uma pergunta: o que você vai usar para apoiar a alavanca dessa gangorra sua?
A Velha Couraça tinha razão, por mais que George odiasse admiti-lo. Mas se ele desistisse agora, ter sobrevivido ao Vietnã, à Selma, ter pisado em uma cascavel e
ter sido picado não teriam valor algum. Escorregar naquele trilho rumo à escuridão seria muito mais fácil. Apenas como um experimento, pois ele tinha que saber,
fechou os olhos.
E ele estava mais profundamente no túnel agora. A luz na direção da vida estava mais difusa e borrada, enquanto ele acelerava, deslizando mais veloz e suavemente,
como num trenó sobre a neve.
George relaxou, muito embora estivesse tremendo, seu sangue faminto de oxigênio e o coração batendo como o martelo de um carpinteiro tentando vencer uma tempestade.
Porque lá, dentro do túnel, era certo desistir da esperança. Ninguém lá dentro a usaria contra ele. Sentiu que outros estavam lá, esperando para recebê-lo, encolhidos
nas sombras, àqueles que haviam escorregado antes dele. E ele estava contornando a curva, pois isso era fácil, era divertido, o suave som do escorregar martelando
em seu crânio.
E se houver COBRAS após a curva?
George abriu os olhos e lutou para sair do túnel, vendo que o sol ainda brilhava teimosamente no céu, em algum lugar acima, enquanto a mão desertora continuava pendurada,
aberta e pálida, usando um bracelete de lascas e sujeira. Ele quase desmaiou e se deu conta de que o choque estava se instalando em seu corpo.
Uma vez, em An Loc, alguns soldados estavam à toa bebendo latas de Schlitz enquanto George Jones controlava o toca-discos. Um jovem médico chamado Haley estava fumando
um baseado do tamanho de um cano de um fuzil e lhes contou por que o choque era o melhor amigo de um soldado moribundo.
- Para alguns tipos de dor, nem mesmo uma dose de morfina vai resolver. - Haley disse, uma nuvem de fumaça azul à volta da cabeça - Mas o choque, cara, ele desliga
você direitinho. A pressão sanguínea cai, a respiração fica leve, você fica todo suado e esquece até o nome de sua mãe. Uma pancada, você sangra e aí, cara, começa
a viajar.
Eles disseram pra Haley calar a boca e George havia conseguido se desviar de seu encontro fatal com o choque, pelo menos até hoje. Porém, deitado sob a pilha de
escombros e correndo os olhos pela lista de sintomas de Haley, ele já estava com três quartos do caminho andado. Ele ainda lembrava que sua mãe se chamava Beatrice
Anne.
A mão decepada estava deslizando pela ponta da madeira. Uma gota de sangue atingiu sua bochecha. George apertou os dentes moles e virou a viga sobre seu peito. Ele
empurrou com o coto do antebraço até que uma das pontas da tábua ficou sob a viga que prendia o braço esquerdo.
Ele tentou não olhar para o pulso machucado, enquanto sentia o sangue escorrer pela parte inferior do braço. Se ele não estancasse isso logo...
- Não fique com medo do que falou o Haley com o cérebro cheio de fumaça, garotão. Certas coisas um homem tem que fazer sozinho. E um consertador de coisas como você,
um verdadeiro faz- tudo - é claro que agora tem apenas metade das ferramentas que costumava ter, não é mesmo?
George queria gritar para a Velha Couraça calar a boca e deixá-lo em paz. Mas necessitava dela, necessitava daquela voz interna insultando-o mais do que nunca. Caminhando
pelas estradas e trilhas solitárias da fazenda Korban, ele aceitaria qualquer companhia disponível. Claro, alguns dos frequentadores do café Stony Hampton haviam
sussurrado sobre fantasmas e coisas similares ao redor da fazenda, mas depois do Vietnã, George chegara à conclusão de que os piores fantasmas eram aqueles que mandavam
seus filhos para a guerra.
Assim, quando ele viu um pálido movimento trêmulo dentro do barracão, não deu ouvidos aos rumores. Pensou ter sido um gambá ou uma coruja, nada que pudesse causar
muito dano. Mas George era pago para manter o local em bom estado e as criaturas afastadas ou, como disse a Srta. Mamie, "do mesmo modo como eram as coisas quando
Ephram ainda era o mestre desse lugar". Assim, George havia levantado a antiga lingueta de metal e empurrado a porta, esperando que quaisquer cobras fossem espantadas
pelo barulho.
- Mas não era um gambá e também não era uma coruja, não é? - sussurrou a Velha Couraça. George esbugalhou os olhos. Devia ter delirado. Era outro dos sintomas de
Haley. A viga sobre seu peito subia e descia no ritmo de sua respiração rápida. O sol estava baixo no horizonte, os ângulos das sombras agudos e espessos nos destroços.
O medo lhe deu um impulso de energia e ele elevou a viga. Seu toco de pulso gritou em tons de vermelho-fogo.
- Você está ouvindo? Não era nenhum maldito gambá, não é, garotão?
Agora ele desejava que a velha desgraçada calasse a boca. Ele precisava de foco, efetuar o serviço sujo rapidamente, não precisava... - - Poderiam ser cobrassss.
Ou talvez - A longa e deslizante sombra.
- Qualquer que tenha sido o truque quando pisou no interior do barracão. Porque se um homem não pudesse confiar em seus próprios olhos, seus dias como prestador
de serviço estavam contados. Mas agora, tudo o que importava era...
Aquela sombra escorregadia através da qual você podia ver.
... o próximo empurrão, alavancando a viga de cima do braço esquerdo. Seu peito entrou em uma erupção de faíscas azuis e quentes de dor, azul-demoníaco, tão intenso
que quase parecia branco. Mas a viga deu um pequeno gemido e elevou-se levemente, acordando os nervos transfixados por pregos de seu bíceps.
- Está se movendo, soldado! Ela se move! E a dor não é nada, não é? Diabos, já passeamos por lugares com essas dores. Dessa vez, será uma valsa afeminada no meio
das margaridas, garotão.
Uma valsa. A longa sombra branca estava valsando, como uma cortina soprada pelo vento, exceto...
- Claro que não era o rosto de uma coruja, garotão. A sombra possuía um rosto humano.
George gorgolejou e a saliva escorreu pelo rosto. Alavancou novamente a viga, elevando-a mais alguns preciosos centímetros e novos matizes de dor surgiram, amarelo-pus,
verde-elétrico, violeta-berrante, fitas enlouquecidas de agonia. Uma grande seção do telhado estremeceu e a mão amputada caiu em sua testa e pulou para longe.
Mas George nem notou, pois estava novamente dentro do túnel negro, descendo pelos trilhos, contornando a curva em direção à escuridão, a curva final para longe dos
que respiravam.
E, subitamente, ele se deu conta do que havia do outro lado da curva.
Ela o esperava, a sombra branca com grandes olhos redondos e suplicantes, a coisa com os braços abertos, uma das mãos segurando um buquê de flores mortas. Ela parecia
ainda mais assustada que George. Logo antes do galpão desabar, ele havia visto a longa cauda se contorcendo sob o laço de sua toca, uma cauda tão assustadora quanto
uma...
- As cobras rastejam à noite, Georgie.
- Não, elas não rastejam - disse George, a voz áspera e fraca - Eu sei que não o fazem porque estudei sobre isso.
Ele estava chorando, pois se deu conta de que não lembrava o nome de sua mãe. Mas o pesar não mais importava, nem a dor, nem os pregos em sua carne, nem a mão que
faltava, nem a poeira enchendo seus pulmões, nem a noite assustadora. Mesmo a Velha Couraça era um nada, apenas um fantasma distante da selva, uma teia de aranha,
um eco.
Tudo que importava eram os trilhos que agora o guiavam, a curva logo adiante e o túnel se abrindo para uma escuridão maior e etérea. Preto, além de todas as cores.
Ela estava esperando, acompanhada.
Johnny Cash estava certo e a enciclopédia estava errada.
As cobras rastejam à noite.
CAPÍTULO 6
Os campos eram verde-dourado e estendiam-se até a floresta circundante. Grandes montes de terra elevavam-se no horizonte, entalhados, lascados e arredondados pelo
mestre escultor, o Tempo. Mason agora sabia por que as montanhas eram chamadas de Blue Ridge, apesar das folhas outonais espalharem um tal conjunto de cores que
ele quase quis ser um pintor.
Laranja-abóbora, amarelo-verão estralado, dourado-milho e roxo-beterraba. Van Gogh teria arrancado a outra orelha para pintar esse lugar.
Exceto que um pensamento irrompeu por entre o ideal artístico de sacrifício. Mason se perguntou se a fieira histórica de artistas malucos não teria ficado esquizofrênica
ou envenenada pelo chumbo presente em suas tintas, mas, sim, pelo sussurrar de Musas exigentes.
Ele afastou o pensamento de sua mente porque parecia uma opção que apenas um maluco consideraria. Além do mais, ele desistira de pintar não por causa de falta de
vontade ou talento, mas por causa de sua natureza tátil. Sua mãe podia sentir a escultura com os dedos, mas uma pintura para ela não passava de uma interminável
obra em preto.
Alguns cavalos e vacas pastavam no campo que descia suavemente a partir da frente da casa. A terra aberta devia ter uns vinte acres, sem pedras e cuidadosamente
cultivada. Mason achou difícil acreditar que a terra macia desse lugar era cercada de desfiladeiros de granito por todos os lados.
Nem mesmo a trilha de um jato marcava o céu azul de outono, como se a fazenda estivesse longe da civilização não apenas em distância, mas também em tempo. Árvores
majestosas espraiavam seus ramos em espaços cuidadosamente planejados ao longo da trilha de carroça que se dirigia rumo oeste. Um pomar de maçãs cobria uma elevação
ao lado da pastagem, com árvores pintalgadas de frutos rosa e dourado. Uma grama vistosa serpenteava em um campo de trigo adiante, acabando no limite de uma floresta
densa.
Uma voz suave interrompeu seus devaneios - Agora você sabe por que os artistas deixam seus egos para trás e vêm para cá. Especialmente no outono.
Anna Galloway cruzou o portal, inclinou-se sobre o corrimão, fechou os olhos e inalou o ar pelo nariz com um gesto exagerado - Ah, ar fresco. Uma grande mudança
da atmosfera pretensiosa lá de dentro.
- Você é pintora? - perguntou Mason, o olhar ainda cruzando o campo, irritado por sua espetada nos artistas.
- Não.
- Nem eu.
- O que você é, então?
- Todo mundo tem que ser alguma coisa?
A mulher inclinou a cabeça para trás na direção da casa. - Se você ouviu a conversa deles, penso que sim.
- Bem, isso é um retiro, no fim das contas. Dê uns passos para trás e diga um "Nossa!", acho. - Ele não queria que ela notasse que estava fora de seu elemento. Ele
já sentia saudades das pequenas ruas sujas de Sawyer Creek, com seus postes de propagandas e quadros de avisos. Se estivesse em casa, agora estaria esquentando a
água para o chá e ligando o rádio no programa predileto de sua mãe.
- O que tem na sacola?
- Essa? Nada. Apenas algumas ferramentas.
- Que pena. - disse ela. - Você seria muito mais interessante se fosse um paraquedas.
Mason tentou não olhá-la fixamente, apesar de ser tudo o que gostaria de fazer. Era bonita, claro, mas também havia a impressão de que ela não permitiria que ele
se escondesse por detrás do papel que estava representando, aquele que utilizara para blefar durante a época da universidade.
Os olhos azuis eram penetrantes demais, viam além do rosto escorregadio das primeiras impressões. Ele demorou alguns segundos a mais para dar uma resposta mordaz.
- Não acha estranho eu andar com uma sacola de ferramentas para todo lado?
- Acho estranho você tê-la carregado por sobre a ponte. Como se esperasse que a arte pudesse ocorrer a qualquer momento.
Ele gostaria de poder contar a ela. As ferramentas não eram assim tão caras, mas elas chegaram às suas mãos a um preço muito grande. Ele pensou em Mama sozinha em
seu apartamento minúsculo em Sawyer Creek, sentada em sua poltrona, um gato em seu colo. Os olhos nunca piscando.
Essa mulher, que acabara de conhecer, era de uma perspicácia infernal e logo viu seu jeito inseguro com uma clareza invejável. Ele era pior que os demais, mesmo
quando fingia estar distante e não engolindo suas conversas pretensiosas e fúteis. Ele não estava certo se seu trabalho revelava algo sobre o mundo, mas ainda assim
estava determinado a esfregá-lo no rosto de todos para chamar a atenção.
Mason ajustou a sacola no ombro, sentindo o olhar da mulher sobre si. - Ferramentas para esculpir. - disse ele - Um martelo, uma machadinha, formões, goivas e algumas
lâminas.
- Você trabalha com madeira?
- Fiz um pouco de tudo. - Ele finalmente a encarou de frente, forçando-se a não piscar sob seu olhar penetrante. - Mas aqui trabalharei em madeira.
Ela concordou com a cabeça, como se já o tivesse esquecido. - Seis semanas não é muito tempo. Seria difícil conseguir fazer algo em pedra nesse período.
Seu sotaque era quase rural, como se ela tivesse tentado ser do campo, mas alguém a houvesse mandado para a universidade a fim de extirpar-lhe esse desejo, como
quem espreme uma espinha. Um dos cavalos, um grande ruão, galopou pela pastagem. Ela sorriu enquanto o observava.
- Que lugar, hein? - disse ele.
- Vi algumas fotos, mas elas certamente não fazem justiça. - Novamente ela soou distraída, como se Mason fosse tão entediante quanto os ricaços da Srta. Mamie.
Mason caminhou entre os arbustos e tateou as juntas esculpidas do corrimão. Colunas chanfradas sustentavam o pórtico, a tinta grossa e rachada onde as camadas haviam
se acumulado por décadas. A fundação de pedra do solar tinha uma grossa camada de musgo. Um impulso juvenil de impressionar a mulher o tomou de surpresa. - Arquitetura
de revivalismo colonial. - disse ele - Esse tal de Korban deve ter gasto um bom dinheiro nisso.
- Você sabe alguma coisa sobre ele?
- Apenas o que li no panfleto. Industrial, fez fortuna após a guerra hispano-americana, comprou essa montanha e construiu o solar como casa de verão. Dois mil acres
de terras conectadas à civilização apenas por aquela ponte de madeira.
Ele se odiou por ficar de papo. Não tinha vindo até o Solar Korban para ficar de conversa. Ele precisava se dedicar ao trabalho, não perder tempo com alguém que
parecia tão interessada nele quanto num pedaço de esparadrapo. Além disso, era de se supor que artistas fossem meio avoados, mesmo.
- Então você tem apenas a versão oficial da biografia. - disse ela - Fiz uma pequena pesquisa particular sobre ele. Esse é o meu trabalho.
- Você é uma escritora?
- Tipo isso.
- Deu para ver. Se perguntasse a minha opinião, diria que escritores são mais metidos e ferrados que artistas.
- Mas eu não perguntei. Como estava dizendo, Korban determinou em seu testamento que essa propriedade fosse mantida como era no final do século XIX. Ele estipulou
que o Solar Korban deveria tornar-se um retiro para artistas. Enquanto estava vivo, encorajou os empregados a encher a casa com artesanatos da região. Talvez ele
gostasse da ideia de sua casa estar repleta de energia criativa. Uma forma de se manter vivo.
- Aquele retrato, entretanto, é um pouco além da conta. - disse Mason -Ele deve ter tido um ego e tanto.
- Ele mesmo provavelmente era um artista. - Ela pareceu cansada, fez um gesto de dispensa e abriu um meio sorriso enlouquecedor. - Com licença, tenho que ir para
meu quarto.
Mason fumegou por dentro. Garota estúpida e narcisista, distraída e abrupta, tão nariz em pé quanto qualquer um daqueles Yankees conversando na sala de estar. Bancando
a gótica, pálida o suficiente mesmo sem maquiagem. Provavelmente usava a palavra "morte" para qualquer coisa que escrevesse.
Ele devia ter se esforçado mais na sua simulação, agido como alguém frágil. Talvez ele começasse a usar uma boina a fim de aparentar um ar sofisticado e deixasse
crescer um daqueles ridículos cavanhaques estilo Pierre. Isso arrancaria umas boas risadas do pessoal em Rayford Hosiery.
- Até mais tarde. - disse ele, tentando não parecer otimista demais. Então, sem saber de onde vieram as palavras, continuou - Espero que você encontre o que veio
procurar.
Ela se virou, encontrou seus olhos, novamente sérios. - Estou procurando a mim mesma. Diga- me se me encontrar.
E se foi, engolida pela grande casa branca que tinha o nome de Korban.
CAPÍTULO 7
- Podemos empurrar as camas para ficarem juntas. - disse Adam.
- Com certeza, e quando você rolar na cama dormindo, será o seu rabo que cairá na brecha entre os colchões.
- Fico me perguntando que tipo de cama os casados ganham.
- Provavelmente uns arreios presos aos balaústres da cama, com um espelho no teto.
- Não fique tão oprimido, Paul. Isso será romântico, como nos velhos tempos em que nos aconchegávamos nos sofá de sua irmã.
- É, até ela nos descobrir. Aquilo foi uma cena que não entrará num especial Disney para famílias.
Adam suspirou. Se apenas Paul não fosse tão cabeça-dura. Eles fariam dar certo. Eles sempre fizeram. E Deus não estava à solta para punir gente como eles, apesar
dos veementes rompantes dos direitistas raivosos.
- Escute. - disse Adam - Vamos empurrar as duas camas contra a parede e você pode ficar com o lado encostado nela. Assim, se alguém rolar para fora e bater a cabeça
no chão, serei eu.
Paul passou a mão no cabelo, exasperado. Umas mechas ficaram de pé, loiro-escuro e ondulado, como um jovem Robert Redford. Isso, combinado com seus olhos semicerrados
e cílios densos, faziam-no parecer sonolento. Adam gostava daquele ar sonolento e fora uma das primeiras coisas que o atraíram nele.
- Certo. - disse Paul - Vou parar de pegar no seu pé agora. Isso é para ser uma segunda lua de mel.
Adam sorriu. Os rompantes de Paul nunca duravam muito. - Isso significa que eu vou ganhar minha virgindade de volta?
Paul pegou um dos travesseiros de pena de baixo dos cobertores e o atirou. Adam se defendeu com facilidade. - Diga-me, você se encheu da Srta. Mamie?
- Ela poderia passar por uma drag queen se tivesse um pouquinho de pomo-de-adão.
Eles riram juntos. Adam disse - Você não mede as palavras e faz picadinho das pessoas. Na verdade, você faz picadinho de tudo.
- Vou fazer picadinho de você, se não se cuidar. E é por isso que você me ama.
- Bem, essa é uma das razões.
- Vamos desfazer as malas. Quero sair e encontrar pessoas.
- Isso é bem o seu tipo, mesmo. - disse Adam - Ficamos a centenas de quilômetros de qualquer lugar e aí você resolve que vai participar de alguma social.
- Vivo para festas, Princesa.
- Ei, é a minha herança que estamos gastando aqui. E não pense que vou deixar você se esquecer disso.
Paul fez seu beicinho de mentira como resposta.
Adam carregou a bagagem deles até o closet. Paul tinha três malas que combinavam e uma mala de casco duro para sua câmera de vídeo. Adam tinha apenas uma mochila
e uma bolsa com pesos.
- Além disso, - disse Adam - quando o dinheiro acabar, sempre podemos vender seu corpitcho lindo para comerciais da Calvin Klein.
- Só enquanto eu não tiver que beijar a Kate Moss. Ela me deixa nervoso.
- Se ela der uma olhadinha em você, vai querer ter um filho seu, bobo.
- Como se isso fosse acontecer um dia.
- Ei, deixa disso. Você daria um papai lindo.
- Chega dessa conversa. - disse Paul.
Adam começou a pendurar as camisas de algodão de Paul nos cabides, tomando cuidado para se manter de costas. Ele não queria que seu desapontamento fosse visto. Paul
era terminantemente contra a adoção, contra, na verdade, o compromisso derradeiro. E ninguém conseguia ser tão resoluto quanto Paul.
- Desculpe - disse Adam, as palavras abafadas dentro do closet. - Só pensei que, aqui nesse ambiente selvagem, longe de nossa antiga vida e pressões...
- Disse para não começar com o assunto.
- Você disse que poderíamos conversar sobre isso quando chegássemos aqui.
- Mas não disse que conversaríamos de cara. Quero relaxar um pouco e você está me deixando tenso.
- Não vamos brigar. É um modo péssimo de começar as férias.
- Preciso trabalhar um pouco, também. Como posso fazer alguma coisa se você fica me azucrinando com essa porcaria de história de "consolidar as coisas"?
Adam suspirou no interior escuro do closet. Ele terminou de guardar as roupas e então fingiu estar interessado no que acontecia lá fora da janela. Paul se divertiria
filmando algumas coisas nesse lugar. Um documentário belo e pacífico pela visão de um garoto de Boston.
Eles ficaram com um quarto no terceiro andar, menor que os demais que haviam visto enquanto a empregada os levava pelas escadas. A janela ficava encravada na cumeeira.
Todo o piso, paredes e teto do andar superior eram cobertos de madeiras encaixadas. Na subida, Adam havia perguntado à empregada sobre a escada estreita que levava
a uma pequena porta no teto. Ela lhe falou que levava à balaustrada do telhado e que aos hóspedes não era permitido o acesso a essa área. Ela havia dito isso, Adam
pensou, com um tom nervoso e uma pressa inquietante. Ele ficou pensando se algum hóspede, durante algum retiro anterior, havia sofrido algum acidente por lá.
Ele virou de costas para a janela, pronto para fazer as pazes. Se ele conseguisse fazer Paul falar sobre vídeo, a cisma logo estaria esquecida. - Então, você acha
que trouxe fitas suficientes?
- Tenho o suficiente para oito horas. Um pena que o orçamento não tenha me permitido comprar uma câmera Beta SP. Estou preso nessa digital vagabunda.
- Bem, você está trabalhando por contrato para a televisão pública. O que esperava, o orçamento do Titanic sem o Leo DiCaprio?
- Ei, eu ficaria felicíssimo com o orçamento do cabeleireiro dele. Fundos para documentários são o fundo do poço no que se refere a dinheiro nos dias de hoje. Talvez
eu devesse tentar "Mistérios do Inexplicável e outros Fenômenos Ocultos Esquecidos". Com toda essa conversa do solar ser mal- assombrado, quem sabe?
Adam sorriu, contando como vitória toda vez que Paul voltava para seu humor sarcástico. Paul não aceitava nenhum dinheiro de Adam para subsidiar seus vídeos, mas
por outro lado não tinha nenhum pudor de ser um "homem sustentado". Paul esticou-se em uma das estreitas camas e olhou para o teto. Talvez estivesse visualizando
a edição de alguma sequência de vídeo.
- Vou lhe dizer uma coisa. - disse Adam - Gostaria de ser abduzido por alienígenas enquanto você filma.
- Ouvi dizer que eles fazem todo tipo de experimento sexual bizarro.
- Parece melhor a cada segundo.
- Ei, o que eles podem fazer que eu não posso fazer melhor?
Adam atravessou o quarto. Paul estava com aquele olhar sonolento novamente. - Me beije, seu bobo.
Paul o beijou. Adam sentiu olhos os vigiando. Estranho.
- O que foi? - Perguntou Paul, a voz rouca.
- Não sei. - disse Adam. Ele olhou ao redor. Ninguém conseguiria vê-los pela janela e a porta estava trancada. Além da mobília, a única coisa no quarto era uma pintura
a óleo, uma réplica menor do homem cujo retrato encontrava-se na sala de estar.
Não vou ficar paranoico. Está tudo bem em ser gay, mesmo na região rural do sul. Está TUDO bem em voltar à natureza. Esse amor é tão real quanto qualquer outra coisa
no mundo.
Ele deslizou na cama ao lado de Paul, pensando se o velho careta do Korban desaprovaria o fato de dois garotos estarem se pegando no sótão. Korban estava morto e
Paul muito mais vivo.
CAPÍTULO 8
Mason estava cansado de sua caminhada ao longo das trilhas de carroças. Passara a tarde tentando clarear a mente, saboreando a solidão e a quietude da floresta da
montanha que cercava a fazenda. Lá, sob as antigas árvores, ninguém tinha nenhuma expectativa a seu respeito. Não tinha que ser uma nova estrela das artes, não era
as esperanças e sonhos de sua mãe e não tinha obrigação de provar seu valor ao pai mais implacável do mundo. No Solar Korban, ele era apenas um qualquer, com sua
pequena sacola de truques.
A sala de estar estava quase vazia quando Mason retornou ao solar, logo antes do pôr do sol. Balançou a cabeça para um casal de idosos com casacos que combinavam,
as mangas arregaçadas e as bebidas a postos. Roth e uma garota de pele escura estavam conversando, Roth gesticulando como se estivesse fotografando. A empregada
lúgubre estava ao pé das escadas, as mãos às costas, olhando para o retrato de Korban. Mason acenou para Roth e atravessou a sala, cuidando para não olhar para a
lareira. Estava com receio de ver algo que não estaria lá.
Ele tocou a empregada no ombro. Ela girou como se tivesse levado um choque e Mason deu um passo atrás e abriu as mãos em um gesto de desculpas. - Desculpe assustá-la,
mas é você que está mostrando os quartos para nós?
Ela forçou um sorriso e concordou com a cabeça. Mason forçou os olhos para ler o nome na placa de latão em seu peito. Lilith.
- Nome, por favor? - A voz um pouco acima de um sussurro. A risada de Roth ressoou do outro lado da sala, sem dúvida alimentada por mais uma de suas piadas.
- Jackson. - disse Mason.
- Sr. Jackson, você está atrasado. - Ela tentou sorrir novamente, mas o sorriso apenas adejou sobre seu rosto para depois se esconder nas sombras de sua boca. -
Segundo andar, ao final da ala sul.
- Espero que tenhamos banheiros. - disse ele, tentando um pouco de humor grosseiro - Sei que se espera que façamos uma viagem no tempo, mas não vi nenhuma casinha
de banheiro do lado de fora do solar.
- Banheiros compartilhados apenas para quartos conjugados. - disse ela, já subindo as escadas. -Você tem um banheiro privativo. Siga-me, por favor.
Mason relanceou os olhos uma última vez para a lareira e então para o rosto gigante de Korban. Mesmo com olhos sem vida e confinado a duas dimensões, o homem possuía
carisma. Mas até aí, também tinham carisma David Koresh, Charles Mason e Adolf Hitler. E o pai de Mason. A galeria dos otários. Mason balançou a cabeça e subiu as
escadas. Lilith não havia se oferecido para carregar sua sacola. Talvez ela tivesse reparado no quão possessivamente ele a segurava ou talvez a educação e maneiras
do século XIX ainda dominassem o solar.
Lilith deslizou sobre o piso de carvalho, o vestido farfalhando suavemente. Se ela fosse a um evento gótico na cidade, com certeza sua compleição doente se encaixaria
no contexto. Ela movia-se com uma graça que se contrapunha às suas feições emaciadas. Julgando por suas mãos ossudas e os ângulos de seu crânio, Mason esperava que
ela chocalhasse enquanto caminhava.
O segundo andar era tão suntuoso quanto o primeiro, com o mesmo pé-direito alto e acabamento nas paredes. Um par de candelabros flutuava sobre o grande saguão, cada
um com velas cor de creme presas em um anel de prata e envoltas em contas de cristais. Lâmpadas astrais queimavam à altura dos olhos a cada seis metros, as chamas
lançando luz suficiente para empurrar as sombras sobre o acabamento de madeira. Fileiras de três sólidas portas de bordo alinhavam-se em ambas as paredes e pinturas
a óleo de paisagens encaixavam-se nos intervalos entre as portas. A arte era de alta qualidade, todas com cenas do solar. Uma delas era da ponte de madeira que Mason
e os convidados haviam atravessado e a imagem trouxe de volta a lembrança de seu pânico. Ela, como as outras pinturas, não trazia a assinatura do artista.
Grandes retratos de Korban, com diferentes efeitos de luz daquele presente no retrato da sala de estar, mas possuindo o mesmo cenho de época, estavam pendurados
no final de cada corredor.
- Belas pinturas. - disse ele a Lilith.
- O Sr. Korban vivia para sua arte. Todos vivemos.
- Ah, você é uma delas? - ele brincou. Ou ele estava muito oprimido com o iminente fracasso como escultor ou ela estava preocupada, mas a brincadeira não obteve
sucesso.
- Costumava ser. - replicou Lilith.
Passaram em frente a uma porta aberta e Mason olhou para dentro. O corpanzil de Jefferson Spence se esparramava sobre uma cadeira de madeira enquanto o escritor
desempacotava seus papéis e os distribuía sobre a mesa. A Srta. Revista de Moda não estava à vista. Mason notou que o quarto possuía apenas uma cama e, então, rapidamente
desviou o olhar, censurando-se por ser curioso.
Lilith o levou a uma porta no final do corredor. Ela rangeu quando foi aberta. Lilith deu um passo para o lado, para que Mason pudesse entrar, mantendo os olhos
voltados para o chão.
- Obrigado. - disse Mason. Sua mala surrada, uma Samsonite com fita isolante segurando a alça no lugar, estava dentro do quarto. A suíte era grande, com uma cama
king size de dossel, mesas de cerejeira, escrivaninhas de castanheira e criados-mudos circulares. Janelas grandes e retangulares estavam nas paredes sul e oeste
e Mason deu-se conta de que o quarto receberia sol o dia todo. Isso era um luxo em um lugar que não apresentava eletricidade. O sol poente inundava o quarto com
uma coloração quente em tom de mel.
- Uau! Esse deve ser um dos melhores quartos. - disse ele.
A empregada ainda estava do lado de fora, como se estivesse com medo de respirar o ar do quarto.
- É a suíte mestre. - disse ela - Costumava ser o quarto de dormir de Ephram Korban.
- É por isso que tem o retrato dele na parede? - perguntou Mason, acenando com a cabeça na direção da pintura sobre a grande lareira do quarto. Era uma versão menor
da pintura pendurada na sala de estar, de um Korban um pouco mais moço. Os olhos, entretanto, eram do mesmo modo negros e sem vida, um leve indício de sorriso nos
lábios cruéis.
- A Srta. Mamie escolheu esse quarto especialmente para você. - disse Lilith sem emoção - Ela disse que você foi muito bem recomendado.
Mason jogou a sacola sobre a cama. As ferramentas tilintaram. - Espero corresponder às expectativas.
- Ninguém conseguiu ainda. - disse Lilith ainda esperando do lado de fora. Se ela estava brincando, não havia sinal disso em seu rosto.
- Ahn, não sei muito a respeito de lugares como esse. - disse ele, colocando a mão no bolso e caindo na sua rotina estilo "ah, que saco". Havia aprendido que as
pessoas eram mais condescendentes se pensassem que ele era um caipira burro pois suas expectativas seriam menores.
Ele conseguia o mesmo efeito com o sotaque sulista, apesar disso ter deixado de ser intencional. Ele suspeitava secretamente que seu sucesso em Adderly havia sido
em decorrência de seus instrutores sofisticados ficarem surpreendidos que um simples aldeão pudesse invadir sua confinada sociedade e competir com os membros da
elite cultural. - Você pode pensar que sou burro, mas eu deveria lhe dar gorjeta ou algo assim?
- Não, claro que não. E a Srta. Mamie me mataria se você tentasse. - Lilith conseguiu sorrir, aliviada por ter sido dispensada. Ela era mesmo atraente, de um jeito
nervoso e pálido, como uma princesa cuja cabeça estivesse para ser cortada. Ela não era bonita como a mulher de revista de moda com olhos azuis, mas Lilith provavelmente
não desdenharia os artistas caso também fosse um deles.
Lilith apontou para a porta na parede oeste. - O banheiro é ali.
- Ótimo. - Ele sentou-se na cama.
- Isso é tudo?
- A não ser que você queira tirar meus sapatos.
Ela deu um passo hesitante à frente, olhando para o chão.
- Ei, eu estava só brincando. - Ele deu uma risada que pareceu um cavalo engasgando com uma maçã.
Lilith abriu novamente o sorriso febril e então disse. - O jantar é às oito em ponto, Sr. Jackson. Não se atrase. A Srta. Mamie não apreciaria.
Então ela se foi. Mason voltou a atenção mais uma vez para a mobília. Uma luminária em cada criado-mudo, uma base oval de vidro preenchida com óleo pesado e envolvida
com adornos de latão. Um fogo crepitava na lareira, uma pilha de lenha empilhada próximo às pedras. Era um milagre que um lugar como esse não tivesse pegado fogo
em todos esses anos. Mason se recostou nos travesseiros e olhou para os padrões ondulados do gesso no teto.
Certo, Mase, isso foi o que você quis a ponto de se envolver com todos os problemas que teve. Você fez de tudo, exceto ficar nu e balançar as partes em frente ao
comitê de bolsas do Conselho de Artes. Você se desviou das críticas, vendeu sua marca de óleo de cobra e agora deu talvez o maior passo de sua carreira. Talvez até
de sua vida. Porque se você não produzir nada vendável por aqui, pode começar a procurar um abrigo para mendigos em Sawyer Creek.
E terá que olhar sua Mama nos olhos, mesmo que ela não o enxergue, e dizer que falhou, que os sonhos dela não foram fortes o suficiente e que você não acreditou
neles o suficiente.
Retinopatia diabética. Uma rápida deterioração da visão, exceto que ela nunca falara nada enquanto o túnel se fechava. Ela mentiu para os médicos por tempo suficiente
para que a doença se tornasse irreversível e Mason descobriu apenas quando era tarde demais. Ela era muito nova para ser aposentada por invalidez e não era pobre
o suficiente para ser tratada pelo governo, mas ainda podia ter seguido em frente e rolado as dívidas até, por fim, declarar falência. Mason tinha gasto o dinheiro
em Adderly, martelando em pedaços de madeira e ferro, tentando dar-lhes a forma de sonhos.
A pior parte era que Mason não sabia se a admirava por seu sacrifício ou se a desprezava por ser tão nobre. Agora ela se arrastava devido à deficiência e sobrevivia
às custas de qualquer coisa que Mason fosse capaz de conseguir de seu pagamento na fábrica. Mas aquele trabalho era passado agora, perdido devido à sua busca pela
arte. Ainda assim, Mama era sua maior fã.
- Nunca deixe de sonhar, querido. - disse ela por entre dentes que não tinha dinheiro para consertar. - Isso é tudo o que conseguimos desse mundo, nossos sonhos.
Mason levantou-se e caminhou pelo quarto, do mesmo jeito que costumava andar quando estava ansioso com alguma ideia, quando sentia os dedos coçarem, quando uma nova
escultura começava a tomar forma em sua mente. Era a mesma mistura de excitação e pavor, excitação porque a nova ideia era a melhor de todas, e pavor porque ele
sabia que o produto final nunca se igualava à ideia sonhada.
Exceto que dessa vez a ansiedade não era um efeito colateral da alegria.
Esse retiro era a imagem do maior de todos os grandes sonhos. Ele já havia decidido que se nenhum caminho ou reconhecimento fossem construídos durante esse retiro,
ele jogaria suas ferramentas sobre o corrimão da ponte que separava o Solar Korban do resto do mundo. Claro, a altura lhe daria algum trabalho pra fazer isso, mas
ele poderia se arrastar de olhos vendados, se fosse o caso. Ele ouviria o metal tilintando e martelando pelas rochas abaixo e deixaria os calos e bolhas se curarem
enquanto buscava um emprego de verdade.
Criatividade tinha um preço. Você tinha que pagá-lo, mesmo tendo a chance de fracassar. Médicos e advogados passavam dez anos na universidade e pagavam dezenas de
milhares de dólares. Criminosos pagavam com o risco de perder a liberdade. Soldados enfrentavam um custo ainda maior. Artistas pagavam com outras coisas, a mais
barata delas era a dor.
Não que ele se importasse de sofrer pela sua arte. Apenas pensava que Mama não precisava. Ele olhou para baixo e viu que os punhos estavam cerrados como martelos
raivosos, o ódio quase o deixando embriagado.
Ele parou de andar e se inclinou contra a janela, olhando pelo vidro antigo em direção às terras do solar. Apesar de estar a apenas dois andares do chão, teve que
se segurar para controlar a tontura.
Anna estava junto à cerca, acariciando um cavalo. O pôr do sol dourava o horizonte e a luz carinhosa a deixava etérea e bonita, uma princesa de faz de conta sobre
a grama. Os campos verdes e ondulados, o céu brilhante, o lago faiscante aos pés das pastagens e a mulher aparentemente sem peso pareciam trancados dentro de um
sonho.
De acordo com seu pai, sonhos eram apenas uma maldita perda de luz do dia.
Mason foi ao banheiro. O encanamento era primitivo, apesar dos metais serem ornados como o resto da casa. Uma banheira de ferro fundido ficava em um canto, a pia
era de mármore, com uma torneira prateada e um espelho emoldurado.
Ele virou para a privada de cerâmica e se aliviou, notando o pequeno tanque sifonado colocado alto na parede. Os canos por detrás da parede pularam e gemeram quando
ele deu a descarga. Lavou as mãos na pia, relanceando o olhar no espelho. Apesar de a água ser fria, o espelho ficou embaçado.
Ele o limpou com a manga da camisa. Ainda assim, o vapor permaneceu e ele franziu o cenho ante sua imagem distorcida. O rosto no espelho parecia um pouco lento para
responder aos movimentos, o triste e cansado rosto de um prisioneiro.
Quando retornou ao quarto, suas ferramentas estavam espalhadas sobre a cama. Pareciam zombar dele, desafiando-o a usá-las e falhar. Ele não se lembrava de tê-las
tirado da sacola. Será que estava assim tão distraído e nervoso?
O retrato de Korban reluziu sobre ele, o sorriso imaginário desaparecido. Korban era apenas outro capataz, um crítico frio e exigente. Um observador, fora do processo
criativo, mas pronto para julgar algo que ninguém, além do criador, poderia compreender. Apenas outro idiota com uma opinião.
Mason aproximou-se das ferramentas, atraído, como sempre, pelo seu poder. Curvou-se para elas, tocou nas goivas, formões e martelos, reconfortando-se com suas arestas
e pesos. Elas estavam famintas, precisavam dos dedos de Mason para ajudá-las a moldar o mundo. E Mason, por sua vez, precisava delas num vício simbiótico que criava
tanto quanto destruía.
Ele virou as costas para o retrato de Korban e limpou as ferramentas com um pedaço de camurça até que brilhassem à luz das chamas.
CAPÍTULO 9
Outubro era um caçador e sua presa era o verde do verão. O vento se movia pelas colinas como um falcão relutante; asas bem abertas, garras prontas, olhos duros e
vigilantes. Por debaixo da pele fria e dourada, a terra abalava-se sob sua passagem. A manhã retinha sua respiração acinzentada. Cada folha e broto tenros estremeciam
em temor.
Jefferson Spence olhou para as chaves do velho manual Royal. "Dentes de Cavalo", as chaves eram chamadas. George Washington possuía dentes de cavalo, de acordo com
a lenda. Spence sabia que estava desperdiçando seu tempo, procurando qualquer distração que o detivesse de iniciar outra sentença. Olhou para a chama tremeluzente
da lâmpada sobre sua mesa.
Olhou para o rosto de Ephram Korban na parede. Nesse mesmo quarto, vinte anos antes, Spence tinha escrito Seasons of Sleep, uma obra prima sob todos os prismas,
especialmente o dele. Todos os seus outros romances deixaram de alcançar essa glória, mas talvez a mágica pudesse retornar.
Palavras eram magia e talvez o velho Korban deixasse escapar um segredo ou dois, ou lhe sussurrasse alguma sabedoria perdida, colhida através de todos os anos pendurado
naquela parede.
- O que - disse Spence ao retrato, a voz preenchendo o recinto - você quer me dizer? Bridget perguntou do banheiro, com o sotaque suave da Georgia - O que foi, querido?
- Ter ou não ter. - disse ele.
- O que é que você não tem? Pensei que tivesse trazido tudo com você.
- Esqueça, meu doce. É melhor guardar uma alusão a Hemingway para um público melhor. Spence havia encontrado Bridget durante uma oficina de verão de literatura e
escrita na universidade da Georgia. Ele tinha ministrado a oficina durante os dias e passado a maior parte das noites espairecendo nos bares de Athens. A maior parte
dos alunos de último ano haviam se juntado a ele nas primeiras noites, mas a paixão pela autoindulgência e sua natureza brusca levaram o grupo a se dissolver. Na
quinta-feira da primeira semana, apenas os mais fiéis ainda orbitavam à sua volta como satélites brilhantes na direção do buraco negro da massa incalculável de Spence.
Três dessas fiéis eram elegíveis, sob os olhos de Spence: uma deusa africana de pele cor de bronze e cachos oleosos; uma loira magra com um jeito maligno de lamber
os lábios e um apetite insaciável pelos trabalhos de Richard Brautigan; e a doce Bridget. Como sempre, alguns estudantes masculinos haviam se amontoado e escrito
dicas para ele em troca de drinques. Spence tinha pouca paciência com escritores. Seu melhor conselho era passar mais tempo sobre o teclado que em frente a espelhos.
Mas a mente das mulheres era mais simples e desprovida de pretensões literárias.
Ele havia escolhido Bridget precisamente porque ela era inocente e, assim, seria a escolha mais corrupta das três.
- Botando a cachola para funcionar? - perguntou Bridget.
Ele podia sentir sua nudez. Talvez fosse o calor primal da pele fresca ou a energia animal que ela irradiava. - Não me interrompa quando eu estiver trabalhando.
- Só pensei...
- Desde quando você passou a elaborar pensamentos? Deixe essa atividade àqueles que possuem um cérebro.
Ele ouviu a porta se fechando com um sólido clique, em vez da batida de uma mulher mais confiante. Ele havia escolhido sabiamente.
Spence olhou para o papel inserido na Royal. Seis anos. Seis anos e tudo que ele tinha para mostrar era esse parágrafo que tinha reescrito centenas de vezes. Era
o mesmo parágrafo com o qual ele havia persuadido Bridget na primeira vez, o parágrafo que não havia ousado mostrar nem para seu agente nem para seu editor.
Ele sabia que havia chegado o tempo de se livrar de tudo aquilo, procurar uma perspectiva nova, convocar as musas antigas. Se havia um lugar no qual ele poderia
recuperar sua magia, esse lugar era o Solar Korban.
Ele colocou os dedos sobre as teclas. O som do chuveiro veio do banheiro e Bridget começou a cantar com a pequena e bela voz. "Stand By Me", a velha música de Ben
King. Ele digitou "Fique do meu lado" como parágrafo de abertura e então apertou os dentes e arrancou a folha da máquina. Rasgou a folha em quatro pedaços e os deixou
cair no chão.
Spence reclinou-se na cadeira e olhou pela janela. As copas das árvores balançavam ao vento que ficara mais forte com a proximidade da noite. Ele imaginou os odores
do outono, de maçãs caídas, machucadas e doces sob as árvores, de folhas de bétulas sob os sapatos, de cascas de cerejeiras rachando e exsudando a seiva transparente,
de tortas de abóbora e fumaça nas chaminés. Se apenas conseguisse encontrar as palavras para descrever essas coisas.
Spence retornou a atenção ao retrato de Korban na parede. Pensou em ir até o banheiro e ver Bridget se ensaboando, mas ela talvez tentasse excitá-lo. Toda nova beldade
achava que seria a escolhida, de dúzias que ele havia tentado, para acabar com o que tinha chamado de "A maldição de Hemingway".
E a cada novo fracasso, Spence sentia raiva e humildade. Apesar de agradecer a raiva, odiava a humildade.
Praguejou entre os dentes e colocou outra folha de papel na máquina. O papel era pesado, uma mistura de vinte por cento de algodão. Papel nobre. Imponente e problemático.
As palavras viriam. Elas tinham que vir. Ele ordenava que elas viessem. Spence olhou para o rosto de Korban - O que devo escrever, senhor?
O retrato olhou de volta, os olhos negros.
Os dedos de Spence pressionaram as teclas, o movimento barulhento vibrando pela mesa e ecoando pelo chão de madeira, o sino de retorno tinindo a cada trinta segundos.
A casa assentava-se entre os seios das colinas, entre as ondulações, sobre rios, sobre toda a Terra, alcançando até onde somente deuses poderiam viver. E, na casa,
na alta janela solitária pela qual ele podia vislumbrar o mundo que seria seu, o homem sorriu.
Eles tinham vindo, tinham atendido a seu chamado, àqueles que lhe dariam vida. Eles cantariam suas canções, entalhariam seu nome em seus corações, o pintariam pelo
céu. Vieram com suas poesias, suas imagens, suas palavras febris, seus sonhos. Vieram trazendo oferendas e ele lhes abençoaria de igual modo -
Spence estava tão perdido no ato de escrever, perdido como há anos não se sentia, que não notou quando Bridget caminhou nua e fumegante para dentro do quarto. Ele
trabalhava furiosamente, a língua pressionada contra os dentes. O talento estava retornando, fluindo como sangue por veias esquecidas. Ele não sabia a quem agradecer,
se a Bridget, Korban ou alguma musa desconhecida.
Ele se preocuparia com isso depois. Nesse momento, as palavras carregavam Spence para longe de si mesmo.
CAPÍTULO 10
Anna olhou para o prato. Da costela saiam sucos e vapores e, em outras circunstâncias, seria tentadora o suficiente para desafiar seus princípios vegetarianos. O
brócolis macio e as batatas vermelhas haviam invocado várias espetadas exploratórias de seu garfo. A torta de maçã era tão macia que se esfarelara sobre o prato
de porcelana.
Enquanto observava a lava açucarada escorrendo pela torta afora, pensava se deveria se preocupar com a dieta. Olhou para Jefferson Spence do outro lado da mesa e
não reparou em nenhuma hesitação em seu garfo. Ela comeu algumas garfadas rápidas de legumes e então mexeu um pouco na comida pelo prato para dar a impressão de
que havia se alimentado bem. Pelo modo com a Srta. Mamie havia sido meticulosa com relação aos detalhes do jantar, Anna quase se sentiu culpada por não apreciar
a comida.
A sala de jantar era um aposento longo colado à sala de estar. A sala continha quatro mesas, uma longa no centro, ocupada pelas pessoas que secretamente nomeou como
"cultos superlativos". As outras, menores, eram relegadas aos cantos da sala. Aparentemente, a Srta. Mamie havia tentado combinar as pessoas de interesses similares
quando as distribuiu em seus assentos. Isso significou colocar todos os com menos de cinquenta nas mesas menores.
Anna estava sentada com Cris e a mulher negra que tinha visto carregando uma câmera. À sua esquerda, o sujeito com o qual havia conversado na sacada, o escultor
tacitumo. Apesar de seu rosto ser comum, havia algo em seus olhos verde-acastanhados que continuavam a lhe atrair o olhar. Um fogo secreto, enterrado. Talvez fosse
apenas o reflexo das duas velas queimando no centro da mesa. Ou apenas um vislumbre de sua solidão desesperadora.
Cris havia murmurado uma prece antes do jantar. A mulher negra também havia baixado a cabeça. Anna não sentiu-se compelida a compartilhar esse ritual e aproveitou
a oportunidade para estudar as pessoas à mesa. O escultor havia mantido a cabeça baixa, mas os olhos abertos. Então Anna viu o que ele olhava: uma mosca havia circulado
a borda de seu prato, experimentando o molho de carne.
Ela escondeu o sorriso quando ele tentou, disfarçadamente, assoprar a mosca para longe. Quando Cris disse "Amém", ele rapidamente pegou o guardanapo do colo e o
abanou com um floreio. A mosca dirigiu-se para as luminárias a óleo do teto. Anna observou seu voo e, quando voltou a atenção para o jantar, o escultor a observava.
- A criatura maldita estava pronta para roubar meu jantar. - disse ele - Um ser perverso.
- Talvez fosse Belzebu. - disse ela - Mestre das moscas.
- Estava mais para Belzemosca. Sabe? Típica do sul.
Anna riu pela primeira vez em semanas. Os companheiros de mesa os olharam com cenhos franzidos. O homem se apresentou como sendo Mason e disse ser um trabalhador
têxtil aposentado do sopé da montanha. - Também sou um pretendente a escultor. - disse ele - Mas não me confundam com Henry Moore ou qualquer coisa do estilo.
- Ele não interpretou James Bond? - perguntou Cris.
- Não, aquele era Roger Moore.
Ele declinou polidamente do vinho oferecido quando Lilith trouxe o carafe. Anna aceitou uma taça, apesar de não ter a intenção de tomar mais que uns pequenos goles.
O conservadorismo que surgiu com a sentença de morte a surpreendeu. Quando se tem apenas uma pequena quantidade de tempo disponível, em vez de ficar embotado, você
tenta ficar mais consciente.
Seus olhos voltaram-se novamente para Mason. Ele estava observando Lilith como se estivesse interessado em mais que simplesmente um segundo guardanapo. Ela ficou
tão irritada quanto surpresa quando um clarão de ciúmes lhe cruzou o coração. Ela desprezava mesquinhez e, acima de tudo, possessividade era o último sentimento
que uma pessoa moribunda deveria ter. Stephen a havia ensinado que nunca se pode entender outra pessoa, muito menos possuir uma, e a ideia de almas gêmeas tinha
utilidade apenas em romances. Ela tomou um gole de vinho e deixou o ardor alcoólico a distrair por uns momentos. Em seguida, apresentou-se à mulher negra.
Ela se chamava Zainab e tinha nascido na Arábia Saudita. Era americana-árabe, mas apenas indiretamente pelo dinheiro do petróleo; seu pai havia sido um engenheiro
na Aramco. Zainab tinha vindo aos Estados Unidos para estudar em Stanford, antes que alguém do Oriente Médio tivesse que pular por entre círculos de fogo para imigrar,
e agora queria ser uma fotógrafa "quando crescesse".
- Nos Estados Unidos, você é considerada crescida quando tem quatorze anos. - disse Anna - Pelo menos se você acredita em revistas de moda. Claro, quando chega aos
quarenta, espera-se que você tenha a aparência de alguém com vinte e cinco.
- Ei. - disse Cris, entornando sua terceira taça de vinho - Eu tenho trinta em um corpinho de vinte e cinco. Acho que isso quer dizer que estou indo na direção certa.
Anna cortou a torta um pouco mais e empurrou a sobremesa para longe. Cris inclinou-se para Mason, os cílios movendo-se intensamente.
- Então, o que os rapazes do sopé da montanha fazem para se divertir? - perguntou Cris.
- Nós vamos até os lixões atrás do café local e atiramos pedras nos ratos. Os ratos em Sawyer Creek comem melhor que muitas famílias.
- Aposto que os ratos vivem bem por aqui. - disse Cris.
- Chamamos isso de "se dar bem na vida" na minha terra. - disse Mason estremecendo de falso nojo. - Estava conversando com um dos trabalhadores hoje. Ele me falou
sobre instalar ratoeiras e enterrar a comida para manter os ratos longe. Livrar-se do lixo é um problema por aqui.
- É impressionante como nem pensamos em determinadas coisas numa sociedade civilizada. - disse Anna.
- Quem é civilizado? - disse Cris rindo - Parece que nos encaminhamos para histórias do tipo "caminhei seis quilômetros pela neve para ir à escola".
- Eram quatro quilômetros sobre as dunas de areia, sem camelos, no lugar onde cresci. - disse Zainab.
- Eu vi uma das arrumadeiras com uma cesta de roupas sujas. Não ela. - disse Anna indicando Lilith, que estava abrindo uma garrafa de vinho na mesa principal. -
Imagine o que deve ser lavar à mão todas essas toalhas de linho e cortinas, para não mencionar os lençóis.
- Parece que os lençóis realmente precisam ser bem lavados, se você der ouvidos aos rumores por aqui. - disse Cris.
- Você quer dizer as histórias de fantasmas? - perguntou Mason.
A respiração de Anna ficou presa na garganta. Se ela desse um jeito de entrar em contato com fantasmas por aqui, não queria um monte de necromantes iniciantes fazendo
sessões notumas e mexendo com tábuas Ouija. Ela acreditava que tais coisas eram jogos desrespeitosos que enviavam os fantasmas correndo de volta para suas tumbas.
E se ela tivesse uma missão aqui, um último trabalho antes de sua alma partir, preferia cuidar disso sozinha.
- Estava falando de sexo, mas as histórias de fantasmas são interessantes também. - disse Cris, suas consoantes começando a ficar arrastadas.
Mason disse - De acordo com William Roth-
- Ah, eu o encontrei. - Os olhos marrons de Zainab iluminaram-se quando o interrompeu. - Na verdade, cheguei a conversar com ele. Sempre admirei seu trabalho, mas
ele não é o que achei que uma pessoa famosa seria. Ele é muito pé no chão. E possui um sotaque maravilhoso.
- Ele é uma figura, com certeza.
- Acho que ele está dando uma de charmoso. - disse Zainab, olhando-o sentado na mesa principal onde parecia estar participando de três conversas ao mesmo tempo.
- O que você estava dizendo sobre fantasmas? - perguntou Cris, como se só agora tivesse se dado conta de que a conversa pulara de assunto. - Anna mexe com essas
coisas-
Anna cortou a conversa com um olhar forte e um movimento sutil de cabeça. Não queria que todos pensassem que ela não era boa da cabeça, pelo menos não logo de saída.
- Roth disse que o Solar Korban é mal assombrado e que tentará tirar algumas fotos disso. - disse Mason - E o trabalhador que encontrei hoje certamente parecia um
pouco estranho.
- Aconteceu alguma coisa estranha com vocês desde que chegaram aqui? - perguntou Zainab.
- Eu não sei sobre fantasmas. Acho que vou acreditar neles quando os vir. Mas os quadros de Korban por todos os cantos estão me dando nos nervos. - Ele balançou
a cabeça na direção da parede sobre a cabeceira da mesa principal.
- Em um lugar velho como esse, - disse Anna - você sempre encontra uma tábua que range e rajadas de ar vindas de lugar algum. E todas essas lamparinas e velas lançam
um monte de sombras tremeluzentes. Não é de se estranhar que essas histórias existam.
- Claro. - disse Mason - Se fossem fantasmas de verdade, vocês acham que as pessoas voltariam ano após ano?
- E como eles conseguiriam manter os empregados? - perguntou Anna.
- Bem, eu não me importaria de ver um fantasma ou dois. - disse Cris - Deixaria o lugar um pouco mais animadinho. Gosto de coisas que se movem durante a noite. -
Cris sorriu para Mason com um tom lascivo.
Anna observou sua reação. É isso. Bem no centro da base do rebatedor. Três strikes ou uma rebatida longa.
Mason deu de ombros, aparentemente inconsciente da cantada de Cris. - Não sei. Acreditarei quando os vir.
Uma pequena e barata sensação de vitória queimou no peito de Anna. Então se desprezou pelo sentimento. O que ela tinha que se importar se Cris se enroscasse com
esse garoto do interior?
Após Stephen, homens não mais existiam. Fantasmas eram muito mais sólidos e confiáveis dos que eles.
A conversa foi encerrada quando a Srta. Mamie levantou da cadeira na cabeceira da mesa principal. Ela retiniu uma taça com uma colher e o ruído dos pratos e diálogos
diminuiu para um sussurro. Lilith e as outras empregadas ficaram atentas na entrada da sala de estar, cada uma segurando um jarro de prata.
- Senhoras e senhores, adoráveis hóspedes. - disse a Srta. Mamie, a voz enchendo a sala. Ela olhou para os rostos alinhados na mesa principal, claramente apreciando
o momento. - Amigos.
Anna já estava entediada. Esperava que o discurso fosse curto. A Srta. Mamie tomou ar como se fosse uma soprano pronta para iniciar uma ária.
- Gostaria de dar-lhes as boas-vindas ao Solar Korban. - disse a Srta. Mamie - Como já é do conhecimento da maioria, essa casa foi construída pelo meu avô, Ephran
Korban. Após seu falecimento, que Deus acolha sua alma, foi herdada pelo meu pai. Transformamos o solar em um retiro para artistas a fim de cumprir com o último
desejo de Ephram. Agora é minha responsabilidade levar à frente esse legado, e o faço com grande orgulho e prazer.
- E lucro! - cortou um sotaque britânico e uma risada incerta correu pela sala.
A Srta. Mamie sorriu - Isso também, Sr. Roth. Mas é mais do que simplesmente um meio de custear a preservação da fazenda. É um trabalho de amor, uma continuidade
da visão de Ephram. Ele próprio era um admirador de artistas e espero que cada um de vocês encontre plenitude enquanto estiver por aqui e, fazendo isso, ajudarão
a manter o sonho de Ephram vivo.
Anna olhou de soslaio para Mason. Ele estava olhando para a Srta. Mamie com visível curiosidade.
Hmmm. Ele não é tão bonito quanto pensei de início. Seu nariz é um pouco longo de perfil. E os dedos são muito grossos. Aposto que é desajeitado com mulheres.
Satisfeita de ter encontrado falhas suficientes, bebericou o vinho. A Srta. Mamie estava em meio a alimentar os fogos artísticos coletivos.
- ... então eu proponho um brinde, meus amigos. - disse a anfitriã, remexendo em suas pérolas. Ela levantou sua taça para o alto, virou-se e apontou-a na direção
do retrato de Korban. Muitos na sala a acompanharam. Anna pegou sua taça, mas mudou de ideia. Mason viu e fez um esgar.
Idiota. Provavelmente um daqueles tipos "sou mais sagrado que você". Um artista com complexo de superioridade. ISSO é uma raridade.
Ela agarrou a taça. Quando a Srta. Mamie bebeu, Anna tomou um grande gole. Era um vinho local de muscadíneas, um pouco doce demais para entornar, mas ela deu outro
grande gole para completar.
- Vocês são bem-vindos para me acompanhar no estúdio para drinques e conversas. - A Srta. Mamie completou. - Há um local apropriado para fumar no estúdio. Novamente,
agradeço a todos o prazer de suas companhias. Boa noite.
A sala de jantar irrompeu em conversas e barulho de louças. Cris balançou levemente onde estava sentada e colocou a mão no ombro de Mason para se equilibrar, recostando-se
nele.
Anna fingiu não notar. Estava atrás de fantasmas, droga. Fantasmas não fazem você de idiota como os homens.
Ela fugiu sorrateiramente escada acima. As luminárias emitiam um brilho quente sobre as madeiras. Entrou no quarto escuro e ficou de pé próximo à janela, olhando
para a fazendo envolta em penumbra. O céu estava tornando-se verde, quase preto pela escuridão que se aproximava do leste, a lua nascendo fraca e azulada.
Ela pegou a lanterna da mesa de cabeceira. Pelo menos uma conveniência moderna havia sido permitida, provavelmente por demanda da seguradora do solar. Ela acendeu
a luz e passou o foco de luz pelas paredes, desejando ver um espírito desassossegado, mas revelando apenas teias de aranha no forro.
Suspirou. Caçadora de gnomos. Era assim que Stephen a chamava.
- Deixe-me livre para fazer a investigação séria. - dizia ele - Você pode brincar de caça aos gnomos.
Um fantasma vivia nessa casa. Ela sabia disso com tanta certeza quanto sabia que estava morrendo. Ela o caçaria até o inferno se fosse preciso, pois gostaria de
estar certa uma vez na vida. Pelo menos, queria que Stephen soubesse que estava certa. Mesmo que fosse o próprio fantasma que ela encontrasse.
Pegou um casaco e colocou a lanterna no bolso. Uma longa caminhada solitária pela noite lhe faria bem.
CAPÍTULO 11
Uma droga.
Uma droga e uma porcaria.
Uma droga, uma porcaria e um lixo.
William Roth correu pelos adjetivos ruins em sua mente enquanto estudava os livros alinhados nas prateleiras do estúdio. Todos os livros eram de capa dura, muitos
com capa de couro e títulos dourados. O pó era a prova de sua inutilidade.
Uma boa encenação de cultura, isso é o que eles são. Porque todos eles são uma porcaria e... um embuste. Sim, DEFINITIVAMENTE um embuste.
Précis da Revolução Francesa. O Diário de Sir Wendell Swanswight. Talmud. Juris Studis.
Eles dariam bons pesos de papel. A única coisa realmente interessante era que encaixavam-se perfeitamente nas prateleiras. Roth bebericou seu uísque com gelo enquanto
andava em direção à pequena multidão que havia se juntado ao redor de Jefferson Spence. A voz trêmula do grande homem era ouvida em uma ou outra opinião didática.
Spence seguia sem desafios entre os admiradores.
A garota Árabe estava do outro lado da sala, com a sempre presente câmera no pescoço. Ele praticou mentalmente seu nome, mas era difícil fingir um sotaque britânico
ao dizê-lo. Zái-i-náb. Ele teria que ensiná-la algumas coisas sobre os códigos de conduta fotográficos. Você não se move atabalhoadamente por aí como um elefante
numa loja de cristais. Você espreita, espera, seduz o alvo com infinita paciência e cuidado. Você acalenta, cuida e, então - clique, obrigado!
Mas ele poderia ter Zainab a qualquer momento. Ela era uma presa fácil de ser retirada da manada. Era uma gazela ferida e Roth, seu leão. Primeiro ele tinha caças
maiores a espreitar.
Espere um instante, sujeito. Essa foi uma metáfora bem ruim. Você sabe, do tempo que passou na África, que é a leoa que caça enquanto os leões ficam lambendo as
bolas. Mas os americanos burros não sabem disso. Rei das Selvas, e a ideia é o que importa.
Ele estava pensando em seu sotaque de Manchester. Ele havia caído de paraquedas em Liverpool no meio da década de noventa, durante o breve retorno dos Beatles, e
depois ido para Yorkshire com o surgimento do filme "The Full Monty". Modismos vieram e se foram e, da mesma forma, seu sotaque. Algumas vezes ele escorregava na
construção de algumas frases, mas os americanos não notavam seus erros. O único momento no qual ele tinha que tomar cuidado era quando estava ao lado de um inglês
de verdade.
E aqui as chances eram muito remotas - pensou ele, sorrindo para si. Ele havia chegado à parte externa do círculo de Spence agora.
- E eles dizem que existem elementos hermenêuticos em "Look Homeward, Angel" - disse Spence, a papada balançando para dar ênfase. - Eu digo a vocês que Gant não
é mais que um símbolo do coração humano. Uma metáfora inconsistente sustentada por um bilhão de adjetivos. Se você enviasse isso para um editor nos dias de hoje,
ele diria "maravilhoso, agora você consegue fazer isso ficar parecido com Grisham?"
Os olhos da audiência brilharam em reverência. Esse homem era um mestre, com um charme maligno. Seu ego era tão grande quanto sua barriga. Ninguém ousava se opor
a seus efêmeros pronunciamentos.
Spence bebeu metade de seu martíni antes de continuar. - O pior livro do século XX? Provavelmente não. O prêmio abacaxi deveria ir para "Paris é uma Festa" de Hemingway.
Os críticos muito falaram sobre a tensão subliminar que supostamente existe no romance. Asneiras. Não é nada mais que um Hemingway enlatado, o suprassumo de Ernest.
Ernest tomado muito a sério, poder-se-ia dizer.
Spence fez uma pausa para risadas. Elas vieram.
Roth sorriu. Spence era um grande enganador, assim como ele. E ele jogava o jogo das celebridades com o mesmo sucesso. Roth ficava abismado com a constante fome
das pessoas por ídolos. Tragam-me seus falsos deuses. As massas necessitavam de ópio, e em grande quantidade.
Roth forçou seu caminho até ficar à esquerda de Spence, se espremendo entre uma garota de cabelos azuis e um velho corcunda. A garota bonitinha com belos seios estava
ao lado de Spence. Ela não havia dito uma palavra durante toda a noite, mesmo durante o jantar. Roth sabia, pois ficara observando os dois em sua mesa privativa.
Roth calculou as chances de conseguir afofa-la um pouco. Ela seria uma bela pena em seu chapéu de conquistador.
Spence apregoava sobre as instruções morais codificadas no "O Grande Gatsby". As pessoas concordavam com a cabeça e, ocasionalmente, alguém ousava dar um murmúrio.
Roth achou que era justo se fazer perceber. - Eu acho, Sr. Spence, quem sabe se algum editor não deveria dizer "Fitzgerald, meu filho, livre-se desse palhaço do
Gatsby e você terá um bom livro"?
Todos os olhares se viraram para Roth e então de volta a Spence. O escritor olhou para Roth como se medindo o alcance de seu adversário e então sorriu - Puramente
apócrifo. Mas há potencial na ideia. Senhor William Roth, não é mesmo?
- Sim, é um prazer conhecê-lo, meu bom homem. - disse Roth, estendendo a mão. Uma beliscada de prazer lhe cruzou o peito enquanto o populacho murmurava "ohs" e "ahs"
nesse encontro de deuses.
Spence terminou o drinque e entregou a taça vazia para sua companheira de belas curvas. - Então, o que acha da minha análise sobre Gatsby?
- Reluzente. E concordo que o livro de Wolfe é absolutamente fútil. - Pelo canto do olho, Roth observou as curvas da menina enquanto ela levava a taça ao bar.
Spence deixou a audiência de lado e virou-se de frente para Roth. O fotógrafo empurrou Spence até um canto da sala. As pessoas entenderam a deixa e dispersaram-se
em pequenos grupos, alguns fumando, outros em busca de mais drinques.
- O que o traz ao Solar Korban, Sr. Roth?
Roth balançou seu uísque na mão. - Negócios, senhor. Sempre negócios comigo.
- Mas isso é uma infelicidade. É exatamente o que o mundo precisa, outra batelada de quatrocentos negativos desse lugar. Ou você foi contratado para algumas fotos
publicitárias?
- Estou trabalhando de forma autônoma.
- Hmm. Estou trabalhando, também, acredite se quiser.
Roth sabia que Spence não tinha escrito um romance em anos. Ele havia trilhado seu caminho vociferando sua opinião sobre peças e ensaios e escrito uma introdução
mordaz à Coletânea Contemporânea de Poesias Sulistas, que provavelmente levou às lágrimas alguns dos poetas que contribuíram para a antologia. Os críticos desistiram
dele. Ele era como uma baleia encalhada - divertido de cutucar enquanto algum sangue pudesse ser derramado, mas algo a ser evitado depois de se tornar um cadáver
inchado e fedorento.
- Acho que esse lugar seria bastante inspirador para um homem do seu gênio. - disse Roth, mal disfarçando o sarcasmo.
Spence não mordeu a isca. Ele provavelmente lera muitos dos comunicados de imprensa de seu editor, nos quais se prometia uma nova obra prima de sua parte. - Esse
é o trabalho, Sr. Roth. Essa é a obra que merecerá o Prêmio Nobel de literatura. Já é tempo de um americano trazer para casa um troféu desses. Nada pessoal, entenda
bem.
Roth virou uma palma para cima em submissão. O sotaque britânico havia enganado mesmo Spence, um homem que havia treinado para observar o comportamento humano. A
namorada de Spence trouxe mais um drinque, o colocou obedientemente em suas mãos e voltou a sumir em sua sombra.
Roth sorriu para ela e então começou a laboriosa tarefa de conquistar a confiança de Spence.
CAPÍTULO 12
Uma caçadora de duendes idiota.
Anna deixou o facho de luz amarelada da lanterna guiá-la como se não tivesse vontade própria. Ela se viu andando na direção de uma trilha na floresta, para dentro
dos caminhos estreitos e gastos por debaixo dos louros. As folhas enceradas esfregavam-se no rosto e nas mãos dela. Grilos e gafanhotos lançavam seus coros dentro
da obscuridade da floresta negra.
Você segue e segue e nunca alcança. Você estende a mão e eles dançam para longe. Você corre e eles correm mais rápido. Você olha para dentro do escuro e não vê nada
além de escuridão.
Fantasmas jogavam de acordo com as próprias regras. Anna tinha a intuição de que eles não gostavam de descortinar segredos e não davam explicações. Os maiores segredos
da vida deviam ser insignificantes para aqueles que não mais viviam. Sem dúvida, todos os espíritos recebiam as instruções necessárias como um presente de boas-vindas
após a morte. Mas, talvez, os mortos precisassem de diversão. A eternidade certamente fica entediante depois de um tempo.
Anna não estava preocupada em se perder na floresta, mesmo que as luzes do Solar Korban tivessem desaparecido de vista. Depois de deixar a casa, ela parou no celeiro
e achou quatro cavalos em suas baias. Massageou seus pescoços e acarinhou os pelos duros sobre os focinhos.
Sentia-se confortada com o cheiro do animal. O aroma de capim e esterco trazia lembranças de uma de suas famílias adotivas, que mantinha uma fazenda na Virgínia
do Oeste. Anna havia se tornado mulher naquele verão. Sua primeira experiência sexual foi com um menino bonito, mas pouco inteligente, que vinha coletar os ovos
dia sim, dia não. Ela também passara horas no cemitério local, sentada entre as lápides ilegíveis e decadentes, pensando sobre as pessoas debaixo da terra e a parte
deles que poderia ter sobrevivido ao aperto de morte da terra e do apodrecimento.
Ela ainda pensava sobre isso, a curiosidade a enviando para a antropologia na Universidade de Duke e parapsicologia no Centro de Pesquisas Rhino e, agora, para dentro
da floresta. Estradas que nunca acabavam, uma busca que nunca encontrou nada. A lua e a luz das estrelas formavam vagamente o relevo da paisagem. Ela seguiu a crista
da elevação até o ponto que o terreno descia rapidamente. As pedras brilhavam como dentes podres na luz pálida. Além do campo de pedras encontrava-se a garganta
do vale escuro, pintado de prata pela geada.
As costelas e reentrâncias das montanhas de Blue Ridge rolavam em direção ao horizonte, o distante piscar da cidade de Black Rock encravada entre eles como pequenas
gemas azuis e laranja. No céu, uma pequena latinha voadora de humanidade, alguns passageiros provavelmente com receio de um acidente, alguns comendo nozes envelhecidas
e outros ansiando um cigarro. A maioria com pensamentos em parentes, esposas e amantes recentemente visitados ou esperando-os nos terminais do aeroporto à frente.
Todos com lugares para ir, coisas para procurar. Pessoas a quem pertencer. Esperanças, sonhos, futuros. Ela pensou naquele diálogo de Shirley Jackson "As jornadas
se encerram nos encontros dos amantes".
É, claro. Jornadas acabam em morte e amantes nunca se encontram.
Ela deixou as luzes que começaram a ficar borradas em seus olhos para trás e deixou de lado a autopiedade. Tinha a floresta para explorar. E sentiu uma pontada nas
entranhas, um instinto que ela aprendera a confiar, mesmo que Stephen não pudesse provar que era real. Existiam mortos por entre aquelas árvores e colinas.
Ela algumas vezes se perguntava se o câncer era uma progressão daquele instinto. Como se a morte fosse seu estado natural e a vida apenas uma interrupção a ser brevemente
suportada. Era como se, por direito, ela pertencesse aos mortos e sua percepção deles ficava cada vez mais forte quanto mais próxima de ser um deles ela ficava.
Era um pensamento mórbido. Ainda assim, ela não podia ignorar o simbolismo jungiano no ato de dar as costas àquelas tênues luzes da civilização para entrar na floresta
sozinha.
Na busca de si própria.
E se FOSSE possível encontrar outro espírito, tocá-lo, compartilhar a consciência das almas, criar alguma que tivesse uma vida além dos vivos e dos mortos? Ou tal
tipo de desejo é apenas mais uma grotesca forma de vaidade?
Ela observou o cone de luz da lanterna conforme ele balançou à sua frente na trilha. Quanto mais velha ficava, e mais próxima da morte e intensa na busca de si mesma,
mais solitária ela ficava. E se havia algo que a assustava, que poderia assustar alguém que já havia visto fantasmas, era o pensamento de que qualquer alma, consciência
ou força de vida que continuasse após a morte o faria só, isolada e perdida para sempre.
Anna se deu conta de que estava a cerca de um quilômetro e meio do solar agora e estava começando a ficar cansada. Essa era uma das coisas que ela mais odiava em
sua doença. Sua força era lentamente drenada, escorrendo dessa vida para a outra.
Ela parou e brincou com a lanterna ao longo da elevação à sua frente. Ruídos noturno s rastejavam por entre as copas das árvores, a agitação dos animais noturno
s e o incansável vento da montanha. Uma fragrância de pinheiro e a umidade fria do anoitecer a revigoraram. A trilha havia cortado várias outras maiores que ela
havia cruzado antes com outra estrada para carroças. Seguiu seu instinto, aquele que a dirigira pela noite como a lua comanda as marés.
A trilha terminava sob um bosque de bálsamos e então se abria para um campo de grama densa. Uma cabana dominava a clareira, frágil e oscilante sobre os alicerces
de pedras. Uma chaminé aos pedaços, cinza à luz fraca das estrelas, penetrava no telhado de zinco inclinado. Os vidros das janelas eram como olhos escuros procurando
companhia.
Era para encontrar isso que Anna tinha vindo. Ela caminhou pela pastagem, as barras das calças molhadas pelo orvalho congelado na grama. Uma grande pedra redonda
estava ao pé da entrada, pálida como a barriga de um peixe. Ela pisou na pedra e olhou para dentro da cabana escura.
A cabana a desejava.
Talvez não a casa, mas o que quer que tivesse vivido e morrido ali. Alguma coisa havia aprisionado uma alma humana àquele lugar, um evento terrível o suficiente
para deixar uma marca psíquica, assim como a luz queimava um filme fotográfico.
O ar vibrava com uma música inaudível. Os pequenos pelos na nuca de Anna se ouriçaram como pequenas agulhas magnéticas. A despeito do frio da noite, suas axilas
ficaram molhadas de suor. Um medo preternatural correu por suas veias, ameaçando sobrepujar a curiosidade.
Algo flutuou além da porta, tênue e frágil como que ainda não familiarizado com a própria substância.
Ou talvez fosse apenas o vento soprando por alguma fenda da parede de tábuas sobrepostas. Anna apontou a lanterna para um buraco na madeira, logo acima da maçaneta.
Um tremeluzir de uma sombra branca preencheu o buraco e depois se dissolveu.
Ela colocou o pé sobre a varanda. Uma forma, um rosto se imprimiu nos grãos da madeira. Uma pequena voz sussurrou com o vento, suave e oca, como uma flauta distante:
- Estive esperando.
Anna conteve o impulso de fugir. Apesar de acreditar em fantasmas, a estranheza súbita de encontrar um sempre a atingia como um balde de água fria. E esse... esse
havia falado.
Anna afastou-se, a lanterna fixa na porta.
- Não se vá. - disse a voz fria e mouca. Os músculos dela congelaram-se. Ela lutou contra o próprio corpo enquanto o coração trovejava nos ouvidos. A voz voltou,
mais baixa, implorando: - Por favor.
Era a voz de uma criança. O medo dela misturou-se com simpatia, ambos fundindo-se na necessidade de compreender. Os fantasmas ficavam jovens para sempre?
Anna voltou a subir na pedra e depois na varanda. As tábuas rangeram sob seus pés. Algo adejou sob o beiral e então uniu-se ao céu noturno . Um morcego.
- O que você quer? - disse Anna, tentando manter a voz firme. A lanterna iluminou a porta, mostrando apenas madeira e metal enferrujado.
- Você é ela?
- Ela?
- Ajude-me! - veio novamente a voz implorante, enfraquecendo, quase perdida. - Ajude-nos! Anna levantou a tramela de ferro e abriu a porta, jogando a luz da lanterna
no interior da casa.
Ela vislumbrou uma pequena figura, um rosto jovem enquadrado por longos cachos, algumas dobras de tecido fluindo por baixo dos olhos suplicantes. A visão lentamente
se desfazendo.
- Fique! - disse Anna, tanto um pedido quanto uma ordem desesperada.
Mas a forma desvaneceu, os lábios fantasmagóricos entreabertos como se quisesse falar, sobrando por fim somente os olhos, flutuando, flutuando, tornando-se parte
de uma sombra menor e, então, nada. Os olhos haviam sido impressos na memória de Anna. Nunca os esqueceria. Os olhos pareciam - assombrados.
- Olá? - chamou Anna. O chamado morreu no vazio da cabana. Ela moveu a luz pelo cômodo. Algumas prateleiras ficavam em um canto, uma viga grosseira por cima da lareira.
Uma longa mesa marcava o que teria sido a cozinha. Havia uma fila de figuras humanas toscamente entalhadas sobre a mesa, os membros nodosos em ângulos grotescos.
Anna tocou em uma das figuras. Tinha cerca de trinta centímetros de altura, sem pintura ou verniz, a madeira escura e seca pelo tempo. O corpo havia sido feito de
uma raiz, os braços e pernas de vinhas torcidas. A cabeça era uma fruta enrugada, marrom como maçã seca, os olhos e a boca em um sorriso deformado.
Pareciam algum tipo de artesanato, algo que um antigo morador escocês teria entalhado durante os longos meses de inverno para distrair seus filhos. Mas as figuras
estavam arranjadas sobre a mesa como se fossem relíquias religiosas. Uma estava envolta em casca de bétula para simular um vestido. Outra possuía uma guirlanda de
flores.
Anna apontou a luz para a estátua encurvada mais próxima. O orifício da boca possuía uma substância cinza parecida com papel. Arranhou-a com a ponta da unha e a
substância caiu sobre a mesa. Anna imediatamente identificou o objeto pelas marcas mosqueadas e textura geométrica.
Pele de cobra.
Anna caminhou para a parte posterior da mesa, olhando na mesma direção que as figuras. Uma velha lareira estava ao outro lado da sala, as pedras escurecidas pela
fumaça de dez mil fogos. O monte de cinzas não deixava evidência de quando a lareira havia sido usada pela última vez. Os cantos da sala estavam grossos com teias
de aranha, que ondulavam diafanamente ao sabor da brisa que entrava por entre as frestas dos troncos.
A metade do teto estava coberta com um sótão. Anna subiu a escada frágil, mas viu apenas poeira e algumas folhas, marcando o ninho de um roedor.
Estava verificando a cozinha primitiva quando ouviu um ruído do lado de fora. O luar na janela foi rapidamente interrompido. Será que o fantasma havia retornado?
Anna correu para fora, segurando a lanterna na altura do peito. Uma figura humana curvada cruzou o campo, na direção da floresta atrás da cabana. Um xale puído ondulava
às suas costas, sob o vento noturno que havia aumentado.
- Espere! - Anna deu um passo e tropeçou em uma madeira solta, caindo da varanda sobre o pulso, no chão de terra batida. Um choque elétrico de dor lhe correu braço
acima. No tempo que levou para ficar de pé e pegar a lanterna, a pessoa ou coisa havia desaparecido dentro das árvores negras.
Anna a seguiu. Quando atingiu a borda da floresta, esperou e aguçou os ouvidos. A noite continha centenas de sons: o vento gemendo pelos ramos, galhos rangendo,
folhas roçando contra cascas, animais perturbados em seus sonos, aves escondidas chilreando. Qualquer tentativa de ouvir passadas era inútil.
Deve ter sido humano. Anna não sentia nenhuma energia etérea para seguir. Ela se perguntou se a pessoa com o xale havia visto o fantasma. Ou será que era a pessoa
que arranjava as figuras em cima da mesa naquela paródia de ritual? Será que ela realmente havia visto um fantasma ou será que foi vítima de um truque elaborado?
Será que estava assim tão desesperada para achar uma prova de vida após a morte que sua mente estava lhe pregando peças?
Esfregou o pulso por alguns instantes. Ninguém, nem mesmo Anna, sabia de seu destino naquela noite. O fantasma havia sido real, estava certa disso. Os bonecos provavelmente
eram o trabalho de algum hóspede do solar e foram deixados para trás como um presente ou tributo. Ou talvez apenas uma tolice de algum dos trabalhadores locais.
Ela se virou e seguiu o facho de luz da lanterna, voltando ao Solar Korban, incomodada com a estranha sensação de estar voltando para casa.
Deu-se conta de por que havia vindo ao Solar Korban. Foi um equívoco achar que havia sido sua escolha, que precisava fazer contato com as próprias razões. De todos
os lugares supostamente assombrados nos quais poderia passar seus últimos dias, ela não havia simplesmente escolhido esse no meio das montanhas. Não havia sonhado
várias vezes com esse lugar pelo fato de ter guardado no inconsciente a leitura de um velho jornal paranormal.
Não, ela havia sido chamada.
O estalido de um graveto quebrando lhe chamou à realidade. Algo grande havia emergido das sombras da floresta. Anna levantou a lanterna, pronta para usar como um
bastão, se necessário. O facho de luz cruzou uma figura negra e lúgubre.
- Você! - disse ela.
Mason levantou as mãos como se quisesse se desviar de sua ira. - Eu a vi!
- O fantasma?
- Que fantasma? Vi uma velha espiando você e, então, ela correu pela floresta. Tentei segui-la, mas ela conhece essas velhas trilhas muito melhor que eu.
- Como ousa me seguir? Que tipo de pessoa é você, algum tipo de voyeur pervertido?
- Não, eu apenas... Bem, a festa da Srta. Mamie estava me deixando a ponto de morrer de tédio e não pude deixar de ficar curioso, depois de toda aquela conversa
sobre fantasmas. Quando a vi deixando o solar -
- Seu idiota arrogante! - Ela o empurrou para o lado e seguiu bufando pela trilha, não se importando de deixá-lo na escuridão. Ela apenas desejava que os fantasmas
fossem realmente malignos, assim um deles poderia arrancar-lhe a cabeça idiota. Com um pouco de sorte, ele se perderia nas trilhas e teria que passar a noite na
floresta, acordando enregelado, machucado e infeliz. Ela come<;:ou a correr e disse para si mesma que era o vento, nao a raiva ou a vergonha, que enchia seus olhos
de lagrimas.
CAPÍTULO 13
A Srta. Mamie retirou as pérolas e as colocou na cômoda, junto com as fitas de veludo púrpura e garrafas de água de rosas. Olhou-se no espelho, trazendo a lamparina
mais para perto de forma a poder verificar a pele. Qualquer um que olhasse para suas pequenas rugas à volta da boca e fios prateados nas têmporas pensaria que ela
estava próxima dos cinquenta anos. Nada mal, considerando que faria cento e vinte.
Ephram havia prometido mantê-la jovem, e ele sempre cumpria suas promessas. Era um perfeito cavalheiro. Isso fora o que primeiro a atraíra nele, o porquê de ela
ter se apaixonado. Sua possessão era completa e perfeita.
Ela abriu o medalhão do colar. Em seu interior, estava o rosto jovem de Ephram em sépia, os traços definidos, o leve ângulo do nariz, barba e costeletas espessas
sobre o colarinho rígido. Ah, aqueles olhos negros, aqueles olhos frios e escaldantes que haviam tomado seu coração e aprisionado sua alma, que haviam incendiado
seu desejo. Ele sempre teve poder, mesmo quando era mortal.
Mas agora, agora...
- Agora estamos prontos. - disse ele do espelho - Como prometi.
Seu coração acelerou e as palmas das mãos ficaram úmidas. Colocou a mão sobre a superfície suave do espelho. O rosto de Ephram brilhou no reflexo da lareira. Uma
fiada de maçãs descascadas estava pendurada em um barbante, secando ao fogo, esculpidas na forma de cabeças, com orelhas e narizes protuberantes. Os olhos e bocas
brilhavam como cicatrizes. As faces tomariam forma enquanto secavam, adquirindo suas feições únicas.
- Você gosta delas? - perguntou ela.
- Você escolheu bem. - A voz de Ephram era baixa e sibilante.
- Elas o alimentarão, com o tempo. - A Srta. Mamie olhou para os olhos sedutores e sentiu um jorro de calor. Seu amor nunca havia falhado.
Os olhos de seu marido morto brilharam numa tempestade de vermelho e dourado. - Mesmo agora, seus sonhos me dão força. E a lua azul está vindo novamente.
- Assim como na noite em que você morreu.
- Por favor, meu amor. Você sabe que não aprecio essa palavra. Ela soa tão... permanente.
- E Sylvia? - disse a Srta. Mamie, baixando os olhos e antecipando sua raiva.
- O que tem ela? Ela é apenas uma velha mulher-bruxa com um saco de penas, ervas e ossos velhos. Seu poder não é nada mais que o patético poder da sugestão. Mas
o meu! - sua voz aumentou, trovejante, até que ela receou que os hóspedes pudessem ouvi-lo. - O meu é o poder que dá forma aos dois lados.
- Tantos anos. - A Srta. Mamie correu as mãos pelas bordas do gorro de dormir. - Não sei se posso aguentar muito mais.
- Paciência, meu amor. Esses são especiais. Esses são os verdadeiros construtores. Eles me esculpem, me escrevem, me pintam para a vida. Suas mãos me dão forma,
suas mentes me dão substância. Eles me constroem do mesmo jeito que você os constrói. E em breve, Margaret... -
Ephram estendeu a mão por entre as névoas que circulavam dentro do espelho e encostou a palma da mão no vidro. A Srta. Mamie colocou os dedos no espelho, ansiando
a cruel eletricidade da excitação de seu toque. Seu marido morto sorriu.
- Em breve, todos aqueles que sacrificamos encontrarão seus lares, suas verdadeiras vidas eternas, em mim. Terei o que qualquer mestre e senhor merecem.
- O que qualquer mestre e senhor merecem. - repetiu ela num sussurro. Então as névoas se desfizeram. Ephram colapsou sob a forma de uma fumaça etérea e o espelho
ficou novamente claro.
Ela estudou o próprio rosto. Era uma mulher de sorte. Suas esperanças e sonhos estavam prestes a renascer. Logo Ephram poderia escapar do espelho, das paredes, da
casa. Logo ela poderia novamente tocar em sua carne.
Ela foi para a cama, solitária em sua luxúria. Paciência, ela disse a si mesma. Ephram havia prometido, e Ephram sempre cumpria suas promessas.
CAPÍTULO 14
- Priciso de uma coisa mais forti.
- Ocê não divia aparecer aqui durante o dia, Ransom. E se ôce for visto?
- Tô cum medo. Num vou aparecê aqui no escuro. Já é ruim se ocê pode vê, e tá ficando mais ruim.
- Ocê foi seguido?
- Não pelos hóspede. A Srta. Mamie falô que não é permitido í pras banda de Beechy Gap. Mas os ôtro - Ransom baixou o tom de voz e baixou a cabeça como se temesse
que as paredes nodosas da cabana estivessem ouvindo. - ôce sabe, eles - eles tão agora pra todo lugar.
Sylvia Hartley se curvou e cuspiu na lareira. O líquido chiou e estalou, evaporando por fim contra a lenha em chamas. Ela correu as costas da mão coriácea contra
a boca murcha e olhou para Ransom, vislumbrando as décadas tão negras quanto as pedras debaixo da grade da lareira.
- Deus sabe que tá ficando mais ruim. - disse ela finalmente concordando. Ela puxou o xale desgastado à volta do pescoço.
- O último feitiço funcionô bem por um tempo. Eles ficaram tudo assustado. Mas agora, eles ficam só rindo de mim quando faço meus trabáio.
Sylvia pensou que Ransom deveria ter mais fé. Esse era o segredo: fé. Todos os encantamentos do mundo não valiam absolutamente nada se você não acreditasse. Ransom
era cristão por nascimento e não havia problemas com isso. Mas quando você descia até as raízes das coisas, algumas delas eram bem mais antigas e profundas que religião.
Era uma pena o que acontecera a George Lawson. George era alguém de fora, não nascera nas montanhas. Ele não sabia com o que estava lidando. Com os encantamentos
corretos, talvez tivesse se desviado dos pequenos jogos de Ephram.
Mas talvez não. Ransom estava certo. Eles estavam ficando mais fortes. Ephram estava ficando mais forte. E agora George estava do lado deles também, junto com todas
as outras pessoas que Ephram havia pego nos últimos cem anos.
- Ocê se importa de virá as coisa ali no fogão? - disse ela.
Ransom cruzou a cabana na direção do pequeno fogão azul. Virou as tortas na frigideira, o cheiro de milho sapecado enchendo a cozinha.
- Eles não fica mais invisívi. - disse ele, de costas para ela. - Custumava sê só o Korban e ocê via ele só na Casa Grande, aqui e acolá. Mas os ôtro, eles tem andado.
- A lua azul é a de otubro. Hora de fazê magia. Magia certa ô magia errada.
- Quê cê qué fazê? - a voz de Ransom tremeu.
Ela não o culpava por estar com medo. Ela também estava, mas não ousava transparecê-lo. - Primero vô come um pouco. Dispois acho que vô vê o que o gato trôxe pra
mim.
Ransom lhe estendeu um prato feito de lata martelada. Ele havia colocado uma fatia de porco frito junto com a torta de frigideira. Banha liquefeita escorria no fundo
do prato e pingava por um pequeno buraco do metal. Sylvia colocou o prato no braço da cadeira de balanço de forma que a banha não manchasse sua roupa.
- São as pessoa, num é? - perguntou Ransom, o fogo tornando seus olhos brilhantes. - As pessoa que tão na Casa Grande.
Sylvia nada disse, mordendo o porco com os pedaços de dentes que lhe restavam. Havia um pedaço generoso de carne no meio da gordura. Ransom sempre fazia com que
ela ganhasse um dos melhores pedaços quando eles matavam e defumavam um porco no solar. Ela se deu conta de que comia quase tão bem quanto os hóspedes.
Ela engoliu a carne e tomou um copo de chá de sassafrás. Por fim, falou, olhando para dentro do fogo, para as chamas amarelas, laranjas e azuis. - São as pessoa.
E a moça. Aquela cum a Visão.
Ainda que sua voz fosse suave, as palavras eram densas como um trovão no ar úmido da cabana. Toda a floresta havia se aquietado, como se as árvores estivessem se
inclinando para ouvir a conversa. Ela tinha certeza de que um pássaro estivera cantando uma alegre canção de nascer do sol alguns minutos atrás.
- Primero ele pegô os morto, agora qué os vivo também. - disse Ransom -Tem que existi um trabáio que ocê possa fazê e usá contra ele.
- Ocê sisquece. Nóis tem que jogá pelas regra. Mas Ephram Korban, ele não joga por regra ninhuma. Nem dos ômi, nem di Deus, nem por ninhuma das minha magia com raiz,
pena de gavião e cerveja.
Ransom tocou no bolso de seu avental.
- Mas continua no caminho certo da crença, filho. - disse ela - As cinza de uma oração são mais poderosa que as chama do inferno.
- Mió eu voltá. Tenho que cuidá dos bicho. E a Srta. Mamie tem ficado de olho ni mim.
- Então vai.
- Ocê vai ficá bem?
- Fiquei bem esse tempo todo, num foi? Mas é bom a gente ficá de ôio um no ôtro.
Ransom concordou com a cabeça. Seu rosto estava nas sombras, além do alcance da luz do fogo, e ela não foi capaz de ver sua expressão. O sol inundou o cômodo quando
ele abriu a porta e saiu. Ela franziu o rosto à invasão da luz e esperou o som da tramela de madeira descendo. Então voltou o olhar para o fogo e garfou outro naco
de bolo de milho.
O fogo...
Sylvia olhou para as mãos enrugadas.
Se pelo menos ela tivesse sentido dor. Os ferimentos sem dor eram os que saravam mais lentamente.
O prato de lata estava vazio em seu colo. Ela estremeceu e cuspiu nas cinzas. Ela não estava certa de qual dor era maior, o carinho de Ephram ou ele a ter deixado.
Ela sabia que Ephram voltaria. Mas até aí, ele nunca havia realmente partido. Ele não havia morrido quando ela o empurrou da balaustrada do telhado. Havia apenas
se fundido com a casa. Porque ela o havia matado em uma lua azul de outubro.
Como ele havia prometido, madeiras e pedras tinham se transformado em sua carne, a fumaça em sua respiração, os espelhos em seus olhos e as sombras no sangue inquieto
de seu espírito. E seu coração queimava nas chamas da eternidade.
Ela estremeceu novamente no calor do dia e pegou os fósforos.
CAPÍTULO 15
A casa projetava uma sobra sobre o gramado no nascer do sol. Mason estava cansado, o rosto marcado pelos devaneios noturnos. Havia dormido mal, a mente invadida
por imagens febris de Anna, sua mãe, Ephram Korban, Lilith e uma dúzia de outros rostos perdidos em meio a brumas. Ele estremeceu enquanto caminhava por detrás do
solar, seguindo uma trilha desgastada por entre os anexos. Subiu por degraus feitos de dormentes de trilhos de trem até um terraço junto à floresta.
A porta no anexo menor estava aberta e um senhor com macacão emergiu das sombras. Mason acenou, enquanto o homem esfregava as mãos, a respiração condensando no ar
frio, como uma fumaça branca.
- Brrr! - disse ele, cerrando os dentes. - Tão frio aqui quanto o coração de uma mulher.
- O quê? - perguntou Mason. Ele havia suposto que o anexo era um galpão de armazenagem ou algo no estilo. O galpão, como o solar, era construído com toras rejuntadas
com cimento amarelado. Um odor de umidade e cedro saía de dentro dele.
- Refrigeração. - disse o homem. Quando abriu a boca para se lamentar, Mason viu que ele tinha dentes restantes apenas para jogar um rápido jogo de moinho. Seu macacão
ameaçava engoli-lo, as costas curvadas pelos anos de trabalho. O homem jogou a cabeça na direção da porta aberta e entrou no galpão, dizendo - Vem, dá uma olhada.
Mason o seguiu. O ar frio flutuou sobre seu rosto. Um monte de feno cobria o centro do chão de terra batida. O velho inclinou-se e removeu um pouco do feno, expondo
faixas prateadas brilhantes.
- Gelo. - disse o homem - Enterramo ele dentro da serragem e ele dura o verão todo. Ocê não achô que ele durasse tanto, né?
- Fiquei imaginando como vocês mantinham a comida fria sem eletricidade. - disse Mason - E a segurança sanitária e os inspetores de saúde?
- Tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban. Duas coisa diferente.
O velho apontou um caminho que subia a oeste, coberto por álamos. Trilhas de carroça cruzavam o campo, curvando-se sobre a colina como duas cobras vermelhas. - Tem
uma lagoinha lá pra cima.
- disse ele - Uma fonte nasce no meio das pedra. A cerca impede os bicho de bebê a água, modi que é limpa. Quando o inverno tá frio de lascar a gente sobe lá e corta
uns bloco grande de gelo.
- Parece um trabalho duro. Se eu entendi bem, maquinário pesado não é permitido por aqui.
- Ah, nóis tem máquina. Uma carroça é uma máquina. Um cavalo também. E craro que tem nóis. Mason voltou para o sol e o homem fechou a porta atrás de si. Sua mão
nodosa remexeu no bolso da frente do macacão como se estivesse procurando um cigarro. Ele puxou algo parecido com um retalho de pano cheio de nós, com uma pena presa
na ponta. Ele balançou o pano em um formato de cruz na frente da porta da geladeira. O movimento denotava a fluidez que advém da prática, parecendo natural, a despeito
da estranheza.
Mason esperava que o homem falasse algo sobre esse ritual, mas o pano com nós foi rapidamente guardado. - O que há no outro galpão? - Mason perguntou depois de um
tempo.
- Ali é a despensa. Eles põe as coisa ali que não precisa de frio, abóbora, pepino e mio. Uma fonti de água passa por ali, é encanada e levada pro solar.
Mason olhou para onde o homem apontava e viu um filete de água escorrendo por uma parede de terra preta. Sarças emaranhavam-se nas margens do arroio, as vinhas avermelhadas
curvavam-se à morte outonal. - Vocês coletam as frutas também?
- Sim sinhô, e as maçã também. Tem muita maçã por aqui. Ocê vai comê alguma coisa feita de maçã todas as veiz. Torta, panqueca, maçã frita, assada, com canela, de
todo jeito. Nóis tem uma horta também, e... -
- Ransom!
Ambos se viraram na direção da voz aguda. A Srta. Mamie estava na sacada, inclinando-se sobre o parapeito.
- Sim, Srta. Mamie. - respondeu. Qualquer sinal de animação parecia ter sido drenado dele e Mason teve a nítida impressão de que o homem estava prestes a desaparecer
dentro do macacão.
- Ransom, você sabe que não deve importunar os hóspedes. - disse a Srta. Mamie em um tom alto e artificialmente alegre.
- Eu tava só- Ransom tentou brevemente, mas depois pareceu pensar melhor. Ele estudou cuidadosamente as pontas de suas botas gastas. O sol brilhou sobre os fios
do cabelo prateado penteados de modo a cobrir a cabeça calva. - Sim, Srta. Mamie.
A anfitriã permaneceu triunfante no parapeito da sacada e sua atenção dirigiu-se para Mason. - O senhor dormiu bem, Sr. Jackson?
- Sim, senhora. - mentiu ele, olhando rapidamente para Ransom. O homem parecia ter levado uma surra com vara de marmelo. - Hum... obrigado por me hospedar na suíte
mestre. É muito confortável.
- Excelente. - Ela juntou as mãos, as pérolas rolando sobre o peito. - Ephram Korban teria ficado encantado. Você conhece nosso lema: ‘o isolamento grandioso do
Solar Korban incendiará a imaginação e estimulará o espírito criativo’.
- Li o panfleto, - disse Mason - e já estou com algumas ideias, mas talvez precise de alguma ajuda para começar. Seria possível o Ransom aqui me ajudar a coletar
um pouco de boa madeira para esculpir?
A Srta. Mamie franziu o cenho e suas sobrancelhas ficaram retas. O rosto adquiriu o mesmo ar que tinha quando observava os retratos de Korban. Mason deu-se conta
de que havia desafiado sua autoridade, ainda que apenas de leve. Subitamente, sentiu-se mal por colocar Ransom sob o olhar dela. A Srta. Mamie cruzou os braços,
como uma professora decidindo qual castigo dar a um aluno desobediente.
Após alguns momentos, falou: - É claro que não há problemas. Logo que ele cumprir com suas tarefas. Você acabou suas tarefas, Ransom?
Ransom manteve os olhos abaixados. - Sim, sinhora. Estou livre até o almoço. Depois tenho que cuidar da criação e da produção.
A Srta. Mamie sorriu e sua voz adquiriu novamente o tom jovial. - Excelente. E é melhor aquela escultura ficar perfeita, Sr. Jackson. Estamos contando com você.
- Estou bem animado e inspirado. - disse Ransom - Por sinal, existe algum lugar no qual possa trabalhar sem incomodar ninguém? Algumas vezes, trabalho até tarde
e não há nenhum jeito de entalhar madeira sem fazer um barulho infernal.
- Existe um estúdio no porão. Ordenarei a Lilith para mostrá-lo a você após o almoço.
- Não há necessidade de perturbá-la. Tenho certeza de que ela já está atarefada demais com os outros hóspedes. Por que não deixa o Ransom me mostrar o local?
Uma sombra passou pelo rosto da Srta. Mamie e sua voz ficou subitamente fria. - Ransom não tem permissão para entrar no estúdio.
Mason deu uma olhadela para Ransom e viu o canto de sua boca estremecer. Meu Deus. Ele está morrendo de medo dela!
A Srta. Mamie deu-lhes as costas e voltou para o solar, os saltos estalando pela sacada de madeira. A sineta da porta cantou enquanto entrava. Ransom expirou como
se estivesse segurando o fôlego nos últimos minutos.
- Que chefe maravilhosa você tem. - disse Mason quando Ransom finalmente o olhou nos olhos.
- Cuidado. - disse ele pelo canto da boca. - Ela provavelmente tá olhando de uma das janela.
- Você está de brincadeira!
- Só me segue. - sussurrou ele e, então, disse em voz alta. - O barracão é logo dispois daquelas árvore.
Depois que eles andaram por uma trilha lateral até que a casa estivesse fora de vista, Mason perguntou: - Ela é sempre desse jeito?
A confiança de Ransom aumentou conforme se afastavam da casa. - Ah, ela não falou por mal. É o jeito dela, só isso. Tudo tem que ser desse jeito. E ela se preocupa
demais.
- Há quanto tempo você trabalha aqui, Ransom? Você não se importa que eu o chame de Ransom, não é?
- Respeito pelos mais velho. Gosto disso, Sr. Jackson.
- Pode me chamar de Mason, pois espero que possamos ficar amigos.
Ransom olhou para trás pela trilha. - Só do lado de fora da casa, filho. Só do lado de fora.
- Entendi.
- De todo jeito, ocê tava perguntando quanto tempo faiz qui eu trabáio aqui e a resposta é "desdi sempre". Nasci aqui, numa cabana lá pras banda daquelas árvore.
Lugar chamado Beechy Gap. Mesma cabana que meu vô nasceu, e meu pai, também. Cabana ainda de pé.
- Todos trabalharam por aqui?
- É. O vô tinha umas terra na parte norte, quando o Korban começô a compra as terra tudo aqui. O vô vendeu e virô impregado como parte do acordo. Acho que nóis,
os Streaters, sempre tivemo ligação com a terra, de um jeito ô de ôtro. A história da família é que meu tatara-sei-la-o-quê avô Jeremiah Streater foi um dos primero
que veio pra essas banda. Veio junto com o Daniel Boone, dizem por aí.
- Daniel Boone viveu aqui, também?
- Olha, ele tentô. Tinha uma cabana de caça perto do pé da montanha. Mas eles tomaram suas terra. Eles sempre toma suas terra, sabe?
Ransom não soava amargo. Havia dito isso como se fosse uma verdade universal, algo com o qual você podia contar, não importasse o quê. O sol nasce, o galo canta,
o orvalho seca, eles lhe tomam as terras.
- O barracão é acolá. - disse Ransom, dirigindo-se para uma clareira ladeada por álamos. Continuou a história, o ritmo das palavras cadenciado pelos passos das pernas
magras.
- O vô foi trabaiá direto com o Korban, limpando o pomar e abrindo as estrada. Ele e dois tios meu. Eles alisaram a terra na enxada, socaram cum barras de ferro
e parelha de mulas. O Korban era maluco com madeira para o fogo, desdi o começo. Fez eles serrá as árvores com umas serra velha e empilhar a lenha na beira da estrada.
- E o Korban tinha a paisage toda planejada. O povo achava ele meio ruim da cabeça, transformando essa montanha velha da peste num lugar parecendo um castelo. Mas
o dinhero era verdinho. O Korban pagava um dólar por dia, um dinheirão que ninguém nunca tinha ouvido falá naquela época. Ele era cheio do dinheiro das fábrica dele.
- Eu trabalhei nas tecelage dele. - disse Mason - Mas não dá pra dizer que fui alguém importante nelas. Eu só trocava as bobina por uns trocado.
- Não é pra se envergonhá de trabalho honesto, filho. - Ransom parou e olhou na direção do canto de um corvo. O cheiro de folhas úmidas e floresta apodrecendo preencheu
o nariz de Mason. Notou que respirava mais pesado que o velho, com quase três vezes a sua idade. Ransom começou a caminhar novamente e continuou a história.
- Quando terminaram a estrada, foram trabaiá na ponte. Nos velhos tempo, o único jeito de chegá aqui era um caminho que subia pela parede sul dos dispenhadero. Você
viu aquela queda na subida pra cá.
- Vi, sim. Lá do fundo. - O estômago de Mason começou a se contorcer com a lembrança da majestade e terror da visão. Ele ficou envergonhado com a respiração curta
e tentou escondê-la.
- Aquela trilha é como os primero pionero, Boone, Jeremiah e mais um punhado deles, chegaram aqui em cima. Dizem que os índio Cherokee e Catawba usaram ela antes,
caçando aqui em cima. Os branco trouxeram a criação pra cá, lutando e empurrando os ôtros bicho nos precipício. Mas o Korban queria uma ponte. E o que o Korban queria,
o Korban sempre conseguia.
- Já me dei conta disso. - Uma construção robusta ficava à frente, enfiada entre os ramos baixos de um pinheiro. O telhado estava abarrotado de espículas de pinheiro.
Ransom conduziu Mason até ele.
- Era umas oito famílias que dividiam o topo da montanha. O Korban comprou tudo e colocou eles pra trabaiá, construindo a casa grande e juntando pedra pra fazer
o alicerce da casa. Ele contratô as muié pra plantá as maçã e os jardim. Até as criança ajudaram, ganhando um quarto de dólar por dia mais a comida.
- Ninguém notou que eles estavam fazendo o mesmo tipo de trabalho, só que agora tinham um patrão?
A trilha alargou e as marcas de carroça levavam para dentro do coração da floresta e ao outro lado da clareira. Ransom subiu as escadas retorcidas que levavam ao
barracão e então parou. Mason estava contente que afinal a caminhada pela subida havia finalmente diminuído o ritmo do senhor.
- Você não tem dinheiro, tem? - Ransom perguntou, elevando uma sobrancelha branca.
- Bem, na verdade não. Meus pais trabalhavam a semana toda apenas para sobreviver. - Mason não mencionou que seu pai trabalhava apenas dois dias e que os restantes
ficava bêbado, que todo domingo pela manhã saía religiosamente para agradecer as bebidas que tomaria de noite. Nenhuma prece passou pelos seus lábios que não fosse
o bafo de bourbon. Exceto, talvez, quando estava deitado no hospital, quando a cirrose o escoltou rumo ao túmulo depois de uma vida de autodestruição.
- As pessoa pra essas banda se matavam para ganhar o dinheiro do Korban. Eram umas pessoa pobre que só. Os único trocado que viam na vida era umas duas vez no ano
quando botavam uns troço pra vender no lombo de uma mula e desciam pra cidade de Black Rock pra vender. Então, quando o Korban apareceu do nada oferecendo dinheiro
pela terra, não foi vergonha pra ninguém vendê.
- Acho que venderia as minhas terras também, se tivesse a chance. - disse Mason. Ele estava pensando no Dilúvio, sua primeira escultura sob encomenda e a pior porcaria
que ele já fizera. Também a mais bem-sucedida.
Ransom mexeu no bolso do macacão e novamente puxou o pano com a pena. Ele o balançou de modo estranho à frente da fechadura de ferro fundido na porta do abrigo.
- Hum... para que serve essa pena? - perguntou Mason.
- Pra enxontá. - disse Ransom, como se todo mundo conhecesse esse tipo de feitiço. Ele abriu a porta. Antes de entrar, chutou o batente da porta com tanta força
que o macacão dançou no corpo esquelético. - É, ainda tá forte.
Mason queria perguntar exatamente o que Ransom estava espantando, mas não sabia que palavras usar. Ele anotou isso como sendo mais uma das esquisitices do solar.
Comparado a histórias de fantasmas, os retratos vigilantes de Korban, a empregada nervosa e corações incandescentes à luz do dia, o que eram as excentricidades desse
senhor? Perto de Anna, Ransom era praticamente um modelo de sanidade e razão.
Eles entraram no pequeno barraco, Ransom espreitando as vigas do teto. A luz entrava pelas janelas simples na parede sul. Bancadas de trabalho alinhavam-se ao fundo,
empilhadas junto com arreios quebrados e arados enferrujados, ferramentas de marcenaria e baldes de pregos. Pás gastas, picaretas e machados estavam próximos à porta.
Uma longa serra vai-e-vem estava presa à parede com pregos, alguns dentes faltando. O canto do barraco era uma bagunça de plainas de madeira, martelos, cordas e
roldanas. O interior cheirava a ferro e couro.
Mason começou escolhendo o equipamento que eles poderiam precisar. Se tivesse sorte, conseguiriam achar um pedaço de nogueira ou talvez de bordo. Mas provavelmente
teriam que serrá- lo de algum tronco caído. Ele estava testando o peso de uma machadinha quando notou Ransom novamente olhando para o telhado. - O céu não vai cair
em cima de nós, vai?
- Nunca si sabe.
- Estamos o quê? Uns trezentos metros acima do nível do mar? Um pouco menos de céu para cair em cima de nós.
Ransom nem se deu ao trabalho de sorrir da piada, apenas coçou uma bochecha enrugada. Talvez Mason tivesse julgado mal o velho. Aqueles olhos brilhantes e incansáveis
sugeriam que o homem não era avesso ao humor. Mas ele deveria ter suas razões para ficar solene.
- Encontrô o que pricisava? - perguntou Ransom, esperando próximo à porta.
- Claro. Você se incomoda de pegar esse malho à sua esquerda? Talvez possamos precisar dele para umas pancadas mais pesadas.
Quando saíram do barraco, pararam na clareira e organizaram as ferramentas para melhor carregarem. Ransom estava com uma expressão que Mason poderia descrever como
sendo de "alívio".
- Qual o problema? - perguntou Mason.
- Um hômi tem o direito de ficá assustado, não tem?
O que há para ficar assustado aqui? Será que existiam predadores à espreita na floresta? - Assustado com o quê?
- A Srta. Mamie disse para não contar. - Ransom parecia quase uma criança. Mason se perguntou que tipo de controle tinha aquela mulher sobre Ransom. O homem disse
o nome dela com uma reverência amedrontada, a mão movendo-se pelo macacão na direção do bolso onde guardava o pano enfeitiçado.
- Olha, se houver algum tipo de perigo, você deveria me dizer, pois eu posso alertar os outros hóspedes. Além disso, pensei que éramos amigos.
Ransom olhou para as árvores na direção do sol, que começava sua jornada em direção ao oeste.
- Eu conto. Mas nunca conte pra Srta. Mamie que eu falei.
- É claro que não.
Ransom soltou a respiração lentamente. - Nóis recebe quatro grupo de convidado todo ano.
Nóis fica um mês parado entre cada grupo, pra consertar as coisa, que a gente fica tão atarefado quando eles tão aqui que não dá tempo de fazer mais nada. Alguém
tem que sair por aí e vê se as cabana e os anexo e essas coisa não tão caindo aos pedaço. O Korban dexô nas últimas vontade dele que tudo tinha que ficá igualzinho
era.
- Trêis de nóis é que fazia isso. Nóis sempre trocava, um cuidando da criação, o outro cuidando das pranta e jardim e o outro consertando as coisa. A Srta. Lilith,
a empregada e a cozinhera cuidavam da casa e da cozinha.
- Encontrei a Lilith. Garota bonita.
Ransom balançou a cabeça negativamente. - Ela não faz mal pros ôio. Continuando, ontem um de nóis, George Lawson, estava em Beechy Gap verificando a véia casa do
Easley. Era uma das casa original da família. A última Easley trabaiô naquela casa até casá com um dos artista que veio pra cá e se mudar pra Charlotte uns ano atráis.
- Bem, meu amigo George, ele foi pra essa casa véia dos Easley. Não sei que foi que conteceu, não vi nenhuma ferramenta nem nada, di modi que não sei dizê se ele
tava fazendo algum trabáio de carpintaria. Mas a joça toda do barracão caiu em cima dele. - Ransom cerrou os dentes. - Morreu bem digavarzinho o infeliz.
- Sinto muito, Ransom. O que os policiais disseram sobre isso?
- Como já falei procê, tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban.
Mason não compreendia. Esse lugar era remoto, mas uma morte acidental deveria requerer algum tipo de investigação.
- George era um bom ômi. E não era burro, não. Passou pelo Vietnã, e divia tê algum senso na cabeça. Ele só cruzou a porta errada, só isso. - Ransom deu a indicação
de que acrescentaria algo à última frase, mas mudou de ideia.
- Para que lado é Beechy Gap?
Ransom indicou o norte com a cabeça. - Dispois daquela crista acolá.
- Não me importaria de dar uma olhada uma hora dessas.
- Não. Os hóspede são proibido de ir lá.
- Terreno ruim?
Ransom o olhou diretamente nos olhos pela primeira vez desde que deixaram o barracão. - Algumas coisa não fazem parte do acordo. Ocê vai descobri que tem um montão
de lugar por aqui na Fazenda Korban que são proibido pros hóspede.
Ransom tirou o patuá do bolso e o moveu na direção do barracão novamente. - Agora, sobre essas madeira suas. Tenho que voltar logo, logo.
Eles pegaram as ferramentas e saíram da trilha em direção à floresta.
CAPÍTULO 16
Adam caminhou junto à cerca, a mente cheia de odores selvagens. Tinha certeza de que os poluentes de Manhattan haviam obstruído permanentemente seus seios nasais,
mas talvez um pouco de ar puro da montanha adicionasse um ano de vida aos seis que a cidade lhe havia roubado. O silêncio quase perfeito era misterioso e ele havia
quase passado por um surto noturno , pois a parte de si que dormia alimentava-se das sirenes constantes, buzinas de carros e alarmes antifurto. E todo esse espaço
aberto era muito antinatural. Não admira que esses caipiras fossem estereotipados como exilados grisalhos e malucos. Não havia absolutamente nada para impôr um nível
mínimo de sanidade e civilização sobre eles, de forma que eles podiam simplesmente criar suas próprias regras.
Paul estava em algum lugar filmando. Sem dúvida, mergulhado em seu novo projeto, o mundo reduzido ao que seu visor enquadrava. Melhor assim. Apesar de a solidão
ser esquisita em si, especialmente na amplidão da fazenda, ele precisava de uma folga da companhia de Paul. Ele falara com Roth, o fotógrafo esquisito, e reparou
na mesma introspecção artística que lhe atormentava em Paul.
Adam viu um homem perto do celeiro, vestido com roupas de trabalho. Não era um dos operários que ajudaram a descarregar a carroça. Provavelmente alguém responsável
pelos estábulos ou por cuidar do jardim que seguia em pequenas linhas no vale baixo. O homem abanou para Adam, que olhou para o solar, distante algumas centenas
de metros, e então aproximou-se do celeiro.
- Olá! - disse o homem. Suas mãos estavam socadas dentro dos bolsos da calça jeans. Uma pá encontrava-se apoiada à parede, ao seu lado.
- Oi. - disse Adam.
- Pelo jeito, você é um dos hóspedes.
- Chegamos ontem.
- O que achou do lugar até agora?
- É... diferente do que estou acostumado. Mas isso é parte da aventura.
- Sim, o desconhecido é sempre assustador no começo. Mas, uma vez que se acostuma, você começa a gostar.
Adam olhou para a área cercada além do jardim. Um grunhido rolou pelo campo.
- Porcos. - disse o homem - Quase na época de ferver a água e abater alguns deles. O rosto de Adam deve ter expressado seu asco.
O homem riu. - Não se preocupe, filho. Você não vai sujar as mãos de sangue. Mas a carne não chega sozinha na mesa do jantar.
- Prefiro minha carne sem os ossos. - disse Adam.
- A Srta. Mamie a serve do jeito que quiser. Mas tenha cuidado, ela é conhecida por tirar uma casquinha dos hóspedes. Especialmente daqueles que são homens e jovens.
Mesmo um corvo velho como aquele precisa de se divertir aqui e ali.
- Obrigado pelo aviso, mas ela realmente não faz meu tipo. - disse ele.
O homem se inclinou para frente como um conspirador, o rosto emergindo das sombras do celeiro. - Diga-me, você pode me fazer um favor?
- O que é? - Adam olhou novamente para o solar. Fumaça subia das quatro chaminés, mas afora isso, parecia sem vida. Mesmo a brisa parecia ter sucumbido.
- Cave um buraco para mim. Eu pago você.
- Não quero me meter em confusão. A Srta. Mamie parece ter essa questão dos hóspedes ficarem separados dos funcionários.
O homem lambeu os lábios. - Eu me preocupo com a Srta. Mamie. Mas tenho um braço machucado e minhas costas doem muito. A dor está infernal nesse momento.
- Certo, então. - disse Adam. Pegou a pá e testou seu balanço.
O homem retirou a mão direita do bolso e apontou para uma macieira acinzentada e moribunda, solitária no meio de uma pequena clareira. - Bem ali, no meio das raízes.
- disse ele - Grande o suficiente para caber uma caixa de sapatos.
O homem seguiu Adam até o local e o viu deslizar a lâmina brilhante para dentro do chão, revirando a terra preta. Em poucos minutos, ele havia feito o buraco de
acordo com o que o homem pedira.
- Assim está muito bom. - disse o homem - Eu posso terminar agora, muito obrigado.
- O que você está enterrando aí?
- Estou dando um jeito nas coisas para Ransom. Ele não vale nada, mas está aqui há tanto tempo que consegue se livrar até de assassinato. Tenho que terminar esse
trabalho para ele.
- Bem, tenha uma boa manhã. Preciso voltar ao meu quarto.
- Aqui. - disse ele, a mão voltando ao bolso. - Uma pequena compensação pelo seu trabalho.
- Não, imagina! - disse Adam, levantando as mãos em protesto. O cabo da pá havia esquentado a pele em volta de suas palmas, talvez o início de um bolha.
- Você não quer me magoar, não é mesmo? - disse o homem - Nós da montanha somos muito orgulhosos com essas coisas.
- Certo, então.
O homem estendeu a mão fechada e então abriu a palma para Adam, mostrando uma pequena coisa verde.
- Um trevo de quatro folhas. - disse o homem.
Adam sorriu - Eu vou precisar de toda sorte que puder encontrar.
Caminhou de volta ao celeiro, então virou-se e disse - Por falar nisso, meu nome é Adam.
- Lawson - disse o homem, agora acocorado sobre o buraco como se suas costas tivessem se curado milagrosamente - George Lawson.
CAPÍTULO 17
Anna acordou com a luz do sol entrando inclinada pela janela e, por um momento, não conseguiu se lembrar de onde estava. Então tudo voltou: Solar Korban, Mason,
a cabana na floresta com as figuras misteriosas, o espírito triste da garota que encontrara.
Por que o fantasma havia pedido a ajuda dela? E quem era a pessoa com o xale que correra para a floresta? Anna empurrou para longe as teias de aranha da memória.
Ela não havia sonhado na noite anterior, a não ser que toda a caminhada na floresta tenha sido fruto de sua imaginação.
- Teve uma boa noite de sono? - perguntou Cris de sua cama, do outro lado do quarto.
- Dormi feito uma pedra. Não durmo assim há anos. Acho que mesmo uma garota da cidade se beneficia com paz e quietude.
Cris, com a voz áspera do sono e da ressaca, disse: - Sei o que quer dizer. Em Modesto, uma sirene acorda você a cada quinze minutos. Que estranho.
- O que é estranho? - Anna olhou para o retrato de Korban e então para o fogo, que deveria ter sido realimentado por algum dos serventes durante a noite.
- Pela primeira vez, desde que eu era uma criança, consigo me lembrar de meus sonhos.
- Mesmo? - Anna pensou em seu sonho recorrente, de seu eu fantasmagórico na balaustrada do telhado, segurando aquele buquê assombrado e assustador.
- É. Estava correndo pelo pomar, lá fora, e estava com longas roupas de dormir esvoaçando atrás de mim. Sabe, todos aqueles laços vitorianos que você vê nas propagandas
de romances góticos? Estava correndo em câmera lenta, como se o vento estivesse me empurrando para trás, ou algo parecido.
- O velho tema de sonho de "correr e nunca alcançar". - disse Anna. -Eu os tive na reta final das provas ou algumas vezes quando enviei algum artigo para uma revista.
Ou quando sonhei a última vez com Stephen. Quando foi isso, cerca de um ano atrás?
- Eu não estava fugindo. - A voz de Cris diminuiu um pouco enquanto ela relembrava os detalhes do sonho. - Eu estava correndo para alguma coisa. Esperando nas sombras,
logo na margem da floresta. Era tão real. Podia sentir o orvalho nos pés descalços, o ar frio em contato com o rosto, o calor... -
Anna se levantou do travesseiro e viu Cris, o cabelo embaraçado, os olhos turvos, mas as maçãs do rosto coradas.
- O calor lá embaixo. - terminou Cris, como se estivesse assustada com a força da lembrança.
- E eu fiquei apenas correndo. Podia sentir a casa atrás de mim, quase como que olhando, como se quisesse que eu... Então eu estava do outro lado do campo. Essa
sombra, moveu-se sob as árvores, tocou-me, mas não podia ver seu rosto. Do ponto onde me tocou no ombro, o calor se expandiu, me preenchendo...
Os olhos bem abertos de Cris estavam fixos no outro lado da sala e dentro do sonho. - Foi bem intenso. - ela sussurrou.
Anna não estava acostumada com as pessoas compartilhando detalhes íntimos com ela. Ser órfã a havia ensinado a se manter numa distância emocional segura. Ela mantinha
segredo mesmo sobre os poucos interesses românticos de sua vida, mantendo uma grande parte de si mesma escondida. Agora essa mulher que ela conhecera ontem estava
compartilhando um sonho sensual. Mas talvez fosse outra coisa. - Você provavelmente encontrou companhia. Mason, talvez.
Cris sorriu. - Não, definitivamente eu teria me lembrado se alguma coisa tivesse acontecido com ele. Eu não estava tão bêbada.
Anna forçou um interesse que não sentia no sonho de Cris como uma penitência por pensar em Mason. - O que você acha que esse sonho significa?
- Que eu sou um caso sem solução?
Como se os sonhos tivessem significado. Sonhos não eram mais que um erro das sinapses, uma descarga de energia elétrica sobrando, do mesmo modo que faíscas saíam
do distribuidor em um carro. Sonhos eram ondas aleatórias no cérebro, não importa o que os professores do programa de ciências do comportamento em Duke a tivessem
ensinado.
Basicamente, sonhos eram um absurdo. Tanto os que ocorriam dormindo quanto os sonhos acordados. Especialmente quando eles o compeliam a visitar um solar perdido
no meio das Montanhas Apalaches, onde você procuraria o próprio fantasma.
Especialmente nesses casos.
- Talvez seja apenas seu subconsciente revelando a sensação de liberdade recém-descoberta.
- disse Anna, buscando alguns conceitos esquecidos de suas aulas de psicologia. - Mesmo porque você tem todo o tempo do mundo, sem prazos, sem marido para agradar.
Nada além de você mesma e o que quiser fazer. Talvez seja apenas natural que essa sensação de alívio se expresse sob essa forma romântica.
- Uau! Isso foi bom. Mal posso esperar para chegar em casa e contar isso para meu terapeuta. Anna ia adicionar mais alguma coisa sobre frustração sexual devido à
vestimenta vitoriana do sonho. Mas isso era cínico e obtuso demais, mesmo para Anna.
- Ou talvez fosse apenas um sonho. - disse ela, temendo a diarreia sanguinolenta que lhe dava as boas-vindas todos os dias pela manhã.
- Provavelmente. - disse Cris.
Anna empurrou a coberta para longe e sentou, arrepiando-se por debaixo da camisola. - Hora de fazer um depósito no banheiro.
- Vá em frente. Preciso ficar aqui um minuto para me recompor. Vou dar uma fugida até o andar de baixo e roubar um pouco de cafeína. Quer algo?
- Não, obrigada.
Quando Anna retornou ao quarto, Cris estava pegando seus cadernos de desenho, uma caneca de café fumegando no criado-mudo. - Esbarrei em Jefferson Spence. Sabe aquele
escritor gordo? É bacana estar aqui com pessoas realmente famosas.
Anna deu de ombros. - Tivemos que estudar seu Seasons of Sleep em literatura americana. O livro me dava sono, se você quer saber.
- Ele escreveu esse aqui no solar. Dizem que ele escreve sobre pessoas reais e apenas muda os nomes para não ser processado. Pergunto-me se estaremos em seu próximo
livro.
Anna foi até seu armário para escolher uma roupa. - Eu serei a biruta caçadora de fantasmas com um grande nariz e você poderá ser -
- A perua doméstica que fica molhada sonhando.
- Só que não será assim tão simples no livro. - disse Anna, e então fungou delicadamente. - Você será provavelmente a Vênus trêmula, agarrando-se e contorcendo-se
sobre os lençóis, as costas arqueadas de prazer em direção ao teto negro, ao céu infindável, à prisão notuma e assim por diante.
Cris riu com tanta força que espirrou parte de seu café. Uma batida veio da porta. Anna cruzou os braços, sem saber o que a camisola revelava, ou não. Ela evitava
espelhos já fazia um tempo.
Cris aparentemente tinha menos modéstia, tendo descido as escadas na camisola amarela que ainda vestia. - Entre! - gritou ela. - Estamos decentes aqui dentro.
A Srta. Mamie entrou no quarto, as mãos unidas, um sorriso no rosto que poderia ter sido esculpido em madeira. - As senhoritas dormiram bem?
- Mais ou menos. - disse Cris - As camas são muito confortáveis.
- E você, Srta. Galloway? Saiu tarde da noite ontem? - Os olhos da Srta. Mamie refletiram a luz quente e ondulante do fogo.
A Srta. Mamie a estava repreendendo ou apenas de conversa? A anfitriã sabia que Anna era uma parapsicóloga. Ela não vira nenhuma razão para mentir em sua ficha de
inscrição. Na verdade, aprendera a ter um orgulho teimoso sobre suas peculiaridades.
Assim, não viu nenhuma razão para mentir agora. - Dei uma caminhada. - disse ela - Naquela elevação na direção leste.
- Você achou o que estava procurando? - Não havia nenhuma dúvida sobre o tom de desafio na voz da anfitriã.
- Não. - Não era uma mentira. Ela não estava certa do que estava procurando, além de seu próprio fantasma.
- Talvez venha até você, Srta. Galloway. Seja otimista. - A Srta. Mamie franziu os lábios em um sorriso reptiliano e olhou para o retrato de Ephram Korban.
- Você tem uma casa bem esquisita. - disse Cris.
- A casa é dele. - disse a Srta. Mamie, com um leve inclinar na direção do retrato. Ela tocou o medalhão pendente no colar de pérolas que lhe circundava o pescoço.
- Eu apenas mantenho os fogos acesos.
Ela as deixou para se vestirem e especularem sobre o comportamento críptico da anfitriã.
CAPÍTULO 18
- Por aqui, Sr. Jackson.
Lilith desceu pelas escadas estreitas. Mason reposicionou o pedaço de bordo de dez quilos nos braços e a seguiu escada abaixo. O ar bolorento e úmido grudou-se no
rosto de Mason. Ele olhou para dentro do porão negro, certificando-se de que cada passo era sólido antes de dar o próximo.
Lilith o esperou no fim das escadas, segurando uma lanterna na altura do ombro. Quando Mason finalmente chegou ao piso do porão, olhou para as sombras ondulantes
e sombrias, tentando perceber a distribuição das coisas. Pequenas janelas basculantes foram colocadas altas nas paredes, logo acima do nível do chão externo, mas
apenas uma nesga de luz acinzentada passava por elas. O odor de podridão seca deu lugar a uma ruína mais profunda e antiga.
Ele tropeçou e sua sacola de ferramentas chocou-se contra seu quadril. A alça estava começando a penetrar em sua pele onde a sacola pendurava-se em seu ombro. Lilith
o direcionou por entre alguns pilares grossos de madeira, um monte de mobília velha e uma pequena porta. A chama da lamparina refletiu nas garrafas de vinho empoeiradas
que se empilhavam nas prateleiras da passagem estreita.
- Por que é tão quente aqui? - perguntou Mason, a voz engolida pelo espaço vazio.
- Calefação central. - disse Lilith - O Sr. Korban insistia no fogo para aquecê-lo. Mason se perguntou se seria capaz de trabalhar ali por longos períodos de tempo.
Esculpir geralmente lhe fazia suar copiosamente. O trabalho era tão físico quanto de inspiração. Apenas nos toques finais, nos detalhamentos finais e polimento,
é que o trabalho deixava de ser tão exaustivo.
- Onde é o fogão? - perguntou ele.
Lilith apontou para dentro da escuridão à esquerda do final do porão. - Há um aposento separado lá, de forma que os trabalhadores possam manter o fogo aceso pelo
lado de fora da casa. Os encanamentos correm pela casa toda.
Ela elevou a lanterna e Mason viu os dutos metálicos no teto.
- Aquecimento por circulação de ar. - disse ele - Isso era bem sofisticado para a época, não é?
- Não sou historiadora, Sr. Jackson. A Srta. Mamie seria a pessoa certa para responder a essas perguntas.
Lilith o levou a uma área que não era exatamente um aposento. Era mais um espaço dividido por pilares de madeira e prateleiras. Um armário grosseiramente acabado
encontrava-se ao lado do que ele adivinhou ser seu estúdio.
- Espero que isso sirva. - disse ela - Tivemos poucos escultores no solar, ao contrário de pintores, que foram muitos. E um velho cavalheiro que fazia xilogravuras.
Todos eles conseguiram trabalhar aqui.
- Ah, você pinta?
- Eu costumava pintar.
Ele não quis comentar a mudança de carreira dela. Sua própria mudança estava no limiar de acontecer. - Talvez um pouco de espírito criativo tenha penetrado nessas
paredes.
- Talvez sim, Sr. Jackson. Talvez mais do que o senhor imagina.
Ela era um pouco estranha, Mason decidiu. Se ela não fosse tão fria, Mason se arriscaria a conhecê-la melhor. Mas era melhor que ele se concentrasse em seu trabalho.
Além disso, tinha certeza de que a Srta. Mamie não aprovaria que seu pessoal se envolvesse com os hóspedes, não importando o quanto os hóspedes se envolvessem uns
com os outros.
Uma mesa grossa encontrava-se no meio do espaço. Mason colocou o pedaço de madeira sobre ela com um baque sólido. Retirou a sacola do ombro e também a depositou
sobre a mesa. Ficaria escuro aqui, mesmo durante o dia, mas ele não se importava. No fim das contas, trabalhava mais por toque e instinto mesmo.
- Isso seria tudo? - Novamente, Lilith parecia com pressa de ficar longe dele. Ou talvez não fosse dele. Talvez quisesse ficar distante desse lugar escuro e claustrofóbico
onde Mason passaria uma boa parte de seu tempo.
- Então, serei amaldiçoado com a escuridão? - perguntou ele.
- Como?
Ele apontou a lanterna. - Presumo que você levará isso junto.
- Ah, entendo. - ela moveu-se na direção das prateleiras e, sob a luz da lanterna, viu um amontoado de velas meio queimadas. - Tem fósforos sobre aquele armário.
Ela esperou até que Mason acendesse duas velas grossas. Ele também encontrou uma lamparina a óleo na prateleira inferior e puxou o pavio. Ele tinha apenas tocado
a ponta da vela no pavio da lamparina quando ela disse - Boa sorte! - e se foi.
Conforme os ecos de seus passos sumiram na direção da escada, ele murmurou para si mesmo - Nossa, não é uma surpresa as pessoas contarem histórias sobre esse lugar.
Mason acendeu uma vela a mais e espalhou suas ferramentas sobre a mesa. Ele contemplou os gumes afiados das lâminas antes de dirigir a atenção ao bloco de bordo
vermelho. Então começou a caminhar, a mente mergulhando naquele poço misterioso onde as ideias borbulhavam.
Seu pé tocou em algo, causando um ruído abafado. Ele trouxe a lamparina para baixo para ver no que havia tropeçado. Era uma tela emoldurada, a parte de trás acinzentada
pelo tempo. Ele a virou.
Na tela, estava uma reprodução perfeita do Solar Korban em uma noite de tempestade, pintada na mesma técnica que as outras pinturas a óleo da casa. O solar fora
desenhado em escala perfeita, tão encaixado na paisagem que a casa parecia ter brotado do chão. Na pintura, estava o orifício do nó de madeira que Mason havia visto
mais cedo naquela manhã, debaixo de uma janela no segundo andar.
Mas o realismo fotográfico não era a única coisa que deixava a pintura tão forte. O solar era vibrante, como se balançasse contra uma tormenta imaginária. As árvores
estavam enfurecidas com o vento e nuvens negras pairavam sobre o telhado achatado do solar. Mason tocou gentilmente na pintura e uma eletricidade subiu pelo seu
braço. Ele se perguntou por que uma pintura tão bonita estaria relegada ao ar destrutivo de um porão.
Ele a encostou na mesa e aproximou a lamparina, com cuidado para não danificar o acabamento. Olhou detidamente cada centímetro quadrado da pintura, correndo delicadamente
os dedos sobre as cristas deixadas pelas pinceladas. Os ângulos das empenas eram geometricamente precisos, as sombras proporcionais, a escolha de cores verdadeira
ao olho humano. Mesmo as cascas das árvores possuíam uma textura complexa.
Ele estava olhando o topo do solar, estudando o parapeito da balaustrada, quando reparou na única falha da pintura. O artista havia inadvertidamente borrado as cores.
Havia um borrão cinza na balaustrada. O artista poderia ter facilmente consertado o defeito, mas por alguma razão não o fizera. Ainda assim, a pintura era perfeita
demais para permanecer escondida na escuridão.
Mason não soube dizer quanto tempo ficou olhando para a tela. Ela possuía um poder hipnótico tão intenso que parecia sugá-lo para dentro de seu turbilhão. Por fim,
ele balançou a cabeça, dando- se conta de que se não começasse a esculpir, desperdiçaria o primeiro dia de sua última chance. Encostou a pintura fora do caminho
em um pilar de madeira, prometendo a si mesmo que perguntaria mais tarde sobre ela à Srta. Mamie.
Ele iniciou o trabalho removendo a casca do tronco de bordo, incomodado pelo fato de que sua mente voltava à pintura.
- Vamos, seu desgraçado. - xingou - É a hora da verdade. Pense em sua mãe em Sawyer Creek, murchando por causa do sacrifício que fez por você. Sozinha no escuro.
Ele ouviu a voz em sua mente, lhe dizendo para se agarrar aos próprios sonhos. Ele arrumou suas ferramentas, a goiva, a machadinha, o maço, o enxó e uma dúzia de
formões com diferentes ângulos e formatos. Ainda assim, nenhuma ideia lhe ocorreu. Ele olhou à volta, para as sombras que as velas tremulantes criavam.
Alguém o estava observando na escuridão à volta.
Um sussurro leve no canto. Mason levantou a lamparina. Uma coisa pequena e escura se destacava das sombras menos intensas e movia-se na direção da prateleira de
vinhos.
Um rato. Os dedos de Mason curvaram-se dentro dos sapatos. Ele odiava roedores. Quando era mais jovem, logo antes de seu pai falecer, a família vivera em um trailer
alugado. O estacionamento de trailers ficava próximo a um depósito de lixo e os ratos se multiplicavam em proporções bíblicas graças à quantidade de comida.
Uma noite, ele ouviu sons raspados dentro do colchão sobre o qual dormia. Ligou a luz e observou, horrorizado, ratos recém-nascidos caindo de dentro do colchão por
um rasgo no tecido. Igualmente repulsivo foi observar o velho gato cinza da família engolindo os ratos inteiros, um por um, conforme saíam do buraco. A rata devia
estar doente, ou algo parecido, porque seu colchão cheirou à morte por semanas a fio após esse evento. Mas Mason já havia feito de sua cama uma cadeira de reclinar
que ficava do outro lado da sala de estar.
Outra memória mais antiga surgiu, mas ele a empurrou com força para dentro das trevas sonolentas.
Essa criatura no porão era apenas um camundongo. Mason podia lidar com isso. Camundongos eram tímidos, enquanto ratos eram seres a serem desprezados, com as longas
caudas, jeito intencional e olhos que brilhavam com inteligência desafiadora.
Ele tentou novamente se concentrar no trabalho. Talvez o camundongo tivesse sido sua Musa. Outros artistas falavam sobre o espírito que os movia, que se movia dentro
deles. Mason não compreendia isso. Tudo o que ele possuía eram teimosia e raiva para movê-lo.
Ele se dirigiu ao tronco que Ransom o havia ajudado a livrar de uma árvore caída. - Certo, que tipos de segredos você esconde aí por dentro?
Ele estudou o padrão de crescimento dos anéis e acariciou os grãos da madeira. A seiva morta pulsou. Uma lufada de ar assobiou por dentro dos dutos de aquecimento.
- O que você quer se tornar? - ele pegou sua machadinha. O som da corrente de ar quente transformou-se em uma risada baixa. Ele sentiu uma mão à volta da sua, um
bolsão de ar morno para guiá-lo.
Sua voz aumentou - O que diabos você quer de mim?
Mason afundou a lâmina de metal profundamente no cerne da madeira. O eco seco da pancada soou quase como um suspiro de contentamento.
CAPÍTULO 19
Roth estava irritado. Havia rodado três rolos de filme, enquadrando primeiro a casa na luz matinal suave e inclinada e, então, sob a luz solar mais intensa e sombras
mais marcantes, conforme o dia progrediu. Ele havia caminhado um bom pedaço do caminho arenoso para conseguir montar uma série de perspectivas de aproximação pela
teleobjetiva, trabalhando com um tripé. Ele conseguira uma razoável profundidade de foco, manipulando o obturador, de forma que a casa parecia pequena com relação
à floresta que a envolvia. Então, ele fizera um trabalho fotográfico manual, mais de perto, para dar o efeito oposto, levando o expectador a ter a impressão de que
o solar se agigantava contra as árvores e colinas.
Tudo isso era um bom trabalho, mas corriqueiro, e ele queria tentar algo diferente. Ele queria fotografar a ponte. A ponte pequena e batida pelo tempo daria um excelente
motivo de conversa como a capa de seu livro de fotografias, com seus despenhadeiros dramáticos e vistas enevoadas.
Ele estava certo de que desejava fotografar a ponte, mas quando caminhou sobre as árvores pela estrada a ideia já não lhe pareceu tão incrível assim. O dia estava
tão quente que, mesmo na sombra, sua testa estava banhada em suor. Um espasmo de náusea e tontura lhe cruzou o corpo. Antes de contornar a última curva, onde o terreno
do solar dava lugar às rochas do despenhadeiro, ele decidiu que a ponte seria um grande desperdício de filme fotográfico.
Assim, caminhou de volta ao Solar Korban, sob uma súbita brisa leve, e sentiu-se melhor conforme o suor secou. Tirou mais algumas fotos da casa dos mesmos locais
de antes. Era tudo uma baboseira.
- Vou ficar maluco. - murmurou ele por entre os dentes.
- O que disse?
A voz feminina veio de algum lugar à sua direita. Ele olhou para debaixo das sombras das árvores, na esperança de que tivesse mantido seu sotaque inglês enquanto
estava praguejando. Não poderia haver deslize.
- Eu estava dizendo "Que monte de tédio" - disse ele.
Ele a via agora, sentada em um toco, ao lado do sicômoro. Estava com o caderno de esboços em seu colo e um carvão entre os dedos. Roth olhou para suas longas pernas,
apreciando que o dia estivesse quente o suficiente para que ela usasse um short.
- Está tirando fotos? - perguntou ela.
Fotos. Turistas e crianças tiravam fotos. Roth enquadrava o vital, capturava o essencial e imortalizava o divinamente apropriado.
Moça estúpida. Ainda assim, em sua experiência, quanto mais vazio o espaço superior, mais apertado o espaço lá de baixo.
De qualquer forma, ele estava ficando frustrado com seu trabalho. Talvez estivesse no momento certo de arranjar uma companhia para a noite. - Sim, minha querida.
- disse ele, levantando a câmera e apontando para ela.
Ela olhou para o outro lado.
- Não seja tímida, meu amor. Deixe minha câmera feliz. Não vou nem dizer para você falar "xis" ou qualquer coisa do estilo. - Ele aproximou a imagem com o zoom em
seu decote sem que ela reparasse.
Ela olhou para cima e sorriu, ele acionou o disparador e então colocou a câmera de lado. - Diga-me, você não estava naquele pequeno encontro da Srta. Mamie após
o jantar ontem?
- Sim. Vi você. William Roth, não é?
Roth amava quando as pessoas fingiam que não estavam impressionadas com sua celebridade, mas ela não conseguiu esconder o pequeno brilho em seus olhos. Talvez ele
não fosse uma estrela de cinema, mas ter o nome reconhecido definitivamente era útil na sua aproximação com as meninas. - Todinho seu. - disse Roth - E a quem tenho
o prazer?
- Cris Whitfield. Cris, sem o h. - Ela estendeu a mão, dando-se conta de que estava suja com carvão, trazendo-a de volta ao colo.
- Encantado. - Ele esticou o pescoço como se fosse olhar o que ela estava desenhando, mas na verdade observando seu colo. - O que está desenhando?
- A casa. - disse ela, acenando com a cabeça na direção do solar.
- Se importa se eu der uma olhada?
Ela deu de ombros e virou o caderno de esboço para ele. Ele aproveitou a oportunidade para ficar de pé ao lado dela.
- Não sou muito boa nisso. - disse Cris.
Parece muito boa, pela pequena espiada que dei.
- A casa não é um motivo fácil. - disse ele, pegando o esboço. - Eu não conseguiria fazer um esboço dela. Não posso nem imaginar como seria terrivelmente assustador
um desenho dela feito por mim...
Ele estava esperando um desenho primário no papel, algo que o lobo mau conseguisse assoprar com os pulmões a meia capacidade. Mas não esse... manicômio que a mulher
havia desenhado. Nada que parecesse vir dessa pequena menina com rabo de cavalo que parecia uma perua de beira de praia e que provavelmente estudara reiki, yoga
ou qualquer outra dessas bobagens da nova era que estavam na moda.
Porque o desenho era certamente do solar, mas muito mais que apenas isso.
Era decadente, escuro e pessimista, uma mistura de Dali e Goya. Acharam algumas pinturas de Goya após sua morte, escondidas em sua casa porque ninguém conseguia
ficar olhando para elas. Roth lutou contra o desejo de tocar no esboço.
O carvão estava espesso como uma pelagem animal. As sombras do pórtico eram agudas e abruptas e Roth quase conseguia imaginar criaturas aladas voando naquela escuridão.
As janelas das empenas eram como olhos de soslaio, a grande porta da frente como uma bocarra cavernosa. Ele olhou do desenho para a casa e, apenas por um segundo,
tão pequeno que ele se convenceu de que estava imaginando coisas, a casa pareceu com o que ela havia desenhado, trêmula e latejante como uma criatura viva e rosnando.
- Que diabos, garota. - ele finalmente conseguiu proferir - De onde surgiu isso?
Ela olhou timidamente para baixo na direção de suas botas de caminhada. Quando ela deu de ombros, ele apenas reparou nos seios balançando. - Não sei dizer. - disse
ela - Apenas aconteceu.
Roth balançou a cabeça.
- Nunca fiz nada tão bom assim. - disse ela - Quero dizer, eu não sou mesmo boa nisso.
- Parece profissional, para mim.
- Não esse desenho. Eu sei que é bom. Mas não é por minha causa. É por causa da casa.
- A casa? - Roth pensou em como não conseguia se forçar a fotografar nada além da casa. E como se sentiu quase ao ponto de desfalecer quando estava andando na direção
da ponte. Pelo menos até o momento em que voltara a ver a casa novamente.
- É como se ela tivesse essa... energia. - disse Cris - Quando eu estava desenhando, o carvão praticamente parecia estar se movendo sozinho.
- Como sugestão hipnótica e essas bobagens? - ele bufou, mas então se arrependeu. Desprezo não era o caminho para o coração de uma mulher, ou para qualquer outra
parte dela.
O lábio de Cris se curvou. Ela fechou o caderno de desenho com força. O desenho assombrado e distorcido ainda se demorou na mente de Roth.
- Todos são críticos. - disse ela - Por que você não volta a pressionar esses pequenos botões de sua máquina?
Ela passou furiosa por ele, chutando as folhas. Roth observou-a caminhando na estrada em direção à casa. Ele moveu a tira que estava lhe machucando o pescoço e então
verificou a câmera empoleirada no tripé.
Que se vá!, pensou ele. O que me importa um desenho barato, mesmo? Artistas são um bando de idiotas, falando sobre "significados" e "espírito criativo" e coisas
sem sentido. Tudo se resumia a dinheiro, poder e sexo, e como garantir uma maior quantidade de cada um deles.
Ele apontou a câmera para o solar. Cris pulou sobre os degraus da entrada até a varanda.
Enquanto ela desaparecia na porta da frente, Roth não pôde deixar de lado o sentimento de que a casa a havia engolido inteira.
CAPÍTULO 20
A floresta parecia diferente à luz do dia. Seus limites eram mais arredondados, os galhos menos ameaçadores, as sombras sob as copas menos sólidas e sufocantes.
Anna aspirou o ar da tarde, sentindo-se viva e renovada. O Solar Korban e as montanhas estavam trazendo de volta seu apetite, fazendo-a esquecer-se da longa sombra
para qual o câncer a estava empurrando.
Ela tomou à direita na encruzilhada, lembrando-se do poema de Robert Frost sobre as estradas menos trilhadas, pois o caminho da direita era pouco mais que uma trilha
deixada pelos animais. Mas a trilha levava a um pequeno monte, um crânio macio de terra vestindo um chapéu de grama. No meio da clareira, ficava uma cerca quadrada
de ferro, dentro da qual se espalhavam lápides brancas e cinzas.
- Então é aqui que vocês mantêm os mortos. - disse ela para o céu.
Anna caminhou até a cerca e olhou para os lados, mas a floresta estava silenciosa. Esse não seria o primeiro cemitério no qual ela entraria sem permissão. Ela se
puxou pela cerca, segurando-se no motivo floral e nos ferros retorcidos, a fim de evitar ser empalada nas pontas afiadas.
Dois grandes monumentos de mármore, bonitos, apesar de desgastados pelo tempo, dominavam o cemitério. No primeiro lia-se Ephram Elijah Korban, 1859-1918. Chamado
cedo demais.
Ao lado desse, levemente menos ornado, lia-se simplesmente Margaret. Anna ajoelhou-se e pressionou a palma da mão sobre o jazigo de Ephram.
- Alguém em casa, Srta. Galloway?
Anna olhou para cima. A Srta. Mamie estava junto à cerca, de algum modo tendo cruzado vinte metros de terreno aberto sem que Anna percebesse.
- Só saí para dar uma caminhada e fiquei curiosa.
- Você sabe o que dizem sobre a curiosidade e o gato, não é mesmo? A maior parte de nossos hóspedes respeita os limites impostos pelas cercas.
- Você diz os hóspedes que andam, ou aqueles que flutuam?
A risada estridente da Srta. Mamie ecoou pelos monumentos. - Ah, essas histórias de fantasmas. Não pude resistir à aprovação de sua ficha de inscrição, sabe? Pesquisadora
paranormal. Era perfeito demais.
- É uma forma de arte tanto quanto pintura ou literatura. É tudo uma questão de busca, não é?
- Esperta. E exatamente o que você está procurando, Anna?
- Suponho que vá saber, quando encontrar.
- Pode-se apenas ter esperança. Ou talvez você não tenha que procurar. Talvez o que esteja procurando encontre você primeiro.
- Então você não se importaria comigo perambulando pelo seu cemitério? A Srta. Mamie olhou para o jazigo de Korban. - Sinta-se em casa.
- Obrigada.
- Mas não se atrase para o jantar. E tenha cuidado para não ser pega de surpresa pela noite. - A Srta. Mamie começou a se afastar, então falou: - Você é um daqueles,
não é?
- Daqueles o quê?
- Que as pessoas da montanha chamam de "dotados". Terceira visão. O poder de ver aquilo que as pessoas não conseguem.
- Não sou tão especial.
- Essas histórias de fantasmas são tão deliciosas. E boas para os negócios, também. Que artista, que se diz vivendo no limite, poderia deixar passar a chance de
vir para cá? Se você encontrar alguma coisa, me dirá, não é?
- Juro de coração.
- Não jure com tanta fé. Não ainda, pelo menos.
Anna olhou a mulher cruzar pela grama e entrar na floresta, então se voltou para as lápides que tinham escorregado pelo monte. Ela as explorou, lendo os nomes. Hartley,
Streater, Aldridge, McFall. Então, as lápides deram lugar a simples lajes, em alguns casos pedaços brutos de granito apontando para o céu como uma lembrança desamparada
de uma vida há muito esquecida.
Será que sua morte seria assim tão sem importância? Será que sua marca seria assim tão insignificante? Será que isso importava?
No limite das pedras espalhadas, onde a cerca encontrava-se com a floresta, uma lápide entalhada ficava à sombra de um velho cedro. Anna aproximou-se e leu "Rachel
Faye Hartley" no mármore. Um buquê de flores ornadas estava entalhado sobre o nome.
- Rachel Faye, Rachel Faye. - murmurou - Alguém deve tê-la amado.
E apesar de Rachel Faye Hartley ser apenas pó, Anna sentiu uma leve inveja dela.
CAPÍTULO 21
Sylvia observou da floresta até que a Srta. Mamie partiu. Anna parecia pequena e perdida no cemitério, conversando com as lápides, procurando fantasmas entre as
folhas das gramas. A garota possuía a Visão, isso era pacífico. Mas outra coisa certa era aquela aura negra à sua volta, agarrando-se à sua carne como um arco-íris
noturno .
Anna estava se preparando para morrer.
Sylvia ajeitou o xale à sua volta, segurando-o com a mão nodosa. A outra segurava seu bastão de caminhada, no qual ela se recostou descansando para sua jornada de
volta à Beechy Gap. Ela não saía muito nos dias de hoje, especialmente agora que os fantoches de Korban estavam soltos por aí. As coisas estavam ficando agitadas
e parte disso tinha a ver com a lua azul que se aproximava.
Outra parte tinha a ver com aquela garota no cemitério, aquela que ficara olhando por um tempo a lápide de Rachel Faye Hartley.
- Ocê vai se juntá a ela logo, logo. - disse Sylvia ao louro que a rodeava. - Se o Ephram deixar, quer dizê.
O sol estava mergulhando na hora que Anna pulou a cerca novamente, cheia de energia para uma pessoa tão doente. Anna não conhecia os caminhos antigos, era fraca
no poder dos encantamentos e coisas do estilo. A garota não entenderia o poder curativo das raízes, ossos de poder e modos especiais de se dizer certas coisas. Mas
talvez o dom estivesse apenas enterrado dentro dela e não perdido para sempre. Pois o sangue corria espesso, mais espesso que água. E a magia corria pelos túneis
da alma, como Ephram sempre dizia.
Mas Ephram era um mentiroso.
Tanto antes quanto depois de morrer.
Uma coruja piou, um som tão solitário quanto o vento numa noite de inverno. Sinal de morte, um piado durante o dia. Mas, nos últimos tempos, havia sinais de morte
em todo lugar, vindo a todo momento. Sylvia proferiu um encantamento de passagem segura e deslizou para dentro da floresta, apressando-se para casa da melhor forma
que conseguia, antes que o sol beijasse a borda das montanhas.
CAPÍTULO 22
- Querido?
Spence tamborilou nas teclas da máquina de escrever, fingindo não ouvi-la.
- Jeff? - Bridget colocou uma mão em seu ombro.
Ele parou de escrever e olhou-a. - Você sabe que não deve me incomodar quando estou trabalhando.
- Mas você nem veio para a cama à noite passada!
Ele odiava o tom lamentoso de sua voz, sua necessidade de agradar. Ele desprezava sua preocupação. Mais que tudo, estava incomodado com a distração.
- Espero que a máquina de escrever não a tenha mantido acordada. - Ele não se importava realmente. Estava fazendo progresso, na perseguição da Musa esquiva, e isso
era tudo o que importava.
- Não, não é isso. - disse Bridget - Você precisa descansar.
- Haverá tempo de sobra para descansar depois que eu estiver morto. No momento, me sinto particular e efusivamente vivo. Assim, seja gentil comigo e me deixe continuar.
- Mas você não almoçou. Isso não é do seu feitio.
Spence se perguntou se isso era algum tipo de alfinetada com relação ao seu peso, mas Bridget nunca o criticara. Ela não possuía a imaginação necessária para atacar
com palavras. Spence era o mestre reinante nesse contexto.
- Também não é do meu feitio interromper meu trabalho para ter uma conversinha romântica. - disse ele, e então esticou o som das vogais em seu sotaque estilo Ashley
Wilkes. - Agooraa, por que você não faaz como Scarlett e se peerde no ventoo?
- Não seja malvado, querido. Estou só tentando ajudar. Quero que você fique feliz e sei que só fica feliz quando está trabalhando em algum projeto.
- Então, deixe-me extasiado. - disse ele - Saia.
Um pequeno soluço surgiu na garganta de Bridget. Spence o ignorou, voltando sua atenção à página meio escrita e às outras trinta páginas empilhadas ao lado da máquina
de escrever. Ele faria alguma revisão, sabia disso, mas era um trabalho excelente. Seu melhor em muitos anos. E ele não queria que acabasse.
A porta se abriu e ele falou para Bridget sem nem olhar para trás. - Vejo você no jantar. - mentiu ele.
A porta se fechou suavemente. Spence riu para si. Ela não tivera autoestima suficiente para bater a porta com raiva. Ela se desculparia à noite, pensando que a pequena
cena fora sua culpa.
Ela era, de longe, uma das melhores conspurcações que Spence já engendrara, de todas as professoras casadas, jovens agentes literárias e editoras assistentes que
já haviam se apaixonado por ele. Mas, no final, elas não eram nada, apenas um saco de ossos sem significado, andaimes para lhe dar um alento enquanto estava solitário
e rabugento. Quando ele estava trabalhando, e trabalhando bem, não precisava do amor de ninguém, exceto o seu próprio.
- E o seu, claro. - Spence disse para o retrato de Korban, apesar da carranca de seu benfeitor. Spence pegou o manuscrito e começou a lê-lo. A graça da linguagem,
a estrutura frasal enxuta, as descrições poderosas, tudo estava soberbo. Nunca foi tímido sobre se cumprimentar por um bom trabalho, mas agora ele estava realmente
superando os seus limites literários. Ele os superaria todos, de Chaucer a King, passando por Keats.
Ele não questionava a origem das palavras. Esse era um mistério que ele preferia deixar para aqueles cuja subsistência derivava da vivissecção acadêmica das pequenas
humanidades. Mas ele nunca antes havia escrito com tanta facilidade como o tinha feito na noite passada e hoje.
Escrita automática. Era como ele sentia.
O que Spence sempre chamara, durante as raras ocasiões nas quais a pena fluía tão livremente, de "escrita fantasma". Como se o papel e a máquina de escrever estivessem
sugando as palavras do ar. Como se os dedos soubessem as próximas palavras antes de o cérebro as pensar. Como se nem estivessem lá.
Apropriado ao manuscrito, ser chamado de escrita fantasma, pensou ele. Tinha um toque gótico, algo mais escuro que a literatura sulista que fizera dele o queridinho
de Nova Iorque. E tinha esse protagonista, o homem belo, barbado e estranho cujo nome ele ainda não decidira. Isso era estranho, estar tão adiante no manuscrito
e ainda nem saber o nome do personagem principal.
Ele se pegou olhando, pela milésima vez, para a pintura de Korban, pendurada sobre a mesa. Então, fechou os olhos. Após um momento, continuou a escrita fantasma.
CAPÍTULO 23
- Você ouviu isso?
- Ouviu o quê?
- Um som de batida.
Adam forçou os ouvidos. Paul provavelmente estava sendo só paranoico. Ele saiu de fininho e fumou um baseado antes do jantar. Paul era duas coisas quando estava
chapado: paranoico e tarado.
- Provavelmente aquele escritor gordo currando aquela bisca no quarto abaixo do nosso. - disse Adam.
- Se for isso, eles devem ser o casal mais mal coordenado da história da humanidade. E o mais rápido também.
- Agora só quero pensar em nós. - disse Adam, descansando a cabeça no ombro de Paul. - Obrigado pelos momentos maravilhosos.
- Não, obrigado a você.
- E eu prometo não mencionar o tema da adoção por pelo menos uma semana.
- Você acabou de tocar no assunto.
Paul. - Esqueça que eu falei qualquer coisa.
Adam puxou as cobertas até o queixo e curvou o corpo contra o calor de Paul. Adam estava preocupado que tivesse problemas para dormir. A fazenda no topo da montanha
era muito silenciosa para um garoto da cidade e Adam nunca havia experimentado esse tipo de escuridão quase total.
- O que você acha de ligarmos o rádio escondido? - perguntou ele.
- Você trouxe as pilhas?
- Sim. Pensei que poderíamos querer um pouco de contato com o mundo exterior. O rádio está na minha mala.
- Vou ter que passar por cima de você para pegá-lo.
- Eu não mordo.
- Eu estou muito cansado, de qualquer forma. "Frescura", como diria aquele fotógrafo metido.
- Você bebeu vinho demais, só isso. E sabe como a maconha deixa você.
- Hoje foi por diversão. Amanhã, vou voltar a trabalhar.
Adam pegou o rádio, trouxe-o para a cama e o ligou. Ele girou o botão de sintonia, mudou de FM para AM, mas nada além de estática. - Acho que as ondas de rádio são
bloqueadas pelas montanhas.
- Ou as músicas pop são censuradas aqui para cima.
Eles deitaram por alguns instantes na escuridão. A casa estava parada e silenciosa. As brasas haviam diminuído na lareira e Adam não estava com vontade de pegar
um fósforo para acender a lamparina ao lado da mesa.
- Estive pensando. - disse Paul.
- Novidades de imprensa. Parem as impressoras.
Paul cutucou Adam nas costelas. Adam fez cócegas em resposta.
- Falando sério. - disse Paul - Estou pensando em fazer um documentário sobre esse lugar.
- Esse lugar?
- Solar Korban. É único, e poderia fazer algumas filmagens dramáticas. A história de Ephram Korban parece ser bem interessante, também. Um industrial com complexo
de Deus.
- Um documentário histórico?
- Algo no estilo.
- E todas essas filmagens que você já fez, todas essas semanas nos Adirondacks e Alleghenies?
- Vou deixar guardado. Posso usá-las a qualquer momento.
- Não sei, Paul. As pessoas que estão financiando você podem ficar irritadas. Afinal de contas, você assinou um contrato para um documentário sobre a natureza apalachiana.
- Ao diabo com esses comitês de custeio. Faço o que quero.
Paul estava forçando um pouco seu lado Orson Welles. Mesmo no escuro, Adam podia vê-lo fazendo o famoso beicinho.
E daí que Paul havia gasto meses filmando e ainda tivesse semanas de pós-produção, edição e script pela frente? Eram detalhes técnicos. Paul queria ser um artista,
o autor, o visionário imprudente, recusando teimosamente se vender.
Não importava o custo.
Mas Adam não estava com vontade de argumentar. Não depois dos momentos bons que tiveram.
- Por que você não dorme com a ideia na cabeça e amanhã conversamos mais sobre o assunto?
- Adam bateu de leve no bíceps bem desenvolvido de Paul. Carregar uma câmera de dez quilos e um cinto de baterias pelas montanhas durante todo o verão realmente
o haviam deixado em forma.
- Quero dizer, isso é como um mundo alienígena ou algo parecido. - disse Paul -Sem eletricidade, as pessoas vivendo como se fazia cem anos atrás. E os empregados,
todos ainda vivem aqui, como servos à volta de um castelo.
Adam estava escorregando para o sono, apesar da excitação de Paul. - Ahã. - murmurou.
Ele deve ter caído no sono, pois estava de pé sobre uma torre, o vento soprando pelos cabelos, árvores negras balançando abaixo dele...
Não, não era uma torre. Ele reconhecia o terreno à volta do solar. Ele estava no topo da casa, naquela área plana demarcada por um parapeito branco... - como era
mesmo que a empregada o havia chamado? Ah sim, balaustrada - ... e Adam se viu subindo sobre o parapeito, olhando para o caminho de pedras vinte metros abaixo, as
nuvens lhe dizendo para pular, empurrando... Então ele estava voando, caindo, o vento lhe balançando, porque...
- Adam! Acorde! - Paul estava balançando seu ombro. Paul havia sentado na cama, os cobertores à volta de sua cintura. Uma boa quantidade de tempo devia ter passado,
pois o luar entrava pela janela.
- O que foi? - Adam ainda estava embotado pelo sonho e pelas bebidas do jantar.
Paul apontou para a porta, seus olhos grandes e úmidos na penumbra. - Eu vi algo. Uma mulher, acho. Toda vestida de branco. Ela era branca.
- Isso são os Apalaches do sul, Paul. Aqui todo mundo é branco. - Adam afastou os fragmentos do pesadelo.
- Não, não era desse jeito. Dava para ver através dela.
Adam bufou sonolento. - Isso é o que acontece quando você fuma mato panamenho. É de surpreender que você não tenha visto o fantasma de J. Edgar Hoover vestido de
drag queen.
- Não estou brincando, Adam.
Adam colocou a mão no peito de Paul. O coração de seu namorado estava batendo forte.
- Volte para debaixo das cobertas. - disse Adam - Você deve ter adormecido e tido um pesadelo esquisito. Acho que tive um também.
Paul deitou de costas, a respiração rápida e curta. Adam abriu os olhos momentaneamente para ver que Paul estava olhando para o teto. - Sem bebidas ou maconha amanhã,
certo?
Houve um período de silêncio, um que alguém saturado do barulho de Nova Iorque pudesse realmente apreciar. Finalmente Paul disse: - Eu disse a você que andei trabalhando.
Adam conhecia aquele tom. Eles haviam discutido o suficiente para umas férias. Adoção, o vídeo de Paul, seu uso de drogas. E agora Paul estava vendo coisas. Adam
subitamente ponderou se sua relação sobreviveria a seis semanas no Solar Korban.
Ele virou de costas para Paul e se enterrou nos travesseiros.
- Ela segurava flores. - disse Paul.
CAPÍTULO 24
As mãos de Mason doíam. Serragem e cavacos estavam espalhados pelo chão à volta de seus pés. Farpas de madeira haviam penetrado pela parte de cima de seus tênis
e estavam machucando a pele à volta de seus tornozelos. Ele largou o formão e o maço sobre a mesa e se afastou para olhar a escultura.
Ele havia trabalhado com fervor, sem pensar sobre qual veio da madeira seguir, quais partes extirpar, onde cortar. Limpou a testa com a manga da camisa de flanela.
O recinto havia esquentado. As velas haviam derretido fazia muito tempo e o nível do óleo estava baixo na lamparina. Ele deve ter trabalhado por horas, mas a dor
em seus membros era a única prova da passagem do tempo.
Exceto pelo busto à sua frente, sobre a mesa.
Ele nunca havia tentado um busto antes. Aproximou a lamparina, examinando a escultura com olhos críticos. Ele não conseguia ver nenhuma falha, nada fora de proporção.
Mesmo as curvas das orelhas eram naturais e vivas, as sobrancelhas delicadamente entalhadas. A escultura era fiel ao seu objeto.
Fiel DEMAIS, pensou Mason. Estou muito longe de ter a capacidade de produzir algo assim. Tive alguns sucessos em minha caminhada. Mas isso... Jesus Cristo crucificado,
não poderia ter entalhado o rosto de Korban tão bem nem se conhecesse o cidadão.
Mas era a cabeça de Korban na mesa, o Korban que preenchia as imensas pinturas a óleo nos andares de cima, a mesma face que flutuava sobre a lareira no quarto de
Mason. O mais impressionante de tudo era que os olhos possuíam poder, do mesmo modo que nas pinturas. Isso era ridículo. Os olhos eram de bordo, madeira sem vida.
Ainda assim...
Era quase como se a figura tivesse vida. Como se a verdadeira forma da madeira sempre tivesse sido essa, como se o busto sempre tivesse existido e estivesse preso
dentro da árvore. O rosto esteve encarcerado e Mason apenas inserira a chave e abrira a porta.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. - Não tenho a mínima ideia de onde veio, - disse ele para o busto - mas você fará os críticos me amarem.
O amor dos críticos significava sucesso, e isso significava dinheiro. Sucesso significava que nunca mais teria que colocar os pés em outra fábrica enquanto vivesse,
ele não teria que assoar pedras cinzas do nariz a cada folga e não teria que esperar a sirene para lhe dizer quando ir ao banheiro ou comprar um chocolate ou correr
junto com os outros operários para o estacionamento na hora de ir embora. Claro, ele ainda tinha anos de entalhes pela frente, mas o sucesso começava com um primeiro
grande triunfo.
Ele já estava planejando encomendas corporativas, o trem de luxo dos artistas. Compraria uma casa para sua mãe, algum programa para auxiliá-la a ler, um computador
caro e, por fim, outros meios de compensá-la pelos anos de deficiência e trabalho duro. Melhor de tudo, ele poderia fazê-la sorrir.
Ou talvez ele tivesse sido sugado pela Imagem de Sonho, o pico de adrenalina que vinha após um trabalho ser terminado. Ainda tinha que tratar a madeira, passar a
lixa fina e fazer o polimento. Uma centena de coisas ainda podia dar errado. Mesmo seco como estava o bordo, depois de anos na floresta, a madeira poderia rachar
e quebrar.
Mason massageou o ombro. Suas roupas estavam úmidas de suor. O esgotamento que havia crescido sob a superfície agora se avolumou e quebrou como uma grande onda.
Apesar de estar cansado, estava muito agitado para dormir. Ele deu uma última olhada para o busto de Korban e então o cobriu com uma velha lona que estava jogada
em um canto.
Os primeiros raios vermelhos do amanhecer penetravam como lanças pelas janelas basculantes. A barba por fazer coçava no rosto de Mason. Em sua vida pregressa, estaria
já na terceira xícara de café, esperando na esquina o furgão para levá-lo ao trabalho. O começo de um novo dia era igual ao de outros mil.
Mason fez o caminho de volta para sair do porão, inclinando-se para passar por debaixo e vigas e desviando das mobílias. Ele finalmente encontrou as escadas e subiu
para o piso principal. O cheiro de ovos, bacon e biscoitos vinha em ondas da ala leste e o barulho de louças tilintou de um aposento distante. A barriga de Mason
rosnou. Um casal de velhos passou por ele no saguão de entrada, o vapor subindo das xícaras de café. Eles lhe cumprimentaram de modo cauteloso. Mason deu-se conta,
então, de que provavelmente estava com uma aparência suja e cansada, como um fugitivo lunático que arrombara um consultório médico.
Quando Mason chegou a seu quarto, olhou novamente para a pintura de Korban, maravilhando-se com o quanto sua escultura se parecia com a figura sisuda da pintura.
Mas o rosto parecia menos sisudo nessa manhã. E os olhos tinham adquirido mais brilho...
Não seja tão IDIOTA, ele se repreendeu com o sotaque de William Roth.
Mason tomou um longo banho quente e depois deitou-se na cama, enquanto o amanhecer se insinuava pelas frestas da cortina. Com a visão cansada de sua mente, ele viu
primeiro o rosto de Korban, que lentamente se dissolveu, mostrando o rosto de Anna. Então, sua mãe, as feições cansadas, ainda mais tristes pela luz patética de
esperança que, de algum modo, ainda brilhava em seus olhos. Ransom, segurando seu patuá. Korban, as pupilas negras guardando segredos escusos. Anna, suave e vulnerável,
abrigando seus próprios segredos.
Korban. Sua mãe. O busto. Anna.
A Srta. Mamie. Ransom.
KorbanAnnaSrta.MamieAnnaKorban. Anna.
Ele decidiu que gostava mais do rosto de Anna e pensou nela até adormecer e sonhar com madeira.
CAPÍTULO 25
Anna acordou antes que o primeiro canto do galo quebrasse o silêncio negro. Do outro lado do quarto, Cris rolava em seu sono. A escuridão atrás dos olhos fechados
de Anna não era tão completa quanto a escuridão dentro do quarto. Lampejos de azul e vermelho brilharam por dentro de suas pálpebras.
Ela vestiu seu roupão e foi ao banheiro. O encanamento antigo se utilizava de gravidade para funcionar a descarga e a pressão da água era inconsistente, apesar do
aquecimento central garantir bastante água quente. Ela acendeu uma lamparina dourada antes de desligar sua lanterna e então entrou no chuveiro e abriu as torneiras.
Sob o surdo tamborilar da água, ela esqueceu a dor na barriga. Ela não havia sonhado na noite passada, apesar das perguntas terem rodopiado loucamente enquanto escorregava
para o sono.
Onde estava seu fantasma? Quem era Rachel Faye Hartley? Por que a Srta. Mamie era tão curiosa a respeito de seu "dom"? Quanto tempo restante ela tinha? O que aconteceria
quando esse tempo acabasse?
E a maior de todas: alguém daria a mínima?
Ela abriu a cortina do chuveiro e se envolveu na toalha. O banheiro havia esfriado e, com o chuveiro desligado, o vapor desprendia-se pesado de sua pele. Ele cobriu
o espelho sobre a pia e, apesar de não estar com vontade de cobrir as olheiras que formavam-se abaixo de seus olhos, ela queria ter certeza de que poderia passar
por forte e animada.
Ela estava para pegar a toalha de rosto a fim de secar o espelho quando o banheiro ficou ainda mais frio, como se um vento tivesse penetrado uma fresta sob a porta.
Sua face embaçada no espelho espirava vapor.
Então, a água acumulada no espelho começou a escorrer em veios e Anna não conseguia acreditar em seus olhos. Porque mesmo alguém que via fantasmas não via coisas
desse tipo.
Letras se formaram, como que desenhadas pela ponta de um dedo invisível, os símbolos prateados na luz suave da lamparina: "V-Á".
Ela viu os próprios olhos arregalados refletidos na palavra, enquanto um segundo conjunto de letras se formou na superfície do espelho: "F-O-R-A".
- Vá fora? - Anna sussurrou, a mente agora transformando os símbolos em palavras.
Seria isso um tipo de mensagem? De quem? Vá para fora do quê? Será que alguma coisa a queria fora da casa?
Mas outra palavra estava se formando, enquanto o vapor ameaçava se transformar em gelo e o tremor começava a se instalar em sua pele.
"C-O-N-G-E-L-A-R" logo acima da borda do espelho.
Anna lutou para respirar, os pulmões parecendo duas pedras congeladas. Então as letras ficaram borradas, o vapor frio se acumulou, escorreu espelho abaixo e as palavras
se foram.
- Vá fora congelar. - disse Anna.
Ela se secou rapidamente e voltou apressada para o quarto para avivar o fogo.
CAPÍTULO 26
- Vai ficar lindo.
A Srta. Mamie olhava amorosamente o busto que Mason havia entalhado. O escultor tinha talento. Ephram havia escolhido sabiamente. Mas Ephram sempre escolhia bem,
no amor, na vida e agora na morte.
- O Sr. Jackson trabalhou até tarde da noite. - disse Lilith segurando a lamparina alto para que a luz iluminasse todas as feições conhecidas de Korban. - Ele não
descerá aqui por um tempo.
A Srta. Mamie sentia tanta vontade de acariciar o rosto de Korban que isso lhe doía, mas ela não ousava drenar nada de sua energia. Ela era de Ephram. Ela o tocaria
novamente e logo. A lua azul estava apenas a duas noites no tempo.
Lilith foi para o canto do estúdio e levantou a pintura a óleo. - Essa era minha favorita. - disse ela.
- Largue isso. Acabou seu tempo de pintar. E o dele também. Coloque-se em seu lugar.
Lilith retornou a pintura para as sombras. Lilith era apenas outra empregada, outra ferramenta para construir a ponte de Ephram para esse mundo. Mas o espírito de
Lilith ainda pairava no ar, um eco distante de sonhos que ela havia criado, sonhos que alimentavam Ephram e mantinham sua alma adormecida. Ela era como os outros,
faminta demais por seu próprio retorno, obcecada demais pela própria fuga.
Ela não sabia que nunca escaparia.
- Você pode ir agora. - disse a Srta. Mamie - Ajude com o almoço. Irei logo em seguida.
Lilith deu outro olhar perdido para a pintura.
Como se ela alguma vez tivesse sido uma artista tão talentosa quanto Ephram.
Ah, Lilith tinha tentado, fizera sacrifícios, mas estava apenas aprendendo o básico quando se afogara na lagoa atrás do celeiro. O seu túnel espiritual sempre a
levava lá, para aquele porão escuro onde uma vez ela ousara criar.
Lilith subiu as escadas e fechou a porta do porão. Estavam a sós.
- Ah, Ephram. - disse a Srta. Mamie para o busto - É melhor do que qualquer coisa que eu tenha imaginado.
O carvalho flexionou e se esticou, os olhos piscaram entre as pálpebras de madeira. Então os lábios se abriram. - Sim. O encaixe é muito bom.
Ela se agachou de forma que seus olhos estivessem no mesmo nível. Ela tocou o rosto áspero e correu a mão pela barba entalhada.
- Está funcionando. - sussurrou ela - Bem do jeito que você disse.
A sobrancelha rígida se elevou. - Demorará um tempo para eu me acostumar. Logo, Margaret, meu amor, terei braços para abraçar você novamente. Mãos com as quais pintar,
olhos para novamente ver o mundo, pernas para caminhar a seu lado. Mas o escultor deve trabalhar mais arduamente. Tem que estar pronto a tempo.
- Farei com que comece essa noite. - Ela ficou pensando como seriam os braços quando Mason Jackson terminasse a estátua em tamanho real. Talvez eles ficassem rústicos
e desajeitados.
Mas revestir-se de madeira com certeza seria melhor que ficar confinado à pedra dura, às paredes sem vida e à grama fria do solar. Ephram depois poderia utilizar
sua magia para suavizar a madeira, domá-la, torná-la macia.
Seu poder estava aumentando conforme a lua azul se aproximava. Ela podia sentir nos ossos, como se ele fosse um leito de brasas pronto para explodir em labaredas.
Ele estava convocando seus servos, aqueles que haviam morrido sob sua magia, aqueles que temiam as coisas escuras e serpenteantes existentes nos túneis de suas almas.
Ele devorava seus sonhos e os alimentava com medo. E ela havia ajudado entalhando seus bonecos, escondidos naquela velha cabana em Beechy Gap, de forma que suas
almas nunca poderiam deixar a montanha.
- Logo. - disse a Srta. Mamie, a palavra como uma longa e dolorida promessa.
Isso era o fim de décadas de espera, de ações negras e morte, de armações, roubos e escravidão. O tempo não era nada para Ephram, mas a Srta. Mamie ainda se agarrava
à impaciência da mortalidade. Possessões funcionavam em ambas as direções, o cabo puxando igualmente forte nos vivos e nos mortos.
Os lábios de madeira de Ephram se juntaram e então se esticaram em um sorriso. - Deixar as paredes me deixa fraco.
- Você será inteiro novamente. Só mais duas noites.
- E Anna?
- Ela está fraca. Morrendo.
- Ah. Bons sonhos.
O busto sorriu, os olhos fechados, a fronte cerrada em concentração. - Faça com que ele me termine. - disse Ephram, com esforço.
- O Sr. Jackson tem paixão. - disse a Srta. Mamie - Ele o ama, o adora, quer lhe agradar.
- Ele adora apenas a carne de seu trabalho. Seu espírito é meu.
- Todos pertencemos a você. Todos sonhamos com você.
- Como deveriam.
- E quando você atrair Sylvia para o solar -
- Você não deve mencionar o nome dela. - Os olhos no busto se abriram, brilhando com tons de laranja e vermelho. Ela se encolheu, esperando que Ephram a punisse,
que lhe devolvesse os anos todos, roubasse o dom da juventude. Ela ajoelhou-se, a cabeça baixa, lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Você sabe por que eu nunca a levei pelo túnel de sua alma? - disse Ephram, a voz fria, morta há muito tempo e quase fatigada.
A Srta. Mamie enxugou os olhos e fungou com esperança. - Por que você me ama?
Esse era o único sonho que valia a pena ter, o único que sobreviveria após a morte. O amor os absolveria do mal, faria com que as mortes, os truques espirituais
e a tortura de coisas mortas valessem a pena e fosse um ato nobre. O amor perdoaria o que Deus não perdoa.
A risada de Ephram foi áspera e abrupta, preenchendo o ar parado do porão. Ela olhou dentro dos olhos quentes e cruéis.
- Não, não, não. - disse ele, mais confortável agora dentro da madeira, penetrando os ângulos, fendas e espaços entalhados até que ela se tornou seu rosto. - Eu
a poupei porque preciso de você. Você é a única pessoa que nunca me trairia.
Sylvia o havia traído, apesar de a Srta. Mamie não querer lembrá-lo disso. Sua ira contra Sylvia poderia se voltar contra ela novamente, como geralmente acontecia.
Mas a Srta. Mamie poderia saber o que o incomodava se fizesse as perguntas corretas.
- Eu tenho que saber. - disse ela, sem ar, o estúdio sufocando-a - Você me ama mais que tudo?
O busto suspirou. A Srta. Mamie pensou se um homem morto seria capaz de mentir. Não, não Ephram. Ele nunca mentira e sempre cumprira suas promessas.
- Margaret, existe apenas você. Para sempre. Por que acha que fiquei aqui, acorrentado a essa casa com você?
Se apenas ela pudesse ter certeza. Mas um lar de amor não podia ser construído sobre alicerces de dúvida. - Então por que você manteve Sylvia viva, também?
O silêncio preencheu o porão, as sombras esperando impacientemente nos limites da luz que a lamparina fornecia. Ela apenas ousou desafiá-lo porque sabia, com a lua
azul aproximando-se, que Ephram precisava dela mais que nunca. E ela queria que ambos se possuíssem, mente, corpo e espírito. Sem segredos.
- Eu a mantive velha. - disse Ephram - E nunca a trouxe para dentro de meu coração. Existe apenas espaço para você aqui, dentro de mim, em meu lado morto. E logo,
quando possuir pernas, caminharemos lado a lado, juntos.
A Srta. Mamie secou as lágrimas. Como poderia ter duvidado dele?
Ela não pôde evitar, se inclinou para frente, manteve seu rosto encostado à madeira, encostou a pele contra os lábios incandescentes de seu amante.
Então, ele se foi, de volta para as paredes onde o fogo poderia aquecer sua alma.
CAPÍTULO 27
Mason acordou a tempo de perder o almoço. Em sua boca, parecia que tinha uma meia suja entalada. Alguém havia alimentado o fogo enquanto ele dormia. Ele vestiu sua
outra calça jeans e uma camisa de flanela vermelha. Ele pensou na escultura enquanto escovava os dentes, pensando se realmente a terminara em uma única noite.
Ele estudou o reflexo no espelho do banheiro. Olheiras escuras envolviam seus olhos. Não estava acostumado a trabalhar em horários estranhos. Ele geralmente seguia
a teoria de trabalho do "devagar e sempre", e nunca antes fora varrido por uma tormenta criativa como aquela que dera origem ao busto. Não admira que os chamados
"verdadeiros visionários" tenham queimado e se partido tão jovens.
- Ah sim, sou um verdadeiro visionário, com certeza. - disse para seu reflexo turvo. - Duplamente visionário.
O reflexo brilhou um pouco e ele esfregou os olhos. Uma onda de tontura o acometeu e ele tentou se equilibrar. Uma mão segurou a pia e a outra pressionou o espelho.
O vidro era quente sob sua palma. Por um breve momento, Mason viu o busto que havia esculpido em vez de seu próprio reflexo e, então, a alucinação passou. Franziu
o cenho e jogou água no rosto. Já era ruim o suficiente ver o rosto de Korban em todas as telas à volta, mas se o desgraçado fosse ficar flutuando para sempre diante
de seus olhos, então talvez Mason precisasse de uma pausa. Ou um psicólogo.
Os andares acima estavam quietos. Descendo pelas escadas, ouviu os barulhos crescentes daquilo que ele cogitou ser a cozinha. Empregadas carregavam a comida pela
porta para a saída à esquerda das escadas. Ele se perguntou se alguém se importaria se ele desse uma entradinha para comer.
Mason colocou a cabeça pela porta basculante. Uma mulher gorda e severa lutava com uma frigideira de ferro fundido junto à pia, algumas bolhas de sabão presas à
bochecha.
- Olá! - chamou Mason - Está tudo bem se eu roubar um sanduíche?
Ela o encarou enfurecida. Ele olhou por sobre o ombro e viu-a acenando rapidamente para um balcão ao lado do fogão. Um pão feito em casa encontrava-se sobre uma
tábua, três ou quatro fatias empilhadas ao lado.
A maior parte do almoço havia sido limpo, mas o odor de truta frita ainda flutuava pelo ar. Mason passou por um longo fogão com grades metálicas. Havia uma porta
de cada lado para estocar lenha e uma grande abertura no meio para o forno. Um fogão menor ficava ao canto, os encanamentos saindo para cima e dobrando-se pela parede.
Mason ficou maravilhado com o pensamento de alguém cozinhando com esses utensílios primitivos, que dirá criar as refeições suntuosas servidas para os hóspedes pomposos
do solar.
Mason pegou duas fatias de pão. - Algo para colocar no meio delas?
A cozinheira o olhou ameaçadoramente e limpou a faca de açougueiro com seu pano de pratos. - Ali, na caixa de gelo. - ela disse, com um sotaque bávaro, apontando
a faca na direção do que parecia ser uma cômoda atarracada com portas, em vez de gavetas.
Mason abriu uma das portas e sentiu uma lufada de ar frio. Nas prateleiras de metal, estavam alguns ovos em um cesto, uma grossa roda de queijo, um pote com creme,
um pedaço de presunto com osso e algumas frutas e vegetais. Um bloco de gelo assentava-se na prateleira mais alta, seus cantos arredondados pelo derretimento. A
água pingava dentro de uma bandeja ao fundo da caixa de gelo.
Mason tirou o queijo e o presunto, colocou-os sobre o balcão e pegou uma pequena faca de um suporte de madeira. Cortou algumas fatias de cada um deles e os colocou
sobre uma fatia de pão. Ele podia sentir os olhos da cozinheira em suas costas.
- Não se preocupe, vou limpar tudo depois. - O sorriso de Mason não evocou nenhuma mudança em seus olhos duros. Ele pegou algumas folhas de alface, adicionou-as
ao sanduíche, colocou outra fatia de pão e amassou tudo.
- É assim que fazemos em Sawyer Creek. - disse ele, dando uma mordida.
A cozinheira franziu o cenho e voltou aos pratos sujos. Foi aí que Mason viu a pintura na parede, sobre a porta. Outro retrato de Korban. Esse era pintado em sombras
profundas, os olhos frios como nos outros retratos. Será que havia algum cômodo da casa que não tivesse o olhar severo desse homem implacável?
Uma cafeteira estava sobre o fogão menor. Algumas canecas de café penduradas em ganchos em um suporte junto da pia. Mason caminhou à volta do balcão e estendeu a
mão para pegar uma.
- Com licença. - disse ele, quando a cozinheira estremeceu. Mason perdeu o equilíbrio, ainda tonto com o sono fora de hora. Ele tirou a mão para evitar cair por
cima dela.
Quando ele a tocou no ombro, ela deu um grito e deixou cair o prato, que se partiu no chão. Mason deu um passo para trás e olhou para a mão.
Não. Isso não pode ter acontecido.
A porta se abriu e a Srta. Mamie entrou na cozinha, o rosto contorcido em desaprovação.
- Desculpe, foi minha culpa. - disse Mason. Ele estava para mencionar que ficaria feliz em pagar pelo prato quando se lembrou de que não possuía dinheiro.
- Gertrude? - disse a Srta. Mamie. Seus olhos pareceram ficar ainda mais escuros enquanto a face da cozinheira ficava pálida. A cozinheira olhou para o retrato de
Korban sobre a pia.
- Não, de verdade, fui eu. - disse Mason - Eu estava pegando uma xícara...
- Hóspedes geralmente não são permitidos na área da cozinha, Sr. Jackson, por razões que, tenho certeza, o senhor entenderá.
- Ah, claro. Eu estava de saída. - Ele pegou o sanduíche e caminhou para a porta.
- De volta ao trabalho agora, Gertrude. - disse a Srta. Mamie. A cozinheira imediatamente afundou os braços na água ensaboada com os pratos, assustada demais para
parar e varrer os fragmentos de cerâmica espalhados pelo chão.
A Srta. Mamie manteve a porta aberta para que Mason pudesse passar e o seguiu para o saguão de entrada. - Está gostando de seu trabalho no porão? - perguntou ela,
mais uma vez sorridente, como se o incidente na cozinha nunca tivesse acontecido.
- É perfeito. - disse Mason, continuando pelo saguão, ainda desconfortável. - É bem privado e com espaço suficiente para que eu possa usar as ferramentas. E as paredes
possuem isolamento suficiente para que eu possa trabalhar sem incomodar ninguém.
- Encantador. - disse ela - Mestre Korban ficaria satisfeito.
- Fica calor demais aqui embaixo, algumas vezes.
- Bem, temos que manter o fogo central aceso. Nós nos orgulhamos de ter água quente vinte e quatro horas por dia.
- Claro, compreendo. Não é intolerável ou algo assim. A pior parte é ficar suado e cheirando mal, eu não gostaria de espantar seus hóspedes.
- É para isso que temos água quente, Sr. Jackson.
Mason chegou à porta do porão. Ele tinha que descer e ver se realmente havia esculpido o busto de Korban ou se a noite anterior havia sido um sonho. Ele se perguntou
se a Srta. Mamie o seguiria.
- Bem, vejo você no jantar, acho. - disse ele, esperando junto à porta.
Ela colocou uma mão fria em seu braço. - Você receberá mais madeira essa noite, não é? Ransom já pegou a carroça.
- Bem, tenho que terminar algo antes.
- Ah, pensei que você faria uma escultura em tamanho real.
Mason vasculhou a memória. Será que ele tinha mencionado algo assim? Uma figura humana? Ele sequer havia pensado sobre isso? Talvez suas fantasias estivessem ficando
tão agigantadas que ele estava falando bobagens sobre elas antes de sequer começar a esculpir.
- Sim, estava pensando em algo nesse estilo. - disse ele.
- Você será bem-sucedido, mas deverá ter a energia certa para isso acontecer. Mestre Korban sempre disse que o trabalho árduo é a própria recompensa. Você sabe o
que dizem sobre mãos sem trabalho.
Mason ergueu a mão que não estava segurando o sanduíche. - Bem, melhor eu trabalhar, então. A Srta. Mamie deixou escapar um olhar de expectativa enquanto ele abria
a porta. Mason não gostaria de mostrar seu trabalho para ninguém até que tivesse certeza de tê-lo acabado.
- Vou falar com Ransom sobre a madeira. - disse, entrando pela porta. Ele a fechou atrás de si, tateando no escuro. Quando finalmente conseguiu descer os degraus,
seus olhos haviam se ajustado à penumbra deixada pelas pequenas janelas, altas na parede.
Ele chegou à bancada e levantou o pano. Da mesa, Korban olhou-o direto nos olhos. Não, não Korban. Apenas uma réplica bem detalhada.
Mas apenas por um momento...
Calma, rapaz. Você está com o sono atrasado, só isso.
Então Mason olhou para sua mão, lembrando-se de como a havia sentido quando tocara na cozinheira. Quando havia passado através da cozinheira.
Lembrando-se de como sua mão havia mergulhado na carne dela, como se ela fosse feita de pão encharcado. Lembrando-se de como sua mão havia queimado.
Certo, então você está com mais problemas que simplesmente a falta de sono. Você com certeza bateu na cabeça com o maço, à noite passada.
Talvez a fome fosse a culpada. Ele deu outra mordida no sanduíche.
Sim, fome. Era melhor ele engordar durante sua estadia. Talvez os dias à frente fossem magros. A não ser que ele conseguisse continuar produzindo coisas como isso.
A escultura era a prova sólida de sua habilidade. Detalhes finos e vívidos. Cada pálpebra bem definida. Os lábios posicionados em um sorriso irônico entre o bigode
e a barba, prontos para se abrir e iniciar uma conversa. Mesmo quando ele se virou, sentiu como se os olhos o estivessem seguindo.
Ele achou uma velha vassoura e varreu as aparas de madeira para um canto. Então, ele viu a velha pintura onde a havia deixado, de encontro ao armário. Ele havia
esquecido de perguntar a respeito dela para a Srta. Mamie.
Mason pegou a pintura da paisagem com a casa, segurando-a no alto para poder admirar as pinceladas à luz do dia. Sim, linda, se apenas o artista houvesse consertado
aquele pequeno borrão.
O borrão havia aumentando, desde a noite anterior. A área cinza havia crescido a ponto de cobrir dois pilares da balaustrada.
Deve ter sido uma falha na pintura. Mas Mason nunca ouvira falar de uma pintura se deteriorando tão rapidamente. Apesar de completamente seca, a pintura era tudo,
menos antiga.
Ou talvez fosse apenas sua imaginação.
O incrível borrão que aumentava, Ransom e seus patuás, Anna e suas visões de fantasmas, a esquisita Lilith, a cozinheira incorpórea. Claro, ele poderia colocar a
culpa de todas aquelas coisas na sua imaginação. Mas é como dizem, melhor culpar alguém que a si próprio.
Estresse.
Porque era isso, o último grande brado de guerra, a bolada toda, a última cartada, o passo final. O último grande sonho. Porque se ele não produzisse algo aqui,
era de volta para a fábrica de tecidos, provavelmente para sempre.
E ISSO deixaria Mama orgulhosa, não é mesmo? Após todo seu sacrifício.
Mason terminou o sanduíche, mesmo tendo perdido o apetite. Esse busto poderia não ser sua obra-prima. A Srta. Mamie estava certa: maior era melhor.
CAPÍTULO 28
- Fez alguma filmagem hoje pela manhã? - Adam encostou-se na escrivaninha e cruzou os braços.
Paul colocou a câmera de lado. - Tenho que economizar as baterias. Tenho só quatro agora. Isso me dá umas oito horas de rodagem. E não há como recarregá-las por
aqui.
Adam observou Paul guardar o equipamento no closet. Seu companheiro tinha um corpo bonito, ele tinha que admitir. Mas Adam algumas vezes se perguntava se a relação
tinha sido construída com base em algo mais que simplesmente a atração física. Paul gostava da Times Square e o lugar dava arrepios em Adam. Paul gostava de cafeterias
e festas, enquanto Adam gostava de se enrodilhar em um sofá com um bom livro. No fundo, Paul era MTV tarde da noite e Adam um VH-1 de final de semana.
E ainda havia a questão da adoção. Adam estava pronto para criar um filho, para compartilhar o amor de seu coração. Ele tinha dinheiro de sobra de sua herança, o
suficiente para pagar as taxas de adoção aos advogados, o suficiente para os tribunais ficarem satisfeitos que Adam possuía as qualidades parentais desejáveis: poderia
comprar qualquer brinquedo obscenamente caro para o natal, para que a criança não se sentisse um pária, esnobado pelos amigos e eternamente desprezado pelos comerciais.
Adam estava com receio de que, em alguma parte escondida de si, ele apenas quisesse a criança para prender Paul. Seu amante era um espírito livre e o havia magoado
sem saber, viajando com um homem mais velho em um cruzeiro antes de Adam ter coragem e abrir seu coração. Paul havia sido fiel desde então, mas Adam pensava que
a tentação certa ainda não havia aparecido. Na verdade, pensava que isso nem poderia ser chamado de fidelidade, até que isso tudo sobrevivesse a um teste.
- O que você quer fazer à noite? - perguntou Paul. - Descer para umas bebidas?
- Você poderia ter me encontrado para almoçar.
- Olhe, não temos que passar cada maldito minuto juntos, temos?
Adam não respondeu, pois algo se moveu no espelho, um tremor lançado pela lareira.
- O que há de errado? - disse Paul.
Adam esfregou os olhos. - Nada. Estou só um pouco esquisito, acho.
Paul sorriu. - Ah sim. Talvez você tenha visto a mulher vestida de branco. E você pensou que eu estivesse mentindo.
- Muitas coisas esquisitas estão acontecendo. Acabei de ver...
- Viu o quê?
- Não sei dizer. Só o reflexo da pintura. Sinto como se... como se tudo estivesse ficando fora de controle. Quero dizer, estamos brigando o tempo todo e eu devo
me preocupar com seu vídeo idiota e você não liga a mínima para o que digo. E esse lugar está me deixando nervoso.
- Deixa disso, é só nosso terceiro dia aqui.
- E esses problemas vão simplesmente desaparecer?
O rosto de Paul se fechou de raiva. - Eu não tenho tempo para isso agora. Para falar a verdade, eu nunca tenho tempo para essas discussões sem sentido. Tudo o que
você quer fazer é andar em círculos.
- Olha só, eu não ligo de pagar por essas férias, mas pensei que você trabalharia em seu projeto -
- Ah, lá vamos nós com essa besteira de novo! Você e seu dinheiro.
Adam estava à beira das lágrimas. Paul desprezava lágrimas e diria que Adam estava sendo apenas uma mocinha sensível. E diria isso com um ar de superioridade de
alguém cujas emoções estão sempre sob controle. Exceto a raiva.
- Ô, princesa. - disse Paul, vindo até ele e o abraçando. - Alguém deixou você nervosa? Você precisa de outra transa para não ficar chateada?
- Vá embora. - Adam tirou os braços de Paul de sua cintura. - Seu desgraçado.
A visão de Adam turvou-se de raiva. Isso era loucura. Ele nunca perdia o controle desse jeito.
- Certo, princesa. - disse Paul - Não me espere.
Adam sentou-se na cama depois de a porta bater. Ele gostaria de nunca ter vindo ao Solar Korban. Levantou-se e segurou o poste da cama com força, separando as camas
de solteiro. Quando ele as tinha colocado uma em cada canto do quarto, levantou os olhos e olhou para a pintura de Korban,
- Paul pode ficar com a mulher de branco e eu fico com você. O fogo rugiu em aprovação.
CAPÍTULO 29
Os cavalos eram belos e esguios, os músculos se movendo com graça. Não era surpresa serem os animais preferidos de Anna. Uma vez, antes do laudo fatal do oncologista,
ela havia sonhado em ter um estábulo e criar cavalos. Mas esse sonho era agora fugaz e irreal como todos os outros, não importa se o sonho fosse o Solar Korban,
Stephen ou seu próprio fantasma.
Ela ouviu uma melodia assoviada, que pareceu ser "Yankee Doodle" e se virou para ver Mason caminhando pela estrada na direção do celeiro. Ele acenou e parou ao lado
dela na cerca, olhando as pastagens como se observasse um filme projetado contra as montanhas distantes.
- Então, como está indo a caçada aos fantasmas? - perguntou ele.
Ela não precisava disso. Stephen era ruim o suficiente, mas pelo menos acreditava em fantasmas, apesar dos seus serem leituras de energia em vez de almas. Mason
era apenas um otário egoísta, provavelmente um ateu cego, convencido a ponto de pensar que nada existia após a respiração cessar. Ateus eram mais proselitistas e
presunçosos que qualquer cristão que Anna tenha encontrado.
- Sabe de uma coisa? - disse ela. - Pessoas como você merecem ser assombradas. Mason abriu os braços em rendição magoada. - O que foi que eu disse?
- Você não precisa dizer em palavras. Seus olhos dizem o suficiente. Eles dizem "Que maluca adorável. Ela é fácil de se deixar impressionar pelo grande artista que
sou e é apenas uma questão de tempo até que ela caia na minha cama".
- Você deve ter me confundido com William Roth.
- Desculpe-me. - disse ela, sabendo que estava descarregando sua raiva e frustração em um transeunte relativamente inocente. Mas ninguém era completamente inocente.
- Estou apenas um pouco fora de mim nesse momento.
- Quer falar sobre isso?
- Claro. Como se você fosse entender.
- Olha só, eu vejo você dando longas caminhadas, bisbilhotando por aí com sua lanterna. Então você gosta de ficar sozinha. Tudo bem, eu também. Mas se coisas estranhas
estão acontecendo comigo, elas provavelmente também estão acontecendo com você. Talvez até coisas piores, porque nem morto eu iria lá no escuro. - Mason indicou
a floresta que, mesmo com a explosão de cores outonais, parecia produzir sombras agudas e ameaçadoras.
- De que coisas estranhas você está falando? Pensei que era cético.
- Ah. Notei que havia aguçado sua curiosidade científica, pelo menos. Você viu George por aí?
- George?
Mason chegou mais perto, baixando a voz como se quisesse evitar qualquer bisbilhotice. - Quanto tempo alguém tem que estar morto antes de virar um fantasma?
Anna olhou para o Solar Korban através das árvores, para a balaustrada com seu parapeito fino, onde a figura de seu sonho ficava de pé sob o luar. - Talvez isso
possa acontecer mesmo antes de a pessoa morrer.
- Certo. Que tal essa? Você pode ser assombrado por algo dentro da sua cabeça? Porque estou vendo Ephram Korban toda vez que fecho os olhos, o vejo no espelho, o
vejo na lareira, minhas mãos entalham seu maldito rosto mesmo quando quero trabalhar em algo diferente.
- Acho que os psicólogos chamam isso de "transtorno obsessivo-compulsivo". Mas isso descreve todos os artistas que conheço. E talvez noventa por cento de todos os
homens.
- Ei, não somos todos babacas! E espero sinceramente que você não tente massacrar todo mundo que tiver um sonho. Alguns artistas são pessoas normais que fazem coisas
simplesmente porque não sabem se comunicar com as outras pessoas.
- E alguns de nós são tão normais que procuram uma prova de vida após a morte porque essa vida é uma droga de tantas formas diferentes e porque os humanos sempre
nos desapontam. Fantasmas são mais fáceis de acreditar que a maioria das pessoas que já encontrei.
- Empate, então. Obviamente nós dois somos completamente malucos. Por um segundo eu pensei que não teríamos nada em comum.
Aquilo trouxe um sorriso pouco familiar aos lábios de Anna. - Tudo bem. Vamos começar de novo. Acho que você ouviu as histórias de fantasmas. Sobre como Ephram Korban
pulou para a morte da balaustrada do telhado, apesar de que as melhores lendas dizem que foi um de seus empregados que o empurrou pelas razões de sempre.
- E que razões seriam essas?
- Amor correspondido e não correspondido. Por que mais alguém tentaria matar outra pessoa? E, de acordo com as fofocas e mesmo alguns artigos de parapsicologia,
o espírito de Korban vagueia por essas terras, tentando achar um jeito de voltar para o solar no qual investiu tanto de seu tempo, dinheiro e energia.
- Você não acredita nisso, não é?
A manada de cavalos ouviu um chamado do celeiro e partiu galopando. - Gostaria de ser assim tão livre. - disse ela - Talvez eu volte como um cavalo na próxima vida.
- O lado ruim disso é que você tem que morrer primeiro. Como Ephram Korban.
- Bem, ele possui uma sepultura logo após aquela colina, mas isso não é mais que um buraco no chão. Não vi seu fantasma.
- Você realmente acredita que existem fantasmas aqui?
- Sei que existem. Quando o fogo de sua vida se apaga, você deixa um pouco de fumaça atrás de si. E não me peça para provar isso ou você me lembrará alguém que passei
o último ano tentando esquecer.
- Vou acreditar em você. Talvez eu peça a Ransom para me emprestar um de seus patuás. Dizem que isso mantém os espíritos inquietos à distância.
- Mal não fará. - disse Anna - Vou até o celeiro. Gostaria de me acompanhar?
- Estou indo para lá, de qualquer forma. A Srta. Mamie exigiu que Ransom me ajudasse a trazer um tronco grande para que eu possa esculpir uma estátua de tamanho
real.
- Ah, pobres artistas sofredores. Sempre tendo que agradar os críticos.
- Ah, pobres críticos, sempre tendo que inventar grandes frases cínicas.
Quando chegaram ao celeiro, Ransom havia levado os cavalos até um abrigo coberto construído em uma de suas alas. Ele olhou a cilha sob a barriga do grande garanhão,
cujas orelhas abanaram como se isso fosse um jogo familiar. Duas lamparinas brilhavam dentro do celeiro, penduradas em ganchos enferrujados. Tiras de couro e pedaços
brilhantes de metal pendiam de uma das paredes e quatro celas estavam alinhadas em uma bancada, abaixo dos arreios.
- Ora, olá, jovens. - disse Ransom, saudando-os. Ele olhou um pouco mais demoradamente para Anna e depois olhou para o céu franzindo o rosto.
- Precisa de ajuda? - perguntou Anna.
- Não, preciso de nada não, mas gosto da companhia. Ocê sabe algo sobre os cavalo?
- Um lado deles come e o outro não. - disse Mason.
- E um lado deles vai chutar você na virilha se continuar sendo idiota desse jeito. - Anna acariciou o nariz do castanho e segundos depois ele estava cheirando seu
pescoço, bufando suavemente pelas narinas. Se pelo menos ela fosse assim tão boa com homens. Quando ela ainda ligava para esse tipo de coisa, de qualquer forma.
Ou fantasmas. Seria uma boa mudança de ares se eles pudessem sair correndo do mundo dos mortos e virem correndo de braços abertos e sorrindo.
Ela esticou as rédeas no freio e passou o couro pelos anéis de ferro. - Esses caras são ótimos.
- disse ela para Ransom.
- Eles cum certeza gostam docê.
- Fui criada junto com cavalos uma vez.
- Uma vez? - perguntou Mason.
- Uma longa história, uma de várias. - disse ela.
- Se cuida aí, Mason. - disse Ransom - Uma muié cheia de segredo é notícia ruim. Ocês pode me ajudá a empurrá essa carroça pra fora?
Eles entraram no celeiro, Ransom parando para abrir as portas de correr. Ele estava prestes a entrar quando olhou para a parte superior da porta e segurou o patuá
à volta do pescoço. Ele o balançou e fechou os olhos, murmurando algo de forma ritmada que Anna não conseguiu ouvir.
- Maldição se eles não mudaram de novo. - disse Ransom. Ele rolou um barril de madeira até a porta, o escalou com as pernas trêmulas e ficou de pé, girando a ferradura
pregada sobre a porta. Ele a virou de forma que as pontas apontaram para cima, em direção ao céu.
- A sorte não funciona para o outro lado? - perguntou Anna.
- Esse feitiço é muito mais véio do que ocê pode pensar. Essa coisa significa "sorte" pra muitas pessoa, mas eles acabam usando isso dismais e a coisa toda perde
força e as pessoa deixam de acreditar nelas. Mêma coisa com os trêvo de quatro fôia.
- Com certeza, eles são deliciosamente mágicos, como cereal matinal.
- Costumavam ser e davam às pessoas o poder de ver fantasmas e bruxas. Nos tempos em que as pessoas acreditavam nisso.
Anna viu o olhar de Mason. - Então, só pra tirar a dúvida, ferradura para baixo é ruim, certo?
- É praticamente a mesma coisa que abrir uma porta para todo tipo de coisa morta que você consiga imaginar. Eu gosto que os mortos continuem assim. - Novamente,
ele lançou para Anna aquele olhar distante e entristecido. - Que pena que nem todo mundo para essas bandas pense do mesmo jeito.
Mason ajudou Ransom a descer do barril. Anna levou os cavalos para um moirão de madeira e depois seguiu os homens para dentro do celeiro. Os vários veículos movidos
a cavalo estavam alinhados perto da parede. A carroça de feno estava próxima à porta. A seu lado, alinhavam-se dois trenós, uma charrete com a capota aberta e uma
carruagem refinada com um lampião em cada canto. Todos eram restaurados e mantidos em tão boas condições que deixariam os colecionadores de antiguidades com os dedos
coçando. O aroma de óleo de sementes de algodão e couro lutava com o cheiro do feno pelo domínio do celeiro.
Uma grande colheitadeira para feno encontrava-se a um canto, levemente enferrujada. Havia um único assento para o operador e a atrelagem à frente para os animais
de tração. Os grandes dentes metálicos curvavam-se no ar como garras.
- Aquilo é uma máquina com aparência sinistra. - disse Mason.
- Verdade. - disse Ransom, retirando os calços da roda da carroça. - Aquilo é o catavento, a parte afiada que parece um forcado. E ocê também pode ver o braço cortadô
de capim. Funciona com as roda girando. Nóis ainda colhe o feno do jeito dificir aqui.
- Aposto que os cavalos adoram. - disse Anna.
- É sim, e eles são sabido o suficiente pra sabê que vão comê o feno quando o frio chegá.
- Você colherá algum enquanto estivermos por aqui? - perguntou ela, pensando como seria divertido ajudar. Trabalho físico pesado fazia maravilhas com a mente deprimida
e cheia de autopiedade. - Alguns dos campos à volta estão com o capim bem alto.
- Nóis tivemo que esperá um cisco porque os sinal estavam no coração.
- No coração?
- Não é o tempo certo de cortá aveia, trigo ou qualqué outra pranta de colher. É o tempo certo só de colher as coisa morta.
Mason limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - Ugh. Esse feno está me sufocando. - ele olhou para Anna e disse: - Desculpe ser tão rude. Esse é o jeito que fazemos
em Sawyer Creek.
- No caso docê não ter arreparado, isso aqui não é Sawyer Creek. - disse Ransom. Ele os levou para a traseira da carroça e pegou a atrelagem. - Encaixa os ombro
aí agora, vai.
Eles manobraram a carroça para fora do celeiro e em direção ao abrigo. Enquanto Anna e Ransom atrelavam os animais, Mason explorou o celeiro. Alguns minutos depois,
ele colocou a cabeça para fora. - Ei, o que há debaixo do alçapão?
Ransom acariciou a crina da égua castanha. - Batata, batata doce, repôio, maçã, nabo. Uma adega pras coisa que num precisa de ficar tão fria.
- Posso dar uma olhada?
Ransom foi até a bancada e calçou um par de luvas de couro rústicas. - Todinha sua.
Anna seguiu Mason até o canto do celeiro, onde o alçapão se encontrava, entre duas pilhas de feno.
- Tem umas porta no andar de baixo, onde o celeiro se assenta contra a colina. - disse Ransom. -Nóis pode colocá direto dos pomar e jardim direto aqui dentro, pôpa
um esforço danado. Aí tem um túnel que leva diretinho pra casa principal. O Ephram Korban resolveu cavar essa coisa nos caso de tê uma nevasca de repente. Ele sempre
tava falando sobre "os túnel da alma" ou coisa parecida, por alguma razão. Eu acho que ele era maluco da cabeça, se alguma das lenda que eu ouvi forem de verdade.
- Ou talvez todas as lendas sejam verdadeiras e o sujeito seja totalmente maluco. - disse Anna.
Mason ajoelhou-se e levantou a pesada porta de madeira. A adega cheirava a bolor adocicado e terra, com uma suave nuance de frutas podres. A escuridão abaixo possuía
peso, como óleo negro. Uma escada frágil levava para algo que parecia não ter fundo.
- Não tem nada de interessante lá embaixo. - disse Ransom - A não ser que ocê queira sentar e prosear com os rato.
- Ratos? - Mason deixou a porta cair com uma pancada seca, levantando poeira dos batentes. Anna lutou contra um espirro.
Ransom sorriu, os dentes esparsos amarelos na luz fraca dos lampiões. - Ratos tão grande quanto sua côxa, filho.
- Odeio ratos. - disse Mason - Cresci com eles. Faziam um barulho como uma cavalaria, atrás das paredes do meu quarto. O que mais odeio são os olhos saltados e úmidos,
como se medindo você de alto a baixo.
- Não se procupa. - disse Ransom - Eles têm demais pra comê lá embaixo e não precisam mordê os hospede.
- A Srta. Mamie provavelmente os repreenderia por terem maus modos.
Anna riu. Talvez Mason não fosse assim tão ruim. Pelo menos ele não tinha medo de mostrar suas fraquezas. Ao contrário dela.
Mason ficou de pé e limpou as mãos no jeans. Algo flutuou das vigas e roçou no rosto de Anna e ela esfregou como se fossem teias de aranha.
- Jesus Cristo, não me diga que era um morcego! - disse Mason - Eles não são mais que ratos com asas!
- Era só um gaio azul. - disse Ransom - Sorte sua, mocinha. Se um gaio azul voa na sua frente é sinal que vai ser beijada.
- Ótimo! - disse ela - E eu que pensei que ganharia meus beijos lançando feitiços em homens desavisados.
- Acredita no que bem entender. - disse Ransom - Mas eu digo que ocê vê os sinal melhor que ninguém. Agora, é mió a gente se aprumar com o trabáio.
Mason limpou as mãos em um velho cobertor de montaria pendurado numa viga. - Então, Ransom, você tem tempo para me ajudar a encontrar um tronco grande que seja exato
para uma estátua?
- Mas por que ocê acha que a gente tá preparando a carroça, abestado? A Srta. Mamie sempre se mete pra consegui as coisa que qué.
- É, estou começando a descobrir isso.
- Vamo embora então, antes que fique escuro. Acho que vamos descer de Beechy Gap, onde nóis tivemo umas ventania forte alguns inverno atrás. Quer vir junto, moça?
- Não, obrigada. Tenho algumas coisas para fazer também.
- Eu digo que algumas coisa tem que ser feita sozinho. - disse ele.
Anna não tinha certeza do que pensar sobre Ransom. Ele ficava dando deixas, mas um grande pavor se insinuava atrás de seu olhar. Talvez tivesse seus próprios segredos.
Ela esperou até que Mason e Ransom subissem e sentassem no banco da carroça e então deu as rédeas a Ransom.
- Vejo você à noite, certo? - Mason perguntou.
Anna sentiu um meio sorriso no rosto e não estava segura para que lado queria que seus lábios apontassem. - Veremos.
Ransom balançou as rédeas e a parelha dirigiu-se para a estrada, que se dirigia para a floresta como uma fita arenosa. Ela fechou as portas do celeiro e olhou para
a ferradura.
Estava com as pontas viradas para baixo novamente.
Coisas mortas chegando.
Ela olhou para a floresta.
Sob a copa de um arbusto, entre os louros e sarças, estava de pé a mulher de branco, o buquê nas mãos em desafio. O fantasma olhou para Anna como um espelho, então
virou-se e deslizou por entre as árvores.
- Certo então, droga! - disse Anna - Vou brincar de esconde-esconde com você, droga. Conforme entrou na floresta, se perguntou como poderia pegar seu próprio fantasma.
E, antes de mais nada, por que ele se esconderia dela? Ransom estava certo sobre uma coisa: uma mulher com segredos geralmente era uma coisa ruim.
CAPÍTULO 30
E a noite se espalhou, escorrendo como um óleo morno sobre as colinas, expandindo, preenchendo os vales e subindo pelas encostas dos Apalaches. A noite tornou-se
um oceano, um banho de sangue negro. A noite tornou-se o céu. A noite tornou-se a boca que engolia a noite anterior, todas as noites anteriores, todas as noites
por vir, a noite - Spence dedilhou, os dedos batendo nas teclas lisas. Ele era um autômato agora. Não havia mundo, nem quarto, nem o cheiro da lamparina e suor,
nem doce Bridget por perto, apenas o campo de batalha luminoso de uma página meio preenchida. Nenhuma noite lá fora além da janela, apenas a noite que tomava vida
por meio de suas palavras, a noite que se avolumava numa onda dentro de suas veias, que bombeava escuridão através de suas extremidades, que queimava no forno cor
de ébano de seu coração.
Ele estava levemente consciente do fio de baba que lhe escorria pelo queixo. Ele sorriu e a baba pingou em sua camisa de algodão. A saliva era de outro plano, uma
realidade tão entediante, sem vida e sem sentido, comparada com o mundo mágico que se desenrolava sob seus dedos. Seus pulsos doíam e os dedos estavam rígidos, os
olhos lacrimejando com o esforço, mas todos esses problemas eram da carne, enquanto seu trabalho era de Palavra.
O mestre e o papel o pressionavam adiante. Ordenavam que prosseguisse. Tropeteavam o sinal de ataque. Faziam dele um deus, embora um deus menor.
Porque ele era apenas um servo do grande deus Palavra, o primeiro e único. Palavra que dava e tomava, Palavra que lhe fornecia apenas o suficiente para que encontrasse
a metáfora celestial e não perecesse, Palavra que vociferava de arbustos chamejantes, tábulas entalhadas e nuvens poderosas.
Uma mão tocou em seu ombro, uma intrusão de algum lugar naquele plano melancólico de solo e substância. Ah, essa deve ser a Musa, que também era uma escrava de Palavra,
que fez a palavra de poeira e um fragmento de osso, a Musa que ofereceu o fruto, a Musa que serviu de adjetivo para seu nome impróprio.
- Jeff. - cantou ela, e adorável era sua música. Ele queria chorar, mas as lágrimas turvariam sua gloriosa página. E o momento de vaidade de Spence quebrou o feitiço,
enfurecendo o deus que era Palavra.
Ele parou de datilografar e olhou à volta, piscando.
- Venha para a cama, querido. - disse a Musa - Você não dormiu nas últimas trinta e seis horas.
Um grosso monte de folhas estava empilhado ao lado de sua mesa. Seus olhos queimavam e ele forçou as pálpebras secas a se fecharem. A Musa o estava levando para
longe do mundo de Palavra, para dentro de seu templo macio. Talvez a Musa não fosse sua amiga, no final, mas uma inimiga. - O que você quer?
Ela não era mais a Musa, apenas Bridget, a estudante da Georgia tremendo em uma camisola, os mamilos duros com o ar gelado.
- Estou preocupada com você. - Ela se inclinou sobre ele e envolveu seu peito com os braços. Spence deixou a cadeira se inclinar para trás. Agora que o encanto de
Palavra havia sido quebrado, a ansiedade inundou seus membros. Um canto de seu olho tremeu.
Bridget o beijou no pescoço, logo abaixo da linha de sua barba curta. - Você está trabalhando tão arduamente. Por que não vem para a cama?
- Não posso trabalhar se estiver na cama. - Sua irritabilidade havia ressurgido agora que as palavras haviam parado de fluir.
- Estou me sentindo solitária, querido.
Ela o havia perdoado dos maus tratos do dia anterior. Ou teria sido na noite anterior? Ou cem anos atrás? O tempo perdia o significado no Solar Korban.
- Querido, querido, querido. - disse ele, deixando cada palavra flutuar pelo ar como um laço.
- O que é a sua solidão comparada à grande perda que o mundo teria se eu deixasse meu trabalho inacabado?
- Eu sei que é importante. Eu apenas não sou como você. Preciso de um pouco de companhia às vezes.
- Tenho certeza de que você pode usar seus não tão pequenos dotes e arranjar alguém para dividir sua cama. Você pode jogar seus joguinhos de amor em outro lugar,
com minhas bênçãos.
Bridget tirou os braços de seu peito. Spence girou a cadeira para contemplar seu brinquedinho. Suas curvas graciosas ondulavam debaixo do tecido colante da camisola.
Um tesouro. Uma coisa bela e inútil.
- Jeff, não quero outra pessoa. Eu amo você.
Essa distração estava ficando interessante. Talvez Palavra o perdoasse por alguns momentos de ociosidade. Com certeza, mesmo Ephram Korban jogava jogos emocionais
na sua época.
- Amor. - disse ele, e a palavra fluiu como se estivesse sendo proferida por Sir Laurence Olivier em pessoa, derretendo-se em sua língua. A oratória clássica estava
ressurgindo, nascendo dos ossos de seu peito, através dos pulmões e garganta, o ar transformado em sabedoria. A única coisa que sempre mudava era o público.
- Amor, a vaidade suprema. - disse ele - Todo amor é amor-próprio. Maternal, fraternal, sexual, filial, religioso ou sacrifical. Todo amor é uma masturbação. E assim,
eu lhe dou permissão para amar-se, uma vez que parece ser o que você está exigindo de mim.
- Querido, não seja tão... tão...
- Inflexível. Do latim "Inflexibile". Sinônimos: rígido, implacável, impassível. Ah, como eu queria que isso fosse verdade! Mas a mente abraça aquilo do qual a carne
se encolhe envergonhada.
- Não faça isso. Você sabe que eu não ligo para o seu - sobre o seu - problema.
Spence riu, sua papada balançando do êxtase de sua autoestima. Ele acarinhou seus cabelos, um clichê de romances, borlas de seda e anéis de ouro. O rosto dela estava
rosado de paixão, os lábios levemente entreabertos enquanto suspirava com seu toque. Sua pele brilhava como mel à luz da lareira.
- Nosso problema. - disse ele.
Ela havia cruzado o limite. Isso demandava uma resposta.
Sua mão se fechou à volta de seu cabelo. Ele puxou sua cabeça para frente, pegando o manuscrito com a mão livre. Ele bateu com as páginas soltas em seu rosto, feliz
com o som de tapa que o papel fez contra sua pele. As páginas flutuaram para o chão enquanto ela gemia.
- Recolha as páginas. - disse ele, torcendo seu cabelo, forçando-a a se ajoelhar. Ela era miúda e sem condições de lutar contra seu volume. Ela soluçou enquanto
juntava as folhas. Ele a colocou de pé com violência, apesar de ela ter colhido apenas algumas páginas do manuscrito.
- Leia! - disse ele, ameaçadoramente frio.
Os olhos dela estavam arregalados, o rosto banhado em lágrimas, o lábio inferior tremendo.
- Leia. - disse ele novamente, agora calmo.
Os olhos marejados percorreram a página, os ombros sacudidos por soluços, os seios balançando miseravelmente de encontro à prisão de cetim.
- Alto. - Ele era novamente Jefferson Davis Spence, a lenda, o artigo genuíno. Sem mais ilusões de musas ou deuses literários esquecidos, sem aspirações sublimes,
sem simbioses com a máquina de escrever. Agora ele poderia simplesmente se concentrar na arte da crueldade.
- "A noite espalhou sua s-sujeira como espiões, como moscas." - ela leu, a voz tremendo. - "A n-noite caminhou pela noite, escalou sua espinha como uma escada, a
noite estalou os ossos de sua própria prisão..."
Spence relaxou o aperto em seu cabelo e a acariciou. Fechou os olhos, perdido no ritmo de sua própria prosa.
- "... a noite rosnou, chiou como uma cobra, crepitou como uma fogueira, a noite adentrou a si própria, banhou-se com a própria língua, devorou a própria cauda..."
Ah, a Musa estava novamente cantando. Tudo o que ela precisava era da partitura adequada.
- "... a noite tinha o sabor de carvão e cinzas, de alcaçuz, a noite tinha o sabor de dentes - sim, dentes frios... vá congelar lá fora..."
A voz dela diminuiu, mas Spence ainda balançava-se na cadeira, para frente e para trás, como uma criança ninada pela própria tagarelice.
- Jeff? - ela deu um passo cuidadoso para trás.
- Você parou de ler. Não mandei você parar de ler.
- Isso aqui... isso aqui é...
Spence sorriu, o rosto quente com a satisfação com esse pequeno, mas afetuoso tributo ao ápice de seu amor-próprio. Ele se abraçou ao paroxismo do êxtase, esperando
a ejaculação do louvor.
- Isso aqui é uma droga! - Ela largou o manuscrito no chão. - Você tem gasto todo seu talento nisso? Nessa... porcaria?
Spence, antecipando uma torrente de doce validação, não registrou a princípio as palavras. Mas o tom era claro. Mesmo com o sotaque sulista, as palavras eram exatamente
as da Sra. Eileen Foxx, sua professora da quinta série. Foxx botox, como as crianças a chamavam, pois ainda não eram espertas o suficiente para conectar seu nome
a algo lascivo ou a funções corpóreas.
A Sra. Foxx o espezinhara na frente de toda a classe porque ele cometera a temeridade de soletrar incorretamente a palavra "receber". Ele ficou de pé junto ao quadro
negro, respirando o pó de milhares de erros, enquanto todas as outras crianças rugiam em gargalhadas, aliviadas de não serem eles dessa vez. A umidade quente se
espalhou abaixo de sua cintura, sua pequena bexiga vazia, e as risadas mudaram de tom, alcançando o nível de uma lenda escolar.
E naquela tarde ensolarada de primavera, na escola elementar de Fairfield, uma nova regra gramatical foi formulada.
Nasceu também naquele dia Jefferson Spence, o escritor. Aquele que abusaria mais que Faulkner, que seria mais másculo que Hemingway, que seria mais predador que
Tom Wolf. E, apesar de não conseguir voltar no tempo e agarrar a Sra. Foxx pelas costuras de seu blazer de tecido barato e esmagar seus lábios sempre franzidos,
ele poderia agir agora. Ele poderia se embater contra os críticos, zombadores e papagaios, todas as outras Eileen Foxx do mundo que mereciam uma retribuição.
Ele varreu violentamente sua mão de encontro ao rosto da falsa Musa. Ela gemeu e caiu de volta na cama, um braço batendo na cabeceira de latão e o outro cruzado
sobre o peito. Uma gota de sangue escorria de sua boca e a narina também estava vermelha. Conforme seu rosto esquentava pela pancada, seus olhos o encaravam com
toda a severidade de Eileen Foxx.
Ele se desviou de seu olhar.
Ah, Ephram sorriu. Ephram, que havia oferecido apoio enquanto ele escrevia Tempo de Dormir. Ephram, um aliado em um universo de mentes pequenas, presas às suas quintas
séries, e que nunca poderiam compreendê-lo.
Não era que ele sempre falhava com as mulheres ou que sua produção literária era inconstante. Não era falha do equipamento. Eram eles. Sempre fora eles.
Eles haviam ficado entre ele e a verdadeira luz, o caminho brilhante, a Palavra em chamas. Quem necessitava de mero prazer físico? O que uma pessoa necessitava era
um banho de prazer, a eliminação da distração.
Necessitava tornar-se um com a Palavra. Uma comunhão reduzida a sua forma mais simples. Spence colocou os dedos sobre as teclas frias da máquina de escrever. A lamparina
chiou em aprovação, a lareira retumbou com quente deleite. Ele olhou novamente para Ephram, então para a página em branco, sua maior aliada e sua mais temida inimiga.
Ele mal se deu conta da porta se fechando atrás de si. Empurrou os dedos para baixo, procurando a aprovação do verdadeiro deus Palavra. As mãos se moveram de acordo
com uma vontade própria, como se envolvidas em luvas vivas.
CAPÍTULO 31
Anna seguiu tropeçando por entre as árvores, cansada, mas determinada, a figura fantasmagórica sempre no limite de sua visão. A lua havia nascido em sincronia com
o pôr do sol, apenas uma leve curva cortada de sua circunferência branca. A lanterna era desnecessária nas clareiras e trechos descampados, mas a lua não conseguia
penetrar as sombras frias debaixo da abóbada da floresta.
A mulher fantasma aparecia e sumia, como se lutasse para manter sua aparência. Anna a chamou várias vezes, mas nem o vento havia respondido. A floresta estava silenciosa
e mesmo os grilos pareciam se encolher de pavor. O ar estava enregelante e o orvalho se grudava pesadamente nas folhas que lhe roçavam o rosto e os ombros. O jogo
de esconde-esconde parecia durar para sempre, com se Anna tivesse que caçar seu espírito para toda a eternidade, as duas unidas em um purgatório compartilhado de
solidão.
Anna pensou que o fantasma a estava levando para a cabana na qual ela havia visto o espírito da menina em sua primeira noite no solar. Mas sua guia turística do
mundo dos mortos subiu a colina quando chegaram ao campo no qual estava a casa, para cima na direção das encostas íngremes de Beechy Gap. Anna seguiu por entre as
pedras de granito que se elevavam do chão como fósseis desgastados. A trilha ficou mais estreita e inclinada e a vegetação lentamente mudou para pinheiros.
Anna se esgueirou por uma longa saliência rochosa e plana. Ela estava na parte mais alta de uma crista rochosa. O grande mar de montanhas se estendia até o horizonte.
Um sussurro do vento se agitou, mas desistiu e aquietou-se.
As árvores eram mais esparsas aqui e a respiração saía de sua boca em um vapor que dava a impressão de que sua alma estivesse sendo consumida em chamas. Mesmo o
tremeluzir familiar de Sírius e o brilho alaranjado e constante de Satumo não lhe deram conforto. Ela estava sozinha, exceto pela mulher translúcida que agora flutuava
sobre a poeira e pedras frias da escarpa. O fantasma a chamou para seguir com um abanar do buquê de flores.
A lanterna de Anna brilhou sobre um amontoado de vigas e tábuas quebradas e espalhadas sobre uma extensão do terreno. A mulher fantasma estava entre as ruínas do
velho barracão, a figura etérea atravessada por uma dúzia de fragmentos de madeira. O fantasma abriu a boca, tentando formar uma linguagem perdida. Pequenos pedaços
de vidro brilharam no facho de luz da lanterna.
Anna deslizou pela rocha na direção dos entulhos. Um pedaço de madeira apontava tristemente para o céu. Ela se aproximou, atendendo o chamado do fantasma. A mulher
estava esperando de pé, os olhos vazios, o buquê estendido, como um sinal de boas-vindas ou de desculpas.
Então a noite caiu.
Uma das vigas quebradas elevou-se do chão e cortou o céu, em um arco pelo ar, como se arremessada por um gigante invisível. A madeira pesada bateu na barriga de
Anna. A lanterna caiu a seus pés, o facho de luz lançando um risco fino de laranja na direção dos arbustos.
Anna se dobrou para frente, lanças de dor cruzaram suas entranhas, pregos enferrujados penetrando seus templos, seus dentes mordendo telhas de zinco. Mas era mais
que a agonia do câncer. Essa dor era profunda e mortalmente séria. Seu pulso direito fora esmagado em um torno afiado.
Anna fechou os olhos e caiu no chão.
Nenhuma contagem regressiva poderia controlar essa dor. Através do martelar de seu pulso, ela podia ouvir tremores nos destroços do galpão. O cheiro de madeira podre
e decomposição assaltou suas narinas enquanto ela se contorcia sobre as folhas enlameadas.
Na confusão das ruínas, ela viu um túnel, uma longa, escura e fira boca aberta em sua direção. Uma brisa fétida foi soprada das profundezas do túnel, mas deve ter
sido sua imaginação, pois o túnel levava para dentro da terra. Seu suor era como lascas de gelo em seu rosto, o frio pincelando seus ossos e ela se lembrou das palavras
escritas no espelho do banheiro. Vá congelar fora.
Então ela ouviu a voz, um lamento suave e lúgubre que se lançou sobre as colinas.
Anna abriu os olhos com dificuldade, a visão borrada por lágrimas de dor. Duas formas vagavam sobre as ruínas, a mulher fantasma ajoelhando-se e um segundo fantasma
crescendo e pairando sobre o primeiro. O outro fantasma era de um homem em calças jeans azuis, camisa de flanela, botas de trabalho, as roupas translúcidas como
sua pele leitosa e doente. Alguns farrapos de carne pendiam de uma das mangas de sua camisa. A outra mão segurava o pedaço de madeira que a havia atingido. Ele olhou
para o fantasma da mulher, os olhos tão profundos e escuros quanto havia sido o túnel.
Um brilho estava à volta da cabeça do homem, uma aura de energia maligna. Sua face ectoplasmática estava distorcida de raiva, os lábios repuxados para trás mostrando
os dentes estragados. Ele largou o pedaço de madeira e colocou sua única mão à volta do pescoço da mulher. Anna podia ver a força de seus dedos quando ele apertou
a carne irreal. A garganta de Anna queimou de dor e a mulher fantasma emitiu um grito mudo, lutou por alguns instantes como um lençol pego pelo vento em um arbusto
de sarça e, então, despareceu, novamente um cadáver, morta uma segunda vez, o buquê caindo de seus dedos e desaparecendo no nevoeiro.
Anna rolou, ficou de quatro e começou a engatinhar para longe. Os fogos cáusticos ainda queimavam em seu interior, mas agora uma onda negra de medo a inundava, momentaneamente
se sobrepondo à dor crua. Ela olhou para trás e viu que a aura do homem havia ficado mais brilhante, como se matar um espírito houvesse alimentado algum fogo interior
infernal. Ele sorriu para ela, a língua deslizante como uma enguia e os olhos derramando uma escuridão que rivalizava a da noite.
A boca abriu-se: - É você, Selma?
Pelo menos o fantasma se lembrava da linguagem, apesar de seu tom ser enlouquecido.
- Sou eu, - disse ele - George. Sabia que você voltaria. Korban prometeu.
Voltar? Voltar de ONDE?
- Não sou a Selma. - disse Anna, tentando levantar-se, mas o peso do céu noturno era grande demais.
- Eu tenho um presente que estava guardando para você. Nós temos túneis da alma, Selma. O fantasma segurou algo na mão, algo que se mexia como um pequeno animal
no cinto de um caçador. Anna pensou inicialmente que era o buquê. Então a coisa se contorceu.
Era sua outra mão, aquela que havia perdido seu lugar no final do braço direito do homem. Enquanto ela se debatia na sujeira, o espírito jogou a mão em sua direção.
Ela caiu sobre os dedos e caminhou na direção dela como uma aranha. A risada do fantasma ecoou sobre o morro sombrio. - Uma mão gloriosa, Selma.
Anna virou-se e tentou novamente se levantar, mas a dor a tinha deixado tonta, confusa e desajeitada.
A mão decepada se agarrou a seu tornozelo.
Isso era impossível. Fantasmas não tinham substância, pelo menos não uma substância que tivesse uma solidez no mundo real.
Mas isso É o mundo real. E algumas vezes não é no que você acredita, mas no QUANTO você acredita.
Ela acreditava em fantasmas. Eles existiam. Você não poderia simplesmente se livrar da fé como alguém retira a água de uma jarra.
Péssimo.
Porque agora ela conseguira aquilo que sempre quis. Contato físico com os mortos.
Seu tornozelo estava amortecido, gelo fervente, fogo líquido, coroado com lâminas cegas.
Os dedos penetraram em sua carne. Anna foi empurrada de barriga no chão. Ela agitou os braços no ar, tentando agarrar um ramo de um pinheiro próximo, mas a mão a
puxou para trás antes que ela pudesse segurá-lo. Na direção do entulho. Onde ele a esperava.
- Vamos, Selma. Não deixe o garotão aqui esperando. - a voz do fantasma havia mudado, ficando mais profunda.
Ela enterrou os dedos no chão, agarrando as pedras afiadas e agulhas de pinheiro. Ela gemeu, dando-se conta de que estava respirando pela primeira vez desde que
havia presenciado a luta espectral.
Respire.
Isso significava que ela estava viva. Ainda não era um fantasma. Mas se esse espírito tinha o poder de assassinar fantasmas, o que poderia fazer com os vivos?
A mão puxou novamente, arrastando-a por um metro de terra úmida. Folhas molhadas entraram debaixo de sua camisa, deixando sua barriga gelada.
O estranho som derramou-se sobre o morro, como o grito de uma pomba morrendo. Anna olhou para o homem fantasma, seu sorriso esticando e derramando vermelho, laranja
e amarelo, as cores se juntando em uma aura maligna que o circundava como se estivesse iluminado pelo fogo do inferno.
Anna escorregou mais um pouco na direção das ruínas, chutando desesperadamente a mão. Era como chutar um peixe podre. Foi puxada novamente e a ponta afiada de um
pedaço de madeira pressionou contra a parte de trás de sua perna. A coisa a estava arrastando na direção das pontas agudas da madeira quebrada e os dentes afiados
das telhas metálicas rasgadas.
Ela seria sacrificada nas estacas. Mas por quê?
Por que um fantasma iria querer matá-la?
- As cobras rastejam de noite, querida. - disse ele - Cobras rastejam de noite. Mais pressão para trás.
A madeira afiada contra sua perna entrou em sua carne e enviou faíscas brilhantes de dor para os andares superiores de seu sistema nervoso. Uma tábua bateu em sua
vértebra, retumbando em sua espinha como se fosse um xilofone. Vidro quebrado penetrou seu joelho, cortando o tecido da calça e queimando como ácido. As chamas de
sua barriga expandiram-se para seu tórax e sua cabeça, enviando lava para seus membros. Ela fechou os olhos e viu as faixas de luz contra a escuridão das pálpebras,
como brasas estalando ou estrelas cadentes. Por trás das faixas, estava o túnel negro, expandindo-se inexoravelmente para fora e, brilhando ao seu final, a mulher
de branco.
Então é assim que é morrer.
Ela viera para o Solar Korban para encontrar seu fantasma, empurrada pelo poder profético de seu sonho. Isso era o que ela queria. Exceto que ela nunca esperava
que houvesse tanta dor. Mais fragmentos, farpas e pregos retorcidos entraram por sua pele quando os destroços inclinaram-se com seu peso.
Garota boba. Acho que você estava errada sobre um monte de coisas. Você pensava que a morte seria fria, mas é quente, quente, e o túnel é tão profundo.
A mão em seu tornozelo puxou, insistente, tenaz. Então a mão agarrou seu ombro.
E palavras vieram de algum lugar sobre ela, como a voz de um aJ1io insano. - Frio se va, frio se va, frio se va.
A dor desapareceu, apenas a escuridão permaneceu.
CAPÍTULO 32
Colocar o tronco na carroça, depois para dentro do solar e por fim no porão havia sido uma tarefa árdua. Ransom se recusara a descer as escadas para o porão, mas
a Srta. Mamie havia convocado ociosos que estavam bebendo no estúdio, exigindo sua ajuda. Paul, Adam, William Roth, Zainab e mesmo Lilith. Tinha sido um milagre
que eles não tivessem derrubado o tronco sobre os próprios pés, mas por fim ele havia ficado de pé, escorado por algumas tábuas e arames presos a pregos nas vigas
superiores.
- É melhor isso virar uma estátua depois de todo esse trabalho. - Havia falado a Srta. Mamie da entrada do porão antes de bater a porta e deixar Mason sozinho.
Não. Não sozinho.
Ele levantou o pano. O rosto de Ephram Korban olhava para ele. Será que Mason realmente havia entalhado essa perfeição? Mas o trabalho não estava completo. Agora
que Korban tinha um rosto, ele precisava de pernas, braços, mãos e um coração de carvalho.
Essa seria e escultura que renderia a Mason Beaufort Jackson uma menção nas revistas especializadas. Esqueça The Artist’s magazine ou Art Times. Essa criança iria
jogá-lo para dentro das páginas de uma Newsweek. Mason começou a escrever as manchetes e artigos em sua mente. Para começar, a Sculpture.
GAROTO DO INTERIOR ALÇA VOO
Se você ouvisse falar que um artista chamava-se "Mason Jackson", automaticamente assumiria que ele havia adotado um nome artístico.
(Espere um minuto, "nome artístico" era apenas para atores e escritores. Certo, chame de pseudônimo então. O autor do artigo acertaria o termo.)
Mas não há nada fictício sobre esse escultor emergente. Jackson foi chamado de "Michelangelo dos Apalaches". Esse jovem artista sulista poder ter os pés plantados
na terra do luar e rampas de esqui, mas suas mãos estão em um plano mais celestial. A série de esculturas de Jackson, As Analogias Korban, estão expostas para a
aclamação ampla no Museu de Arte Moderna da Filadélfia e logo cruzarão o oceano para Londres e Paris, onde os críticos já colocaram a pesada coroa de "Gênio" sobre
sua cabeça inigualável.
O tour de force de Jackson é a poderosa estátua Korban Emergente (ilustrada ao lado), que ele chama de "um produto de orientação semidivina". A masculinidade Rodinesca
e a massividade do trabalho impressionaram os mais céticos críticos, mas existe uma delicadeza singular em sua obra.
Não menos que Wiston DeBussey considerou a peça perfeita. Ele afirma que Mason é um "mestre inquietante" da madeira, um meio que tão poucos artistas ousam trabalhar
nos dias de hoje.
"É como se não existisse diferença entre a madeira e a pele humana", proferiu DeBussey em um raro momento de expansividade, "Jackson soprou uma vida orgânica em
cada veio contorcido. um observador quase espera olhar para baixo e ver raízes, como se a estátua estivesse se alimentando do sal e da água da terra."
Mas Jackson perde pouco tempo com a apreciação, oferecendo poucos detalhes na mente por detrás do homem.
"Cada peça é conceitualizada através do sonho de uma imagem." disse Jackson, de seu estúdio-fazenda em Sawyer Creek, uma pequena cidade encravada no sopé das montanhas
da Carolina do Norte. "E eu não tenho absolutamente nada a ver com essa parte do processo. Meu trabalho é colher esse frágil presente e de alguma forma não fazer
uma interpretação errada com as mãos humanas desajeitadas. Porque o que importa é o sonho, não o sonhador."
Se Mason começasse a falar desse jeito, Junior lhe daria uma cotovelada nas costelas e Mama o proibiria de ver televisão aberta. Esse tipo de bobagem lhe presentearia
com alguns olhares estranhos na fábrica, onde ficava mais à vontade que em um museu de arte. Ele poderia se enganar achando que era bom no que fazia, mas enganar
os outros era bem mais difícil. Se quisesse enganar o mundo todo, essa peça monstruosa de carvalho à sua frente teria que se transformar na imagem de sonho mais
maravilhosa jamais concebida.
Primeiro, ele teria que retirar a casca.
Depois, encontrar o homem escondido em seu interior.
Ele levantou a machadinha e olhou para os cantos escuros do porão. Ele não pertencia a uma fábrica. Era para isso que ele havia nascido, a razão para vir ao Solar
Korban. Ele nunca se sentira tão vivo.
Com a machadinha no alto, pensou nas palavras de Anna, como o espírito de Ephram Korban vivia naquelas paredes. Como a alma poderia ser nada mais que a soma dos
sonhos mortais de uma pessoa. Como sonhos poderiam se converter em cinzas.
Não. Esse sonho era real.
A machadinha penetrou na madeira.
CAPÍTULO 33
A mão esquelética no ombro de Anna puxou sua camisa e a levantou. Então era isso, o homem fantasma a tinha pego. Ela finalmente descobriria como era estar morta.
Ou talvez ela já fosse um fantasma, porque a pior parte da dor estava desaparecendo.
Anna tentou ficar de pé, mas suas pernas eram como fumaça úmida. Ela se apoiou sobre um joelho ensanguentado, procurando suporte nas madeiras do entulho. Abriu os
olhos para encarar a coisa morta, resignando-se a engatinhar para dentro do túnel escuro.
Mas o que a segurava não era um espírito errante. Era uma velha.
- Ocê precisa se cuidar um bom tanto mais, sô. - disse a mulher.
Seu rosto era enrugado, a luz do luar revelando as veias inchadas, as sobrancelhas brancas como gelo. Mas os olhos azuis encravados naquelas dobras de pele eram
brilhantes, jovens e inteligentes. E Anna reconheceu o xale que estava enrolado sobre os ombros curvados da mulher.
- Você estava na cabana...
- Fica quietinha, criança. Eu vejo o que ocê vê e nóis duas vêmo muita coisa. Vâmo simbora daqui e então a gente pode tê uma prosa cumprida.
Anna ficou de pé, empurrando as madeiras quebradas para longe de suas pernas. A dor havia sumido e o anel de fogo à volta de seu tornozelo se desfeito. A lua estava
alta agora, próxima de seu zênite.
Anna olhou o entulho. Poderia ter sido um sonho, não fosse pelas roupas e a pele rasgada.
- Vâmo pra longe daqui. George teve que saí correndo hoje, mas presta atenção que ainda não tá na sua hora.
A velha guiou Anna para longe dos destroços do barracão. Ela era surpreendentemente forte para alguém que tinha a aparência de ter oitenta anos. Anna observou-a
subir sobre a plataforma de rochas com a agilidade de uma cabra montesa, apesar de usar um bastão grosso para se apoiar. Anna procurou sua lanterna, mas ela devia
ter rolado para dentro de algum arbusto fora da vista. Ela se apressou atrás da mulher.
A velha parou sobre a rocha olhando a vastidão das montanhas. O céu estava acinzentado, mas Anna conseguia ver as cristas e curvas da terra estendendo-se até o horizonte.
- Korban quase pegou ocê dessa vez. - disse a mulher sem se virar para Anna. - Achei mió aproveitá a chance de avisá ocê antes. Mas o velho Ephram sempre foi sem
as paciência.
- Você quer dizer Ephram Korban?
- O dono dessas paragem. Ou pelo menos ele gosta de pensar isso.
- Mas você está falando no presente. Ele está morto.
- Como se fizesse arguma diferença. - Ela cuspiu de cima da pedra nas árvores abaixo.
- Quem era aquela mulher que vi? - A cabeça de Anna estava clareando um pouco. - E a garotinha na cabana?
A velha riu, mas era um gargarejo alquebrado, pesado pelo cinismo. - Ocê tem a visão, é, tem sim. Soube disso da primera veiz que botei meus ôio em ocê. Agora, chega
de pergunta até nóis tá longe desse lugar. Porque esse lugar é do Korban.
Anna seguiu a mulher para fora da rocha e para baixo do morro por uma trilha estreita, espantada de ver como os velhos sapatos de couro duro da nrulher desviavam
de raizes e pedras, o bastao batendo agilmente na terra em busca de apoio. Elas se dirigiram para o cmne atnis de Beechy Gap.
Anna parou para recuperar o folego, esfregando o abdomen-Uma pergunta. O que significa "va fora congelar"?
- "Va congelar fora"... Velho feitiço da montanha. Significa "o que esta morto, continua morto". Anna teria que se lembrar disso. Ela esperava, ao contrario do que
Ransom havia falado sobre ferraduras e trevos de quatro folhas, que esse pequeoo feiti<;:o nao tivesse se desgastado como tempo.
CAPÍTULO 34
Adam havia passado suas longas horas de insônia tentando se livrar dos pensamentos que orbitavam sua mente como lixo espacial. E a maior parte desses pensamentos
era sobre perguntar à Srta. Mamie se havia algum jeito de cancelar sua estadia no solar. Ele não ligava para reembolso. Paul poderia ficar com sua câmera, seus lábio
carnudos e sua arrogância pelas seis semanas restantes, no que lhe dizia respeito. Tudo o que Adam precisava era se ver livre desse lugar.
Eles tiveram outra discussão, dessa vez no estúdio após carregar o tronco para o porão. Paul estava se exibindo para William Roth, que atirava na direção de várias
mulheres ao mesmo tempo, e Adam tentou levar Paul para um canto para que pudessem conversar. Paul zombou e disse: - Por que não vai para a cama, princesa? Sei que
você fica entediada falando sobre outra coisa que não você mesma.
Adam finalmente havia conseguido dormir próximo do que pareceu ser a meia-noite, apesar de a lua estar tão brilhante que parecia que o tempo não havia passado. E
novamente ele havia tido o sonho, o sonho da queda da balaustrada. Mas dessa vez ele reconhecera o homem que estava tentando empurrá-lo do topo da casa. Era o homem
que ele imaginara ter visto no closet quando Paul estava guardando sua câmera. O homem no retrato. Ephram Korban.
E novamente Korban havia pressionado Adam sobre o parapeito. A madeira dura pressionada contra sua cintura. Mesmo enquanto estava sonhando, deu-se conta de que não
deveria estar sentindo dor durante um sonho.
Mas todos os seus sentidos estavam funcionando: ele podia sentir o doce odor das faias, ouvir o tilintar metálico do riacho, saborear o odor rançoso de cemitério
presente no hálito fétido da respiração de Korban, ver as estrelas girando loucamente no céu quando ele finalmente o empurrou por cima do parapeito.
- Você não tem nenhuma vaidade. - disse Korban - Não posso me alimentar de seus sonhos. Eles são feitos de ar.
Os dedos de Adam se emaranharam na barba do homem, tentando desesperadamente se agarrar aos pelos grossos. Mas enquanto Korban o empurrava para longe, seus pelos
eram arrancados. E exatamente quando Adam caiu, soltando-se do casaco de lã de Korban, ele olhou para dentro de seus olhos.
Os olhos brilharam de um negro carvão até ficarem de uma cor âmbar. As mãos implacáveis de Korban soltaram os braços de Adam, que gritou enquanto era arremessado
para o chão, vinte metros abaixo.
O ar assoviou à sua volta como uma chaleira em agonia.
O grande abismo do espaço girou sobre ele, mais e mais distante, sua suavidade perdida enquanto ele estendia as mãos para o céu a procura de algo para se segurar.
As janelas da casa brilharam em faixas luminosas, as vidraças borrando em sua visão periférica. Seu sangue correu para os pés. Esse sonho era muito mais estranho
que qualquer outro que ele havia tido. Porque as pessoas deveriam acordar quando sentiam coisas em seus sonhos.
Mas Adam estava ciente do impacto quando sua cabeça bateu no círculo pavimentado da estrada. Ele ouviu claramente o ruído dos ossos sendo esmagados, quando a espinha
se dobrou como uma ave de papel, engasgando-se quando a respiração lhe foi brutalmente arrancada dos pulmões, quando mordeu a língua na metade e a parte amputada
foi espremida entre os dentes que se quebravam, sentiu o gosto do próprio sangue morno e quando vomitou no momento que a bacia quebrada perfurou o estômago e os
rins.
Enquanto sua carne arruinada se espalhava e vazava pelo chão, pôde ver claramente seus olhos ao lado da cabeça. Eles brilharam na sua direção, as íris marrons perdidas
nos globos brancos, as pupilas dilatadas com o choque e o medo, nada de pálpebras para esconder sua reprovação. Mesmo dormindo, ele reconheceu o absurdo de ver seus
próprios olhos. Mal podia esperar para contar isso para Paul.
Exceto que você não deve sentir dor em um sonho. E o que mais poderia ser isso senão dor? Esse lençol vermelho que caíra sobre ele como uma centena de guilhotinas
sulfurosas. Bandas de eletricidade explodiram pelo corpo destroçado, os nervos gritando como quatro sirenes em um quartel de bombeiros. Adam tentou rir. Não era
engraçado, experimentar essa inundação alaranjada em seu cérebro, quando com certeza ele estava morto?
Mas espere um segundo. Será que você pode sonhar que está morto?
Mas como você sabe que está morto? Esse era o tipo de coisa que lhe daria uma dor de cabeça se não soubesse que estava dormindo. Mas Adam estava com dor de cabeça,
de qualquer forma. Ele se ajoelhou para juntar o cérebro derramado, arrumando-o num montinho e depois o colocando de volta no crânio quebrado.
Quando seus dedos rasparam as convoluções fumegantes do próprio cérebro, ele notou que seu corpo estava espalhado à sua frente. Isso era estranho, surreal, daliesco.
Ele esperava ser acordado a qualquer instante e se ver rindo entre os travesseiros. Mas ele não acordou. Ele ficou de pé, observando a poça vermelha que se espalhou
por debaixo de seu corpo e à volta de sua cabeça. Um fragmento de fêmur aparecia em uma das coxas, à mostra por entre o tecido cinza de seu pijama. O osso brilhava
branco e úmido na luz pálida da lua. A cabeça estava virada de lado na direção dos degraus que levavam ao Solar Korban.
Mas sua cabeça real, pelo menos aquela que abrigava sua alma, estava olhando para cima, na direção do portal negro.
Formas vazaram pela bocarra, formas brancas e finas, como teias de aranha sendo sopradas pela brisa de uma vassoura.
Algumas coalesceram em formas mais ou menos humanas, homens, mulheres, uma garotinha, os rostos brancos, os olhos negros como o interior do saguão de entrada. Algumas
delas em saias vitorianas, ou calças com culotes, alguns homens com sobretudos e chapéus de feltro, algumas mulheres com gorros, outras com coques altos. Os jovens
com calças curtas, as meias remendadas e sapatos de couro de bico quadrado, as meninas em vestidos lisos e fitas nas tranças. Um bebê se materializou aos pés de
uma mulher, a fralda rasgada pendurada às pernas rasgadas.
Adam deu um passo para trás quando eles se aproximaram. Eles não estavam caminhando, mas sim flutuavam, deslizavam, voavam, os braços abertos, as bocas indolentes
com um sorriso cheio de propósito. Eram cerca de doze figuras e ele viu Lilith entre eles, a camareira com o vestido flutuante, mas ela era mais enevoada que os
demais. A cozinheira gorda, que ele havia visto antes colocando os pratos para lavar, estava secando as mãos no avental.
Ele gritou, mas ninguém consegue escutá-lo quando você está morto.
Havia passado, e muito, o tempo de acordar.
* * *
Ele tentou correr, mas permaneceu transfixado, congelado, tão frio quanto uma lápide no inverno de dezembro.
As figuras se reuniram à volta do corpo estendido no chão, os fantasmas - sim, claro que eram fantasmas, se eu vou realmente ter um pesadelo, que seja da pior espécie
- se misturaram e se uniram, sem mostrar nenhuma preocupação com as convenções sociais do espaço pessoal. E Adam, agora mais fascinado que aterrorizado, também olhou
para baixo, na direção do objeto da atenção deles.
Era ele, ele mesmo, a pessoa antes conhecida como Adam Andrews. Lá estava a verruga em seu queixo, a pequena cicatriz branca em seu cotovelo, de quando ele caíra
de bicicleta com nove anos, a curva estranha de seu segundo dedo, que ele destroncara gravemente jogando futebol no colégio. Lá estava sua mão, as unhas cortadas
desigualmente, alguns fios da barba de Korban ainda presos em seus dedos rígidos. Lá estava o anel prateado com a granada que Paul havia lhe dado.
Lá estava seu sangue, sua carne e seu corpo.
Um som baixo preencheu o pátio, se estendendo através da colina, um hino fúnebre que lembrava Adam o canto de baleias que ouvira. Era uma linguagem bizarra, sonora
e triste. As sílabas do som desafinado se uniram em um caos, um ruído coagulado e denso. Estava emanando do solar, como se a porta de entrada fosse a garganta da
casa.
Os fantasmas viraram-se para a porta, solenes apenas como os fantasmas conseguem ser. Adam engoliu em seco, olhou para as mãos e viu que eram feitas do mesmo nevoeiro
que os outros, tecido das mesmas fibras imateriais. Ela era um fantasma. Isso significava...
Ele estava realmente morto.
Riu para si mesmo e fechou os olhos sonhadores. Ele teria que esquecer que estava bravo com Paul, pelo menos até lhe contar sobre o sonho. Ele se perguntou se estaria
roncando e então lembrou- se de que havia separado as camas de forma que não podia contar com a cutucada de Paul em suas costelas.
E agora, ele adoraria receber cócegas, ser acariciado até acordar, puxar o corpo de Paul para perto, sentir algum calor humano.
* * *
Porque estar morto era um assunto enregelante. Ele devia ter chutado as cobertas para longe durante o sono.
Sim, claro. Qualquer coisa maluca faz sentido se você analisar por tempo suficiente. E decidir deixar Paul deve ter agitado algumas coisas estranhas na selva Jungiana.
Mas por que sua mente não deveria lhe dar um susto às vezes enquanto você está dormindo? E o que poderia ser um tema melhor para umas férias que esse parque temático
de gente morta? Qual era aquele velho filme preto e branco, mesmo? Ah, Carnaval de Almas, dançando com os mortos, acorde e diga "Era tudo um sonho". E o velho Ephram
Korban É o tipo de coisa que induz pesadelos.
Então, por que não aproveitar e seguir com a procissão? Você acordará em breve, de volta ao mundo real com seus problemas reais, do tipo como lidar com Paul, de
verdade.
Ele abriu os olhos e se viu ainda dentro do pesadelo.
Os fantasmas estavam se curvando, levantando o cadáver. Divertido, Adam juntou-se a eles. Quando um dos braços rolou para fora, ele o pegou e o dobrou por cima do
peito. Os fantasmas elevaram o corpo e caminharam na direção da porta do solar, pálidos companheiros em uma procissão silenciosa. Adam seguiu atrás deles enquanto
subiam os degraus. Esperando à porta estava seu malfeitor, Korban.
O homem abriu um sorriso frio de triunfo, os olhos como esferas de ônix.
- Bem-vindo ao seu túnel da alma, Adam. - disse Korban.
Por um momento, Adam esqueceu que estava sonhando. Korban segurou a porta aberta enquanto a procissão adentrava a escuridão. Adam foi incapaz de deixar de acompanhá-los.
O rosto de Korban flutuava por perto e o homem estendeu um braço de boas-vindas. Conforme Adam escorregou para dentro da escuridão que o esperava, ele descobriu
que não era o solar que o estava engolindo.
O saguão de entrada era um túnel, um tubo de paredes rígidas de pedra vitrificada, uma boca sempre escancarada, toda negra, além da luz e das coisas que a luz poderia
atingir. Adam estremeceu, mais frio agora que o gelo fantasmagórico, não querendo mais brincar de ter o pesadelo.
Hora de acordar...
Porque Korban estava se transformando, os olhos deixando de serem órbitas escuras para se tornarem sóis odiosos.
Porque Korban estava brilhando com um calor repugnante, Korban o estava prendendo, pegando- o por dentro, dentro de seu peito, dentro de seu coração-
POR FAVOR POR FAVOR POR FAVOR ACORDE!
Os dedos de Korban apertaram e uma nova dor irrompeu, uma dor além da compreensão humana, tão intensa que mesmo o Adam morto e sonhando gritou. Korban o puxou para
dentro do túnel e ele soube o que o estava aguardando à frente era pior que qualquer coisa que seu cérebro poderia imaginar.
Ele gritou novamente, gritou e gritou, fechou os olhos de sonho de forma que não visse o que estava à frente...
Mas ele sabia o que estava à frente, a coisa que ele havia enterrado tão profundamente em sua mente que ela havia esquecido. E como todas as coisas esquecidas à
força, havia apenas ficado mais poderosa com os longos anos de hibernação. E quando uma lembrança enterrada finalmente se liberta de seu caixão e cava seu caminho
rumo à liberdade, ela não terá um olhar carinhoso para com o coveiro.
Essa era uma lembrança que possuía dentes.
Ele gritou novamente e a mão em seu peito estava balançando, balançando-o -
- Acorde, Adam!
Ele abriu os olhos, mas ainda estava vendo os vislumbres de sua lembrança enterrada, a imagem fazendo com que jogasse os braços para a frente em pânico. Ele atingiu
Paul no ombro.
- Ei!
Paul estava ao lado da cama de Adam apenas de cueca. Adam olhou para ele, sem piscar. Um leve brilho da lua penetrava pela janela e o fogo lançava uma luz avermelhada
nas paredes.
- Você devia estar tendo um pesadelo dos diabos. - disse Paul.
Adam ficou deitado imóvel, rolando os olhos nas órbitas, o peito dolorido da lembrança da dor. A colcha estava enrolada à sua volta. Relanceou os olhos para os cantos
do quarto, para a porta do closet, esperando a lembrança exumada mostrar sua cara na primeira sombra que encontrasse. Olhou para o retrato sobre a lareira, observando
os lábios de Korban abrirem-se e darem as boas-vindas dentro do túnel.
- Quero dizer, você conseguiu até me acordar com sua agitação, - disse Paul e então adicionou, com um leve tom de zombaria - e eu estava do outro lado do quarto.
Adam flexionou os dedos, esticou-se e limpou o suor da testa e do lábio superior.
Ele respirou profundamente, uma respiração doce e acordada, e nada nunca foi tão saboroso, nem o chocolate com cereja de seu sundae favorito, nem o mais seco dos
Chardonnay e nem mesmo o primeiro beijo de um amante.
Paul colocou as mãos na cintura, agora impaciente. - Você sonhou com minha mulher de branco? Ou você vai continuar sem falar comigo?
Adam abriu a boca, contente por descobrir que a ponta de sua língua ainda estava no lugar.
- Você está certo sobre uma coisa. - Adam sussurrou, as palavras secas em sua garganta. - Era um pesadelo dos diabos.
CAPÍTULO 35
Lindo.
Spence segurou a página de tal forma que o luar vindo da janela brilhasse em cheio nas palavras. Estivera esperando aqui. Todos esses anos. As bênçãos da Musa, a
doce inspiração, o sonho adormecido da criação. O Dom.
A casa havia lhe dado outra obra-prima.
Ele reclinou-se na cadeira e riu. O som ecoou nas madeiras do quarto, chocalhou a cômoda no espelho, riu de volta das paredes, curvou-se à volta da cornija da lareira,
reverberou nas pedras e espiralou no ar como poeira ao vento. O retrato de Korban sorriu de forma maligna em um entendimento secreto.
O quarto estava muito melhor agora que estava vazio. Havia Spence e a Royal. Spence e as palavras. E o mundo além das palavras?
O mundo não importava. O que importava era a interpretação, a reflexão humana, o esculpir da ilusão. A arte. Simbolismo.
As palavras.
As palavras de Spence.
E daí que os últimos romances haviam se desviado de curso, não haviam se sustentado, haviam perdido a vida dentro de sepulturas de indecisão? O que importava era
que Spence havia sido ungido. Os críticos o amavam. A coluna de crítica literária do New York Times o havia colocado não uma, mas duas vezes na primeira página.
E as pessoas insignificantes, os escritores iniciantes, as multidões das cafeterias e os patéticos professores universitários de literatura devoraram seus livros,
como peixes comedores de lodo. Isso foi antes de os programas de entrevista na televisão indicarem os best-sellers da moda com seus gostos do tipo siga-o-líder em
uma política de uma-mão-lava-a-outra.
Não que as pessoas insignificantes importassem, a não ser pelo fato de fornecerem o estímulo de adoração pelas massas. Spence não escrevia para elas. Ele também
não escrevia para os críticos. Eles eram tão cegos quanto Homero havia sido, estufados como se tivessem dado alguma contribuição para o processo criativo, javalis
que não conseguiriam reconhecer que estavam se alimentando nos mesmos cochos onde cuspiam. Mesmo os editores não eram mais que intrusos, mais apaixonados pelo produto
do que pela arte.
Nos últimos tempos, a carreira de Spence estava mais voltada para a busca. Deveria haver um modo de desvendar as camadas do simbolismo, adentrar no coração do significado.
Alcançar a verdade das coisas sem a distração do som da máquina de escrever, sem os dedos desajeitados que serviam como os agentes do cérebro. Evidente que havia
algum tipo maior de clareza, que não o preto da tinta no branco do papel.
Ele atingiria isso, em breve. Em seu pináculo espiritual, o momento em que toda a história humana, todas as leis do universo, todas as teologias, todos os grãos
de poeira poderiam ser condensados na mais pura forma. Quando tudo poderia se tornar uma unidade.
Uma única e verdadeira Palavra.
Spence suspirou. Até atingir esse estado divino, que comandava a essência, ele teria que trabalhar com essas ferramentas idiotas de linguagem. Edgar Allan Poe sempre
discursava sobre a "unidade do efeito", como cada palavra tem que contribuir para o todo. Aquele homem paranoico e embebido em absinto estava no caminho certo, mas
não seria melhor simplesmente encontrar uma única palavra que fosse o efeito?
Pelo menos ele poderia amar o que havia escrito, a despeito das falhas morais. Ele leu o último parágrafo escrito:
E ele, tornando-se Noite, encontrou seus membros, seu sangue e prazer, estendendo-se sobre as colinas. Escapando das pedras negras e frias que foram sua prisão,
da montanha que era seu sepulcro, da casa que era seu coração. Seus dedos agora eram mais que meras árvores, seus olhos mais que espelhos, seus dentes mais que madeira
quebrada. Ele, tornando-se Noite, poderia espalhar suas águas escuras, poderia elevar suas marés em praias distantes, poderia engolfar e afogar tudo o que não fosse
escuridão à sua volta e que não mais o ameaçaria.
A Noite andava em ambos os lados do nascente, mais uma vez imperiosa e sonhadora.
Spence colocou a página sobre a mesa. Esfregou os olhos. Dois dias. Ele estava escrevendo por dois dias?
Sua barriga roncou. Ele gostaria de comer algo. Bridget estaria esperando no café da manhã. Talvez ele até considerasse perdoá-la.
Ele colocou outra folha em branco na Royal antes de deixar o quarto, para que ela o estivesse esperando quando retornasse. Ele a olhou da porta. O papel branco o
olhava acusadoramente.
- Não se preocupe, a Palavra voltará. - respondeu ele para o quarto, para a casa ou para o que quer que estivesse esperando naquelas paredes. Então fechou a porta.
CAPÍTULO 36
Sylvia atravessou a cabana e jogou um pouco de sal no fogo para manter os feitiços afastados. Depois colocou um cataplasma sobre o joelho de Anna, onde os cortes
eram mais profundos. Um pouco da mistura gosmenta vazou pelo tecido e escorreu pela perna.
- Isso deve de consertá ocê direitinho. - disse Sylvia - Num é?
- É o de sempre. Fulige de chaminé e melado cozido com um pôco de breu de pinhêro. É mió enrolá um corte com têia de aranha, mas não tem muita aranha aqui pra cima.
- Isso não vai causar uma infecção?
- Nada é mais limpo que fulige de chaminé. É limpo pelo fogo, sabe?
Cicatrizaria bem. Sylvia não achava que poderia consertar as outras coisas que estavam erradas com Anna, as células ruins que estavam queimando dentro dela. E achava
que não deveria, mesmo que soubesse quais ervas usar. Parte de ter o poder para curar era saber quando a natureza deveria seguir seu próprio curso. Saber quando
os mortos deveriam permanecer mortos e quando os vivos deveriam seguir os rumos de sua alma.
Anna estava marcada, tão claramente como se seu destino houvesse sido escrito por um juiz. A pena disso era que ela estava apenas começando a vida, apenas começando
a compreender seus dons poderosos e assustadores. Mas Sylvia sabia que a doença na jovem também havia tornado seus poderes mais fortes. Era por isso que havia sido
tão fácil Korban chamá-la ao solar.
Anna pressionou o cataplasma sobre o joelho e bebeu da caneca de barro feita à mão. - Obrigado, senhorita -
- Sylvia. Sylvia Hartley.
- E obrigada pela água. Nunca experimentei uma água tão boa quanto essa que vocês têm aqui na montanha.
Sylvia aquiesceu com a cabeça e lançou um graveto ao fogo.
Anna estava apenas jogando conversa fora. Ninguém gostava de lembrar eventos ruins recentes. E Sylvia havia aprendido ao longo dos anos que esperar com paciência
era a única coisa na qual uma pessoa poderia se tornar realmente boa. Ela havia esperado um longo tempo pela lua azul de outubro.
- Você quase foi convocada.
- É assim que você chama quando um fantasma quase mata você?
- É. A gente chama de má sorte também. - Sylvia ficou de pé e pescou a chaleira pendurada em um gancho acima do fogo. Colocou um pouco da água fumegante na xícara
de Anna e foi até o armário para pegar algumas folhas de dentro de um pote de cerâmica. Voltou e quebrou algumas folhas dentro da água quente.
- Tem cheiro bom. Parece com menta. - Anna absorver o odor.
- É. Menta com um cisco de raiz de cerejêra. Vai diminui sua dor de cabeça.
- Como você sabe?
- Eles sempre me dão uma dor de cabeça, quando tô espantando eles. Esses que tão recém- morto são fácil de vê, mas são mais turrão de ir embora pra dentro da cova.
Anna bebericou o chá e deu a Sylvia um olhar de soslaio. - E como eles ainda não "convocaram" você?
Sylvia deu uma risada que pareceu mais um soluço molhado.
- Tenho meus osso de gato e minhas raiz de cobra e meus pó de lagarto... tenho também um armário cheio de pranta e pele de bicho. E aqui minha proteção especiar.
Sylvia remexeu sob o xale em algum lugar próximo ao coração. Ela virou a palma para fora, para mostrar a Anna uma pequena coisa branca que Sylvia não trocaria nem
por um saco de ouro.
- Um pé de coelho? - As sobrancelhas escuras de Anna formaram pontas de flechas em sua testa.
- Num é só um pé de coêio, moça. É o pé trasêro esquerdo de um coelho de sepultura, morto numa meia-noite de inverno.
- Outro dos símbolos antigos, como Ransom me falou.
- Eles querem dizê o tanto que ocê quisé que eles diga. É tudo sobre o quanto ocê acredita neles.
Anna colocou a xícara sobre a mesa rústica. Ela estremeceu, a despeito de estar próxima do fogo.
- Que noite. Sinto como se fosse uma velha de mil anos.
- Véia? Não espero que ocê me dê crédito nisso, mas eu tenho cento e cinco anos, um pôco mais, um pôco menos. Mas talvez ocê credite. Eu num credito muito também.
Eu mantenho minhas força e tudo mais, mas eu credito que isso tem de haver com o Korban. Como se ele tivesse esticando minhas idade pra que eu num môrra enquanto
ele num acabá comigo antes.
Anna apoiou o queixo sobre as mãos. O fogo refletiu em seus olhos esverdeados.
Os zôio. Deus, ela é a image cuspida de Rachel.
- O que Korban quer? - perguntou Anna. - Estudei fantasmas por um bom tempo, mas a maior parte deles queria apenas escapar daqui. Desse mundo, quero dizer.
Sylvia olhou para o fogo junto com Anna. O sol estava começando a se insinuar ao leste, mas o aposento ainda estava escuro, como se a noite hesitasse em ir embora.
- Korban qué tudo de volta. Tudo que foi dele um dia e um pôco mais.
- Por quê?
- Por quê? - Sylvia havia pensado sobre isso inúmeras vezes ao longo dos anos, mas ainda não sabia a resposta correta. - Chamá-lo de maligno seria chovê no moiado.
Talvez ele fosse mau quando tivesse vivo, mas agora ele tá é muito pió. Ele gostava era de possuí as coisa, mudá elas pra se encaixá no seu mundo. Acho que ele ainda
faz isso. Será que é mau quando alguém qué ficá com tudo que amô?
- Não estou certa de ter amado algum dia.
As palavras apertaram o coração de Sylvia. Korban havia convocado Anna por uma boa razão. Não importava o que Rachel havia tentado fazer. Talvez ninguém nunca escapasse
de lá, morto ou vivo.
- Ephram... - a voz de Sylvia diminuiu, incerta. Ela tinha novamente dezesseis anos, estranha, mas com um coração flamejante, como se tanto o mundo quanto ela fossem
jovens e ainda cheios de promessas. - Eu amei o Ephram. Todo mundo amô. As muié, pra modo de bem dizer. Ele era muito bonito a seu modo, mas não era só as aparência.
Tinha algo nele, um magnetismo. Ninguém conseguia arresisti ele por muito tempo.
- Eu consegui um emprego na casa, como todas as muié que vivia nessa montanha naquele tempo. Os hômi tavam tudo atarefado, trabaiando pra limpá a terra e manter
as coisa em ordi. Ninguém disse nada quando o povo começô a morrê. O machado de arguém saía voando e rachava alguma cabeça, uma árvore caía em cima das costa de
arguém, achavam uma pessoa afogada na lagoa, as carne inchada e a língua azul pra fora. Era tudo acidente, nas nossa cabeça. "Uma maré de azar", nóis dizia uns pros
ôtro, mas nóis tudo sabía que num era bem assim.
Sylvia apertou os punhos contra o peito. Ela nunca havia contado a ninguém essa próxima parte. Ela havia mantido essa história quieta e em paz no fundo de sua mente,
como um lagarto em uma fenda segura. Mas essa criança tinha coisas piores pelas quais passar. O sofrimento de Sylvia não era nada comparado a isso.
- Uma noite o fogo da lareira dele se apagou. Eu fiquei morta de medo. Esse era o meu trabáio e era uma coisa que toda santa vez eu via o Ephram, o que não era lá
muito seguido. Mas cada vez que eu via o sujeito, por Deus, ocê nunca esquecia e ficava se lembrando disso na sua cabeça, o rosto dele, as mão, a voz, até seu coração
doê. Pelo menos era o jeito que a coisa funcionava comigo, mas acho que era assim com a muierada toda.
Sylvia ficou em silêncio. Mesmo através das décadas, o momento ainda estava vívido. Ela foi invadida pela inundação morna da paixão misturada com o terror. Seus
olhos estavam enevoados e ela não lutou contra isso dessa vez, apenas deixando as lágrimas rolarem pelo rosto.
- O Ephram, ele tava no quarto. Mas era como se sua vida fosse o fogo. Ele tava só deitado na cama, engasgando, mais ou menos. Eu tava muito assustada, criança,
ocê não imagina o tanto que eu tava assustada.
Sylvia fungou. - Mas, de novo, talvez ôce possa imaginá. Esqueci que ocê acabou de tê um encontro esquisito. E ele me fez acendê aquele fogo e dizê as palavra que
nunca divia de ter dito.
Anna tocou no ombro de Sylvia. O gesto lhe deu forças para continuar.
- Quando eu por fim acendi o fogo, Ephram veio até eu. Ele me abraçô e eu oiei dentro dos olho negro dele e eu teria feito qualquer coisa por ele. E ele me bejô
e fez tudo o mais que queria. Mas uma coisa era certa, eu queria tanto quanto ele. E quando a coisa acabô, ele me mandô imbora. Não disse uma palavra que seja, apenas
abotoô a camisa e remexeu no fogo um pôco, como se eu fosse um pedaço de carne de um bicho que ele tivesse caçado.
- Eu quase que nunca mais oiêi ele de novo, tava com tanto medo. Medo tanto dele me querê quanto dele não me querê. Mas umas semana dispois, minhas regra passaram.
Deus de misericórida, aí eu fiquei com medo mesmo. Mas não tinha nenhum ôtro sinal, dismodi qui segui minha vida, esperando e rezando. Os mês passaram, veio o inverno
e veio a primavera. No verão, minha barriga começô a crescê, mas só um tiquinho. Foi aí que eu fiquei sabendo. E eu fiquei sabendo que tava errado, pelo jeito devagar
que tava a coisa.
O coração de Sylvia estava trovejando agora. E a velha raiva e o amor perdido a estavam preenchendo, envenenando-a novamente. Anna pegou a mão dela e a apertou.
Isso acalmou um pouco Sylvia. Ela tinha que fazer isso, pelas duas.
- Korban gostava de ficá em cima da casa no meio da noite. Lá na balaustrada. O pôvo falava que ele ficava lá convocando as coisa escura, as criatura invisível que
se arrastava e flutuava em volta da noite. Mas nessa época eu já sabia o que ele tava fazendo.
- Ele tava chamando seus convocado. Mandando eles fazê seu trabáio ruim. Enfeitiçando eles. Eu subi as escada uma noite. Era lua cheia, uma lua azul de outubro,
igual a que vai ser amanhã. Lembro do chero de sassafrás no ar e de um sereno tão grosso que ocê podia senti na pele. O alçapãozinho que levava pro teiado tava aberto,
dismodi qui eu botei a cabeça pra fora e vi ele junto do parapeito, olhando pra desolação iluminada pela lua.
O fogo estalou e emitiu um longo chiado. Sylvia fechou os olhos e terminou a história antes que Korban tivesse forças para impedi-la.
- Eu subi divagarinho até a balaustrada e ele ainda tava de costas pra mim. Quando firmei os pé no chão, fiquei de pé e, por Deus, como o vento soprava forte. Como
se fosse a respiração de todo o céu solta de uma só vez. Eu corri até o Ephram, minhas rôpa balançando atrás de mim no vento. Ele se virô quando eu alcancei ele.
A boca de Anna estava aberta, a xícara entre os dedos frouxos. O fogo cuspiu, jogando uma brasa na direção dela. Sylvia a alcançou com o sapato e esmagou-a no chão.
Isso é um sinal de que tá marcada pra morrer, tanto quanto qualquer um. Quando uma brasa voa na sua direção, ocê tá frito.
- E o que aconteceu? - Anna perguntou, os olhos arregalados. Como se estivesse em uma varanda distante trocando histórias inventadas de fantasmas. Como se aquilo
não fosse real.
- Eu empurrei ele pra fora do parapeito. E ele deixou. Nem tentou levantá a mão pra se defende. Só ficou sorrindo enquanto caía. Ocê nunca ouviu um grito daquele
tipo, criança. É do tipo que os coêio dão quando uma coruja crava as garra no pescoço dele. Só que muito mais longo e mais alto.
- Mas tinha uma risada misturada nisso também. Foi aí que me dei conta de que não seria assim fácil se livra do Ephram Korban.
Anna balançou a cabeça. Sylvia podia ver que ela estava pensando sobre o assunto, organizando, tentando fazer as peças se encaixarem. Foi bom ter contado a história,
depois de tantos anos. Talvez agora ela pudesse morrer com o coração leve, se e quando sua hora chegasse. - E o seu bebê? - perguntou Anna.
Sylvia olhou para dentro do fogo. Estava cansada, esmagada pelo peso de mais de um século de assombrações. Mantê-los à distância por todos esses anos não havia sido
fácil, especialmente quando ficaram em maior número. Ela esperava que seus patuás, sua fé e seus encantamentos fossem suficientes. Existiam várias bonecas naquela
pequena cabana, um bando de gente morta.
- O sol tá nascendo. - disse ela. - Ocê tá segura o suficiente agora. Nóis duas precisamo de dá uma caminhada.
CAPÍTULO 37
Malditos pássaros.
William Roth esperava pegar um falcão de cauda vermelha no ar, ou pelo menos algo colorido como um gaio azul ou um cardeal. O jeito escolhido pela natureza foi dar
cores aos machos das espécies, enquanto as fêmeas foram feitas para se misturar com o ambiente. Se pelo menos as fêmeas humanas se comportassem desse jeito, seguissem
a ordem das coisas. Cris e aquela pequena joia chamada Zainab eram tão esquivas quanto as aves dos Apalaches. As únicas coisas aladas por perto eram os corvos, pretos,
feios, observando das árvores à espera de um funeral.
Roth olhou através de suas lentes para o sol que nascia. As montanhas setentrionais dos Apalaches o lembravam das montanhas da Escócia, arredondadas e ricas. Ele
faria alguns rolos de paisagens, que eram sempre as preferidas das revistas de viagens e similares. Se fosse para ele não ter sorte com as mulheres, poderia pelo
menos fazer o dinheiro para pagar as contas.
Ela caminhou para fora das árvores onde a ponte se estendia pelo grande vale de granito e vegetação arbustiva. Muito abaixo, corria um pequeno rio prateado, escorrendo
entre as grandes pedras em seu caminho para o oceano. Korban realmente sabia como viver. Construir uma mansão no topo do mundo, ter uma casa cheia de serventes jovens,
brincar de artista e aproveitar o que a vida tinha de melhor. Quem poderia culpá-lo por não querer deixar essas coisas para trás? Se Roth fosse Korban, ele certamente
viraria um fantasma e ficaria por aqui.
Roth riu de leve. Ele havia visto fotos que as pessoas diziam ser de fantasmas. Roth conseguia repetir o truque simplesmente borrando um negativo ou brincando com
luzes em um quarto escuro. Se fosse dada a ele uma hora, poderia produzir uma centena de exposições duplas ou triplas e ele nem precisaria de um computador para
fazê-lo. Ele poderia colocar Elvis na lua, poderia fazer Ephram Korban flutuar sobre a casa, poderia colocar a cabeça de Cris Whitfield no corpo nu de Marilyn Monroe.
Isso seria um projeto digno de fazer. Ou talvez a garota do Spence, que ele vira antes do amanhecer, vagando pelo solar com um olhar vazio e uma marca azulada no
rosto. Spence deve ter brincado de forma um pouco mais rude que o normal. Talvez Roth pudesse se esconder no banheiro deles e fazer algumas fotos com iluminação
da lareira do velho desgraçado fazendo-a trabalhar. Depois chantageá-lo ou vender as fotos para um tabloide, de um jeito ou de outro ganhando alguns trocados.
Ele caminhou na direção da ponte, mudou para lentes mais longas e avançou o filme. O ar soprou à sua volta, um vento de montanha que podia enregelar os ossos. Mas
não era apenas o vento. Os corvos haviam voado da floresta e agora se empoleiravam sobre os corrimões da ponte. Dezenas deles. Olhando para Roth com os olhos de
vidro negro. Esperando.
- Que inferno. - disse ele.
- O inferno está apenas na mente, Sr. Roth.
Ele se virou e Lilith estava de pé no meio da ponte. Mas que diabos? De onde ela havia surgido?
- Espero que não esteja pensando em nos deixar.
- Hum. Estava só estudando a vista. - disse, levantando a câmera. - A vista deste lugar é perfeitamente adorável.
Ele a olhou atentamente. O vestido preto aderia a seu corpo de um jeito dramático. Ela era um pouco pálida e o lembrava das garotas do norte da Inglaterra, das cidades
industriais onde o nevoeiro e a chuva encurtavam os dias de sol. Ainda assim, ela era jovem e tinha curvas. Se as garotas que serviam eram boas o suficiente para
Korban, por que não seriam para o Senhor William Metelão Roth?
- Muitas coisas agradáveis para se ver por aqui. - disse ele, sorrindo. Mulheres jovens gostavam de seu sorriso. Ou fingiam gostar, o que dava no mesmo.
- Sim. Eu costumava pintá-las. Antes de trabalhar para Ephram Korban.
- Trabalhar para Korban? Ele morreu faz um bom tempo, e você é bem jovem. Ela deu seu próprio sorriso, misterioso e efêmero. Uma ave tímida, aquela.
- Diga-me. - disse ele, tocando gentilmente nas lentes - Você se importa se eu fotografar a mais bela coisa que encontrei desde que cheguei aqui?
- Fique à vontade, Sr. Roth.
Ele levantou a câmera e apontou na direção dela, ajustou o zoom sobre seus seios, focando em um dos mamilos. Sutiãs não eram parte desse uniforme, aparentemente.
Provavelmente calcinhas também não. Essa garota era definitivamente eficiente.
Ele tirou algumas fotos de seu rosto, belamente enquadrado pelos cabelos e olhos negros como os corvos, a pele lisa como as rochas na chuva, os lábios espertos e
vivos com um sorriso. Quando devotou atenção suficiente para adulá-la, disse: - Você nunca tira uma folga? Não me importaria de conhecê-la melhor. Tirar algumas
fotos em um ambiente um pouco mais reservado.
- Isso pode se arranjado, Sr. Roth.
- Pode me chamar de William, amor.
Ela imitou seu sotaque falso. - Certo, William Amor.
Tinha senso de humor, também. Ela seria um prazer de conquistar. Roth moveu-se em sua direção, esperando ficar próximo o suficiente para que ela apreciasse o brilho
de seus olhos acinzentados. Algo passou próximo a seu rosto e ele abanou com a mão.
Deus salve a maldita rainha, era uma aranha!
Ele deu um passo para trás e viu a teia entre ele e Lilith, estendendo-se pela ponte como um arame dourado, o orvalho matinal captando o nascer do sol. Ele detestava
aranhas. Da África ao Ártico, os pequenos seres pulam sobre você com suas presas afiadas. Ele havia lido, não lembrava onde, que não importava onde você estivesse
na Terra, haveria uma aranha a dois metros de você, e acreditava nisso.
Ele olhou para as madeiras toscas da ponte. A desgraçada com listras amarelas estava se dirigindo para uma rachadura, o cérebro de aracnídeo provavelmente rindo
às custas de Roth. Ele pisou com a bota na aranha, raspando nos veios da madeira, mandando sua alma de aranha para o inferno onde, com um pouco de sorte, Deus as
alimentava com nada mais que DDT.
- Desculpe, amor. - disse ele para Lilith - Espero que ela não a tenha incomodado.
O sorriso perpassou os lábios finos, rápido como um inseto. - Você não a matou, você a entregou.
- Como assim?
- Coisas vivas nunca morrem, elas apenas se movem pelos túneis mais profundos da alma.
- Hum, certo, certo.
- Agora, se você me desculpar, A Srta. Mamie provavelmente está se perguntando onde estou. Não posso ficar longe da casa por muito tempo.
Ela passou por Roth e ele sentiu o sopro de sua fragrância. Ele apreciava esse tipo de coisa, colecionava fragrâncias do mesmo modo que outros colecionavam números
de telefone ou roupas íntimas. Essa cheirava um pouco como terra e um pouco como fruta madura e suculenta.
Ela parou no final da ponte. - Eu o vejo depois, então.
- Não perderia isso por nada na vida. - disse ele e observou seu belo e pequeno traseiro balançar enquanto ela caminhava pela estrada arenosa que levava ao solar.
Quando ela desapareceu no meio das árvores, ele voltou a atenção para a paisagem. As escarpas haviam perdido o brilho, agora que o sol havia nascido. Era melhor
ele pegar as coisas e voltar.
Os corvos observaram enquanto ele colocava as lentes nos estojos. Os malditos pássaros não tinham medo. Ele pensou em enxotá-los, dispersando-os pelo vale. Ah, deixa
pra lá. O dia era promissor com a bela e suave Lilith na agenda.
Ele estava se preparando para voltar para o solar e tomar café da manhã quando viu a teia novamente. Ainda esticada com aqueles padrões finos e sinistros, no mesmo
lugar. Lilith havia passado por dentro dela. E ainda estava lá, inteira e perfeita, pronta para pegar coisas do ar.
Esse lugar o deixaria maluco se não tomasse cuidado.
CAPÍTULO 38
Mason arrancou a casca do carvalho, empolgado com o cheiro tânico da madeira. Ele trabalhou com a machadinha, raspando como se estivesse tirando a pele de um animal.
O tronco estava escorado com algumas tábuas velhas, complicado de trabalhar à volta, mas a arte nunca era um processo fácil. Com os arames que aumentavam o suporte,
o carvalho havia esperado seu toque como um amante masoquista e desnudo em uma câmara de tortura.
As faixas avermelhadas de casca empilhavam-se a seus pés e ele tropeçava nelas conforme tocava na superfície lisa da madeira. Aqui ficariam os braços, um joelho
aqui, um ombro forte lá. Esse nó poderia ser um pulso.
Ele não havia mentido para a Srta. Mamie. A estátua valeria o trabalho. Nada realmente grande era criado sem algum grau de risco. Sofrer pela arte, esse era o ingresso
para o topo. Sacrificar tudo e todos, especialmente a si mesmo.
Mason manejou a machadinha de lado, na área que seria o pescoço. Ele a puxou para trás e bateu novamente, e de novo, o contorno da forma impresso em sua mente, suas
mãos certas do que fazer. Ele entalhou até que seu ombro e bíceps queimaram, removendo as sessões de madeira morta que bloqueavam a emergência da verdadeira forma.
As chamas nas extremidades das velas vibravam conforme o ar se agitava com os impactos e sua respiração.
Quando não pôde mais levantar o braço, Mason deu um passo para trás e afastou as aparas de madeira com o sapato. Moveu-se através do espaço do estúdio e estudou
o tronco de diferentes ângulos. A altura dos ombros, o ângulo do cotovelo, a distância entre os pés, tudo tinha que ser precisamente medido. Enquanto estava dando
um passo para trás para ter outro ângulo de visão, tropeçou na pintura a óleo que havia escorado no armário.
Ele se ajoelhou e pegou-a. Novamente, foi atingido por sua beleza singular. Como ele se sentiria se seu trabalho nunca saísse do porão, se ficasse para sempre nas
trevas, para nunca ser apreciado e admirado? Seu trabalho seria melhor que isso, mas o pintor tinha talento. As pinceladas macias e as cores, o tom de branco do
solar, o esplendor da floresta notuma, as nuvens turbulentas tão vivas quanto a realidade.
Ele olhou mais de perto, para o topo do solar. O borrão junto da balaustrada estava mais claro agora e havia se estendido por vários centímetros sobre a pintura.
Mason olhou para dentro do nevoeiro e piscou. Havia ângulos e formas no borrão. Ele trouxe a lamparina da mesa e a inclinou na direção da pintura.
Mason traçou o formato de uma das figuras com o dedo. A forma era de um branco acinzentado mais profundo que o borrão, sugerindo uma figura humana. Mais formas flutuavam
além dela, além da linha pálida e grossa que retratava o parapeito da balaustrada. Pessoas?
Pessoas ficariam deslocadas naquela pintura. O solar era o motivo, uma imagem tão dominante por si própria que manchá-la com humanidade seria um insulto cruel. Será
que alguém mais havia feito a mesma observação que Mason e tentado cobrir aquelas pessoas no telhado? Ou o artista se dera conta, ao completar a obra, e tentara
corrigir isso antes que o óleo secasse?
A Srta. Mamie saberia, ou talvez Lilith, que mostrara interesse na pintura. Talvez lhe fosse permitido levar a pintura para seu quarto e pendurá-la ao lado do retrato
de Korban Um mestre e seu dominio.
Ele encostou a pintura novamente no armário. Seu próprio trabalho era mais importante. Esse era o primeiro lema de um artista. Dever criativo em primeiro lugar,
tudo o mais em segundo.
Alem disso, Mama estava observando.
A madeira o chamou na linguagem dos não nascidos. Ele respondeu, com formão e garras, dentes e machadinha, lamina afiada e alma faminta.
CAPÍTULO 39
Adam encontrou a Srta. Mamie após o café da manhã. Estava sentada em uma cadeira da biblioteca com as mãos sobre o colo. Estava vestida em um tom verde-floresta,
o vestido mostrando a pele pálida de seu colo. Ela havia trocado seu colar de pérolas por um colarinho apertado de seda.
Ela levantou as mãos, revelando alguns pedaços de madeira espalhados sobre um tecido. Tinha uma faca em uma das mãos, cavacos de madeira aderidos à lâmina. Enquanto
Adam observava, ela cortou um pedaço grosso de vinha e começou a enrolá-lo no que pareceu o torso de uma boneca. A cabeça da boneca parecia uma fruta escura e enrugada,
as feições esticadas e distorcidas pela secagem.
Os Abramov estavam na outra extremidade da biblioteca, distantes da lareira e da luz do sol que penetrava pelas janelas altas. Eles estavam tocando um minueto em
andante que lembrava Mozart. As notas ricas vibraram contra a pele de Adam.
Ele se sentou no sofá à frente da Srta. Mamie e curvou a cabeça em silêncio respeitoso. Observou os dedos dos músicos pairarem sobre as cordas. O duo cresceu seu
tempo e então passou por uma recapitulação, brincando com a melodia antes de finalmente sustentar as notas tônicas e quintas do finalle. Adam e a Srta. Mamie aplaudiram
juntos.
- Bravo! - disse ela - Extraordinariamente delicado. Ephram Korban ficaria satisfeito. Enquanto os Abramov começavam uma nova peça, Adam reclinou-se na direção da
Srta. Mamie - Como está a senhorita?
- Muito bem, Sr. Andrews. Você gosta do meu pequeno hobby? Um antigo artesanato apalachiano, ensinado pelo próprio Ephram. Dizem que quando você entalha uma boneca
dessas, está criando um lar para uma alma perdida.
- Parece ruim para as mãos.
- Mas elas são presentes amáveis. O que pensa dessa aqui?
Ela segurou a figura encarquilhada, com os membros retorcidos dando um ar aleijado ao triste objeto. Era horrível, os olhos toscos, um maior que o outro.
- É maravilhoso. Penso que Daniel Boone não teria conseguido fazer melhor.
- Está apreciando a hospedagem até agora?
- Na verdade, gostaria de falar sobre isso com a senhorita. Decidi encurtar minha estadia. Tenho, hmm, negócios urgentes para resolver.
A sobrancelha da Srta. Mamie escureceu e ela apertou os lábios. Largou a pequena figura de madeira e ela caiu ao chão, a pequena e estranha cabeça rolando para longe.
- Ah, minha nossa, que queda enorme. - disse ela, em um tom tão baixo que Adam mal a ouviu.
Adam levantou a mão. - Não estou pedindo um reembolso. Meu colega de quarto ficará.
A Srta. Mamie olhou pela janela. Uma nuvem deve ter passado sobre o sol, pois a biblioteca ficou mais escura. A melodia dos Abramov mudou para um tom mais soturno
e começou a revolver em torno de um agitato.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
- Eu sei que a van não retornará nas próximas semanas. Gostaria de saber se seria possível outro tipo de solução.
- Você não compreendeu. Ninguém pode sair. Especialmente você.
O rosto da Sra. Abramov se fechou, enquanto ela aumentava o ritmo de sua melodia caótica. Havia restado pouco da beleza original da música que estava sendo extraída
dos instrumentos pelo casal fazia poucos minutos. As notas agora eram mais um lamento torturado que uma música.
Adam olhou pela janela. - Um dos empregados não pode me levar a cavalo? Eu vi dois dos hóspedes em montarias outro dia.
- Ainda não é a hora. - disse a Srta. Mamie, finalmente desviando o olhar da janela. Seus olhos brilhavam com algo que Adam considerou ser raiva. - A festa é hoje
à noite. Um encontro encantador, sob a luz do luar na balaustrada do telhado. É como uma tradição sagrada no Solar Korban.
- Posso pagar mais pelo trabalho. Sei que isso é muito inconveniente.
* * *
A Srta. Mamie pareceu furiosa e tocou o medalhão fora de moda pendurado em seu colarinho. - Ele... ele não quer que você se vá.
- Paul?
A Srta. Mamie pareceu se recuperar um pouco. - Black Rock é a meio dia de distância em um cavalo. E você pertence a esse lugar.
A música de cordas aumentou em intensidade, fragmentando-se em um caos cromático.
- Vou a pé, então.
A música parou abruptamente, tremendo no ar, constrangida em seu isolamento.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
Adam seguiu seu olhar até o retrato de Korban sobre a lareira, a mesma face que lhe havia sussurrado palavras no pesadelo que tivera sobre os túneis da alma. Adam
estremeceu. A própria casa ficou sotuma, como se as paredes estivessem escuras de irritação. O ar estava pesado e mesmo o fogo da lareira não deixava o ambiente
mais animado. Adam aproximou-se da lareira e esfregou as mãos, tentando eliminar os restos do pesadelo de sua mente.
Ele olhou para a boneca quebrada. Um pedaço de tecido estava inserido no interior de uma fenda do torso. Algodão cinza, como de seu pijama.
- Continuem a tocar. - disse a Srta. Mamie aos Abramov.
CAPÍTULO 40
Roth encontrou Spence na área de fumantes, sentado em uma cadeira de balanço cujas pernas pareciam se curvar para fora com o esforço de sustentá-lo.
- Como está nosso Shakespeare? - perguntou Roth.
O escritor já bebera algo, provavelmente uísque, a julgar por sua aparência. Não eram nem dez horas da manhã. Spence certamente estava vivendo conforme sua reputação.
Roth havia suspeitado que o escritor havia afetado uma indulgência ao álcool tão falsa quanto suas conquistas ou o sotaque de Roth.
- Melhor impossível, como sempre. - disse Spence, o rosto pálido e os olhos quase rosas pela falta de sono.
- Você gostaria de alimentar os críticos com uma pá, não é mesmo? Quero dizer, eles foram terrivelmente duros com você nos últimos anos.
Spence deixou sair um suspiro úmido, sua papada flexionando como um verme gordo. - Existe apenas um crítico que eu gostaria de acertar. Meu primeiro.
Roth se sentou em uma cadeira de vime finamente trançado e colocou a bolsa da câmera no chão. Se trabalhasse direito, um Spence aos frangalhos seria uma excelente
adição à galeria de celebridades doentes de Roth. Porque Spence estava cabeça e pescoço à frente de uma corrida rumo a um desfiladeiro invisível.
- Sua velha mãe, aposto. - disse Roth - Elas podem ser bem opressoras.
- Minha mãe era uma santa. O crítico a que me refiro está morto faz um bom tempo. Mas tenho minhas esperanças de que Deus misericordioso me colocará frente à frente
com ele na vida além túmulo.
Roth sorriu. - Claro, de que serve o céu se você não pode se vingar de seus velhos inimigos? Spence tomou um grande gole de uísque. - Você está me entediando Sr.
Roth. Eu odeio tédio.
- Escute, amigo, tive essa ideia...
- Deixe-me adivinhar. Você tem um livro que gostaria que eu escrevesse e vamos dividir o dinheiro depois que eu fizer o trabalho.
- Não tão simples assim. Estava pensando em um livro grande sobre Korban. Farei as fotografias, farei a parte de pesquisa, converterei alguns desses retratos em
arquivos digitais. Tudo o que você tem que fazer é colocar seu nome na capa e digitar algumas páginas de introdução.
- Meu nome não é mais o que foi um dia.
- Esse projeto é muito natural. Um ricaço excêntrico constrói para si um império rural e então morre de um jeito misterioso. Podemos inclusive adicionar a parte
de assombrações. Não tenho problemas com inserir alguns orbes transparentes ou pó de pirlimpimpim sobre o negativo.
- Falando de fadas. - disse Spence. Através dos vidros da varanda, puderam ver um jovem carregando uma câmera de vídeo para a floresta.
- O amiguinho dele permite que saia assim sozinho? Pareceu ser do tipo grudento e ciumento.
- Roth havia sido levado a experimentar meninos esporadicamente, quando não havia meninas por perto. Homens tinham arestas meio rudes para seu gosto, mas ofereciam
um elemento de perigo que nenhuma mulher conseguia igualar. Ainda assim, Spence era empertigado com esses assuntos, de forma que era melhor parecer homem. Ele não
fez nenhum comentário.
- Ephram Korban teria desprezado esse tipo de fraqueza moral depravada. - disse Spence.
- Você fala como se o conhecesse.
- Não, mas eu o compreendo. Posso senti-lo. Essa casa lhe pertenceu, mais do que uma simples possessão material.
- Ah, você acredita nessa viagem de fantasma?
- Eu senti o espírito me animar.
Roth se perguntou quantas bebidas o homem havia derrubado com o café da manhã. - Então, por que não um livro? Podemos fazer como um tributo, se você achar melhor.
Spence levantou-se com esforço. - Antes quero escrever um romance barato, algo com vampiros, um papa marciano ou uma conspiração governamental. Com uma trama amorosa
suspeita. Alguém tem que ter algum tipo de amor para fazer a panela esquentar.
- Pense sobre isso.
- Com licença, tenho um trabalho a fazer. Trabalho de verdade. - Spence carregou o copo vazio para a biblioteca, sem dúvida para enchê-lo.
Roth se sentou à sombra da varanda. Imaginou Spence morto em uma banheira, o corpo gordo, tripas esbranquiçadas à vista em uma foto de duas páginas em um tabloide.
Moby Dick. Essa seria uma fotografia que valeria mais que mil palavras. E vários milhares de dólares.
Como fazer aquele coração cansado explodir? Talvez um sexo a três com Bridget e Lilith? Ou talvez Paul e Adam sobre ele? Com sua homofobia, Spence provavelmente
tinha alguns bons esqueletos guardados no armário.
Roth sorriu. Havia um jeito mais fácil, um que não envolvia a cumplicidade de terceiros.
Se Spence estava tão apaixonado por seu maldito trabalho, o que aconteceria se ele acabasse na lareira? Melhor ainda, ele poderia colocar a culpa em algum fantasma.
Quem poderia provar o contrário?
CAPÍTULO 41
O vento passou pelas árvores que circundavam o cemitério, uma música solitária para um lugar final de descanso, no alto da montanha. Sylvia apoiou-se em seu bastão,
olhando a partir da cerca, o corpo muito frágil para arriscar-se em uma escalada. A velha ajoelhou-se na grama, procurando pelo chão por um minuto, então pegou algo
e passou pela cerca para Anna. Era um trevo de quatro folhas.
- Para dar sorte? - perguntou ela.
- Melhor que sorte. Deixa ocê vê os morto.
- Eu já faço isso.
- Só quando eles qué. Esse aí dá o poder sobre eles. - Sylvia acenou com a cabeça na direção da sepultura de Rachel Faye Hartley. - Aquela ali é que ocê vai querer
chamá.
- Chamar?
- Que venha o fogo, e o morto aparece. Diz isso trêis vêis. É o feitiço.
- Não posso fazer isso.
- Tá no seu sangue. Só tem que acreditá.
Anna olhou para a pedra fria, as flores esculpidas por alguma mão delicada, um buquê que nunca murchava. Ela acreditava em fantasmas e assim os via. E desde que
ela havia chagado ao Solar Korban, os via melhor que nunca. Talvez sempre tivesse sido uma questão de fé. Parte da crença poderia vir dos espíritos mortos e o fantasma
tinha que se imaginar de volta ao reino dos vivos.
Talvez Anna e o fantasma tivessem que se encontrar na metade do caminho em uma união de almas tristes e escravizadas, e se ela apenas tivesse que recitar um velho
encantamento das montanhas, isso não era pedir demais. O fantasma, nesse caso uma pessoa que vivera com o nome de Rachel Faye Hartley, é que teria que fazer o real
esforço. Afinal de contas, seria Rachel que teria que sair da eterna e negra paz dos escombros para ascender e retornar a um mundo que talvez fosse melhor esquecer.
Um mundo que tinha apenas uma promessa de dor e solidão.
Anna olhou para o trevo. Será que conseguiria acreditar nessa magia? Com o câncer devorando sua carne, ela teria que colocar toda sua fé na permanente existência
da alma ou, de outra forma, seria melhor ela própria pular do telhado do Solar Korban. Sem fé, de que adiantava?
Ela fechou os olhos e disse as palavras. - Que venha o fogo, que venha o fogo, que venha o fogo.
Um calafrio a envolveu, uma suave friagem imortal. Quando ela abriu os olhos, a mulher de branco estava a sua frente, o buquê em suas mãos diáfanas. Era como se
Anna estivesse olhando em algum espelho, pois se reconheceu no rosto pálido e transparente.
- Anna. - disse a mulher, naquele mesmo tom murmurado que assombrava seus sonhos, que a havia chamado na trilha e a levado pela floresta até onde o espírito de George
Lawson a havia agarrado com a mão decepada.
- Você. - disse Anna - Foi você que me chamou para vir para cá. Não foi Ephram Korban!
- Você se tornou uma linda mulher, como sempre imaginei. - As palavras eram como jatos de água fria.
- Do que você está falando?
- Odiei mandar você para longe. Pensei que era o único jeito de salvá-la dele. Mas eu não sabia.
- Mandar-me embora? - Anna olhou para Sylvia, que puxou mais o xale à volta dos ombros ossudos. Sylvia balançou a cabeça, o rosto cansado, as rugas aumentando, como
se houvesse envelhecido cinquenta anos desde que chegara ao cemitério. Anna olhou para o fantasma de Rachel, de volta para Sylvia e novamente para o fantasma. Seus
olhos eram do mesmo formato, a sobrancelha arqueada escura, o mesmo ar de mistério. Iguais às de Anna.
Iguais às de Anna.
- Você é ela. - A constatação cortou Anna com a lenta certeza de uma geleira se movendo, mais implacável que o câncer, uma verdade impossível que era ainda mais
horrível porque o impossível tornara-se ordinário.
O sangue de Anna congelou-se nas veias, tão duro quanto a geada que ainda brilhava nas sombras das lápides.
- É tudo minha culpa. - disse Rachel - Esse é o meu pesar, isso é o que me assombra no túnel da minha alma. O medo que Ephram usa para me controlar.
- Ephram Korban. O que me importa ele? - As lágrimas de Anna corriam sobre o rosto como que traçados por dedos sem vida. Os lábios fantasmagóricos abriram-se e a
forma de Rachel brilhou sob o nascer do sol. - Foi duro para mim perder você, pior que morrer. Pior ainda que estar morta. Porque estar morta é a mesma coisa que
estar viva, só que pior.
- Duro para você. - disse Anna - Todas as noites, em cada novo lar adotivo, cada vez que algum estranho me dava abrigo, eu rezei para Deus que você deveria sofrer.
Mesmo nunca tendo conhecido você. Porque nunca pertenci!
- Eu também sofri!
- Eu odiei você por não ter estado lá, por nunca ter existido. E agora eu encontro você e você ainda não existe.
- Você não entende, Anna. Precisamos de você.
- Precisar, precisar, precisar! E eu? Eu também tive necessidades. - Anna jogou o trevo na grama da sepultura, os soluços a sacudindo. - Vá embora. Eu não acredito
em você.
- Anna. - disse Sylvia - Ela pode tá morta, mas ela tem sangue.
- Você pode ficar com seu sangue. Para mim, chega! - Anna moveu-se entre as pedras, a visão borrada pelas lágrimas, mal ciente de seus pés, apenas querendo estar
distante, de volta ao mundo ordinário da dor, da solidão comum.
A voz de Rachel atravessou a grama, enfraquecida, como que vazando de dentro da boca de um túnel interminável. - Ele nos assombra, Anna. Estamos mortos e ele ainda
nos assombra.
Anna sequer diminuiu o ritmo. Ela havia vindo para cá para encontrar seu próprio fantasma. Agora ela havia feito isso e era ainda pior do que poderia ter imaginado.
Seu fantasma não conseguiu lhe dar conforto e o consolo de uma vida após a morte. Seu fantasma lhe trouxera a promessa de solidão eterna, a prova de que ela nunca
pertenceria, não importa qual lado da sepultura a reivindicasse.
- Ocê não tem ideia de como é. - gritou Sylvia atrás dela, as palavras varridas pelo vento de outubro. - É muito pió perdê uma fia. Eu sei do que tô falando. Porque
eu perdi a Rachel.
Anna parou próximo da sombra do mausoléu de Ephram Korban. Ela se virou e o movimento pareceu tão lento quanto o giro da terra, rugas de pesar raivoso em sua face,
a carne anestesiada por essa nova verdade impossível.
Ephram Korban e Sylvia. Então Rachel.
E Anna.
O nome de Korban flutuou à sua frente como uma neblina úmida, como se as letras esculpidas no mausoléu dessem peso às palavras de Sylvia. Sangue. O sangue de Ephram
Korban corria nela, tão manchado como aquele lado ancestral que a havia amaldiçoado com a Visão, tudo atado a essa montanha antiga em solo apalachiano, uma terra
entristecida que não podia nem segurar seus cadáveres.
Sylvia chamou mais uma vez, mas Anna não estava escutando. Ela pulou a cerca, o coração em fogo com um único desejo.
Que os mortos continuassem mortos.
Que os mortos continuassem mortos para sempre.
CAPÍTULO 42
Mason limpou o suor da testa. Ele havia tirado a camiseta, mas o estúdio ainda era quente demais. Lascas de carvalho estavam sobre seus braços e peito. Seus ombros
haviam cruzado o ponto de simplesmente doer. A dor havia se transformado em um tambor surdo batendo constantemente no fundo de sua cabeça.
Seu instrutor de escultura em Adderly, Dennis Graves, havia lhe dito que a chave para a arte estava na resistência. A primeira peça de Mason havia sido a palavra
"resistência" em um bloco de pinheiro. Aquele esforço desajeitado hoje encontrava-se deitado sobre o aparelho de televisão agora morto de sua mãe. Mason havia dado
a escultura a ela como uma criança do jardim de infância traz para casa uma pintura feita com os dedos. Isso foi antes de sua cegueira, apesar de que, quando sua
visão se fora, ela o segurava no colo e corria os dedos sobre as letras.
Algum dia ele lhe daria outra escultura com uma palavra só pra ela: "sonhos".
Ele a faria em bronze ou cobre, algo durável. Talvez até granito. Mas a palavra seria muito pesada. Talvez ela ficasse pesada mesmo com pau balsa ou ar.
Mason havia terminado a etapa com a machadinha e o enxó. A forma grosseira estava terminada. O céu havia ficado escuro no porão de pequenas janelas. Não sabia se
isso significava chuva ou se o fim do dia se aproximava. Ele havia perdido há muito a noção do tempo.
Mason trabalhou com seu formão largo e maço, aplainando sessões do carvalho. Os veios estavam cooperando, como se estivessem com pressa de adquirirem logo sua forma
final. A estátua estava se revelando muito rapidamente e não era possível que ele já estivesse tão adiantado assim. Era quase como se a madeira estivesse bombeando
de volta a energia através de suas ferramentas para suas mãos.
Claro, Mase. Qualquer coisa que queira pensar. Liberdade criativa.
E olhe só, os ombros estão retos, um dos braços de Korban estará cruzado sobre o estômago, o outros atrás, nas costas. Uma postura aristocrática. Um homem que sabe
a que veio.
O espaço vazio do porão engolia os sons de metal no metal e metal na madeira.
Saia daí, Korban. Sei que está aí, em algum lugar no interior desse pedaço esquecido de carvalho. CANTE para mim, seu velho desgraçado e belo. Levante-se e caminhe.
Mason fechou os olhos rapidamente quando um jato de poeira veio na direção de seu rosto. Ele direcionou o formão para um espaço ao lado do braço esquerdo da estátua.
Resistência. Sonhos.
Ele teria que mandar outra palavra para Dennis Graves. Espírito.
Você tem que ter espírito, de outra forma, está perdido. O material tem que ter espírito. Você não conseguiria espremer alma de uma pedra. Ela deveria já existir,
teria que ter existido para sempre, esperando lá para que o artista a liberasse.
O vento da respiração do espírito soprou dos quatro cantos. É de lá que vinham essas imagens de sonhos. Não eram novas visões ou ideias de verdade. Eram coisas que
já existiam, que apenas tinham que ser reveladas para as mentes humanas.
Certo. Certo. Agora você está se perdendo, cabeça de bagre.
A pretensão artística é esperada, e toda aquela balela poderia se tornar útil depois de você ser "descoberto". Mas agora, a realidade é que você está levando uma
surra de trabalho e não consegue parar. Você deveria dar uma pausa para comer e descansar.
Mas VOCÊ NÃO CONSEGUE PARAR.
Mason enrugou o rosto numa careta e martelou o formão no flanco do quadril. Ele achava que não era um bom sinal quando as pessoas começavam debates filosóficos consigo
mesmas. Ele deveria estar em um transe criativo. Ele queria isso, procurara isso, rezara por isso para os deuses dos sonhos impossíveis.
Olhou para o busto de Korban e ele pareceu sorrir de volta de cima da mesa. Os lábios de madeira se separaram: - Então, por que você não consegue parar?
Posso parar quando quiser.
- Certamente. Eu acredito em você, Sr. Jackson.
Olhe, você não pode simplesmente ligar e desligar a criatividade quando quiser. Você deve acompanhá-la enquanto tiver condições, deve segurar a mão da Musa enquanto
ela quiser dançar com você.
- Ótimo. Sem argumentos. Mas vamos ver você parar.
Certo. Mas quero que você saiba que os músculos dos meus ombros, braços e dedos gritarão de dor porque eles estão mais apertados que um carretel de linha industrial.
Além disso, estou fazendo isso pela Mama, não por mim.
O busto disse: - Desculpas, desculpas.
Vou mostrar a você. Lá vamos nós...
Mason acertou o formão. Cinco centímetros de madeira vermelha foram arrancados de um lugar que seria o joelho de Korban. Ele reposicionou a lâmina e preparou o maço
para outra pancada.
O busto riu, um som parecido com o farfalhar de roedores. - Você não está parando.
Certo. Deixe o meu caso em paz. Apenas tenho que me ACOSTUMAR com a ideia.
Mason entalhou outra apara de carvalho e então olhou para suas ferramentas espalhadas pelo chão por entre a sujeira de madeira.
Viu? Posso desviar os meus olhos se quiser. Apenas como um experimento, vou pensar em outra coisa além da estátua de Ephram Korban. Consideremos, por exemplo, a
adorável Anna Galloway...
Mason pausou, uma gota de suor dependurada na ponta de seu nariz.
- Ah, então é justo que Anna faça seu coração cantar. - disse o busto - Você pode tê-la, sabia? Quando acabar. Eu prometo. E eu sempre cumpro minhas promessas.
Mason apertou os dentes e deu ao martelo um balanço mais forte que o normal. Ele poderia parar a qualquer momento que quisesse. Ele não queria pensar nela agora.
Não queria pensar, não queria pensar, não queria pensar -
- Com quem estava falando, eu me pergunto?
Mason girou, o martelo na mão, levantado como se fosse atacar um agressor. William Roth afastou-se, os olhos acinzentados arregalados de surpresa. Ele quase deixou
cair as garrafas que estavam em seus braços.
- Calma, companheiro.
Mason baixou o martelo. A magia estava quebrada. - Desculpe-me, acho que me deixei entusiasmar, por um instante.
* * *
- Pareceu mais que apenas um instante para mim. Você tem trabalhado nessa coisa sem parar?
Mason aquiesceu. A dor na parte de trás das costas mandou as primeiras pontadas vermelhas a seu cérebro. Ele esfregou seu bíceps direito.
Roth olhou por trás de Mason para a estátua. - Meu Deus, como você conseguiu fazer tanto assim já? Você deve estar trabalhando como se fosse uma manada de castores!
Mason olhou para a estátua e tentou vê-la como Roth a via.
Todos os membros estavam claramente sugeridos na madeira e era distinguível a figura humana. A cabeça era um bloco sem feições, mas em proporções exatas com o resto
do corpo. As pernas se erguiam da base com vibração e força.
- Está surgindo. - disse Mason - Prometi a Srta. Mamie que ficaria encantadora.
- Por que a pressa? Você vai acabar arrebentando uma artéria, se continuar desse jeito.
- Diga-me, posso lhe perguntar uma coisa? - disse Mason.
- Contanto que abaixe o martelo.
Mason colocou o martelo sobre a mesa ao lado do busto. - Dê uma olhada nessa pintura. Roth colocou as garrafas sobre a mesa e Mason levantou a tela na direção da
luz da lamparina mais próxima.
Roth franziu os lábios em aprovação. - Uma pintura e tanto.
- O que você vê naquele borrão ali, no topo do solar? Junto do parapeito da balaustrada? Roth se curvou na direção da pintura e observou as formas. - Parecem pessoas,
para mim.
Pergunto-me quem teria arruinado a pintura.
- Você acreditaria se eu lhe dissesse que não existiam pessoas ali dois dias atrás?
Roth olhou para Mason e então de volta para a pintura. - Eu diria que seu traseiro está apitando mais que uma chaleira, de tanto trabalhar.
- Bem, talvez tenha alguma coisa a ver com os produtos químicos usados na pintura. Isso me intrigou, só isso. Como sou um artista, sei o que significa chegar próximo
da perfeição.
Roth deu sua risada alta. - Não se iluda com toda essa conversa ruim sobre artista. É tudo uma questão de oportunidade de vender o que puder.
Mason esfregou o queixo e sentiu a barba por fazer. Ele estava negligenciando sua higiene. Podia sentir o odor de suas axilas. Para Roth, o estúdio deveria estar
fedendo como a lavanderia de uma academia de ginástica. Mason ajoelhou-se e retirou a camiseta, balançando os cavacos de madeira. Olhou de soslaio para a estátua
e sentiu-se culpado por pensar em abandoná-la.
- O que está fazendo por aqui? - perguntou a Roth, antes que sua mente ficasse fixa em Korban novamente.
- Preciso revelar alguns negativos. A Srta. Mamie disse que poderia usar a adega. Escuro o suficiente por aqui, não acha?
- E quente também. Eles devem manter essa fornalha a toda. É do outro lado daquela parede ali. Eu os ouço alimentando-a a cada três ou quatro horas.
- Esse tal de Korban não deve ter sido muito do tipo "salvem as árvores".
Mason olhou novamente para a estátua. - Talvez, de algum modo insano, ele seja as árvores.
- Vá pegar um pouco de sol, Mason. Você está ficando fora de órbita.
- Talvez você tenha razão.
- Relaxe um pouco, divirta-se outro tanto. - Roth sorriu, brilhando seus dentes vulpinos. - Vá tentar a sorte com aquela garota, a Anna. Ela é o seu estilo.
- Não, obrigado. Tenho preocupações suficientes. Melhor colocar um pouco de comida para dentro, para que eu possa terminar essa coisa.
Das escadas, Mason deu uma última olhada na estátua que se tornaria Ephram Korban. Ficaria maravilhosa. Demris Graves comeria seu martelo de iiNeja. Essa cria<;:ao
estava se moldando para tornar-se um deus.
CAPÍTULO 43
Spence chorou.
A beleza, a elegância da prosa, estava se derramando sobre ele como a maré negra em seu romance. Ele podia senti-la se aproximando. Com cada sentença, cada preposição,
cada pontuação, ele se aproximava da Palavra.
As chaves tilintaram quando bateram na carruagem, o sino badalante do retorno anunciando a gloria vindoura. Spence mal podia enxergar a página através do borrão
de suas lágrimas, mesmo com o sol se pondo pela janela, mas ele não tinha necessidade de ver. O escritor fantasma estava comandando seus dedos, fazendo-os voar sobre
as teclas, as palavras nem remotamente mais suas.
Spence se perguntou se isso faria diferença. A palavra autor era derivada de autoridade. Ele sempre se orgulhara de estar sob controle e de sua maestria sobre a
linguagem, dos malabarismos com o alfabeto, truques com os verbos, do esplendor dos substantivos. Mas isso era uma escrita inabitada, uma linguagem mais profunda,
as fendas entre o som e o pensamento. Comunicação que adentrava diretamente no coração da verdade.
Ele estava vagamente ciente da presença de Bridget na cama. Ele iria até ela quando a escuridão chegasse. Uma nova força surgira em sua carne, seu sangue rejuvenescido,
seu poder de efetuar restaurado. As dádivas e bênçãos da Palavra. O ato do sacrifício sempre retornava algum poder para aquele que se sacrificava.
O quarto estava frio, mesmo com o fogo crepitando e subindo pela chaminé como se ansiasse pela liberdade do céu. Seus dedos estavam duros como pingentes de gelo,
mas ainda assim acionavam as teclas, a música de cubos de gelo em um copo. Ephram Korban observava Spence do retrato, o mais encorajador dos editores, os olhos negros
sugerindo guinadas na trama.
Bridget poderia esperar, impaciente e ansiosa no calor da cama. Por agora, havia apenas a página. A última página.
Spence suspirou. O final era sempre uma pequena morte. Aquela palavra agridoce, "Fim".
Talvez Fim fosse a única e verdadeira Palavra. A única palavra que sempre tivera importância.
CAPÍTULO 44
O solar deu as boas-vindas a Anna quando ela chegou. O acabamento escuro, o pé-direito alto e o fogo rugindo na lareira da sala de estar. E Korban, o velho benevolente
Ephran, Vovô Ephram, sorriu amavelmente de seu posto vigilante sobre a lareira.
Talvez ela realmente pertencesse a esse lugar. Tanto quanto qualquer outro. Ela não pertencia a nenhum outro lugar, no fim das contas. E o Solar Korban era o fim
do mundo, o tipo de lugar no qual Anna merecia passar seus últimos dias, andando por esses cumes batidos pelo vento no meio do duro coração do inverno apalachiano.
Se morresse aqui, seu espírito atenderia ao verdadeiro chamado, seu fantasma poderia flutuar sobre o solar do mesmo modo como vira várias vezes em seu sonho.
E era isso assim tão ruim?
Contanto que Rachel Faye Hartley permanecesse na sepultura ou assombrasse as trilhas de Beechy Gap, nunca cruzando esse portal de pedra e madeira, Anna poderia ficar
tão satisfeita quanto qualquer coisa moribunda e inquieta. Olhar pela balaustrada do telhado, como uma viúva sem um marido pelo qual chorar, nem mesmo uma mãe, esperando
pelo que quer que viesse depois da passagem para a eternidade. Poderia uma vida após a morte ser pior que sua vida atual, pela qual ela passara sem nenhum efeito
positivo, nunca sabendo o completo e misterioso poder do amor?
Não. A morte nunca poderia ser tão ruim quanto sua vida, uma vida que o câncer invadira, na qual ela havia sido abandonada, na qual andara um milhão de tristes quilômetros
sozinha.
- Anna?
Deus. Não ele, não agora. Ela limpou rapidamente os olhos, fingindo que haviam sido atingidos pela fumaça que veio da chaminé quando o vento deu uma guinada. - Oi,
Mason.
- Estou contente de encontrar você. Estava precisando lhe perguntar algo.
- Contanto que não seja pessoal.
- Ei, você está bem? Parece um pouco mexida.
- Como se tivesse visto um fantasma? - Anna conseguiu dar uma risada amarga.
- Bem, é mais ou menos isso que gostaria de perguntar a você. Porque há uma pintura do Solar Korban lá em baixo no porão - Anna moveu-se para perto do calor convidativo
da lareira do saguão de entrada, esfregando as mãos. O movimento tinha a intenção de manter uma certa distância entre ela e Mason, mas ele se aproximou desconfortavelmente
dela. Ele olhou os corredores e então falou, a voz mais baixa.
- A pintura tem um borrão sobre o telhado - disse ele - e o modo como a pintura está se degradando, parece que o artista talvez tenha escondido algumas figuras em
uma camada mais profunda da pintura, como uma imagem subliminar. Porque o borrão está começando a se parecer com pessoas.
- Os artistas não reciclam suas telas algumas vezes? Talvez o pintor tenha pintado por cima de um erro ou esboço rápido.
- Bem, foi isso que eu pensei, também. Mas agora consigo ver seus rostos.
Anna olhou para o retrato de Korban, se perguntando quantas vezes aquele rosto havia vivido na imaginação febril de algum pintor, quantas incontáveis horas seu parente
a muito morto havia se sentado em repouso empertigado como um objeto de adoração. Mesmo Cris havia comentado sobre como o solar e o rosto de Korban ficavam rondando
sua mente até que tudo que seus dedos conseguiam era desenhá-lo em carvão, tinta e lápis de cor. E Mason havia contado para Anna sobre o busto de Korban, como a
imagem do falecido assombrava seu sono e o impulsionava a trabalhar obsessivamente.
- Deixe-me adivinhar. - disse Anna - Uma das faces é Ephram Korban. Porque você o vê cada vez que fecha os olhos.
- Uma delas é Ephram Korban. - ele olhou de lado para o retrato, como se não confiasse de ficar de costas para ele. - Mas isso não é tão estranho, considerando que
ninguém parece fazer algo criativo aqui que não envolva o desgraçado, de um jeito ou de outro.
- Ele parece tão encantador, não é?
- Tão encantador quanto um ninho de serpentes, talvez.
- Korban foi bastante pintado por aqui. Grande coisa. O que mais tem de estranho na pintura?
- Um dos outros rostos. Quer dizer, o óleo da pintura está seco, e pelo pó na moldura, pode ter um ano ou vinte. Talvez mais. E você me disse que nunca esteve aqui
antes.
- Nunca minto, a não ser que tenha uma boa razão. - A não ser para mim mesma. Venho mentindo para mim mesma desde que aprendi a falar.
- Então, como você é uma caçadora de fantasmas, talvez fique interessada em saber como o seu rosto está nela.
O fogo cuspiu uma brasa nas pedras da lareira, na direção de Anna. Mason a esmagou com o pé.
- Mostre-me. - disse Anna.
CAPÍTULO 45
William Roth tirou os negativos de dentro do frasco de vidro com movimentos de quem tem prática. Ele havia desenrolado centenas de rolos de filme, mas essa era a
primeira vez que fazia isso dentro de uma adega. Uma luz vermelha teria sido útil, mas isso não era pior que revelar no interior de uma tenda no Sudão ou em uma
barraca na Amazônia. Ele misturou os compostos químicos sob a luz da lanterna, depois apagou-a, revelou os negativos e lavou-os com água.
Faltava apenas secar o filme. O ar do porão era parado, o que impediria a poeira pesada de aderir à emulsão. Havia poeira para todo lado nesse lugar, junto com as
cinzas dos fogos constantes. E aquele sujeito, Mason, com todos os seus cavacos e pó.
Roth tateou ao longo da superfície de trabalho, encontrou os fósforos e o globo de vidro aquecido da lamparina, então riscou o fósforo e encostou ao pavio. Ele havia
estendido um barbante cruzando a sala e dependurou os seis rolos de filme com a ajuda de prendedores de roupa que pegara emprestado com a servente. Após pendurar
a última tira, colocando um prendedor adicional na ponta para esticar a celulose, aproximou a lamparina para observar seu trabalho de perto.
Ah, ali estavam as fotografias da ponte, e mesmo sem cores e com os tons de preto, branco e cinza invertidos, ele podia dizer quais fotos adicionariam à lenda que
era Roth. Ele olhou pelos quadrados das imagens, chegando àqueles da ponte e de Lilith.
- Mas que diabos? - Ele aproximou mais a lamparina, mesmo correndo o risco de encurvar a celulose pelo calor.
Ali estava a ponte, onde desaparecia dentro dos pinheiros que levavam de volta à civilização de Black Rock. Os corvos esquisitos estavam perfeitamente delineados
sobre os corrimões e a teia de aranha congelada pendurava-se como uma renda negra sobre as fotos. Mas Lilith não aparecia em nenhuma delas.
Roth esfregou os olhos. Talvez ele tivesse avançado o filme demais, tirado as fotos dela após o filme ter acabado. Isso era o tipo de coisa que um amador faria,
vovós e titias, mas não um mestre. Quando fora a última vez que Roth cometera um erro?
- Mas que porcaria desgraçada! -murmurou ele, seu sotaque agora uma mistura de Manchester e classes baixas de Cleveland. Talvez fosse o momento para um drinque,
relaxar junto à lareira e descansar um pouco. Os benefícios da fama e de um carisma falso talvez fossem efêmeros se ele continuasse desse jeito. Em especial porque
Spence estava se mostrando duro como uma parede de pedras. Se a sorte de Roth não melhorasse logo, ele poderia começar a culpar a maldição de Korban ou alguma coisa
do estilo.
Ele levantou a lamparina, as bases empoeiradas das garrafas à sua volta como olhos ancestrais. Ele tirou uma das garrafas da estante. O vidro escuro tinha apenas
uma etiqueta simples, engarrafado aqui mesmo na fazenda. À tinta, alguém havia escrito 1909. Provavelmente um ano decente. Decente o suficiente para apagar a lembrança
da ponte, de qualquer forma. E talvez decente o suficiente para aquecer seu coração e as pernas da bela e suave Lilith.
Roth colocou a garrafa embaixo do braço e deixou o porão, as fotografias confiadas à escuridão.
CAPÍTULO 46
- Ela não vai me deixar partir. - disse Adam.
- Droga. - Paul deu outra tragada de seu baseado. O odor doce da maconha espalhou-se pela varanda traseira. - Uma pena, princesa.
Era o terceiro baseado de Paul naquele dia. Uma conversa racional seria impossível. Mas até aí, não tinha sido sempre assim? Não havia muita coisa restante para
discutir, de qualquer forma.
Adam estava encostado no parapeito, observando as montanhas. Paul estava em uma das cadeiras de balanço, não se preocupando em chegar sua cadeira mais perto de Adam.
O som do piano vazava da biblioteca, sufocando a canção matinal dos pássaros. Alguém riu embriagadamente dentro da casa, sem dúvida outro artista sofredor que havia
se autoinfligido a miséria de ir embora.
Adam não possuía nem essa patética desculpa para seus pesadelos. Porque havia ido dormir sóbrio e sua mente estava demasiadamente límpida, preservando cada pequeno
detalhe de sua morte e subsequente ressurreição.
- Sabe de uma coisa? - O rosto de Paul parecia sinistro enquanto ele dava uma profunda tragada. Ele segurou a respiração e então a expeliu na direção de Adam com
um floreio. - Talvez se você desse uma relaxada, poderia aproveitar melhor a vida. Você sempre tem que ser tão sério assim sobre tudo?
Um garoto certinho de Manhattan. Esse era Adam, com certeza. Preocupado com fundos de investimentos quando a maior parte das pessoas estava se preocupando com encontrar
um amante para a noite, decidindo qual banda era e melhor do momento ou escolhendo um novo estilista para suas roupas. Pelo menos Adam não era egoísta. Era por isso
que fazer a relação dar certo era tão importante para ele. Era por isso que queria adotar uma criança.
Ele queria compartilhar o que tinha a oferecer, doar-se. Ele queria um lar no coração de alguém. Só que agora ele temia que não fosse no de Paul.
- Coloque para fora. - disse Adam - Vá em frente e me destrua. Isso é tudo o que você tem feito desde que chegamos aqui, mesmo. Pode acabar com isso logo.
Paul deu uma risadinha. - O mártir. Pregos nas palmas das mãos, uma lança entre as costelas. Pobre garoto. Você me deu uma ideia para meu próximo vídeo. O nobre
sofrimento de Adam Andrews. Filmado no modo lamento contínuo.
Idiota. Idiota.
Adam fechou um punho, a raiva misturando-se com o medo, criando uma mistura quente que queimava em suas entranhas. Mas perder o controle daria a vitória final a
Paul. Ele sempre perdia com graça. E tinha uma grande experiência nisso.
Ele forçou a voz a ficar calma e baixa. - Olha, já que estou preso aqui por mais cinco semanas, podemos pelo menos ser civilizados um com o outro? Desse jeito, podemos
depois olhar para esse dia e fingir que não foi assim tão ruim.
A cadeira gemeu quando Paul se levantou e a brasa da guimba do baseado voou até a grama ao lado da varanda. Paul caminhou até Adam e inclinou-se até que seu rosto
estivesse tão próximo que Adam podia sentir o cheiro da machona e bebida em seu hálito.
- Agora você está sendo sensato. - disse Paul - Já que estamos presos um ao outro, podemos aproveitar.
Adam tentou esquivar-se do contato, mas Paul o abraçou, a respiração quente no pescoço de Adam.
- Paul, acho que não...
- Shh. Você fica todo excitado e ligado nesse Ephram Korban, falando dele em seus sonhos, mas é provável que eu esteja mais disponível.
- Não posso, sabendo que você não liga para mim. Agora pare com isso, a Srta. Mamie pode nos ver.
Paul deu um passo para trás e olhou nos olhos de Adam. Sorriu. Seu maldito cabelo estava desgrenhado e ele estava mortalmente belo, e sabia disso.
De súbito, seu rosto mudou, contorcido, e Ephram Korban, aquele rosto cruel e maligno do pesadelo de Adam, olhou para ele como uma máscara de halloween.
E o sonho voltou com todo seu fulgor e realismo, Korban jogando-o sobre o parapeito da balaustrada, só que dessa vez ele o estava beijando, a respiração quente e
fétida, a língua como uma cobra insistente, a boca lhe roubando o ar dos pulmões. Então, drenado e vazio, Korban sugando-o para dentro do longo túnel em direção
ao que Adam sabia que o esperava logo após a curva. A coisa que ele mais temia.
Para Adam, não haveria nada. Nessa parte de seu túnel, após ele passar pelos fantasmas, entraria no seu pesadelo de infância. No pesadelo de sufocamento, sem visão,
sem som, sem toque, exceto a escuridão pressionando à sua volta. Nenhum sabor, a não ser o suave nada desprovido de ar.
Nenhum sentimento a não ser o medo que vinha com o isolamento. E o terrível conhecimento de que aquela bolha era completa, intacta, imutável. Solidão eterna.
Seria por isso seu desejo desesperado de adotar? Fazer com que alguém precisasse dele? De forma que a criança não pudesse deixá-lo, pelo menos por muitos anos? Anos
que a textura preto e branco da vida seria mantida distante.
Ele piscou e era Paul à sua frente, não Ephram Korban. As notas do piano eram como agulhas de gelo sopradas pelo vento.
Apenas uma lembrança ruim. Que idade você tinha quando teve pela primeira vez esse sonho de sufocação? Três, quatro? Antes mesmo de saber sobre palavras?
E essa casa trouxe isso de volta, o sonho voltou farejando seus calcanhares como um estranho cão negro que o seguiu até em casa. Um cão que não chega próximo o suficiente
para ser cuidado, mas que também não fica distante o suficiente para ser esquecido.
Adam não sabia o que significava o sonho e ele também não estava interessado na opinião de um psicólogo. Apenas sabia que não queria ficar só. Mesmo que isso significasse
render-se, perder, agarrar e aferrar-se em desespero. Ele colocou os braços à volta de Paul, agarrando-se a ele como se estivesse sobre areia movediça.
O sonho da morte. Ephram Korban. Os fantasmas. Tudo parte disso. A casa poderia abocanhá-los com suas presas e então engoli-lo para dentro de seu estômago negro.
Engoli-lo sozinho, a não ser que ele levasse alguém consigo para dentro do vácuo silencioso.
- Eu me preocupo com você. - murmurou Paul em seu ouvido. - Não vê isso?
Paul se preocupava com a pele, com a carne. Mas tudo bem. Era tudo o que eles eram, de qualquer modo. Eles não possuíam espírito. Duas almas nunca poderiam juntar-se
em uma, nem mesmo nos sonhos.
Adam deixou escapar uma respiração rápida. Ele odiava os sentimentos que inundavam seu corpo, a paixão que o traía. Mas amor e ódio eram basicamente a mesma coisa,
e ambos eram melhores do que não sentir nada. Qualquer coisa era melhor do que o sufocamento da solidão que o esperava no seu túnel da alma. Ele puxou Paul para
perto.
- Eu tenho uma ideia. - disse Paul - Vamos para cima do telhado. Vamos subir aquelas escadinhas. Brincar um pouco lá onde você teve aquele sonho. E prometo não empurrá-lo
lá de cima.
- Isso é o que sempre dizem. - disse Adam - E a próxima coisa que você percebe é que está olhando para o próprio fantasma.
- Confie em mim. - Paul pegou sua mão e o levou para dentro.
Quando entraram na casa, Adam se deu conta de que as pessoas nunca entregavam seus corações, não importava o quão inclinadas, desesperadas ou solitárias estivessem.
Corações sempre tinham que ser roubados. Pela força ou pela enganação. Amor era assassinato, morte por roubo cardíaco e as alternativas eram muito piores.
Os olhos pintados de Korban os olharam, brilhando com fria empatia, sábio perante a futilidade dos sonhos humanos.
CAPÍTULO 47
Anna segurou a lamparina mais alto. O ar no porão cheirava a madeira e podridão, as sombras rondando os cantos como coisas sólidas. A estátua de Mason esgueirou-se
com o tremeluzir da chama, as formas grosseiras sugerindo uma força obscena. O busto de Korban era ainda mais inquietante, pois a face havia ficado mais vívida com
o polimento da madeira. Havia sido entalhada com todo o amor que Deus havia invocado para criar Adão e Eva.
- O que quer dizer? - perguntou Mason.
- Acho que quer dizer que você é obcecado.
- Estou falando da pintura.
- Você fez tudo isso desde ontem?
- Ei, os críticos me amarão, Mama ficará orgulhosa, sou o Michelangelo da montanha, o herói não identificado da escultura, blá, blá, blá. Mas olhe a maldita pintura.
Anna olhou. Lá, na balaustrada do telhado, estava um grupo de figuras em relevo branco contra o fundo escuro. Mais à frente estava a mulher que Anna havia visto
em seus sonhos, a mulher com o longo vestido fluido, o buquê nas mãos. A boca da mulher estava aberta, pega em um grito ou sussurro, os olhos suplicantes, implorando
liberdade para as formas às suas costas.
- Essa é você. - disse Mason.
- Não. A princípio, pensei que fosse.
- Você viu essa pintura antes?
- Em meus sonhos. No último ano, desde que descobri... desde que decidi vir para o Solar Korban.
- Se não é você, então quem é?
- Você não acreditaria se eu lhe contasse.
Mason balançou o braço indicando seu trabalho. - Eu me tornei um gênio do dia para a noite, cada vez que fecho os olhos, Korban está exatamente ali, me dizendo para
voltar ao trabalho, você, Ransom e metade dos hóspedes convencidos de que essa casa é mal assombrada e essa pintura pintou a si própria sem ninguém ver. Agora me
diga no que não vou acreditar.
- Certo. Prometa que não vai rir.
- Não estou com humor para rir desde que cheguei aqui. Sou um artista sério, não sabia disso?
- Ah, claro. Você tem "sofrimento" escrito na testa. É seu escudo contra o mundo. Essa é sua desculpa para manter as pessoas distantes. Você é tão duro quanto a
madeira dessa maldita estátua.
Os olhos de Mason brilharam com raiva e, por um momento, Anna viu Stephen, a máscara de raiva incontida com a aceitação de Anna sobre a morte iminente, os cálculos
sobre o que ela perderia, o desprezo quando ele soube que ela estava de partida para uma casa "mal assombrada" que nunca registrara nenhum dado empírico anômalo.
Mason agarrou seu braço, apertando-o o suficiente para machucar. - Agora me escute. Quando eu tinha seis anos de idade, minha mãe comprou um pacote de massa de modelar.
Foi como mágica, enterrar meus dedos naquele negócio, torcendo e moldando do jeito que queria. Pela primeira vez na vida, eu tinha controle sobre alguma coisa.
- Eu fiz um dinossauro para minha mãe, copiando de uma figura de um livro. Eu inclusive coloquei uma fileira de placas ósseas em sua espinha e espinhos em seu rabo,
dois longos chifres e olhos que pareciam que poderiam encarar um T. Rex. Mama adorou. Pela primeira vez na vida, havia feito algo que a deixara orgulhosa.
Mason apertou mais forte e Anna temeu que ele tivesse perdido a razão e que quebraria seu braço como se fosse uma de suas espátulas de modelagem. Ele falava cada
vez mais rápido, o rosto vermelho, os olhos negros e distantes. - E meu pai chegou, viu o dinossauro, derrubou-o no chão e pisou em cima. Chamou-me de um maldito
sonhador, um idiota preguiçoso. Eu ainda consigo ver aquela pegada no chão, as marcas de sua bota na massa. Fez com que me sentisse bem especial, pode crer.
- E você é especial porque vê coisas que não existem. Bem, deixe-me lhe dizer uma coisa, pequena senhorita esquisita, essa não é uma de suas histórias de acampamento.
Isso está acontecendo e é real. - Ele a empurrou para perto da pintura. - Você consegue ver que está acontecendo.
Ela se soltou torcendo o braço e se distanciou com a lamparina. O movimento da luz fez as sombras mudarem de lugar, dando a ilusão de que a estátua havia mudado
de posição junto com as tábuas e o fio que as seguravam. Ela olhou para dentro da pequena chama da lamparina, onde o laranja dava lugar ao azul e então ao amarelo.
Talvez, se ela queimasse os olhos, nunca mais veria outro fantasma no pequeno tempo que ainda lhe restava. Cega para a Visão ou para qualquer visão.
- Essa não sou eu. - disse ela, ordenando que as lágrimas evaporassem. - É minha mãe.
- Sua mãe?!
- Ela está aqui. Morta. Ela é um deles agora. E eles podem ficar com ela, no que me toque.
- Um de quem? Espere um segundo. Não estou entendendo nada.
- Junte-se ao clube. Eu entendi cada vez menos durante o dia.
Ela bateu com a lamparina sobre a bancada de trabalho de Mason com força suficiente para tilintar os vidros. As trevas saltaram sobre eles enquanto a chama fraquejava,
mas então iniciaram o lento retrocesso na direção de Anna. - Aqui. Você vai precisar disso, pois fica bem escuro quando sua cabeça estiver dentro de seu rabo, Mason.
Anna subiu as escadas, agradecendo o ar frio que se derramava sobre ela como dedos feitos de nevoeiro. Então a dor veio novamente, em ondas gentis, lembrando-a da
areia que escorria lentamente na fresta da ampulheta que dividia o passado do futuro. Logo, a areia acabaria e a escuridão viria cobrar sua alma. Logo, mas definitivamente
não logo o suficiente.
A cada degrau ela batia o pé e repetia seu pequeno ritual de contagem regressiva.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola... Oito, um par de biscoitos...
- Anna. Espere!
Sete, um canudo dobrado... Seis, um nove no espelho...
- Sinto muito.
Ela também sentia.
Cinco, uma pequena foice... Quatro, uma cruz com um braço...
- Estou assustado.
Junte-se ao clube.
Três, forcado de inglês... Dois, um gancho vazio...
Um, uma linha que divide...
- Ajude-me.
Zero.
Nada. Nada.
Ela abriu a porta e andou pelo corredor, dentro das artérias da casa, atenta para sua respiração contida e paciente, seu coração morno e acolhedor. A aceitação lhe
trouxe paz. Esse era o primeiro e último lugar ao qual ela pertencera. Sylvia Hartley estava certa. Ela teve que voltar ao lar.
CAPÍTULO 48
Ela teve que voltar ao lar. Sylvia moeu a raiz seca, o sangue correndo pelas veias como neve derretida pelas pedras no final do inverno. Apenas mais algumas horas
até o pôr do sol e o nascer da lua azul. Sylvia havia rezado por essa noite por quase cem anos e as cinzas de uma prece são mais fortes que os fogos mais quentes
do inferno.
Os espíritos reviraram-se na terra, giraram em seus túneis, inquietos, perturbados pelo poder crescente de Ephram Korban. Ela conhecia Ephram melhor que ninguém,
melhor até mesmo que Margaret ou "Senhorita Mamie", como ela passou a se chamar. Muitas foram as noites nas quais a voz de Ephram assombrou o vento de Beechy Gap,
sussurrando para Sylvia, fazendo-a se arrastar atrás de seus patuás. E ele estava evocando uma tempestade agora, havia convocado George Lawson e um dos novos hóspedes,
outros ainda por vir. No próximo nascer do sol, Korban os teria todos. Mesmo Anna. Especialmente Anna.
Sylvia pegou o frasco com ossos de gato, espalhando alguns no almofariz. Sua mão doeu ao segurar a pedra, mas o pó teria que ser tão fino quanto poeira de sepultura.
Ela socou a mistura novamente, macerou as ervas secas, tremendo. O fogo crepitou, o que ela considerou um bom augúrio.
Sua fé seria suficiente? Ela tinha os feitiços, passara toda a vida ensaiando para essa noite. Por tempo demais ela havia caminhado por essas montanhas, colhendo
raízes e lendas, cruzando as fronteiras para conversar com os mortos, mesmo quando esses apenas queriam ficar em paz. O feitiço agarrou-se a seus lábios rachados
como as balbucias de um delírio febril.
Quando fosse o momento certo, ela o diria. Gelo e fogo. Ephram Korban era como gelo e fogo. Morto e vivo. Ambos iguais, quando você chega à raiz de tudo.
Ela pegou uma pequena caixa de cedro de uma reentrância da longa parede. O pedaço de tecido estava cinza com a idade, manchado com o fruto da alma de quem o havia
usado. Sylvia o encostou aos lábios, murmurando "vá para fora congelar", beijou-o e colocou-o no pequeno monte de pó no almofariz.
Ela pilou a pedra de encontro ao tecido, as fibras se desfazendo, das cinzas às cinzas, do pó ao pó, do gelo ao fogo.
CAPÍTULO 49
Roth lambeu os lábios. Essa era a parte boa. A garota havia caído em sua conversa boba. Engolido o anzol, a linha e a chumbada. O que lhe deu uma ideia do que ele
faria com Lilith quando conseguisse entrar em seu quarto.
Ela o levou por uma pequena porta na copa, uma que ele nunca havia reparado antes, um lugar de descanso e sombras que parecia ideal para as classes inferiores. Imagine,
os serventes estavam sempre presentes, como se nunca precisassem dormir. Uma vez, ele vira uma empregada cuidando do fogo na sala de estar às três da manhã, e os
trabalhadores chegavam a toda hora com cargas de lenha.
Roth seguiu Lilith, que descia por uma escada estreita. Essa era uma sessão separada do porão, separada por paredes da área onde Mason trabalhava e Roth havia revelado
seus negativos. Quando a porta se fechou atrás deles, estavam em uma escuridão completa. Nenhum dos dois tinha uma lamparina e a inabilidade de ver excitou Roth,
fazendo sua pele vibrar de ansiedade. Ou talvez fosse o ar morto e frio, a sensação de clausura que faziam seu coração acelerar.
Ela havia sido fácil e ansiosa, certo. A maior parte das mulheres agia como se dar uma rapidinha à luz do dia fosse uma afronta aos deuses. Lilith nem mesmo havia
terminado sua primeira taça de vinho antes de se inclinar para Roth, dando a ele seu sorriso especial, olhando dentro dos olhos cinzentos que nenhuma mulher em sã
consciência poderia resistir.
Ela estendeu uma mão, deixando a outra na parede para não perder o equilíbrio. Ele tocou o cabelo de Lilith e deslizou a mão para baixo onde deveria estar seu ombro,
mas ela se manteve alguns passos à sua frente. Ela não havia falado desde que ele fizera sua sugestão, apenas sorrira em submissão e inclinara a cabeça para a porta
secreta. Ela gostava de jogos, se gostava.
Roth desceu do piso de madeira para uma área dura e plana. Então ouviu o fósforo riscando alguns passos a frente e o brilho de uma chama apareceu. O rosto de Lilith
era um círculo de luz, mas era impossível, porque ela estava ao seu lado. O vestido preto deixava seu corpo invisível e, por um momento, suas mãos e rosto pareciam
estar flutuando pelo ar. Ele largou o cabelo dela, ou o que quer que estivesse tocando, e deu um pulo para trás quando ela acendeu uma vela.
- Devemos ter fogo. - murmurou ela, a voz rouca. Roth olhou para sua mão e viu que estava coberta de teias de aranha. Ele gemeu e limpou a mão na calça.
Ela riu de leve. - Isso o assustou, Sr. Roth?
- Odeio aranhas, lembra? Desde que eu tinha nove anos e uma delas entrou na minha boca enquanto me arrastava sob a varanda. Tive pesadelos por uma semana seguida
após isso.
- Pobre garoto. Você está a salvo comigo.
- Espero que não a salvo demais, hum? Eu vivo para o perigo e você está parecendo bem perigosa agora, meu amor.
Quando a vela finalmente pegou fogo, ele pôde perceber os cantos penumbrentos do aposento, se perguntando se havia aranhas espreitando nas sombras. Dois metros de
você, diziam. Contanto que elas permanecessem a dois metros. Ele notou uma alcova, que possuía outra vela. Como ela havia acendido aquela? Talvez aquele aposento
levasse a outro, mas então ele viu as costas de Lilith e seu próprio rosto. Um espelho, tão grande quanto a cama sob ele, refletia o aposento. Garota levada.
Ele lambeu os lábios e correu a língua sobre os dentes. O aposento era pequeno e as paredes de alvenaria, tão grossas que nenhum som poderia escapar. Talvez ela
apreciasse soltar a voz quando estivesse dando uma. Nada a que Roth se opusesse.
O aposento estava livre de mobília, tirando a cama, e isso incomodou Roth por um momento. Não havia cobertores sobre o colchão, apenas um tecido de linho que necessitava
urgentemente de uma lavagem. O lugar era tão desanimador quanto a cela de um monge. Mas ele esqueceu de tudo isso quando Lilith colocou a vela sobre a lareira e
sentou-se na cama, olhando para ele com olhos devassos.
Olhos negros. Mais profundos que um bastão de carvão de Newcastle. Ele não viu as coisas que desejava ver. Ele gostava que as garotas tivessem um pouco de medo,
ou pelo menos um pouco de apreensão. Fazia com que se esforçassem mais para agradar.
Mas ele não se apegaria a detalhes. Todas eram iguais, depois de tudo feito. E a pele dela tinha uma aparência suficientemente cremosa. Ele havia pensado que ela
coraria um pouco, mas Lilith apenas sorriu novamente, e algo naquele sorriso o incomodou.
- Você não vai se envolver em confusão, não é? Se envolvendo com os hóspedes? - perguntou ele, mais para quebrar o silêncio do que por preocupação real.
- A Srta. Mamie diz que a satisfação dos hóspedes é o segredo para bons negócios. - disse ela e, novamente, o sorriso endiabrado estava em seus lábios. Por um momento,
Roth se sentiu como o seduzido ao invés do sedutor. Era sua fama, seu charme, sua aura de poder que a havia atraído.
Seu coração batia forte e ele moveu-se pelo aposento em direção à cama. Ela deitou-se sobre a cama, abrindo os braços, abrindo-se para ele.
- Sou tão bonita como uma pintura, Sr. Roth?
Ele engoliu em seco. Talvez fosse todo aquele vinho que ele havia bebido, mas estava ficando excitado rápido demais. Sentiu-se como um menino de escola idiota olhando
para uma revista de sacanagem. Ele não gostava de perder o controle. Nenhuma garota podia mexer com suas emoções tão facilmente.
Os seios dela haviam se achatado debaixo do colarinho do vestido e ela levantou os joelhos de modo que suas pernas ficaram abertas. O vestido escorregou pelas coxas
e Roth não pôde desviar o olhar para longe do espaço escuro entre os quadris dela. Ele nunca havia ficado tão duro na vida.
Ou talvez fosse essa casa, aquela coceira esquisita que havia sentido bem lá no fundo de sua cabeça desde que chegara. A coceira parecia ter aumentado e se espalhado
pelos membros. Fogo, era isso que era. Um pequeno jato de calor expandindo em um brilho.
Ele se ajoelhou, querendo tocá-la. Ele teria que ir devagar ou se tornaria um animal. Ele não queria apenas dar umazinha, ele queria que fosse devagar e gostoso.
Elas gostavam disso. Ele gostava de ouvi-las gemendo e implorando para que acabasse.
Mas agora ele estava com receio de que estivesse escorregando, de que o poder e controle tivessem mudado de dono e que ela estivesse ditando as regras. Suas mãos
tremeram quando as estendeu na direção dela e ele ficou subitamente bravo consigo. Ele nunca tremia. Ele havia tirado fotos de rinocerontes atacando a dez metros
de distância, com uma câmera à mão livre, e elas haviam saído tão claras e focadas como o cartaz com letras do oftalmologista.
Então ele fez o que sempre fazia quando queria prolongar ou negar sua paixão: pensou sobre seu trabalho. A batelada de negativos que ele revelara essa manhã. Algo
neles o havia incomodado, mas não conseguia lembrar direito no momento. Definitivamente, o vinho o pegara de jeito. E sua raiva contra Spence também havia toldado
seus pensamentos. Bem, apenas um modo de exorcizar o diabo.
Ele colocou as mãos na parte inferior das coxas dela. Sua pele era tépida, a mesma temperatura do aposento. Estranho, mas ele a esquentaria rapidamente. Nada como
um pouco de fricção para consertar aquilo. Mas ainda não.
Roth subiu na cama, pensou em remover as calças, mas decidiu esperar. As mãos de Lilith estavam em seus ombros, à volta de seu pescoço, puxando seu rosto na direção
do dela. Que diabos, não há motivo para fazê-la sofrer mais. Por alguma razão, a falta de calor no corpo dela o excitou ainda mais. Talvez fosse esse aposento com
jeito de cripta que a deixasse gelada. Ele tomou como desafio pessoal avivar seu fogo.
Seus lábios se pressionaram contra os dela e a língua dele moveu-se incertamente na boca dela. Para uma garota atirada, ela estava agindo como se nunca houvesse
beijado antes. Ele hesitou, pois algo estava errado dentro da boca dela.
Roth pressionou seu corpo sobre o de Lilith, o corpo dela moldando-se ao seu mesmo com o vestido. Os seios dela comprimiram-se debaixo dele e ele gostou do que sentiu.
Mas ele estava sendo cuidadoso para não gostar demais daquilo. Devagar e gostoso era o jeito correto, ainda que seu sangue estivesse bombeando forte por sua carne.
O que era isso dentro da boca dela?
Era como o resto dela, um pouco fria demais. Qual era a temperatura debaixo da terra, constantes dezenove graus ou algo assim? Mas com certeza a boca dela deveria
ser quente e não tão seca. Era quase como se ele estivesse colocando a língua no interior de um bolso de camisa. Ele esperava que ela não fosse seca assim em todos
os lugares.
Lilith gemeu dentro de sua boca. Ela não tinha nenhum líquido?
Ela se contorceu debaixo dele e ele esqueceu de quão esquisita era sua língua. Ele pegou o ombro do vestido e começou a puxá-lo para expor um pouco mais de carne
sob a luz da vela.
- Sim. - gemeu ela.
- Sim. - disse outra voz. Que diabos?
Provavelmente apenas um eco nas paredes de pedra. Um truque de acústica.
Mas o ar morto do aposento engolia o som inteiro em vez de deixá-lo reverberar.
Roth captou um leve movimento que o distraiu do fluxo de sangue abaixo da cintura. Então ele se lembrou do espelho e o olhou. Talvez se observasse e visse aquele
traseiro adorável debaixo dele, poderia reavivar sua excitação.
No espelho, seu rosto ficou maior, como se estivesse se vendo por uma lente. E por que aquilo estava errado?
Foi apenas por uma fração de segundo, mas tempo suficiente para que ele se desse conta de que o espelho estava caindo sobre a cama, sobre eles, como que em câmera
lenta. E aquele espelho deveria pesar uns cinquenta quilos. Se ele quebrasse...
Se ele se quebrasse, Roth poderia ficar gravemente ferido. Gravemente.
Mas ele não podia se mover, pois Lilith tinha seus membros à sua volta e, com os diabos, ela era forte. Ele gemeu enquanto tentava se livrar dela, mas ela tinha
muitos braços, braços demais, arranhando e se agarrando. Viu seu reflexo no espelho e ela não era mais Lilith, mas uma aranha negra, achatada e grossa, as presas
próximas a seus lábios, procurando um beijo de alma.
Viúva negra, sua mente gritou para ele, ela sempre devora seu parceiro.
Olhando para cima, ele mal reconheceu seu reflexo, os olhos grandes, a boca um túnel negro, as pontas dos oito braços de Lilith se agarrando a ele, os pelos dos
palpos tocando sua carne.
Mas antes que a dor conseguisse lançar sua teia, o espelho estava sobre ele e conforme o vidro se quebrou, não era seu rosto nele, mas o de Korban.
Então os fragmentos prateados penetraram sua carne e Lilith deixou correr seu veneno, levando-o para o longo túnel negro, Ephrarn Korban sorrindo para ele, segurando
uma colher que se revolvia como o remexer frenético das aranhas.
- Hora de tomar seu xarope, Sr Roth - disse Korban.
CAPÍTULO 50
- Como está nossa estátua? - A Srta. Mamie esperava que sua impaciência estivesse profundamente enterrada, do mesmo modo que suas emoções, a não ser quando sob o
olhar penetrante de Ephram.
- Ficará adorável. - disse Mason, de pé à porta de seu quarto, os olhos inchados, o cabelo desfeito. - Quer entrar?
Ela e Ephram haviam passado muitas noites preciosas ali, horas que pareciam ainda mais doces com a distância dos anos. Mas o quarto a perturbava porque para sempre
teria o fedor e as máculas deixadas por Sylvia, como se as paredes ainda carregassem as lembranças dos pecados de Ephram. Ela poderia perdoar, com certeza. Todas
as mulheres perdoam, era como o amor funcionava, mas ela nunca poderia esquecer. Mesmo que Ephram a fizesse viver mil anos.
Mason abriu a porta e ela olhou além dele na direção da lareira, o orvalho secando na janela, o rosto sorridente de Ephram na parede.
- Eu só tenho um minutinho. - disse ela - Estou atarefada me preparando para a festa.
- Festa?
- A festa da lua azul. É uma tradição no Solar Korban. Sua presença é obrigatória.
- Claro. Acho que tenho tempo para isso.
- Não tempo demais, espero. Sei que você é dedicado a seu trabalho.
- Isso me lembra uma coisa. Você sabe algo sobre a pintura que retrata o solar e está lá no porão?
O ódio preencheu a Srta. Mamie, queimou-a, chamuscou-a como o amor de seu marido morto. Ela não mais se importava se Mason visse as chamas em seus olhos. Ele não
poderia escapar, de qualquer forma. Ele estava tão preso à casa quanto ela.
Ela forçou um sorriso, a boa anfitriã. - Mestre Korban, receio. Ele tentou a sorte como pintor.
A raiva abriu um túnel negro em seu coração, o fio pelo qual Ephram mantinha seu controle sobre ela. Um vento gélido soprou da boca do túnel, congelando seu peito.
A ameaça e a promessa de Ephram. Ele precisava que ela sentisse medo tanto quanto precisava das emoções dos outros. Ela apenas desejava que seu amor fosse tudo o
que ele exigia dela. Mas simplesmente amor nunca era suficiente.
- Ele era talentoso. - Mason não deve ter reparado seu tormento. Ela era eficiente em escondê-lo, depois de todas essas décadas.
- Um de seus maiores pesares foi nunca tê-la acabado. - disse ela - Existe algo melancólico no último trabalho de um artista, mesmo quando os talentos do artista
são ordinários e mortais. As pessoas sempre têm esperança de deixar uma impressão que viverá após suas mortes.
- Nossa vaidade. - disse Mason - E isso nos deixa loucos. Porque sabemos que nunca vamos atingir a perfeição.
- Perfeição. - A Srta. Mamie não precisava da pintura a sua frente para lembrá-la. Ela poderia fechar os olhos e ver a casa, as janelas iluminadas, as nuvens baixas,
a balaustrada sobre o telhado. Ela poderia sentir o gosto da brisa que soprava do nordeste, cortante após sua jornada sobre a tundra canadense. Música de cordas
movia-se pelo ar, fumaça saía das chaminés na direção do olho redondo da lua. E Ephram os chamou para cima, convocando seus escravos espirituais e enviando-os atrás
de Rachel Faye Hartley.
Ephram não gostava que sua própria família tivesse segredos escondidos dele. Rachel havia fugido, saltado para a morte da balaustrada do telhado. Rachel havia levado
seus segredos consigo para a sepultura, mas também os trouxera de volta de lá.
A dor cresceu dentro da Srta. Mamie, consumindo-a em um fulgor de ódio. Ephram e Sylvia estavam ligados pelo sangue. A família bastarda sempre teria um lugar maior
em seu coração eterno, não importava os sacrifícios que a Srta. Mamie pudesse fazer. Não importava quão profunda fosse sua devoção. E aquela pintura, a que Ephram
denominava seu trabalho em andamento, era uma lembrança eterna disso tudo.
Ela se virou, na direção do corredor, o retrato de Ephram próximo o suficiente para ser tocado.
- Aquela pintura deveria ter sido queimada há muito tempo. - disse ela.
- Anna disse que a mãe dela estava na pintura.
- Esqueça Anna. Concentre-se apenas em sua estátua.
- Anna disse que nunca esteve aqui. Como Korban poderia ter sabido? Ele também está na pintura. E alguém que se parece com você.
- Ilusões. - disse a Srta. Mamie - Nunca confie em um artista, pois os sonhos são enganadores e as visões, efêmeras.
- Posso confiar em alguém?
- Confie em seu coração. Sr. Jackson. Essa é a única coisa na qual vale a pena confiar.
- Meu coração está sendo puxado em três direções diferentes.
Ela estudou o rosto do jovem. Ele era muito parecido com Ephram em alguns modos, teimoso e orgulhoso, com receio da fraqueza e do fracasso. Mas Ephram havia tomado
as rédeas de sua vida, determinado a não deixar nada inacabado em seu trabalho. Obcecado com o controle de seu mundo.
- Acho que você deve apenas partir seu coração em pedaços suficientes para seguir em frente. Contanto que o maior pedaço fique com a estátua.
- Não se preocupe. Eu a deixarei orgulhosa. Deixarei todos orgulhosos.
- Tenho certeza de que deixará. Eu o vejo à noite. Não se atrase.
A porta se fechou. A Srta. Mamie tocou no medalhão à volta do pescoço. Quando Ephram novamente estivesse vestindo carne, ele provaria que o amor nunca morre. Sylvia,
Rachel, Anna, Lilith e todas as outras seriam esquecidas, seriam cinzas de lembranças, esvanecendo, morrendo e, por fim, perdidas nas trevas. Enquanto a Srta. Mamie
e Ephram continuariam em fogo, juntos para sempre.
CAPÍTULO 51
Anna se sentou em sua cama, enrolada em um cobertor. O quarto havia ficado frio durante a tarde, a temperatura caindo com o fogo baixo. Ela se pegou olhando o retrato
de Ephram Korban, procurando em seu rosto feições genéticas que foram passadas para ela. Korban, Rachel e Sylvia. E no meio disso tudo um pai sem rosto, que a tirara
da montanha, a abandonara apenas com um primeiro nome e morrera em vez de retornar às montanhas. Pelas próprias mãos e um laço, de acordo com Sylvia.
Ela havia ficado sem rumo por tanto tempo, sem raízes e desconectada, e agora ela pertencia a pessoas demais. Sua linhagem de sangue era muito retorcida, as gerações
torcidas por qualquer que fosse a magia que diminuísse a passagem do tempo no solar. Porque se Sylvia tinha cento e cinco anos e Anna vinte e seis, então Rachel
havia morrido a menos de três décadas atrás. Ou talvez quando morresse, se tornasse atemporal, os anos não mais contando.
Houve uma batida na porta e Cris entrou. - Oi, garota. O que há de novo?
- Apenas remoendo umas coisas.
- Ei, isso não é jeito de passar o tempo em um retiro de artistas. Deixe isso para os idiotas que pensam que está tudo bem passar fome em nome da arte. Ou para fotógrafos
cabeça de bagre.
- Ah, e o ponto disso é?
- É exatamente esse o ponto. Se não importa, se é apenas um sonho molhado solitário, por que não se divertir?
- Talvez você esteja certa. Estou levando as coisas um pouco a sério demais.
- Esse é o espírito. - Cris foi para o banheiro, parando à porta. - Desculpe-me. É meu período. Lua cheia hoje.
- Fiquei sabendo.
- E uma grande festa no telhado. A Srta. Mamie disse que não deveríamos perdê-la. Se Mason estiver por lá, talvez você se dê bem. - Cris piscou o olho e então fechou
a porta. Anna apertou o cobertor mais à volta dos ombros.
Quando Cris saiu, vasculhou seu armário por um casaco. - Ei, você andou mexendo no meu bloco de desenhos?
- Não estive aqui o dia todo.
Cris o segurou para que ela visse. Espalhados em uma grande folha de papel, em riscos cortantes de lápis vermelho, estavam as palavras Vá congelar lá fora e volte
em fogo.
- Talvez tenha sido uma das camareiras. - disse Anna - Um bilhete avisando para colocar mais lenha no fogo.
- Está ficando frio, certo. Outubro nas montanhas. Se não fosse pelas folhas caindo, eu preferiria o Rio de Janeiro. Vejo você à noite. - Cris abanou e a deixou,
amarrando o cabelo em um rabo de cavalo enquanto saía.
Anna observou os veios da madeira na porta enquanto essa se fechava. Uma forme se sobrepôs contra os painéis de carvalho escuro. Uma mão pálida, segurando um buquê,
a mulher com olhos desesperados. E aquela única palavra sussurrada - Anna.
Descansar em paz aparentemente não era permitido nem para os mortos nem para os vivos.
CAPÍTULO 52
Mason queria ter trazido uma lamparina, uma vez que a tarde ficara subitamente escura, nuvens pesadas lambendo as montanhas vindas do noroeste, como fumaça de fogos
numa pradaria distante. Pelo menos, ele estava fora da casa, longe do olhar questionador da Srta. Mamie. Ele não queria ir para o porão, pelo menos não até sua mente
ficar clara. Anna estava certa, ele estava obcecado e era muito mais que apenas uma busca pela apreciação de sua arte.
Ele andou pela estrada na direção do celeiro. Era hora de Ransom alimentar e tratar dos cavalos. Talvez Anna estivesse ajudando. Como Mason, ela provavelmente preferia
a companhia do velho da montanha que daqueles arruaceiros toscos no solar. E ela era doida por cavalos.
Se ele a visse, poderia se desculpar, falar abertamente. Talvez tentar entendê-la. Ela sabia de mais coisas do que havia dito e, ao contrário dos outros hóspedes,
reconhecia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo no Solar Korban. E os dois tinham outra coisa em comum.
Porque, apesar de ela tentar muito esconder, algum tipo de sofrimento se escondia dentro dela, águas turbulentas abaixo da superfície calma. Ou talvez ele apenas
gostasse de olhar dentro de seus olhos azuis e sua imaginação tinha se encarregado do resto. A imaginação sempre havia sido sua bênção e sua maldição, sua porta
de saída de uma vida na fábrica têxtil, um demônio que se agarrava às suas costas a cada momento de sua vida acordado e uma grande parte dos momentos nos quais estava
dormindo.
Ele seguiu a linha da cerca, parando uma vez para olhar para o solar. Várias das janelas estavam iluminadas, mas a maior parte de sua fachada era escura e desinteressante.
Algumas notas altas de piano soaram na brisa. Ele olhou para o telhado, no espaço plano sobre as janelas das empenas onde o parapeito demarcava a balaustrada. Algumas
pessoas se moviam além do parapeito branco, provavelmente os empregados preparando a festa. Mason comparou o solar real com a pintura do porão.
Não havia competição. O solar real era muito mais assustador. Ele não engoliu a mentira de Anna sobre nunca ter estado antes no solar, apesar de Korban ter pintado
o quadro décadas antes de ela nascer. Mason havia memorizado seu rosto bem o suficiente para saber que com certeza era Anna que estava naquela pintura, completa
com buquê, vestido branco e tudo o mais.
A Srta. Mamie também não gostava daquela pintura. Ela agira quase como se tivesse medo dela, apesar da óbvia adoração a Korban. Ele balançou a cabeça. Por que ela
era tão insistente sobre ele terminar a estátua? Ela parecia mais ansiosa para vê-la pronta que o próprio Mason, como se tivesse seus próprios críticos a quem agradar.
Ele colocou as mãos nos bolsos. A floresta parecia mais próxima e escura, como se tivesse caminhado para perto enquanto ninguém estava olhando. Uma coruja piou de
seu poleiro nas árvores à sua direita. Ele caminhou mais rápido.
Imaginação.
Certo, Mase. Grande sonho. Korban no cérebro.
O sonho era apenas uma pilha fedida do que quer que seja que ele havia pisado. O celeiro estava à frente, uma luz tênue de um lampião quadrado escapando pela porta.
Mason se apressou na direção dela. Ele olhou sobre a porta e viu que a ferradura estava com as pontas voltadas para baixo. Não conseguia se lembrar se essa era a
posição boa ou a que chamava os fantasmas. Ele quase ficou com vontade de ter um patuá para balançar na frente da porta.
Mason entrou, os passos abafados pelo feno espalhado sobre as tábuas do assoalho. Ele não viu Ransom nem Anna. O cheiro de arreios de couro e o odor adocicado do
sorgo da ração dos cavalos pairava no ar. A porta oposta, que levava ao campo, estava fechada. Ele engoliu e estava para chamar quando ouviu a voz de Ransom entre
as carroças: - Vai simbora George... Ocê não tem nada pra assuntá por essas banda.
As sombras da charrete e das carroças estavam altas nas paredes, as aduelas, raios e pontas dos forcados lançando sombras ondulantes sobre as paredes de madeira.
Ransom falou novamente e, dessa vez, Mason o achou, agachado ao lado de uma das carroças.
- Eu tenho meus patuá, George. É procê me deixá em paz, diacho. - Os olhos do faz-tudo estavam arregalados, olhando para o assoalho cinzento.
Não era George o nome do sujeito que morrera em um acidente? Será que Ransom acreditava em fantasmas e as crenças locais finalmente o deixaram maluco?
Então Mason viu George.
E George parecia morto, com os olhos ocos afundados em sua substância vaporosa em uma forma impossível, o coto do antebraço apontando para cima. George parecia tão
morto que Mason podia ver através dele. E George estava sorrindo, como se estar morto fosse a melhor coisa que lhe tivesse acontecido.
- Fui mandado para convocar você, Ransom, velho amigo. - As palavras pareciam vir de todos os cantos do celeiro, raspando como folhas secas que haviam sido sopradas
pelos ventos de invernos passados. Um arrepio correu pela espinha de Mason, seu escalpo arrepiou-se, ele se sentiu como se fosse desmaiar.
Porque isso não era um sonho.
Ele não poderia colocar a culpa em sua imaginação por isso.
- Vai simbora, danado. - disse Ransom, a voz trêmula. Ele manteve os olhos fixos na coisa- George e não reparou em Mason. George deu um passo para frente.
Mas não era um PASSO, não é mesmo, Mason? Porque George não moveu um músculo, apenas flutuou para frente, como um espantalho escorregando em um arame.
Ar frio irradiava da coisa-George, gelando o espaço confinado do celeiro. Mason não estava pronto para chamar aquilo de fantasma. Porque, quando ele falara para
Anna que apenas acreditaria quando os visse, na verdade estava mentindo. Ele ainda não acreditava.
E ele não acreditava no que estava pendurado na única mão da coisa-George. A mão decepada, os dedos leitosos flexionando como se ansiosos para dar uma boa pegada
no pescoço de alguém.
- Vamos, Ransom. - disse a voz de cemitério - Machuca só por um segundo. E não é assim tão ruim lá dentro, depois que passa pelas cobras.
- Por que, George? Eu nunca fiz nada procê, homi. - Os olhos de Ransom estavam arregalados de terror. - Ocê era bom, um homi de bem. No que ocê foi se meter?
A gargalhada balançou o telhado de zinco. O coração de Mason deu um salto mortal.
- Eu me enfiei em um túnel, velho amigo. Porque eu tinha que saber. Agora me deixe convocar você para vir junto. Korban não gosta de ficar esperando.
Houve um rangido enferrujado e o forcado rolou para frente. Os olhos de Ransom olharam para os lados procurando uma saída. Ele viu Mason.
- O patuá não tá funcionando, Mason. Como pode o patuá não funcioná?
George se virou na direção de Mason, novamente sem mover nenhuma de suas extremidades esfarrapadas e enevoadas. - Há muito espaço por lá, rapaz. O túnel não tem
fundo.
Ransom se encolheu entre a charrete e uma carroça e Mason virou-se para correr. Tarde demais. A porta do celeiro moveu-se sozinha e bateu, trancando-os do lado de
dentro.
Mason correu ao longo da parede, deixando uma boa distância entre ele e o fantasma - você acabou de chamá-lo de FANTASMA, Mason. E isso não é um bom sinal - até
que ele ficou ao lado da charrete. Ele caiu de joelhos, os ossos batendo nas tábuas do assoalho. Ele engatinhou para o lado de Ransom. - Que diabos é aquela coisa,
Ransom?
Ransom olhou por entre os raios da roda da carroça. Mason podia sentir o odor de medo do homem, sal, cobre e gengibre.
- É sobre isso que vinha avisando ocê, fio. Ele é um deles agora. Do povo do Korban.
- Eu não acredito em fantasmas.
O patuá de Ransom estava firmemente seguro em seu punho. - Isso num importa é de nada, porque agora os fantasma acredita nocê.
A forma flutuou para frente, os braços levantados, o coto esfarrapado da amputação tremulando com o movimento. Mason se pegou olhando para o coto, se perguntando
por que um fantasma não estaria inteiro.
Fantasma - você o chamou de fantasma novamente, Mason.
O forcado estalou, rolando de seu canto na direção deles.
- Vá simbora. - gritou o velho, com a voz alquebrada - Tenho meus poder de espantá ocê.
- Vem brincar comigo, Ransom. - disse a coisa-George - É solitário lá dentro, só as cobras para fazer companhia. Podemos ficar juntos e conversar sobre os velhos
tempos. E Korban tem trabalho para todo mundo.
Ransom levantou seu patuá. - Tá vendo isso? Tenho meu pó de lagarto, mil em rama, raiz e espada de São Jorge. É procê ir embora.
George gargalhou novamente e um trovão chocalhou nas vigas do celeiro, os cavalos relinchando nos estábulos ao lado.
- Não acredite em todas as pequenas coisas que falam para você. - disse George - É só um bocado de velhas histórias. Porque não é nisso que você acredita, não é
mesmo, Ransom?
- É no quanto. - disse Ransom, derrotado, olhando para o pequeno farrapo de pano que envolvia suas ervas e pós. O pano estava atado com um pedaço de fita azul. Um
pó branco escapava pela abertura.
Subitamente, Ransom ficou de pé e jogou o patuá em George. - Cinzas de uma oração, George!
Mason estava congelado pelo próprio medo e uma estranha fascinação enquanto o patuá se abria e os conteúdos se espalhavam em uma nuvem de verde e poeira cinza. O
material flutuou sobre o fantasma, misturou-se com seu vapor, foi pego numa lufada de vento da fresta debaixo da porta e rodopiou à volta da forma.
George brilhou, esmaeceu brevemente, chiou como uma vela cuja cera estava por acabar...
Jesus Cristo, está funcionando. ESTÁ FUNCION...
A nuvem de ervas assentou-se no assoalho e George limpou os olhos.
- Agora vocês rapazes me deixaram realmente furioso. - disse o fantasma, a voz neutra e fria, vazando dos cantos do celeiro como um nevoeiro. - Eu tentei ser bacana,
Ransom. Só eu e você, dando uma longa caminhada para dentro do túnel como dois bons amigos. Mas você tentou lançar um feitiço em mim.
George balançou a cabeça translúcida. O movimento gerou uma brisa que congelou Mason até os ossos. Ransom se encolheu tensamente atrás da roda da carroça. O fantasma
flutuou para frente, compassadamente, agora a apenas sete metros de distância, quatro, três. Um ruído metálico enferrujado encheu o celeiro.
George levantou a mão amputada. - Eles me tomaram a mão do martelo, Ransom. Ele a tomou de mim.
O fantasma pareceu quase tristonho, como que debatendo internamente se seguiria ou não as ordens de um observador ausente. Mas as profundas cavernas de seus olhos
brilharam novamente, tremulando em bronze e ouro e radiando laranja, o rosto contorcendo-se em algo que deixava as feições humanas quase irreconhecíveis. Era como
um couro murcho, vincado e rachado, com pústulas no lugar dos olhos. A voz soou novamente, mas não era a voz de George, era uma combinação de dúzias de vozes, uma
congregação, um coral de almas perdidas. - Venha, Ransom. Estamos esperando você.
Os cavalos escoicearam as portas dos estábulos. Um bezerro berrou no campo lá fora. A charrete e as carroças balançavam loucamente. O lampião caiu ao chão e as sombras
subiram pelas paredes como insetos gigantescos.
O bezerro berrou novamente, e mais uma vez, o som se sobressaindo na cacofonia.
- O bezerro berrou três vezes. - sussurrou Ransom - Sinal certo de morte.
Mason encolheu-se ao seu lado, querendo perguntar o que diabos estava acontecendo. Mas sua língua parecia um pedaço de arreio contra o céu da boca. Ele tinha quase
certeza de que não conseguiria que ela articulasse uma palavra. Ransom olhou para George e então para a porta fechada. A porta estava muito distante.
Mason tocou na manga de Ransom, mas era tarde. Ransom tentou correr para a porta. O fantasma nada fez enquanto as botas de Ransom martelavam o assoalho do celeiro.
Mason se perguntou se deveria correr também. Ransom moveu-se rapidamente, os braços balançando enlouquecidos.
Ele vai conseguir!
Ransom estava a cerca de dois metros da porta quando a ceifadeira pulou - PULOU, pensou Mason, como um gato - com um gemido de metal e madeira tensionados, as hastes
enferrujadas do arado de vento rodando para baixo e para frente. Ransom virou-se e encarou a máquina antiga como que implorando por clemência.
Seus olhos encontraram-se com os de Mason e ele sabia que nunca esqueceria aquele olhar, mesmo que tivesse sorte, conseguisse escapar de George e vivesse mais de
cem anos. O rosto de Ransom ficou branco, o sangue drenado de sua pele como se tentando se esconder nos órgãos que a ceifadeira não poderia atingir. Os olhos de
Ransom eram esferas úmidas de terror. A pele coriácea de sua mandíbula esticando enquanto ele abria a boca para gritar, rezar ou balbuciar algum encantamento antigo
das montanhas.
Então a ceifadeira varreu para frente, empalando Ransom e o empurrando com força para trás. Seu corpo bateu na porta, sendo cravado nela por duas dúzias de enormes
pregos de aço. Ransom gorgolejou e um vapor avermelhado foi cuspido de sua boca. Os olhos se perderam dentro do túnel no qual a morte o havia lançado.
A carroça e a charrete pararam de balançar, as paredes voltaram a seus lugares e um silêncio súbito vibrou pelo ar. O corpo do velho pendeu nos vergalhões como um
pedaço de carne crua na ponta de um garfo. Mason se forçou a desviar o olhar das vísceras e da carnificina. O lampião lançou um jato de luz, como se as chamas fossem
alimentadas pelo vento da alma de Ransom deixando seu corpo.
George flutuou na direção de Mason, que deu um passo para trás.
- Você não está aqui. - disse Mason. Ele levantou as mãos, as palmas abertas. - Eu não acredito em você, então você não existe.
O fantasma parou e olhou para a própria carne diáfana. Após algumas batidas de coração, ele olhou novamente para Mason e sorriu.
- Eu menti. Não importa naquilo que acreditamos. - disse ele suavemente, flutuando mais um metro na direção dele. - É no que Korban acredita.
O fantasma estendeu a mão para frente, a mão na mão, em um cumprimento. Frio como mármore e morto como terra de sepultura.
Mason se virou e correu, esperando o pulo da ceifadeira ou ser agarrado pela mão do fantasma. Ele perdeu o chão em uma abertura entre as tábuas do assoalho e caiu.
Olhou para os pés e viu o alçapão do porão de depósito de vegetais.
Ele se arrastou para trás e abriu o alçapão, mergulhando para dentro dele. Agarrou o primeiro degrau da escada e puxou-se para dentro da escuridão úmida do porão.
Se poções e rezas não deram certo, então um alçapão não era o que iria parar um fantasma. Mas seus músculos assumiram o controle e seu lado racional foi silenciado.
Ele estava com metade do corpo para dentro do porão quando o alçapão bateu violentamente em suas costas. Uma onda prateada de dor lhe subiu a espinha. Então ele
sentiu algo agarrando o tecido de suas calças. Uma pancada suave, caminhante.
Dedos.
Ele chutou e balançou as pernas, agarrou o segundo degrau e puxou-se para dentro da escuridão. Ele ficou sem peso por um momento, o estômago encolhendo-se de vertigem.
Então, ele estava caindo, uma gota dentro da eternidade, que era muito rápida para um grito. A porta bateu nos caixilhos acima dele e ele estatelou-se no chão do
porão. O ar foi espremido para fora de seus pulmões, mas isso não importava porque ele não estava certo se estivera respirando desde que entrara no celeiro.
O porão estava imerso no mais completo breu, exceto por algumas nesgas de luz que passavam pelas frestas do assoalho acima dele. Ele tentou mover os braços e algo
caiu ao chão. Ele tateou e espremeu a coisa em sua mão, sentindo-a. Ela havia caído sobre uma caixa de batatas.
Mason rolou e ficou sobre os pés, encolhendo-se atrás da caixa. Ele tentou lembrar o que Ransom havia falado sobre outra porta do outro lado do porão e sobre um
túnel que conectava-se com o solar. George talvez já estivesse aqui em baixo. Quão bem será que os fantasmas enxergavam no escuro?
Botas e pés marchando podiam ser ouvidos alto e pesados sobre ele, dando-se conta de que seu pulso estava martelando nos ouvidos. Ele abriu a boca para ouvir melhor.
Estava tudo quieto lá em cima. Mason sentiu o odor de terra e maçãs verdes. Tentou determinar o arranjo das coisas no porão, descobrir onde ficava a saída, mas ele
havia perdido a orientação no escuro.
Ele poderia achar a escada novamente, mas um alçapão funcionava para ambos os lados. O que o estaria esperando quando subisse? A ceifadeira, com seus vergalhões
ensanguentados? George, pronto para dar-lhe uma mãozinha? Ou talvez Ransom, cheio de furos, agora um deles, o que quer que eles fossem?
Ele pensou em Anna e na sua autoconfiança serena, sua força interna disfarçada de distração. Ela dizia entender sobre fantasmas e não havia ridicularizado as crenças
de Ransom. Ela não ficaria histérica se visse um fantasma. Ela saberia o que fazer, se ele pudesse chegar até ela. Mas o que alguém vivo poderia saber sobre fantasmas?
Seus pensamentos acelerados foram interrompidos por um som suave. Primeiro, ele pensou que fosse o ranger da ceifadeira flexionando suas garras metálicas no celeiro.
Mas o som era áspero e não metálico.
Era o raspar de dedos no tecido. A mão.
Ele chutou e se contorceu e mais batatas caíram na terra fria.
Os barulhos soaram novamente, de todos os lados, de muitas fontes diferentes para serem cinco dedos fantasmagóricos.
Então ele reconheceu o som, um com o qual ele se familiarizara enquanto vivera no lixão de Sawyer Creek.
Não era um som áspero, era um pequeno guincho. Ratos.
CAPÍTULO 53
- Vá embora. - disse Anna ao fantasma que havia saído da parede e agora estava à sua frente em esplendor evanescente. Rachel deslizou para perto, o buquê triste
estendido como desculpa ou pesar. - Nunca quis magoá-la, Anna.
- Então por que me trouxe de volta? Por que simplesmente não me deixou morrer feliz e sem saber de nada, sem ninguém para odiar?
- Precisamos de você, Anna. Eu preciso de você.
- Precisar, precisar, precisar. Você alguma vez pensou que eu poderia ter precisado de alguém, em todas aquelas noites nas quais chorei até adormecer? E agora você
espera que eu sinta pena de você apenas porque você está morta?
- Não sou apenas eu, Anna. Ele prendeu todos aqui.
Os mortos tinham poder de escolha sobre onde suas almas se conectariam com o mundo real? Será que a passagem abria-se em um lugar particular para cada pessoa ou
os fantasmas pairavam sobre seus locais prediletos de assombração porque eles desejavam voltar à existência? Essas eram as perguntas que os parapsicólogos de linha
dura nunca perguntavam. Eles estavam ocupados demais tentando validar sua própria existência para sentir qualquer empatia por aqueles espíritos condenados a vagar
pela eternidade.
Mas Anna não estava se sentindo muito empática naquele momento. - E se você fosse livre, para onde iria?
Rachel olhou pela janela, para as montanhas que se estendiam pelo horizonte. - Para longe. - disse ela.
- E Korban prendeu sua alma aqui? Por que ele faria isso?
- Ele deseja possuir tudo que sempre teve e muito mais. Ele quer ser servido e adorado. Ele possui sonhos não realizados. Mas acho que é amor que o prende aqui.
Talvez, por trás de tudo, ele sinta medo de ficar só.
- Outro ponto em comum com a família, além do sangue. - disse Anna - Bem, não ligo de ficar só, não mais. Porque encontrei o que sempre quis e agora descobri que
na verdade nunca quis isso.
- Temos os túneis da alma, Anna. Onde encontramos as coisas que assombraram nossas vidas e sonhos. Em meu túnel, sou incapaz de salvar você e vejo Korban distorcer
seu poder até que ele o sirva. Nossa família tem a Visão, Sylvia e eu, mas ela é mais forte em você. Porque você pode ver os fantasmas mesmo sem ter que apelar para
feitiços ou encantamentos.
- Talvez os encantamentos me ajudem. - disse Anna -Não existe um que faz com que os mortos permaneçam mortos? "Vá para fora congelar", é isso?
- Não o pronuncie, Anna. Porque logo você também será convocada e Ephram será muito forte para qualquer um de nós detê-lo.
Anna levantou-se da cama. - Vá para fora congelar.
Rachel dissolveu-se um pouco, o buquê esmaecendo em fibras transparentes em sua mãos, os olhos repletos de tristeza etérea. - Você é nossa última esperança. A última
esperança de Sylvia.
- Vá para fora congelar.
Rachel apagou-se contra a porta - Sylvia! - murmurou ela.
- Vá para fora congelar. A terceira vez é um encantamento.
Rachel desapareceu. Anna olhou para o retrato de Ephram Korban. - Você pode ficar com ela, eu não ligo.
Anna colocou a jaqueta, pegou a lanterna e saiu para uma caminhada, desejando estar tão longe de Rachel quanto possível. Se Rachel iria ficar no Solar Korban, ela
daria uma volta até Beechy Gap.
Rachel havia dito que Sylvia sabia algum tipo de segredo. Talvez Sylvia soubesse um encantamento que mantivesse todos os fantasmas longe. Anna havia dedicado uma
grande parte de sua vida caçando fantasmas. Agora que eles estavam por todos os lados, ela nunca mais queria ver outro enquanto estivesse viva. Ou mesmo depois disso.
CAPÍTULO 54
Mason deu um pulo para trás, encostando as costas em uma parede de terra úmida. Outra batata doce rolou para o chão. Pelo menos ele esperava que fosse uma batata
doce. Mais guinchos romperam da escuridão, um coro de gemidos à sua volta.
Ele preferia muito mais encarar de frente o fantasma de George Lawson, mão decepada, ceifadeira ensanguentada e tudo o mais que ficar ali no escuro. Ele pensou em
dar uma corrida até a escada, mas estava desorientado. Era mais provável que ele desse de cara num barril de maçãs ou tropeçasse nas caixas espalhadas pelo chão
de terra. E cair levaria seu rosto para o nível deles.
De sua esquerda, veio o som raspado e fendido de dentes mordendo zinco. Talvez dois metros adiante, mas era difícil saber com certeza na escuridão. O aposento era
como um caixão, com o ar estagnado, sem cantos ou arestas que fizessem qualquer diferença para quem estivesse preso dentro dele. Ele se encolheu em uma bola, olhando
para as fendas nas madeiras, para as linhas amarelas que eram seu único conforto. Ele sentiu o cheiro do próprio suor de pânico e se perguntou se isso traria os
ratos mais para perto.
As folhas rasparam pelo assoalho acima e então a porta do celeiro foi aberta com um gemido enferrujado. Isso foi seguido por um ruído surdo e Mason imaginou o corpo
de Ransom batendo nas tábuas, os membros balançando inutilmente. Então o lampião foi levado e Mason fechou os olhos contra uma escuridão como nunca antes havia visto.
Não. Tinha havido uma escuridão pior.
Engraçado como as coisas retornam. Talvez fosse um dos túneis de sua alma. Uma lembrança enterrada a tanto tempo que a carne havia apodrecido de seus ossos, que
o esqueleto havia começado a retornar ao pó, que sua existência não podia mais ser provada. Mas uma pequena faísca sempre permanece, aquela brasa escondida, apenas
esperando por um sopro de vento para trazer o corpo de volta à vida, para ressuscitar a lembrança em toda sua glória horrível.
Engraçado como acontecera.
A lembrança era isso. Só que não podia ser real. Ou havia sido na primeira vez que fora no escuro? Não fazia diferença. Porque eles eram o mesmo, o passado e o presente,
entrelaçados no mesmo medo terrível.
Os guinchos.
Os ratos, rolando pelo escuro como aquelas batatas doces ou brinquedos de criança. Quantos?
Um já era demais. Quantos guinchos? Mason prendeu a respiração para poder ouvir. Dez. Quinze. Quarenta.
Mama estava fora da cidade. Alguém havia morrido, era tudo que Mason sabia, porque ele nunca vira Mama chorando tanto. E Mason sentira a mudança nela quando o havia
dado todos aqueles beijos e abraços e o colocado no colo por todas aquelas horas. Então ela se foi.
E Papai, Papai com suas garrafas, foi tudo o que Mason viu depois disso. Ele deitou em seu berço, os cobertores molhados, muito assustado para chorar. Se ele chorasse,
talvez Mama viesse. Mas se ela não viesse, Papai viria. Papai só ficaria furioso, gritaria e quebraria alguma coisa.
Então Mason não disse nada. O tempo passou ele nada disse. Não havia sol na janela, apena a luz que Papai acendia e apagava. Papai dormiu no chão uma vez e Mason
olhou pelas barras de madeira do berço e o viu, com sua garrafa vazia derrubada, a bebida espalhada pelo chão.
Papai acordou, esfregou os olhos, bocejou, olhou para Mason, deixou-o molhado. Papai apagou a luz e, conforme a porta se fechava, Mason lembrava daquela cunha de
luz desaparecendo, do quão assustado ele estava conforme ela ficava menor e menor, então de quando a porta bateu e a escuridão era maior, espessa, total.
O tempo passou, ou melhor, não passou, o pequeno coração de Mason bombeando, batendo e gritando. Chorar seria pior. Mama não estava lá e seu choro poderia trazê-los.
Ele fechou os olhos e os abriu novamente. Uma escuridão era da mesma cor de outra.
Agachando-se no porão, Mason fechou os olhos e os abriu novamente, tentando afastar a memória piscando os olhos. Cobriu o rosto com as mãos. Ele se lembrava de ter
lido em algum lugar que os ratos sempre atacavam suas partes mais macias primeiro, os olhos, a língua e os genitais. Ele não tinha mãos suficientes para todos esses
lugares.
Essa era a lembrança, a primeira vez. As descobertas que o escuro proporciona. O roçar na parede. O tatear de garras pela madeira. O guincho de prazer com a descoberta.
Estava tão escuro no aposento que ele não conseguia nem ver os olhinhos brilhantes quando finalmente tentou.
Mas Mason os ouvia, mesmo com os cobertores molhados cobrindo sua cabeça. As lambidas suaves de suas línguas no líquido. A garrafa de Papai. O líquido derramado
os havia atraído. Seria suficiente para saciá-los? Iriam embora?
Por favor, por favor, vão embora.
Os guinchos agora soavam como risadas, como um sorriso contido, molhado de saliva. Ir embora? Claro que eles não irão embora, essa era a escuridão e eles reinavam
na escuridão. Eles andaram até o berço, a cauda raspando atrás de si. Não, não, NÃO.
Isso era agora e não uma lembrança, ele não era uma pequena criança, ele não tinha mais medo dos ratos. E como o porão estava mais escuro que o mundo lá fora, ele
conseguia ver o contorno da porta. Tudo o que ele precisava fazer era abrir os olhos.
A voz de Mama chegou até seus ouvidos e ele não tinha certeza se as palavras eram faladas ou apenas imaginadas: - É SEMPRE a lembrança, Mason. A Grande Imagem do
Sonho. Nunca deixe seus sonhos se irem. Eles são a única coisa que você tem nesse mundo.
E algo rápido, molhado e quente raspou em seu rosto, logo abaixo de seu olho esquerdo. Pode ter sido apenas a ponta do cobertor deslizando, sim, claro, era isso,
ratos não comem pequenos meninos, isso não são pequenas patinhas pressionando suas pernas, é apenas sua imaginação, e você sempre teve uma imaginação fértil, não
é mesmo?
E você viveu o bastante para aprender que a escuridão não se espalha para sempre, que ratos não dominam tudo à sua volta, apenas seus sonhos, E SONHOS SÃO Á ÚNICA
COISA QUE VOCÊ TEM NESSE MUNDO.
E Mama finalmente chegou em casa, abriu a porta, acendeu a luz e o segurou, mas era tarde demais, dias, anos tarde demais, pois os ratos haviam devorado você, devorado
seus olhos e agora é sempre escuro, e eles reinam no escuro, e Mama não pode mais abrir a porta porque eles devoraram os olhos dela também. Ela fica somente sentada
na cadeira em seu ninho de ratos em Sawyer Creek e...
- Parece que ocê tá numa bela enrascada.
A voz, vinda de lugar nenhum e de todos os lugares, parecia fazer parte da escuridão. E a escuridão tinha que ter cores diferentes, porque um profundo túnel negro
se abriu a sua frente, como uma garganta. De pé, ao lado da boca do túnel, estava Ransom Streater, ferimentos escorrendo e tudo o mais, uma perfeita linha de perfurações
cruzando o peito do macacão, um dos botões torcidos.
Ransom estava sorrindo com sua boca de gambá, a cabeça careca e os olhos mortos, mortos, mortos.
- Korban me mandô até seu lugar ruim. - disse Ransom - Ocê devia de ver o meu. O meu é pió que o seu, pode acreditar em eu. Mas o Korban disse que se eu for um bom
ajudante, que eu vou sair do meu lugar ruim logo, logo. Tudo que tenho de fazê é levá ocê junto comigo pra fora desse lugar.
- Onde estou?
- Uái, no coração, é onde ocê tá. Mas o Korban qué mandá ocê de volta. Diz que ocê tem trabáio pra fazê.
- Que trabalho? - Mason abriu mais os olhos, ainda que os ratos estivessem famintos e os olhos fossem macios e suculentos. Mas a imagem não mudou e Ransom continuava
de pé, brilhando à sua frente, com o túnel por detrás, longo, negro, profundo e frio, com a diferença de que agora havia uma luz vermelha ao final, uma luz preciosa,
bela, sem ratos, Mama estava abrindo a porta.
Mason ficou de pé, ouviu os ratos correndo para seus buracos invisíveis. Ele disse a única coisa que lhe passou pela cabeça. - Você está morto.
- E não é um passeio no parque, posso jurar procê. - Ransom tocou em seus ferimentos, as sobrancelhas levantando-se quando ele colocou o dedo no orifício entre as
costelas. - Pelo menos ocê teve escolha.
Mason aproximou-se, a luz sinalizando. Ele olhou brevemente para a escuridão atrás de si, ouviu o barulho dos bigodes, garras e dentes molhados. Estremeceu. Korban
manteria esse lugar o esperando.
Mas a melhor coisa a fazer era colocar os medos para trás, por tanto tempo quanto possível. Negar sua existência. Enterrá-los.
- Aonde leva o túnel, Ransom?
- Para o fim, uái. Pra onde mais ele levaria?
Mason engoliu em seco. Ele lembrava que Ransom, o velho e vivo Ransom, havia lhe dito que o túnel levava de volta às fundações do solar. Ele pensou em correr para
a escada, mas ouvia os guinchos e línguas lambendo. Então, a voz de Mama derramou-se pela negra garganta do túnel. - Sonhos são tudo que temos, Mason. Agora venha
para cá e deixe sua Mama orgulhosa.
E não era apenas a voz de Mama, aqui na fazenda escura e suja de Korban, que o incomodava. Era a sugestão de guinchos em suas palavras, como se escorressem à volta
de grandes e curvos dentes de um roedor.
Mason seguiu Ransom para dentro do túnel negro, piscando conforme a luz ficou intoleravelmente forte. Uma lamparina estava acesa sobre a mesa. Mason estava no estúdio,
a estátua inacabada esperando à sua frente.
- Túneis da alma, Mason. - disse Mama - Estarei observando.
Mason virou-se a tempo de ver a longa e hedionda cauda cinzenta desaparecendo para dentro do túnel. Ransom permaneceu nas sombras do porão. - Nóis tudo tem trabáio.
Minha parcela é esperá no túnel. A sua é desse lado, por agora.
Mason ajoelhou-se, tremendo, e pegou uma goiva. Segurou seu maço a aproximou-se da estátua, estudando a forma grosseira de carvalho. Ephram Korban estava ali em
algum lugar, do mesmo modo que habitava tudo. No coração de tudo.
Mama mentiu. Ela disse que os sonhos são tudo que temos nesse mundo. Mas temos pesadelos, também. E lembranças.
E algumas vezes não é possível saber a diferença.
Mason atacou a madeira como se sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO 55
Sylvia abriu a porta antes que Anna chegasse à cabana. - Tava esperando ocê.
Anna passou por ela sem esperar convite. Sylvia olhou para o tecido dobrado sobre a lareira, o que envolvia seu encantamento. Todos os truques do livro e alguns
que havia ouvido muito tempo atrás à volta de fogueiras, estavam moídos e espalhados dentro daquele pedaço de tecido, e palavras haviam sido ditas sobre a mistura
que poucos lábios ousariam dizer. Mas agora não era o momento de ficar assustada ou com dúvidas.
- Esquenta seus osso aí. - disse Sylvia, movendo-se para uma velha cadeira de vime próxima ao fogo. - Essa noite é uma daquelas que a gente tem certeza de que o
inverno frio tá logo ali na curva da estrada.
- Você não me contou tudo. - disse Anna, indo direto à questão, mas ajoelhando-se em vez de se sentar.
- Tem certas coisa que sabê delas é demais. Já é ruim o suficiente que ocê tenha a Visão. Mas se ocê não tomá cuidado onde pisa, logo, logo vai tá é do lado errado
da morte.
- Mas por que minha mã... não, não minha mãe, quero dizer Rachel Hartley, pensa que eu sou algum tipo de salvação para os assombrados? Por que ela me chamou até
aqui? Se Korban já os tem, o que eu posso fazer? Só porque eu vejo fantasmas não quer dizer que eu tenha poderes especiais.
- Lembra o que foi que eu falei procê sobre poder? Não é naquilo que ocê acredita que importa, é quanto você acredita. - Sylvia manteve os olhos fixos nas chamas
que dançavam, não deixando seu olhar deslizar até o tecido dobrado, não importando o quanto eles quisessem dar uma espiada.
- Eu não devo nada a Rachel. - disse Anna - Você disse que o sangue corre mais grosso que a água. Mas isso não é tudo o que faz as pessoas pertencerem umas às outras.
- Criança, eu sei como dói. Eu me odiei pelas minhas fraqueza, meu pecado com Korban. Eu tentei cem vezes me dizê que ele causou isso, ele me enfeitiçô e fez tudo
acontecer. Mas é sempre fácil mentir pra ocê mêma, num é? É fácil empurrá tudo pra debaixo do tapete e esperá que ninguém vai vê a verdade, muito menos ocê.
É claro, mulher, você sabe a verdade, não é? Ephram deixou você matá-lo sob uma lua azul de forma que seu espírito pudesse entrar na casa. Mas você nunca imaginou
que Ephram acabaria convocando e colecionando todos os que morressem em suas terras. E você com certeza nunca imaginou que ele manteria a Srta. Mamie jovem, transformando
amor em veneno.
- Seu pecado foi há muito tempo. - disse Anna - Você deveria ter sido capaz de se perdoar após todos esses anos.
- Eu sempre fiquei com medo de dexá a coisa solta e caí de amores por ele. - disse Sylvia - Ocê não tem ideia de quantas veiz eu quis que aquela noite acontecesse
de novo, mas ao mesmo tempo eu tava toda cheia de nó por dentro com medo. Talvez fosse tudo obra do Ephram, um dos truque dele. Mas é uma coisa assustadora e terrível
quando seu coração é roubado desse jeito. E também é assustador e terrível queimá de ódio por alguma coisa.
- Mas Rachel...
- Eu amei ela, do mesmo jeitinho que ela ama ocê. E do mesmo tanto que o Ephram me amou.
- Você disse que a Srta. Mamie estava mantendo ele vivo. Isso e os espíritos daqueles que ele prendeu no solar. Aqueles que ele usa como combustível, algum tipo
de sifão da alma, alimentando- se de seus sonhos e dores.
- Pelo que ocê acha que o Ephram queima? - Sylvia curvou-se e pegou o atiçador, cutucando a lenha até que as faíscas subiram pela chaminé. - Os morto é igual os
vivo. Eles querem coisa que não podem tê. Os sonho inacabado de Ephram, uma fome danada. É por isso que ocê tá aqui.
Sylvia sentiu o tremor em seus membros, o sangue circulando asperamente pelas veias estreitas. Ela havia sido velha por tempo demais. Tinha arrependimentos demais,
havia se entregado para o pior tipo de calhorda possível. Se pelo menos pudesse fechar os olhos e descansar em paz. Mas Ephram Korban não permitiria.
Sylvia estava presa a esse lugar, viesse fogo ou enchente, e Rachel havia descoberto muito tarde que o que pertencia a Ephram sempre retornava. A morte de Rachel
nesse lugar foi a única chance de Anna. Porque Ephram encontraria Anna, aquele dom da Visão brilhando como um farol espectral no céu noturno .
- E meu pai? - perguntou Anna - Você tem alguma fotografia dele?
- As pessoa não tem fotos por aqui não, ainda mais aqueles que querem continuá morto. Já ouviu falar da magia das boneca? Onde eles roubam seu rosto e dispois sua
alma? Ocê é a única que pode livrá eles do Ephram.
- Não me importo com isso. - disse Anna - Os mortos ainda estarão mortos e eu continuarei sem nada. Pelo menos, se eu morrer no solar, terei um lugar aquecido para
assombrar.
Sylvia deixou as lágrimas rolarem. Essa era uma boa arma para se usar às vezes. Anna caiu na armadilha, aproximou-se e a abraçou.
- Rachel deu a vida pra que ocê pudesse escapá. - sussurrou Sylvia no ouvido de Anna - Se Ephram pegá a Rachel agora, ocê vai perdê ela pra sempre. E ainda tem os
que tão preso na casa, nem todos eles são pecador. Como aquela garota fantasma, Becky, que ocê viu na primeira noite aqui. Aquela criança nunca machucô uma mosca.
Se algum espírito merece ficar livre, é o dela.
Anna cerrou os punhos. - O que devo fazer? Sou só uma pessoa. Estou fraca, estou morrendo, minha alma não está na melhor das formas, pra começar. Como diabos posso
acreditar?
- Ocê deve segui seu coração, Anna. - Sylvia foi até a janela - O sol tá pra se pôr. Ocê sabe o que isso singifica.
- Sim, sim, sim. A lua azul.
Sylvia cruzou o aposento, mancando lentamente, amaldiçoando silenciosamente Ephram por entortar seus ossos e enrugar sua pele. Ela colocou a mão no ombro de Anna,
deixou uma lágrima se acumular no olho e então disse: - Ocê apenas segue seu coração. Isso é que significa acreditar.
Sylvia lhe deu outro abraço, dessa vez correspondido, agarrado, com um desespero que poderia ter nascido de uma vida de solidão. Sylvia finalmente a soltou e deu
um passo para trás. - É mió ocê voltá pra casa agora. A Srta. Mamie tá esperando.
Anna voltou para a floresta que escurecia. O vento estava cortante, frio o suficiente para deixar o orvalho precoce endurecido. Essa era uma noite para congelar,
pensou Sylvia. Uma noite para os mortos.
Ela fechou a porta da cabana e foi até a lareira, acariciou o tecido dobrado e ofereceu cinzas de orações para seu conteúdo.
CAPÍTULO 56
- Estão adiantados, cavalheiros. - disse a Srta. Mamie.
- Só apreciando a vista. - disse Paul, os pés no parapeito, uma taça de vinho nas mãos.
- Um pôr do sol encantador. - disse ela.
Adam olhou para o horizonte, as montanhas cobertas com ouro derretido, as encostas enrugadas em diferentes tons de cores e sombras. O vento carregava a promessa
de mudança, o ar repleto dos últimos odores agridoces do outono. Talvez fosse por isso que ele andava tão rabugento nos últimos dias. O inverno sempre se parecia
com morte para ele, uma terra árida e cinzenta para ser suportada, tanto quanto os pesadelos de sua infância. E ele havia culpado Paul por isso, aquela mudança sazonal
que o deixara inquieto por dentro.
- Não está contente de ter ficado, Sr. Andrews? - perguntou a Srta. Mamie.
Adam e Paul trocaram olhares. - Sim. - disse Adam - Eu tenho tendências melodramáticas algumas vezes. Não é mesmo, Paul?
- Com certeza, bonequinha. - ele bateu de leve na mão de Adam, o que a Srta. Mamie poderia tomar como sendo um gesto de suporte moral, mais que um gesto romântico.
- Esse é o melhor momento de nossas vidas.
Paul virou-se para a Srta. Mamie. - Está tudo bem se eu trouxer minha câmera de vídeo? Essa paisagem está de matar.
A Srta. Mamie sorriu. - Por que não? Penso que essa noite será memorável e valerá a pena ter um registro disso.
Lilith se aproximou, encheu o copo de Paul e ofereceu vinho para Adam, que levantou a mão recusando polidamente. - Não, obrigado. Sou o motorista hoje.
A risada da Srta. Mamie foi carregada pelo vento. - Ah, você é engraçado. Não me admira que Ephram goste tanto de você.
- Por falar nisso, estou surpreso que não haja um retrato dele nessa balaustrada. - disse Paul.
- Esse era um de seus lugares favoritos, quando estava vivo. Ele amava uma boa festa, especialmente na lua cheia.
Os Abramov estavam sentados de encontro ao parapeito próximo ao bar, afinando os instrumentos. A queda de temperatura afetava a madeira e eles tinham que ajustar
constantemente a tensão das cordas. Enquanto tocavam uma série de escalas, a mudança de tom dava à música uma qualidade discordante e atonal.
- Os Abramov prometeram um dueto original. - disse a Srta. Mamie - Composto especialmente para a ocasião. Agora, se vocês me derem licença, tenho alguns preparativos
a fazer.
Após sua partida, Adam se inclinou para frente em sua cadeira e segurou o parapeito, ousando olhar por cima dele para o pequeno telhado sobre a varanda e para o
arco da estrada no pátio, vinte metros abaixo. O local onde ele havia morrido. Ele engoliu em seco, fechou os olhos e sentou-se novamente na cadeira.
- Qual é o problema, princesa? - perguntou Paul - Você ficou pálida.
- Não devia ter tomado a segunda taça de vinho.
- Como posso transformá-lo numa garota festiva se você não suporta mais bebida que isso? A noite é uma criança.
- Sim, mas parece que tenho cem anos, agora.
Paul deu um tapinha no joelho de Adam. - Você fica aqui e descansa seus velhos ossos, então. Vou pegar minha câmera.
- E talvez dar uns tapas no seu baseado?
Paul deu aquele sorriso endiabrado e irresistível. - Ele me deixa mais criativo. E todo o resto.
- Guarde um pouco para mim.
- Você não mudou nadinha, não importa o que eles digam. - Paul olhou à volta, inclinou-se para frente e beijou Adam no rosto. - Como disse a moça, será uma noite
inesquecível.
Adam observou enquanto Paul cruzava a balaustrada e descia pela escada. Lilith e a cozinheira mal encarada estavam preparando a mesa com o bufê. Os Abramov retornaram
seus instrumentos para os estojos e agora estavam longe do parapeito, conversando com a mulher mediterrânea, Zainab. A fumaça saía das quatro chaminés, subindo acima
das árvores que circundavam o solar.
Adam encolheu-se na cadeira, tremendo. Ele não se importaria se houvesse uma fogueira agora. O outono estava morrendo e o inverno, chegando. Frio, cinza e sufocação.
Uma pena que essa noite não pudesse durar para sempre.
CAPÍTULO 57
O suor escorria como o sangue de um ferimento de espingarda, seus músculos gritando enquanto Mason passava a goiva sob a inclinação do que seriam as maçãs do rosto
de Korban. Ele raspou o formão na madeira dos ombros com sua mão esquerda. Ele nunca havia entalhado com ambas as mãos ao mesmo tempo, mas qualquer coisa era possível
agora. A madeira parecia descascar por vontade própria. Estavam com pressa, tanto ele quanto a estátua.
A voz veio novamente do busto, a voz que o havia pressionado a continuar, deixando Mason em um frenesi de cortes, entalhes e marteladas. Isso o havia assustado,
de início, mas agora a voz era apenas a de outro instrutor, talvez o mais exigente de todos com quem ele trabalhara.
Esse era o mais exigente dos críticos, também. O túnel o estava esperando, se ele falhasse.
O berço negro, os ratos, sua Mama com a voz guinchada e a longa cauda cinza.
- Mais no ombro, seu idiota. - disse o busto.
Mason olhou para o busto, para Korban, para sua criação, sua primeira obra-prima. A lamparina na bancada deixava o lado esquerdo do busto nas sombras.
Os lábios de madeira moveram-se novamente. - Rápido. Eles estão esperando.
- Quem? - a sílaba de Mason foi um sussurro. O ar do porão estava carregado com uma estática sobrenatural. Os pelos nas costas de suas mãos arrepiaram-se. Chamas
rugiam na chaminé central, do outro lado da parede de pedra.
- Siga com o trabalho, escultor.
- Preciso descansar.
- Você terá tempo de sobra para descansar depois.
Mason largou as ferramentas sobre a bancada, secou a sobrancelha e caiu de exaustão no chão de concreto. Então ele viu a pintura de Korban do solar, que alguém devia
ter alterado enquanto Mason não estava por perto. Porque as pessoas agora eram claramente visíveis, em grossas pinceladas de tinta. A mulher com o buquê havia se
movido para frente, além do parapeito, e sua posição havia mudado, os braços abertos, os olhos arregalados. Ela estava caindo.
E Mason não ligava para o que Anna havia dito, toda aquela bobagem sobre aquela mulher ser sua mãe, porque aquele era o rosto de Anna, aqueles eram os olhos de Anna
e aquela mulher tinha um meio sorriso misterioso que ninguém mais no mundo poderia ter.
- Ah! - disse o busto - Então é a mulher que você deseja, no fim das contas. A preciosa Anna.
- O que tem ela? - Mason estava além do ponto de duvidar de sua sanidade. Alguns artistas diziam que seus trabalhos falavam com eles, então escutar a voz de Korban
talvez não fosse assim tão estranho. Mas a linha divisória, o passo a mais que transformava um gênio em uma alma torturada com um certificado, ocorria quando o artista
começava a responder ao objeto em questão.
- Você pode tê-la, assim que me acabar. Já prometi fama a você. E eu sempre cumpro minhas promessas.
A resposta de Mason foi pegar o formão da bancada. Levantou o maço, dobrando o cotovelo para testar seu peso. Pensou em girar o corpo e enterrar a ponta grossa de
ferro entre os olhos de Korban.
Uma pancada de um maço quebraria o busto em dois pedaços. Mas como você poderia matar algo que já estava morto?
A estátua tremeu diante dele, os membros ainda grosseiros flexionando-se. O veios quebraram-se ao longo de um antebraço e o bloco da cabeça inclinou-se, um pequeno
nó soltando-se de onde Mason planejara entalhar a boca.
- Acabe-me. - gemeu o buraco do nó da madeira.
Mason largou o martelo e deu um passo para trás, suor, poeira e medo queimando seus olhos. Os braços de madeira moveram-se em sua direção, cavacos de carvalho caindo
das mãos toscas. Mason bateu de encontro à bancada, derrubando o busto. Ele olhou para baixo e viu os olhos fixos nele. Era o mesmo olhar frio que havia nas pinturas
de Korban espalhadas pela casa. Perfeito demais.
- E Anna? - perguntou Mason.
- Prometo que vocês dois ficarão juntos. Seremos uma grande família feliz.
Isso fazia sentido, tanto sentido quanto Mama olhando do túnel e provavelmente também uma versão bêbada e de olhos vermelhos de seu pai. Como nos velhos tempos,
com ratos nas paredes, as trevas por todos os lados e seu pai desmaiado no chão. Se conseguisse levar Anna junto com ele para esse lugar, as trevas poderiam ser
um pouco mais suportáveis. Korban sempre mantinha suas promessas. Como você poderia não confiar naqueles olhos maravilhosos e sábios?
Mason pegou a machadinha. Os críticos haviam se pronunciado. Mais entalhes na esquerda. Faça com perfeição. Grande imagem de sonho trazida à vida. Crie.
Madeira. Carne. Coração. Sonho.
CAPÍTULO 58
Anna sentiu-se como se estivesse de volta a um de seus sonhos, aqueles que haviam preenchido suas noites durante o último ano. Como ela havia feito tantas vezes
antes, na terra perdida dos sonhos, aproximou-se do solar pela floresta. A grande forma da casa cresceu por entre as árvores que a circundavam como enormes guardiões.
As janelas eram olhos, brilhantes e frios, mesmo com a luz de dezenas de fogos em seu interior. As chaminés vomitavam uma respiração de transição efêmera, matéria
em energia, substância em calor. A porta da frente murmurava boas-vindas suaves, a escuridão de seu interior prometendo paz.
Mas esse sonho acordado tinha características além de todos os outros, como se um sétimo sentido tivesse se somado ao sexto. A grama era grossa sob os sapatos e
uma geada brilhante se grudava à pele da terra. O céu estava brilhante tanto a oeste quanto a leste, pintado de lavanda e marrom por um pincel enorme e incerto.
O vento havia se tornado um suspiro e a rendição do outono pairava pelo ar frio. O solar esperava. Ephram Korban esperava.
Esse é o lugar ao qual pertenço? Estou realmente voltando ao lar?
Sylvia havia dito que Anna era um combustível. Que Korban iria consumi-la, usá-la, transformar sua alma em cinzas.
E o que isso importava? Que seu amor, ódio, raiva e orgulho fluíssem para dentro da casa. Para Ephram Korban. Ninguém a tinha desejado mesmo.
Ela riu estonteada quando cruzou a varanda, a energia estática bruta da casa fluindo para seu corpo, aquecendo-a, fazendo-a sentir-se maravilhosa. Voltando ao lar,
lar era onde seu coração estava.
A Srta. Mamie estava esperando. Ela abriu a porta e abriu caminho para Anna entrar, abrindo os braços em boas-vindas. - Ephram disse que você viria.
Anna sentiu-se embriagada. Mesmo sua dor estava cedendo, os fogos do câncer morrendo em seu interior. Ela ofereceria tudo. Korban poderia ter sua dor, sua solidão,
seu sentimento de nunca ter pertencido. Bon appétit.
Sim, ela havia retornado ao lar. Esse lugar havia aberto sua alma, havia permitido que ela visse fantasmas. Havia dado o que ela queria. Ela poderia morrer feliz
aqui.
- Você está adorável essa noite. - disse a Srta. Mamie. As palavras soaram como se viessem de um lugar muito distante. O fogo rugiu e estalou no final da sala de
estar. Anna olhou para o retrato de Korban sobre a lareira. Avô. Com os olhos tão brilhantes e amorosos.
Como ela pôde resistir a unir-se novamente à sua família? Que o círculo fique novamente completo. O que importava se as pessoas estavam vivas ou mortas? Quando você
vai a fundo na questão, há realmente alguma diferença?
Um, uma linha que divide... Então Zero. Nada. Tudo igual.
Anna olhou para a casa com novos olhos. As colunas, os cantos, os entalhes na lareira, os painéis de madeira avermelhada, os pisos de carvalho lustrados. Ela não
culpava Korban por nunca querer sair desse belo lugar. Ela também não queria ir embora agora.
- Você chegou bem a tempo para a festa. - disse s Srta. Mamie - Lá em cima na balaustrada.
Combustível. Pintar.
Alguma coisa sobre a pintura. Ela lá em cima, ao lado do fogo. Mason.
- O que foi, querida? - A Srta. Mamie colocou uma mão fria no queixo de Anna - Você não está se sentido doente, está?
- Onde está Mason?
- O escultor? Está ocupado agora, mas ele se juntará a nós. Assim que acabar.
Anna se deixou conduzir às escadas. Algo nas paredes a incomodava, algo que ela sabia que deveria lembrar. Mas elas estavam subindo agora, a Srta. Mamie mostrando
o caminho. Chegaram ao segundo andar e Anna olhou pelo corredor na direção de seu quarto. As lâmpadas astrais ao longo do corredor pareciam brilhar e depois diminuir,
como que alimentadas por uma respiração lenta e tranquila.
Elas alcançaram o terceiro andar. Anna não havia visitado essa parte do solar antes, apesar de resquícios apagados de alguma memória ancestral a cutucarem por dentro.
As paredes eram cobertas com tábuas de pinho barato, como as usadas em vagões de trens. Sem pinturas. Havia portas que deveriam levar a outros quartos e janelas
de empena em cada extremidade do andar. Uma lanterna de condutor em uma mesa feita à mão próximo ao corrimão da escada era a única luz.
A lanterna.
Mason tinha uma como essa no porão.
Onde estava Mason? Ela tentou se lembrar de seu rosto, mas ele estava perdido no meio do nevoeiro de sua cabeça, junto com tudo o mais. As paredes vibraram, incharam
e contraíram-se. A casa estava se movendo ao ritmo de sua respiração. Ela começou a ficar tonta, então a Srta. Mamie a encostou em uma pequena escada.
Anna olhou para cima, como que pelo olho do mundo, para as nuvens que captavam o brilho prateado da lua. A balaustrada. O topo do fim do mundo. Onde seus próprios
fantasmas a aguardavam.
Ela forçou os braços e pernas a subirem. Era hora de encontrar a si própria.
CAPÍTULO 59
Spence havia encontrado a Palavra.
Ele sentiu - não, soube - o que estaria esperando no final de seu último parágrafo.
A verdade vem em momentos improváveis. O único e verdadeiro Deus vem nas formas mais estranhas. Todos os dons tinham peso. Cada dom demanda um valor igual em sacrifício.
As paredes vibrantes e inchadas da casa o haviam distraído, a princípio. Apenas outro mal, outra coisa para roubar sua atenção, para desviá-lo da estrada para a
glória. Bridget engasgou e gritou quando elas tomaram forma, quando as imagens diáfanas caíram do teto e subiram do assoalho de carvalho, quando elas flutuaram oca
e friamente pelo quarto.
Spence as enxotou impacientemente. O verdadeiro caminho brilhante acenava para ele e tudo o mais eram bobagens e excesso literário. O caminho verdadeiro levava à
próxima sentença, que levava a próxima palavra a se lançar na polpa de madeira, enquanto o metal martelava a tinta no papel e lhe dava existência.
A noite estava pronta, a respiração emprestada e mantida prisioneira, pulmões de ébano e terra, pés de granito, braços ceifando os momentos de dormir dos olhos daqueles
que não enxergavam. Outubro gritava, um tapete de geada, uma reviravolta do vento marrom, o final de algo. O tempo andava para trás, frio para água quente e dura.
Vá para fora congelar e volte...
Ele se inclinou para frente na cadeira, sem se preocupar se o ar enregelante drenava suas forças. Ele não precisava gastar sua carne com Bridget. Ele estava tendo
uma relação melhor aqui, ele e a Palavra verdadeira. Sombras brancas moveram-se pelo quarto em silêncio, o fogo congelado, seus dedos coçando.
Volte para... o quê?
A Palavra estava lá, provocando, esperando, impulsionando-o, corpo e alma, para frente, flutuando fora do alcance.
- Deixe-me lhe dizer, colega, o que você está esperando?
Spence pensou inicialmente que as palavras haviam vindo de sua própria mente, como se um diálogo entrecortado estivesse tentando forçar caminho rumo à superfície
da narrativa. O fogo rugiu e ainda assim uma brisa gelada lhe escorregava pela nuca. Seus dedos se apoiaram na mesa.
A voz voltou novamente, não uma Musa, não Bridget, não Korban. - Anda logo com isso, homem. Não é o diabo do fim do mundo ainda.
Spence virou-se, lançou um olhar furioso ao fotógrafo que estava no canto do quarto, a face obscurecida pelas sombras. - Maldito seja você, por que não bateu na
porta? Não suporto interrupções quando estou trabalhando.
O sotaque de Roth diminuiu, tornando-se anasalado como no meio-oeste. -Nós temos túneis da alma, Jeff. E adivinhe quem está dentro do seu?
- Você está louco. - disse Spence - Venha para onde eu possa vê-lo.
O fotógrafo fez um leve movimento com a mão na direção do quadro de Korban. - Ele disse que você pode levar sua máquina de escrever, mas que todas as teclas estarão
emperradas.
Spence tentou se levantar, a raiva vibrando dentro dele e enviando um brilho forte de dor para a têmpora esquerda.
Roth riu, a voz se tornando aguda, acelerada como aquela voz aguda e estridente do passado de Spence. A voz da Srta. Eileen Foxx. - X tem som de CH, igual como em
XIXI - disse ela, o corpo de Roth sacudindo com a risada de júbilo.
- F-f-foxx Botox? - disse Spence, confuso, o peito crivado de dor. O calor se espalhou por sua genitália, uma umidade estranha, quase agradável.
Roth moveu-se novamente para as sombras e desapareceu. A última advertência de Eileen Foxx pairou no ar como uma ameaça. - É melhor você passar de ano, Jefferson,
ou estarei esperando. Sim senhooorrrr, e você ficará após a escola comigo.
Spence ficou olhando o fogo até que a umidade entre suas pernas ficou gelada, então virou-se novamente para a máquina de escrever, as palavras na página quase como
símbolos entalhados por uma civilização perdida. Elas não tinham mais significado, mas ele sabia que não estavam completas. Ele necessitava daquela palavra.
A sala inteira riria dele novamente se ele não encontrasse a palavra.
CAPÍTULO 60
Mason levantou novamente o formão, o maço na mão direita escorregadia. A pilha de cavacos de madeira estava da altura dos tornozelos à sua volta, a estátua entalhada
em uma forma reconhecível. A cabeça ainda necessitava de muito trabalho, mas os braços e pernas estavam lá, o torso tão forte e feio quanto um coto. Isso era uma
obra-prima horrível, um toque de mestre rústico, uma visão criativa que ninguém deveria ver.
Olhos.
A coisa necessitava de olhos, para poder ver. E quando ela pudesse ver, então o quê?
- Você não está trabalhando, escultor. - disse o busto.
- Estou pensando. - disse Mason.
- Você pensará quando eu mandar você pensar. Agora acabe.
Acabar. E ele poderia ter tudo, fama, fortuna, a aprovação de Mama. E a garota. Ah, não se esqueça da garota.
Ele olhou para a pintura novamente. A figura de Anna havia mudado de posição, estava definitivamente caindo e os braços agora estavam bem abertos, o buquê escorregando
de seus dedos, o meio sorriso mudado para um longo túnel redondo de um grito.
Anna. Algo sobre Anna que ele deveria lembrar, se conseguisse pensar em algo além da estátua. Os sussurros escaparam novamente dos cantos do porão e ele temeu que
o túnel houvesse se aberto novamente, que Mama sairia e o cheiraria, com o nariz pontudo de roedor, lhe mostraria os dentes afiados, balançaria os bigodes e falaria
sobre o poder dos sonhos.
Mas o sussurro se espalhou novamente e a voz agora era a de Anna: - Mason. A voz vinha da pintura.
- Não lhe dê ouvidos, escultor. - disse o busto - Preciso de você. Dê-me meus olhos. E minha boca. Estou com fome.
Anna falou novamente da pintura: - Ele o está consumindo, Mason. Ele está consumindo a todos nós.
- Trabalhe! - ordenou o busto.
- Consumindo nossos sonhos. - disse Anna - Quanto mais próxima fico da morte, mais eu entendo.
Próxima da morte? Anna?
Ele tinha que encontrá-la. Algo estava errado. Algo estava errado com ele. Ele olhou para as mãos machucadas, as ferramentas, as coisas que deram forma a essas monstruosidades
à sua frente. De onde tinham vindo essas gárgulas? Não de sua imaginação, isso era certo.
- Sonhe-me para a vida. - ordenou o busto - Não pare agora. Sonhar com Korban.
Não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Bons ou maus, trazendo-lhe fama ou não. Deixando sua Mama orgulhosa, ou não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Não os de Korban.
Mason levantou o formão, pressionando-o contra o peito da estátua, levou o braço atrás e bateu com força no formão. O busto gritou. Mason bateu com o martelo no
busto, lançando-o ao chão.
- Escultooooor! - Korban rugiu, uma voz como milhares de fogos devorando o ar do estúdio, sacudindo os pilares da casa.
A estátua estremeceu, os membros moveram-se com o gemido das farpas de madeira e ela se libertou dos pregos que a mantinham equilibrada. As mãos de madeira se moveram
e ficaram enroscadas nos arames. As pernas haviam sido divididas em baixo, mas os pés não haviam sido refinados, meros pedaços de carvalhos recobertos com casca.
Os pés pesados arrastaram-se pelo chão.
Movendo-se na direção dele.
Mason chutou a bancada, derrubando a lamparina sobre ela. A chama se apagou quando o globo de vidro quebrou. Eles estavam na escuridão.
Ele e Korban.
Exceto que Korban estava acostumado à escuridão, Korban alimentava-se da escuridão, Korban era a escuridão.
Mason tateou à frente do rosto e moveu-se naquilo que achou ser a direção das escadas. Ele tropeçou sobre algo metálico e então caiu nos braços da estátua animada,
os ossos se chocando contra a madeira...
Não, eram apenas os postes da velha cama. Mas agora ele estava confuso, todas as direções pareciam a mesma e ele ouvia o contorcer e guinchar atrás de si. Ruídos
de roedores.
Não, não, não, não, não o berço.
E na trilha desse pensamento veio outro, igualmente assustador. Ele havia ansiado por criar uma obra de arte eterna. E ele havia feito isso. Isso era seu sucesso
imortal.
Os braços da estátua estalavam enquanto procuravam seu criador, o som igual ao de ossos secos quebrando. Korban estava se esticando, experimentando o novo corpo
na escuridão. O belo e desajeitado corpo, entalhado pelo toque amoroso de Mason.
- Estou cego. - disse a voz abafada de Korban, como se estivesse mastigando serragem. - Você não terminou meus olhos.
Os dedos de Mason tatearam nos pilares de suporte. Ele abaixou-se atrás deles e ajoelhou-se no escuro. Tentou controlar a respiração, mas não conseguia. As batidas
fortes de seu coração o denunciariam. Os pesados pés de madeira arrastaram-se em sua direção.
Se ele está cego, também está surdo. A não ser que parte dele ainda esteja no busto. Se for assim, talvez ele também possa CHEIRAR você.
Mason estremeceu violentamente com a imagem de um rato encostando-se às suas costas, os bigodes balançando e o nariz contorcendo-se enquanto cheirava o ar à procura
de suporte. Korban era um rato, um rei roedor, pronto para pegá-lo. A cauda grossa escorregou no chão frio de concreto. Mason pressionou as pálpebras até que a dor
expulsou a imagem em uma explosão de verde brilhante.
- Venha cá, escultor. - disse Korban, a voz mais clara agora, mais estridente. Será que ele havia se movido novamente para o busto?
Os pés desajeitados escorregaram mais próximos e, então, foram para longe.
Onde estão as escadas?
- Não me traia. - disse Korban. A voz preencheu o estúdio, mas os ecos foram tragados pelo ar parado.
A estátua deve ter encontrado o busto e o levantado do chão. Qual dos dois estava incorporado por Korban? Ou ele habitava os dois ao mesmo tempo? Se ele podia preencher
a casa toda de uma vez, então com certeza ir e vir entre alguns pedaços de madeira seca não era nenhum truque complexo.
Dois passos pesados para frente. O som áspero ou era a estranha e trabalhosa respiração de Korban ou era o ar quente passando pelos encanamentos sobre sua cabeça.
- Precisamos um do outro. - murmurou Korban.
Fama, fortuna e a garota. E tudo que Mason tinha que fazer era continuar fazendo aquilo pelo qual vivera e ansiara até hoje, o que estava em seu sangue, aquilo para
o qual nascera e pelo qual valia o risco de morrer.
Criar.
Trazer os sonhos à vida. Ele nascera para criar.
Ele poderia fazer Korban e Korban poderia fazê-lo. O que Anna havia dito? Não era no que você acreditava, mas o quanto você acreditava. Ele acreditava em sua arte.
Mason ficou tentado a estender o braço e tocá-lo, acariciar os músculos suaves e a pele de madeira.
Esse seria seu trabalho eterno. Seria simples, na verdade. Apenas transferir as feições que havia feito no busto para a estátua. Trazer Korban total e finalmente
à vida.
Ele ouviu um estalido, um som suave que poderia ter sido um riso contido. Ou o suspiro de um rato.
- Acabe-me. - sussurrou Korban.
Render-se seria tão fácil. Render-se a um sonho. Por que se preocupar em fugir dos desejos mais profundos de seu coração, o chamado dos fogos de sua alma?
A voz de Anna veio da escuridão, do canto onde ficava a pintura: - Ele devorará seus sonhos, Mason.
Mason se lançou desordenadamente na direção das escadas e subiu-as tropeçando, o porão vívido com os estalos furiosos de madeira e o escorregar de coisas invisíveis,
o túnel frio de escuridão lambendo seus calcanhares e ameaçando engoli-lo para sempre.
CAPÍTULO 61
Sylvia parou defronte à porta da frente. Ela não havia estado na casa por muitos anos. Desde a morte de Rachel. Um arrepio cruzou-lhe o corpo, trazido por mais que
simplesmente a friagem de outono. Isso era como entrar em uma igreja, terreno sagrado, um lugar onde as almas andavam livremente.
Ela apertou o patuá que havia escondido dentro da blusa, junto do calor de seu coração. Estava assustada, mas tinha fé. A lua estava subindo, lançando uma luz fria
sobre as montanhas como se um novo dia estivesse nascendo. Talvez estivesse. Um dia de noite sem fim, onde as coisas renascem, quando as promessas negras eram mantidas
e rompidas. Quando os feitiços carregavam o peso das preces.
Sylvia abriu a porta sem bater. Ephram sabia que ela estava ali, com certeza. Não havia necessidade de ser sorrateira. E os outros, eles moviam-se nas paredes, agitavam-se
no porão, espiavam por entre as frestas das pedras da lareira.
O retrato de Ephram quase lhe roubou o que havia restado de sua respiração. Ela havia visto aquele rosto em milhares de sonhos, metade deles pesadelos, a outra metade,
o tipo de sonho que lhe deixa envergonhado quando você acorda.
- Olhe para mim. - murmurou ela.
Ephram olhou para ela com os escuros olhos pintados.
- Tô véia. - disse ela - Eu fiquei viva por meio da magia todos esses ano. Andando por aí, esperando essa lua azul sua. Bem, tô aqui agora e não tô bem certa do
que ocê tem a pretensão de fazer sobre esse assunto.
A pintura caiu da parede, a moldura pesada se quebrando, a tela dobrando-se. Quando uma pintura cai, é um sinal certo de que o modelo está para morrer. Mas quando
uma pintura de uma pessoa morta cai...
As chamas rugiram pela chaminé, dedos de fogo voaram na direção de Sylvia, lembrando-a da noite no chão do quarto de Korban, a noite que plantara a semente de Rachel
profundamente dentro dela. Uma noite de fogo gelado.
E essa era outra noite de calores proibidos, uma noite de geada e chamas. Ela se dirigiu para a escada, deixando o rosto de Ephram caído no chão de madeira, próximo
ao calor da lareira. Eles estavam esperando na balaustrada do telhado, sob a lua nascente. Anna, a Srta. Mamie e Lilith. Ephram se juntaria em breve e Sylvia não
perderia isso por nada no mundo. Nesse mundo ou em qualquer outro além dele.
Ela apertou o patuá até os dedos doerem, o coração pulsando de fé enquanto subia as escadas.
CAPÍTULO 62
Mason mergulhou para dentro da luz do corredor como se fosse água benta. Ele bateu a porta do porão e escorregou a trava metálica, trancando-a. Por que havia uma
tranca do lado de fora? O que era mantido no porão que necessitava de um tranca?
Agora que estava fora do ar sufocante do porão, sua mente começou a clarear. E os pensamentos que vieram eram quase tão assustadores quanto o transe criativo que
o havia consumido de dentro para fora. Ele encostou-se na porta, o coração batendo forte.
Bela jogada, Mase. No caso de você ter esquecido, esse cara está morto a mais de oitenta anos e você acha que PORTAS vão pará-lo agora?!
Mas Korban havia sido desajeitado e enrijecido quando movera-se para a estátua. Isso porque o fantasma ou espírito ou o que quer seja tinha se movido para dentro
de um objeto feito pelo homem. Porque Korban precisava daquela energia, daquele fazimento, antes de tomar para si aquele objeto de incorporação.
Então, talvez, ele passe através da PORTA, cabeça de bagre. Parece que ele não precisa seguir nenhum tipo de regra por aqui.
Talvez. Mason socou a porta frustrado. A porta retumbou em resposta como se mãos de madeira batessem do outro lado. Mason olhou pelo corredor.
- Socorro! - gritou ele. Com certeza alguém ouviria o barulho e veria que havia algo de errado. Havia movimentação no fim do corredor. A porta da copa abriu-se.
- Graças a Deus! - disse Mason, caminhando para longe da porta do porão. Um de seus painéis de madeira trincou e rachou-se com as batidas. - Tem um... hmm...
Mason ainda estava procurando as palavras quando se deu conta de que seriam desnecessárias. A cozinheira tinha saído da copa, um cutelo na mão gorda. Ele podia ver
o cabo de madeira da faca. Toda ela, até sua ponta brilhante. Ele estava vendo através da mão da mulher.
Ela era feita da mesma substância leitosa que Ransom e George. O que significava...
Mason olhou para a direita. O corredor terminava em uma pequena porta. Ele teria que passar pela - ou através - da cozinheira para chegar ou à porta da frente ou
à porta dos fundos da casa. E ele tinha a sensação de que deveria se apressar, pois as paredes estavam começando a zumbir com aquela estranha energia estática que
ele sentira no porão.
A porta do porão estilhaçou e cedeu, e as mãos avermelhadas de carvalho da Korban passaram pelo buraco. A cozinheira, subitamente sólida, bloqueou o corredor com
o corpanzil etéreo. Seu lábio estava curvado como se tivesse acabado de cheirar manteiga rançosa. O cutelo dançou à sua frente, a lâmina de metal refletindo as chamas
das lamparinas.
Mason afastou-se dela, apesar de não haver para onde correr. Korban lançou o braço em sua direção pela da fenda na porta, acertando Mason na cabeça com um punho
rústico. Uma escuridão repleta de faíscas inundou seu crânio enquanto ele caía ao chão. Quando ele piscou para se desvencilhar da inconsciência, sangue escorria
de seu escalpo e ele viu redemoinhos nos veios da madeira da parede.
A parede estava se movendo, ou sua cabeça estava rodando. Não, era a parede. Havia algo dentro da parede.
Um rosto tomou forma e emergiu da madeira. A face esboçou um sorriso quando projetou-se para dentro do corredor. O fantasma de George Lawson abanou a mão reserva
e flutuou na direção de Mason.
Korban destruiu a trava metálica e a porta do porão abriu-se. Mason se forçou a ficar de pé e correu na direção da cozinheira, esperando que ela fosse tão macia
quanto parecia. Ele se abaixou e mergulhou entre suas pernas, do modo como havia sido ensinado nas aulas de futebol em Sawyer Creek. Seus ossos rangeram quando ele
afundou na carne gelada e ele ouviu algo estalando em seu ombro.
Fantasmas não deveriam ser sólidos. Mas até aí, fantasmas não deveriam ser. O cutelo assobiou pelo ar e ele olhou para cima a tempo de ver o rosto da cozinheira,
morto e inalterado. Seria a mesma expressão que ela teria cortando cenouras para um refogado.
Ele tentou rolar para a esquerda, mas o cutelo ricocheteou na parte de cima de seu braço. Ele soltou uma respiração agonizante e as gotas de sangue voaram sobre
seu rosto quando ela levantou o cutelo para outra investida. Ele engatinhou como uma aranha aleijada pelo chão, desviando-se dela, os pés pesados de Korban trovejando
pelo corredor.
Mason pulou para a escada, agarrando o corrimão para se puxar para cima. Seu coração bateu violentamente, enviando jorros de sangue do ferimento enquanto ele se
rebocava escada acima. O sangue foi, de uma forma inusitada, uma lembrança de que ele ainda estava vivo. Em um mundo onde sonhos transformavam-se em pesadelos, sangue
era bem-vindo e a dor significava que ainda se podia sentir.
Mason alcançou o segundo andar e olhou na direção da suíte mestre. William Roth encontrava-se nas sombras, ao lado da porta fechada de Spence.
- Corra! - gritou Mason, tentando desesperadamente fechar a abertura rasgada no braço. - Os fantasmas... Korban...
Então todas as palavras se perderam quando Roth foi banhado pela luz das lâmpadas astrais. O rosto do fotógrafo estava pendurado aos farrapos, um zigue-zague de
cicatrizes recentes fazendo seu sorriso ficar deformado. Os globos oculares estavam brancos, como lentes vazias.
O fotógrafo mostrou um punho pálido enquanto Mason tentava coordenar as cordas vocais em um grito.
- Olá, companheiro. - disse o fantasma-Roth, as palavras balbuciadas e abafadas. Os lábios cortados abriram-se novamente e coisas viscosas caíram da boca morta e
comaçaram a caminhar sobre a roupa estraçalhada. Aranhas.
Ambas as pontas do corredor escureceram. Um vento forte apagou todas as lamparinas nas paredes. Era o longo túnel negro, correndo em sua direção de ambos os lados,
e que levariam Mason de volta aos ratos.
A voz de Ransom ressoou das paredes: - Têmo túnel de alma procê, Mason.
A estátua cambaleou escada acima, como um manequim embriagado. Mason espiou por sobre o corrimão e viu o busto aninhado no braço da estátua, como um bebê carregado
pela mãe.
Os lábios do busto se separaram e um lamento ecoou da madeira, como se toda a casa se juntasse à voz de Korban: - Acabe-MEEEEE!
Mason correu para as escadas. O terceiro andar estava escuro. Apenas os fachos leitosos de luar através das janelas impediam que Mason corresse a toda contra uma
parede. Ele tentou sugar ar para os pulmões, mas o ar negro era como uma coisa sólida, espesso e sufocante. Ele ouviu as vozes e olhou para cima, vendo um quadrado
de claridade.
O alçapão para a balaustrada do telhado!
Onde o fantasma de Anna havia gritado na pintura.
CAPÍTULO 63
A lua cheia nasceu cortando por entre os galhos das árvores. A floresta brilhou com a geada e a respiração de Anna brilhava à sua frente. A Srta. Mamie levou-a até
o parapeito e Anna olhou para as terras à volta, que seriam seu lar. Ela pertencia a essa casa, a essa montanha, a Ephram Korban.
- Você é linda. - disse a Srta. Mamie, levantando a lamparina até o rosto de Anna. - Posso ver por que Ephram deseja tanto você. Por isso e pelo seu dom.
Os Abramov se sentaram em suas cadeiras, aproximaram os instrumentos de seus corpos como um encontro de amantes. Paul encaixou a câmera em um tripé, Adam observando-o.
Cris e Zainab conversavam próximas ao bar, Lilith rindo e reabastecendo seus copos. Os outros hóspedes estavam em um grupo na outra extremidade do parapeito, conversando
em vozes baixas e animadas.
- Você sabe por que está aqui, não é mesmo, Anna? - perguntou a Srta. Mamie.
- Porque eu pertenço a esse lugar. - As palavras eram de outra pessoa.
- Eu também. - disse Sylvia e a Srta. Mamie se virou, encarando a velha.
- Não. - disse a Srta. Mamie, o rosto queimando de ódio. - Essa é a noite de Ephram. Ele me disse que você nunca retornaria, que ele a havia usado.
- O Ephram precisa de mim mais que precisa docê.
- Eu o mantive vivo e ele me manteve jovem. Olhe para você, seu saco patético de ossos. E pensou que ele poderia amar alguém como você!
- O amô é como uma porta que abre pros dois lado. A morte é igual. Gelo e fogo. Mas ocê nunca haveria de saber, num é? Ocê não sabe de nada de magia, nem de feitiços,
nem de fé nem de qualquer das coisa que prenderam o espírito do Ephram nessa casa por todos esse tempo.
- Você é uma bruxa louca, balbuciando sobre ervas e pós. É de mim que ele precisa. Sei como fazer as bonecas!
- Bem, ele vai chegar loguinho e daí ocê vai podê perguntar direto pra ele. Agora, o que vamô fazê com a pequena Anna?
- Anna?
Anna levantou a cabeça com a menção de seu nome, a noite como água, o mundo em câmera lenta. Os Abramov iniciaram o dueto solene, os arcos deslizando sobre as cordas
com suave melancolia, as notas vibrando ao vento. Essa era a casa de Anna. Ela não era Anna Galloway, nunca havia sido. Aquela vida era um sonho, o câncer letal
era um sino que havia sido badalado para trazê- la para casa, a morte apenas uma lenta transição que a levaria de volta para si mesma.
Ela era Anna Korban.
E ela se moveria por essas paredes para sempre.
O frio do mundo tornou-se o gelo dentro dela, o coração congelado da eternidade, enquanto ela se encaminhava para aquela linha divisória.
- E ela? - perguntou Sylvia.
- Ah, Anna morre. - disse a Srta. Mamie - Pela última vez.
CAPÍTULO 64
Mason subiu a escada aos tropeções na direção da balaustrada e para o ar frio da noite.
A presença de um grande espaço à sua volta, e a altura à volta, fez sua cabeça rodar e o estômago embrulhar. O mar de noite e as distantes montanhas ondulantes ao
fundo sugaram a força de suas pernas como se os ossos tivessem sumido. Ele se forçou a não pensar no chão lá embaixo, por todos os lados. O patético medo de alturas
empalideceu frente aos novos medos que ele havia descoberto.
Mason piscou, o sangue sobre os olhos, e olhou para a cena surreal na balaustrada. Anna estava junto ao parapeito, entre a Srta. Mamie e uma velha trajando um vestido
imundo e um xale rasgado. Pareciam estar discutindo sobre Anna, que tinha uma aparência drogada ou sonolenta, cambaleando na estranha luz lançada pela lua. O suor
de Mason esfriou no ar outonal e ele tocou na ferida no ombro. A dor o trouxe com violência para a realidade e ele correu para Anna.
- A pintura! - disse ele - Você estava me chamando!
- Quem é você? - perguntou Anna.
- Onde está a estátua? - perguntou a Srta. Mamie - Você não a deixou sozinha lá embaixo, deixou?
Ele olhou atrás de si, para a portinhola. - Temos que dar o fora daqui, Anna!
Mason pegou o braço dela e o frio da pele o inundou como um choque elétrico. Ele olhou dentro dos olhos dela e viu uma escuridão interna sem fim. Túneis. Seus olhos
eram túneis da alma, levando-a a morte ou abrindo-se de uma negritude interna ainda maior.
Antes que ele pudesse sacudi-la ou perguntar o que estava errado, a estátua colocou a cabeça disforme para fora da portinhola de acesso à balaustrada. Gritos emergiram
dentre os convidados enquanto a estátua se levantava toscamente sobre o piso, os membros pesados estalando e batendo, o formão de Mason ainda cravado no peito, o
busto aninhado debaixo do braço grosso. Os Abramov pararam a música no meio de um arpeggio. Uma taça se quebrou. A Srta. Mamie engasgou e correu na direção da forma
inacabada. - Ephram!
A estátua ficou de pé sobre pernas instáveis, o busto aninhado olhando furiosamente para Mason com uma raiva fervente nos olhos. A Srta. Mamie lançou os braços à
volta do torso de madeira.
A velha meteu a mão no interior de seu xale e puxou um envelope de tecido de dentro. Ela o desdobrou, aproximando-se da estátua com passos lentos. - Trouxe aquilo
que ocê queria, Ephram.
Mason olhou da velha para Anna. Ambas tinham os mesmos olhos cinzentos e Mason se deu conta de por que pareciam tão familiares. Porque eram os olhos que ele havia
tão carinhosamente esculpido no busto de Ephram Korban.
Ele novamente estendeu os braços para Anna, para puxá-la na direção da portinhola, incapaz de pensar em algo que não fosse fugir dali. Três lances de escada, a casa
repleta de fantasmas. Korban nunca os deixaria sair. Mas eles tinham que tentar.
Antes que Mason sequer conseguisse mover as pernas, o fantasma apareceu junto do parapeito, a imagem cuspida de Anna. Ela segurava um buquê de flores à sua frente.
Exatamente como a mulher na pintura.
- Mãe. - disse Anna.
CAPÍTULO 65
Esse não era o modo como a Srta. Mamie havia imaginado essa noite, o modo que ela havia desejado durante todas as milhares de horas solitárias, quando tinha nada
mais que o rosto de Ephram no espelho, seu espírito na lareira, as palavras vindas de um retrato.
Essa noite deveria ser perfeita, uma união de duas almas, tudo o mais esquecido. Ephram e sua amada Margareth, juntos novamente, unidos tanto na vida quanto na morte.
Com sonhos a serem concretizados.
E lá estava aquela encarquilhada Sylvia, que tentara o pobre Ephram tanto tempo atrás. E agora Rachel havia chegado. Rachel, que nunca deveria ter estado na casa.
Essa era a razão de ela e os serventes de Korban a terem perseguido, terem-na feito pular para a morte. Ephram havia dito que aqueles que o traíssem nunca ficariam
livres, mas àqueles que o servissem seria permitido uma segunda e derradeira morte. Era por isso que a Srta. Mamie havia entalhado as bonecas com cabeça de maçã,
os pequenos fantoches que abrigavam as almas escravizadas.
- O escultor não acabou seu trabalho. - disse a Srta. Mamie para a estátua. O busto respondeu: - Ele terminará.
Sylvia ajoelhou-se ante a estátua, desdobrou o tecido, levantou um punhado de pó nas mãos enrugadas. - Cinzas de uma oração, Ephram. Fiz como ocê me disse.
A Srta. Mamie agarrou-se à estátua, seu amado Ephram, que estava vestindo carne depois de todos esses anos sob a forma de fumaça e sombras. - Do que ela está falando,
Ephram?
A estátua varreu os braços de carvalho, arremessando a Srta. Mamie ao assoalho da balaustrada. Ela se virou e ficou de quatro, a roupa rasgada, o belo vestido que
havia guardado para a lua azul aos farrapos. Para a segunda lua de mel.
- Ephram? - perguntou ela.
- Ele não precisa docê. - disse Sylvia.
A Srta. Mamie engatinhou até ele e abraçou as pernas ásperas. - Ephram! Você me ama! A estátua a chutou para longe. - Enfeitice-me, Sylvia.
- Me devolve meus anos primêro. - disse Sylvia - Me faz jovem de novo. Como ocê prometeu.
- Enfeitice-me!
- Ocê disse que sempre cumpre suas promessa. - Sylvia levantou o tecido repleto de poções mágicas.
- Do que ela está falando, Ephram? - perguntou a Srta. Mamie. Subitamente, ela sentiu-se fria, como se um glaciar houvesse cortado seu coração. Olhou para as mãos.
A pele se enrugou perante seus olhos enquanto rugas profundas vincavam a pele, pequenos rios de idade correndo escuros sob a luz do luar. Ela tocou no rosto, a pele
se esticando e enrijecendo-se sobre o crânio, ao mesmo tempo que cedia sobre o queixo.
Oh, Deus, ela estava envelhecendo!
- Você me prometeu, Ephram. - disse ela - Juntos para sempre.
A estátua e o busto se juntaram em uma gargalhada. Os hóspedes correram para a portinhola, mas Lilith a fechou e ficou sobre ela. - Ninguém deixa o Solar Korban.
- disse ela, sorrindo como um esqueleto.
CAPÍTULO 66
Anna caminhou na direção de Rachel, movendo-se como se nadasse em uma água escura. - O que você está fazendo aqui?
- Tentei avisá-la, mas você não ouvia.
- Sobre Sylvia?
- Ela sempre amou Korban. Foi por isso que ela o matou, para agradá-lo. É por isso que ela aprendeu magia, feitiços e poções, que mantiveram o espírito dele vivo
até que pudesse finalmente trazê-lo de volta.
- Isso é tudo uma loucura, um sonho bizarro. - disse Mason.
Anna lhe deu um meio sorriso. Será que ele não conseguia ver o óbvio? Tudo era tão mais fácil quando você estava morto. Porque os mortos não precisam mais sonhar.
CAPÍTULO 67
- Estou vendo, mas não estou acreditando. - disse Paul, a cabeça inclinada para o visor da câmera. - Isso é demais. Romero após LSD, John Carpenter em contenção
de despesas.
Adam deu um puxão em seu braço. - Temos que dar o fora daqui!
- Documentário chocante! Não perderia isso por nada no mundo.
- Que diabos, Paul, isso é como no meu sonho. Você não vê? Todo mundo está morto.
Paul levantou os olhos da câmera, dando o sorriso de garotão. - Nem todos, princesa. Só você.
- Não faça isso. - disse ele.
- Ou você está trabalhando para o cara desse lado, ou o serve do outro lado. Você pode morrer, se quiser, mas eu prefiro ser o próximo Alfred Hitchcock, como Korban
me prometeu.
- Não estou morto, seu idiota miserável.
Paul riu. - Como queira.
Adam olhou para sua mão, que segurava a manga da camisa de Paul.
Os dedos passavam pelo tecido, agarrando o vazio. Ele colocou a mão no peito. Quando mesmo que seu coração parara de bater?
Jesus amado, tenha piedade de mim, quando meu coração parou de bater?
Paul apontou para o parapeito e para o caminho pavimentado à frente da casa. Adam não pôde se conter e olhou.
Havia uma forma, lá embaixo, torcida, rasgada e quebrada. Dois metros de comprimento, vestida com um pijama cinza, escurecida com líquido. A forma estava mortalmente
imóvel.
E só. Terrivelmente só.
CAPÍTULO 68
Spence colocou um dedo trêmulo sobre a Royal. Os fantasmas passavam por ele, a carne nebulosa gelando o quarto. Roth havia ido embora, Bridget estava perdida em
algum lugar.
Spence pressionou uma tecla.
F.
A única e verdadeira Palavra, se desvelando, mostrando a pele dourada, abrindo a carne para ele. Um convite para entrar.
A agitação dos fantasmas fez as páginas do manuscrito voarem enquanto as formas brancas se infiltravam no teto. O maior trabalho de todos os tempos. Eles podiam
levá-lo de volta à sala de aula de Aileen Foxx, mas dessa vez ele teria algo para mostrar a eles, para calar as pequenas bocas moles e impressionar os olhos cruéis
e sem vida. Ele tinha a prova de sua superioridade.
Suas entranhas doíam, o suor escorria nas axilas, o couro cabeludo latejava. A tensão elétrica dos fantasmas fez o cabelo no dorso de suas mãos se arrepiar. Ele
pressionou outra tecla e um "o" bateu ao lado do F.
Ele pensou que a única e verdadeira Palavra seria algo mais nobre e raro, algo com sete sílabas que apenas os gigantes literários e dicionários saberiam. Engraçado
que a palavra era comum, elementar. Mas as opiniões de Spence não tinham mais peso agora.
Ele era apenas um instrumento, a espada e o cetro, a pena, a pederneira e o aço. A Palavra era o início e o fim das coisas.
Vá para fora congelar e volte em fo...
Ele bateu o "g", chorando ao final de seu trabalho, já sentindo o velho vazio, já sentindo necessitar novamente de Bridget. Alguém para salvá-lo de si mesmo.
Ele olhou para Ephram Korban, para o rosto amável, os olhos encorajadores, os lábios generosos que lhe haviam fornecido cada palavra desse trabalho descomunal.
- Obrigado, senhor. - disse Spence.
Os fantasmas haviam ido embora, agora. Sem distrações. Sem desculpas. Apenas ele mesmo, a Palavra e Korban. Enquanto ele observava, o retrato ficou escuro, como
uma velha televisão se apagando.
Ele procurou as teclas, cego pelas lágrimas, e colocou o dedo desajeitado e imerecedor sobre a letra magnífica.
CAPÍTULO 69
Sylvia sentiu um jato de energia correndo pelas veias, o cansaço escorregando para longe, o doce sumo da juventude derramando-se sobre ela como uma cachoeira de
água refrescante. Ela inclinou a cabeça para trás e riu. Deixe que a Srta. Mamie volte ao pó. Ephram amara apenas uma, aquela que havia feito os sacrifícios. A que
tivera fé. Aquela que havia rasgado o vestido fúnebre ensanguentado da própria filha, que havia quebrado ossos de coruja, penas de corvos, raízes e dúzias de outras
coisas.
A que dera os patuás errados para Ransom. A que construíra a ponte para Ephram voltar para esse mundo por meio das cinzas de mil orações. Aquela que havia pronunciado
os feitiços, que havia enviado a magia para os ventos e trazido Anna, a que fisgara Anna na carne mais profunda de seu coração e a enfeitiçara, deixando-a cega para
que a morte pudesse completar o círculo.
Ah, Sylvia tinha fé, com certeza, e ela desejava todos os frutos dessa fé. Ela desejava Ephram de volta.
Ela se levantou, novamente com dezesseis anos, ansiosa por oferecer a nova virgindade ao homem que roubara sua alma, que havia incendiado a chama eterna de seu coração.
Ela jogou uma pitada do pó sobre a estátua, imaginando aqueles grandes braços amando-a, aqueles lábios rústicos e quentes sobre sua pele, aqueles olhos queimando
dentro dos seus para sempre.
- Fale. - disse a estátua.
Ela sussurrou, tremendo: - Vá para fora congelar e volte em fogo.
CAPÍTULO 70
Com as palavras de Sylvia, as quatro colunas de fumaça das chaminés se insinuaram, adensando- se em um nevoeiro espesso. A fumaça enviou seus dedos esfarrapados
na direção de Anna, costurando entre Mason, Sylvia e a estátua que abrigava parte da alma de Ephram Korban. O busto, que continha o resto do poder invisível e eterno
de Ephram, sorriu para Anna com afeição perversa.
Mason abanou a fumaça com as mãos, mas ela escorregava através dele e os dedos cinzas, iluminados pela lua, rastejaram sobre Anna como vermes enregelados. Eles encontraram
a parte macia de sua garganta e tornaram-se sólidos, apertando em uma força gentil, quase erótica. Ela levantou as mãos para empurrá-los para longe, mas relaxou
sob a carícia insistente.
Seus pulmões queimavam pela falta de ar e uma tontura gélida correu por sua espinha para a base do crânio. Anna tentou falar, Mason a tinha segura pelos ombros e
a balançava, enquanto ela estava parcialmente consciente do movimento na balaustrada. Mas a maré cinza estava adentrando pelos cantos de sua visão, empurrada por
uma grande onda negra de vazio.
Ela não soube dizer quando a mudança aconteceu. A linha havia sido mais tênue do que ela jamais imaginara. Por alguns breves momentos, ela estava em ambos os lados,
viva e morta ao mesmo tempo, mas esse momento passou e ela cruzou a barreira. Ela finalmente se encontrou, seu verdadeiro eu. Ela tornou-se o fantasma que sempre
quis ser.
A dor interior havia sumido. Em seu lugar, um vácuo inquietante, uma ânsia vazia. Solidão. Ela estava morta e ainda não pertencia.
E a morte era igual à vida, porque o mundo era o mesmo: Sylvia sussurrando algo para a estátua, a Srta. Mamie ajoelhada e soluçando, as mãos sobre o rosto como que
tentando segurar a carne no lugar, Lilith flutuando sob o luar, os Abramov sentados com olhos vazios, agora tocando um tom fúnebre, Mason sobre ela, gritando sobre
uma pintura falante, Korban em madeira, sonhos se tornando realidade e todo tipo de loucura. Será que ele não via que nada disso importava?
Morte e vida, as duas eram iguais agora.
Rachel flutuou à sua frente, segurando o buquê. - Sinto muito, Anna. Eu a abandonei. Anna estendeu as mãos para o buquê. Seu corpo caiu ao chão.
- Anna! - Mason pulou em sua direção, tentando segurá-la e amparar a queda, mas o corpo que ela havia abandonado caiu para longe dele. Ela ouviu sua carne tombando
sobre as tábuas do assoalho da balaustrada, mas seu espírito continuou caindo. Através da casa, através desse espaço de negra inanidade que se tornaria seu lar.
A morte não era uma libertação. Morte, pelo menos no entendimento de Ephram Korban, era apenas mais uma prisão, repleta das mesmas sombras e sofrimentos da vida.
Com a diferença que aqui não havia escapatória nem esperança e ainda ninguém a quem pertencer.
- Anna! - A voz de Rachel, um vento gemente de dentro de uma sepultura, um chamado desesperado.
Ainda assim, Anna caiu.
CAPÍTULO 71
Mason segurou Anna nos braços. Seu rosto estava pálido, os olhos vidrados e arregalados. Ele encostou a bochecha em sua boca. Sem respiração.
Sem respiração.
Raiva e medo cresceram dentro dele, as lágrimas queimando nos olhos. Ele olhou para aquela lua estufada e obscena. Ela estava morta. E era culpa dele. Ele havia
falhado.
Ele gentilmente a deitou no chão, limpando o sangue de seu rosto, e virou-se para a estátua. A velha que Korban chamara de Sylvia havia mudado, estava jovem, o rosto
contorcido num sorriso sinistro. Mason ficou de pé, apesar da longa queda além do parapeito lhe deixar tonto e da sensação de estar no topo do mundo torcer suas
entranhas de terror.
- Vá para fora congelar. - Sylvia repetiu, a pele vibrante e fresca ao luar. Anna não havia lhe falado algo sobre gelo e fogo?
Deus, por que ele não conseguia se lembrar? E será que isso importava?
Porque essa estátua, sua criação, sua maldita imagem de sonho, estava de pé sobre a balaustrada como um monstruoso ídolo de madeira, nascido da vaidade, fé e amor.
Sim, amor. Porque Mason havia amado seu trabalho.
- Você me terminará, não é mesmo, escultor? - disse o busto calmamente, aninhado entre os grossos braços da estátua. - Você me ama. Todos me amam.
-Você havia me prometido Anna. - disse Mason.
- Ah, ela. Ela não é nada. Um mal necessário. E você aprenderá que a carne é efêmera, mas o espírito é eterno. Não é verdade, minha querida Sylvia?
- Quando você dá seu coração a alguém, você a possui. - disse a mulher. E apesar de agora possuir uma beleza que rivalizava com a de Anna, as sombras à volta de
seus olhos eram mais velhas que as montanhas Apalaches, escuras, frias e repletas de segredos.
- Então pague seu débito. - disse Ephram - complete o feitiço.
- A tercêra vez é um encantamento. - disse ela - Mas primêro, tem uma promessa que ocê tem que cumprir.
- Promessa? Qual promessa? - A estátua levantou os olhos para a lua e os veios de carvalho brilharam como centenas de diamantes. Geada. Ela havia congelado a madeira.
Gelo e fogo.
Mason não estava certo da conexão entre as duas palavras. Mas ele entendia fogo. A lamparina da Srta. Mamie brilhava perto do parapeito, onde ela a havia deixado
quando Korban surgira. Mason pensou se ele conseguiria pegá-la antes de Korban achar que já era hora de começar a jogar corpos do topo de sua casa.
CAPÍTULO 72
- Anna. - chamou Rachel novamente. Anna abriu os olhos para a escuridão.
A escuridão não era absoluta. Ela piscou.
- Onde estou? - perguntou ela, a voz flutuando como se dita por uma centena de línguas.
- No porão.
- Da casa?
- Todos nós vivemos aqui. - disse outra pessoa, e uma mão estava na sua, pequena e fria.
- Você! - disse Anna - A pequena garota da cabana, a que Sylvia chamou de Becky.
- Você veio nos ajudar. - E a menina sorriu.
- Eu não posso ajudar você. - disse Anna. E agora ela via Rachel, etérea e brilhante contra uma cortina de escuridão.
- Eu tive que esperar você morrer, Anna. - disse Rachel - Você tem o dom, mais forte ainda que o meu. Korban me matou porque sabia que eu era mais forte que Sylvia.
Mas não como você. Quando você estava viva, você tinha a Visão. Mas agora que morreu, você tem a Terceira Visão.
- Terceira Visão?
- O poder de olhar da morte em direção à vida. O poder de nos unir. De manter nossos sonhos, de um jeito que Ephram nunca pôde, porque ele os queria para si. Ele
desejava nossos medo e ódio, mas se esqueceu da fé. Porque nós acreditamos em você, Anna.
- Acreditar. Assim fala a maior mentirosa do mundo. - Ela queria poder rir, mas em sua grande terra de nada e desesperança, um som desses não poderia existir.
- Acredite. - disse Rachel - Torne-se o veículo. Una nossos sonhos, nossos sonhos reais. Deixe nossos sonhos invadirem você, para que possamos finalmente morrer.
- Você quer morrer?
- Mais do que qualquer coisa. - disse a garota.
- Ajude-nos. - disse outra voz vinda da fumaça cinzenta desse novo mundo de morte.
- Livre-nos de Korban. - disse outra e ainda outra mais. Quantas almas Korban havia aprisionado ao longo dos anos? Quantas das poções de Sylvia e feitiços haviam
lançado sua magia de aprisionamento?
- Siga seu coração. - disse Rachel.
- Meu coração. Ele apenas me leva ao inferno.
- Ele pertence aos vivos.
- Não. Eu pertenço a esse lugar.
- Sylvia mentiu, não eu.
- Não confio em nenhum de vocês. Por que deveria acreditar?
- Escute. Não sou sua mãe.
- Você não é minha mãe?!
- O poder de Ephram é que ele permite que você veja apenas o que quer ver. Ele lhe dá o que você deseja. Por que você acha que finalmente pode ver os mortos?
Anna não pensou que seria possível descer a um congelamento maior que a morte, mas a revelação fez sua alma girar. Ela havia sido uma idiota. Como poderia encontrar
seu próprio fantasma?
- Sylvia usou você. - disse Rachel - Ela me usou também. Somos apenas gravetos para serem lançados em seu fogo sacrifical.
- Odiei você. - disse Anna - Quando Sylvia me disse que você era minha mãe, achei que finalmente havia encontrado alguém para culpar. Agora sou só eu e estou tão
perdida quanto sempre estive.
- Sinto muito. Eu quis lhe avisar, mas Ephram me controla também. Tudo o que desejo agora é nunca ter nascido.
-- Isso vale para mim também. - disse Anna.
- Você não está só, Anna. Algo aconteceu. O feitiço de aprisionamento foi quebrado.
- As bonecas. - disse Adam.
- Adam? - perguntou Anna. Seus olhos da alma não podiam vê-lo nas sombras. - Você está morto?
- Eles dizem que estou, então devo estar.
- O que tem as bonecas? - perguntou Rachel.
- A Srta. Mamie as fez. - disse Adam - Entalhadas, com pequenas cabeças de maçã. Eu vi a minha, apenas não sabia do que se tratava. Acho que ela esculpiu uma para
cada um que morreu.
- Ela está morta. - disse Anna - Acho que ela nunca esculpiu uma para si.
- Então ela não pode mais nos prender. - disse Rachel - Estamos livres.
- Não livres. - disse Anna - Não até que Ephram tenha sido morto pela derradeira vez.
- Salve-nos. - disse Becky.
- Tire-nos daqui. - disse Adam.
- Você é a escolhida. - disse Rachel - Você foi trazida para cá por um motivo.
Outras vozes vieram da escuridão à volta, implorando, encorajando. Anna sentiu a energia delas fluindo para si, uma corrente de calor que rodopiou seu coração morto.
- A Terceira Visão, Anna. - disse Rachel - Não sou sua mãe, mas estaria orgulhosa se fosse. Porque você é forte. Até mesmo mais forte que Ephram.
- Não sei. - disse Anna - O que devo fazer?
- Diga. O que Sylvia lhe ensinou. Só que de trás para frente.
- Gelo e fogo?
- Sim. E acredite nisso. Os vivos permanecem vivos, os mortos se vão.
Vivos. Talvez viver não fosse assim tão ruim, mesmo com dor, pesar e fracasso. Mas pelo menos a vida oferecia esperança, segundas chances, escolhas. O que era essa
dor que crescia em sua alma agora? A dor da esperança, o desejo de uma carne esquecida, o arrependimento das coisas por fazer e das palavras não ditas?
Ela pensou em Mason na balaustrada, enfrentando o monstro de madeira que havia feito, um monstro que assombraria essa montanha como nenhum fantasma conseguiria.
Assombraria como um deus, com raiva, poder e arrogância, como se todas as coisas vivas lhe pertencessem.
- Saia o fogo, entre o gelo. - disse Rachel. - Diga isso.
Anna abriu a boca morta e sonhadora. Dezenas de vozes se juntaram à dela, Becky, Adam, Rachel, todas se unindo em um coro, um cântico de esperança, uma ânsia pela
liberdade final. - Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo.
Um, uma linha que divide...
Dois, um gancho vazio...
Três, forcado de inglês...
A terceira vez é um encantamento, abrindo a porta. Para um aposento de esperança. Uma casa de fé. Uma casa para a alma de Anna Galloway.
Ela era Anna. Ela estava viva.
Ela abriu os olhos, viu o círculo alvo da lua, sentiu o frio de outubro na pele, sentiu o sabor da fumaça que saía das chaminés, sentiu o cheiro das folhas apodrecidas
levado pelo vento, ouviu o distante rugir do coração de Ephram Korban. Ela colocou a mão sobre o próprio coração. Batendo. Em ritmo com o dele. E com o dos espíritos
que ela carregava dentro de si, as esperanças e sonhos combinados dos mortos descontentes.
Combustível.
Ephram desejava combustível, ela lhe daria combustível.
Ela se levantou e, apesar de seu corpo ainda estar deitado sobre a balaustrada, ela não precisava de carne para sua tarefa. Tudo o que ela precisava era a fé de
seu espírito. Porque ela finalmente havia encontrado algo ao qual pertencer, algo que lhe oferecia mais que apenas uma escuridão sem fim, algo maior que ela mesma.
Sua casa estava cheia e Korban era uma casa dividida. Presa entre gelo e fogo.
CAPÍTULO 73
A Srta. Mamie se levantou, o corpo cadavérico e seco.
Onde estava sua a carne, a beleza que Ephram lhe havia dado? Ela queria um espelho, porque espelhos nunca mentiam. E nem Ephram. Porque Ephram a amava. Ele a havia
matado por alguma razão, com certeza.
Talvez o amor deles teria lugar do outro lado, não no lado mortal. Aquilo era a única coisa que fazia sentido. Ela ainda tinha olhos, podia ver o mundo mortal e
podia sentir todos os estranhos sabores da morte, e a morte era igual a vida, apenas melhor.
Ela iria para Ephram agora, sob seus termos, do modo como ele a havia criado. Mas por que Sylvia ainda estava viva? E novamente jovem e bela?
Ephram poderia explicar tudo isso. Afinal, eles teriam a eternidade para isso.
Ela caminhou na direção dele, apesar de seu espírito estar costurado ao céu noturno , pesado e espesso, e ela lutou para caminhar sobre a trama de escuridão.
Uma aura desfocada brilhava sobre os cortes grosseiros dos ombros da estátua. Ephram elevou o busto de bordo como se fosse um troféu, mostrando-se para o mundo,
mostrando para o mundo o homem que possuía os dois lados.
- Manda ela embora. - disse Sylvia para ele - Aí eu termino o feitiço.
- Sylvia. - disse Ephram, a estátua e o busto falando em uníssono. - Eu lhe dei tudo.
- Quero isso mais que tudo o resto. Não vai sê bastante ter seu coração. Quero ela fora do seu coração pra sempre!
- Você foi a única que amei.
- Sim, mas isso é a mesminha coisa que ocê falô pra ela. Mas ocê mentiu pra uma de nós. A Srta. Mamie lutou contra a gravidade que a empurrava para a escuridão.
Túneis da alma, Ephram havia dito que todos tínhamos túneis da alma. Qual é o meu, Ephram? O que eu temo mais que tudo na vida?
Sylvia olhava com grandes olhos apaixonados para o belo tronco de carvalho. Seus feitiços haviam trazido uma horda enevoada, juntando-se à volta da estátua como
adoradores aos pés de um profeta renascido:
Ransom, confuso e triste, os dedos remexendo no patuá que não tinha poder. George Lawson, oferecendo a mão decepada como um tributo.
Os Abramov, os instrumentos esquecidos, a música ainda sendo tocada sozinha. Lilith, brilhando mais e menos, como uma pintura inacabada.
William Roth, aranhas saindo pelos olhos.
O busto sorriu para o céu noturno . - Adeus, Margaret.
A Srta. Mamie moveu a mão para o medalhão. Mas ele havia desaparecido. Estava junto do vestido vazio e o pó do corpo decomposto. Então ela percebeu que já se encontrava
em seu túnel. Porque esse era seu maior medo, e agora ela veria seu amor indesejado esvaindo-se em um ralo escuro, seu sacrifício recusado, um século de promessas
resultando em nada.
Ela sentiu a alma se esvanecendo ao vento, para ser carregada na direção das montanhas, onde Ephram estaria sempre fora do alcance.
CAPÍTULO 74
Não mesmo.
Nem em um milhão de anos!
Mas Mason não podia negar. O corpo de Anna havia tremido ao seu lado. Os cílios se agitaram.
O peito elevou-se levemente por baixo da mancha de sangue que Mason lhe havia deixado na camisa. A respiração resfriou o suor na palma de sua mão. Ela estava de
volta.
E mesmo no medo e estarrecimento, um jato de prazer correu por seu sangue, uma felicidade como ele nunca havia sentido. Isso tudo era um sonho maluco, tinha que
ser, mas os sonhos eram tudo agora.
Mason olhou para a adorável madeira avermelhada da estátua que ele havia feito, para os espíritos à sua volta, para o busto de bordo que exigia que Sylvia terminasse
o feitiço.
Os olhos de Anna se abriram, as íris não mais azuis. Eram vermelhas, então amarelas e laranjas, brilhando em todas as cores do fogo.
E ela se levantou, exceto que o corpo continuou sobre o piso da balaustrada. Ficou de pé. Um fantasma, mas ainda assim seu corpo respirava.
Ela estava em ambos os lados ao mesmo tempo, morta e viva.
- Ela... ela não devia de voltar! - Sylvia gemeu, voltando a se curvar como uma velha, apesar de sua juventude. - Ocê matô ela como matô Rachel!
- Eu preciso dela. - disse Korban - Ela é parte da casa. Agora termine o feitiço. Eu mantive minha promessa. Margaret se foi.
Os lábios vivos de Anna se abriram em um glorioso meio sorriso, as palavras escorrendo como um coral de vozes moribundas: - É o fogo, Mason.
Ele tocou no queixo dela, quente com o calor humano. - Você confia em mim? - murmurou ele, o tipo de coisa que diria apenas em um sonho. Mas não tinha mais nada
a perder.
Talvez isso fosse a arte verdadeira, a criação que lhe dava retorno, o trabalho que completava a si mesmo. Essa era a maior de todas as imagens de sonho.
- Talvez. - disse Anna - O Fogo.
"Talvez" era o suficiente para arriscar tudo. Mason sabia o que tinha que fazer, o que deveria ter feito muito tempo atrás. Ele abaixou-se para a lamparina, vendo
os olhos de Anna em suas chamas intoxicantes.
CAPÍTULO 75
Oh, Deus, algo estava errado.
Sylvia jogou o pó do patuá sobre Ephram e pressionou o vestido fúnebre de Rachel sobre seu coração.
Anna não deveria ter voltado. Ela tinha que estar morta e assombrando a casa, servindo Ephram, servindo com seus sangue, energia e poder. Mas lá estava ela, respirando,
piscando e sussurrando com o escultor.
E os olhos de Anna não estavam corretos. Pessoas demais olhavam por eles, todos furiosos como cobras presas em uma caixa.
Ela faria com que ele se livrasse de Anna também, do mesmo modo como se livrara da Srta. Mamie. E de Rachel. Ela ficaria livre de todas elas. Apenas ela e Ephram.
Ela estava ansiosa para testar o novo corpo. Um século de espera era tempo demais. Ela gastara dez mil feitiços nesse homem e era hora de um pouco de compensação.
O belo busto abriu a boca. Seria esquisito beijar aquela coisa, fazer amor com uma estátua que nem tinha todas as partes ainda, mas sempre diziam que o amor achava
um jeito. E ela teria a eternidade para aprender como domá-lo para sempre e ensiná-lo o valor de seus encantamentos, invocações e feitiços. Ser desejada para sempre.
Ela abriu a boca para dizer o feitiço a última vez.
- Vá para fora congelar e volte em...
CAPÍTULO 76
Anna sabia que esse era o momento, o tempo da encruzilhada eterna. O momento para os fantasmas morrerem.
- Aqui vai o seu maldito fogo! - gritou Mason sobre a música louca e as folhas esvoaçantes. Ele agarrou a lamparina, a carne da mão chiando, e pulou na direção de
Ephram, gritando na direção do céu. Levantou a lamparina sobre a cabeça e jogou-a na direção da estátua.
Anna liderou o salto para fora do corpo, o espírito um canal para os sonhos aprisionados e esperanças perdidas de todas as almas penadas.
Combustível.
A lanterna se quebrou na estátua, o óleo espesso embebendo o carvalho, as chamas azuis, vermelhas e laranjas lambendo a forma desequilibrada de Korban. Uma língua
de fogo correu sobre seu braço, ateando fogo ao busto de bordo. Gritos gêmeos rasgaram a noite enquanto o fogo crescia rugindo, açoitado pelo fogo ensandecido.
O peito de Anna esvaziou-se enquanto os fantasmas torturados do solar passavam através dela, voavam sobre as tábuas da balaustrada e enxameavam à volta de seu odiado
mestre. Seu combustível alimentou dez vezes o fogo, vinte vezes, enquanto a estátua tombava e dançava em agonia. O busto caiu ao chão, os lábios arregaçados em uma
dor infinita. Mason chutou-o na direção da estátua, de volta para a coluna infernal de fogo.
Anna afastou-se cambaleando, livre de todos os espíritos, a não ser o seu. A luta era estonteante demais para se observar, mesmo com Segunda ou Terceira Visão. Uma
fumaça ácida saía pelas chaminés do solar, faíscas vermelhas e brilhantes voando pelo ar.
O solar oscilou, as paredes se curvando e estalando, as vigas quebrando como ossos secos. As empenas gemeram na angústia do colapso. Línguas de fumaça derramaram-se
pelas portas e janelas, enrolando-se nos pilares e escurecendo o céu.
Korban girou na escuridão em uma valsa enlouquecida de morte, Sylvia ajoelhando-se a seus pés, os vivos e mortos tentando desordenadamente escapar do fogo que ardia
em ambos os lados da linha divisória entre a vida e a morte.
CAPÍTULO 77
Uma parede de chamas cruzava a balaustrada, cortando a fuga pela portinhola. Mason semicerrou os olhos contra a fumaça, os nervos da mão chamuscada gritando em ondas
alternadas de dor vermelha e laranja, a cabeça e o braço em agonia pelos machucados. Ele caminhou tropegamente até o parapeito e olhou para baixo, a escuridão lhe
dando vertigens.
Uma mão o tocou e ele se virou, pronto para se render, para deixar Ephram Korban tragá-lo para dentro de seu pesadelo interminável.
Era Anna.
- As árvores. - disse ela - Acho que conseguiremos alcançá-las.
- Eu não consigo. - disse ele, a garganta seca. - Alturas.
- Todos temos que enfrentar nossos medos cedo ou tarde. E você acabou de queimar sua obra-prima. O que mais você tem a perder?
- Você.
- Certo, então. Venha, pois eu sou egoísta demais para sobreviver a esse inferno todo sozinha.
Ela subiu no parapeito no ponto mais distante possível das chamas. Um choupo balançava-se nas correntes de ar geradas pelo fogo, os galhos roçando o parapeito. Vidro
quebrou-se abaixo, as chamas explodindo para fora das janelas e rugindo pelas bocas das chaminés. A casa toda oscilava e rachava com os espasmos da destruição.
- Ephram Korban. - disse Anna - Ele está morrendo junto com a casa.
Ela agarrou os ramos, puxou-se na direção da árvore e virou-se para Mason. - Depressa!
Ele tomou a mão dela, fechou os olhos e lançou uma perna à volta do ramo grosso. Seu estômago se contorceu, sentindo o espaço abaixo dele, a longa e profunda abertura
entre seu frágil corpo e o chão...
Não pense, Mason.
Ela voltou dos mortos e você está preocupado com uma coisinha à toa como cair daqui.
Mas não era com a queda que ele estava preocupado, mas sim com a aterrissagem. O morrer. Porque ele havia visto os olhos ocos e ausentes daqueles que haviam contemplado
os túneis negros. Ele preferia a cegueira a qualquer daqueles horrores escondidos, aqueles segredos de sua alma que chafurdavam muito longe da luz.
Ele caminhou precariamente sobre o ramo, a mão dela segurando sua camisa ensanguentada e, no momento que eles alcançaram o tronco, ele estava segurando a sua também.
As paredes estavam desabando. Era o fim. Spence olhou para o papel, para a Palavra.
F-o-g-o.
Chamas se infiltraram por entre as frestas do assoalho, a fumaça irrompeu da lareira. A vidraça se estilhaçou para fora e as chamas jorraram por debaixo da porta
do closet como água colorida.
Uma voz aguda gritou através do estalar do fogo: - Saia, Jeff!
A Musa? Ele olhou de sua mesa, confuso. O trabalho era lindo. Deslocado desse caos maligno, dessa destruição, desse inferno Dantesco. Mas a Palavra - a palavra não
poderia ferir seu criador, poderia?
Ele estivera enganado. A Palavra mentira. Korban havia mentido.
O escritor era o mestre. A linguagem sua escrava.
O quarto estava tomado pela fumaça agora. Bridget, gritando do corredor, abaixou-se fora de vista. Spence inclinou-se para frente, as molas da cadeira rangendo.
Ele tentou pegar o manuscrito, mas labaredas famintas subiram pela parte de trás da escrivaninha.
Ele ficou de pé, os olhos turvos e os dedos insensíveis. A fumaça entrou por suas boca e garganta, enquanto ele começou a se mover para a porta. Ele não podia deixar
seu manuscrito. Virou- se com esforço, tonto com a falta de oxigênio. As páginas haviam se tornado uma fogueira, as sentenças virando vapor, a Palavra perdida no
calor de sua própria mentira gloriosa.
Spence cambaleou até o dormente da porta, uma pontada de arrependimento no peito. Ele não havia pressionado a tecla do ponto final. Ele não havia terminado seu manuscrito.
Ele tentou novamente retornar para o quarto, mas o teto estava desabando, a casa entrando em colapso, a máquina de escrever perdida numa maré de amarelo e vermelho.
O fogo sugou o oxigênio pela janela e uma brisa escaldante enviou uma folha de papel pela porta. Spence a agarrou, segurando-a de encontro ao peito.
Chorando, ele se arrastou pelo corredor, tossindo e cuspindo.
CAPÍTULO 78
- ... fogo. - murmurou Sylvia, terminando de pronunciar o feitiço, apesar de agora ser muito, muito tarde.
Todos aqueles anos de espera, de sacrifício, de decepções estavam perdidos. Os anos que Ephram lhe tinha dado de volta, os anos roubados de Margaret, estavam sumindo,
recuando para o passado. Por direito, eles deveriam ser seus. Ephram deveria ter sido seu.
Seu amante de madeira se contorcia e se curvava sobre a balaustrada queimada e descascada. Por trás da parede de chamas, ele havia perdido um pouco de sua majestade.
Mas ainda tinha poder, aquele magnetismo que a havia levado a sacrificar tudo por ele. Ele estava morrendo novamente, a terceira e última vez, e precisava dela.
Ela sentiu isso de forma tão intensa quanto sentiu o cabelo encolhendo com as chamas e a umidade da pele evaporando com o calor.
- Sylviaaaaa!! - rugiu ele, ou talvez tivessem sido apenas as línguas de fogo.
Ela se arrastou em sua direção, para dentro do fogo. Ao contrário da última vez que vira Ephram, dessa vez o fogo queimou seu corpo e sua alma.
Quando as chamas lhe roubaram a respiração, enquanto os olhos secaram nas órbitas e o cérebro ferveu, ela compreendeu que a possessão funcionava para os dois lados.
Quando você dá seu coração a alguém, essa pessoa possui você. E você a possui em retorno.
Para os dois lados. Gelo e fogo.
E dor, uma agonia congelante de dor. A coisa chamada amor. Uma coisa suicida e assassina.
CAPÍTULO 79
Anna desceu, trançando por entre os galhos. Mason estava logo atrás, descendo com um cuidado nervoso. O calor do solar rugia sobre ela, pedaços de madeira e cinzas
voando na ventania do incêndio. A sensação a lembrou de que estava viva, de que a morte que ela recepcionara com carinho era agora uma coisa contra a qual lutava
para fugir. Talvez estar vivo significasse nada mais que lutar para ficar distante da morte.
Talvez.
Ou talvez Rachel estivesse certa. Você deve viver para algo maior que si, pertencer a algo que valha a pena. Então você se torna merecedor de seu descanso.
- Segure-se, Mason, estamos quase chegando.
- Ótimo. Porque eu acho que a casa está ruindo.
Eles finalmente alcançaram o chão, Mason cambaleando, fraco pelos ferimentos. Ela lhe deu suporte, levando-o através do jardim do solar, para longe. O calor havia
derretido a geada e a grama estava molhada, o vapor elevando-se. Quando alcançaram uma distância segura, ela e Mason caíram ao chão, livrando os pulmões da fumaça,
observando a pira funeral de Korban conforme estendia seus longos dedos na direção da lua.
As grandes estruturas enegrecidas da casa delineavam-se contra o céu e Anna viu o rosto de Korban nas chamas, centenas de vezes o tamanho original, encarcerado em
seu próprio túnel negro, aquele no qual seus sonhos morriam, onde seus servos o abandonavam e onde seu coração se transformava em cinzas. O túnel no qual ele não
tinha nada e no qual seu trabalho permanecia para sempre inacabado.
As grandes empenas dobraram-se, os parapeitos caindo para os lados. As colunas iônicas quebraram-se e o pórtico desmoronou com um trovão. As janelas jorravam chamas,
as paredes amontoadas umas sobre as outras, o piano lançando um acorde metálico quando caiu no porão. Vidros quebravam, chamas rugiam e a fumaça afunilava-se para
o topo da casa como uma garganta maligna no fim do mundo.
- Olhe! - disse Anna, apontando para o outro lado do pátio coberto de geada, na orla da floresta. Pequenas bonecas de madeira moviam-se entre as sombras.
- Alguns deles escaparam. - disse Mason - Eles estão vivos, não é?
- Claro. - Ela se deu conta de que sua Segunda Visão havia sido cegada, de algum modo, havia perecido junto com os fantasmas de si mesma que ela havia dado a Ephram
Korban.
Havia se livrado de um fardo.
Cavalos galopavam pelo campo, relinchando de pavor. Então a noite foi dilacerada por um guincho hediondo que ecoou sobre as montanhas. O chão tremeu, as árvores
curvaram-se para trás e o celeiro ruiu. As cercas também caíram, brilhando como ossos úmidos ao luar.
- Ele está levando tudo consigo. - disse Anna.
- Isso significa que ele está...?
- Morto? Se é que sabemos o que isso pode significar agora.
Ele colocou seu braço à volta dela e ela relaxou contra ele, agradecida pelo seu calor. - Acho que é tudo um sonho. Mas sonhos não são grande coisa. Acho melhor
estar acordado.
- Eu tambem.
Eles se sentaram na grarna, observando o fogo diminuir, e esperaram o alvorecer.
CAPÍTULO 80
- A ponte se foi. - disse Cris - Não sobrou nada, a não ser alguns troncos na borda do penhasco.
- Não estou surpresa. - disse Anna - Korban levou com ele tudo que lhe pertencia. Um maníaco por controle até o final.
O sol da manhã elevou-se sobre as montanhas, derretendo a geada restante e um nevoeiro elevou- se do chão como uma alma penada, juntando-se às últimas colunas fumarentas
dos escombros do solar. Anna e Mason se sentaram sobre montes de feno, junto com Zainab e Paul. Anna havia atrelado dois cavalos a um abrigo próximo, enquanto os
demais e o gado pastavam no pomar, não mais contidos por cercas das doces lâminas da grama de outono. Porcos chafurdavam próximos ao limite de uma pequena lagoa
ao pé do declive e as corruíras cantavam como se o mundo houvesse sido renovado.
Anna olhou para Mason novamente. Ele segurava a mão dentro de um barril de água, onde um cano derramava água fria das encostas. Ele estava com queimaduras de segundo
grau. Provavelmente ficariam cicatrizes, mas os ferimentos eventualmente se curariam.
TUDO eventualmente se cura, pensou Anna. Mesmo que você não tenha o poder de patuás, feitiços e ervas. Ou o poder sobre a vida e a morte.
Paul rasgou uma faixa da cintura da camisa, mergulhou-a na água e a amarrou à volta do ferimento do braço de Mason. - Fui escoteiro. - disse ele.
- Sênior? - gemeu Mason.
- Não, lobinho.
- Sinto muito pelo seu amigo.
- É, vou lidar com isso depois que parar de mentir para mim mesmo. Depois de entender o que aconteceu.
- Todos temos a nossa culpa com a qual lidar. - disse Mason - E aprendemos com nossos erros.
- Eu com certeza gostaria de ter salvo minhas filmagens. Poderia ter ficado rico e famoso. Quem vai acreditar nisso tudo agora?
- Você não ia querer nenhuma prova disso. - disse Mason - E se se der conta do que tem que pagar para atingir o sucesso, não é tanto assim.
- Ele está em choque? - perguntou Anna a Paul.
Paul olhou nos olhos de Mason e então mediu seu pulso. - Não. Talvez meio desequilibrado, mas...
- Você não vai se livrar de mim assim tão fácil. - disse Mason.
- Ficar em choque não é algo tão ruim. - disse Anna - É o melhor amigo de um soldado moribundo.
- De onde diabos veio isso?!
- Não sei. Só pipocou em minha cabeça.
Paul ficou de pé e esfregou os olhos. - Acho que estamos todos sofrendo de desorientação. Ou talvez de histeria. Porque minha câmera não mentiu para mim.
- Tudo teve que ir. - disse Anna - Porque tudo pertencia a Ephram Korban.
- Então como vamos provar que tudo isso foi real?
- Acho que não vamos querer provar nada. - disse Mason.
- Estou curiosa para saber se eles viram a fumaça no vale. - disse Cris.
- Provavelmente não. - disse Anna - Já estaríamos ouvindo a sirene de um helicóptero da Guarda Florestal, a essas alturas.
Era estranho ser lembrado de que havia outro mundo além do topo dessa montanha, um mundo de sanidade e ordem, onde os mortos permaneciam sob a terra, na maioria
das vezes, e as pessoas ficavam à deriva em suas próprias vidas. Anna ficou de pé, caminhando em direção aos escombros do celeiro. - Foi uma boa coisa que o departamento
de incêndios florestais não chegasse aqui a tempo de apagar o incêndio. Dessa forma, nada de Ephram restará por aqui.
- Contaremos a eles, então? - perguntou Mason - Quero dizer, o que realmente aconteceu?
- Tenho uma teoria. - disse Anna - Mas uma teoria é tão útil nessa situação quanto um palito de fósforo no inferno. Supostamente, existem algumas antigas trilhas
que descem pelo lado da montanha. Vou achar uma, descer a cavalo até o rio e depois segui-lo até encontrar uma estrada.
- Precisa de companhia? - perguntou Mason.
- Não do tipo que fica tonta com alturas. Além disso, você precisa se cuidar.
- Vou com você. - disse Zainab.
Anna balançou a cabeça. - Não. Precisam de você por aqui. E tenho uma boa experiência com cavalos. Vou mais rápido se for sozinha.
Paul concordou com a cabeça. - O escritor está com problemas para respirar. Engoliu fumaça demais. Boa sorte, Anna.
Paul, Cris e Zainab caminharam pela estrada na direção de onde Spence e Bridget estavam, próximos à fundação da casa como fantasmas que se sentiam obrigados a assombrar
o lugar. Mas não existiam mais fantasmas no Solar Korban. Todos haviam partido, para qualquer que fosse o destino que lhes estava reservado antes de a Srta. Mamie
trancafiá-los dentro das bonecas toscas e Korban sequestrar seu voo noturno rumo à eternidade.
O Solar Korban era nada mais que uma pilha de cinzas, carvão e brasas. E Korban não era nada, apenas uma lembrança incinerada, um fulgor na panela cósmica. Um sonho
já meio esquecido, mais esquecido a cada segundo que passava, e Anna tinha certeza de que o magnífico mausoléu de mármore continha apenas um punhado de pó, as palavras
Chamado cedo demais desgastadas como a mentira que eram.
Antes do nascer do sol, ela caminhou até Beechy Gap e visitou o local onde vira as estranhas figuras entalhadas. A cabana havia sumido, uma pequena pilhas de cinzas
marcando sua existência.
As figuras deviam ter deixado de existir, também, dirigindo-se para os céus em fogo e fumaça. Livres afinal.
Anna procurou cela e arreios entre os escombros do celeiro. Levantou uma tábua quebrada e viu a face branca de Ransom, uma trilha de sangue seco no canto da boca.
O pedaço de pano de seu patuá estava firmemente preso entre os dedos da mão rígida. Ela o cobriu antes que Mason o visse.
Os mortos mereciam respeito. A morte não era romântica ou glamourosa. Ela estava cansada de se preocupar com seus motivos, esperanças e sonhos infindáveis. Sua fascinação
havia desaparecido. Ela não tinha mais desejo de algum dia ver um fantasma, especialmente o dela.
Mesmo Rachel, apesar de que as duas haviam compartilhado uma conexão íntima muito mais profunda que a de uma mãe com a filha.
Talvez esse tenha sido o modo pelo qual Anna estava destinada a pertencer. Aquele era seu povo, sua conexão, um parentesco espiritual, não importa o quão breve.
De um modo esquisito, talvez eles estivessem habitando seu interior, seu sangue, nas células cancerosas que devoravam seus órgãos e a empurravam inexoravelmente
rumo à escuridão final. Ela era um fantasma tanto quanto uma mortal. Uma estranha em duas terras estranhas.
Mas todos eles eram. Cada coisa orgânica que algum dia aspirou a fagulha da vida. A morte começa com o nascimento.
E daí?
Será que ela realmente esperava que, tornando-se um fantasma, compreenderia o que era tornar-se um? Ela havia vivido por vinte e seis anos e nem sequer se aproximara
do sentido da vida nesse período. Por que a morte deveria ser um mistério menor para aqueles que a experimentavam?
No tocante ao agora, o ar estava fresco e a dor interna ao redor de seis, um nove no espelho, ou talvez um cinco, uma pequena foice. Uma enorme distância de um zero.
Ela poderia viver por aqueles que haviam partido e por aqueles que ainda estavam por vir. Semanas ou meses, tudo era um precioso e efêmero presente.
Anna viu um brilho prateado entre os escombros, moveu algumas vigas e encontrou rédeas, logo em seguida uma cela e cobertores. Ela os retirou do entulho. Mason observou
com interesse enquanto ela arreava um dos cavalos.
Um pouco da fumaça que ela respirara se acumulou nos pulmões e começou a subir. Ela limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - É assim que eles fazer em Sawyer Creek?
Mason sorriu. Não era um sorriso assim tão ruim, apesar do rosto estar manchado de fumaça, cinzas e cansaço.
Ela carregou o cobertor até ele e o colocou sobre seus ombros.
- Melhor você ficar aquecido, melhor prevenir. - disse ela.
- Vá para fora congelar?
- Isso não é engraçado.
- Eu sei.
CAPÍTULO 81
Spence pegou um pedaço de cinza enegrecida enquanto se sentava no chão. Não. Não era a Palavra.
Ele pegou outro e mais um.
A Palavra resistiria. Um simples fogo não poderia destruí-la. Ele tossiu. As cinzas haviam se grudado às suas lágrimas, deixando o rosto grosso e empelotado. Ele
tossiu novamente, o estômago se agitando.
- Por que você não vai para longe desse lugar? A fumaça não lhe faz bem. Ele se virou. A Musa?
Não. Briget, a Miss Pêssego da Geórgia, sua última sacanagem.
- Seu fanfarrão idiota. - disse Bridget. - Fique feliz que aquela porcaria se queimou. Talvez um dia você possa escrever uma história de verdade, algo que não se
pareça com merda de cavalo.
Real? Como ela ousava criticar...
- E você pode me deixar de fora dela. - Ela se afastou, parou e se virou, com a mão sobre a boca. - Não sei o que vi em você. Mas com certeza agora consigo lhe ver
com clareza.
- Não me deixe!
- Acredito que você mencionou que essa é sua parte preferida. "FIM". Bem, acho que aprecio ela também.
Spence a observou se afastando. Ela não importava. Era apenas outra muleta, um esboço de personagem. Alguém do populacho. Ele ficou sob a chuva de cinza e negro,
esperando a Palavra pairar sobre ele.
Talvez se ele conseguisse se lembrar da história, trazê-la novamente à vida, ela o levaria novamente à Palavra.
Algo sobre a noite? Ele tocou na folha de papel amassada dentro do casaco. Talvez depois, após se passarem alguns anos, ele seria capaz de lê-la. E talvez ela contivesse
alguma pista do longo encanto da noite.
Mas a noite estava partindo, retirando-se na direção das montanhas azuladas, encaminhando-se para outros escritores, outros veículos. Ela lançaria sua capa amorosa
em outra parte do mundo, lançaria seus dons em outras paragens, sussurraria sentenças secretas. E Spence estava novamente só, com nada mais que suas palavras.
As cinzas continuaram a chover.
CAPÍTULO 82
Mason tentou curvar os dedos da mão direita queimada. Um choque de dor subiu pelo braço, parando brevemente no corte do ombro, apenas para ganhar impulso antes de
atingir o cérebro. Ele mordeu a língua para evitar gritar.
Talvez isso fosse o significado de sofrer, afinal de contas. A arte do sacrifício. Não era sobre resistir à inanição, lutar por reconhecimento, lutar contra o medo
do fracasso. Talvez fosse sobre acabar e deixar ir embora. E se dar conta de que os sonhos que você traz à vida algumas vezes não tinham lugar no mundo real e era
melhor deixá-los quietos no mundo dos sonhos.
Os críticos mais severos não estavam em Nova Iorque ou Paris. Eles não estavam nas escolas de arte e não vestiam boinas, ostentavam cavanhaques nem bebiam expressos.
Algumas vezes, eles viviam em seu espelho.
- Como você está? - perguntou Anna, apertando o arreio à volta da barriga do cavalo. Ela tinha mãos fortes.
- Bem, acho que não vou poder esculpir por um tempo. - Mason pensou nas ferramentas, enterradas em algum lugar sobre as camadas de cinzas e ossos no porão. Ele não
tinha vontade de vê- las novamente.
Anna concordou com a cabeça, ajustou a cela e acariciou as orelhas do cavalo, que bufou de prazer.
Ele tinha que perguntar. - Como foi... você sabe?
- Estar morta? - Os olhos azuis fixaram-se em um ponto distante além do alcance da vista.
- Aham.
- Alguém que me ama disse que é igual estar viva, só que pior.
Mason olhou para a coluna de fumaça. O vento a estava empurrando para longe e ele sentiu o cheiro de maçãs. Agora que o sol havia saído, o céu estava azul como só
ficava no inverno.
Dezembro chegaria com a neve suave, as noites ficariam curtas novamente e a primavera chegaria. Grama cresceria sobre as ruínas, vinhas se enrolariam nos pilares
enegrecidos. O granito dormiria debaixo da pele de terra. O sol nasceria e se poria, as estações seguiriam seu curso, os ponteiros incansáveis dos relógios girariam
apenas em uma direção.
Adiante.
- O que pretende fazer depois? - perguntou Mason.
- Não sei ainda. Acho que estou curada da metafísica. Deixe os mortos descansarem. Eles mereceram. - Ela colocou um pé no estribo e montou no cavalo. Era uma combinação
natural.
- E você?
- Depende. Assim que chegar a Sawyer Creek, vou dizer a Mama que os sonhos não são a única coisa que temos nesse mundo.
- Verdade? O que mais temos?
- Dor.
- Sonhos e dor. Que mistura adorável. Talvez você possa adicionar “fé” a sua lista.
O tipo de mistura da qual talvez o amor fosse feito.
Mason pensou se algum dia descobriria. Ele olhou para o chão e viu um pouco de cor no meio de uma pilha de feno solto. Ele chutou o feno para longe e, então, viu
flores. Um buquê de flores do campo. Flores da montanha, recém-colhidas e doces, os talos envolvidos em uma fita limpa. Ele o entregou para Anna. - Alguém deve ter
deixado isso para você.
Ela pegou o buquê e o cheirou. - Os mortos permanecem mortos. - murmurou ela. - E que descansem em paz.
Anna entrelaçou o buquê no bridão, relaxou as rédeas e o cavalo levantou a cabeça.
- Vejo você em breve, Mason. Cuide-se!
Ela sacudiu as rédeas e o cavalo iniciou a jornada pela estrada de terra.
- Ei, Anna! - gritou ele - Você estava falando sério quando disse aquilo lá na balaustrada?
Ela não parou, mas virou-se na cela e olhou para trás. Ela gritou sobre o ruído ritmado dos cascos do cavalo. - Sobre confiar em você? Talvez!
Anna deu-lhe um meio sorriso e o deixou pensando para qual das perguntas a resposta era talvez.
Enquanto Sylvia corria pela floresta escura, os ramos de louros a atingiam e suas garras de madeira se emaranhavam no longo cabelo ondulante.
Não era sua culpa, entretanto. Mamãe estava com febre e Papai estava nas montanhas com um carregamento de maçãs. Sylvia tinha que tomar conta dos dois irmãos pequenos,
tinha apenas dezesseis anos, estava presa nessa montanha idiota e a vida não deveria ser tão injusta.
Ela tropeçou em uma raiz e quase caiu. Segurou a barra da saia de linho grosso e correu por entre as árvores, as sarças chicoteando-lhe os joelhos. Era apenas meia milha, mas em noites de novembro isso parecia uma eternidade, como se a fazenda Korban tivesse crescido para se unir às trevas.
A escuridão a envolveu, mas ela não podia pensar nisso. O fogo era seu trabalho e a família dependia de Korban. Todas as famílias antigas dependiam dele, especialmente aquelas que haviam lhe vendido as terras.
Estava agradecida pela grossa fatia de lua no céu, mas algumas vezes ela lhe revelava coisas que não queria ver. Sua respiração se tornava prateada sob sua luz, enquanto ela murmurava pequenos feitiços de segurança.
O solar parecia estar cada vez mais distante, como se a trilha tortuosa houvesse ganho novas curvas, mas por fim ela irrompeu nas largas pastagens que levavam à clareira. Ela não queria olhar para o solar, que se destacava escuro e aninhado contra o céu de Blue Ridge Mountain. Mas ela tinha que verificar a janela.
Escura.
Estava atrasada.
Sylvia correu para a casa, o coração na garganta, martelando forte. Pegou algumas achas de madeira da caixa de lenha e subiu pela escada dos fundos. Margaret estava fora, em uma viagem para um lugar chamado Boston Rouge, um lugar com um nome chique. Se pudesse apenas se apressar, talvez ninguém reparasse que estava atrasada.
É apenas um pequeno fogo bobo. Ninguém vai congelar por causa disso.
Ela caminhou pé-ante-pé pela sala, as tábuas rangendo e a denunciando. Parou perto da porta dele. Se batesse, seria descoberta. Melhor não dizer nada, acender o fogo e sair sorrateiramente.
O quarto estava escuro. Ela tinha receio de acender uma lamparina, pois, se houvesse hóspedes, um deles poderia vê-la. Sylvia fechou a porta atrás de si, com esperança de que as brasas ainda brilhassem o suficiente para que ela pudesse enxergar. As pedras da lareira, entretanto, estavam frias e o ambiente repleto do odor pungente de fogo apagado.
Ajoelhando-se, colocou a lenha no chão e tateou procurando o jornal e a lata de zinco contendo fósforos que mantinha ao lado do atiçador. Mesmo protegida do ar frio da noite, sentiu-se sufocada como se mergulhando nas águas de um sonho profundo e os menores movimentos exigiam um grande esforço. Os fósforos chocalharam quando esbarrou na caixa. Enrolou algumas folhas de jornal e as colocou sob a grade da lareira. Enquanto isso, um som baixo e áspero veio de algum lugar no quarto.
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Sylvia riscou um fósforo, o qual brilhou rapidamente e depois apagou. Naquele segundo de luz, ela reparou em um movimento com o canto dos olhos. Tentando se apressar,
apesar da gravidade estar atuando contra si, riscou outro fósforo. Um vento de inverno soprou através do quarto e apagou a chama antes que pudesse tocá-la no papel.
Por que as janelas estão abertas?
Ephram nunca permitiu que abrissem as janelas de seu quarto. Seus dedos pareciam com odres quando ela buscou novamente os fósforos. O som baixo veio novamente, uma
exalação trêmula seguida pelo som inconfundível do estalo na coluna da cama. Ela fechou bem os olhos e, apesar do quarto estar escuro como breu, concentrou-se no
fósforo que pretendia riscar contra a pedra.
Uma voz surgiu, abafada e desesperada, tudo menos morta.
- Fo... fogo - disse ela.
O coração de Sylvia deu um pulo, como um coelho assustado. Ephram Korban estava no quarto, na cama. Não ousou olhar em sua direção, mas o mesmo poder que pesava
sobre seus membros fez seu pescoço lentamente girar na direção da cama. Abriu os olhos, mas nada viu além da escuridão.
- Enfeitice-me - disse ele, um pouco mais forte, quase com raiva, mas ainda abafado como se estivesse falando de dentro dos cobertores.
Ela assentiu lentamente, apesar de ele não poder vê-la no escuro. Ela também não podia vê-lo. Ainda assim...
Conforme olhou para a cama, a imagem se formando de memória em sua mente, ela podia imaginar Ephram deitado lá, o rosto austero, o cabelo e a barba por cima dos
travesseiros. Belo Ephram, que nunca adoeceu. Ephram, que permaneceu jovem e forte enquanto os trabalhadores e nativos desapareceram com suas rugas e histórias,
a respiração cansada e falhando. Ephram que se dizia nunca dormir.
Dois pequenos pontos de luz flutuavam sobre a negritude da cama, brilhando fracamente, a única coisa que ela conseguia ver no quarto. Tentou desviar a cabeça e riscar
o fósforo, mas agora havia sido tragada de seu sonambulismo para uma consciência desamparada.
Ela havia lavado os lençóis e sabia qual era o seu lado da cama. Os pontos aumentaram de tamanho, pairando próximo à cabeceira onde estavam os travesseiros. No local
onde deveriam estar os olhos de Ephram.
Os olhos ardiam em um vermelho profundo de uma brasa se apagando.
- Acenda o fogo. - disse ele asperamente, ao mesmo tempo em que um lampejo amarelo intenso brilhou dentro dos pontos vermelhos. Os olhos brilhantes ficaram borrados
dentro de suas lágrimas enquanto ela riscou o fósforo sobre a pedra. Ele acendeu e ela ateou fogo ao papel. Por fim, pode desviar o olhar daquela cama terrível e
daqueles olhos insuportáveis. Porém, foi obrigada a proferir aquelas palavras terríveis, as que Mamãe a havia ensinado.
O feitiço.
Ela as murmurou, na esperança de enfraquecer seu poder pela falta de volume. - Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá o frio e que venha o fogo. Que se vá
o frio e que venha o fogo.
O fogo avivou e ela colocou alguns gravetos sobre a grade. Conforme a lenha crepitou e o calor irradiou em seu rosto, sentiu seus membros ganhando força, a pele
arranhada não mais ardendo.
Não ousando virar-se, agora que o quarto estava banhado na luz, ela ocupou-se em amontoar uma pilha de lenha suficiente para a noite sobre a grade. As lágrimas haviam
secado sobre o rosto, mas ainda sentia suas trilhas salgadas. Ela estava em apuros, tendo cometido a mais imperdoável das ofensas. Podia apenas manter o olhar nas
chamas, enquanto essas cresciam como água, em tons de vermelho, amarelo e azul, na direção da chaminé.
Uma mão a tocou suavemente no ombro. Ela olhou para cima e viu Ephram de pé ao seu lado, sorrindo. Seus olhos eram profundos, escuros e belos, vívidos à luz das
chamas.
Como fui boba, pensando que eram vermelhos.
- Desculpe-me - disse ela, as palavras quase inaudíveis sob o estalar da lenha e o martelar de seu coração - Eu não tive intenção de me atrasar.
Ephram nada disse, apenas movendo suas mãos dos ombros para o rosto e então para cima, sob o longo cabelo, até que seu dedão roçou sua orelha. Ela estremeceu, apesar
do calor do fogo.
Ela não pode evitar olhar para todos aqueles objetos finos, o espelho oval sobre a cômoda, as cortinas de veludo que pendiam do topo das janelas como cascatas púrpuras
luxuriantes, o acabamento de seda na borda do dossel.
- Obrigado - disse ele, a voz agora profunda e forte, e o olhar dela novamente se fixou em seu rosto coberto pela barba.
Disseram que se você cruzasse com ele durante a noite, seus olhos mudariam de cor, dourados, vermelhos e então amarelos, as cores do fogo. No entanto, agora seus
olhos estavam negros como carvão.
Disseram que quando ele estivesse na balaustrada sobre o telhado, que sua sombra se estenderia por duas milhas em todas as direções, que ele acendia velas negras
no porão, mas era o que os homens haviam falado. As meninas da casa haviam falado outras coisas, que Sylvia se recusava a acreditar.
Ele não era um monstro. Era um homem.
- Desculpe-me, estava atrasada - murmurou.
- Mas não atrasada demais.
Sylvia começou a se virar novamente para fogo, para dar força às suas palavras, para cumprir sua tarefa. Ela havia dito as palavras, do modo como sua mãe havia ensinado,
e agora havia cumprido seu papel.
Ele segurou seu queixo, sua face próxima à dela. - Nós queimamos juntos.
Ela não compreendeu as palavras e tudo o que sabia era que havia ansiado por esse momento muitas vezes enquanto deitada no colchão de palha no sótão da cabana. Aqueles
sonhos haviam chegado até ela, tomando seu corpo, trazendo sua pele à vida, as mãos de Ephram sobre sua carne. Mas, em suas fantasias, ela não estava tão assustada.
Então se deu conta do que havia de errado. Ele estava atrás e sobre ela, a face iluminada pelo fogo, enquanto ela se encontrava ajoelhada na lareira, olhando para
cima. De algum modo, entretanto, a sombra dele estava sobre sua face, mas ela não conseguia se fixar nesse pensamento, extrair sentido dele, pois outras sensações
a estavam inundando. A mão ardente traçou a curva suave de seu pescoço.
E de novo Sylvia foi sufocada em um sonho, apenas sob um poder diferente dessa vez, conforme se levantou e o deixou colocar os braços ao seu redor, enquanto seus
lábios, quentes e diabólicos, pressionavam os seus. Ela se perdeu em seu calor, força e grande sombra. Quando ele tomou sua mão nas dele e a levou para o fogo, ela
não chorou ou implorou. Ele era o mestre, afinal.
Suas mãos penetraram as chamas, unidas, queimadas, pele e ossos substituídos por fumaça e cinzas.
Não há dor. Como pode não haver dor?
A próxima coisa de que ela se deu conta foi de estar retirando a saia grosseira de menina do campo e a blusa feita em casa, e deles mais uma vez unindo-se, dessa
vez no chão, em frente ao fogo, o feitiço perdido em seus lábios e apenas Ephram em seus sentidos.
CAPÍTULO 1
Alturas. Sucesso.
Os paralelos eram tão óbvios agora, enquanto ele ficava de pé na beirada da ponte, o desfiladeiro íngreme abaixo como uma grande boca bocejante, altos picos de granito
mergulhando para longe numa morte distante.
- Vai pular? - disse a mulher atrás dele.
Mason Jackson tragou uma lufada do ar puro de Blue Montain Ridge. Se pelo menos fosse hélio.
As pessoas adiante dele já havia atravessado, entrando na floresta que levava à fazenda. Uma carroça havia levado a bagagem e Mason estava livre, exceto pelas pesadas
ferramentas na sua sacola de lona.
Peso suficiente para derrubá-lo rapidamente, muito, muito lá para baixo onde...
- Você está bem? - perguntou a mulher. A van já estava se afastando atrás deles, voltando pela trilha de cinco milhas que levava à estrada de Black Rock.
Mason assentiu. Ele olhou dentro daqueles olhos azuis, olhos que observou de tempos em tempos durante a subida. Pelo menos durante os momentos nos quais ele não
estava olhando pela janela para a queda vertiginosa ao lado da estrada.
- Estamos ficando para trás. - disse ela, tão pálida quanto ele imaginava estar. Ela era jovem, talvez perto dos trinta, como ele, e era atraente, com olhos grandes
e escuros e um longo cabelo preto. Mas ele não queria pensar sobre isso.
- Corra atrás deles, eu alcanço. - disse ele.
Ou, mais precisamente, vou correr montanha abaixo antes de colocar um pé naquela ponte.
- É forte o suficiente - disse ela - Aqueles cavalos devem pesar algumas toneladas.
- Claro. - disse ele, batendo de leve no parapeito de madeira. - Essa coisa é capaz de aguentar um tanque.
- Acrofobia. - disse ela -Todo mundo tem um tipo ou outro de fobia.
Oh-hou. Ela é inteligente. Isso pode ser ruim.
- Eu não conseguia nem brincar no trepa-trepa quando estava na escola. - disse ele.
- Vai ajudar se você segurar na minha mão, fechar os olhos e der um passo de cada vez? Ele sorriu, apesar da garganta apertada. - Isso é super legal de sua parte,
senhorita...
- Galloway. Anna Galloway.
- Mas como posso confiar em você e saber que não vai caminhar direto para uma daquelas saliências de rocha?
Ela retornou o sorriso e era atraente, apesar de um pouco tenso. - Você pode confiar em mim, mas talvez enquanto caminha possa fingir que está caminhando sobre uma
imensa calçada pavimentada, tão sólida quanto...
- Não. Isso não adianta, me assusta do mesmo jeito.
O vento mudou um pouco e a floresta outonal a volta deles estremeceu em tons dourados e vermelhos. Um leve odor de fumaça passou por eles.
- Bem, todos os quartos bons terão sido ocupados se esperarmos mais. - disse ela. - Não quero passar o tempo todo do retiro em um armário de vassouras.
- Depois de você. - disse ele, quase se esquecendo do desfiladeiro. Seus olhos eram tão profundos quanto a garganta logo abaixo e mergulhar neles poderia ser fatal
do mesmo modo.
Anna passou por ele e avançou pela ponte. Estendeu uma mão e segurou a bolsa com a outra. Era uma boa bolsa, marrom, sem ser chamativa nem excessivamente requintada.
Pequena, como a dona.
Ele pegou a mão de Anna e colocou a outra no corrimão. Certo, Mamma. Viu? Posso fazer sacrifícios pelo sucesso.
Conforme ele caminhou, olhou de soslaio, com receio de fechar os olhos, mas não confiando na escuridão. Fixou o olhar em um toco de carvalho no outro lado da ponte,
imaginando como acentuaria sua forma natural para esculpir uma gárgula ou um cão de guarda.
A ponte balançou uma vez devido à brisa que passou por entre os cabos e o estômago de Mason se contorceu. A mão de Anna apertou-se em torno da dele e o puxou com
mais insistência, o qual se apressou em sua direção. Então eles chegaram novamente em solo firme e ele deixou escapar uma risada de alívio.
Ela largou sua mão e ele limpou o suor da palma. Não havia notado que sua sacola de ferramentas ficara batendo em sua cintura, deixando um machucado.
- Muito obrigado, Anna. - disse ele, olhando para trás e sentindo-se tolo agora. Ela deu de ombros. - Uma fobia é uma fobia.
Ela já estava caminhando pela estrada poeirenta que levava à floresta. Ele se apressou para alcançá-la, as ferramentas tilintando.
- Então, qual é a sua? - perguntou ele, quando emparelhou com ela.
- A minha o quê?
- Sua fobia.
Ela franziu os lábios e adquiriu um ar melancólico. - A morte.
- Essa é uma das boas.
- Deixa as outras insignificantes, não é?
- Se você tiver sorte o suficiente para que a morte seja o fim de tudo.
Ele ponderou sobre isso enquanto caminhavam, os passos rápidos e curtos dela em compasso com suas passadas longas.
A floresta então acabou e o Solar Korban surgiu à frente deles como algo que saíra de um cartão postal antigo. Os campos abertos afundavam delicadamente em direção
a um pomar denso, gramados e dois celeiros unidos por uma cerca. O solar era uma construção de três andares, com pé-direito alto, como eram construídos no final
do século XIX, com seis colunas de estilo colonial dando suporte ao pórtico de entrada. Persianas negras emolduravam as janelas contra as madeiras brancas. Quatro
chaminés fumegavam, a fumaça rodopiando através dos carvalhos gigantes e álamos que circundavam a casa.
Sobre o telhado encontrava-se a balaustrada, uma área plana com um corrimão solitário. Mason se perguntou se alguma viúva já havia caminhado sobre essa balaustrada.
Provavelmente.
Uma coisa era certa sobre uma casa velha: você poderia ter certeza de que alguém havia morrido ali, provavelmente uma porção de alguéns.
Um pintor ou um fotógrafo provavelmente faria alguma insanidade para ter acesso à vista que a balaustrada fornecia. Mason talvez até cometesse um crime menor por
esse privilégio, exceto que agora estava estonteado com todo aquele ar puro à sua volta e a garganta mortal às suas costas. Pelo menos ele havia tido a oportunidade
de estudar os entalhes intrincados do Solar Korban da segurança do chão firme.
- Você se vira com os degraus da entrada? - perguntou Anna.
Mason franziu o cenho, incapaz de decidir se ela o estava provocando. - Acho que sim Sempre posso engatinhar, se for preciso. Eu sou bom em engatinhar.
- Boa sorte, então. - disse ela, saltando pelos degraus e entrando pela porta da frente. La dentro, o grupo estava se acomodando.
Ele quis gritar um "obrigado", mas Anna havia sumido dentro da casa.
- Boa sorte com sua fobia, também.
CAPÍTULO 2
- Você viu George? - perguntou a Srta. Mamie a Ransom Streater. Ela odiava se misturar com os ajudantes temporários, com exceção de Lilith, mas havia alguns momentos
nos quais ordens deviam ser dadas ou histórias consertadas e a melhor forma de se desviar de uma fofoca era criando outra.
- Não, senhora. - Ransom estava ao lado do celeiro, o chapéu nas mãos calejadas, o suor preso ao cabelo ralo. Ele cheirava a feno, esterco e metal enferrujado. À
volta do pescoço, estava uma correia de couro e ela sabia que estava amarrada a uma daquelas bolsinhas pitorescas. Esse povo das montanhas realmente acreditava que
raízes e pós mágicos tinham influência sobre os vivos e os mortos. Se ao menos eles tivessem a noção de que a magia era na verdade criada pelo poder da vontade e
não pela imaginação.
A magia estava no fazer. Como aquilo que ela segurava nos braços, a boneca a quem ela havia dado forma com amor e ternura imensos.
- Preciso de alguém para ajudar o escultor a procurar madeira amanhã. - disse ela.
- Sim, senhora. - O pomo de adão balançou uma vez.
- Quando foi a última vez que teve notícias de George?
- Hoje após o almoço, logo após o segundo grupo de hóspedes chegar. Disse que estava indo para Beechy Gap para verificar umas coisas.
A Srta. Mamie escondeu o sorriso. Então George havia ido a Beechy Gap. Ninguém da cidade sentiria sua falta por algumas semanas e então seria tarde demais.
E ela podia contar com Ransom para manter a boca fechada. Ransom sabia que tipos de acidentes aconteciam às pessoas à volta do Solar Korban, mesmo para àqueles que
tinham mandingas no pescoço e murmuravam encantamentos antigos. E um trabalho era apenas um trabalho.
Todo mundo possui uma missão de vida.
Algumas missões eram mais especiais que outras.
Ela retirou a boneca do embrulho de pano. Sua cabeça de maçã havia murchado em um rosto escuro e encarquilhado, a boca num esgar dolorido. O corpo era feito de freixo
entalhado e as pernas e braços de vinhas. Ransom afastou-se da boneca como se fosse uma cascavel.
- Você tomará conta de George para mim? - perguntou a Srta. Mamie.
- Ele era meu amigo. É o mínimo que posso fazer. - Uma sombra cruzou seu rosto. - Mas tenho que esperar até o amanhecer. Não posso ir a Beechy Gap de noite.
- A primeira coisa ao amanhecer, então. Não quero incomodar os hóspedes. Você sabe o que está por vir, não sabe?
- Uma lua azul de outubro. - disse ele. Seus olhos se desviaram para a porta do celeiro. Uma ferradura estava pendurada acima dela, as pontas viradas para cima,
o metal fosco sob a luz do sol que se punha. Como se a sorte realmente importasse.
- Você está conosco há bastante tempo.
- E quero ficar mais um bom tempo.
- Então não vai me decepcionar?
- Vou enterrá ele do jeito certo, com a prata nos óio. Tenho orgulho do meu trabalho.
- Ephram sempre disse ‘O orgulho fará você caminhar pelos túneis de sua alma’.
- Ephram Korban disse foi um bocado de coisa. E as pessoa disseram um outro bocado.
- Algumas dessas coisas podem até ser verdade - A Srta. Mamie acariciou a boneca, sofrendo de seu próprio momento de orgulho ao contemplar a composição habilidosamente
feita. Artesanato, diziam eles. A pequena boneca continha muito mais coisas do que as pessoas poderiam imaginar. - Com licença, tenho um jantar para servir.
Ransom inclinou-se levemente e arrumou as alças de seu avental. A Srta. Mamie o deixou alimentando os animais e dirigiu-se para o solar. Carregava a boneca como
se fosse um presente precioso de alguém muito amado. Apesar de a casa lhe ser familiar como a palma da própria mão, vê-la de longe sempre lhe dava uma lufada de
contentamento. Os campos, as árvores e o vento da montanha pareciam cantar seu nome.
Ela era seu lar. O lar deles. Para sempre.
CAPÍTULO 3
Anna Galloway abriu as cortinas da janela do quarto. Um pouco de pó levantou da vidraça com a movimentação de ar. Os raios de sol derramaram-se sobre seus ombros,
o brilho de outubro aquecendo o assoalho sob seus pés. O ar das montanhas era mais frio do que ela estava acostumada e mesmo o fogo crepitante não era capaz de acabar
com seus arrepios. Havia uma pintura de Ephram Korban pendurada na parede sobre a lareira, um pouco menor que a do andar de baixo, mas tão sotuma quanto ela. O escultor
com medo de alturas estava certo sobre uma coisa: Korban havia sido totalmente apaixonado por si mesmo.
Ela olhou ao longe, sobre os campos. Aqui estava ela, após uma longa espera. O lugar no qual deveria estar, por alguma razão. Era o fim do mundo, o lugar adequado
para finais. Afastou o fatalismo dos pensamentos e observou os cavalos galopando através do pasto. A visão de liberdade e paz a aqueceu.
- É tão lindo, né? - disse a mulher ao seu lado. Ela havia dito a Anna que seu nome era "Cris sem H" como se a ausência do H a tornasse mais forte e inflexível.
E como elas seriam colegas de quarto...
- É maravilhoso! - disse Anna - Do jeito como eu sonhei.
Cris já estava com o estojo de maquiagem, pincéis e blocos de desenho espalhados sobre a cama próxima da porta. Anna não tinha nada mais que uma pequena e organizada
pilha de livros sobre o criado-mudo. Sua postura com relação a posses materiais e confortos terrenos havia passado por uma mudança drástica no último ano. Você deve
viajar leve quando não sabe ao certo para onde está indo.
A dor cruzou seu abdômen, furtivamente dessa vez, uma agulha espetando em câmera lenta. Ela fechou os olhos e iniciou a contagem regressiva em grandes e gordos números.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola...
Quando chegou ao seis e a dor estava flutuando em algum lugar sobre o vale das Blue Ridge Mountains, a voz de Cris a trouxe de volta.
- Tipo, o que você faz?
Anna desviou o olhar da janela. Cris havia sentado na cama, escovando seu longo cabelo loiro. Anna estava feliz que a quimioterapia não havia feito o seu cabelo
cair, não apenas por vaidade, mas também porque ela gostaria de estar inteira quando chegasse a hora de partir.
- Eu escrevo artigos de pesquisa. - disse Anna.
- Ah, você é uma escritora.
- Não uma escritora de ficção, como Jefferson Spence. São textos mais voltados para a metafísica.
- Ciência e esse tipo de coisa?
Anna sentou-se na cama. A dor havia voltado, mas não tão aguda quanto antes. - Trabalhei no Rhine Research Center em Durham. Investigadora.
- Você se demitiu?
- Na verdade, não. Apenas terminei o trabalho.
- Rhine. Não é aquele negócio de percepção extrassensorial, fantasmas e coisas esquisitas? Como no Arquivo-X?
- Exceto que a verdade não está lá fora. Está aqui dentro. - Ela tocou na têmpora. - O poder da mente. E não lidamos com alienígenas. Eu era uma investigadora paranormal,
mas acabei virando um dinossauro, extinta quase que antes de começar.
- Você é muito jovem para ser um dinossauro.
- Tudo é eletrônico nos dias de hoje. Detectores de campos eletromagnéticos, gravadores subsônicos, câmeras infravermelhas. Se você não pode identificar em um computador,
eles pensam que não existe, mas eu acredito naquilo que vejo com meu coração.
Cris olhou à volta, como se notando pela primeira vez os cantos escuros e as sombras projetadas pelo fogo da lareira. - Você não veio aqui porque...
- Não se preocupe. Estou aqui por razões pessoais.
- Aham. Vi você de conversa com o cara musculoso com a sacola de lona, na porta de entrada.
- Não esse tipo de razão pessoal. Além disso, ele não faz o meu tipo.
- Dê alguns dias. Coisas estranhas acontecem.
- E você? Está aqui para se lançar numa jornada artística? - Anna apontou para os blocos de desenho. - Não lhe darei minha palestra sobre temperamento artístico
porque gosto de você.
- Ah, acho que meu marido está de caso com a secretária e me queria fora de casa para usar a banheira. Ele já me mandou para a Grécia durante o verão e para o Novo
México na primavera, para fazer aquele lance da Georgia O’Keeffe. Agora para as montanhas da Carolina do Norte.
- Pelo menos ele é generoso.
- Eu nunca serei uma artista de verdade, mas é alguma coisa para fazer durante os retiros além de ir atrás dos homens e beber. Mas minha Musa me permite esses pequenos
luxos também. Por falar nisso, reparei em um bar no prospecto. Quer me acompanhar em algo antes do jantar?
- Não, obrigada. Acho que vou descansar um pouco.
- Bem, não ande por aí escondida debaixo de um lençol. Posso achar que você é um fantasma.
- Se eu morrer, prometo que você será uma das primeiras a saber.
Anna recostou-se no travesseiro. Uma pena lhe espetou o pescoço. A porta fechada, os passos de Cris na direção do saguão de entrada, folhas mortas raspando no vidro
da janela. As paredes envelhecidas com a fumaça deixavam o quarto com um aroma reconfortante e a lamparina a óleo completava o calor da cena. Ela sentiu paz pela
primeira vez desde...
Não. Ela não pensaria sobre isso agora.
A dor retornara, uma convidada rude. Ela tentou o truque com os números, mas sua concentração acabou enredada com as memórias, como vinha acontecendo nos últimos
tempos. Desde que ela começara a sonhar com o Solar Korban.
Dez, um palito e uma argola...
A imagem de Stephen escorregou para dentro de sua mente entre o um e o zero. Stephen, com suas câmeras e brinquedos, sua barba e sua risada. Para ele, Anna era a
versão parapsicológica da garota de acampamento. Stephen não tinha necessidade de sentir os fantasmas. Ele podia provar sua existência.
Seus encontros nos cemitérios acabaram com ela caminhando sem destino sobre a grama e as lápides enquanto Stephen se preocupava em preparar seu equipamento. Na noite
em que ela sentira seu primeiro fantasma, brilhando ao lado do anjo de mármore no Cemitério Guilford, Stephen estava ocupado demais registrando leituras de campos
eletromagnéticos para olhar quando o chamou. O fantasma não esperou uma foto e dissipou-se como um nevoeiro ao sol, mas antes de voltar para o lugar de onde havia
surgido, os olhos assombrados fitaram intensamente os de Anna.
O olhar foi de entendimento mútuo.
Nove, um fiapo e uma argola...
Aquela havia sido a primeira investigação com Stephen. Eles dormiram juntos no chão do Hanger Hall de Asheville em uma noite de inverno na qual o vento estava muito
forte, mesmo para fantasmas. Duas semanas depois, em uma festa, ela o ouviu dizendo que a considerava uma "pessoa instável, mas adoravelmente instável".
Assim, após seis anos de estudo e pesquisas de campo, ela era apenas um pouco mais respeitável que uma vidente de 0800. Existiam céticos demais no mundo real, entre
os cientistas e aqueles que estavam sempre prontos para queimar uma bruxa na fogueira. Mas o riso de seus próprios colegas foi o que a levou a lugares grandes, assustadores
e vazios, nos quais ela podia caçar seus fantasmas sozinha.
Oito, um par de biscoitos...
Então veio a dor e o primeiro dos sonhos. Ela estava saindo da floresta, seus pés na grama macia e úmida, o gramado luxuriante como é possível apenas nos sonhos.
O solar estava a sua frente, as janelas escuras como olhos, as árvores à sua volta, nuas e contorcidas. Uma única linha de fumaça subia por uma das quatro chaminés,
contorcendo-se e ajuntando-se sobre o corrimão branco.
Então a fumaça tomou forma e uma mulher sussurrou "Anna", acordando-a, como aconteceu por tantas noites depois disso.
Sete, um canudo dobrado...
Sete era a intensidade da dor, ferroando seus intestinos.
Stephen apareceu no dia que ela descobriu que metástases do câncer de cólon haviam atingido seu fígado. Ele segurou sua mão e seus olhos se tornaram úmidos e vidrados,
por trás dos óculos grossos. A barba chegou a tremer, mas ele era muito prático, muito desconectado de suas emoções para dar-se conta do que representava o diagnóstico.
Para ele, a morte nada mais era que o cessar do batimento no pulso, uma mudança nas leituras de energia.
Isso foi o que sobrou do conceito de almas gêmeas.
Mesmo após Anna convencer os médicos de que não faria uma colostomia, aceitando a sentença de morte conforme o câncer corria por seus órgãos, Stephen ainda agia
como se a ciência pudesse intervir e salvá-la. Ele provavelmente chegou ao ponto de rezar para a ciência, a mais fria de todos os deuses. Ela recusou a oferta de
carona para casa na saída do hospital e aceitou o fato de que a solidão era um estado natural para quem haveria de se transformar rapidamente em um fantasma.
Seis, um nove no espelho...
Milagres acontecem, um dos oncologistas disse, mas ela não esperava que fosse acontecer no interior de um hospital, com tubos bombeando radiação para dentro de seu
corpo, lâminas removendo sua carne um pedaço de cada vez ou com os médicos marcando a contagem regressiva em um calendário na parede. E ela também parou de sonhar
no hospital. Apenas quando voltou para casa, nas pequenas horas do aconchego de sua cama, é que o Solar Korban voltou a ficar novamente à sua frente.
Noite após noite, conforme o sonho ficou cada vez mais longo e vívido, a forma sobre o telhado ganhou substância. Por fim, Anna podia ver claramente a face à distância,
o cabelo diáfano movendo- se como um véu. Os olhos azuis, o sorriso acolhedor, o buquê que segurava junto ao final do corrimão da balaustrada. Afinal a face tornou-se
reconhecível.
A mulher era Anna.
Cinco, uma pequena foice...
A dor estava mais suave agora, como neve sobre as flores.
Ela fez algumas pesquisas, sabendo que o solar lhe era familiar não somente pelas visitas nos sonhos. Ela encontrou algumas coisas sobre o solar nos arquivos de
Rhine. Ephram Korban demorou vinte e cinco anos construindo a fazenda em um despenhadeiro nos Apalaches e então pulou nos braços da morte atirando-se da balaustrada,
em um suposto suicídio. Alguns moradores locais na pequena cidade de Black Rock contam histórias de aparições, geralmente consideradas fofocas de empregados temporários.
Uma investigação de campo, logo após a casa ter sido restaurada como um retiro para artistas, não produziu nada de útil em termos de dados ou entusiasmo.
Mas talvez a dor de Korban, sua raiva, seus amores, suas esperanças e sonhos estivessem entranhados nas paredes do solar, como a tinta nas paredes de madeira. Talvez
essas madeiras, pedras e vidros tivessem absorvido a radiante energia de sua humanidade. Talvez assombrar não fosse uma escolha, mas, sim, uma obrigação.
Quatro, uma cruz com um braço...
Ela levitou no plano cinzento entre o sono e o pensamento, ponderando se conseguiria sonhar com o solar, agora que estava de fato aqui. Ela fechou a mente para os
cinco sentidos, restando apenas o outro, o sentido que Stephen havia ridicularizado, aquele que Anna havia escondido de seus poucos amigos e muitos pais adotivos.
A linha entre a sensibilidade e a esquisitice era tênue.
Três, forcado de inglês...
Apenas por um momento, ela foi arrancada do sono. Alguma coisa flutuou atrás do rodapé de bordo e correu ao longo das rachaduras entre as dimensões. Ela não queria
abrir os olhos, pois podia ver melhor com os olhos fechados.
Dois, um gancho vazio...
Ela sentiu olhos sobre si. Alguém a estava observando, talvez seu próprio fantasma, a mulher nascida da fumaça em seus sonhos, que segurava um buquê de boas-vindas
mortal.
Um, uma linha que divide...
A linha entre o algo e o nada, aqui e lá, cama e sepultura, amor e ódio, preto e branco.
Zero.
Nada. Nada.
Anna havia vindo por nada, havia nascido para nada, caminhado em direção ao nada e eram negros, tanto o passado quanto o futuro.
Ela abriu os olhos.
Não havia ninguém no quarto, nenhum fantasma contra a parede.
Apenas Korban, morto como o óleo da pintura, as feições escurecidas pelo tremular das chamas. Os raios solares haviam se alongado pelo quarto. A dor havia desaparecido.
Anna levantou-se e caminhou para fora a fim de esperar o pôr do sol, pensando se essa era a noite na qual ela finalmente encontraria a si mesma.
CAPÍTULO 4
Mason olhou para a grande pintura a óleo pendurada na parede sobre a lareira, que olhou de volta para ele intensa e severamente, tanto quanto qualquer um dos seus
instrutores de arte. O rosto sisudo do retrato dominava a sala, dez vezes maior que o tamanho natural. Os tons de pele da tinta a óleo eram tão realistas que Mason
podia imaginar a figura saltando para fora da moldura ornada. Uma placa de latão abaixo da pintura estava entalhada com o nome.
Ephram Korban.
Mason estudou os olhos negros. Eram as únicas feições que não exibiam o realismo do resto da tela. Os olhos eram mortos, opacos e completamente inanimados. Mas Mason
não era um pintor, de forma que não tinha méritos para julgar. Para o diabo com os críticos e, na verdade, ele estava mais interessado na moldura do que na pintura,
que parecia ser entalhada à mão.
Mason lançou um olhar atrás de si para as pessoas se ocupando na sala de estar. Pela porta, conseguia ver dois homens em aventais descarregando a carroça. Uma quarentona
de peitos avantajados usando um vestido negro parecia estar em todos os cantos ao mesmo tempo, dando ordens, distribuindo bebidas em longos copos umedecidos e apertando
mãos. Mason caminhou em direção à lareira. Apesar de o dia ter sido quente para um final de outubro, o fogo ardia sobre as pedras, amarelo, laranja e de outras cores
outonais.
A cornija da lareira também era entalhada à mão. Querubins e serafins em baixo-relevo, formas arredondadas rafaelitas aladas entre espessas nuvens curvilíneas. Mason
verificou os dedos para ver se estavam limpos e então tocou delicadamente nas figuras. Conforme suas mãos exploraram a superfície entalhada, notou que alguém havia
deixado uma taça com um resto de vinho tinto sobre a cornija. Os anéis que o copo poderia deixar sobre a tinta branca eram como sangue em solo virgem que demonstravam
a falta de respeito pelo trabalho ou pelo artífice.
Ele olhou novamente para os olhos da pintura e agora Ephram Korban parecia estar observando a sala, os olhos sombrios sobre aquelas pessoas que ousavam cruzar o
portal de seu domínio. O rosto parecia ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mason tocou a moldura...
- Encantadora, não é mesmo? - disse uma voz feminina estridente.
Mason girou, sua sacola quase tocando na taça de vinho. À sua frente encontrava-se a mulher rechonchuda vestida de preto, o cabelo negro em um coque alto. Seu sorriso
era congelado no rosto como se tivesse sido esculpido com formões.
- Sim. - disse Mason. - Quem quer que tenha feito os entalhes, deve ter passado algumas semanas sobre eles.
Ela deu uma risadinha, um som agudo e artificial. - Eu estava falando da pintura, bobinho. Ela brincou com um cordão de pérolas à volta do pescoço, as contas interrompidas
de forma vulgar por uma presilha de latão. Seus olhos escuros brilharam com toda a vida que os olhos de Korban não possuíam na pintura. Ele podia imaginar a mulher
à frente de um espelho, prendendo suas pérolas, verificando os dentes e ajustando o brilho nos olhos.
A mulher estendeu a mão e Mason a pegou, pensando se ele deveria se curvar e a beijar, como um afeminado francês em um filme de época. Sua pele era fria. Ela virou
a mão dele para cima e olhou para os dedos, balançando a cabeça. -Ah, então você é o escultor.
- Como?
- Calos. Nós não recebemos muitas pessoas com calos nas mãos aqui no solar. - Ela inclinou- se para frente, com um ar conspirador. - Pelo menos entre os convidados.
Os empregados ainda têm que trabalhar.
Mason assentiu. Ele olhou para baixo em direção aos tênis arranhados e aos buracos na calça jeans. As outras pessoas que estavam na van calçavam sapatos de couro,
Kenneth Coles, sandálias e roupas de catálogos que tinham nomes de grife. Ele não pertencia a esse lugar. Ele era um pobretão sulista proveniente da escória de uma
cidade madeireira, não importava o tipo de roupagem artística que ele tentasse colocar em sua história.
Mas cá estava ele, pronto para esculpir seu próprio sucesso.
- Faz um bom tempo que não recebemos um escultor por aqui. - disse ela, a mão fria ainda pendurada à sua. - Deixe-me ver se tenho seus dados de cabeça: "Mason Beufort
Jackson, graduado com honras na Escola de Artes de Adderly, no momento empregado na Rayford Hosiery em Sawyer Creek, Carolina do Norte. Vencedor do prêmio Grassroots
Consortium 2002. Comissionado pela Universidade de Westridge para criar uma escultura para o Alumni Hall". Agora, como era mesmo o nome da escultura?
Ela finalmente largou sua mão, pressionando a têmpora como se estivesse lendo uma página em sua mente e, então, estalou os dedos. - Dilúvio. Claro. Terrivelmente
encantador.
Mason riu consigo mesmo. Ele não havia se dado conta de quão pretensioso o nome soava até o momento em que passou por aqueles lábios bem alimentados. - Bem, era
com essas pessoas que eu andava na época. Avant-garde, mas ainda almoçando no McDonald.
A mulher emitiu novamente sua risada cacarejante e apontou para a sacola pendurada sobre seu ombro - São ferramentas?
- Sim, senhora.
- Espero ver você usando-as. - Sua mão fria ainda presa à dele. -Sou Mamie Godfeld. Insisto que você me chame de Srta. Mamie.
Ele olhou para o retrato de Korban e então de volta para a Srta. Mamie.
- Ah, você reparou. - disse ela.
- Os olhos.
- Eu sou a última descendente viva de Ephram Korban. Eu gerencio o solar, mantendo-o como um retiro para artistas, do jeito que ele pretendia. Mestre Korban sempre
apreciou o espírito criativo.
- Ele era um artista?
- Um artista frustrado. Um diletante, principalmente um colecionador.
Todos os artistas são frustrados. Não é esse o ponto?
Mason reparou em mais detalhes arquitetônicos da sala de estar. O arco sobre a entrada principal tinha três metros de altura, com vidraças quadradas na parte superior.
A sala possuía um pé-direito alto, as paredes e acabamentos brancos acentuados pelo trabalho em carvalho até a altura do peito. Duas colunas iônicas no centro da
sala suportavam uma imensa viga no teto.
- Esse é um lugar bonito. - disse Mason, pois claramente a Srta. Mamie esperava algum comentário de sua parte. Ele quase disse "adorável", um adjetivo que ele nunca
antes havia usado. Cinco minutos em um retiro caro nas montanhas e ele já estava ficando metido e desenvolvendo uma persona.
Que Deus não permita que você seja alguém na vida. Você é insuportável.
- Estou satisfeita que tenha lhe agradado. - disse ela. - Revivalismo colonial. Mestre Korban era orgulhoso de sua herança, motivo pelo qual ele estipulou que o
solar deveria ser preservado.
- Korban. Um nome judeu, não?
- Apenas no nome, mas não em espírito. Ele pegou sua herança de empréstimo, comprou a parte que não pôde tomar emprestado e roubou aquilo que não pôde comprar. No
final, ele possuía tudo.
Mason olhou mais uma vez para o retrato, medindo a tenacidade e arrogância das feições. - Parece que seu ancestral era o tipo de homem que não aceitava um não como
resposta.
- É bem verdade, mas ele também era muito generoso, conforme você bem sabe.
Mason sorriu, apesar de sentir como se houvesse um lagarto andando em sua garganta. Ele estava aqui por caridade. Ele nunca poderia arcar com os custos desse tipo
de retiro com o dinheiro que ganhava. Para resumir, ele estava ali como um símbolo de que a fazenda Korban e o conselho de artes poderiam revelar seu apoio magnânimo
às classes inferiores.
A Srta. Mamie olhou além dele, para onde um pequeno grupo de hóspedes estava conversando.
- Ali estão os queridos Sr. e Sra. Abramov. Os compositores clássicos, sabe?
Mason não sabia, mas continuou sorrindo do mesmo modo. O sorriso simbólico de gratidão.
- Perdoe-me, devo cumprimentá-los. Lilith lhe mostrará seu quarto e espero que você aproveite a estadia.
Ela relanceou os olhos para o retrato de Korban com uma expressão que se aproximava da melancolia e se foi, com um farfalhar de tecido. Mason olhou mais uma vez
o retrato. O fogo estalou, mandando brasas densas e vermelhas pela chaminé. Os olhos de Korban ainda pareciam mortos.
Mason estava se virando para sair em busca de sua bagagem quando o fogo estalou novamente. Por um breve instante, a face no retrato foi sobreposta pelas chamas,
como o reflexo do pôr do sol em um lago.
Ele lutou contra o súbito desejo de pegar uma machadinha de sua sacola e lançá-la sobre o sorriso inquietante de Ephran Korban.
- Parece que você está precisando de algo para lhe abrir os olhos. - disse uma voz atrás dele. Era Roth, o fotógrafo que sentara ao seu lado no banco da van. O homem
falava com um sotaque inglês esquisito, não inteiramente autêntico e com cheiro de álcool em seu hálito. Havia um martíni de prontidão em sua mão enrugada.
- Não, obrigado. - disse Mason.
- É final de tarde e somos todos crescidos por aqui. - Os olhos de Roth moveram-se por debaixo das sobrancelhas brancas. Seu rosto era magro e anguloso e Mason o
viu como uma escultura natural, a topografia envelhecida da pele, o escarpado do queixo, a planura da testa. Ele tinha o mau hábito de reduzir as pessoas às suas
formas essenciais, esquecendo que algum tipo de alma poderia existir por baixo da argila da criação.
- Eu não bebo.
- Ah, você é um daqueles malucos religiosos?
- Não sou nenhum tipo de maluco, até onde sei. Exceto pela parte de ouvir a voz de Deus saindo de um arbusto em chamas.
Roth riu, derramando um pouco do martíni. - Não se meta em confusão, filho. Você é terrivelmente jovem para cair nas garras desse povo. - disse ele, acenando com
a cabeça na direção das pessoas que a Srta. Mamie estava cumprimentando.- O que um pinto como você está fazendo num lugar como esse?
- Estou aqui como convidado. Ganhei uma bolsa do Conselho de Artes da Carolina do Norte e do Solar Korban. - Mason olhou para o fogo novamente. Nenhuma face contorcia-se
entre as cores brilhantes e nenhuma voz surgiu. Ele se forçou a relaxar.
- Um artista de verdade, hein? Não como aqueles - disse Roth, rolando os olhos na direção dos convidados bem vestidos da Srta. Mamie. - Muitos deles necessitam de
um retiro de artistas como precisam de outra conta-corrente. Uma porção de ternos caros cujo ápice da carreira artística consistiu em grudar feijões em um farrapo
de estopa velho.
Outro crítico. Passando adiante seus julgamentos sobre os talentos irrelevantes de terceiros. Pelo menos eles pagaram para estar aqui, ao contrário de Mason. - De
que parte da Inglaterra é você?
- Nenhuma gota de sangue inglês nesse corpo. - disse ele - Estive por lá como militar por um tempo e peguei um pouco do sotaque deles. É útil com as mulheres. -
disse ele piscando um olho acinzentado.
- Você veio fotografar, suponho. - Mason namorou uma garota que tinha um livro sobre o trabalho de Roth. Ele trabalhava com natureza, animais, arquitetura e um retrato
ocasional. Não conseguia atingir o glamour luminoso de um Leibovitz ou a sensibilidade visceral de um Mapplethorpe, mas suas fotografias possuíam sua própria marca
de honestidade bruta.
- Fui contratado por algumas revistas. - disse Roth - Tenho algumas encomendas de casa e jardim, cenas de montanhas, esse tipo de coisa. Quero fotografar aquela
ponte, entretanto. É a ponte de madeira mais alta dos Apalaches do sul, dizem por aí.
- Acredito nisso. Só de pensar já fico com vertigens.
- Você tem problema com altura?
- De onde venho , os prédios mais altos tem dois andares, se não contar os silos. Eu posso lidar com escadas, mas já começo a ter problemas com escadas de mão. Olhar
para baixo e ver cem metros.
- Uma queda daquelas de cada lado. - disse Roth, pegando outra bebida e saboreando a palidez do rosto de Mason. - Korban apreciava seu isolamento. Queria que o lugar
fosse como um daqueles castelos europeus.
Roth levantou o copo num brinde ao retrato de Korban. - Isso é para você, seu velho desgraçado.
A sacola de Mason estava se tornando pesada e ele estava ansioso para se acomodar e terminar o planejamento das peças nas quais gostaria de trabalhar. E o sotaque
de Roth era irritante.
Uma mulher atraente vestida de preto desceu as escadas, o vestido muito próximo de um autêntico gótico, o xale de renda sobre os ombros. Parecia ser um tipo de recepcionista.
Levou um casal que estava com o grupo da Srta. Mamie. O homem parecia estar na casa dos cinquenta, com uma papada proeminente, carrancudo, a mulher com os olhos
azuis e uma compleição clara de quem parecia ter saído de uma revista de moda. Subiram juntos as escadas, o homem pigarreando, as enormes pregas do pescoço balançando.
- Talvez eu o fotografe mais tarde. - disse Roth - Talvez à mesa, com uma pena de nanquim nas mãos. Não sou muito fã de trabalhos sobre personalidades, mas poderia
faturar uma grana com essas fotos.
- Quem é?
Roth sorriu como se Mason tivesse subitamente caído de uma carroça de nabos. - Jefferson Spence.
- Você quer dizer o Jefferson Spence? O romancista?
- O primeiro e único. O último grande escritor sulista. Faulkner, O’Connor e Wolfe, todos juntos no mesmo lugar, se você acreditar no que está escrito nas contracapas
dos livros.
Mason observou o escritor subir as escadas com dificuldade. - O que ele quer com uma colônia de artistas?
- Inspiração. Você não sabe muito sobre ele, não é?
- Nunca li nada dele. Sou mais no estilo Erskine Caldwell.
- Um crítico definiu o estilo de Spence como uma torrente de pomposidades. Mason riu. - Bem, foi bacana ele trazer a filha junto.
Roth balançou a cabeça. - Suponho que você também não leia as colunas de fofocas. Aquela não é a filha dele. Presumo que seja a mais nova mulher.
A voz da Srta. Mamie cresceu, sua risada preenchendo a sala de estar. A seu lado estava Anna. Seu olhar encontrou o de Mason, deu-lhe um meio sorriso e voltou a
atenção para a Srta. Mamie.
Roth reparou-a também. Seus olhos eram brilhantes como os de um lobo. - Bela ave. Mason fingiu não ouvir. - Com sua licença, tenho que esticar minhas pernas um pouco.
Roth fez um floreio cavalheiresco e saiu em busca de mais bebida. Mason ajustou a alça da sacola por sobre os ombros e dirigiu-se à porta de saída. A carroça havia
sumido, a trilha das rodas dirigindo-se a um dos celeiros, as marcas escuras do esterco dos cavalos marcando a estrada arenosa. O panfleto do Solar Korban havia
ressaltado o fato de que nenhum veículo motorizado estaria por perto para "perturbar os impulsos criativos". Da mesma forma, distrações como televisão, telefone
ou eletricidade também não existiam na fazenda.
Um episódio normal da Ilha de Gilligan, apenas sem as risadas de claque e as guinadas de roteiro. Que diabos estou fazendo aqui?
Alguém do grupo gritou - Deixe-me contar para vocês sobre uma ideia maravilhosa que tive para um romance. É sobre esse escritor que... - Mason deu uma última olhada
para o rosto de Korban e se lançou nos raios solares outonais.
CAPÍTULO 5
A dor possui diversos matizes, mas o medo, apenas um.
George Lawson pensou que havia experimentado todos os matizes de dor em seus cinquenta e três anos de vida. Dor branca, quando ela havia cortado parte do maxilar
com uma serra enquanto tentava podar uns arbustos, alguns anos atrás. Havia se familiarizado com uma dor azul-clara quando a artrite reumatoide havia dado uma longa
pincelada em sua coluna. E o soco acinzentado no estômago que havia durado meses após Selma tê-lo largado por um tecelão hippie no final do mandato de Rreagan.
Ele sentiu dor em uma centena de cores, laranjas, vermelhos intensos e verdes diversos. A dor também havia adquirido a mesma quantidade de formas e tamanhos. Mas
ele estava certo de que nunca antes havia sentido uma dor como aquela que o agarrava em um abraço de urso naquele momento. Ela era como todas as outras combinadas,
um arco-íris de dores, uma mancha de óleo na superfície de uma poça de água, tudo que os nervos conseguiam mandar de uma só vez e mais um pouco.
Mas o medo - O medo não era nada mais que negro. Maior, mais escuro, cegante e sufocante, crescendo como uma sombra sobre todas as outras cores. Medo negro enroscado
em sua garganta como um trapo sujo de graxa, como um pano ensopado de melado velho, como um pedaço de carvão.
George experimentou mover o braço esquerdo. Erro.
Dois grandes pregos haviam cravado seu bíceps ao chão. Ele conseguia sentir o sabor dos pregos, apesar de estar certo de que a única coisa que tinha na boca era
um pouco de pó, um pouco de sangue e uns dentes frouxos. E o medo.
O gosto era de metal, ferrugem e aquele sabor meio amargo, como de pólvora queimada e ferro quente, que enchem o ar de uma oficina quando o ferreiro trabalha. O
barracão desmoronado aquietou-se a sua volta com um gemido.
George sabia que era melhor abrir os olhos. Porque, em sua cabeça, ele estava olhando para dentro de um grande túnel negro e quanto mais fundo ele olhava, mais longe
da luz ele ficava. Ele estava escorregando em direção às trevas suavemente, como se estivesse sobre trilhos, e parte dele queria escorregar para dentro daquele lugar
frio e sem ar, logo após a curva.
Mas a outra parte dele estava assumindo o controle. A parte que tirou seu traseiro de dentro das selvas do Vietnã, a parte que o tirou da cama do hospital quando
os médicos disseram que ele estava a uma batida de coração do grande final, a parte que o levou de volta à luz do sol após meses de solidão. Era a parte que George
dera o nome de Velha Couraça. Como uma identidade secreta que ele assumia quando a coisa ficava feia. E ele realmente precisava da Velha Couraça agora, porque as
coisas não podiam ficar piores do que estavam.
Outro problema de manter os olhos fechados é que ele continuava a vê-la. A Mulher de Branco. Assim, forçou as pálpebras a se abrirem, graças à sua identidade secreta.
Farpas de madeira caíram sobre ele e grudaram-se a suas lágrimas. Algo morno e molhado escorria da têmpora direita, mas ele não estava realmente preocupado com isso
agora. Primeiro tentou descobrir o que era aquela coisa arroxeada e esquisita, aquela coisa espetada na viga sobre sua cabeça. Era estranhamente familiar, mas fora
de contexto, como um barco no meio de um campo de milho.
A coisa arroxeada estremeceu. Não, apenas escorregou um pouco na ponta quebrada da viga. Mesmo no lusco-fusco e sob a poeira que ainda voava, George conseguiu ver
que a coisa tinha cinco pequenos apêndices pendurados, como as tetas de uma vaca. Foi então que a identidade secreta de George assumiu o controle, como se tivesse
sido eletrificado por uma dúzia de xícaras de café.
- Então é uma maldita de uma mão, Garotão. Qual o problema? Quantas pessoas nesse mundo nasceram sem as mãos? Lembra-se de todos os combatentes do Vietnã que você
viu perderem todos os diachos de braços e pernas e que conseguiam apenas ficar se remexendo no chão como peixes na beira da praia? Então dê a volta por cima.
George engoliu em seco e o fragmento de vidro imaginário em sua boca desceu pela garganta. Os dedos mortos, lá em cima, estavam abertos, como que esperando um aperto
de mão. Ele esperava que a Velha Couraça não esticasse demais a linha dessa vez, porque a linha estava na tensão máxima.
- E como você é o único palhaço deitado aqui no meio dos destroços dessa porcaria de barracão, as chances são altas de que aquela mão seja sua, soldado.
George virou levemente a cabeça, de modo a não ver a mão. Girou os olhos para ver o corpo, mas não conseguia ver nada abaixo do peito devido aos escombros do telhado
que se amontoavam sobre sua barriga. Ele tentou mover os ombros, mas a dor irrompeu em chamas multicoloridas.
- Certo, soldado. Você vai ficar gemendo como uma bicha franzina ou vai se levantar e tirar essa bunda velha e enrugada daí?
George não tinha ideia de como ficaria de pé, pelo simples motivo de que não conseguia sentir as pernas.
- Desculpas, desculpas. Bem, Georgie, isso tudo podia ser muito pior. Porque, caso não tenha notado, tem uma telha de zinco a dez centímetros de seu pescoço e ela
poderia ter escorregado e feito um belo serviço em você. Se isso tivesse acontecido, nem estaríamos tendo essa conversinha encantadora.
O canto afiado do zinco refletiu a luz do sol se pondo. Enquanto ele olhava, o pedaço de telha escorregou mais para perto com um rangido metálico. Mais rangidos
vieram do alto, nos destroços invisíveis do beiral. Algo deslizou nas sombras suaves.
- Não, não era uma cobra. Nem precisa se preocupar com a atividade das cascavéis nessa época do ano, já que estão dando as últimas contorcidas antes de hibernarem.
Não, Georgie, não há cobrassssss por aqui.
George pensou na velha canção de Johnny Cash, sobre como as cobras rastejam durante a noite, mas ela estava errada. As cobras dormem à noite, pois são de sangue
frio. Ele sabia disso porque tinha procurado a informação.
George engoliu em seco novamente, tentando empurrar alguma coisa do ar das montanhas para dentro dos pulmões machucados. Mais sangue estava escorrendo do pulso decepado,
pendurado acima dele. A gota de sangue crescente estava pendurada na ponta de um tendão arrebentado. Ele se perguntou se era sua mão esquerda ou direita.
- Grande pensador você, Georgie. Mas vou lhe dizer uma coisa, já que você sempre precisou saber sobre as coisas. É a mão do martelo, aquela que limpa sua bunda,
a que apertou a mão do Senador Halliefield no churrasco republicano em Raleigh. É, aqueles dedos lá seguraram a bola de beisebol que lhe deu a vitória em seu último
ano do colégio. Aquelas são as juntas, que deram o soco bacana na cara do hippie com o qual Selma fugiu. Mas, olha lá, agora eles estão bem mortinhos, você vê? Águas
passadas. Acho melhor nos preocuparmos com a carne que você ainda tem.
George queria poder sentir os pés. Assim ele não ficaria com tanto medo de estar se tornando um daqueles peixes na beira da praia. Algo dentro de suas entranhas
dilaceradas contraiu-se e borbulhou. A cada inspiração rasa, as costelas quebradas iam mais fundo para dentro do peito em busca de carne para cortar. E quem ele
podia culpar?
- Ninguém, a não ser esse seu nariz imbecil, soldado. Tinha que mexer no que não era assunto seu, não é? Você tinha que saber, não é? Sempre teve que saber das coisas
e sempre terá. Mas, se você não cair fora dessa roubada na qual se meteu, sempre não durará mais que o entardecer, filho.
Claro, George gostava de saber sobre as coisas. Ele quis saber por que as libélulas eram também chamadas de "comida de cobra". Ele quis saber por que Selma havia
mexido nas molas da velha cama de casal que usavam. Ele quis saber por que aquela pintura de Ephram Korban pendurada no solar lhe dava sete tipos de arrepios diferentes.
Ele quis saber por que aquela bruxa da Sylvia e seu coleguinha Ransom o haviam avisado para ficar longe dessa parte da floresta. Acima de tudo, ele quis saber por
que a Mulher de Branco havia dançado no barracão segundos antes que ele desmoronasse à sua volta.
- Não vai te fazer bem algum agora, ficar pensando naquilo que você não vai encontrar resposta. - disse a voz distante da Velha Couraça - É melhor se concentrar
no que tem nas mãos, se você entende o que quero dizer.
Outra gota de sangue caiu em seu rosto, dessa vez no queixo. George pensou em levantar a mão e limpá-lo, mas então lembrou-se de que o braço que usava para se limpar
havia sido decepado na altura do pulso. A dor explodiu até a altura do ombro, brilhante e amarelo como Napalm.
George espiou por entre o madeirame acima. Uns poucos raios de luz passavam através do entulho, a poeira circulando lentamente pelo ar. Isso significava que restava
ainda um pouco do dia. O tempo havia ficado estranhamente espichado, do mesmo jeito que acontecera no Vietnã, quando os soldados haviam se agachado esperando a artilharia,
mesmo antes dos morteiros começarem a atirar.
- Ei, Georgie, me dá um pouco de crédito aqui. Eu te tirei dessa confusão, não tirei? Então não me deixe na mão agora. Mas preciso que me ajude, filho. Você precisa
ter um pouco de esperança, desgraçado.
Esperança. A esperança pega você de manhã e te coloca para dormir bem aconchegado de noite. Esperança era a última coisa a que você se apegava quando todo o resto
havia partido. O pensamento congelou George, ou talvez tenha sido o suor frio que lhe cobria o rosto.
- Estou aguentando. - sussurrou George. Ele, de modo geral, não conversava com a Velha Couraça, pois achava que somente gente esquisita respondia às vozes que tinham
dentro da cabeça. Mas até aí, com certeza havia um monte de pessoas malucas em volta do Solar Korban. Ransom Streater dizia conseguir ver pessoas que não estavam
lá, ou àqueles que haviam partido há muito tempo. George gostaria que algum deles tivesse uma visão agora, fizesse aquele negócio da Visão, do qual Abigail vivia
falando, e vissem-no preso debaixo do antigo barracão.
Mas o Solar Korban estava a quase uma milha de distância e quase ninguém andava por aquela parte da floresta. As chances eram de que ninguém estava à distância de
um grito, mesmo que George conseguisse encher seus pulmões o suficiente para dar um. As chances eram de que os outros funcionários estavam ocupados à volta do solar,
acomodando o último grupo de artistas. A Srta. Mamie observando se eles ousariam descansar mesmo que por um minuto. Assim, mesmo que ele conseguisse se arrastar
para fora dos escombros, acabaria por se esvair em sangue antes de conseguir chegar à trilha, que dirá até a estrada ou o solar.
Mas primeiro ele deveria se desvencilhar para depois se preocupar com o resto. Olhou para a direita, para o lado de seu corpo do qual estava faltando uma parte.
Uma sessão do telhado que estava relativamente intacta inclinava-se de um ponto logo acima de sua cintura até o chão, cinco metros adiante. O entulho acima dele
estava seguro apenas por uma única viga.
Se aquilo ceder...
- Então é Sayonara, panaca. - disse a Velha Couraça, de algum buraco do cérebro em choque de George, onde o desgraçado havia se escondido. - Agora mova-se.
Uma viga estava encostada em seu braço, a superfície áspera contra sua pele. Se ele conseguisse movê-la, talvez usá-la como alavanca, conseguiria livrar seu braço.
Moveu o braço e seu cotovelo bateu contra o chão de madeira. Seu braço direito deveria estar dormindo, pois agora voltava à vida formigando.
Empurrou a viga contra a lateral do corpo e o resultado logo veio. A ponta de seu braço explodiu numa onda de agonia. Era uma dor laranja, o laranja que saltava
das mãos do Tocha no Quarteto Fantástico que lia quando era criança. Ainda assim, empurrou a viga até encostá-la no toco de seu braço decepado.
- Muito bom, garotão. - disse a voz no comando - Dê-lhes o diabo. Apenas uma pergunta: o que você vai usar para apoiar a alavanca dessa gangorra sua?
A Velha Couraça tinha razão, por mais que George odiasse admiti-lo. Mas se ele desistisse agora, ter sobrevivido ao Vietnã, à Selma, ter pisado em uma cascavel e
ter sido picado não teriam valor algum. Escorregar naquele trilho rumo à escuridão seria muito mais fácil. Apenas como um experimento, pois ele tinha que saber,
fechou os olhos.
E ele estava mais profundamente no túnel agora. A luz na direção da vida estava mais difusa e borrada, enquanto ele acelerava, deslizando mais veloz e suavemente,
como num trenó sobre a neve.
George relaxou, muito embora estivesse tremendo, seu sangue faminto de oxigênio e o coração batendo como o martelo de um carpinteiro tentando vencer uma tempestade.
Porque lá, dentro do túnel, era certo desistir da esperança. Ninguém lá dentro a usaria contra ele. Sentiu que outros estavam lá, esperando para recebê-lo, encolhidos
nas sombras, àqueles que haviam escorregado antes dele. E ele estava contornando a curva, pois isso era fácil, era divertido, o suave som do escorregar martelando
em seu crânio.
E se houver COBRAS após a curva?
George abriu os olhos e lutou para sair do túnel, vendo que o sol ainda brilhava teimosamente no céu, em algum lugar acima, enquanto a mão desertora continuava pendurada,
aberta e pálida, usando um bracelete de lascas e sujeira. Ele quase desmaiou e se deu conta de que o choque estava se instalando em seu corpo.
Uma vez, em An Loc, alguns soldados estavam à toa bebendo latas de Schlitz enquanto George Jones controlava o toca-discos. Um jovem médico chamado Haley estava fumando
um baseado do tamanho de um cano de um fuzil e lhes contou por que o choque era o melhor amigo de um soldado moribundo.
- Para alguns tipos de dor, nem mesmo uma dose de morfina vai resolver. - Haley disse, uma nuvem de fumaça azul à volta da cabeça - Mas o choque, cara, ele desliga
você direitinho. A pressão sanguínea cai, a respiração fica leve, você fica todo suado e esquece até o nome de sua mãe. Uma pancada, você sangra e aí, cara, começa
a viajar.
Eles disseram pra Haley calar a boca e George havia conseguido se desviar de seu encontro fatal com o choque, pelo menos até hoje. Porém, deitado sob a pilha de
escombros e correndo os olhos pela lista de sintomas de Haley, ele já estava com três quartos do caminho andado. Ele ainda lembrava que sua mãe se chamava Beatrice
Anne.
A mão decepada estava deslizando pela ponta da madeira. Uma gota de sangue atingiu sua bochecha. George apertou os dentes moles e virou a viga sobre seu peito. Ele
empurrou com o coto do antebraço até que uma das pontas da tábua ficou sob a viga que prendia o braço esquerdo.
Ele tentou não olhar para o pulso machucado, enquanto sentia o sangue escorrer pela parte inferior do braço. Se ele não estancasse isso logo...
- Não fique com medo do que falou o Haley com o cérebro cheio de fumaça, garotão. Certas coisas um homem tem que fazer sozinho. E um consertador de coisas como você,
um verdadeiro faz- tudo - é claro que agora tem apenas metade das ferramentas que costumava ter, não é mesmo?
George queria gritar para a Velha Couraça calar a boca e deixá-lo em paz. Mas necessitava dela, necessitava daquela voz interna insultando-o mais do que nunca. Caminhando
pelas estradas e trilhas solitárias da fazenda Korban, ele aceitaria qualquer companhia disponível. Claro, alguns dos frequentadores do café Stony Hampton haviam
sussurrado sobre fantasmas e coisas similares ao redor da fazenda, mas depois do Vietnã, George chegara à conclusão de que os piores fantasmas eram aqueles que mandavam
seus filhos para a guerra.
Assim, quando ele viu um pálido movimento trêmulo dentro do barracão, não deu ouvidos aos rumores. Pensou ter sido um gambá ou uma coruja, nada que pudesse causar
muito dano. Mas George era pago para manter o local em bom estado e as criaturas afastadas ou, como disse a Srta. Mamie, "do mesmo modo como eram as coisas quando
Ephram ainda era o mestre desse lugar". Assim, George havia levantado a antiga lingueta de metal e empurrado a porta, esperando que quaisquer cobras fossem espantadas
pelo barulho.
- Mas não era um gambá e também não era uma coruja, não é? - sussurrou a Velha Couraça. George esbugalhou os olhos. Devia ter delirado. Era outro dos sintomas de
Haley. A viga sobre seu peito subia e descia no ritmo de sua respiração rápida. O sol estava baixo no horizonte, os ângulos das sombras agudos e espessos nos destroços.
O medo lhe deu um impulso de energia e ele elevou a viga. Seu toco de pulso gritou em tons de vermelho-fogo.
- Você está ouvindo? Não era nenhum maldito gambá, não é, garotão?
Agora ele desejava que a velha desgraçada calasse a boca. Ele precisava de foco, efetuar o serviço sujo rapidamente, não precisava... - - Poderiam ser cobrassss.
Ou talvez - A longa e deslizante sombra.
- Qualquer que tenha sido o truque quando pisou no interior do barracão. Porque se um homem não pudesse confiar em seus próprios olhos, seus dias como prestador
de serviço estavam contados. Mas agora, tudo o que importava era...
Aquela sombra escorregadia através da qual você podia ver.
... o próximo empurrão, alavancando a viga de cima do braço esquerdo. Seu peito entrou em uma erupção de faíscas azuis e quentes de dor, azul-demoníaco, tão intenso
que quase parecia branco. Mas a viga deu um pequeno gemido e elevou-se levemente, acordando os nervos transfixados por pregos de seu bíceps.
- Está se movendo, soldado! Ela se move! E a dor não é nada, não é? Diabos, já passeamos por lugares com essas dores. Dessa vez, será uma valsa afeminada no meio
das margaridas, garotão.
Uma valsa. A longa sombra branca estava valsando, como uma cortina soprada pelo vento, exceto...
- Claro que não era o rosto de uma coruja, garotão. A sombra possuía um rosto humano.
George gorgolejou e a saliva escorreu pelo rosto. Alavancou novamente a viga, elevando-a mais alguns preciosos centímetros e novos matizes de dor surgiram, amarelo-pus,
verde-elétrico, violeta-berrante, fitas enlouquecidas de agonia. Uma grande seção do telhado estremeceu e a mão amputada caiu em sua testa e pulou para longe.
Mas George nem notou, pois estava novamente dentro do túnel negro, descendo pelos trilhos, contornando a curva em direção à escuridão, a curva final para longe dos
que respiravam.
E, subitamente, ele se deu conta do que havia do outro lado da curva.
Ela o esperava, a sombra branca com grandes olhos redondos e suplicantes, a coisa com os braços abertos, uma das mãos segurando um buquê de flores mortas. Ela parecia
ainda mais assustada que George. Logo antes do galpão desabar, ele havia visto a longa cauda se contorcendo sob o laço de sua toca, uma cauda tão assustadora quanto
uma...
- As cobras rastejam à noite, Georgie.
- Não, elas não rastejam - disse George, a voz áspera e fraca - Eu sei que não o fazem porque estudei sobre isso.
Ele estava chorando, pois se deu conta de que não lembrava o nome de sua mãe. Mas o pesar não mais importava, nem a dor, nem os pregos em sua carne, nem a mão que
faltava, nem a poeira enchendo seus pulmões, nem a noite assustadora. Mesmo a Velha Couraça era um nada, apenas um fantasma distante da selva, uma teia de aranha,
um eco.
Tudo que importava eram os trilhos que agora o guiavam, a curva logo adiante e o túnel se abrindo para uma escuridão maior e etérea. Preto, além de todas as cores.
Ela estava esperando, acompanhada.
Johnny Cash estava certo e a enciclopédia estava errada.
As cobras rastejam à noite.
CAPÍTULO 6
Os campos eram verde-dourado e estendiam-se até a floresta circundante. Grandes montes de terra elevavam-se no horizonte, entalhados, lascados e arredondados pelo
mestre escultor, o Tempo. Mason agora sabia por que as montanhas eram chamadas de Blue Ridge, apesar das folhas outonais espalharem um tal conjunto de cores que
ele quase quis ser um pintor.
Laranja-abóbora, amarelo-verão estralado, dourado-milho e roxo-beterraba. Van Gogh teria arrancado a outra orelha para pintar esse lugar.
Exceto que um pensamento irrompeu por entre o ideal artístico de sacrifício. Mason se perguntou se a fieira histórica de artistas malucos não teria ficado esquizofrênica
ou envenenada pelo chumbo presente em suas tintas, mas, sim, pelo sussurrar de Musas exigentes.
Ele afastou o pensamento de sua mente porque parecia uma opção que apenas um maluco consideraria. Além do mais, ele desistira de pintar não por causa de falta de
vontade ou talento, mas por causa de sua natureza tátil. Sua mãe podia sentir a escultura com os dedos, mas uma pintura para ela não passava de uma interminável
obra em preto.
Alguns cavalos e vacas pastavam no campo que descia suavemente a partir da frente da casa. A terra aberta devia ter uns vinte acres, sem pedras e cuidadosamente
cultivada. Mason achou difícil acreditar que a terra macia desse lugar era cercada de desfiladeiros de granito por todos os lados.
Nem mesmo a trilha de um jato marcava o céu azul de outono, como se a fazenda estivesse longe da civilização não apenas em distância, mas também em tempo. Árvores
majestosas espraiavam seus ramos em espaços cuidadosamente planejados ao longo da trilha de carroça que se dirigia rumo oeste. Um pomar de maçãs cobria uma elevação
ao lado da pastagem, com árvores pintalgadas de frutos rosa e dourado. Uma grama vistosa serpenteava em um campo de trigo adiante, acabando no limite de uma floresta
densa.
Uma voz suave interrompeu seus devaneios - Agora você sabe por que os artistas deixam seus egos para trás e vêm para cá. Especialmente no outono.
Anna Galloway cruzou o portal, inclinou-se sobre o corrimão, fechou os olhos e inalou o ar pelo nariz com um gesto exagerado - Ah, ar fresco. Uma grande mudança
da atmosfera pretensiosa lá de dentro.
- Você é pintora? - perguntou Mason, o olhar ainda cruzando o campo, irritado por sua espetada nos artistas.
- Não.
- Nem eu.
- O que você é, então?
- Todo mundo tem que ser alguma coisa?
A mulher inclinou a cabeça para trás na direção da casa. - Se você ouviu a conversa deles, penso que sim.
- Bem, isso é um retiro, no fim das contas. Dê uns passos para trás e diga um "Nossa!", acho. - Ele não queria que ela notasse que estava fora de seu elemento. Ele
já sentia saudades das pequenas ruas sujas de Sawyer Creek, com seus postes de propagandas e quadros de avisos. Se estivesse em casa, agora estaria esquentando a
água para o chá e ligando o rádio no programa predileto de sua mãe.
- O que tem na sacola?
- Essa? Nada. Apenas algumas ferramentas.
- Que pena. - disse ela. - Você seria muito mais interessante se fosse um paraquedas.
Mason tentou não olhá-la fixamente, apesar de ser tudo o que gostaria de fazer. Era bonita, claro, mas também havia a impressão de que ela não permitiria que ele
se escondesse por detrás do papel que estava representando, aquele que utilizara para blefar durante a época da universidade.
Os olhos azuis eram penetrantes demais, viam além do rosto escorregadio das primeiras impressões. Ele demorou alguns segundos a mais para dar uma resposta mordaz.
- Não acha estranho eu andar com uma sacola de ferramentas para todo lado?
- Acho estranho você tê-la carregado por sobre a ponte. Como se esperasse que a arte pudesse ocorrer a qualquer momento.
Ele gostaria de poder contar a ela. As ferramentas não eram assim tão caras, mas elas chegaram às suas mãos a um preço muito grande. Ele pensou em Mama sozinha em
seu apartamento minúsculo em Sawyer Creek, sentada em sua poltrona, um gato em seu colo. Os olhos nunca piscando.
Essa mulher, que acabara de conhecer, era de uma perspicácia infernal e logo viu seu jeito inseguro com uma clareza invejável. Ele era pior que os demais, mesmo
quando fingia estar distante e não engolindo suas conversas pretensiosas e fúteis. Ele não estava certo se seu trabalho revelava algo sobre o mundo, mas ainda assim
estava determinado a esfregá-lo no rosto de todos para chamar a atenção.
Mason ajustou a sacola no ombro, sentindo o olhar da mulher sobre si. - Ferramentas para esculpir. - disse ele - Um martelo, uma machadinha, formões, goivas e algumas
lâminas.
- Você trabalha com madeira?
- Fiz um pouco de tudo. - Ele finalmente a encarou de frente, forçando-se a não piscar sob seu olhar penetrante. - Mas aqui trabalharei em madeira.
Ela concordou com a cabeça, como se já o tivesse esquecido. - Seis semanas não é muito tempo. Seria difícil conseguir fazer algo em pedra nesse período.
Seu sotaque era quase rural, como se ela tivesse tentado ser do campo, mas alguém a houvesse mandado para a universidade a fim de extirpar-lhe esse desejo, como
quem espreme uma espinha. Um dos cavalos, um grande ruão, galopou pela pastagem. Ela sorriu enquanto o observava.
- Que lugar, hein? - disse ele.
- Vi algumas fotos, mas elas certamente não fazem justiça. - Novamente ela soou distraída, como se Mason fosse tão entediante quanto os ricaços da Srta. Mamie.
Mason caminhou entre os arbustos e tateou as juntas esculpidas do corrimão. Colunas chanfradas sustentavam o pórtico, a tinta grossa e rachada onde as camadas haviam
se acumulado por décadas. A fundação de pedra do solar tinha uma grossa camada de musgo. Um impulso juvenil de impressionar a mulher o tomou de surpresa. - Arquitetura
de revivalismo colonial. - disse ele - Esse tal de Korban deve ter gasto um bom dinheiro nisso.
- Você sabe alguma coisa sobre ele?
- Apenas o que li no panfleto. Industrial, fez fortuna após a guerra hispano-americana, comprou essa montanha e construiu o solar como casa de verão. Dois mil acres
de terras conectadas à civilização apenas por aquela ponte de madeira.
Ele se odiou por ficar de papo. Não tinha vindo até o Solar Korban para ficar de conversa. Ele precisava se dedicar ao trabalho, não perder tempo com alguém que
parecia tão interessada nele quanto num pedaço de esparadrapo. Além disso, era de se supor que artistas fossem meio avoados, mesmo.
- Então você tem apenas a versão oficial da biografia. - disse ela - Fiz uma pequena pesquisa particular sobre ele. Esse é o meu trabalho.
- Você é uma escritora?
- Tipo isso.
- Deu para ver. Se perguntasse a minha opinião, diria que escritores são mais metidos e ferrados que artistas.
- Mas eu não perguntei. Como estava dizendo, Korban determinou em seu testamento que essa propriedade fosse mantida como era no final do século XIX. Ele estipulou
que o Solar Korban deveria tornar-se um retiro para artistas. Enquanto estava vivo, encorajou os empregados a encher a casa com artesanatos da região. Talvez ele
gostasse da ideia de sua casa estar repleta de energia criativa. Uma forma de se manter vivo.
- Aquele retrato, entretanto, é um pouco além da conta. - disse Mason -Ele deve ter tido um ego e tanto.
- Ele mesmo provavelmente era um artista. - Ela pareceu cansada, fez um gesto de dispensa e abriu um meio sorriso enlouquecedor. - Com licença, tenho que ir para
meu quarto.
Mason fumegou por dentro. Garota estúpida e narcisista, distraída e abrupta, tão nariz em pé quanto qualquer um daqueles Yankees conversando na sala de estar. Bancando
a gótica, pálida o suficiente mesmo sem maquiagem. Provavelmente usava a palavra "morte" para qualquer coisa que escrevesse.
Ele devia ter se esforçado mais na sua simulação, agido como alguém frágil. Talvez ele começasse a usar uma boina a fim de aparentar um ar sofisticado e deixasse
crescer um daqueles ridículos cavanhaques estilo Pierre. Isso arrancaria umas boas risadas do pessoal em Rayford Hosiery.
- Até mais tarde. - disse ele, tentando não parecer otimista demais. Então, sem saber de onde vieram as palavras, continuou - Espero que você encontre o que veio
procurar.
Ela se virou, encontrou seus olhos, novamente sérios. - Estou procurando a mim mesma. Diga- me se me encontrar.
E se foi, engolida pela grande casa branca que tinha o nome de Korban.
CAPÍTULO 7
- Podemos empurrar as camas para ficarem juntas. - disse Adam.
- Com certeza, e quando você rolar na cama dormindo, será o seu rabo que cairá na brecha entre os colchões.
- Fico me perguntando que tipo de cama os casados ganham.
- Provavelmente uns arreios presos aos balaústres da cama, com um espelho no teto.
- Não fique tão oprimido, Paul. Isso será romântico, como nos velhos tempos em que nos aconchegávamos nos sofá de sua irmã.
- É, até ela nos descobrir. Aquilo foi uma cena que não entrará num especial Disney para famílias.
Adam suspirou. Se apenas Paul não fosse tão cabeça-dura. Eles fariam dar certo. Eles sempre fizeram. E Deus não estava à solta para punir gente como eles, apesar
dos veementes rompantes dos direitistas raivosos.
- Escute. - disse Adam - Vamos empurrar as duas camas contra a parede e você pode ficar com o lado encostado nela. Assim, se alguém rolar para fora e bater a cabeça
no chão, serei eu.
Paul passou a mão no cabelo, exasperado. Umas mechas ficaram de pé, loiro-escuro e ondulado, como um jovem Robert Redford. Isso, combinado com seus olhos semicerrados
e cílios densos, faziam-no parecer sonolento. Adam gostava daquele ar sonolento e fora uma das primeiras coisas que o atraíram nele.
- Certo. - disse Paul - Vou parar de pegar no seu pé agora. Isso é para ser uma segunda lua de mel.
Adam sorriu. Os rompantes de Paul nunca duravam muito. - Isso significa que eu vou ganhar minha virgindade de volta?
Paul pegou um dos travesseiros de pena de baixo dos cobertores e o atirou. Adam se defendeu com facilidade. - Diga-me, você se encheu da Srta. Mamie?
- Ela poderia passar por uma drag queen se tivesse um pouquinho de pomo-de-adão.
Eles riram juntos. Adam disse - Você não mede as palavras e faz picadinho das pessoas. Na verdade, você faz picadinho de tudo.
- Vou fazer picadinho de você, se não se cuidar. E é por isso que você me ama.
- Bem, essa é uma das razões.
- Vamos desfazer as malas. Quero sair e encontrar pessoas.
- Isso é bem o seu tipo, mesmo. - disse Adam - Ficamos a centenas de quilômetros de qualquer lugar e aí você resolve que vai participar de alguma social.
- Vivo para festas, Princesa.
- Ei, é a minha herança que estamos gastando aqui. E não pense que vou deixar você se esquecer disso.
Paul fez seu beicinho de mentira como resposta.
Adam carregou a bagagem deles até o closet. Paul tinha três malas que combinavam e uma mala de casco duro para sua câmera de vídeo. Adam tinha apenas uma mochila
e uma bolsa com pesos.
- Além disso, - disse Adam - quando o dinheiro acabar, sempre podemos vender seu corpitcho lindo para comerciais da Calvin Klein.
- Só enquanto eu não tiver que beijar a Kate Moss. Ela me deixa nervoso.
- Se ela der uma olhadinha em você, vai querer ter um filho seu, bobo.
- Como se isso fosse acontecer um dia.
- Ei, deixa disso. Você daria um papai lindo.
- Chega dessa conversa. - disse Paul.
Adam começou a pendurar as camisas de algodão de Paul nos cabides, tomando cuidado para se manter de costas. Ele não queria que seu desapontamento fosse visto. Paul
era terminantemente contra a adoção, contra, na verdade, o compromisso derradeiro. E ninguém conseguia ser tão resoluto quanto Paul.
- Desculpe - disse Adam, as palavras abafadas dentro do closet. - Só pensei que, aqui nesse ambiente selvagem, longe de nossa antiga vida e pressões...
- Disse para não começar com o assunto.
- Você disse que poderíamos conversar sobre isso quando chegássemos aqui.
- Mas não disse que conversaríamos de cara. Quero relaxar um pouco e você está me deixando tenso.
- Não vamos brigar. É um modo péssimo de começar as férias.
- Preciso trabalhar um pouco, também. Como posso fazer alguma coisa se você fica me azucrinando com essa porcaria de história de "consolidar as coisas"?
Adam suspirou no interior escuro do closet. Ele terminou de guardar as roupas e então fingiu estar interessado no que acontecia lá fora da janela. Paul se divertiria
filmando algumas coisas nesse lugar. Um documentário belo e pacífico pela visão de um garoto de Boston.
Eles ficaram com um quarto no terceiro andar, menor que os demais que haviam visto enquanto a empregada os levava pelas escadas. A janela ficava encravada na cumeeira.
Todo o piso, paredes e teto do andar superior eram cobertos de madeiras encaixadas. Na subida, Adam havia perguntado à empregada sobre a escada estreita que levava
a uma pequena porta no teto. Ela lhe falou que levava à balaustrada do telhado e que aos hóspedes não era permitido o acesso a essa área. Ela havia dito isso, Adam
pensou, com um tom nervoso e uma pressa inquietante. Ele ficou pensando se algum hóspede, durante algum retiro anterior, havia sofrido algum acidente por lá.
Ele virou de costas para a janela, pronto para fazer as pazes. Se ele conseguisse fazer Paul falar sobre vídeo, a cisma logo estaria esquecida. - Então, você acha
que trouxe fitas suficientes?
- Tenho o suficiente para oito horas. Um pena que o orçamento não tenha me permitido comprar uma câmera Beta SP. Estou preso nessa digital vagabunda.
- Bem, você está trabalhando por contrato para a televisão pública. O que esperava, o orçamento do Titanic sem o Leo DiCaprio?
- Ei, eu ficaria felicíssimo com o orçamento do cabeleireiro dele. Fundos para documentários são o fundo do poço no que se refere a dinheiro nos dias de hoje. Talvez
eu devesse tentar "Mistérios do Inexplicável e outros Fenômenos Ocultos Esquecidos". Com toda essa conversa do solar ser mal- assombrado, quem sabe?
Adam sorriu, contando como vitória toda vez que Paul voltava para seu humor sarcástico. Paul não aceitava nenhum dinheiro de Adam para subsidiar seus vídeos, mas
por outro lado não tinha nenhum pudor de ser um "homem sustentado". Paul esticou-se em uma das estreitas camas e olhou para o teto. Talvez estivesse visualizando
a edição de alguma sequência de vídeo.
- Vou lhe dizer uma coisa. - disse Adam - Gostaria de ser abduzido por alienígenas enquanto você filma.
- Ouvi dizer que eles fazem todo tipo de experimento sexual bizarro.
- Parece melhor a cada segundo.
- Ei, o que eles podem fazer que eu não posso fazer melhor?
Adam atravessou o quarto. Paul estava com aquele olhar sonolento novamente. - Me beije, seu bobo.
Paul o beijou. Adam sentiu olhos os vigiando. Estranho.
- O que foi? - Perguntou Paul, a voz rouca.
- Não sei. - disse Adam. Ele olhou ao redor. Ninguém conseguiria vê-los pela janela e a porta estava trancada. Além da mobília, a única coisa no quarto era uma pintura
a óleo, uma réplica menor do homem cujo retrato encontrava-se na sala de estar.
Não vou ficar paranoico. Está tudo bem em ser gay, mesmo na região rural do sul. Está TUDO bem em voltar à natureza. Esse amor é tão real quanto qualquer outra coisa
no mundo.
Ele deslizou na cama ao lado de Paul, pensando se o velho careta do Korban desaprovaria o fato de dois garotos estarem se pegando no sótão. Korban estava morto e
Paul muito mais vivo.
CAPÍTULO 8
Mason estava cansado de sua caminhada ao longo das trilhas de carroças. Passara a tarde tentando clarear a mente, saboreando a solidão e a quietude da floresta da
montanha que cercava a fazenda. Lá, sob as antigas árvores, ninguém tinha nenhuma expectativa a seu respeito. Não tinha que ser uma nova estrela das artes, não era
as esperanças e sonhos de sua mãe e não tinha obrigação de provar seu valor ao pai mais implacável do mundo. No Solar Korban, ele era apenas um qualquer, com sua
pequena sacola de truques.
A sala de estar estava quase vazia quando Mason retornou ao solar, logo antes do pôr do sol. Balançou a cabeça para um casal de idosos com casacos que combinavam,
as mangas arregaçadas e as bebidas a postos. Roth e uma garota de pele escura estavam conversando, Roth gesticulando como se estivesse fotografando. A empregada
lúgubre estava ao pé das escadas, as mãos às costas, olhando para o retrato de Korban. Mason acenou para Roth e atravessou a sala, cuidando para não olhar para a
lareira. Estava com receio de ver algo que não estaria lá.
Ele tocou a empregada no ombro. Ela girou como se tivesse levado um choque e Mason deu um passo atrás e abriu as mãos em um gesto de desculpas. - Desculpe assustá-la,
mas é você que está mostrando os quartos para nós?
Ela forçou um sorriso e concordou com a cabeça. Mason forçou os olhos para ler o nome na placa de latão em seu peito. Lilith.
- Nome, por favor? - A voz um pouco acima de um sussurro. A risada de Roth ressoou do outro lado da sala, sem dúvida alimentada por mais uma de suas piadas.
- Jackson. - disse Mason.
- Sr. Jackson, você está atrasado. - Ela tentou sorrir novamente, mas o sorriso apenas adejou sobre seu rosto para depois se esconder nas sombras de sua boca. -
Segundo andar, ao final da ala sul.
- Espero que tenhamos banheiros. - disse ele, tentando um pouco de humor grosseiro - Sei que se espera que façamos uma viagem no tempo, mas não vi nenhuma casinha
de banheiro do lado de fora do solar.
- Banheiros compartilhados apenas para quartos conjugados. - disse ela, já subindo as escadas. -Você tem um banheiro privativo. Siga-me, por favor.
Mason relanceou os olhos uma última vez para a lareira e então para o rosto gigante de Korban. Mesmo com olhos sem vida e confinado a duas dimensões, o homem possuía
carisma. Mas até aí, também tinham carisma David Koresh, Charles Mason e Adolf Hitler. E o pai de Mason. A galeria dos otários. Mason balançou a cabeça e subiu as
escadas. Lilith não havia se oferecido para carregar sua sacola. Talvez ela tivesse reparado no quão possessivamente ele a segurava ou talvez a educação e maneiras
do século XIX ainda dominassem o solar.
Lilith deslizou sobre o piso de carvalho, o vestido farfalhando suavemente. Se ela fosse a um evento gótico na cidade, com certeza sua compleição doente se encaixaria
no contexto. Ela movia-se com uma graça que se contrapunha às suas feições emaciadas. Julgando por suas mãos ossudas e os ângulos de seu crânio, Mason esperava que
ela chocalhasse enquanto caminhava.
O segundo andar era tão suntuoso quanto o primeiro, com o mesmo pé-direito alto e acabamento nas paredes. Um par de candelabros flutuava sobre o grande saguão, cada
um com velas cor de creme presas em um anel de prata e envoltas em contas de cristais. Lâmpadas astrais queimavam à altura dos olhos a cada seis metros, as chamas
lançando luz suficiente para empurrar as sombras sobre o acabamento de madeira. Fileiras de três sólidas portas de bordo alinhavam-se em ambas as paredes e pinturas
a óleo de paisagens encaixavam-se nos intervalos entre as portas. A arte era de alta qualidade, todas com cenas do solar. Uma delas era da ponte de madeira que Mason
e os convidados haviam atravessado e a imagem trouxe de volta a lembrança de seu pânico. Ela, como as outras pinturas, não trazia a assinatura do artista.
Grandes retratos de Korban, com diferentes efeitos de luz daquele presente no retrato da sala de estar, mas possuindo o mesmo cenho de época, estavam pendurados
no final de cada corredor.
- Belas pinturas. - disse ele a Lilith.
- O Sr. Korban vivia para sua arte. Todos vivemos.
- Ah, você é uma delas? - ele brincou. Ou ele estava muito oprimido com o iminente fracasso como escultor ou ela estava preocupada, mas a brincadeira não obteve
sucesso.
- Costumava ser. - replicou Lilith.
Passaram em frente a uma porta aberta e Mason olhou para dentro. O corpanzil de Jefferson Spence se esparramava sobre uma cadeira de madeira enquanto o escritor
desempacotava seus papéis e os distribuía sobre a mesa. A Srta. Revista de Moda não estava à vista. Mason notou que o quarto possuía apenas uma cama e, então, rapidamente
desviou o olhar, censurando-se por ser curioso.
Lilith o levou a uma porta no final do corredor. Ela rangeu quando foi aberta. Lilith deu um passo para o lado, para que Mason pudesse entrar, mantendo os olhos
voltados para o chão.
- Obrigado. - disse Mason. Sua mala surrada, uma Samsonite com fita isolante segurando a alça no lugar, estava dentro do quarto. A suíte era grande, com uma cama
king size de dossel, mesas de cerejeira, escrivaninhas de castanheira e criados-mudos circulares. Janelas grandes e retangulares estavam nas paredes sul e oeste
e Mason deu-se conta de que o quarto receberia sol o dia todo. Isso era um luxo em um lugar que não apresentava eletricidade. O sol poente inundava o quarto com
uma coloração quente em tom de mel.
- Uau! Esse deve ser um dos melhores quartos. - disse ele.
A empregada ainda estava do lado de fora, como se estivesse com medo de respirar o ar do quarto.
- É a suíte mestre. - disse ela - Costumava ser o quarto de dormir de Ephram Korban.
- É por isso que tem o retrato dele na parede? - perguntou Mason, acenando com a cabeça na direção da pintura sobre a grande lareira do quarto. Era uma versão menor
da pintura pendurada na sala de estar, de um Korban um pouco mais moço. Os olhos, entretanto, eram do mesmo modo negros e sem vida, um leve indício de sorriso nos
lábios cruéis.
- A Srta. Mamie escolheu esse quarto especialmente para você. - disse Lilith sem emoção - Ela disse que você foi muito bem recomendado.
Mason jogou a sacola sobre a cama. As ferramentas tilintaram. - Espero corresponder às expectativas.
- Ninguém conseguiu ainda. - disse Lilith ainda esperando do lado de fora. Se ela estava brincando, não havia sinal disso em seu rosto.
- Ahn, não sei muito a respeito de lugares como esse. - disse ele, colocando a mão no bolso e caindo na sua rotina estilo "ah, que saco". Havia aprendido que as
pessoas eram mais condescendentes se pensassem que ele era um caipira burro pois suas expectativas seriam menores.
Ele conseguia o mesmo efeito com o sotaque sulista, apesar disso ter deixado de ser intencional. Ele suspeitava secretamente que seu sucesso em Adderly havia sido
em decorrência de seus instrutores sofisticados ficarem surpreendidos que um simples aldeão pudesse invadir sua confinada sociedade e competir com os membros da
elite cultural. - Você pode pensar que sou burro, mas eu deveria lhe dar gorjeta ou algo assim?
- Não, claro que não. E a Srta. Mamie me mataria se você tentasse. - Lilith conseguiu sorrir, aliviada por ter sido dispensada. Ela era mesmo atraente, de um jeito
nervoso e pálido, como uma princesa cuja cabeça estivesse para ser cortada. Ela não era bonita como a mulher de revista de moda com olhos azuis, mas Lilith provavelmente
não desdenharia os artistas caso também fosse um deles.
Lilith apontou para a porta na parede oeste. - O banheiro é ali.
- Ótimo. - Ele sentou-se na cama.
- Isso é tudo?
- A não ser que você queira tirar meus sapatos.
Ela deu um passo hesitante à frente, olhando para o chão.
- Ei, eu estava só brincando. - Ele deu uma risada que pareceu um cavalo engasgando com uma maçã.
Lilith abriu novamente o sorriso febril e então disse. - O jantar é às oito em ponto, Sr. Jackson. Não se atrase. A Srta. Mamie não apreciaria.
Então ela se foi. Mason voltou a atenção mais uma vez para a mobília. Uma luminária em cada criado-mudo, uma base oval de vidro preenchida com óleo pesado e envolvida
com adornos de latão. Um fogo crepitava na lareira, uma pilha de lenha empilhada próximo às pedras. Era um milagre que um lugar como esse não tivesse pegado fogo
em todos esses anos. Mason se recostou nos travesseiros e olhou para os padrões ondulados do gesso no teto.
Certo, Mase, isso foi o que você quis a ponto de se envolver com todos os problemas que teve. Você fez de tudo, exceto ficar nu e balançar as partes em frente ao
comitê de bolsas do Conselho de Artes. Você se desviou das críticas, vendeu sua marca de óleo de cobra e agora deu talvez o maior passo de sua carreira. Talvez até
de sua vida. Porque se você não produzir nada vendável por aqui, pode começar a procurar um abrigo para mendigos em Sawyer Creek.
E terá que olhar sua Mama nos olhos, mesmo que ela não o enxergue, e dizer que falhou, que os sonhos dela não foram fortes o suficiente e que você não acreditou
neles o suficiente.
Retinopatia diabética. Uma rápida deterioração da visão, exceto que ela nunca falara nada enquanto o túnel se fechava. Ela mentiu para os médicos por tempo suficiente
para que a doença se tornasse irreversível e Mason descobriu apenas quando era tarde demais. Ela era muito nova para ser aposentada por invalidez e não era pobre
o suficiente para ser tratada pelo governo, mas ainda podia ter seguido em frente e rolado as dívidas até, por fim, declarar falência. Mason tinha gasto o dinheiro
em Adderly, martelando em pedaços de madeira e ferro, tentando dar-lhes a forma de sonhos.
A pior parte era que Mason não sabia se a admirava por seu sacrifício ou se a desprezava por ser tão nobre. Agora ela se arrastava devido à deficiência e sobrevivia
às custas de qualquer coisa que Mason fosse capaz de conseguir de seu pagamento na fábrica. Mas aquele trabalho era passado agora, perdido devido à sua busca pela
arte. Ainda assim, Mama era sua maior fã.
- Nunca deixe de sonhar, querido. - disse ela por entre dentes que não tinha dinheiro para consertar. - Isso é tudo o que conseguimos desse mundo, nossos sonhos.
Mason levantou-se e caminhou pelo quarto, do mesmo jeito que costumava andar quando estava ansioso com alguma ideia, quando sentia os dedos coçarem, quando uma nova
escultura começava a tomar forma em sua mente. Era a mesma mistura de excitação e pavor, excitação porque a nova ideia era a melhor de todas, e pavor porque ele
sabia que o produto final nunca se igualava à ideia sonhada.
Exceto que dessa vez a ansiedade não era um efeito colateral da alegria.
Esse retiro era a imagem do maior de todos os grandes sonhos. Ele já havia decidido que se nenhum caminho ou reconhecimento fossem construídos durante esse retiro,
ele jogaria suas ferramentas sobre o corrimão da ponte que separava o Solar Korban do resto do mundo. Claro, a altura lhe daria algum trabalho pra fazer isso, mas
ele poderia se arrastar de olhos vendados, se fosse o caso. Ele ouviria o metal tilintando e martelando pelas rochas abaixo e deixaria os calos e bolhas se curarem
enquanto buscava um emprego de verdade.
Criatividade tinha um preço. Você tinha que pagá-lo, mesmo tendo a chance de fracassar. Médicos e advogados passavam dez anos na universidade e pagavam dezenas de
milhares de dólares. Criminosos pagavam com o risco de perder a liberdade. Soldados enfrentavam um custo ainda maior. Artistas pagavam com outras coisas, a mais
barata delas era a dor.
Não que ele se importasse de sofrer pela sua arte. Apenas pensava que Mama não precisava. Ele olhou para baixo e viu que os punhos estavam cerrados como martelos
raivosos, o ódio quase o deixando embriagado.
Ele parou de andar e se inclinou contra a janela, olhando pelo vidro antigo em direção às terras do solar. Apesar de estar a apenas dois andares do chão, teve que
se segurar para controlar a tontura.
Anna estava junto à cerca, acariciando um cavalo. O pôr do sol dourava o horizonte e a luz carinhosa a deixava etérea e bonita, uma princesa de faz de conta sobre
a grama. Os campos verdes e ondulados, o céu brilhante, o lago faiscante aos pés das pastagens e a mulher aparentemente sem peso pareciam trancados dentro de um
sonho.
De acordo com seu pai, sonhos eram apenas uma maldita perda de luz do dia.
Mason foi ao banheiro. O encanamento era primitivo, apesar dos metais serem ornados como o resto da casa. Uma banheira de ferro fundido ficava em um canto, a pia
era de mármore, com uma torneira prateada e um espelho emoldurado.
Ele virou para a privada de cerâmica e se aliviou, notando o pequeno tanque sifonado colocado alto na parede. Os canos por detrás da parede pularam e gemeram quando
ele deu a descarga. Lavou as mãos na pia, relanceando o olhar no espelho. Apesar de a água ser fria, o espelho ficou embaçado.
Ele o limpou com a manga da camisa. Ainda assim, o vapor permaneceu e ele franziu o cenho ante sua imagem distorcida. O rosto no espelho parecia um pouco lento para
responder aos movimentos, o triste e cansado rosto de um prisioneiro.
Quando retornou ao quarto, suas ferramentas estavam espalhadas sobre a cama. Pareciam zombar dele, desafiando-o a usá-las e falhar. Ele não se lembrava de tê-las
tirado da sacola. Será que estava assim tão distraído e nervoso?
O retrato de Korban reluziu sobre ele, o sorriso imaginário desaparecido. Korban era apenas outro capataz, um crítico frio e exigente. Um observador, fora do processo
criativo, mas pronto para julgar algo que ninguém, além do criador, poderia compreender. Apenas outro idiota com uma opinião.
Mason aproximou-se das ferramentas, atraído, como sempre, pelo seu poder. Curvou-se para elas, tocou nas goivas, formões e martelos, reconfortando-se com suas arestas
e pesos. Elas estavam famintas, precisavam dos dedos de Mason para ajudá-las a moldar o mundo. E Mason, por sua vez, precisava delas num vício simbiótico que criava
tanto quanto destruía.
Ele virou as costas para o retrato de Korban e limpou as ferramentas com um pedaço de camurça até que brilhassem à luz das chamas.
CAPÍTULO 9
Outubro era um caçador e sua presa era o verde do verão. O vento se movia pelas colinas como um falcão relutante; asas bem abertas, garras prontas, olhos duros e
vigilantes. Por debaixo da pele fria e dourada, a terra abalava-se sob sua passagem. A manhã retinha sua respiração acinzentada. Cada folha e broto tenros estremeciam
em temor.
Jefferson Spence olhou para as chaves do velho manual Royal. "Dentes de Cavalo", as chaves eram chamadas. George Washington possuía dentes de cavalo, de acordo com
a lenda. Spence sabia que estava desperdiçando seu tempo, procurando qualquer distração que o detivesse de iniciar outra sentença. Olhou para a chama tremeluzente
da lâmpada sobre sua mesa.
Olhou para o rosto de Ephram Korban na parede. Nesse mesmo quarto, vinte anos antes, Spence tinha escrito Seasons of Sleep, uma obra prima sob todos os prismas,
especialmente o dele. Todos os seus outros romances deixaram de alcançar essa glória, mas talvez a mágica pudesse retornar.
Palavras eram magia e talvez o velho Korban deixasse escapar um segredo ou dois, ou lhe sussurrasse alguma sabedoria perdida, colhida através de todos os anos pendurado
naquela parede.
- O que - disse Spence ao retrato, a voz preenchendo o recinto - você quer me dizer? Bridget perguntou do banheiro, com o sotaque suave da Georgia - O que foi, querido?
- Ter ou não ter. - disse ele.
- O que é que você não tem? Pensei que tivesse trazido tudo com você.
- Esqueça, meu doce. É melhor guardar uma alusão a Hemingway para um público melhor. Spence havia encontrado Bridget durante uma oficina de verão de literatura e
escrita na universidade da Georgia. Ele tinha ministrado a oficina durante os dias e passado a maior parte das noites espairecendo nos bares de Athens. A maior parte
dos alunos de último ano haviam se juntado a ele nas primeiras noites, mas a paixão pela autoindulgência e sua natureza brusca levaram o grupo a se dissolver. Na
quinta-feira da primeira semana, apenas os mais fiéis ainda orbitavam à sua volta como satélites brilhantes na direção do buraco negro da massa incalculável de Spence.
Três dessas fiéis eram elegíveis, sob os olhos de Spence: uma deusa africana de pele cor de bronze e cachos oleosos; uma loira magra com um jeito maligno de lamber
os lábios e um apetite insaciável pelos trabalhos de Richard Brautigan; e a doce Bridget. Como sempre, alguns estudantes masculinos haviam se amontoado e escrito
dicas para ele em troca de drinques. Spence tinha pouca paciência com escritores. Seu melhor conselho era passar mais tempo sobre o teclado que em frente a espelhos.
Mas a mente das mulheres era mais simples e desprovida de pretensões literárias.
Ele havia escolhido Bridget precisamente porque ela era inocente e, assim, seria a escolha mais corrupta das três.
- Botando a cachola para funcionar? - perguntou Bridget.
Ele podia sentir sua nudez. Talvez fosse o calor primal da pele fresca ou a energia animal que ela irradiava. - Não me interrompa quando eu estiver trabalhando.
- Só pensei...
- Desde quando você passou a elaborar pensamentos? Deixe essa atividade àqueles que possuem um cérebro.
Ele ouviu a porta se fechando com um sólido clique, em vez da batida de uma mulher mais confiante. Ele havia escolhido sabiamente.
Spence olhou para o papel inserido na Royal. Seis anos. Seis anos e tudo que ele tinha para mostrar era esse parágrafo que tinha reescrito centenas de vezes. Era
o mesmo parágrafo com o qual ele havia persuadido Bridget na primeira vez, o parágrafo que não havia ousado mostrar nem para seu agente nem para seu editor.
Ele sabia que havia chegado o tempo de se livrar de tudo aquilo, procurar uma perspectiva nova, convocar as musas antigas. Se havia um lugar no qual ele poderia
recuperar sua magia, esse lugar era o Solar Korban.
Ele colocou os dedos sobre as teclas. O som do chuveiro veio do banheiro e Bridget começou a cantar com a pequena e bela voz. "Stand By Me", a velha música de Ben
King. Ele digitou "Fique do meu lado" como parágrafo de abertura e então apertou os dentes e arrancou a folha da máquina. Rasgou a folha em quatro pedaços e os deixou
cair no chão.
Spence reclinou-se na cadeira e olhou pela janela. As copas das árvores balançavam ao vento que ficara mais forte com a proximidade da noite. Ele imaginou os odores
do outono, de maçãs caídas, machucadas e doces sob as árvores, de folhas de bétulas sob os sapatos, de cascas de cerejeiras rachando e exsudando a seiva transparente,
de tortas de abóbora e fumaça nas chaminés. Se apenas conseguisse encontrar as palavras para descrever essas coisas.
Spence retornou a atenção ao retrato de Korban na parede. Pensou em ir até o banheiro e ver Bridget se ensaboando, mas ela talvez tentasse excitá-lo. Toda nova beldade
achava que seria a escolhida, de dúzias que ele havia tentado, para acabar com o que tinha chamado de "A maldição de Hemingway".
E a cada novo fracasso, Spence sentia raiva e humildade. Apesar de agradecer a raiva, odiava a humildade.
Praguejou entre os dentes e colocou outra folha de papel na máquina. O papel era pesado, uma mistura de vinte por cento de algodão. Papel nobre. Imponente e problemático.
As palavras viriam. Elas tinham que vir. Ele ordenava que elas viessem. Spence olhou para o rosto de Korban - O que devo escrever, senhor?
O retrato olhou de volta, os olhos negros.
Os dedos de Spence pressionaram as teclas, o movimento barulhento vibrando pela mesa e ecoando pelo chão de madeira, o sino de retorno tinindo a cada trinta segundos.
A casa assentava-se entre os seios das colinas, entre as ondulações, sobre rios, sobre toda a Terra, alcançando até onde somente deuses poderiam viver. E, na casa,
na alta janela solitária pela qual ele podia vislumbrar o mundo que seria seu, o homem sorriu.
Eles tinham vindo, tinham atendido a seu chamado, àqueles que lhe dariam vida. Eles cantariam suas canções, entalhariam seu nome em seus corações, o pintariam pelo
céu. Vieram com suas poesias, suas imagens, suas palavras febris, seus sonhos. Vieram trazendo oferendas e ele lhes abençoaria de igual modo -
Spence estava tão perdido no ato de escrever, perdido como há anos não se sentia, que não notou quando Bridget caminhou nua e fumegante para dentro do quarto. Ele
trabalhava furiosamente, a língua pressionada contra os dentes. O talento estava retornando, fluindo como sangue por veias esquecidas. Ele não sabia a quem agradecer,
se a Bridget, Korban ou alguma musa desconhecida.
Ele se preocuparia com isso depois. Nesse momento, as palavras carregavam Spence para longe de si mesmo.
CAPÍTULO 10
Anna olhou para o prato. Da costela saiam sucos e vapores e, em outras circunstâncias, seria tentadora o suficiente para desafiar seus princípios vegetarianos. O
brócolis macio e as batatas vermelhas haviam invocado várias espetadas exploratórias de seu garfo. A torta de maçã era tão macia que se esfarelara sobre o prato
de porcelana.
Enquanto observava a lava açucarada escorrendo pela torta afora, pensava se deveria se preocupar com a dieta. Olhou para Jefferson Spence do outro lado da mesa e
não reparou em nenhuma hesitação em seu garfo. Ela comeu algumas garfadas rápidas de legumes e então mexeu um pouco na comida pelo prato para dar a impressão de
que havia se alimentado bem. Pelo modo com a Srta. Mamie havia sido meticulosa com relação aos detalhes do jantar, Anna quase se sentiu culpada por não apreciar
a comida.
A sala de jantar era um aposento longo colado à sala de estar. A sala continha quatro mesas, uma longa no centro, ocupada pelas pessoas que secretamente nomeou como
"cultos superlativos". As outras, menores, eram relegadas aos cantos da sala. Aparentemente, a Srta. Mamie havia tentado combinar as pessoas de interesses similares
quando as distribuiu em seus assentos. Isso significou colocar todos os com menos de cinquenta nas mesas menores.
Anna estava sentada com Cris e a mulher negra que tinha visto carregando uma câmera. À sua esquerda, o sujeito com o qual havia conversado na sacada, o escultor
tacitumo. Apesar de seu rosto ser comum, havia algo em seus olhos verde-acastanhados que continuavam a lhe atrair o olhar. Um fogo secreto, enterrado. Talvez fosse
apenas o reflexo das duas velas queimando no centro da mesa. Ou apenas um vislumbre de sua solidão desesperadora.
Cris havia murmurado uma prece antes do jantar. A mulher negra também havia baixado a cabeça. Anna não sentiu-se compelida a compartilhar esse ritual e aproveitou
a oportunidade para estudar as pessoas à mesa. O escultor havia mantido a cabeça baixa, mas os olhos abertos. Então Anna viu o que ele olhava: uma mosca havia circulado
a borda de seu prato, experimentando o molho de carne.
Ela escondeu o sorriso quando ele tentou, disfarçadamente, assoprar a mosca para longe. Quando Cris disse "Amém", ele rapidamente pegou o guardanapo do colo e o
abanou com um floreio. A mosca dirigiu-se para as luminárias a óleo do teto. Anna observou seu voo e, quando voltou a atenção para o jantar, o escultor a observava.
- A criatura maldita estava pronta para roubar meu jantar. - disse ele - Um ser perverso.
- Talvez fosse Belzebu. - disse ela - Mestre das moscas.
- Estava mais para Belzemosca. Sabe? Típica do sul.
Anna riu pela primeira vez em semanas. Os companheiros de mesa os olharam com cenhos franzidos. O homem se apresentou como sendo Mason e disse ser um trabalhador
têxtil aposentado do sopé da montanha. - Também sou um pretendente a escultor. - disse ele - Mas não me confundam com Henry Moore ou qualquer coisa do estilo.
- Ele não interpretou James Bond? - perguntou Cris.
- Não, aquele era Roger Moore.
Ele declinou polidamente do vinho oferecido quando Lilith trouxe o carafe. Anna aceitou uma taça, apesar de não ter a intenção de tomar mais que uns pequenos goles.
O conservadorismo que surgiu com a sentença de morte a surpreendeu. Quando se tem apenas uma pequena quantidade de tempo disponível, em vez de ficar embotado, você
tenta ficar mais consciente.
Seus olhos voltaram-se novamente para Mason. Ele estava observando Lilith como se estivesse interessado em mais que simplesmente um segundo guardanapo. Ela ficou
tão irritada quanto surpresa quando um clarão de ciúmes lhe cruzou o coração. Ela desprezava mesquinhez e, acima de tudo, possessividade era o último sentimento
que uma pessoa moribunda deveria ter. Stephen a havia ensinado que nunca se pode entender outra pessoa, muito menos possuir uma, e a ideia de almas gêmeas tinha
utilidade apenas em romances. Ela tomou um gole de vinho e deixou o ardor alcoólico a distrair por uns momentos. Em seguida, apresentou-se à mulher negra.
Ela se chamava Zainab e tinha nascido na Arábia Saudita. Era americana-árabe, mas apenas indiretamente pelo dinheiro do petróleo; seu pai havia sido um engenheiro
na Aramco. Zainab tinha vindo aos Estados Unidos para estudar em Stanford, antes que alguém do Oriente Médio tivesse que pular por entre círculos de fogo para imigrar,
e agora queria ser uma fotógrafa "quando crescesse".
- Nos Estados Unidos, você é considerada crescida quando tem quatorze anos. - disse Anna - Pelo menos se você acredita em revistas de moda. Claro, quando chega aos
quarenta, espera-se que você tenha a aparência de alguém com vinte e cinco.
- Ei. - disse Cris, entornando sua terceira taça de vinho - Eu tenho trinta em um corpinho de vinte e cinco. Acho que isso quer dizer que estou indo na direção certa.
Anna cortou a torta um pouco mais e empurrou a sobremesa para longe. Cris inclinou-se para Mason, os cílios movendo-se intensamente.
- Então, o que os rapazes do sopé da montanha fazem para se divertir? - perguntou Cris.
- Nós vamos até os lixões atrás do café local e atiramos pedras nos ratos. Os ratos em Sawyer Creek comem melhor que muitas famílias.
- Aposto que os ratos vivem bem por aqui. - disse Cris.
- Chamamos isso de "se dar bem na vida" na minha terra. - disse Mason estremecendo de falso nojo. - Estava conversando com um dos trabalhadores hoje. Ele me falou
sobre instalar ratoeiras e enterrar a comida para manter os ratos longe. Livrar-se do lixo é um problema por aqui.
- É impressionante como nem pensamos em determinadas coisas numa sociedade civilizada. - disse Anna.
- Quem é civilizado? - disse Cris rindo - Parece que nos encaminhamos para histórias do tipo "caminhei seis quilômetros pela neve para ir à escola".
- Eram quatro quilômetros sobre as dunas de areia, sem camelos, no lugar onde cresci. - disse Zainab.
- Eu vi uma das arrumadeiras com uma cesta de roupas sujas. Não ela. - disse Anna indicando Lilith, que estava abrindo uma garrafa de vinho na mesa principal. -
Imagine o que deve ser lavar à mão todas essas toalhas de linho e cortinas, para não mencionar os lençóis.
- Parece que os lençóis realmente precisam ser bem lavados, se você der ouvidos aos rumores por aqui. - disse Cris.
- Você quer dizer as histórias de fantasmas? - perguntou Mason.
A respiração de Anna ficou presa na garganta. Se ela desse um jeito de entrar em contato com fantasmas por aqui, não queria um monte de necromantes iniciantes fazendo
sessões notumas e mexendo com tábuas Ouija. Ela acreditava que tais coisas eram jogos desrespeitosos que enviavam os fantasmas correndo de volta para suas tumbas.
E se ela tivesse uma missão aqui, um último trabalho antes de sua alma partir, preferia cuidar disso sozinha.
- Estava falando de sexo, mas as histórias de fantasmas são interessantes também. - disse Cris, suas consoantes começando a ficar arrastadas.
Mason disse - De acordo com William Roth-
- Ah, eu o encontrei. - Os olhos marrons de Zainab iluminaram-se quando o interrompeu. - Na verdade, cheguei a conversar com ele. Sempre admirei seu trabalho, mas
ele não é o que achei que uma pessoa famosa seria. Ele é muito pé no chão. E possui um sotaque maravilhoso.
- Ele é uma figura, com certeza.
- Acho que ele está dando uma de charmoso. - disse Zainab, olhando-o sentado na mesa principal onde parecia estar participando de três conversas ao mesmo tempo.
- O que você estava dizendo sobre fantasmas? - perguntou Cris, como se só agora tivesse se dado conta de que a conversa pulara de assunto. - Anna mexe com essas
coisas-
Anna cortou a conversa com um olhar forte e um movimento sutil de cabeça. Não queria que todos pensassem que ela não era boa da cabeça, pelo menos não logo de saída.
- Roth disse que o Solar Korban é mal assombrado e que tentará tirar algumas fotos disso. - disse Mason - E o trabalhador que encontrei hoje certamente parecia um
pouco estranho.
- Aconteceu alguma coisa estranha com vocês desde que chegaram aqui? - perguntou Zainab.
- Eu não sei sobre fantasmas. Acho que vou acreditar neles quando os vir. Mas os quadros de Korban por todos os cantos estão me dando nos nervos. - Ele balançou
a cabeça na direção da parede sobre a cabeceira da mesa principal.
- Em um lugar velho como esse, - disse Anna - você sempre encontra uma tábua que range e rajadas de ar vindas de lugar algum. E todas essas lamparinas e velas lançam
um monte de sombras tremeluzentes. Não é de se estranhar que essas histórias existam.
- Claro. - disse Mason - Se fossem fantasmas de verdade, vocês acham que as pessoas voltariam ano após ano?
- E como eles conseguiriam manter os empregados? - perguntou Anna.
- Bem, eu não me importaria de ver um fantasma ou dois. - disse Cris - Deixaria o lugar um pouco mais animadinho. Gosto de coisas que se movem durante a noite. -
Cris sorriu para Mason com um tom lascivo.
Anna observou sua reação. É isso. Bem no centro da base do rebatedor. Três strikes ou uma rebatida longa.
Mason deu de ombros, aparentemente inconsciente da cantada de Cris. - Não sei. Acreditarei quando os vir.
Uma pequena e barata sensação de vitória queimou no peito de Anna. Então se desprezou pelo sentimento. O que ela tinha que se importar se Cris se enroscasse com
esse garoto do interior?
Após Stephen, homens não mais existiam. Fantasmas eram muito mais sólidos e confiáveis dos que eles.
A conversa foi encerrada quando a Srta. Mamie levantou da cadeira na cabeceira da mesa principal. Ela retiniu uma taça com uma colher e o ruído dos pratos e diálogos
diminuiu para um sussurro. Lilith e as outras empregadas ficaram atentas na entrada da sala de estar, cada uma segurando um jarro de prata.
- Senhoras e senhores, adoráveis hóspedes. - disse a Srta. Mamie, a voz enchendo a sala. Ela olhou para os rostos alinhados na mesa principal, claramente apreciando
o momento. - Amigos.
Anna já estava entediada. Esperava que o discurso fosse curto. A Srta. Mamie tomou ar como se fosse uma soprano pronta para iniciar uma ária.
- Gostaria de dar-lhes as boas-vindas ao Solar Korban. - disse a Srta. Mamie - Como já é do conhecimento da maioria, essa casa foi construída pelo meu avô, Ephran
Korban. Após seu falecimento, que Deus acolha sua alma, foi herdada pelo meu pai. Transformamos o solar em um retiro para artistas a fim de cumprir com o último
desejo de Ephram. Agora é minha responsabilidade levar à frente esse legado, e o faço com grande orgulho e prazer.
- E lucro! - cortou um sotaque britânico e uma risada incerta correu pela sala.
A Srta. Mamie sorriu - Isso também, Sr. Roth. Mas é mais do que simplesmente um meio de custear a preservação da fazenda. É um trabalho de amor, uma continuidade
da visão de Ephram. Ele próprio era um admirador de artistas e espero que cada um de vocês encontre plenitude enquanto estiver por aqui e, fazendo isso, ajudarão
a manter o sonho de Ephram vivo.
Anna olhou de soslaio para Mason. Ele estava olhando para a Srta. Mamie com visível curiosidade.
Hmmm. Ele não é tão bonito quanto pensei de início. Seu nariz é um pouco longo de perfil. E os dedos são muito grossos. Aposto que é desajeitado com mulheres.
Satisfeita de ter encontrado falhas suficientes, bebericou o vinho. A Srta. Mamie estava em meio a alimentar os fogos artísticos coletivos.
- ... então eu proponho um brinde, meus amigos. - disse a anfitriã, remexendo em suas pérolas. Ela levantou sua taça para o alto, virou-se e apontou-a na direção
do retrato de Korban. Muitos na sala a acompanharam. Anna pegou sua taça, mas mudou de ideia. Mason viu e fez um esgar.
Idiota. Provavelmente um daqueles tipos "sou mais sagrado que você". Um artista com complexo de superioridade. ISSO é uma raridade.
Ela agarrou a taça. Quando a Srta. Mamie bebeu, Anna tomou um grande gole. Era um vinho local de muscadíneas, um pouco doce demais para entornar, mas ela deu outro
grande gole para completar.
- Vocês são bem-vindos para me acompanhar no estúdio para drinques e conversas. - A Srta. Mamie completou. - Há um local apropriado para fumar no estúdio. Novamente,
agradeço a todos o prazer de suas companhias. Boa noite.
A sala de jantar irrompeu em conversas e barulho de louças. Cris balançou levemente onde estava sentada e colocou a mão no ombro de Mason para se equilibrar, recostando-se
nele.
Anna fingiu não notar. Estava atrás de fantasmas, droga. Fantasmas não fazem você de idiota como os homens.
Ela fugiu sorrateiramente escada acima. As luminárias emitiam um brilho quente sobre as madeiras. Entrou no quarto escuro e ficou de pé próximo à janela, olhando
para a fazendo envolta em penumbra. O céu estava tornando-se verde, quase preto pela escuridão que se aproximava do leste, a lua nascendo fraca e azulada.
Ela pegou a lanterna da mesa de cabeceira. Pelo menos uma conveniência moderna havia sido permitida, provavelmente por demanda da seguradora do solar. Ela acendeu
a luz e passou o foco de luz pelas paredes, desejando ver um espírito desassossegado, mas revelando apenas teias de aranha no forro.
Suspirou. Caçadora de gnomos. Era assim que Stephen a chamava.
- Deixe-me livre para fazer a investigação séria. - dizia ele - Você pode brincar de caça aos gnomos.
Um fantasma vivia nessa casa. Ela sabia disso com tanta certeza quanto sabia que estava morrendo. Ela o caçaria até o inferno se fosse preciso, pois gostaria de
estar certa uma vez na vida. Pelo menos, queria que Stephen soubesse que estava certa. Mesmo que fosse o próprio fantasma que ela encontrasse.
Pegou um casaco e colocou a lanterna no bolso. Uma longa caminhada solitária pela noite lhe faria bem.
CAPÍTULO 11
Uma droga.
Uma droga e uma porcaria.
Uma droga, uma porcaria e um lixo.
William Roth correu pelos adjetivos ruins em sua mente enquanto estudava os livros alinhados nas prateleiras do estúdio. Todos os livros eram de capa dura, muitos
com capa de couro e títulos dourados. O pó era a prova de sua inutilidade.
Uma boa encenação de cultura, isso é o que eles são. Porque todos eles são uma porcaria e... um embuste. Sim, DEFINITIVAMENTE um embuste.
Précis da Revolução Francesa. O Diário de Sir Wendell Swanswight. Talmud. Juris Studis.
Eles dariam bons pesos de papel. A única coisa realmente interessante era que encaixavam-se perfeitamente nas prateleiras. Roth bebericou seu uísque com gelo enquanto
andava em direção à pequena multidão que havia se juntado ao redor de Jefferson Spence. A voz trêmula do grande homem era ouvida em uma ou outra opinião didática.
Spence seguia sem desafios entre os admiradores.
A garota Árabe estava do outro lado da sala, com a sempre presente câmera no pescoço. Ele praticou mentalmente seu nome, mas era difícil fingir um sotaque britânico
ao dizê-lo. Zái-i-náb. Ele teria que ensiná-la algumas coisas sobre os códigos de conduta fotográficos. Você não se move atabalhoadamente por aí como um elefante
numa loja de cristais. Você espreita, espera, seduz o alvo com infinita paciência e cuidado. Você acalenta, cuida e, então - clique, obrigado!
Mas ele poderia ter Zainab a qualquer momento. Ela era uma presa fácil de ser retirada da manada. Era uma gazela ferida e Roth, seu leão. Primeiro ele tinha caças
maiores a espreitar.
Espere um instante, sujeito. Essa foi uma metáfora bem ruim. Você sabe, do tempo que passou na África, que é a leoa que caça enquanto os leões ficam lambendo as
bolas. Mas os americanos burros não sabem disso. Rei das Selvas, e a ideia é o que importa.
Ele estava pensando em seu sotaque de Manchester. Ele havia caído de paraquedas em Liverpool no meio da década de noventa, durante o breve retorno dos Beatles, e
depois ido para Yorkshire com o surgimento do filme "The Full Monty". Modismos vieram e se foram e, da mesma forma, seu sotaque. Algumas vezes ele escorregava na
construção de algumas frases, mas os americanos não notavam seus erros. O único momento no qual ele tinha que tomar cuidado era quando estava ao lado de um inglês
de verdade.
E aqui as chances eram muito remotas - pensou ele, sorrindo para si. Ele havia chegado à parte externa do círculo de Spence agora.
- E eles dizem que existem elementos hermenêuticos em "Look Homeward, Angel" - disse Spence, a papada balançando para dar ênfase. - Eu digo a vocês que Gant não
é mais que um símbolo do coração humano. Uma metáfora inconsistente sustentada por um bilhão de adjetivos. Se você enviasse isso para um editor nos dias de hoje,
ele diria "maravilhoso, agora você consegue fazer isso ficar parecido com Grisham?"
Os olhos da audiência brilharam em reverência. Esse homem era um mestre, com um charme maligno. Seu ego era tão grande quanto sua barriga. Ninguém ousava se opor
a seus efêmeros pronunciamentos.
Spence bebeu metade de seu martíni antes de continuar. - O pior livro do século XX? Provavelmente não. O prêmio abacaxi deveria ir para "Paris é uma Festa" de Hemingway.
Os críticos muito falaram sobre a tensão subliminar que supostamente existe no romance. Asneiras. Não é nada mais que um Hemingway enlatado, o suprassumo de Ernest.
Ernest tomado muito a sério, poder-se-ia dizer.
Spence fez uma pausa para risadas. Elas vieram.
Roth sorriu. Spence era um grande enganador, assim como ele. E ele jogava o jogo das celebridades com o mesmo sucesso. Roth ficava abismado com a constante fome
das pessoas por ídolos. Tragam-me seus falsos deuses. As massas necessitavam de ópio, e em grande quantidade.
Roth forçou seu caminho até ficar à esquerda de Spence, se espremendo entre uma garota de cabelos azuis e um velho corcunda. A garota bonitinha com belos seios estava
ao lado de Spence. Ela não havia dito uma palavra durante toda a noite, mesmo durante o jantar. Roth sabia, pois ficara observando os dois em sua mesa privativa.
Roth calculou as chances de conseguir afofa-la um pouco. Ela seria uma bela pena em seu chapéu de conquistador.
Spence apregoava sobre as instruções morais codificadas no "O Grande Gatsby". As pessoas concordavam com a cabeça e, ocasionalmente, alguém ousava dar um murmúrio.
Roth achou que era justo se fazer perceber. - Eu acho, Sr. Spence, quem sabe se algum editor não deveria dizer "Fitzgerald, meu filho, livre-se desse palhaço do
Gatsby e você terá um bom livro"?
Todos os olhares se viraram para Roth e então de volta a Spence. O escritor olhou para Roth como se medindo o alcance de seu adversário e então sorriu - Puramente
apócrifo. Mas há potencial na ideia. Senhor William Roth, não é mesmo?
- Sim, é um prazer conhecê-lo, meu bom homem. - disse Roth, estendendo a mão. Uma beliscada de prazer lhe cruzou o peito enquanto o populacho murmurava "ohs" e "ahs"
nesse encontro de deuses.
Spence terminou o drinque e entregou a taça vazia para sua companheira de belas curvas. - Então, o que acha da minha análise sobre Gatsby?
- Reluzente. E concordo que o livro de Wolfe é absolutamente fútil. - Pelo canto do olho, Roth observou as curvas da menina enquanto ela levava a taça ao bar.
Spence deixou a audiência de lado e virou-se de frente para Roth. O fotógrafo empurrou Spence até um canto da sala. As pessoas entenderam a deixa e dispersaram-se
em pequenos grupos, alguns fumando, outros em busca de mais drinques.
- O que o traz ao Solar Korban, Sr. Roth?
Roth balançou seu uísque na mão. - Negócios, senhor. Sempre negócios comigo.
- Mas isso é uma infelicidade. É exatamente o que o mundo precisa, outra batelada de quatrocentos negativos desse lugar. Ou você foi contratado para algumas fotos
publicitárias?
- Estou trabalhando de forma autônoma.
- Hmm. Estou trabalhando, também, acredite se quiser.
Roth sabia que Spence não tinha escrito um romance em anos. Ele havia trilhado seu caminho vociferando sua opinião sobre peças e ensaios e escrito uma introdução
mordaz à Coletânea Contemporânea de Poesias Sulistas, que provavelmente levou às lágrimas alguns dos poetas que contribuíram para a antologia. Os críticos desistiram
dele. Ele era como uma baleia encalhada - divertido de cutucar enquanto algum sangue pudesse ser derramado, mas algo a ser evitado depois de se tornar um cadáver
inchado e fedorento.
- Acho que esse lugar seria bastante inspirador para um homem do seu gênio. - disse Roth, mal disfarçando o sarcasmo.
Spence não mordeu a isca. Ele provavelmente lera muitos dos comunicados de imprensa de seu editor, nos quais se prometia uma nova obra prima de sua parte. - Esse
é o trabalho, Sr. Roth. Essa é a obra que merecerá o Prêmio Nobel de literatura. Já é tempo de um americano trazer para casa um troféu desses. Nada pessoal, entenda
bem.
Roth virou uma palma para cima em submissão. O sotaque britânico havia enganado mesmo Spence, um homem que havia treinado para observar o comportamento humano. A
namorada de Spence trouxe mais um drinque, o colocou obedientemente em suas mãos e voltou a sumir em sua sombra.
Roth sorriu para ela e então começou a laboriosa tarefa de conquistar a confiança de Spence.
CAPÍTULO 12
Uma caçadora de duendes idiota.
Anna deixou o facho de luz amarelada da lanterna guiá-la como se não tivesse vontade própria. Ela se viu andando na direção de uma trilha na floresta, para dentro
dos caminhos estreitos e gastos por debaixo dos louros. As folhas enceradas esfregavam-se no rosto e nas mãos dela. Grilos e gafanhotos lançavam seus coros dentro
da obscuridade da floresta negra.
Você segue e segue e nunca alcança. Você estende a mão e eles dançam para longe. Você corre e eles correm mais rápido. Você olha para dentro do escuro e não vê nada
além de escuridão.
Fantasmas jogavam de acordo com as próprias regras. Anna tinha a intuição de que eles não gostavam de descortinar segredos e não davam explicações. Os maiores segredos
da vida deviam ser insignificantes para aqueles que não mais viviam. Sem dúvida, todos os espíritos recebiam as instruções necessárias como um presente de boas-vindas
após a morte. Mas, talvez, os mortos precisassem de diversão. A eternidade certamente fica entediante depois de um tempo.
Anna não estava preocupada em se perder na floresta, mesmo que as luzes do Solar Korban tivessem desaparecido de vista. Depois de deixar a casa, ela parou no celeiro
e achou quatro cavalos em suas baias. Massageou seus pescoços e acarinhou os pelos duros sobre os focinhos.
Sentia-se confortada com o cheiro do animal. O aroma de capim e esterco trazia lembranças de uma de suas famílias adotivas, que mantinha uma fazenda na Virgínia
do Oeste. Anna havia se tornado mulher naquele verão. Sua primeira experiência sexual foi com um menino bonito, mas pouco inteligente, que vinha coletar os ovos
dia sim, dia não. Ela também passara horas no cemitério local, sentada entre as lápides ilegíveis e decadentes, pensando sobre as pessoas debaixo da terra e a parte
deles que poderia ter sobrevivido ao aperto de morte da terra e do apodrecimento.
Ela ainda pensava sobre isso, a curiosidade a enviando para a antropologia na Universidade de Duke e parapsicologia no Centro de Pesquisas Rhino e, agora, para dentro
da floresta. Estradas que nunca acabavam, uma busca que nunca encontrou nada. A lua e a luz das estrelas formavam vagamente o relevo da paisagem. Ela seguiu a crista
da elevação até o ponto que o terreno descia rapidamente. As pedras brilhavam como dentes podres na luz pálida. Além do campo de pedras encontrava-se a garganta
do vale escuro, pintado de prata pela geada.
As costelas e reentrâncias das montanhas de Blue Ridge rolavam em direção ao horizonte, o distante piscar da cidade de Black Rock encravada entre eles como pequenas
gemas azuis e laranja. No céu, uma pequena latinha voadora de humanidade, alguns passageiros provavelmente com receio de um acidente, alguns comendo nozes envelhecidas
e outros ansiando um cigarro. A maioria com pensamentos em parentes, esposas e amantes recentemente visitados ou esperando-os nos terminais do aeroporto à frente.
Todos com lugares para ir, coisas para procurar. Pessoas a quem pertencer. Esperanças, sonhos, futuros. Ela pensou naquele diálogo de Shirley Jackson "As jornadas
se encerram nos encontros dos amantes".
É, claro. Jornadas acabam em morte e amantes nunca se encontram.
Ela deixou as luzes que começaram a ficar borradas em seus olhos para trás e deixou de lado a autopiedade. Tinha a floresta para explorar. E sentiu uma pontada nas
entranhas, um instinto que ela aprendera a confiar, mesmo que Stephen não pudesse provar que era real. Existiam mortos por entre aquelas árvores e colinas.
Ela algumas vezes se perguntava se o câncer era uma progressão daquele instinto. Como se a morte fosse seu estado natural e a vida apenas uma interrupção a ser brevemente
suportada. Era como se, por direito, ela pertencesse aos mortos e sua percepção deles ficava cada vez mais forte quanto mais próxima de ser um deles ela ficava.
Era um pensamento mórbido. Ainda assim, ela não podia ignorar o simbolismo jungiano no ato de dar as costas àquelas tênues luzes da civilização para entrar na floresta
sozinha.
Na busca de si própria.
E se FOSSE possível encontrar outro espírito, tocá-lo, compartilhar a consciência das almas, criar alguma que tivesse uma vida além dos vivos e dos mortos? Ou tal
tipo de desejo é apenas mais uma grotesca forma de vaidade?
Ela observou o cone de luz da lanterna conforme ele balançou à sua frente na trilha. Quanto mais velha ficava, e mais próxima da morte e intensa na busca de si mesma,
mais solitária ela ficava. E se havia algo que a assustava, que poderia assustar alguém que já havia visto fantasmas, era o pensamento de que qualquer alma, consciência
ou força de vida que continuasse após a morte o faria só, isolada e perdida para sempre.
Anna se deu conta de que estava a cerca de um quilômetro e meio do solar agora e estava começando a ficar cansada. Essa era uma das coisas que ela mais odiava em
sua doença. Sua força era lentamente drenada, escorrendo dessa vida para a outra.
Ela parou e brincou com a lanterna ao longo da elevação à sua frente. Ruídos noturno s rastejavam por entre as copas das árvores, a agitação dos animais noturno
s e o incansável vento da montanha. Uma fragrância de pinheiro e a umidade fria do anoitecer a revigoraram. A trilha havia cortado várias outras maiores que ela
havia cruzado antes com outra estrada para carroças. Seguiu seu instinto, aquele que a dirigira pela noite como a lua comanda as marés.
A trilha terminava sob um bosque de bálsamos e então se abria para um campo de grama densa. Uma cabana dominava a clareira, frágil e oscilante sobre os alicerces
de pedras. Uma chaminé aos pedaços, cinza à luz fraca das estrelas, penetrava no telhado de zinco inclinado. Os vidros das janelas eram como olhos escuros procurando
companhia.
Era para encontrar isso que Anna tinha vindo. Ela caminhou pela pastagem, as barras das calças molhadas pelo orvalho congelado na grama. Uma grande pedra redonda
estava ao pé da entrada, pálida como a barriga de um peixe. Ela pisou na pedra e olhou para dentro da cabana escura.
A cabana a desejava.
Talvez não a casa, mas o que quer que tivesse vivido e morrido ali. Alguma coisa havia aprisionado uma alma humana àquele lugar, um evento terrível o suficiente
para deixar uma marca psíquica, assim como a luz queimava um filme fotográfico.
O ar vibrava com uma música inaudível. Os pequenos pelos na nuca de Anna se ouriçaram como pequenas agulhas magnéticas. A despeito do frio da noite, suas axilas
ficaram molhadas de suor. Um medo preternatural correu por suas veias, ameaçando sobrepujar a curiosidade.
Algo flutuou além da porta, tênue e frágil como que ainda não familiarizado com a própria substância.
Ou talvez fosse apenas o vento soprando por alguma fenda da parede de tábuas sobrepostas. Anna apontou a lanterna para um buraco na madeira, logo acima da maçaneta.
Um tremeluzir de uma sombra branca preencheu o buraco e depois se dissolveu.
Ela colocou o pé sobre a varanda. Uma forma, um rosto se imprimiu nos grãos da madeira. Uma pequena voz sussurrou com o vento, suave e oca, como uma flauta distante:
- Estive esperando.
Anna conteve o impulso de fugir. Apesar de acreditar em fantasmas, a estranheza súbita de encontrar um sempre a atingia como um balde de água fria. E esse... esse
havia falado.
Anna afastou-se, a lanterna fixa na porta.
- Não se vá. - disse a voz fria e mouca. Os músculos dela congelaram-se. Ela lutou contra o próprio corpo enquanto o coração trovejava nos ouvidos. A voz voltou,
mais baixa, implorando: - Por favor.
Era a voz de uma criança. O medo dela misturou-se com simpatia, ambos fundindo-se na necessidade de compreender. Os fantasmas ficavam jovens para sempre?
Anna voltou a subir na pedra e depois na varanda. As tábuas rangeram sob seus pés. Algo adejou sob o beiral e então uniu-se ao céu noturno . Um morcego.
- O que você quer? - disse Anna, tentando manter a voz firme. A lanterna iluminou a porta, mostrando apenas madeira e metal enferrujado.
- Você é ela?
- Ela?
- Ajude-me! - veio novamente a voz implorante, enfraquecendo, quase perdida. - Ajude-nos! Anna levantou a tramela de ferro e abriu a porta, jogando a luz da lanterna
no interior da casa.
Ela vislumbrou uma pequena figura, um rosto jovem enquadrado por longos cachos, algumas dobras de tecido fluindo por baixo dos olhos suplicantes. A visão lentamente
se desfazendo.
- Fique! - disse Anna, tanto um pedido quanto uma ordem desesperada.
Mas a forma desvaneceu, os lábios fantasmagóricos entreabertos como se quisesse falar, sobrando por fim somente os olhos, flutuando, flutuando, tornando-se parte
de uma sombra menor e, então, nada. Os olhos haviam sido impressos na memória de Anna. Nunca os esqueceria. Os olhos pareciam - assombrados.
- Olá? - chamou Anna. O chamado morreu no vazio da cabana. Ela moveu a luz pelo cômodo. Algumas prateleiras ficavam em um canto, uma viga grosseira por cima da lareira.
Uma longa mesa marcava o que teria sido a cozinha. Havia uma fila de figuras humanas toscamente entalhadas sobre a mesa, os membros nodosos em ângulos grotescos.
Anna tocou em uma das figuras. Tinha cerca de trinta centímetros de altura, sem pintura ou verniz, a madeira escura e seca pelo tempo. O corpo havia sido feito de
uma raiz, os braços e pernas de vinhas torcidas. A cabeça era uma fruta enrugada, marrom como maçã seca, os olhos e a boca em um sorriso deformado.
Pareciam algum tipo de artesanato, algo que um antigo morador escocês teria entalhado durante os longos meses de inverno para distrair seus filhos. Mas as figuras
estavam arranjadas sobre a mesa como se fossem relíquias religiosas. Uma estava envolta em casca de bétula para simular um vestido. Outra possuía uma guirlanda de
flores.
Anna apontou a luz para a estátua encurvada mais próxima. O orifício da boca possuía uma substância cinza parecida com papel. Arranhou-a com a ponta da unha e a
substância caiu sobre a mesa. Anna imediatamente identificou o objeto pelas marcas mosqueadas e textura geométrica.
Pele de cobra.
Anna caminhou para a parte posterior da mesa, olhando na mesma direção que as figuras. Uma velha lareira estava ao outro lado da sala, as pedras escurecidas pela
fumaça de dez mil fogos. O monte de cinzas não deixava evidência de quando a lareira havia sido usada pela última vez. Os cantos da sala estavam grossos com teias
de aranha, que ondulavam diafanamente ao sabor da brisa que entrava por entre as frestas dos troncos.
A metade do teto estava coberta com um sótão. Anna subiu a escada frágil, mas viu apenas poeira e algumas folhas, marcando o ninho de um roedor.
Estava verificando a cozinha primitiva quando ouviu um ruído do lado de fora. O luar na janela foi rapidamente interrompido. Será que o fantasma havia retornado?
Anna correu para fora, segurando a lanterna na altura do peito. Uma figura humana curvada cruzou o campo, na direção da floresta atrás da cabana. Um xale puído ondulava
às suas costas, sob o vento noturno que havia aumentado.
- Espere! - Anna deu um passo e tropeçou em uma madeira solta, caindo da varanda sobre o pulso, no chão de terra batida. Um choque elétrico de dor lhe correu braço
acima. No tempo que levou para ficar de pé e pegar a lanterna, a pessoa ou coisa havia desaparecido dentro das árvores negras.
Anna a seguiu. Quando atingiu a borda da floresta, esperou e aguçou os ouvidos. A noite continha centenas de sons: o vento gemendo pelos ramos, galhos rangendo,
folhas roçando contra cascas, animais perturbados em seus sonos, aves escondidas chilreando. Qualquer tentativa de ouvir passadas era inútil.
Deve ter sido humano. Anna não sentia nenhuma energia etérea para seguir. Ela se perguntou se a pessoa com o xale havia visto o fantasma. Ou será que era a pessoa
que arranjava as figuras em cima da mesa naquela paródia de ritual? Será que ela realmente havia visto um fantasma ou será que foi vítima de um truque elaborado?
Será que estava assim tão desesperada para achar uma prova de vida após a morte que sua mente estava lhe pregando peças?
Esfregou o pulso por alguns instantes. Ninguém, nem mesmo Anna, sabia de seu destino naquela noite. O fantasma havia sido real, estava certa disso. Os bonecos provavelmente
eram o trabalho de algum hóspede do solar e foram deixados para trás como um presente ou tributo. Ou talvez apenas uma tolice de algum dos trabalhadores locais.
Ela se virou e seguiu o facho de luz da lanterna, voltando ao Solar Korban, incomodada com a estranha sensação de estar voltando para casa.
Deu-se conta de por que havia vindo ao Solar Korban. Foi um equívoco achar que havia sido sua escolha, que precisava fazer contato com as próprias razões. De todos
os lugares supostamente assombrados nos quais poderia passar seus últimos dias, ela não havia simplesmente escolhido esse no meio das montanhas. Não havia sonhado
várias vezes com esse lugar pelo fato de ter guardado no inconsciente a leitura de um velho jornal paranormal.
Não, ela havia sido chamada.
O estalido de um graveto quebrando lhe chamou à realidade. Algo grande havia emergido das sombras da floresta. Anna levantou a lanterna, pronta para usar como um
bastão, se necessário. O facho de luz cruzou uma figura negra e lúgubre.
- Você! - disse ela.
Mason levantou as mãos como se quisesse se desviar de sua ira. - Eu a vi!
- O fantasma?
- Que fantasma? Vi uma velha espiando você e, então, ela correu pela floresta. Tentei segui-la, mas ela conhece essas velhas trilhas muito melhor que eu.
- Como ousa me seguir? Que tipo de pessoa é você, algum tipo de voyeur pervertido?
- Não, eu apenas... Bem, a festa da Srta. Mamie estava me deixando a ponto de morrer de tédio e não pude deixar de ficar curioso, depois de toda aquela conversa
sobre fantasmas. Quando a vi deixando o solar -
- Seu idiota arrogante! - Ela o empurrou para o lado e seguiu bufando pela trilha, não se importando de deixá-lo na escuridão. Ela apenas desejava que os fantasmas
fossem realmente malignos, assim um deles poderia arrancar-lhe a cabeça idiota. Com um pouco de sorte, ele se perderia nas trilhas e teria que passar a noite na
floresta, acordando enregelado, machucado e infeliz. Ela come<;:ou a correr e disse para si mesma que era o vento, nao a raiva ou a vergonha, que enchia seus olhos
de lagrimas.
CAPÍTULO 13
A Srta. Mamie retirou as pérolas e as colocou na cômoda, junto com as fitas de veludo púrpura e garrafas de água de rosas. Olhou-se no espelho, trazendo a lamparina
mais para perto de forma a poder verificar a pele. Qualquer um que olhasse para suas pequenas rugas à volta da boca e fios prateados nas têmporas pensaria que ela
estava próxima dos cinquenta anos. Nada mal, considerando que faria cento e vinte.
Ephram havia prometido mantê-la jovem, e ele sempre cumpria suas promessas. Era um perfeito cavalheiro. Isso fora o que primeiro a atraíra nele, o porquê de ela
ter se apaixonado. Sua possessão era completa e perfeita.
Ela abriu o medalhão do colar. Em seu interior, estava o rosto jovem de Ephram em sépia, os traços definidos, o leve ângulo do nariz, barba e costeletas espessas
sobre o colarinho rígido. Ah, aqueles olhos negros, aqueles olhos frios e escaldantes que haviam tomado seu coração e aprisionado sua alma, que haviam incendiado
seu desejo. Ele sempre teve poder, mesmo quando era mortal.
Mas agora, agora...
- Agora estamos prontos. - disse ele do espelho - Como prometi.
Seu coração acelerou e as palmas das mãos ficaram úmidas. Colocou a mão sobre a superfície suave do espelho. O rosto de Ephram brilhou no reflexo da lareira. Uma
fiada de maçãs descascadas estava pendurada em um barbante, secando ao fogo, esculpidas na forma de cabeças, com orelhas e narizes protuberantes. Os olhos e bocas
brilhavam como cicatrizes. As faces tomariam forma enquanto secavam, adquirindo suas feições únicas.
- Você gosta delas? - perguntou ela.
- Você escolheu bem. - A voz de Ephram era baixa e sibilante.
- Elas o alimentarão, com o tempo. - A Srta. Mamie olhou para os olhos sedutores e sentiu um jorro de calor. Seu amor nunca havia falhado.
Os olhos de seu marido morto brilharam numa tempestade de vermelho e dourado. - Mesmo agora, seus sonhos me dão força. E a lua azul está vindo novamente.
- Assim como na noite em que você morreu.
- Por favor, meu amor. Você sabe que não aprecio essa palavra. Ela soa tão... permanente.
- E Sylvia? - disse a Srta. Mamie, baixando os olhos e antecipando sua raiva.
- O que tem ela? Ela é apenas uma velha mulher-bruxa com um saco de penas, ervas e ossos velhos. Seu poder não é nada mais que o patético poder da sugestão. Mas
o meu! - sua voz aumentou, trovejante, até que ela receou que os hóspedes pudessem ouvi-lo. - O meu é o poder que dá forma aos dois lados.
- Tantos anos. - A Srta. Mamie correu as mãos pelas bordas do gorro de dormir. - Não sei se posso aguentar muito mais.
- Paciência, meu amor. Esses são especiais. Esses são os verdadeiros construtores. Eles me esculpem, me escrevem, me pintam para a vida. Suas mãos me dão forma,
suas mentes me dão substância. Eles me constroem do mesmo jeito que você os constrói. E em breve, Margaret... -
Ephram estendeu a mão por entre as névoas que circulavam dentro do espelho e encostou a palma da mão no vidro. A Srta. Mamie colocou os dedos no espelho, ansiando
a cruel eletricidade da excitação de seu toque. Seu marido morto sorriu.
- Em breve, todos aqueles que sacrificamos encontrarão seus lares, suas verdadeiras vidas eternas, em mim. Terei o que qualquer mestre e senhor merecem.
- O que qualquer mestre e senhor merecem. - repetiu ela num sussurro. Então as névoas se desfizeram. Ephram colapsou sob a forma de uma fumaça etérea e o espelho
ficou novamente claro.
Ela estudou o próprio rosto. Era uma mulher de sorte. Suas esperanças e sonhos estavam prestes a renascer. Logo Ephram poderia escapar do espelho, das paredes, da
casa. Logo ela poderia novamente tocar em sua carne.
Ela foi para a cama, solitária em sua luxúria. Paciência, ela disse a si mesma. Ephram havia prometido, e Ephram sempre cumpria suas promessas.
CAPÍTULO 14
- Priciso de uma coisa mais forti.
- Ocê não divia aparecer aqui durante o dia, Ransom. E se ôce for visto?
- Tô cum medo. Num vou aparecê aqui no escuro. Já é ruim se ocê pode vê, e tá ficando mais ruim.
- Ocê foi seguido?
- Não pelos hóspede. A Srta. Mamie falô que não é permitido í pras banda de Beechy Gap. Mas os ôtro - Ransom baixou o tom de voz e baixou a cabeça como se temesse
que as paredes nodosas da cabana estivessem ouvindo. - ôce sabe, eles - eles tão agora pra todo lugar.
Sylvia Hartley se curvou e cuspiu na lareira. O líquido chiou e estalou, evaporando por fim contra a lenha em chamas. Ela correu as costas da mão coriácea contra
a boca murcha e olhou para Ransom, vislumbrando as décadas tão negras quanto as pedras debaixo da grade da lareira.
- Deus sabe que tá ficando mais ruim. - disse ela finalmente concordando. Ela puxou o xale desgastado à volta do pescoço.
- O último feitiço funcionô bem por um tempo. Eles ficaram tudo assustado. Mas agora, eles ficam só rindo de mim quando faço meus trabáio.
Sylvia pensou que Ransom deveria ter mais fé. Esse era o segredo: fé. Todos os encantamentos do mundo não valiam absolutamente nada se você não acreditasse. Ransom
era cristão por nascimento e não havia problemas com isso. Mas quando você descia até as raízes das coisas, algumas delas eram bem mais antigas e profundas que religião.
Era uma pena o que acontecera a George Lawson. George era alguém de fora, não nascera nas montanhas. Ele não sabia com o que estava lidando. Com os encantamentos
corretos, talvez tivesse se desviado dos pequenos jogos de Ephram.
Mas talvez não. Ransom estava certo. Eles estavam ficando mais fortes. Ephram estava ficando mais forte. E agora George estava do lado deles também, junto com todas
as outras pessoas que Ephram havia pego nos últimos cem anos.
- Ocê se importa de virá as coisa ali no fogão? - disse ela.
Ransom cruzou a cabana na direção do pequeno fogão azul. Virou as tortas na frigideira, o cheiro de milho sapecado enchendo a cozinha.
- Eles não fica mais invisívi. - disse ele, de costas para ela. - Custumava sê só o Korban e ocê via ele só na Casa Grande, aqui e acolá. Mas os ôtro, eles tem andado.
- A lua azul é a de otubro. Hora de fazê magia. Magia certa ô magia errada.
- Quê cê qué fazê? - a voz de Ransom tremeu.
Ela não o culpava por estar com medo. Ela também estava, mas não ousava transparecê-lo. - Primero vô come um pouco. Dispois acho que vô vê o que o gato trôxe pra
mim.
Ransom lhe estendeu um prato feito de lata martelada. Ele havia colocado uma fatia de porco frito junto com a torta de frigideira. Banha liquefeita escorria no fundo
do prato e pingava por um pequeno buraco do metal. Sylvia colocou o prato no braço da cadeira de balanço de forma que a banha não manchasse sua roupa.
- São as pessoa, num é? - perguntou Ransom, o fogo tornando seus olhos brilhantes. - As pessoa que tão na Casa Grande.
Sylvia nada disse, mordendo o porco com os pedaços de dentes que lhe restavam. Havia um pedaço generoso de carne no meio da gordura. Ransom sempre fazia com que
ela ganhasse um dos melhores pedaços quando eles matavam e defumavam um porco no solar. Ela se deu conta de que comia quase tão bem quanto os hóspedes.
Ela engoliu a carne e tomou um copo de chá de sassafrás. Por fim, falou, olhando para dentro do fogo, para as chamas amarelas, laranjas e azuis. - São as pessoa.
E a moça. Aquela cum a Visão.
Ainda que sua voz fosse suave, as palavras eram densas como um trovão no ar úmido da cabana. Toda a floresta havia se aquietado, como se as árvores estivessem se
inclinando para ouvir a conversa. Ela tinha certeza de que um pássaro estivera cantando uma alegre canção de nascer do sol alguns minutos atrás.
- Primero ele pegô os morto, agora qué os vivo também. - disse Ransom -Tem que existi um trabáio que ocê possa fazê e usá contra ele.
- Ocê sisquece. Nóis tem que jogá pelas regra. Mas Ephram Korban, ele não joga por regra ninhuma. Nem dos ômi, nem di Deus, nem por ninhuma das minha magia com raiz,
pena de gavião e cerveja.
Ransom tocou no bolso de seu avental.
- Mas continua no caminho certo da crença, filho. - disse ela - As cinza de uma oração são mais poderosa que as chama do inferno.
- Mió eu voltá. Tenho que cuidá dos bicho. E a Srta. Mamie tem ficado de olho ni mim.
- Então vai.
- Ocê vai ficá bem?
- Fiquei bem esse tempo todo, num foi? Mas é bom a gente ficá de ôio um no ôtro.
Ransom concordou com a cabeça. Seu rosto estava nas sombras, além do alcance da luz do fogo, e ela não foi capaz de ver sua expressão. O sol inundou o cômodo quando
ele abriu a porta e saiu. Ela franziu o rosto à invasão da luz e esperou o som da tramela de madeira descendo. Então voltou o olhar para o fogo e garfou outro naco
de bolo de milho.
O fogo...
Sylvia olhou para as mãos enrugadas.
Se pelo menos ela tivesse sentido dor. Os ferimentos sem dor eram os que saravam mais lentamente.
O prato de lata estava vazio em seu colo. Ela estremeceu e cuspiu nas cinzas. Ela não estava certa de qual dor era maior, o carinho de Ephram ou ele a ter deixado.
Ela sabia que Ephram voltaria. Mas até aí, ele nunca havia realmente partido. Ele não havia morrido quando ela o empurrou da balaustrada do telhado. Havia apenas
se fundido com a casa. Porque ela o havia matado em uma lua azul de outubro.
Como ele havia prometido, madeiras e pedras tinham se transformado em sua carne, a fumaça em sua respiração, os espelhos em seus olhos e as sombras no sangue inquieto
de seu espírito. E seu coração queimava nas chamas da eternidade.
Ela estremeceu novamente no calor do dia e pegou os fósforos.
CAPÍTULO 15
A casa projetava uma sobra sobre o gramado no nascer do sol. Mason estava cansado, o rosto marcado pelos devaneios noturnos. Havia dormido mal, a mente invadida
por imagens febris de Anna, sua mãe, Ephram Korban, Lilith e uma dúzia de outros rostos perdidos em meio a brumas. Ele estremeceu enquanto caminhava por detrás do
solar, seguindo uma trilha desgastada por entre os anexos. Subiu por degraus feitos de dormentes de trilhos de trem até um terraço junto à floresta.
A porta no anexo menor estava aberta e um senhor com macacão emergiu das sombras. Mason acenou, enquanto o homem esfregava as mãos, a respiração condensando no ar
frio, como uma fumaça branca.
- Brrr! - disse ele, cerrando os dentes. - Tão frio aqui quanto o coração de uma mulher.
- O quê? - perguntou Mason. Ele havia suposto que o anexo era um galpão de armazenagem ou algo no estilo. O galpão, como o solar, era construído com toras rejuntadas
com cimento amarelado. Um odor de umidade e cedro saía de dentro dele.
- Refrigeração. - disse o homem. Quando abriu a boca para se lamentar, Mason viu que ele tinha dentes restantes apenas para jogar um rápido jogo de moinho. Seu macacão
ameaçava engoli-lo, as costas curvadas pelos anos de trabalho. O homem jogou a cabeça na direção da porta aberta e entrou no galpão, dizendo - Vem, dá uma olhada.
Mason o seguiu. O ar frio flutuou sobre seu rosto. Um monte de feno cobria o centro do chão de terra batida. O velho inclinou-se e removeu um pouco do feno, expondo
faixas prateadas brilhantes.
- Gelo. - disse o homem - Enterramo ele dentro da serragem e ele dura o verão todo. Ocê não achô que ele durasse tanto, né?
- Fiquei imaginando como vocês mantinham a comida fria sem eletricidade. - disse Mason - E a segurança sanitária e os inspetores de saúde?
- Tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban. Duas coisa diferente.
O velho apontou um caminho que subia a oeste, coberto por álamos. Trilhas de carroça cruzavam o campo, curvando-se sobre a colina como duas cobras vermelhas. - Tem
uma lagoinha lá pra cima.
- disse ele - Uma fonte nasce no meio das pedra. A cerca impede os bicho de bebê a água, modi que é limpa. Quando o inverno tá frio de lascar a gente sobe lá e corta
uns bloco grande de gelo.
- Parece um trabalho duro. Se eu entendi bem, maquinário pesado não é permitido por aqui.
- Ah, nóis tem máquina. Uma carroça é uma máquina. Um cavalo também. E craro que tem nóis. Mason voltou para o sol e o homem fechou a porta atrás de si. Sua mão
nodosa remexeu no bolso da frente do macacão como se estivesse procurando um cigarro. Ele puxou algo parecido com um retalho de pano cheio de nós, com uma pena presa
na ponta. Ele balançou o pano em um formato de cruz na frente da porta da geladeira. O movimento denotava a fluidez que advém da prática, parecendo natural, a despeito
da estranheza.
Mason esperava que o homem falasse algo sobre esse ritual, mas o pano com nós foi rapidamente guardado. - O que há no outro galpão? - Mason perguntou depois de um
tempo.
- Ali é a despensa. Eles põe as coisa ali que não precisa de frio, abóbora, pepino e mio. Uma fonti de água passa por ali, é encanada e levada pro solar.
Mason olhou para onde o homem apontava e viu um filete de água escorrendo por uma parede de terra preta. Sarças emaranhavam-se nas margens do arroio, as vinhas avermelhadas
curvavam-se à morte outonal. - Vocês coletam as frutas também?
- Sim sinhô, e as maçã também. Tem muita maçã por aqui. Ocê vai comê alguma coisa feita de maçã todas as veiz. Torta, panqueca, maçã frita, assada, com canela, de
todo jeito. Nóis tem uma horta também, e... -
- Ransom!
Ambos se viraram na direção da voz aguda. A Srta. Mamie estava na sacada, inclinando-se sobre o parapeito.
- Sim, Srta. Mamie. - respondeu. Qualquer sinal de animação parecia ter sido drenado dele e Mason teve a nítida impressão de que o homem estava prestes a desaparecer
dentro do macacão.
- Ransom, você sabe que não deve importunar os hóspedes. - disse a Srta. Mamie em um tom alto e artificialmente alegre.
- Eu tava só- Ransom tentou brevemente, mas depois pareceu pensar melhor. Ele estudou cuidadosamente as pontas de suas botas gastas. O sol brilhou sobre os fios
do cabelo prateado penteados de modo a cobrir a cabeça calva. - Sim, Srta. Mamie.
A anfitriã permaneceu triunfante no parapeito da sacada e sua atenção dirigiu-se para Mason. - O senhor dormiu bem, Sr. Jackson?
- Sim, senhora. - mentiu ele, olhando rapidamente para Ransom. O homem parecia ter levado uma surra com vara de marmelo. - Hum... obrigado por me hospedar na suíte
mestre. É muito confortável.
- Excelente. - Ela juntou as mãos, as pérolas rolando sobre o peito. - Ephram Korban teria ficado encantado. Você conhece nosso lema: ‘o isolamento grandioso do
Solar Korban incendiará a imaginação e estimulará o espírito criativo’.
- Li o panfleto, - disse Mason - e já estou com algumas ideias, mas talvez precise de alguma ajuda para começar. Seria possível o Ransom aqui me ajudar a coletar
um pouco de boa madeira para esculpir?
A Srta. Mamie franziu o cenho e suas sobrancelhas ficaram retas. O rosto adquiriu o mesmo ar que tinha quando observava os retratos de Korban. Mason deu-se conta
de que havia desafiado sua autoridade, ainda que apenas de leve. Subitamente, sentiu-se mal por colocar Ransom sob o olhar dela. A Srta. Mamie cruzou os braços,
como uma professora decidindo qual castigo dar a um aluno desobediente.
Após alguns momentos, falou: - É claro que não há problemas. Logo que ele cumprir com suas tarefas. Você acabou suas tarefas, Ransom?
Ransom manteve os olhos abaixados. - Sim, sinhora. Estou livre até o almoço. Depois tenho que cuidar da criação e da produção.
A Srta. Mamie sorriu e sua voz adquiriu novamente o tom jovial. - Excelente. E é melhor aquela escultura ficar perfeita, Sr. Jackson. Estamos contando com você.
- Estou bem animado e inspirado. - disse Ransom - Por sinal, existe algum lugar no qual possa trabalhar sem incomodar ninguém? Algumas vezes, trabalho até tarde
e não há nenhum jeito de entalhar madeira sem fazer um barulho infernal.
- Existe um estúdio no porão. Ordenarei a Lilith para mostrá-lo a você após o almoço.
- Não há necessidade de perturbá-la. Tenho certeza de que ela já está atarefada demais com os outros hóspedes. Por que não deixa o Ransom me mostrar o local?
Uma sombra passou pelo rosto da Srta. Mamie e sua voz ficou subitamente fria. - Ransom não tem permissão para entrar no estúdio.
Mason deu uma olhadela para Ransom e viu o canto de sua boca estremecer. Meu Deus. Ele está morrendo de medo dela!
A Srta. Mamie deu-lhes as costas e voltou para o solar, os saltos estalando pela sacada de madeira. A sineta da porta cantou enquanto entrava. Ransom expirou como
se estivesse segurando o fôlego nos últimos minutos.
- Que chefe maravilhosa você tem. - disse Mason quando Ransom finalmente o olhou nos olhos.
- Cuidado. - disse ele pelo canto da boca. - Ela provavelmente tá olhando de uma das janela.
- Você está de brincadeira!
- Só me segue. - sussurrou ele e, então, disse em voz alta. - O barracão é logo dispois daquelas árvore.
Depois que eles andaram por uma trilha lateral até que a casa estivesse fora de vista, Mason perguntou: - Ela é sempre desse jeito?
A confiança de Ransom aumentou conforme se afastavam da casa. - Ah, ela não falou por mal. É o jeito dela, só isso. Tudo tem que ser desse jeito. E ela se preocupa
demais.
- Há quanto tempo você trabalha aqui, Ransom? Você não se importa que eu o chame de Ransom, não é?
- Respeito pelos mais velho. Gosto disso, Sr. Jackson.
- Pode me chamar de Mason, pois espero que possamos ficar amigos.
Ransom olhou para trás pela trilha. - Só do lado de fora da casa, filho. Só do lado de fora.
- Entendi.
- De todo jeito, ocê tava perguntando quanto tempo faiz qui eu trabáio aqui e a resposta é "desdi sempre". Nasci aqui, numa cabana lá pras banda daquelas árvore.
Lugar chamado Beechy Gap. Mesma cabana que meu vô nasceu, e meu pai, também. Cabana ainda de pé.
- Todos trabalharam por aqui?
- É. O vô tinha umas terra na parte norte, quando o Korban começô a compra as terra tudo aqui. O vô vendeu e virô impregado como parte do acordo. Acho que nóis,
os Streaters, sempre tivemo ligação com a terra, de um jeito ô de ôtro. A história da família é que meu tatara-sei-la-o-quê avô Jeremiah Streater foi um dos primero
que veio pra essas banda. Veio junto com o Daniel Boone, dizem por aí.
- Daniel Boone viveu aqui, também?
- Olha, ele tentô. Tinha uma cabana de caça perto do pé da montanha. Mas eles tomaram suas terra. Eles sempre toma suas terra, sabe?
Ransom não soava amargo. Havia dito isso como se fosse uma verdade universal, algo com o qual você podia contar, não importasse o quê. O sol nasce, o galo canta,
o orvalho seca, eles lhe tomam as terras.
- O barracão é acolá. - disse Ransom, dirigindo-se para uma clareira ladeada por álamos. Continuou a história, o ritmo das palavras cadenciado pelos passos das pernas
magras.
- O vô foi trabaiá direto com o Korban, limpando o pomar e abrindo as estrada. Ele e dois tios meu. Eles alisaram a terra na enxada, socaram cum barras de ferro
e parelha de mulas. O Korban era maluco com madeira para o fogo, desdi o começo. Fez eles serrá as árvores com umas serra velha e empilhar a lenha na beira da estrada.
- E o Korban tinha a paisage toda planejada. O povo achava ele meio ruim da cabeça, transformando essa montanha velha da peste num lugar parecendo um castelo. Mas
o dinhero era verdinho. O Korban pagava um dólar por dia, um dinheirão que ninguém nunca tinha ouvido falá naquela época. Ele era cheio do dinheiro das fábrica dele.
- Eu trabalhei nas tecelage dele. - disse Mason - Mas não dá pra dizer que fui alguém importante nelas. Eu só trocava as bobina por uns trocado.
- Não é pra se envergonhá de trabalho honesto, filho. - Ransom parou e olhou na direção do canto de um corvo. O cheiro de folhas úmidas e floresta apodrecendo preencheu
o nariz de Mason. Notou que respirava mais pesado que o velho, com quase três vezes a sua idade. Ransom começou a caminhar novamente e continuou a história.
- Quando terminaram a estrada, foram trabaiá na ponte. Nos velhos tempo, o único jeito de chegá aqui era um caminho que subia pela parede sul dos dispenhadero. Você
viu aquela queda na subida pra cá.
- Vi, sim. Lá do fundo. - O estômago de Mason começou a se contorcer com a lembrança da majestade e terror da visão. Ele ficou envergonhado com a respiração curta
e tentou escondê-la.
- Aquela trilha é como os primero pionero, Boone, Jeremiah e mais um punhado deles, chegaram aqui em cima. Dizem que os índio Cherokee e Catawba usaram ela antes,
caçando aqui em cima. Os branco trouxeram a criação pra cá, lutando e empurrando os ôtros bicho nos precipício. Mas o Korban queria uma ponte. E o que o Korban queria,
o Korban sempre conseguia.
- Já me dei conta disso. - Uma construção robusta ficava à frente, enfiada entre os ramos baixos de um pinheiro. O telhado estava abarrotado de espículas de pinheiro.
Ransom conduziu Mason até ele.
- Era umas oito famílias que dividiam o topo da montanha. O Korban comprou tudo e colocou eles pra trabaiá, construindo a casa grande e juntando pedra pra fazer
o alicerce da casa. Ele contratô as muié pra plantá as maçã e os jardim. Até as criança ajudaram, ganhando um quarto de dólar por dia mais a comida.
- Ninguém notou que eles estavam fazendo o mesmo tipo de trabalho, só que agora tinham um patrão?
A trilha alargou e as marcas de carroça levavam para dentro do coração da floresta e ao outro lado da clareira. Ransom subiu as escadas retorcidas que levavam ao
barracão e então parou. Mason estava contente que afinal a caminhada pela subida havia finalmente diminuído o ritmo do senhor.
- Você não tem dinheiro, tem? - Ransom perguntou, elevando uma sobrancelha branca.
- Bem, na verdade não. Meus pais trabalhavam a semana toda apenas para sobreviver. - Mason não mencionou que seu pai trabalhava apenas dois dias e que os restantes
ficava bêbado, que todo domingo pela manhã saía religiosamente para agradecer as bebidas que tomaria de noite. Nenhuma prece passou pelos seus lábios que não fosse
o bafo de bourbon. Exceto, talvez, quando estava deitado no hospital, quando a cirrose o escoltou rumo ao túmulo depois de uma vida de autodestruição.
- As pessoa pra essas banda se matavam para ganhar o dinheiro do Korban. Eram umas pessoa pobre que só. Os único trocado que viam na vida era umas duas vez no ano
quando botavam uns troço pra vender no lombo de uma mula e desciam pra cidade de Black Rock pra vender. Então, quando o Korban apareceu do nada oferecendo dinheiro
pela terra, não foi vergonha pra ninguém vendê.
- Acho que venderia as minhas terras também, se tivesse a chance. - disse Mason. Ele estava pensando no Dilúvio, sua primeira escultura sob encomenda e a pior porcaria
que ele já fizera. Também a mais bem-sucedida.
Ransom mexeu no bolso do macacão e novamente puxou o pano com a pena. Ele o balançou de modo estranho à frente da fechadura de ferro fundido na porta do abrigo.
- Hum... para que serve essa pena? - perguntou Mason.
- Pra enxontá. - disse Ransom, como se todo mundo conhecesse esse tipo de feitiço. Ele abriu a porta. Antes de entrar, chutou o batente da porta com tanta força
que o macacão dançou no corpo esquelético. - É, ainda tá forte.
Mason queria perguntar exatamente o que Ransom estava espantando, mas não sabia que palavras usar. Ele anotou isso como sendo mais uma das esquisitices do solar.
Comparado a histórias de fantasmas, os retratos vigilantes de Korban, a empregada nervosa e corações incandescentes à luz do dia, o que eram as excentricidades desse
senhor? Perto de Anna, Ransom era praticamente um modelo de sanidade e razão.
Eles entraram no pequeno barraco, Ransom espreitando as vigas do teto. A luz entrava pelas janelas simples na parede sul. Bancadas de trabalho alinhavam-se ao fundo,
empilhadas junto com arreios quebrados e arados enferrujados, ferramentas de marcenaria e baldes de pregos. Pás gastas, picaretas e machados estavam próximos à porta.
Uma longa serra vai-e-vem estava presa à parede com pregos, alguns dentes faltando. O canto do barraco era uma bagunça de plainas de madeira, martelos, cordas e
roldanas. O interior cheirava a ferro e couro.
Mason começou escolhendo o equipamento que eles poderiam precisar. Se tivesse sorte, conseguiriam achar um pedaço de nogueira ou talvez de bordo. Mas provavelmente
teriam que serrá- lo de algum tronco caído. Ele estava testando o peso de uma machadinha quando notou Ransom novamente olhando para o telhado. - O céu não vai cair
em cima de nós, vai?
- Nunca si sabe.
- Estamos o quê? Uns trezentos metros acima do nível do mar? Um pouco menos de céu para cair em cima de nós.
Ransom nem se deu ao trabalho de sorrir da piada, apenas coçou uma bochecha enrugada. Talvez Mason tivesse julgado mal o velho. Aqueles olhos brilhantes e incansáveis
sugeriam que o homem não era avesso ao humor. Mas ele deveria ter suas razões para ficar solene.
- Encontrô o que pricisava? - perguntou Ransom, esperando próximo à porta.
- Claro. Você se incomoda de pegar esse malho à sua esquerda? Talvez possamos precisar dele para umas pancadas mais pesadas.
Quando saíram do barraco, pararam na clareira e organizaram as ferramentas para melhor carregarem. Ransom estava com uma expressão que Mason poderia descrever como
sendo de "alívio".
- Qual o problema? - perguntou Mason.
- Um hômi tem o direito de ficá assustado, não tem?
O que há para ficar assustado aqui? Será que existiam predadores à espreita na floresta? - Assustado com o quê?
- A Srta. Mamie disse para não contar. - Ransom parecia quase uma criança. Mason se perguntou que tipo de controle tinha aquela mulher sobre Ransom. O homem disse
o nome dela com uma reverência amedrontada, a mão movendo-se pelo macacão na direção do bolso onde guardava o pano enfeitiçado.
- Olha, se houver algum tipo de perigo, você deveria me dizer, pois eu posso alertar os outros hóspedes. Além disso, pensei que éramos amigos.
Ransom olhou para as árvores na direção do sol, que começava sua jornada em direção ao oeste.
- Eu conto. Mas nunca conte pra Srta. Mamie que eu falei.
- É claro que não.
Ransom soltou a respiração lentamente. - Nóis recebe quatro grupo de convidado todo ano.
Nóis fica um mês parado entre cada grupo, pra consertar as coisa, que a gente fica tão atarefado quando eles tão aqui que não dá tempo de fazer mais nada. Alguém
tem que sair por aí e vê se as cabana e os anexo e essas coisa não tão caindo aos pedaço. O Korban dexô nas últimas vontade dele que tudo tinha que ficá igualzinho
era.
- Trêis de nóis é que fazia isso. Nóis sempre trocava, um cuidando da criação, o outro cuidando das pranta e jardim e o outro consertando as coisa. A Srta. Lilith,
a empregada e a cozinhera cuidavam da casa e da cozinha.
- Encontrei a Lilith. Garota bonita.
Ransom balançou a cabeça negativamente. - Ela não faz mal pros ôio. Continuando, ontem um de nóis, George Lawson, estava em Beechy Gap verificando a véia casa do
Easley. Era uma das casa original da família. A última Easley trabaiô naquela casa até casá com um dos artista que veio pra cá e se mudar pra Charlotte uns ano atráis.
- Bem, meu amigo George, ele foi pra essa casa véia dos Easley. Não sei que foi que conteceu, não vi nenhuma ferramenta nem nada, di modi que não sei dizê se ele
tava fazendo algum trabáio de carpintaria. Mas a joça toda do barracão caiu em cima dele. - Ransom cerrou os dentes. - Morreu bem digavarzinho o infeliz.
- Sinto muito, Ransom. O que os policiais disseram sobre isso?
- Como já falei procê, tem as regra do mundo e tem as regra do Solar Korban.
Mason não compreendia. Esse lugar era remoto, mas uma morte acidental deveria requerer algum tipo de investigação.
- George era um bom ômi. E não era burro, não. Passou pelo Vietnã, e divia tê algum senso na cabeça. Ele só cruzou a porta errada, só isso. - Ransom deu a indicação
de que acrescentaria algo à última frase, mas mudou de ideia.
- Para que lado é Beechy Gap?
Ransom indicou o norte com a cabeça. - Dispois daquela crista acolá.
- Não me importaria de dar uma olhada uma hora dessas.
- Não. Os hóspede são proibido de ir lá.
- Terreno ruim?
Ransom o olhou diretamente nos olhos pela primeira vez desde que deixaram o barracão. - Algumas coisa não fazem parte do acordo. Ocê vai descobri que tem um montão
de lugar por aqui na Fazenda Korban que são proibido pros hóspede.
Ransom tirou o patuá do bolso e o moveu na direção do barracão novamente. - Agora, sobre essas madeira suas. Tenho que voltar logo, logo.
Eles pegaram as ferramentas e saíram da trilha em direção à floresta.
CAPÍTULO 16
Adam caminhou junto à cerca, a mente cheia de odores selvagens. Tinha certeza de que os poluentes de Manhattan haviam obstruído permanentemente seus seios nasais,
mas talvez um pouco de ar puro da montanha adicionasse um ano de vida aos seis que a cidade lhe havia roubado. O silêncio quase perfeito era misterioso e ele havia
quase passado por um surto noturno , pois a parte de si que dormia alimentava-se das sirenes constantes, buzinas de carros e alarmes antifurto. E todo esse espaço
aberto era muito antinatural. Não admira que esses caipiras fossem estereotipados como exilados grisalhos e malucos. Não havia absolutamente nada para impôr um nível
mínimo de sanidade e civilização sobre eles, de forma que eles podiam simplesmente criar suas próprias regras.
Paul estava em algum lugar filmando. Sem dúvida, mergulhado em seu novo projeto, o mundo reduzido ao que seu visor enquadrava. Melhor assim. Apesar de a solidão
ser esquisita em si, especialmente na amplidão da fazenda, ele precisava de uma folga da companhia de Paul. Ele falara com Roth, o fotógrafo esquisito, e reparou
na mesma introspecção artística que lhe atormentava em Paul.
Adam viu um homem perto do celeiro, vestido com roupas de trabalho. Não era um dos operários que ajudaram a descarregar a carroça. Provavelmente alguém responsável
pelos estábulos ou por cuidar do jardim que seguia em pequenas linhas no vale baixo. O homem abanou para Adam, que olhou para o solar, distante algumas centenas
de metros, e então aproximou-se do celeiro.
- Olá! - disse o homem. Suas mãos estavam socadas dentro dos bolsos da calça jeans. Uma pá encontrava-se apoiada à parede, ao seu lado.
- Oi. - disse Adam.
- Pelo jeito, você é um dos hóspedes.
- Chegamos ontem.
- O que achou do lugar até agora?
- É... diferente do que estou acostumado. Mas isso é parte da aventura.
- Sim, o desconhecido é sempre assustador no começo. Mas, uma vez que se acostuma, você começa a gostar.
Adam olhou para a área cercada além do jardim. Um grunhido rolou pelo campo.
- Porcos. - disse o homem - Quase na época de ferver a água e abater alguns deles. O rosto de Adam deve ter expressado seu asco.
O homem riu. - Não se preocupe, filho. Você não vai sujar as mãos de sangue. Mas a carne não chega sozinha na mesa do jantar.
- Prefiro minha carne sem os ossos. - disse Adam.
- A Srta. Mamie a serve do jeito que quiser. Mas tenha cuidado, ela é conhecida por tirar uma casquinha dos hóspedes. Especialmente daqueles que são homens e jovens.
Mesmo um corvo velho como aquele precisa de se divertir aqui e ali.
- Obrigado pelo aviso, mas ela realmente não faz meu tipo. - disse ele.
O homem se inclinou para frente como um conspirador, o rosto emergindo das sombras do celeiro. - Diga-me, você pode me fazer um favor?
- O que é? - Adam olhou novamente para o solar. Fumaça subia das quatro chaminés, mas afora isso, parecia sem vida. Mesmo a brisa parecia ter sucumbido.
- Cave um buraco para mim. Eu pago você.
- Não quero me meter em confusão. A Srta. Mamie parece ter essa questão dos hóspedes ficarem separados dos funcionários.
O homem lambeu os lábios. - Eu me preocupo com a Srta. Mamie. Mas tenho um braço machucado e minhas costas doem muito. A dor está infernal nesse momento.
- Certo, então. - disse Adam. Pegou a pá e testou seu balanço.
O homem retirou a mão direita do bolso e apontou para uma macieira acinzentada e moribunda, solitária no meio de uma pequena clareira. - Bem ali, no meio das raízes.
- disse ele - Grande o suficiente para caber uma caixa de sapatos.
O homem seguiu Adam até o local e o viu deslizar a lâmina brilhante para dentro do chão, revirando a terra preta. Em poucos minutos, ele havia feito o buraco de
acordo com o que o homem pedira.
- Assim está muito bom. - disse o homem - Eu posso terminar agora, muito obrigado.
- O que você está enterrando aí?
- Estou dando um jeito nas coisas para Ransom. Ele não vale nada, mas está aqui há tanto tempo que consegue se livrar até de assassinato. Tenho que terminar esse
trabalho para ele.
- Bem, tenha uma boa manhã. Preciso voltar ao meu quarto.
- Aqui. - disse ele, a mão voltando ao bolso. - Uma pequena compensação pelo seu trabalho.
- Não, imagina! - disse Adam, levantando as mãos em protesto. O cabo da pá havia esquentado a pele em volta de suas palmas, talvez o início de um bolha.
- Você não quer me magoar, não é mesmo? - disse o homem - Nós da montanha somos muito orgulhosos com essas coisas.
- Certo, então.
O homem estendeu a mão fechada e então abriu a palma para Adam, mostrando uma pequena coisa verde.
- Um trevo de quatro folhas. - disse o homem.
Adam sorriu - Eu vou precisar de toda sorte que puder encontrar.
Caminhou de volta ao celeiro, então virou-se e disse - Por falar nisso, meu nome é Adam.
- Lawson - disse o homem, agora acocorado sobre o buraco como se suas costas tivessem se curado milagrosamente - George Lawson.
CAPÍTULO 17
Anna acordou com a luz do sol entrando inclinada pela janela e, por um momento, não conseguiu se lembrar de onde estava. Então tudo voltou: Solar Korban, Mason,
a cabana na floresta com as figuras misteriosas, o espírito triste da garota que encontrara.
Por que o fantasma havia pedido a ajuda dela? E quem era a pessoa com o xale que correra para a floresta? Anna empurrou para longe as teias de aranha da memória.
Ela não havia sonhado na noite anterior, a não ser que toda a caminhada na floresta tenha sido fruto de sua imaginação.
- Teve uma boa noite de sono? - perguntou Cris de sua cama, do outro lado do quarto.
- Dormi feito uma pedra. Não durmo assim há anos. Acho que mesmo uma garota da cidade se beneficia com paz e quietude.
Cris, com a voz áspera do sono e da ressaca, disse: - Sei o que quer dizer. Em Modesto, uma sirene acorda você a cada quinze minutos. Que estranho.
- O que é estranho? - Anna olhou para o retrato de Korban e então para o fogo, que deveria ter sido realimentado por algum dos serventes durante a noite.
- Pela primeira vez, desde que eu era uma criança, consigo me lembrar de meus sonhos.
- Mesmo? - Anna pensou em seu sonho recorrente, de seu eu fantasmagórico na balaustrada do telhado, segurando aquele buquê assombrado e assustador.
- É. Estava correndo pelo pomar, lá fora, e estava com longas roupas de dormir esvoaçando atrás de mim. Sabe, todos aqueles laços vitorianos que você vê nas propagandas
de romances góticos? Estava correndo em câmera lenta, como se o vento estivesse me empurrando para trás, ou algo parecido.
- O velho tema de sonho de "correr e nunca alcançar". - disse Anna. -Eu os tive na reta final das provas ou algumas vezes quando enviei algum artigo para uma revista.
Ou quando sonhei a última vez com Stephen. Quando foi isso, cerca de um ano atrás?
- Eu não estava fugindo. - A voz de Cris diminuiu um pouco enquanto ela relembrava os detalhes do sonho. - Eu estava correndo para alguma coisa. Esperando nas sombras,
logo na margem da floresta. Era tão real. Podia sentir o orvalho nos pés descalços, o ar frio em contato com o rosto, o calor... -
Anna se levantou do travesseiro e viu Cris, o cabelo embaraçado, os olhos turvos, mas as maçãs do rosto coradas.
- O calor lá embaixo. - terminou Cris, como se estivesse assustada com a força da lembrança.
- E eu fiquei apenas correndo. Podia sentir a casa atrás de mim, quase como que olhando, como se quisesse que eu... Então eu estava do outro lado do campo. Essa
sombra, moveu-se sob as árvores, tocou-me, mas não podia ver seu rosto. Do ponto onde me tocou no ombro, o calor se expandiu, me preenchendo...
Os olhos bem abertos de Cris estavam fixos no outro lado da sala e dentro do sonho. - Foi bem intenso. - ela sussurrou.
Anna não estava acostumada com as pessoas compartilhando detalhes íntimos com ela. Ser órfã a havia ensinado a se manter numa distância emocional segura. Ela mantinha
segredo mesmo sobre os poucos interesses românticos de sua vida, mantendo uma grande parte de si mesma escondida. Agora essa mulher que ela conhecera ontem estava
compartilhando um sonho sensual. Mas talvez fosse outra coisa. - Você provavelmente encontrou companhia. Mason, talvez.
Cris sorriu. - Não, definitivamente eu teria me lembrado se alguma coisa tivesse acontecido com ele. Eu não estava tão bêbada.
Anna forçou um interesse que não sentia no sonho de Cris como uma penitência por pensar em Mason. - O que você acha que esse sonho significa?
- Que eu sou um caso sem solução?
Como se os sonhos tivessem significado. Sonhos não eram mais que um erro das sinapses, uma descarga de energia elétrica sobrando, do mesmo modo que faíscas saíam
do distribuidor em um carro. Sonhos eram ondas aleatórias no cérebro, não importa o que os professores do programa de ciências do comportamento em Duke a tivessem
ensinado.
Basicamente, sonhos eram um absurdo. Tanto os que ocorriam dormindo quanto os sonhos acordados. Especialmente quando eles o compeliam a visitar um solar perdido
no meio das Montanhas Apalaches, onde você procuraria o próprio fantasma.
Especialmente nesses casos.
- Talvez seja apenas seu subconsciente revelando a sensação de liberdade recém-descoberta.
- disse Anna, buscando alguns conceitos esquecidos de suas aulas de psicologia. - Mesmo porque você tem todo o tempo do mundo, sem prazos, sem marido para agradar.
Nada além de você mesma e o que quiser fazer. Talvez seja apenas natural que essa sensação de alívio se expresse sob essa forma romântica.
- Uau! Isso foi bom. Mal posso esperar para chegar em casa e contar isso para meu terapeuta. Anna ia adicionar mais alguma coisa sobre frustração sexual devido à
vestimenta vitoriana do sonho. Mas isso era cínico e obtuso demais, mesmo para Anna.
- Ou talvez fosse apenas um sonho. - disse ela, temendo a diarreia sanguinolenta que lhe dava as boas-vindas todos os dias pela manhã.
- Provavelmente. - disse Cris.
Anna empurrou a coberta para longe e sentou, arrepiando-se por debaixo da camisola. - Hora de fazer um depósito no banheiro.
- Vá em frente. Preciso ficar aqui um minuto para me recompor. Vou dar uma fugida até o andar de baixo e roubar um pouco de cafeína. Quer algo?
- Não, obrigada.
Quando Anna retornou ao quarto, Cris estava pegando seus cadernos de desenho, uma caneca de café fumegando no criado-mudo. - Esbarrei em Jefferson Spence. Sabe aquele
escritor gordo? É bacana estar aqui com pessoas realmente famosas.
Anna deu de ombros. - Tivemos que estudar seu Seasons of Sleep em literatura americana. O livro me dava sono, se você quer saber.
- Ele escreveu esse aqui no solar. Dizem que ele escreve sobre pessoas reais e apenas muda os nomes para não ser processado. Pergunto-me se estaremos em seu próximo
livro.
Anna foi até seu armário para escolher uma roupa. - Eu serei a biruta caçadora de fantasmas com um grande nariz e você poderá ser -
- A perua doméstica que fica molhada sonhando.
- Só que não será assim tão simples no livro. - disse Anna, e então fungou delicadamente. - Você será provavelmente a Vênus trêmula, agarrando-se e contorcendo-se
sobre os lençóis, as costas arqueadas de prazer em direção ao teto negro, ao céu infindável, à prisão notuma e assim por diante.
Cris riu com tanta força que espirrou parte de seu café. Uma batida veio da porta. Anna cruzou os braços, sem saber o que a camisola revelava, ou não. Ela evitava
espelhos já fazia um tempo.
Cris aparentemente tinha menos modéstia, tendo descido as escadas na camisola amarela que ainda vestia. - Entre! - gritou ela. - Estamos decentes aqui dentro.
A Srta. Mamie entrou no quarto, as mãos unidas, um sorriso no rosto que poderia ter sido esculpido em madeira. - As senhoritas dormiram bem?
- Mais ou menos. - disse Cris - As camas são muito confortáveis.
- E você, Srta. Galloway? Saiu tarde da noite ontem? - Os olhos da Srta. Mamie refletiram a luz quente e ondulante do fogo.
A Srta. Mamie a estava repreendendo ou apenas de conversa? A anfitriã sabia que Anna era uma parapsicóloga. Ela não vira nenhuma razão para mentir em sua ficha de
inscrição. Na verdade, aprendera a ter um orgulho teimoso sobre suas peculiaridades.
Assim, não viu nenhuma razão para mentir agora. - Dei uma caminhada. - disse ela - Naquela elevação na direção leste.
- Você achou o que estava procurando? - Não havia nenhuma dúvida sobre o tom de desafio na voz da anfitriã.
- Não. - Não era uma mentira. Ela não estava certa do que estava procurando, além de seu próprio fantasma.
- Talvez venha até você, Srta. Galloway. Seja otimista. - A Srta. Mamie franziu os lábios em um sorriso reptiliano e olhou para o retrato de Ephram Korban.
- Você tem uma casa bem esquisita. - disse Cris.
- A casa é dele. - disse a Srta. Mamie, com um leve inclinar na direção do retrato. Ela tocou o medalhão pendente no colar de pérolas que lhe circundava o pescoço.
- Eu apenas mantenho os fogos acesos.
Ela as deixou para se vestirem e especularem sobre o comportamento críptico da anfitriã.
CAPÍTULO 18
- Por aqui, Sr. Jackson.
Lilith desceu pelas escadas estreitas. Mason reposicionou o pedaço de bordo de dez quilos nos braços e a seguiu escada abaixo. O ar bolorento e úmido grudou-se no
rosto de Mason. Ele olhou para dentro do porão negro, certificando-se de que cada passo era sólido antes de dar o próximo.
Lilith o esperou no fim das escadas, segurando uma lanterna na altura do ombro. Quando Mason finalmente chegou ao piso do porão, olhou para as sombras ondulantes
e sombrias, tentando perceber a distribuição das coisas. Pequenas janelas basculantes foram colocadas altas nas paredes, logo acima do nível do chão externo, mas
apenas uma nesga de luz acinzentada passava por elas. O odor de podridão seca deu lugar a uma ruína mais profunda e antiga.
Ele tropeçou e sua sacola de ferramentas chocou-se contra seu quadril. A alça estava começando a penetrar em sua pele onde a sacola pendurava-se em seu ombro. Lilith
o direcionou por entre alguns pilares grossos de madeira, um monte de mobília velha e uma pequena porta. A chama da lamparina refletiu nas garrafas de vinho empoeiradas
que se empilhavam nas prateleiras da passagem estreita.
- Por que é tão quente aqui? - perguntou Mason, a voz engolida pelo espaço vazio.
- Calefação central. - disse Lilith - O Sr. Korban insistia no fogo para aquecê-lo. Mason se perguntou se seria capaz de trabalhar ali por longos períodos de tempo.
Esculpir geralmente lhe fazia suar copiosamente. O trabalho era tão físico quanto de inspiração. Apenas nos toques finais, nos detalhamentos finais e polimento,
é que o trabalho deixava de ser tão exaustivo.
- Onde é o fogão? - perguntou ele.
Lilith apontou para dentro da escuridão à esquerda do final do porão. - Há um aposento separado lá, de forma que os trabalhadores possam manter o fogo aceso pelo
lado de fora da casa. Os encanamentos correm pela casa toda.
Ela elevou a lanterna e Mason viu os dutos metálicos no teto.
- Aquecimento por circulação de ar. - disse ele - Isso era bem sofisticado para a época, não é?
- Não sou historiadora, Sr. Jackson. A Srta. Mamie seria a pessoa certa para responder a essas perguntas.
Lilith o levou a uma área que não era exatamente um aposento. Era mais um espaço dividido por pilares de madeira e prateleiras. Um armário grosseiramente acabado
encontrava-se ao lado do que ele adivinhou ser seu estúdio.
- Espero que isso sirva. - disse ela - Tivemos poucos escultores no solar, ao contrário de pintores, que foram muitos. E um velho cavalheiro que fazia xilogravuras.
Todos eles conseguiram trabalhar aqui.
- Ah, você pinta?
- Eu costumava pintar.
Ele não quis comentar a mudança de carreira dela. Sua própria mudança estava no limiar de acontecer. - Talvez um pouco de espírito criativo tenha penetrado nessas
paredes.
- Talvez sim, Sr. Jackson. Talvez mais do que o senhor imagina.
Ela era um pouco estranha, Mason decidiu. Se ela não fosse tão fria, Mason se arriscaria a conhecê-la melhor. Mas era melhor que ele se concentrasse em seu trabalho.
Além disso, tinha certeza de que a Srta. Mamie não aprovaria que seu pessoal se envolvesse com os hóspedes, não importando o quanto os hóspedes se envolvessem uns
com os outros.
Uma mesa grossa encontrava-se no meio do espaço. Mason colocou o pedaço de madeira sobre ela com um baque sólido. Retirou a sacola do ombro e também a depositou
sobre a mesa. Ficaria escuro aqui, mesmo durante o dia, mas ele não se importava. No fim das contas, trabalhava mais por toque e instinto mesmo.
- Isso seria tudo? - Novamente, Lilith parecia com pressa de ficar longe dele. Ou talvez não fosse dele. Talvez quisesse ficar distante desse lugar escuro e claustrofóbico
onde Mason passaria uma boa parte de seu tempo.
- Então, serei amaldiçoado com a escuridão? - perguntou ele.
- Como?
Ele apontou a lanterna. - Presumo que você levará isso junto.
- Ah, entendo. - ela moveu-se na direção das prateleiras e, sob a luz da lanterna, viu um amontoado de velas meio queimadas. - Tem fósforos sobre aquele armário.
Ela esperou até que Mason acendesse duas velas grossas. Ele também encontrou uma lamparina a óleo na prateleira inferior e puxou o pavio. Ele tinha apenas tocado
a ponta da vela no pavio da lamparina quando ela disse - Boa sorte! - e se foi.
Conforme os ecos de seus passos sumiram na direção da escada, ele murmurou para si mesmo - Nossa, não é uma surpresa as pessoas contarem histórias sobre esse lugar.
Mason acendeu uma vela a mais e espalhou suas ferramentas sobre a mesa. Ele contemplou os gumes afiados das lâminas antes de dirigir a atenção ao bloco de bordo
vermelho. Então começou a caminhar, a mente mergulhando naquele poço misterioso onde as ideias borbulhavam.
Seu pé tocou em algo, causando um ruído abafado. Ele trouxe a lamparina para baixo para ver no que havia tropeçado. Era uma tela emoldurada, a parte de trás acinzentada
pelo tempo. Ele a virou.
Na tela, estava uma reprodução perfeita do Solar Korban em uma noite de tempestade, pintada na mesma técnica que as outras pinturas a óleo da casa. O solar fora
desenhado em escala perfeita, tão encaixado na paisagem que a casa parecia ter brotado do chão. Na pintura, estava o orifício do nó de madeira que Mason havia visto
mais cedo naquela manhã, debaixo de uma janela no segundo andar.
Mas o realismo fotográfico não era a única coisa que deixava a pintura tão forte. O solar era vibrante, como se balançasse contra uma tormenta imaginária. As árvores
estavam enfurecidas com o vento e nuvens negras pairavam sobre o telhado achatado do solar. Mason tocou gentilmente na pintura e uma eletricidade subiu pelo seu
braço. Ele se perguntou por que uma pintura tão bonita estaria relegada ao ar destrutivo de um porão.
Ele a encostou na mesa e aproximou a lamparina, com cuidado para não danificar o acabamento. Olhou detidamente cada centímetro quadrado da pintura, correndo delicadamente
os dedos sobre as cristas deixadas pelas pinceladas. Os ângulos das empenas eram geometricamente precisos, as sombras proporcionais, a escolha de cores verdadeira
ao olho humano. Mesmo as cascas das árvores possuíam uma textura complexa.
Ele estava olhando o topo do solar, estudando o parapeito da balaustrada, quando reparou na única falha da pintura. O artista havia inadvertidamente borrado as cores.
Havia um borrão cinza na balaustrada. O artista poderia ter facilmente consertado o defeito, mas por alguma razão não o fizera. Ainda assim, a pintura era perfeita
demais para permanecer escondida na escuridão.
Mason não soube dizer quanto tempo ficou olhando para a tela. Ela possuía um poder hipnótico tão intenso que parecia sugá-lo para dentro de seu turbilhão. Por fim,
ele balançou a cabeça, dando- se conta de que se não começasse a esculpir, desperdiçaria o primeiro dia de sua última chance. Encostou a pintura fora do caminho
em um pilar de madeira, prometendo a si mesmo que perguntaria mais tarde sobre ela à Srta. Mamie.
Ele iniciou o trabalho removendo a casca do tronco de bordo, incomodado pelo fato de que sua mente voltava à pintura.
- Vamos, seu desgraçado. - xingou - É a hora da verdade. Pense em sua mãe em Sawyer Creek, murchando por causa do sacrifício que fez por você. Sozinha no escuro.
Ele ouviu a voz em sua mente, lhe dizendo para se agarrar aos próprios sonhos. Ele arrumou suas ferramentas, a goiva, a machadinha, o maço, o enxó e uma dúzia de
formões com diferentes ângulos e formatos. Ainda assim, nenhuma ideia lhe ocorreu. Ele olhou à volta, para as sombras que as velas tremulantes criavam.
Alguém o estava observando na escuridão à volta.
Um sussurro leve no canto. Mason levantou a lamparina. Uma coisa pequena e escura se destacava das sombras menos intensas e movia-se na direção da prateleira de
vinhos.
Um rato. Os dedos de Mason curvaram-se dentro dos sapatos. Ele odiava roedores. Quando era mais jovem, logo antes de seu pai falecer, a família vivera em um trailer
alugado. O estacionamento de trailers ficava próximo a um depósito de lixo e os ratos se multiplicavam em proporções bíblicas graças à quantidade de comida.
Uma noite, ele ouviu sons raspados dentro do colchão sobre o qual dormia. Ligou a luz e observou, horrorizado, ratos recém-nascidos caindo de dentro do colchão por
um rasgo no tecido. Igualmente repulsivo foi observar o velho gato cinza da família engolindo os ratos inteiros, um por um, conforme saíam do buraco. A rata devia
estar doente, ou algo parecido, porque seu colchão cheirou à morte por semanas a fio após esse evento. Mas Mason já havia feito de sua cama uma cadeira de reclinar
que ficava do outro lado da sala de estar.
Outra memória mais antiga surgiu, mas ele a empurrou com força para dentro das trevas sonolentas.
Essa criatura no porão era apenas um camundongo. Mason podia lidar com isso. Camundongos eram tímidos, enquanto ratos eram seres a serem desprezados, com as longas
caudas, jeito intencional e olhos que brilhavam com inteligência desafiadora.
Ele tentou novamente se concentrar no trabalho. Talvez o camundongo tivesse sido sua Musa. Outros artistas falavam sobre o espírito que os movia, que se movia dentro
deles. Mason não compreendia isso. Tudo o que ele possuía eram teimosia e raiva para movê-lo.
Ele se dirigiu ao tronco que Ransom o havia ajudado a livrar de uma árvore caída. - Certo, que tipos de segredos você esconde aí por dentro?
Ele estudou o padrão de crescimento dos anéis e acariciou os grãos da madeira. A seiva morta pulsou. Uma lufada de ar assobiou por dentro dos dutos de aquecimento.
- O que você quer se tornar? - ele pegou sua machadinha. O som da corrente de ar quente transformou-se em uma risada baixa. Ele sentiu uma mão à volta da sua, um
bolsão de ar morno para guiá-lo.
Sua voz aumentou - O que diabos você quer de mim?
Mason afundou a lâmina de metal profundamente no cerne da madeira. O eco seco da pancada soou quase como um suspiro de contentamento.
CAPÍTULO 19
Roth estava irritado. Havia rodado três rolos de filme, enquadrando primeiro a casa na luz matinal suave e inclinada e, então, sob a luz solar mais intensa e sombras
mais marcantes, conforme o dia progrediu. Ele havia caminhado um bom pedaço do caminho arenoso para conseguir montar uma série de perspectivas de aproximação pela
teleobjetiva, trabalhando com um tripé. Ele conseguira uma razoável profundidade de foco, manipulando o obturador, de forma que a casa parecia pequena com relação
à floresta que a envolvia. Então, ele fizera um trabalho fotográfico manual, mais de perto, para dar o efeito oposto, levando o expectador a ter a impressão de que
o solar se agigantava contra as árvores e colinas.
Tudo isso era um bom trabalho, mas corriqueiro, e ele queria tentar algo diferente. Ele queria fotografar a ponte. A ponte pequena e batida pelo tempo daria um excelente
motivo de conversa como a capa de seu livro de fotografias, com seus despenhadeiros dramáticos e vistas enevoadas.
Ele estava certo de que desejava fotografar a ponte, mas quando caminhou sobre as árvores pela estrada a ideia já não lhe pareceu tão incrível assim. O dia estava
tão quente que, mesmo na sombra, sua testa estava banhada em suor. Um espasmo de náusea e tontura lhe cruzou o corpo. Antes de contornar a última curva, onde o terreno
do solar dava lugar às rochas do despenhadeiro, ele decidiu que a ponte seria um grande desperdício de filme fotográfico.
Assim, caminhou de volta ao Solar Korban, sob uma súbita brisa leve, e sentiu-se melhor conforme o suor secou. Tirou mais algumas fotos da casa dos mesmos locais
de antes. Era tudo uma baboseira.
- Vou ficar maluco. - murmurou ele por entre os dentes.
- O que disse?
A voz feminina veio de algum lugar à sua direita. Ele olhou para debaixo das sombras das árvores, na esperança de que tivesse mantido seu sotaque inglês enquanto
estava praguejando. Não poderia haver deslize.
- Eu estava dizendo "Que monte de tédio" - disse ele.
Ele a via agora, sentada em um toco, ao lado do sicômoro. Estava com o caderno de esboços em seu colo e um carvão entre os dedos. Roth olhou para suas longas pernas,
apreciando que o dia estivesse quente o suficiente para que ela usasse um short.
- Está tirando fotos? - perguntou ela.
Fotos. Turistas e crianças tiravam fotos. Roth enquadrava o vital, capturava o essencial e imortalizava o divinamente apropriado.
Moça estúpida. Ainda assim, em sua experiência, quanto mais vazio o espaço superior, mais apertado o espaço lá de baixo.
De qualquer forma, ele estava ficando frustrado com seu trabalho. Talvez estivesse no momento certo de arranjar uma companhia para a noite. - Sim, minha querida.
- disse ele, levantando a câmera e apontando para ela.
Ela olhou para o outro lado.
- Não seja tímida, meu amor. Deixe minha câmera feliz. Não vou nem dizer para você falar "xis" ou qualquer coisa do estilo. - Ele aproximou a imagem com o zoom em
seu decote sem que ela reparasse.
Ela olhou para cima e sorriu, ele acionou o disparador e então colocou a câmera de lado. - Diga-me, você não estava naquele pequeno encontro da Srta. Mamie após
o jantar ontem?
- Sim. Vi você. William Roth, não é?
Roth amava quando as pessoas fingiam que não estavam impressionadas com sua celebridade, mas ela não conseguiu esconder o pequeno brilho em seus olhos. Talvez ele
não fosse uma estrela de cinema, mas ter o nome reconhecido definitivamente era útil na sua aproximação com as meninas. - Todinho seu. - disse Roth - E a quem tenho
o prazer?
- Cris Whitfield. Cris, sem o h. - Ela estendeu a mão, dando-se conta de que estava suja com carvão, trazendo-a de volta ao colo.
- Encantado. - Ele esticou o pescoço como se fosse olhar o que ela estava desenhando, mas na verdade observando seu colo. - O que está desenhando?
- A casa. - disse ela, acenando com a cabeça na direção do solar.
- Se importa se eu der uma olhada?
Ela deu de ombros e virou o caderno de esboço para ele. Ele aproveitou a oportunidade para ficar de pé ao lado dela.
- Não sou muito boa nisso. - disse Cris.
Parece muito boa, pela pequena espiada que dei.
- A casa não é um motivo fácil. - disse ele, pegando o esboço. - Eu não conseguiria fazer um esboço dela. Não posso nem imaginar como seria terrivelmente assustador
um desenho dela feito por mim...
Ele estava esperando um desenho primário no papel, algo que o lobo mau conseguisse assoprar com os pulmões a meia capacidade. Mas não esse... manicômio que a mulher
havia desenhado. Nada que parecesse vir dessa pequena menina com rabo de cavalo que parecia uma perua de beira de praia e que provavelmente estudara reiki, yoga
ou qualquer outra dessas bobagens da nova era que estavam na moda.
Porque o desenho era certamente do solar, mas muito mais que apenas isso.
Era decadente, escuro e pessimista, uma mistura de Dali e Goya. Acharam algumas pinturas de Goya após sua morte, escondidas em sua casa porque ninguém conseguia
ficar olhando para elas. Roth lutou contra o desejo de tocar no esboço.
O carvão estava espesso como uma pelagem animal. As sombras do pórtico eram agudas e abruptas e Roth quase conseguia imaginar criaturas aladas voando naquela escuridão.
As janelas das empenas eram como olhos de soslaio, a grande porta da frente como uma bocarra cavernosa. Ele olhou do desenho para a casa e, apenas por um segundo,
tão pequeno que ele se convenceu de que estava imaginando coisas, a casa pareceu com o que ela havia desenhado, trêmula e latejante como uma criatura viva e rosnando.
- Que diabos, garota. - ele finalmente conseguiu proferir - De onde surgiu isso?
Ela olhou timidamente para baixo na direção de suas botas de caminhada. Quando ela deu de ombros, ele apenas reparou nos seios balançando. - Não sei dizer. - disse
ela - Apenas aconteceu.
Roth balançou a cabeça.
- Nunca fiz nada tão bom assim. - disse ela - Quero dizer, eu não sou mesmo boa nisso.
- Parece profissional, para mim.
- Não esse desenho. Eu sei que é bom. Mas não é por minha causa. É por causa da casa.
- A casa? - Roth pensou em como não conseguia se forçar a fotografar nada além da casa. E como se sentiu quase ao ponto de desfalecer quando estava andando na direção
da ponte. Pelo menos até o momento em que voltara a ver a casa novamente.
- É como se ela tivesse essa... energia. - disse Cris - Quando eu estava desenhando, o carvão praticamente parecia estar se movendo sozinho.
- Como sugestão hipnótica e essas bobagens? - ele bufou, mas então se arrependeu. Desprezo não era o caminho para o coração de uma mulher, ou para qualquer outra
parte dela.
O lábio de Cris se curvou. Ela fechou o caderno de desenho com força. O desenho assombrado e distorcido ainda se demorou na mente de Roth.
- Todos são críticos. - disse ela - Por que você não volta a pressionar esses pequenos botões de sua máquina?
Ela passou furiosa por ele, chutando as folhas. Roth observou-a caminhando na estrada em direção à casa. Ele moveu a tira que estava lhe machucando o pescoço e então
verificou a câmera empoleirada no tripé.
Que se vá!, pensou ele. O que me importa um desenho barato, mesmo? Artistas são um bando de idiotas, falando sobre "significados" e "espírito criativo" e coisas
sem sentido. Tudo se resumia a dinheiro, poder e sexo, e como garantir uma maior quantidade de cada um deles.
Ele apontou a câmera para o solar. Cris pulou sobre os degraus da entrada até a varanda.
Enquanto ela desaparecia na porta da frente, Roth não pôde deixar de lado o sentimento de que a casa a havia engolido inteira.
CAPÍTULO 20
A floresta parecia diferente à luz do dia. Seus limites eram mais arredondados, os galhos menos ameaçadores, as sombras sob as copas menos sólidas e sufocantes.
Anna aspirou o ar da tarde, sentindo-se viva e renovada. O Solar Korban e as montanhas estavam trazendo de volta seu apetite, fazendo-a esquecer-se da longa sombra
para qual o câncer a estava empurrando.
Ela tomou à direita na encruzilhada, lembrando-se do poema de Robert Frost sobre as estradas menos trilhadas, pois o caminho da direita era pouco mais que uma trilha
deixada pelos animais. Mas a trilha levava a um pequeno monte, um crânio macio de terra vestindo um chapéu de grama. No meio da clareira, ficava uma cerca quadrada
de ferro, dentro da qual se espalhavam lápides brancas e cinzas.
- Então é aqui que vocês mantêm os mortos. - disse ela para o céu.
Anna caminhou até a cerca e olhou para os lados, mas a floresta estava silenciosa. Esse não seria o primeiro cemitério no qual ela entraria sem permissão. Ela se
puxou pela cerca, segurando-se no motivo floral e nos ferros retorcidos, a fim de evitar ser empalada nas pontas afiadas.
Dois grandes monumentos de mármore, bonitos, apesar de desgastados pelo tempo, dominavam o cemitério. No primeiro lia-se Ephram Elijah Korban, 1859-1918. Chamado
cedo demais.
Ao lado desse, levemente menos ornado, lia-se simplesmente Margaret. Anna ajoelhou-se e pressionou a palma da mão sobre o jazigo de Ephram.
- Alguém em casa, Srta. Galloway?
Anna olhou para cima. A Srta. Mamie estava junto à cerca, de algum modo tendo cruzado vinte metros de terreno aberto sem que Anna percebesse.
- Só saí para dar uma caminhada e fiquei curiosa.
- Você sabe o que dizem sobre a curiosidade e o gato, não é mesmo? A maior parte de nossos hóspedes respeita os limites impostos pelas cercas.
- Você diz os hóspedes que andam, ou aqueles que flutuam?
A risada estridente da Srta. Mamie ecoou pelos monumentos. - Ah, essas histórias de fantasmas. Não pude resistir à aprovação de sua ficha de inscrição, sabe? Pesquisadora
paranormal. Era perfeito demais.
- É uma forma de arte tanto quanto pintura ou literatura. É tudo uma questão de busca, não é?
- Esperta. E exatamente o que você está procurando, Anna?
- Suponho que vá saber, quando encontrar.
- Pode-se apenas ter esperança. Ou talvez você não tenha que procurar. Talvez o que esteja procurando encontre você primeiro.
- Então você não se importaria comigo perambulando pelo seu cemitério? A Srta. Mamie olhou para o jazigo de Korban. - Sinta-se em casa.
- Obrigada.
- Mas não se atrase para o jantar. E tenha cuidado para não ser pega de surpresa pela noite. - A Srta. Mamie começou a se afastar, então falou: - Você é um daqueles,
não é?
- Daqueles o quê?
- Que as pessoas da montanha chamam de "dotados". Terceira visão. O poder de ver aquilo que as pessoas não conseguem.
- Não sou tão especial.
- Essas histórias de fantasmas são tão deliciosas. E boas para os negócios, também. Que artista, que se diz vivendo no limite, poderia deixar passar a chance de
vir para cá? Se você encontrar alguma coisa, me dirá, não é?
- Juro de coração.
- Não jure com tanta fé. Não ainda, pelo menos.
Anna olhou a mulher cruzar pela grama e entrar na floresta, então se voltou para as lápides que tinham escorregado pelo monte. Ela as explorou, lendo os nomes. Hartley,
Streater, Aldridge, McFall. Então, as lápides deram lugar a simples lajes, em alguns casos pedaços brutos de granito apontando para o céu como uma lembrança desamparada
de uma vida há muito esquecida.
Será que sua morte seria assim tão sem importância? Será que sua marca seria assim tão insignificante? Será que isso importava?
No limite das pedras espalhadas, onde a cerca encontrava-se com a floresta, uma lápide entalhada ficava à sombra de um velho cedro. Anna aproximou-se e leu "Rachel
Faye Hartley" no mármore. Um buquê de flores ornadas estava entalhado sobre o nome.
- Rachel Faye, Rachel Faye. - murmurou - Alguém deve tê-la amado.
E apesar de Rachel Faye Hartley ser apenas pó, Anna sentiu uma leve inveja dela.
CAPÍTULO 21
Sylvia observou da floresta até que a Srta. Mamie partiu. Anna parecia pequena e perdida no cemitério, conversando com as lápides, procurando fantasmas entre as
folhas das gramas. A garota possuía a Visão, isso era pacífico. Mas outra coisa certa era aquela aura negra à sua volta, agarrando-se à sua carne como um arco-íris
noturno .
Anna estava se preparando para morrer.
Sylvia ajeitou o xale à sua volta, segurando-o com a mão nodosa. A outra segurava seu bastão de caminhada, no qual ela se recostou descansando para sua jornada de
volta à Beechy Gap. Ela não saía muito nos dias de hoje, especialmente agora que os fantoches de Korban estavam soltos por aí. As coisas estavam ficando agitadas
e parte disso tinha a ver com a lua azul que se aproximava.
Outra parte tinha a ver com aquela garota no cemitério, aquela que ficara olhando por um tempo a lápide de Rachel Faye Hartley.
- Ocê vai se juntá a ela logo, logo. - disse Sylvia ao louro que a rodeava. - Se o Ephram deixar, quer dizê.
O sol estava mergulhando na hora que Anna pulou a cerca novamente, cheia de energia para uma pessoa tão doente. Anna não conhecia os caminhos antigos, era fraca
no poder dos encantamentos e coisas do estilo. A garota não entenderia o poder curativo das raízes, ossos de poder e modos especiais de se dizer certas coisas. Mas
talvez o dom estivesse apenas enterrado dentro dela e não perdido para sempre. Pois o sangue corria espesso, mais espesso que água. E a magia corria pelos túneis
da alma, como Ephram sempre dizia.
Mas Ephram era um mentiroso.
Tanto antes quanto depois de morrer.
Uma coruja piou, um som tão solitário quanto o vento numa noite de inverno. Sinal de morte, um piado durante o dia. Mas, nos últimos tempos, havia sinais de morte
em todo lugar, vindo a todo momento. Sylvia proferiu um encantamento de passagem segura e deslizou para dentro da floresta, apressando-se para casa da melhor forma
que conseguia, antes que o sol beijasse a borda das montanhas.
CAPÍTULO 22
- Querido?
Spence tamborilou nas teclas da máquina de escrever, fingindo não ouvi-la.
- Jeff? - Bridget colocou uma mão em seu ombro.
Ele parou de escrever e olhou-a. - Você sabe que não deve me incomodar quando estou trabalhando.
- Mas você nem veio para a cama à noite passada!
Ele odiava o tom lamentoso de sua voz, sua necessidade de agradar. Ele desprezava sua preocupação. Mais que tudo, estava incomodado com a distração.
- Espero que a máquina de escrever não a tenha mantido acordada. - Ele não se importava realmente. Estava fazendo progresso, na perseguição da Musa esquiva, e isso
era tudo o que importava.
- Não, não é isso. - disse Bridget - Você precisa descansar.
- Haverá tempo de sobra para descansar depois que eu estiver morto. No momento, me sinto particular e efusivamente vivo. Assim, seja gentil comigo e me deixe continuar.
- Mas você não almoçou. Isso não é do seu feitio.
Spence se perguntou se isso era algum tipo de alfinetada com relação ao seu peso, mas Bridget nunca o criticara. Ela não possuía a imaginação necessária para atacar
com palavras. Spence era o mestre reinante nesse contexto.
- Também não é do meu feitio interromper meu trabalho para ter uma conversinha romântica. - disse ele, e então esticou o som das vogais em seu sotaque estilo Ashley
Wilkes. - Agooraa, por que você não faaz como Scarlett e se peerde no ventoo?
- Não seja malvado, querido. Estou só tentando ajudar. Quero que você fique feliz e sei que só fica feliz quando está trabalhando em algum projeto.
- Então, deixe-me extasiado. - disse ele - Saia.
Um pequeno soluço surgiu na garganta de Bridget. Spence o ignorou, voltando sua atenção à página meio escrita e às outras trinta páginas empilhadas ao lado da máquina
de escrever. Ele faria alguma revisão, sabia disso, mas era um trabalho excelente. Seu melhor em muitos anos. E ele não queria que acabasse.
A porta se abriu e ele falou para Bridget sem nem olhar para trás. - Vejo você no jantar. - mentiu ele.
A porta se fechou suavemente. Spence riu para si. Ela não tivera autoestima suficiente para bater a porta com raiva. Ela se desculparia à noite, pensando que a pequena
cena fora sua culpa.
Ela era, de longe, uma das melhores conspurcações que Spence já engendrara, de todas as professoras casadas, jovens agentes literárias e editoras assistentes que
já haviam se apaixonado por ele. Mas, no final, elas não eram nada, apenas um saco de ossos sem significado, andaimes para lhe dar um alento enquanto estava solitário
e rabugento. Quando ele estava trabalhando, e trabalhando bem, não precisava do amor de ninguém, exceto o seu próprio.
- E o seu, claro. - Spence disse para o retrato de Korban, apesar da carranca de seu benfeitor. Spence pegou o manuscrito e começou a lê-lo. A graça da linguagem,
a estrutura frasal enxuta, as descrições poderosas, tudo estava soberbo. Nunca foi tímido sobre se cumprimentar por um bom trabalho, mas agora ele estava realmente
superando os seus limites literários. Ele os superaria todos, de Chaucer a King, passando por Keats.
Ele não questionava a origem das palavras. Esse era um mistério que ele preferia deixar para aqueles cuja subsistência derivava da vivissecção acadêmica das pequenas
humanidades. Mas ele nunca antes havia escrito com tanta facilidade como o tinha feito na noite passada e hoje.
Escrita automática. Era como ele sentia.
O que Spence sempre chamara, durante as raras ocasiões nas quais a pena fluía tão livremente, de "escrita fantasma". Como se o papel e a máquina de escrever estivessem
sugando as palavras do ar. Como se os dedos soubessem as próximas palavras antes de o cérebro as pensar. Como se nem estivessem lá.
Apropriado ao manuscrito, ser chamado de escrita fantasma, pensou ele. Tinha um toque gótico, algo mais escuro que a literatura sulista que fizera dele o queridinho
de Nova Iorque. E tinha esse protagonista, o homem belo, barbado e estranho cujo nome ele ainda não decidira. Isso era estranho, estar tão adiante no manuscrito
e ainda nem saber o nome do personagem principal.
Ele se pegou olhando, pela milésima vez, para a pintura de Korban, pendurada sobre a mesa. Então, fechou os olhos. Após um momento, continuou a escrita fantasma.
CAPÍTULO 23
- Você ouviu isso?
- Ouviu o quê?
- Um som de batida.
Adam forçou os ouvidos. Paul provavelmente estava sendo só paranoico. Ele saiu de fininho e fumou um baseado antes do jantar. Paul era duas coisas quando estava
chapado: paranoico e tarado.
- Provavelmente aquele escritor gordo currando aquela bisca no quarto abaixo do nosso. - disse Adam.
- Se for isso, eles devem ser o casal mais mal coordenado da história da humanidade. E o mais rápido também.
- Agora só quero pensar em nós. - disse Adam, descansando a cabeça no ombro de Paul. - Obrigado pelos momentos maravilhosos.
- Não, obrigado a você.
- E eu prometo não mencionar o tema da adoção por pelo menos uma semana.
- Você acabou de tocar no assunto.
Paul. - Esqueça que eu falei qualquer coisa.
Adam puxou as cobertas até o queixo e curvou o corpo contra o calor de Paul. Adam estava preocupado que tivesse problemas para dormir. A fazenda no topo da montanha
era muito silenciosa para um garoto da cidade e Adam nunca havia experimentado esse tipo de escuridão quase total.
- O que você acha de ligarmos o rádio escondido? - perguntou ele.
- Você trouxe as pilhas?
- Sim. Pensei que poderíamos querer um pouco de contato com o mundo exterior. O rádio está na minha mala.
- Vou ter que passar por cima de você para pegá-lo.
- Eu não mordo.
- Eu estou muito cansado, de qualquer forma. "Frescura", como diria aquele fotógrafo metido.
- Você bebeu vinho demais, só isso. E sabe como a maconha deixa você.
- Hoje foi por diversão. Amanhã, vou voltar a trabalhar.
Adam pegou o rádio, trouxe-o para a cama e o ligou. Ele girou o botão de sintonia, mudou de FM para AM, mas nada além de estática. - Acho que as ondas de rádio são
bloqueadas pelas montanhas.
- Ou as músicas pop são censuradas aqui para cima.
Eles deitaram por alguns instantes na escuridão. A casa estava parada e silenciosa. As brasas haviam diminuído na lareira e Adam não estava com vontade de pegar
um fósforo para acender a lamparina ao lado da mesa.
- Estive pensando. - disse Paul.
- Novidades de imprensa. Parem as impressoras.
Paul cutucou Adam nas costelas. Adam fez cócegas em resposta.
- Falando sério. - disse Paul - Estou pensando em fazer um documentário sobre esse lugar.
- Esse lugar?
- Solar Korban. É único, e poderia fazer algumas filmagens dramáticas. A história de Ephram Korban parece ser bem interessante, também. Um industrial com complexo
de Deus.
- Um documentário histórico?
- Algo no estilo.
- E todas essas filmagens que você já fez, todas essas semanas nos Adirondacks e Alleghenies?
- Vou deixar guardado. Posso usá-las a qualquer momento.
- Não sei, Paul. As pessoas que estão financiando você podem ficar irritadas. Afinal de contas, você assinou um contrato para um documentário sobre a natureza apalachiana.
- Ao diabo com esses comitês de custeio. Faço o que quero.
Paul estava forçando um pouco seu lado Orson Welles. Mesmo no escuro, Adam podia vê-lo fazendo o famoso beicinho.
E daí que Paul havia gasto meses filmando e ainda tivesse semanas de pós-produção, edição e script pela frente? Eram detalhes técnicos. Paul queria ser um artista,
o autor, o visionário imprudente, recusando teimosamente se vender.
Não importava o custo.
Mas Adam não estava com vontade de argumentar. Não depois dos momentos bons que tiveram.
- Por que você não dorme com a ideia na cabeça e amanhã conversamos mais sobre o assunto?
- Adam bateu de leve no bíceps bem desenvolvido de Paul. Carregar uma câmera de dez quilos e um cinto de baterias pelas montanhas durante todo o verão realmente
o haviam deixado em forma.
- Quero dizer, isso é como um mundo alienígena ou algo parecido. - disse Paul -Sem eletricidade, as pessoas vivendo como se fazia cem anos atrás. E os empregados,
todos ainda vivem aqui, como servos à volta de um castelo.
Adam estava escorregando para o sono, apesar da excitação de Paul. - Ahã. - murmurou.
Ele deve ter caído no sono, pois estava de pé sobre uma torre, o vento soprando pelos cabelos, árvores negras balançando abaixo dele...
Não, não era uma torre. Ele reconhecia o terreno à volta do solar. Ele estava no topo da casa, naquela área plana demarcada por um parapeito branco... - como era
mesmo que a empregada o havia chamado? Ah sim, balaustrada - ... e Adam se viu subindo sobre o parapeito, olhando para o caminho de pedras vinte metros abaixo, as
nuvens lhe dizendo para pular, empurrando... Então ele estava voando, caindo, o vento lhe balançando, porque...
- Adam! Acorde! - Paul estava balançando seu ombro. Paul havia sentado na cama, os cobertores à volta de sua cintura. Uma boa quantidade de tempo devia ter passado,
pois o luar entrava pela janela.
- O que foi? - Adam ainda estava embotado pelo sonho e pelas bebidas do jantar.
Paul apontou para a porta, seus olhos grandes e úmidos na penumbra. - Eu vi algo. Uma mulher, acho. Toda vestida de branco. Ela era branca.
- Isso são os Apalaches do sul, Paul. Aqui todo mundo é branco. - Adam afastou os fragmentos do pesadelo.
- Não, não era desse jeito. Dava para ver através dela.
Adam bufou sonolento. - Isso é o que acontece quando você fuma mato panamenho. É de surpreender que você não tenha visto o fantasma de J. Edgar Hoover vestido de
drag queen.
- Não estou brincando, Adam.
Adam colocou a mão no peito de Paul. O coração de seu namorado estava batendo forte.
- Volte para debaixo das cobertas. - disse Adam - Você deve ter adormecido e tido um pesadelo esquisito. Acho que tive um também.
Paul deitou de costas, a respiração rápida e curta. Adam abriu os olhos momentaneamente para ver que Paul estava olhando para o teto. - Sem bebidas ou maconha amanhã,
certo?
Houve um período de silêncio, um que alguém saturado do barulho de Nova Iorque pudesse realmente apreciar. Finalmente Paul disse: - Eu disse a você que andei trabalhando.
Adam conhecia aquele tom. Eles haviam discutido o suficiente para umas férias. Adoção, o vídeo de Paul, seu uso de drogas. E agora Paul estava vendo coisas. Adam
subitamente ponderou se sua relação sobreviveria a seis semanas no Solar Korban.
Ele virou de costas para Paul e se enterrou nos travesseiros.
- Ela segurava flores. - disse Paul.
CAPÍTULO 24
As mãos de Mason doíam. Serragem e cavacos estavam espalhados pelo chão à volta de seus pés. Farpas de madeira haviam penetrado pela parte de cima de seus tênis
e estavam machucando a pele à volta de seus tornozelos. Ele largou o formão e o maço sobre a mesa e se afastou para olhar a escultura.
Ele havia trabalhado com fervor, sem pensar sobre qual veio da madeira seguir, quais partes extirpar, onde cortar. Limpou a testa com a manga da camisa de flanela.
O recinto havia esquentado. As velas haviam derretido fazia muito tempo e o nível do óleo estava baixo na lamparina. Ele deve ter trabalhado por horas, mas a dor
em seus membros era a única prova da passagem do tempo.
Exceto pelo busto à sua frente, sobre a mesa.
Ele nunca havia tentado um busto antes. Aproximou a lamparina, examinando a escultura com olhos críticos. Ele não conseguia ver nenhuma falha, nada fora de proporção.
Mesmo as curvas das orelhas eram naturais e vivas, as sobrancelhas delicadamente entalhadas. A escultura era fiel ao seu objeto.
Fiel DEMAIS, pensou Mason. Estou muito longe de ter a capacidade de produzir algo assim. Tive alguns sucessos em minha caminhada. Mas isso... Jesus Cristo crucificado,
não poderia ter entalhado o rosto de Korban tão bem nem se conhecesse o cidadão.
Mas era a cabeça de Korban na mesa, o Korban que preenchia as imensas pinturas a óleo nos andares de cima, a mesma face que flutuava sobre a lareira no quarto de
Mason. O mais impressionante de tudo era que os olhos possuíam poder, do mesmo modo que nas pinturas. Isso era ridículo. Os olhos eram de bordo, madeira sem vida.
Ainda assim...
Era quase como se a figura tivesse vida. Como se a verdadeira forma da madeira sempre tivesse sido essa, como se o busto sempre tivesse existido e estivesse preso
dentro da árvore. O rosto esteve encarcerado e Mason apenas inserira a chave e abrira a porta.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. - Não tenho a mínima ideia de onde veio, - disse ele para o busto - mas você fará os críticos me amarem.
O amor dos críticos significava sucesso, e isso significava dinheiro. Sucesso significava que nunca mais teria que colocar os pés em outra fábrica enquanto vivesse,
ele não teria que assoar pedras cinzas do nariz a cada folga e não teria que esperar a sirene para lhe dizer quando ir ao banheiro ou comprar um chocolate ou correr
junto com os outros operários para o estacionamento na hora de ir embora. Claro, ele ainda tinha anos de entalhes pela frente, mas o sucesso começava com um primeiro
grande triunfo.
Ele já estava planejando encomendas corporativas, o trem de luxo dos artistas. Compraria uma casa para sua mãe, algum programa para auxiliá-la a ler, um computador
caro e, por fim, outros meios de compensá-la pelos anos de deficiência e trabalho duro. Melhor de tudo, ele poderia fazê-la sorrir.
Ou talvez ele tivesse sido sugado pela Imagem de Sonho, o pico de adrenalina que vinha após um trabalho ser terminado. Ainda tinha que tratar a madeira, passar a
lixa fina e fazer o polimento. Uma centena de coisas ainda podia dar errado. Mesmo seco como estava o bordo, depois de anos na floresta, a madeira poderia rachar
e quebrar.
Mason massageou o ombro. Suas roupas estavam úmidas de suor. O esgotamento que havia crescido sob a superfície agora se avolumou e quebrou como uma grande onda.
Apesar de estar cansado, estava muito agitado para dormir. Ele deu uma última olhada para o busto de Korban e então o cobriu com uma velha lona que estava jogada
em um canto.
Os primeiros raios vermelhos do amanhecer penetravam como lanças pelas janelas basculantes. A barba por fazer coçava no rosto de Mason. Em sua vida pregressa, estaria
já na terceira xícara de café, esperando na esquina o furgão para levá-lo ao trabalho. O começo de um novo dia era igual ao de outros mil.
Mason fez o caminho de volta para sair do porão, inclinando-se para passar por debaixo e vigas e desviando das mobílias. Ele finalmente encontrou as escadas e subiu
para o piso principal. O cheiro de ovos, bacon e biscoitos vinha em ondas da ala leste e o barulho de louças tilintou de um aposento distante. A barriga de Mason
rosnou. Um casal de velhos passou por ele no saguão de entrada, o vapor subindo das xícaras de café. Eles lhe cumprimentaram de modo cauteloso. Mason deu-se conta,
então, de que provavelmente estava com uma aparência suja e cansada, como um fugitivo lunático que arrombara um consultório médico.
Quando Mason chegou a seu quarto, olhou novamente para a pintura de Korban, maravilhando-se com o quanto sua escultura se parecia com a figura sisuda da pintura.
Mas o rosto parecia menos sisudo nessa manhã. E os olhos tinham adquirido mais brilho...
Não seja tão IDIOTA, ele se repreendeu com o sotaque de William Roth.
Mason tomou um longo banho quente e depois deitou-se na cama, enquanto o amanhecer se insinuava pelas frestas da cortina. Com a visão cansada de sua mente, ele viu
primeiro o rosto de Korban, que lentamente se dissolveu, mostrando o rosto de Anna. Então, sua mãe, as feições cansadas, ainda mais tristes pela luz patética de
esperança que, de algum modo, ainda brilhava em seus olhos. Ransom, segurando seu patuá. Korban, as pupilas negras guardando segredos escusos. Anna, suave e vulnerável,
abrigando seus próprios segredos.
Korban. Sua mãe. O busto. Anna.
A Srta. Mamie. Ransom.
KorbanAnnaSrta.MamieAnnaKorban. Anna.
Ele decidiu que gostava mais do rosto de Anna e pensou nela até adormecer e sonhar com madeira.
CAPÍTULO 25
Anna acordou antes que o primeiro canto do galo quebrasse o silêncio negro. Do outro lado do quarto, Cris rolava em seu sono. A escuridão atrás dos olhos fechados
de Anna não era tão completa quanto a escuridão dentro do quarto. Lampejos de azul e vermelho brilharam por dentro de suas pálpebras.
Ela vestiu seu roupão e foi ao banheiro. O encanamento antigo se utilizava de gravidade para funcionar a descarga e a pressão da água era inconsistente, apesar do
aquecimento central garantir bastante água quente. Ela acendeu uma lamparina dourada antes de desligar sua lanterna e então entrou no chuveiro e abriu as torneiras.
Sob o surdo tamborilar da água, ela esqueceu a dor na barriga. Ela não havia sonhado na noite passada, apesar das perguntas terem rodopiado loucamente enquanto escorregava
para o sono.
Onde estava seu fantasma? Quem era Rachel Faye Hartley? Por que a Srta. Mamie era tão curiosa a respeito de seu "dom"? Quanto tempo restante ela tinha? O que aconteceria
quando esse tempo acabasse?
E a maior de todas: alguém daria a mínima?
Ela abriu a cortina do chuveiro e se envolveu na toalha. O banheiro havia esfriado e, com o chuveiro desligado, o vapor desprendia-se pesado de sua pele. Ele cobriu
o espelho sobre a pia e, apesar de não estar com vontade de cobrir as olheiras que formavam-se abaixo de seus olhos, ela queria ter certeza de que poderia passar
por forte e animada.
Ela estava para pegar a toalha de rosto a fim de secar o espelho quando o banheiro ficou ainda mais frio, como se um vento tivesse penetrado uma fresta sob a porta.
Sua face embaçada no espelho espirava vapor.
Então, a água acumulada no espelho começou a escorrer em veios e Anna não conseguia acreditar em seus olhos. Porque mesmo alguém que via fantasmas não via coisas
desse tipo.
Letras se formaram, como que desenhadas pela ponta de um dedo invisível, os símbolos prateados na luz suave da lamparina: "V-Á".
Ela viu os próprios olhos arregalados refletidos na palavra, enquanto um segundo conjunto de letras se formou na superfície do espelho: "F-O-R-A".
- Vá fora? - Anna sussurrou, a mente agora transformando os símbolos em palavras.
Seria isso um tipo de mensagem? De quem? Vá para fora do quê? Será que alguma coisa a queria fora da casa?
Mas outra palavra estava se formando, enquanto o vapor ameaçava se transformar em gelo e o tremor começava a se instalar em sua pele.
"C-O-N-G-E-L-A-R" logo acima da borda do espelho.
Anna lutou para respirar, os pulmões parecendo duas pedras congeladas. Então as letras ficaram borradas, o vapor frio se acumulou, escorreu espelho abaixo e as palavras
se foram.
- Vá fora congelar. - disse Anna.
Ela se secou rapidamente e voltou apressada para o quarto para avivar o fogo.
CAPÍTULO 26
- Vai ficar lindo.
A Srta. Mamie olhava amorosamente o busto que Mason havia entalhado. O escultor tinha talento. Ephram havia escolhido sabiamente. Mas Ephram sempre escolhia bem,
no amor, na vida e agora na morte.
- O Sr. Jackson trabalhou até tarde da noite. - disse Lilith segurando a lamparina alto para que a luz iluminasse todas as feições conhecidas de Korban. - Ele não
descerá aqui por um tempo.
A Srta. Mamie sentia tanta vontade de acariciar o rosto de Korban que isso lhe doía, mas ela não ousava drenar nada de sua energia. Ela era de Ephram. Ela o tocaria
novamente e logo. A lua azul estava apenas a duas noites no tempo.
Lilith foi para o canto do estúdio e levantou a pintura a óleo. - Essa era minha favorita. - disse ela.
- Largue isso. Acabou seu tempo de pintar. E o dele também. Coloque-se em seu lugar.
Lilith retornou a pintura para as sombras. Lilith era apenas outra empregada, outra ferramenta para construir a ponte de Ephram para esse mundo. Mas o espírito de
Lilith ainda pairava no ar, um eco distante de sonhos que ela havia criado, sonhos que alimentavam Ephram e mantinham sua alma adormecida. Ela era como os outros,
faminta demais por seu próprio retorno, obcecada demais pela própria fuga.
Ela não sabia que nunca escaparia.
- Você pode ir agora. - disse a Srta. Mamie - Ajude com o almoço. Irei logo em seguida.
Lilith deu outro olhar perdido para a pintura.
Como se ela alguma vez tivesse sido uma artista tão talentosa quanto Ephram.
Ah, Lilith tinha tentado, fizera sacrifícios, mas estava apenas aprendendo o básico quando se afogara na lagoa atrás do celeiro. O seu túnel espiritual sempre a
levava lá, para aquele porão escuro onde uma vez ela ousara criar.
Lilith subiu as escadas e fechou a porta do porão. Estavam a sós.
- Ah, Ephram. - disse a Srta. Mamie para o busto - É melhor do que qualquer coisa que eu tenha imaginado.
O carvalho flexionou e se esticou, os olhos piscaram entre as pálpebras de madeira. Então os lábios se abriram. - Sim. O encaixe é muito bom.
Ela se agachou de forma que seus olhos estivessem no mesmo nível. Ela tocou o rosto áspero e correu a mão pela barba entalhada.
- Está funcionando. - sussurrou ela - Bem do jeito que você disse.
A sobrancelha rígida se elevou. - Demorará um tempo para eu me acostumar. Logo, Margaret, meu amor, terei braços para abraçar você novamente. Mãos com as quais pintar,
olhos para novamente ver o mundo, pernas para caminhar a seu lado. Mas o escultor deve trabalhar mais arduamente. Tem que estar pronto a tempo.
- Farei com que comece essa noite. - Ela ficou pensando como seriam os braços quando Mason Jackson terminasse a estátua em tamanho real. Talvez eles ficassem rústicos
e desajeitados.
Mas revestir-se de madeira com certeza seria melhor que ficar confinado à pedra dura, às paredes sem vida e à grama fria do solar. Ephram depois poderia utilizar
sua magia para suavizar a madeira, domá-la, torná-la macia.
Seu poder estava aumentando conforme a lua azul se aproximava. Ela podia sentir nos ossos, como se ele fosse um leito de brasas pronto para explodir em labaredas.
Ele estava convocando seus servos, aqueles que haviam morrido sob sua magia, aqueles que temiam as coisas escuras e serpenteantes existentes nos túneis de suas almas.
Ele devorava seus sonhos e os alimentava com medo. E ela havia ajudado entalhando seus bonecos, escondidos naquela velha cabana em Beechy Gap, de forma que suas
almas nunca poderiam deixar a montanha.
- Logo. - disse a Srta. Mamie, a palavra como uma longa e dolorida promessa.
Isso era o fim de décadas de espera, de ações negras e morte, de armações, roubos e escravidão. O tempo não era nada para Ephram, mas a Srta. Mamie ainda se agarrava
à impaciência da mortalidade. Possessões funcionavam em ambas as direções, o cabo puxando igualmente forte nos vivos e nos mortos.
Os lábios de madeira de Ephram se juntaram e então se esticaram em um sorriso. - Deixar as paredes me deixa fraco.
- Você será inteiro novamente. Só mais duas noites.
- E Anna?
- Ela está fraca. Morrendo.
- Ah. Bons sonhos.
O busto sorriu, os olhos fechados, a fronte cerrada em concentração. - Faça com que ele me termine. - disse Ephram, com esforço.
- O Sr. Jackson tem paixão. - disse a Srta. Mamie - Ele o ama, o adora, quer lhe agradar.
- Ele adora apenas a carne de seu trabalho. Seu espírito é meu.
- Todos pertencemos a você. Todos sonhamos com você.
- Como deveriam.
- E quando você atrair Sylvia para o solar -
- Você não deve mencionar o nome dela. - Os olhos no busto se abriram, brilhando com tons de laranja e vermelho. Ela se encolheu, esperando que Ephram a punisse,
que lhe devolvesse os anos todos, roubasse o dom da juventude. Ela ajoelhou-se, a cabeça baixa, lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Você sabe por que eu nunca a levei pelo túnel de sua alma? - disse Ephram, a voz fria, morta há muito tempo e quase fatigada.
A Srta. Mamie enxugou os olhos e fungou com esperança. - Por que você me ama?
Esse era o único sonho que valia a pena ter, o único que sobreviveria após a morte. O amor os absolveria do mal, faria com que as mortes, os truques espirituais
e a tortura de coisas mortas valessem a pena e fosse um ato nobre. O amor perdoaria o que Deus não perdoa.
A risada de Ephram foi áspera e abrupta, preenchendo o ar parado do porão. Ela olhou dentro dos olhos quentes e cruéis.
- Não, não, não. - disse ele, mais confortável agora dentro da madeira, penetrando os ângulos, fendas e espaços entalhados até que ela se tornou seu rosto. - Eu
a poupei porque preciso de você. Você é a única pessoa que nunca me trairia.
Sylvia o havia traído, apesar de a Srta. Mamie não querer lembrá-lo disso. Sua ira contra Sylvia poderia se voltar contra ela novamente, como geralmente acontecia.
Mas a Srta. Mamie poderia saber o que o incomodava se fizesse as perguntas corretas.
- Eu tenho que saber. - disse ela, sem ar, o estúdio sufocando-a - Você me ama mais que tudo?
O busto suspirou. A Srta. Mamie pensou se um homem morto seria capaz de mentir. Não, não Ephram. Ele nunca mentira e sempre cumprira suas promessas.
- Margaret, existe apenas você. Para sempre. Por que acha que fiquei aqui, acorrentado a essa casa com você?
Se apenas ela pudesse ter certeza. Mas um lar de amor não podia ser construído sobre alicerces de dúvida. - Então por que você manteve Sylvia viva, também?
O silêncio preencheu o porão, as sombras esperando impacientemente nos limites da luz que a lamparina fornecia. Ela apenas ousou desafiá-lo porque sabia, com a lua
azul aproximando-se, que Ephram precisava dela mais que nunca. E ela queria que ambos se possuíssem, mente, corpo e espírito. Sem segredos.
- Eu a mantive velha. - disse Ephram - E nunca a trouxe para dentro de meu coração. Existe apenas espaço para você aqui, dentro de mim, em meu lado morto. E logo,
quando possuir pernas, caminharemos lado a lado, juntos.
A Srta. Mamie secou as lágrimas. Como poderia ter duvidado dele?
Ela não pôde evitar, se inclinou para frente, manteve seu rosto encostado à madeira, encostou a pele contra os lábios incandescentes de seu amante.
Então, ele se foi, de volta para as paredes onde o fogo poderia aquecer sua alma.
CAPÍTULO 27
Mason acordou a tempo de perder o almoço. Em sua boca, parecia que tinha uma meia suja entalada. Alguém havia alimentado o fogo enquanto ele dormia. Ele vestiu sua
outra calça jeans e uma camisa de flanela vermelha. Ele pensou na escultura enquanto escovava os dentes, pensando se realmente a terminara em uma única noite.
Ele estudou o reflexo no espelho do banheiro. Olheiras escuras envolviam seus olhos. Não estava acostumado a trabalhar em horários estranhos. Ele geralmente seguia
a teoria de trabalho do "devagar e sempre", e nunca antes fora varrido por uma tormenta criativa como aquela que dera origem ao busto. Não admira que os chamados
"verdadeiros visionários" tenham queimado e se partido tão jovens.
- Ah sim, sou um verdadeiro visionário, com certeza. - disse para seu reflexo turvo. - Duplamente visionário.
O reflexo brilhou um pouco e ele esfregou os olhos. Uma onda de tontura o acometeu e ele tentou se equilibrar. Uma mão segurou a pia e a outra pressionou o espelho.
O vidro era quente sob sua palma. Por um breve momento, Mason viu o busto que havia esculpido em vez de seu próprio reflexo e, então, a alucinação passou. Franziu
o cenho e jogou água no rosto. Já era ruim o suficiente ver o rosto de Korban em todas as telas à volta, mas se o desgraçado fosse ficar flutuando para sempre diante
de seus olhos, então talvez Mason precisasse de uma pausa. Ou um psicólogo.
Os andares acima estavam quietos. Descendo pelas escadas, ouviu os barulhos crescentes daquilo que ele cogitou ser a cozinha. Empregadas carregavam a comida pela
porta para a saída à esquerda das escadas. Ele se perguntou se alguém se importaria se ele desse uma entradinha para comer.
Mason colocou a cabeça pela porta basculante. Uma mulher gorda e severa lutava com uma frigideira de ferro fundido junto à pia, algumas bolhas de sabão presas à
bochecha.
- Olá! - chamou Mason - Está tudo bem se eu roubar um sanduíche?
Ela o encarou enfurecida. Ele olhou por sobre o ombro e viu-a acenando rapidamente para um balcão ao lado do fogão. Um pão feito em casa encontrava-se sobre uma
tábua, três ou quatro fatias empilhadas ao lado.
A maior parte do almoço havia sido limpo, mas o odor de truta frita ainda flutuava pelo ar. Mason passou por um longo fogão com grades metálicas. Havia uma porta
de cada lado para estocar lenha e uma grande abertura no meio para o forno. Um fogão menor ficava ao canto, os encanamentos saindo para cima e dobrando-se pela parede.
Mason ficou maravilhado com o pensamento de alguém cozinhando com esses utensílios primitivos, que dirá criar as refeições suntuosas servidas para os hóspedes pomposos
do solar.
Mason pegou duas fatias de pão. - Algo para colocar no meio delas?
A cozinheira o olhou ameaçadoramente e limpou a faca de açougueiro com seu pano de pratos. - Ali, na caixa de gelo. - ela disse, com um sotaque bávaro, apontando
a faca na direção do que parecia ser uma cômoda atarracada com portas, em vez de gavetas.
Mason abriu uma das portas e sentiu uma lufada de ar frio. Nas prateleiras de metal, estavam alguns ovos em um cesto, uma grossa roda de queijo, um pote com creme,
um pedaço de presunto com osso e algumas frutas e vegetais. Um bloco de gelo assentava-se na prateleira mais alta, seus cantos arredondados pelo derretimento. A
água pingava dentro de uma bandeja ao fundo da caixa de gelo.
Mason tirou o queijo e o presunto, colocou-os sobre o balcão e pegou uma pequena faca de um suporte de madeira. Cortou algumas fatias de cada um deles e os colocou
sobre uma fatia de pão. Ele podia sentir os olhos da cozinheira em suas costas.
- Não se preocupe, vou limpar tudo depois. - O sorriso de Mason não evocou nenhuma mudança em seus olhos duros. Ele pegou algumas folhas de alface, adicionou-as
ao sanduíche, colocou outra fatia de pão e amassou tudo.
- É assim que fazemos em Sawyer Creek. - disse ele, dando uma mordida.
A cozinheira franziu o cenho e voltou aos pratos sujos. Foi aí que Mason viu a pintura na parede, sobre a porta. Outro retrato de Korban. Esse era pintado em sombras
profundas, os olhos frios como nos outros retratos. Será que havia algum cômodo da casa que não tivesse o olhar severo desse homem implacável?
Uma cafeteira estava sobre o fogão menor. Algumas canecas de café penduradas em ganchos em um suporte junto da pia. Mason caminhou à volta do balcão e estendeu a
mão para pegar uma.
- Com licença. - disse ele, quando a cozinheira estremeceu. Mason perdeu o equilíbrio, ainda tonto com o sono fora de hora. Ele tirou a mão para evitar cair por
cima dela.
Quando ele a tocou no ombro, ela deu um grito e deixou cair o prato, que se partiu no chão. Mason deu um passo para trás e olhou para a mão.
Não. Isso não pode ter acontecido.
A porta se abriu e a Srta. Mamie entrou na cozinha, o rosto contorcido em desaprovação.
- Desculpe, foi minha culpa. - disse Mason. Ele estava para mencionar que ficaria feliz em pagar pelo prato quando se lembrou de que não possuía dinheiro.
- Gertrude? - disse a Srta. Mamie. Seus olhos pareceram ficar ainda mais escuros enquanto a face da cozinheira ficava pálida. A cozinheira olhou para o retrato de
Korban sobre a pia.
- Não, de verdade, fui eu. - disse Mason - Eu estava pegando uma xícara...
- Hóspedes geralmente não são permitidos na área da cozinha, Sr. Jackson, por razões que, tenho certeza, o senhor entenderá.
- Ah, claro. Eu estava de saída. - Ele pegou o sanduíche e caminhou para a porta.
- De volta ao trabalho agora, Gertrude. - disse a Srta. Mamie. A cozinheira imediatamente afundou os braços na água ensaboada com os pratos, assustada demais para
parar e varrer os fragmentos de cerâmica espalhados pelo chão.
A Srta. Mamie manteve a porta aberta para que Mason pudesse passar e o seguiu para o saguão de entrada. - Está gostando de seu trabalho no porão? - perguntou ela,
mais uma vez sorridente, como se o incidente na cozinha nunca tivesse acontecido.
- É perfeito. - disse Mason, continuando pelo saguão, ainda desconfortável. - É bem privado e com espaço suficiente para que eu possa usar as ferramentas. E as paredes
possuem isolamento suficiente para que eu possa trabalhar sem incomodar ninguém.
- Encantador. - disse ela - Mestre Korban ficaria satisfeito.
- Fica calor demais aqui embaixo, algumas vezes.
- Bem, temos que manter o fogo central aceso. Nós nos orgulhamos de ter água quente vinte e quatro horas por dia.
- Claro, compreendo. Não é intolerável ou algo assim. A pior parte é ficar suado e cheirando mal, eu não gostaria de espantar seus hóspedes.
- É para isso que temos água quente, Sr. Jackson.
Mason chegou à porta do porão. Ele tinha que descer e ver se realmente havia esculpido o busto de Korban ou se a noite anterior havia sido um sonho. Ele se perguntou
se a Srta. Mamie o seguiria.
- Bem, vejo você no jantar, acho. - disse ele, esperando junto à porta.
Ela colocou uma mão fria em seu braço. - Você receberá mais madeira essa noite, não é? Ransom já pegou a carroça.
- Bem, tenho que terminar algo antes.
- Ah, pensei que você faria uma escultura em tamanho real.
Mason vasculhou a memória. Será que ele tinha mencionado algo assim? Uma figura humana? Ele sequer havia pensado sobre isso? Talvez suas fantasias estivessem ficando
tão agigantadas que ele estava falando bobagens sobre elas antes de sequer começar a esculpir.
- Sim, estava pensando em algo nesse estilo. - disse ele.
- Você será bem-sucedido, mas deverá ter a energia certa para isso acontecer. Mestre Korban sempre disse que o trabalho árduo é a própria recompensa. Você sabe o
que dizem sobre mãos sem trabalho.
Mason ergueu a mão que não estava segurando o sanduíche. - Bem, melhor eu trabalhar, então. A Srta. Mamie deixou escapar um olhar de expectativa enquanto ele abria
a porta. Mason não gostaria de mostrar seu trabalho para ninguém até que tivesse certeza de tê-lo acabado.
- Vou falar com Ransom sobre a madeira. - disse, entrando pela porta. Ele a fechou atrás de si, tateando no escuro. Quando finalmente conseguiu descer os degraus,
seus olhos haviam se ajustado à penumbra deixada pelas pequenas janelas, altas na parede.
Ele chegou à bancada e levantou o pano. Da mesa, Korban olhou-o direto nos olhos. Não, não Korban. Apenas uma réplica bem detalhada.
Mas apenas por um momento...
Calma, rapaz. Você está com o sono atrasado, só isso.
Então Mason olhou para sua mão, lembrando-se de como a havia sentido quando tocara na cozinheira. Quando havia passado através da cozinheira.
Lembrando-se de como sua mão havia mergulhado na carne dela, como se ela fosse feita de pão encharcado. Lembrando-se de como sua mão havia queimado.
Certo, então você está com mais problemas que simplesmente a falta de sono. Você com certeza bateu na cabeça com o maço, à noite passada.
Talvez a fome fosse a culpada. Ele deu outra mordida no sanduíche.
Sim, fome. Era melhor ele engordar durante sua estadia. Talvez os dias à frente fossem magros. A não ser que ele conseguisse continuar produzindo coisas como isso.
A escultura era a prova sólida de sua habilidade. Detalhes finos e vívidos. Cada pálpebra bem definida. Os lábios posicionados em um sorriso irônico entre o bigode
e a barba, prontos para se abrir e iniciar uma conversa. Mesmo quando ele se virou, sentiu como se os olhos o estivessem seguindo.
Ele achou uma velha vassoura e varreu as aparas de madeira para um canto. Então, ele viu a velha pintura onde a havia deixado, de encontro ao armário. Ele havia
esquecido de perguntar a respeito dela para a Srta. Mamie.
Mason pegou a pintura da paisagem com a casa, segurando-a no alto para poder admirar as pinceladas à luz do dia. Sim, linda, se apenas o artista houvesse consertado
aquele pequeno borrão.
O borrão havia aumentando, desde a noite anterior. A área cinza havia crescido a ponto de cobrir dois pilares da balaustrada.
Deve ter sido uma falha na pintura. Mas Mason nunca ouvira falar de uma pintura se deteriorando tão rapidamente. Apesar de completamente seca, a pintura era tudo,
menos antiga.
Ou talvez fosse apenas sua imaginação.
O incrível borrão que aumentava, Ransom e seus patuás, Anna e suas visões de fantasmas, a esquisita Lilith, a cozinheira incorpórea. Claro, ele poderia colocar a
culpa de todas aquelas coisas na sua imaginação. Mas é como dizem, melhor culpar alguém que a si próprio.
Estresse.
Porque era isso, o último grande brado de guerra, a bolada toda, a última cartada, o passo final. O último grande sonho. Porque se ele não produzisse algo aqui,
era de volta para a fábrica de tecidos, provavelmente para sempre.
E ISSO deixaria Mama orgulhosa, não é mesmo? Após todo seu sacrifício.
Mason terminou o sanduíche, mesmo tendo perdido o apetite. Esse busto poderia não ser sua obra-prima. A Srta. Mamie estava certa: maior era melhor.
CAPÍTULO 28
- Fez alguma filmagem hoje pela manhã? - Adam encostou-se na escrivaninha e cruzou os braços.
Paul colocou a câmera de lado. - Tenho que economizar as baterias. Tenho só quatro agora. Isso me dá umas oito horas de rodagem. E não há como recarregá-las por
aqui.
Adam observou Paul guardar o equipamento no closet. Seu companheiro tinha um corpo bonito, ele tinha que admitir. Mas Adam algumas vezes se perguntava se a relação
tinha sido construída com base em algo mais que simplesmente a atração física. Paul gostava da Times Square e o lugar dava arrepios em Adam. Paul gostava de cafeterias
e festas, enquanto Adam gostava de se enrodilhar em um sofá com um bom livro. No fundo, Paul era MTV tarde da noite e Adam um VH-1 de final de semana.
E ainda havia a questão da adoção. Adam estava pronto para criar um filho, para compartilhar o amor de seu coração. Ele tinha dinheiro de sobra de sua herança, o
suficiente para pagar as taxas de adoção aos advogados, o suficiente para os tribunais ficarem satisfeitos que Adam possuía as qualidades parentais desejáveis: poderia
comprar qualquer brinquedo obscenamente caro para o natal, para que a criança não se sentisse um pária, esnobado pelos amigos e eternamente desprezado pelos comerciais.
Adam estava com receio de que, em alguma parte escondida de si, ele apenas quisesse a criança para prender Paul. Seu amante era um espírito livre e o havia magoado
sem saber, viajando com um homem mais velho em um cruzeiro antes de Adam ter coragem e abrir seu coração. Paul havia sido fiel desde então, mas Adam pensava que
a tentação certa ainda não havia aparecido. Na verdade, pensava que isso nem poderia ser chamado de fidelidade, até que isso tudo sobrevivesse a um teste.
- O que você quer fazer à noite? - perguntou Paul. - Descer para umas bebidas?
- Você poderia ter me encontrado para almoçar.
- Olhe, não temos que passar cada maldito minuto juntos, temos?
Adam não respondeu, pois algo se moveu no espelho, um tremor lançado pela lareira.
- O que há de errado? - disse Paul.
Adam esfregou os olhos. - Nada. Estou só um pouco esquisito, acho.
Paul sorriu. - Ah sim. Talvez você tenha visto a mulher vestida de branco. E você pensou que eu estivesse mentindo.
- Muitas coisas esquisitas estão acontecendo. Acabei de ver...
- Viu o quê?
- Não sei dizer. Só o reflexo da pintura. Sinto como se... como se tudo estivesse ficando fora de controle. Quero dizer, estamos brigando o tempo todo e eu devo
me preocupar com seu vídeo idiota e você não liga a mínima para o que digo. E esse lugar está me deixando nervoso.
- Deixa disso, é só nosso terceiro dia aqui.
- E esses problemas vão simplesmente desaparecer?
O rosto de Paul se fechou de raiva. - Eu não tenho tempo para isso agora. Para falar a verdade, eu nunca tenho tempo para essas discussões sem sentido. Tudo o que
você quer fazer é andar em círculos.
- Olha só, eu não ligo de pagar por essas férias, mas pensei que você trabalharia em seu projeto -
- Ah, lá vamos nós com essa besteira de novo! Você e seu dinheiro.
Adam estava à beira das lágrimas. Paul desprezava lágrimas e diria que Adam estava sendo apenas uma mocinha sensível. E diria isso com um ar de superioridade de
alguém cujas emoções estão sempre sob controle. Exceto a raiva.
- Ô, princesa. - disse Paul, vindo até ele e o abraçando. - Alguém deixou você nervosa? Você precisa de outra transa para não ficar chateada?
- Vá embora. - Adam tirou os braços de Paul de sua cintura. - Seu desgraçado.
A visão de Adam turvou-se de raiva. Isso era loucura. Ele nunca perdia o controle desse jeito.
- Certo, princesa. - disse Paul - Não me espere.
Adam sentou-se na cama depois de a porta bater. Ele gostaria de nunca ter vindo ao Solar Korban. Levantou-se e segurou o poste da cama com força, separando as camas
de solteiro. Quando ele as tinha colocado uma em cada canto do quarto, levantou os olhos e olhou para a pintura de Korban,
- Paul pode ficar com a mulher de branco e eu fico com você. O fogo rugiu em aprovação.
CAPÍTULO 29
Os cavalos eram belos e esguios, os músculos se movendo com graça. Não era surpresa serem os animais preferidos de Anna. Uma vez, antes do laudo fatal do oncologista,
ela havia sonhado em ter um estábulo e criar cavalos. Mas esse sonho era agora fugaz e irreal como todos os outros, não importa se o sonho fosse o Solar Korban,
Stephen ou seu próprio fantasma.
Ela ouviu uma melodia assoviada, que pareceu ser "Yankee Doodle" e se virou para ver Mason caminhando pela estrada na direção do celeiro. Ele acenou e parou ao lado
dela na cerca, olhando as pastagens como se observasse um filme projetado contra as montanhas distantes.
- Então, como está indo a caçada aos fantasmas? - perguntou ele.
Ela não precisava disso. Stephen era ruim o suficiente, mas pelo menos acreditava em fantasmas, apesar dos seus serem leituras de energia em vez de almas. Mason
era apenas um otário egoísta, provavelmente um ateu cego, convencido a ponto de pensar que nada existia após a respiração cessar. Ateus eram mais proselitistas e
presunçosos que qualquer cristão que Anna tenha encontrado.
- Sabe de uma coisa? - disse ela. - Pessoas como você merecem ser assombradas. Mason abriu os braços em rendição magoada. - O que foi que eu disse?
- Você não precisa dizer em palavras. Seus olhos dizem o suficiente. Eles dizem "Que maluca adorável. Ela é fácil de se deixar impressionar pelo grande artista que
sou e é apenas uma questão de tempo até que ela caia na minha cama".
- Você deve ter me confundido com William Roth.
- Desculpe-me. - disse ela, sabendo que estava descarregando sua raiva e frustração em um transeunte relativamente inocente. Mas ninguém era completamente inocente.
- Estou apenas um pouco fora de mim nesse momento.
- Quer falar sobre isso?
- Claro. Como se você fosse entender.
- Olha só, eu vejo você dando longas caminhadas, bisbilhotando por aí com sua lanterna. Então você gosta de ficar sozinha. Tudo bem, eu também. Mas se coisas estranhas
estão acontecendo comigo, elas provavelmente também estão acontecendo com você. Talvez até coisas piores, porque nem morto eu iria lá no escuro. - Mason indicou
a floresta que, mesmo com a explosão de cores outonais, parecia produzir sombras agudas e ameaçadoras.
- De que coisas estranhas você está falando? Pensei que era cético.
- Ah. Notei que havia aguçado sua curiosidade científica, pelo menos. Você viu George por aí?
- George?
Mason chegou mais perto, baixando a voz como se quisesse evitar qualquer bisbilhotice. - Quanto tempo alguém tem que estar morto antes de virar um fantasma?
Anna olhou para o Solar Korban através das árvores, para a balaustrada com seu parapeito fino, onde a figura de seu sonho ficava de pé sob o luar. - Talvez isso
possa acontecer mesmo antes de a pessoa morrer.
- Certo. Que tal essa? Você pode ser assombrado por algo dentro da sua cabeça? Porque estou vendo Ephram Korban toda vez que fecho os olhos, o vejo no espelho, o
vejo na lareira, minhas mãos entalham seu maldito rosto mesmo quando quero trabalhar em algo diferente.
- Acho que os psicólogos chamam isso de "transtorno obsessivo-compulsivo". Mas isso descreve todos os artistas que conheço. E talvez noventa por cento de todos os
homens.
- Ei, não somos todos babacas! E espero sinceramente que você não tente massacrar todo mundo que tiver um sonho. Alguns artistas são pessoas normais que fazem coisas
simplesmente porque não sabem se comunicar com as outras pessoas.
- E alguns de nós são tão normais que procuram uma prova de vida após a morte porque essa vida é uma droga de tantas formas diferentes e porque os humanos sempre
nos desapontam. Fantasmas são mais fáceis de acreditar que a maioria das pessoas que já encontrei.
- Empate, então. Obviamente nós dois somos completamente malucos. Por um segundo eu pensei que não teríamos nada em comum.
Aquilo trouxe um sorriso pouco familiar aos lábios de Anna. - Tudo bem. Vamos começar de novo. Acho que você ouviu as histórias de fantasmas. Sobre como Ephram Korban
pulou para a morte da balaustrada do telhado, apesar de que as melhores lendas dizem que foi um de seus empregados que o empurrou pelas razões de sempre.
- E que razões seriam essas?
- Amor correspondido e não correspondido. Por que mais alguém tentaria matar outra pessoa? E, de acordo com as fofocas e mesmo alguns artigos de parapsicologia,
o espírito de Korban vagueia por essas terras, tentando achar um jeito de voltar para o solar no qual investiu tanto de seu tempo, dinheiro e energia.
- Você não acredita nisso, não é?
A manada de cavalos ouviu um chamado do celeiro e partiu galopando. - Gostaria de ser assim tão livre. - disse ela - Talvez eu volte como um cavalo na próxima vida.
- O lado ruim disso é que você tem que morrer primeiro. Como Ephram Korban.
- Bem, ele possui uma sepultura logo após aquela colina, mas isso não é mais que um buraco no chão. Não vi seu fantasma.
- Você realmente acredita que existem fantasmas aqui?
- Sei que existem. Quando o fogo de sua vida se apaga, você deixa um pouco de fumaça atrás de si. E não me peça para provar isso ou você me lembrará alguém que passei
o último ano tentando esquecer.
- Vou acreditar em você. Talvez eu peça a Ransom para me emprestar um de seus patuás. Dizem que isso mantém os espíritos inquietos à distância.
- Mal não fará. - disse Anna - Vou até o celeiro. Gostaria de me acompanhar?
- Estou indo para lá, de qualquer forma. A Srta. Mamie exigiu que Ransom me ajudasse a trazer um tronco grande para que eu possa esculpir uma estátua de tamanho
real.
- Ah, pobres artistas sofredores. Sempre tendo que agradar os críticos.
- Ah, pobres críticos, sempre tendo que inventar grandes frases cínicas.
Quando chegaram ao celeiro, Ransom havia levado os cavalos até um abrigo coberto construído em uma de suas alas. Ele olhou a cilha sob a barriga do grande garanhão,
cujas orelhas abanaram como se isso fosse um jogo familiar. Duas lamparinas brilhavam dentro do celeiro, penduradas em ganchos enferrujados. Tiras de couro e pedaços
brilhantes de metal pendiam de uma das paredes e quatro celas estavam alinhadas em uma bancada, abaixo dos arreios.
- Ora, olá, jovens. - disse Ransom, saudando-os. Ele olhou um pouco mais demoradamente para Anna e depois olhou para o céu franzindo o rosto.
- Precisa de ajuda? - perguntou Anna.
- Não, preciso de nada não, mas gosto da companhia. Ocê sabe algo sobre os cavalo?
- Um lado deles come e o outro não. - disse Mason.
- E um lado deles vai chutar você na virilha se continuar sendo idiota desse jeito. - Anna acariciou o nariz do castanho e segundos depois ele estava cheirando seu
pescoço, bufando suavemente pelas narinas. Se pelo menos ela fosse assim tão boa com homens. Quando ela ainda ligava para esse tipo de coisa, de qualquer forma.
Ou fantasmas. Seria uma boa mudança de ares se eles pudessem sair correndo do mundo dos mortos e virem correndo de braços abertos e sorrindo.
Ela esticou as rédeas no freio e passou o couro pelos anéis de ferro. - Esses caras são ótimos.
- disse ela para Ransom.
- Eles cum certeza gostam docê.
- Fui criada junto com cavalos uma vez.
- Uma vez? - perguntou Mason.
- Uma longa história, uma de várias. - disse ela.
- Se cuida aí, Mason. - disse Ransom - Uma muié cheia de segredo é notícia ruim. Ocês pode me ajudá a empurrá essa carroça pra fora?
Eles entraram no celeiro, Ransom parando para abrir as portas de correr. Ele estava prestes a entrar quando olhou para a parte superior da porta e segurou o patuá
à volta do pescoço. Ele o balançou e fechou os olhos, murmurando algo de forma ritmada que Anna não conseguiu ouvir.
- Maldição se eles não mudaram de novo. - disse Ransom. Ele rolou um barril de madeira até a porta, o escalou com as pernas trêmulas e ficou de pé, girando a ferradura
pregada sobre a porta. Ele a virou de forma que as pontas apontaram para cima, em direção ao céu.
- A sorte não funciona para o outro lado? - perguntou Anna.
- Esse feitiço é muito mais véio do que ocê pode pensar. Essa coisa significa "sorte" pra muitas pessoa, mas eles acabam usando isso dismais e a coisa toda perde
força e as pessoa deixam de acreditar nelas. Mêma coisa com os trêvo de quatro fôia.
- Com certeza, eles são deliciosamente mágicos, como cereal matinal.
- Costumavam ser e davam às pessoas o poder de ver fantasmas e bruxas. Nos tempos em que as pessoas acreditavam nisso.
Anna viu o olhar de Mason. - Então, só pra tirar a dúvida, ferradura para baixo é ruim, certo?
- É praticamente a mesma coisa que abrir uma porta para todo tipo de coisa morta que você consiga imaginar. Eu gosto que os mortos continuem assim. - Novamente,
ele lançou para Anna aquele olhar distante e entristecido. - Que pena que nem todo mundo para essas bandas pense do mesmo jeito.
Mason ajudou Ransom a descer do barril. Anna levou os cavalos para um moirão de madeira e depois seguiu os homens para dentro do celeiro. Os vários veículos movidos
a cavalo estavam alinhados perto da parede. A carroça de feno estava próxima à porta. A seu lado, alinhavam-se dois trenós, uma charrete com a capota aberta e uma
carruagem refinada com um lampião em cada canto. Todos eram restaurados e mantidos em tão boas condições que deixariam os colecionadores de antiguidades com os dedos
coçando. O aroma de óleo de sementes de algodão e couro lutava com o cheiro do feno pelo domínio do celeiro.
Uma grande colheitadeira para feno encontrava-se a um canto, levemente enferrujada. Havia um único assento para o operador e a atrelagem à frente para os animais
de tração. Os grandes dentes metálicos curvavam-se no ar como garras.
- Aquilo é uma máquina com aparência sinistra. - disse Mason.
- Verdade. - disse Ransom, retirando os calços da roda da carroça. - Aquilo é o catavento, a parte afiada que parece um forcado. E ocê também pode ver o braço cortadô
de capim. Funciona com as roda girando. Nóis ainda colhe o feno do jeito dificir aqui.
- Aposto que os cavalos adoram. - disse Anna.
- É sim, e eles são sabido o suficiente pra sabê que vão comê o feno quando o frio chegá.
- Você colherá algum enquanto estivermos por aqui? - perguntou ela, pensando como seria divertido ajudar. Trabalho físico pesado fazia maravilhas com a mente deprimida
e cheia de autopiedade. - Alguns dos campos à volta estão com o capim bem alto.
- Nóis tivemo que esperá um cisco porque os sinal estavam no coração.
- No coração?
- Não é o tempo certo de cortá aveia, trigo ou qualqué outra pranta de colher. É o tempo certo só de colher as coisa morta.
Mason limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - Ugh. Esse feno está me sufocando. - ele olhou para Anna e disse: - Desculpe ser tão rude. Esse é o jeito que fazemos
em Sawyer Creek.
- No caso docê não ter arreparado, isso aqui não é Sawyer Creek. - disse Ransom. Ele os levou para a traseira da carroça e pegou a atrelagem. - Encaixa os ombro
aí agora, vai.
Eles manobraram a carroça para fora do celeiro e em direção ao abrigo. Enquanto Anna e Ransom atrelavam os animais, Mason explorou o celeiro. Alguns minutos depois,
ele colocou a cabeça para fora. - Ei, o que há debaixo do alçapão?
Ransom acariciou a crina da égua castanha. - Batata, batata doce, repôio, maçã, nabo. Uma adega pras coisa que num precisa de ficar tão fria.
- Posso dar uma olhada?
Ransom foi até a bancada e calçou um par de luvas de couro rústicas. - Todinha sua.
Anna seguiu Mason até o canto do celeiro, onde o alçapão se encontrava, entre duas pilhas de feno.
- Tem umas porta no andar de baixo, onde o celeiro se assenta contra a colina. - disse Ransom. -Nóis pode colocá direto dos pomar e jardim direto aqui dentro, pôpa
um esforço danado. Aí tem um túnel que leva diretinho pra casa principal. O Ephram Korban resolveu cavar essa coisa nos caso de tê uma nevasca de repente. Ele sempre
tava falando sobre "os túnel da alma" ou coisa parecida, por alguma razão. Eu acho que ele era maluco da cabeça, se alguma das lenda que eu ouvi forem de verdade.
- Ou talvez todas as lendas sejam verdadeiras e o sujeito seja totalmente maluco. - disse Anna.
Mason ajoelhou-se e levantou a pesada porta de madeira. A adega cheirava a bolor adocicado e terra, com uma suave nuance de frutas podres. A escuridão abaixo possuía
peso, como óleo negro. Uma escada frágil levava para algo que parecia não ter fundo.
- Não tem nada de interessante lá embaixo. - disse Ransom - A não ser que ocê queira sentar e prosear com os rato.
- Ratos? - Mason deixou a porta cair com uma pancada seca, levantando poeira dos batentes. Anna lutou contra um espirro.
Ransom sorriu, os dentes esparsos amarelos na luz fraca dos lampiões. - Ratos tão grande quanto sua côxa, filho.
- Odeio ratos. - disse Mason - Cresci com eles. Faziam um barulho como uma cavalaria, atrás das paredes do meu quarto. O que mais odeio são os olhos saltados e úmidos,
como se medindo você de alto a baixo.
- Não se procupa. - disse Ransom - Eles têm demais pra comê lá embaixo e não precisam mordê os hospede.
- A Srta. Mamie provavelmente os repreenderia por terem maus modos.
Anna riu. Talvez Mason não fosse assim tão ruim. Pelo menos ele não tinha medo de mostrar suas fraquezas. Ao contrário dela.
Mason ficou de pé e limpou as mãos no jeans. Algo flutuou das vigas e roçou no rosto de Anna e ela esfregou como se fossem teias de aranha.
- Jesus Cristo, não me diga que era um morcego! - disse Mason - Eles não são mais que ratos com asas!
- Era só um gaio azul. - disse Ransom - Sorte sua, mocinha. Se um gaio azul voa na sua frente é sinal que vai ser beijada.
- Ótimo! - disse ela - E eu que pensei que ganharia meus beijos lançando feitiços em homens desavisados.
- Acredita no que bem entender. - disse Ransom - Mas eu digo que ocê vê os sinal melhor que ninguém. Agora, é mió a gente se aprumar com o trabáio.
Mason limpou as mãos em um velho cobertor de montaria pendurado numa viga. - Então, Ransom, você tem tempo para me ajudar a encontrar um tronco grande que seja exato
para uma estátua?
- Mas por que ocê acha que a gente tá preparando a carroça, abestado? A Srta. Mamie sempre se mete pra consegui as coisa que qué.
- É, estou começando a descobrir isso.
- Vamo embora então, antes que fique escuro. Acho que vamos descer de Beechy Gap, onde nóis tivemo umas ventania forte alguns inverno atrás. Quer vir junto, moça?
- Não, obrigada. Tenho algumas coisas para fazer também.
- Eu digo que algumas coisa tem que ser feita sozinho. - disse ele.
Anna não tinha certeza do que pensar sobre Ransom. Ele ficava dando deixas, mas um grande pavor se insinuava atrás de seu olhar. Talvez tivesse seus próprios segredos.
Ela esperou até que Mason e Ransom subissem e sentassem no banco da carroça e então deu as rédeas a Ransom.
- Vejo você à noite, certo? - Mason perguntou.
Anna sentiu um meio sorriso no rosto e não estava segura para que lado queria que seus lábios apontassem. - Veremos.
Ransom balançou as rédeas e a parelha dirigiu-se para a estrada, que se dirigia para a floresta como uma fita arenosa. Ela fechou as portas do celeiro e olhou para
a ferradura.
Estava com as pontas viradas para baixo novamente.
Coisas mortas chegando.
Ela olhou para a floresta.
Sob a copa de um arbusto, entre os louros e sarças, estava de pé a mulher de branco, o buquê nas mãos em desafio. O fantasma olhou para Anna como um espelho, então
virou-se e deslizou por entre as árvores.
- Certo então, droga! - disse Anna - Vou brincar de esconde-esconde com você, droga. Conforme entrou na floresta, se perguntou como poderia pegar seu próprio fantasma.
E, antes de mais nada, por que ele se esconderia dela? Ransom estava certo sobre uma coisa: uma mulher com segredos geralmente era uma coisa ruim.
CAPÍTULO 30
E a noite se espalhou, escorrendo como um óleo morno sobre as colinas, expandindo, preenchendo os vales e subindo pelas encostas dos Apalaches. A noite tornou-se
um oceano, um banho de sangue negro. A noite tornou-se o céu. A noite tornou-se a boca que engolia a noite anterior, todas as noites anteriores, todas as noites
por vir, a noite - Spence dedilhou, os dedos batendo nas teclas lisas. Ele era um autômato agora. Não havia mundo, nem quarto, nem o cheiro da lamparina e suor,
nem doce Bridget por perto, apenas o campo de batalha luminoso de uma página meio preenchida. Nenhuma noite lá fora além da janela, apenas a noite que tomava vida
por meio de suas palavras, a noite que se avolumava numa onda dentro de suas veias, que bombeava escuridão através de suas extremidades, que queimava no forno cor
de ébano de seu coração.
Ele estava levemente consciente do fio de baba que lhe escorria pelo queixo. Ele sorriu e a baba pingou em sua camisa de algodão. A saliva era de outro plano, uma
realidade tão entediante, sem vida e sem sentido, comparada com o mundo mágico que se desenrolava sob seus dedos. Seus pulsos doíam e os dedos estavam rígidos, os
olhos lacrimejando com o esforço, mas todos esses problemas eram da carne, enquanto seu trabalho era de Palavra.
O mestre e o papel o pressionavam adiante. Ordenavam que prosseguisse. Tropeteavam o sinal de ataque. Faziam dele um deus, embora um deus menor.
Porque ele era apenas um servo do grande deus Palavra, o primeiro e único. Palavra que dava e tomava, Palavra que lhe fornecia apenas o suficiente para que encontrasse
a metáfora celestial e não perecesse, Palavra que vociferava de arbustos chamejantes, tábulas entalhadas e nuvens poderosas.
Uma mão tocou em seu ombro, uma intrusão de algum lugar naquele plano melancólico de solo e substância. Ah, essa deve ser a Musa, que também era uma escrava de Palavra,
que fez a palavra de poeira e um fragmento de osso, a Musa que ofereceu o fruto, a Musa que serviu de adjetivo para seu nome impróprio.
- Jeff. - cantou ela, e adorável era sua música. Ele queria chorar, mas as lágrimas turvariam sua gloriosa página. E o momento de vaidade de Spence quebrou o feitiço,
enfurecendo o deus que era Palavra.
Ele parou de datilografar e olhou à volta, piscando.
- Venha para a cama, querido. - disse a Musa - Você não dormiu nas últimas trinta e seis horas.
Um grosso monte de folhas estava empilhado ao lado de sua mesa. Seus olhos queimavam e ele forçou as pálpebras secas a se fecharem. A Musa o estava levando para
longe do mundo de Palavra, para dentro de seu templo macio. Talvez a Musa não fosse sua amiga, no final, mas uma inimiga. - O que você quer?
Ela não era mais a Musa, apenas Bridget, a estudante da Georgia tremendo em uma camisola, os mamilos duros com o ar gelado.
- Estou preocupada com você. - Ela se inclinou sobre ele e envolveu seu peito com os braços. Spence deixou a cadeira se inclinar para trás. Agora que o encanto de
Palavra havia sido quebrado, a ansiedade inundou seus membros. Um canto de seu olho tremeu.
Bridget o beijou no pescoço, logo abaixo da linha de sua barba curta. - Você está trabalhando tão arduamente. Por que não vem para a cama?
- Não posso trabalhar se estiver na cama. - Sua irritabilidade havia ressurgido agora que as palavras haviam parado de fluir.
- Estou me sentindo solitária, querido.
Ela o havia perdoado dos maus tratos do dia anterior. Ou teria sido na noite anterior? Ou cem anos atrás? O tempo perdia o significado no Solar Korban.
- Querido, querido, querido. - disse ele, deixando cada palavra flutuar pelo ar como um laço.
- O que é a sua solidão comparada à grande perda que o mundo teria se eu deixasse meu trabalho inacabado?
- Eu sei que é importante. Eu apenas não sou como você. Preciso de um pouco de companhia às vezes.
- Tenho certeza de que você pode usar seus não tão pequenos dotes e arranjar alguém para dividir sua cama. Você pode jogar seus joguinhos de amor em outro lugar,
com minhas bênçãos.
Bridget tirou os braços de seu peito. Spence girou a cadeira para contemplar seu brinquedinho. Suas curvas graciosas ondulavam debaixo do tecido colante da camisola.
Um tesouro. Uma coisa bela e inútil.
- Jeff, não quero outra pessoa. Eu amo você.
Essa distração estava ficando interessante. Talvez Palavra o perdoasse por alguns momentos de ociosidade. Com certeza, mesmo Ephram Korban jogava jogos emocionais
na sua época.
- Amor. - disse ele, e a palavra fluiu como se estivesse sendo proferida por Sir Laurence Olivier em pessoa, derretendo-se em sua língua. A oratória clássica estava
ressurgindo, nascendo dos ossos de seu peito, através dos pulmões e garganta, o ar transformado em sabedoria. A única coisa que sempre mudava era o público.
- Amor, a vaidade suprema. - disse ele - Todo amor é amor-próprio. Maternal, fraternal, sexual, filial, religioso ou sacrifical. Todo amor é uma masturbação. E assim,
eu lhe dou permissão para amar-se, uma vez que parece ser o que você está exigindo de mim.
- Querido, não seja tão... tão...
- Inflexível. Do latim "Inflexibile". Sinônimos: rígido, implacável, impassível. Ah, como eu queria que isso fosse verdade! Mas a mente abraça aquilo do qual a carne
se encolhe envergonhada.
- Não faça isso. Você sabe que eu não ligo para o seu - sobre o seu - problema.
Spence riu, sua papada balançando do êxtase de sua autoestima. Ele acarinhou seus cabelos, um clichê de romances, borlas de seda e anéis de ouro. O rosto dela estava
rosado de paixão, os lábios levemente entreabertos enquanto suspirava com seu toque. Sua pele brilhava como mel à luz da lareira.
- Nosso problema. - disse ele.
Ela havia cruzado o limite. Isso demandava uma resposta.
Sua mão se fechou à volta de seu cabelo. Ele puxou sua cabeça para frente, pegando o manuscrito com a mão livre. Ele bateu com as páginas soltas em seu rosto, feliz
com o som de tapa que o papel fez contra sua pele. As páginas flutuaram para o chão enquanto ela gemia.
- Recolha as páginas. - disse ele, torcendo seu cabelo, forçando-a a se ajoelhar. Ela era miúda e sem condições de lutar contra seu volume. Ela soluçou enquanto
juntava as folhas. Ele a colocou de pé com violência, apesar de ela ter colhido apenas algumas páginas do manuscrito.
- Leia! - disse ele, ameaçadoramente frio.
Os olhos dela estavam arregalados, o rosto banhado em lágrimas, o lábio inferior tremendo.
- Leia. - disse ele novamente, agora calmo.
Os olhos marejados percorreram a página, os ombros sacudidos por soluços, os seios balançando miseravelmente de encontro à prisão de cetim.
- Alto. - Ele era novamente Jefferson Davis Spence, a lenda, o artigo genuíno. Sem mais ilusões de musas ou deuses literários esquecidos, sem aspirações sublimes,
sem simbioses com a máquina de escrever. Agora ele poderia simplesmente se concentrar na arte da crueldade.
- "A noite espalhou sua s-sujeira como espiões, como moscas." - ela leu, a voz tremendo. - "A n-noite caminhou pela noite, escalou sua espinha como uma escada, a
noite estalou os ossos de sua própria prisão..."
Spence relaxou o aperto em seu cabelo e a acariciou. Fechou os olhos, perdido no ritmo de sua própria prosa.
- "... a noite rosnou, chiou como uma cobra, crepitou como uma fogueira, a noite adentrou a si própria, banhou-se com a própria língua, devorou a própria cauda..."
Ah, a Musa estava novamente cantando. Tudo o que ela precisava era da partitura adequada.
- "... a noite tinha o sabor de carvão e cinzas, de alcaçuz, a noite tinha o sabor de dentes - sim, dentes frios... vá congelar lá fora..."
A voz dela diminuiu, mas Spence ainda balançava-se na cadeira, para frente e para trás, como uma criança ninada pela própria tagarelice.
- Jeff? - ela deu um passo cuidadoso para trás.
- Você parou de ler. Não mandei você parar de ler.
- Isso aqui... isso aqui é...
Spence sorriu, o rosto quente com a satisfação com esse pequeno, mas afetuoso tributo ao ápice de seu amor-próprio. Ele se abraçou ao paroxismo do êxtase, esperando
a ejaculação do louvor.
- Isso aqui é uma droga! - Ela largou o manuscrito no chão. - Você tem gasto todo seu talento nisso? Nessa... porcaria?
Spence, antecipando uma torrente de doce validação, não registrou a princípio as palavras. Mas o tom era claro. Mesmo com o sotaque sulista, as palavras eram exatamente
as da Sra. Eileen Foxx, sua professora da quinta série. Foxx botox, como as crianças a chamavam, pois ainda não eram espertas o suficiente para conectar seu nome
a algo lascivo ou a funções corpóreas.
A Sra. Foxx o espezinhara na frente de toda a classe porque ele cometera a temeridade de soletrar incorretamente a palavra "receber". Ele ficou de pé junto ao quadro
negro, respirando o pó de milhares de erros, enquanto todas as outras crianças rugiam em gargalhadas, aliviadas de não serem eles dessa vez. A umidade quente se
espalhou abaixo de sua cintura, sua pequena bexiga vazia, e as risadas mudaram de tom, alcançando o nível de uma lenda escolar.
E naquela tarde ensolarada de primavera, na escola elementar de Fairfield, uma nova regra gramatical foi formulada.
Nasceu também naquele dia Jefferson Spence, o escritor. Aquele que abusaria mais que Faulkner, que seria mais másculo que Hemingway, que seria mais predador que
Tom Wolf. E, apesar de não conseguir voltar no tempo e agarrar a Sra. Foxx pelas costuras de seu blazer de tecido barato e esmagar seus lábios sempre franzidos,
ele poderia agir agora. Ele poderia se embater contra os críticos, zombadores e papagaios, todas as outras Eileen Foxx do mundo que mereciam uma retribuição.
Ele varreu violentamente sua mão de encontro ao rosto da falsa Musa. Ela gemeu e caiu de volta na cama, um braço batendo na cabeceira de latão e o outro cruzado
sobre o peito. Uma gota de sangue escorria de sua boca e a narina também estava vermelha. Conforme seu rosto esquentava pela pancada, seus olhos o encaravam com
toda a severidade de Eileen Foxx.
Ele se desviou de seu olhar.
Ah, Ephram sorriu. Ephram, que havia oferecido apoio enquanto ele escrevia Tempo de Dormir. Ephram, um aliado em um universo de mentes pequenas, presas às suas quintas
séries, e que nunca poderiam compreendê-lo.
Não era que ele sempre falhava com as mulheres ou que sua produção literária era inconstante. Não era falha do equipamento. Eram eles. Sempre fora eles.
Eles haviam ficado entre ele e a verdadeira luz, o caminho brilhante, a Palavra em chamas. Quem necessitava de mero prazer físico? O que uma pessoa necessitava era
um banho de prazer, a eliminação da distração.
Necessitava tornar-se um com a Palavra. Uma comunhão reduzida a sua forma mais simples. Spence colocou os dedos sobre as teclas frias da máquina de escrever. A lamparina
chiou em aprovação, a lareira retumbou com quente deleite. Ele olhou novamente para Ephram, então para a página em branco, sua maior aliada e sua mais temida inimiga.
Ele mal se deu conta da porta se fechando atrás de si. Empurrou os dedos para baixo, procurando a aprovação do verdadeiro deus Palavra. As mãos se moveram de acordo
com uma vontade própria, como se envolvidas em luvas vivas.
CAPÍTULO 31
Anna seguiu tropeçando por entre as árvores, cansada, mas determinada, a figura fantasmagórica sempre no limite de sua visão. A lua havia nascido em sincronia com
o pôr do sol, apenas uma leve curva cortada de sua circunferência branca. A lanterna era desnecessária nas clareiras e trechos descampados, mas a lua não conseguia
penetrar as sombras frias debaixo da abóbada da floresta.
A mulher fantasma aparecia e sumia, como se lutasse para manter sua aparência. Anna a chamou várias vezes, mas nem o vento havia respondido. A floresta estava silenciosa
e mesmo os grilos pareciam se encolher de pavor. O ar estava enregelante e o orvalho se grudava pesadamente nas folhas que lhe roçavam o rosto e os ombros. O jogo
de esconde-esconde parecia durar para sempre, com se Anna tivesse que caçar seu espírito para toda a eternidade, as duas unidas em um purgatório compartilhado de
solidão.
Anna pensou que o fantasma a estava levando para a cabana na qual ela havia visto o espírito da menina em sua primeira noite no solar. Mas sua guia turística do
mundo dos mortos subiu a colina quando chegaram ao campo no qual estava a casa, para cima na direção das encostas íngremes de Beechy Gap. Anna seguiu por entre as
pedras de granito que se elevavam do chão como fósseis desgastados. A trilha ficou mais estreita e inclinada e a vegetação lentamente mudou para pinheiros.
Anna se esgueirou por uma longa saliência rochosa e plana. Ela estava na parte mais alta de uma crista rochosa. O grande mar de montanhas se estendia até o horizonte.
Um sussurro do vento se agitou, mas desistiu e aquietou-se.
As árvores eram mais esparsas aqui e a respiração saía de sua boca em um vapor que dava a impressão de que sua alma estivesse sendo consumida em chamas. Mesmo o
tremeluzir familiar de Sírius e o brilho alaranjado e constante de Satumo não lhe deram conforto. Ela estava sozinha, exceto pela mulher translúcida que agora flutuava
sobre a poeira e pedras frias da escarpa. O fantasma a chamou para seguir com um abanar do buquê de flores.
A lanterna de Anna brilhou sobre um amontoado de vigas e tábuas quebradas e espalhadas sobre uma extensão do terreno. A mulher fantasma estava entre as ruínas do
velho barracão, a figura etérea atravessada por uma dúzia de fragmentos de madeira. O fantasma abriu a boca, tentando formar uma linguagem perdida. Pequenos pedaços
de vidro brilharam no facho de luz da lanterna.
Anna deslizou pela rocha na direção dos entulhos. Um pedaço de madeira apontava tristemente para o céu. Ela se aproximou, atendendo o chamado do fantasma. A mulher
estava esperando de pé, os olhos vazios, o buquê estendido, como um sinal de boas-vindas ou de desculpas.
Então a noite caiu.
Uma das vigas quebradas elevou-se do chão e cortou o céu, em um arco pelo ar, como se arremessada por um gigante invisível. A madeira pesada bateu na barriga de
Anna. A lanterna caiu a seus pés, o facho de luz lançando um risco fino de laranja na direção dos arbustos.
Anna se dobrou para frente, lanças de dor cruzaram suas entranhas, pregos enferrujados penetrando seus templos, seus dentes mordendo telhas de zinco. Mas era mais
que a agonia do câncer. Essa dor era profunda e mortalmente séria. Seu pulso direito fora esmagado em um torno afiado.
Anna fechou os olhos e caiu no chão.
Nenhuma contagem regressiva poderia controlar essa dor. Através do martelar de seu pulso, ela podia ouvir tremores nos destroços do galpão. O cheiro de madeira podre
e decomposição assaltou suas narinas enquanto ela se contorcia sobre as folhas enlameadas.
Na confusão das ruínas, ela viu um túnel, uma longa, escura e fira boca aberta em sua direção. Uma brisa fétida foi soprada das profundezas do túnel, mas deve ter
sido sua imaginação, pois o túnel levava para dentro da terra. Seu suor era como lascas de gelo em seu rosto, o frio pincelando seus ossos e ela se lembrou das palavras
escritas no espelho do banheiro. Vá congelar fora.
Então ela ouviu a voz, um lamento suave e lúgubre que se lançou sobre as colinas.
Anna abriu os olhos com dificuldade, a visão borrada por lágrimas de dor. Duas formas vagavam sobre as ruínas, a mulher fantasma ajoelhando-se e um segundo fantasma
crescendo e pairando sobre o primeiro. O outro fantasma era de um homem em calças jeans azuis, camisa de flanela, botas de trabalho, as roupas translúcidas como
sua pele leitosa e doente. Alguns farrapos de carne pendiam de uma das mangas de sua camisa. A outra mão segurava o pedaço de madeira que a havia atingido. Ele olhou
para o fantasma da mulher, os olhos tão profundos e escuros quanto havia sido o túnel.
Um brilho estava à volta da cabeça do homem, uma aura de energia maligna. Sua face ectoplasmática estava distorcida de raiva, os lábios repuxados para trás mostrando
os dentes estragados. Ele largou o pedaço de madeira e colocou sua única mão à volta do pescoço da mulher. Anna podia ver a força de seus dedos quando ele apertou
a carne irreal. A garganta de Anna queimou de dor e a mulher fantasma emitiu um grito mudo, lutou por alguns instantes como um lençol pego pelo vento em um arbusto
de sarça e, então, despareceu, novamente um cadáver, morta uma segunda vez, o buquê caindo de seus dedos e desaparecendo no nevoeiro.
Anna rolou, ficou de quatro e começou a engatinhar para longe. Os fogos cáusticos ainda queimavam em seu interior, mas agora uma onda negra de medo a inundava, momentaneamente
se sobrepondo à dor crua. Ela olhou para trás e viu que a aura do homem havia ficado mais brilhante, como se matar um espírito houvesse alimentado algum fogo interior
infernal. Ele sorriu para ela, a língua deslizante como uma enguia e os olhos derramando uma escuridão que rivalizava a da noite.
A boca abriu-se: - É você, Selma?
Pelo menos o fantasma se lembrava da linguagem, apesar de seu tom ser enlouquecido.
- Sou eu, - disse ele - George. Sabia que você voltaria. Korban prometeu.
Voltar? Voltar de ONDE?
- Não sou a Selma. - disse Anna, tentando levantar-se, mas o peso do céu noturno era grande demais.
- Eu tenho um presente que estava guardando para você. Nós temos túneis da alma, Selma. O fantasma segurou algo na mão, algo que se mexia como um pequeno animal
no cinto de um caçador. Anna pensou inicialmente que era o buquê. Então a coisa se contorceu.
Era sua outra mão, aquela que havia perdido seu lugar no final do braço direito do homem. Enquanto ela se debatia na sujeira, o espírito jogou a mão em sua direção.
Ela caiu sobre os dedos e caminhou na direção dela como uma aranha. A risada do fantasma ecoou sobre o morro sombrio. - Uma mão gloriosa, Selma.
Anna virou-se e tentou novamente se levantar, mas a dor a tinha deixado tonta, confusa e desajeitada.
A mão decepada se agarrou a seu tornozelo.
Isso era impossível. Fantasmas não tinham substância, pelo menos não uma substância que tivesse uma solidez no mundo real.
Mas isso É o mundo real. E algumas vezes não é no que você acredita, mas no QUANTO você acredita.
Ela acreditava em fantasmas. Eles existiam. Você não poderia simplesmente se livrar da fé como alguém retira a água de uma jarra.
Péssimo.
Porque agora ela conseguira aquilo que sempre quis. Contato físico com os mortos.
Seu tornozelo estava amortecido, gelo fervente, fogo líquido, coroado com lâminas cegas.
Os dedos penetraram em sua carne. Anna foi empurrada de barriga no chão. Ela agitou os braços no ar, tentando agarrar um ramo de um pinheiro próximo, mas a mão a
puxou para trás antes que ela pudesse segurá-lo. Na direção do entulho. Onde ele a esperava.
- Vamos, Selma. Não deixe o garotão aqui esperando. - a voz do fantasma havia mudado, ficando mais profunda.
Ela enterrou os dedos no chão, agarrando as pedras afiadas e agulhas de pinheiro. Ela gemeu, dando-se conta de que estava respirando pela primeira vez desde que
havia presenciado a luta espectral.
Respire.
Isso significava que ela estava viva. Ainda não era um fantasma. Mas se esse espírito tinha o poder de assassinar fantasmas, o que poderia fazer com os vivos?
A mão puxou novamente, arrastando-a por um metro de terra úmida. Folhas molhadas entraram debaixo de sua camisa, deixando sua barriga gelada.
O estranho som derramou-se sobre o morro, como o grito de uma pomba morrendo. Anna olhou para o homem fantasma, seu sorriso esticando e derramando vermelho, laranja
e amarelo, as cores se juntando em uma aura maligna que o circundava como se estivesse iluminado pelo fogo do inferno.
Anna escorregou mais um pouco na direção das ruínas, chutando desesperadamente a mão. Era como chutar um peixe podre. Foi puxada novamente e a ponta afiada de um
pedaço de madeira pressionou contra a parte de trás de sua perna. A coisa a estava arrastando na direção das pontas agudas da madeira quebrada e os dentes afiados
das telhas metálicas rasgadas.
Ela seria sacrificada nas estacas. Mas por quê?
Por que um fantasma iria querer matá-la?
- As cobras rastejam de noite, querida. - disse ele - Cobras rastejam de noite. Mais pressão para trás.
A madeira afiada contra sua perna entrou em sua carne e enviou faíscas brilhantes de dor para os andares superiores de seu sistema nervoso. Uma tábua bateu em sua
vértebra, retumbando em sua espinha como se fosse um xilofone. Vidro quebrado penetrou seu joelho, cortando o tecido da calça e queimando como ácido. As chamas de
sua barriga expandiram-se para seu tórax e sua cabeça, enviando lava para seus membros. Ela fechou os olhos e viu as faixas de luz contra a escuridão das pálpebras,
como brasas estalando ou estrelas cadentes. Por trás das faixas, estava o túnel negro, expandindo-se inexoravelmente para fora e, brilhando ao seu final, a mulher
de branco.
Então é assim que é morrer.
Ela viera para o Solar Korban para encontrar seu fantasma, empurrada pelo poder profético de seu sonho. Isso era o que ela queria. Exceto que ela nunca esperava
que houvesse tanta dor. Mais fragmentos, farpas e pregos retorcidos entraram por sua pele quando os destroços inclinaram-se com seu peso.
Garota boba. Acho que você estava errada sobre um monte de coisas. Você pensava que a morte seria fria, mas é quente, quente, e o túnel é tão profundo.
A mão em seu tornozelo puxou, insistente, tenaz. Então a mão agarrou seu ombro.
E palavras vieram de algum lugar sobre ela, como a voz de um aJ1io insano. - Frio se va, frio se va, frio se va.
A dor desapareceu, apenas a escuridão permaneceu.
CAPÍTULO 32
Colocar o tronco na carroça, depois para dentro do solar e por fim no porão havia sido uma tarefa árdua. Ransom se recusara a descer as escadas para o porão, mas
a Srta. Mamie havia convocado ociosos que estavam bebendo no estúdio, exigindo sua ajuda. Paul, Adam, William Roth, Zainab e mesmo Lilith. Tinha sido um milagre
que eles não tivessem derrubado o tronco sobre os próprios pés, mas por fim ele havia ficado de pé, escorado por algumas tábuas e arames presos a pregos nas vigas
superiores.
- É melhor isso virar uma estátua depois de todo esse trabalho. - Havia falado a Srta. Mamie da entrada do porão antes de bater a porta e deixar Mason sozinho.
Não. Não sozinho.
Ele levantou o pano. O rosto de Ephram Korban olhava para ele. Será que Mason realmente havia entalhado essa perfeição? Mas o trabalho não estava completo. Agora
que Korban tinha um rosto, ele precisava de pernas, braços, mãos e um coração de carvalho.
Essa seria e escultura que renderia a Mason Beaufort Jackson uma menção nas revistas especializadas. Esqueça The Artist’s magazine ou Art Times. Essa criança iria
jogá-lo para dentro das páginas de uma Newsweek. Mason começou a escrever as manchetes e artigos em sua mente. Para começar, a Sculpture.
GAROTO DO INTERIOR ALÇA VOO
Se você ouvisse falar que um artista chamava-se "Mason Jackson", automaticamente assumiria que ele havia adotado um nome artístico.
(Espere um minuto, "nome artístico" era apenas para atores e escritores. Certo, chame de pseudônimo então. O autor do artigo acertaria o termo.)
Mas não há nada fictício sobre esse escultor emergente. Jackson foi chamado de "Michelangelo dos Apalaches". Esse jovem artista sulista poder ter os pés plantados
na terra do luar e rampas de esqui, mas suas mãos estão em um plano mais celestial. A série de esculturas de Jackson, As Analogias Korban, estão expostas para a
aclamação ampla no Museu de Arte Moderna da Filadélfia e logo cruzarão o oceano para Londres e Paris, onde os críticos já colocaram a pesada coroa de "Gênio" sobre
sua cabeça inigualável.
O tour de force de Jackson é a poderosa estátua Korban Emergente (ilustrada ao lado), que ele chama de "um produto de orientação semidivina". A masculinidade Rodinesca
e a massividade do trabalho impressionaram os mais céticos críticos, mas existe uma delicadeza singular em sua obra.
Não menos que Wiston DeBussey considerou a peça perfeita. Ele afirma que Mason é um "mestre inquietante" da madeira, um meio que tão poucos artistas ousam trabalhar
nos dias de hoje.
"É como se não existisse diferença entre a madeira e a pele humana", proferiu DeBussey em um raro momento de expansividade, "Jackson soprou uma vida orgânica em
cada veio contorcido. um observador quase espera olhar para baixo e ver raízes, como se a estátua estivesse se alimentando do sal e da água da terra."
Mas Jackson perde pouco tempo com a apreciação, oferecendo poucos detalhes na mente por detrás do homem.
"Cada peça é conceitualizada através do sonho de uma imagem." disse Jackson, de seu estúdio-fazenda em Sawyer Creek, uma pequena cidade encravada no sopé das montanhas
da Carolina do Norte. "E eu não tenho absolutamente nada a ver com essa parte do processo. Meu trabalho é colher esse frágil presente e de alguma forma não fazer
uma interpretação errada com as mãos humanas desajeitadas. Porque o que importa é o sonho, não o sonhador."
Se Mason começasse a falar desse jeito, Junior lhe daria uma cotovelada nas costelas e Mama o proibiria de ver televisão aberta. Esse tipo de bobagem lhe presentearia
com alguns olhares estranhos na fábrica, onde ficava mais à vontade que em um museu de arte. Ele poderia se enganar achando que era bom no que fazia, mas enganar
os outros era bem mais difícil. Se quisesse enganar o mundo todo, essa peça monstruosa de carvalho à sua frente teria que se transformar na imagem de sonho mais
maravilhosa jamais concebida.
Primeiro, ele teria que retirar a casca.
Depois, encontrar o homem escondido em seu interior.
Ele levantou a machadinha e olhou para os cantos escuros do porão. Ele não pertencia a uma fábrica. Era para isso que ele havia nascido, a razão para vir ao Solar
Korban. Ele nunca se sentira tão vivo.
Com a machadinha no alto, pensou nas palavras de Anna, como o espírito de Ephram Korban vivia naquelas paredes. Como a alma poderia ser nada mais que a soma dos
sonhos mortais de uma pessoa. Como sonhos poderiam se converter em cinzas.
Não. Esse sonho era real.
A machadinha penetrou na madeira.
CAPÍTULO 33
A mão esquelética no ombro de Anna puxou sua camisa e a levantou. Então era isso, o homem fantasma a tinha pego. Ela finalmente descobriria como era estar morta.
Ou talvez ela já fosse um fantasma, porque a pior parte da dor estava desaparecendo.
Anna tentou ficar de pé, mas suas pernas eram como fumaça úmida. Ela se apoiou sobre um joelho ensanguentado, procurando suporte nas madeiras do entulho. Abriu os
olhos para encarar a coisa morta, resignando-se a engatinhar para dentro do túnel escuro.
Mas o que a segurava não era um espírito errante. Era uma velha.
- Ocê precisa se cuidar um bom tanto mais, sô. - disse a mulher.
Seu rosto era enrugado, a luz do luar revelando as veias inchadas, as sobrancelhas brancas como gelo. Mas os olhos azuis encravados naquelas dobras de pele eram
brilhantes, jovens e inteligentes. E Anna reconheceu o xale que estava enrolado sobre os ombros curvados da mulher.
- Você estava na cabana...
- Fica quietinha, criança. Eu vejo o que ocê vê e nóis duas vêmo muita coisa. Vâmo simbora daqui e então a gente pode tê uma prosa cumprida.
Anna ficou de pé, empurrando as madeiras quebradas para longe de suas pernas. A dor havia sumido e o anel de fogo à volta de seu tornozelo se desfeito. A lua estava
alta agora, próxima de seu zênite.
Anna olhou o entulho. Poderia ter sido um sonho, não fosse pelas roupas e a pele rasgada.
- Vâmo pra longe daqui. George teve que saí correndo hoje, mas presta atenção que ainda não tá na sua hora.
A velha guiou Anna para longe dos destroços do barracão. Ela era surpreendentemente forte para alguém que tinha a aparência de ter oitenta anos. Anna observou-a
subir sobre a plataforma de rochas com a agilidade de uma cabra montesa, apesar de usar um bastão grosso para se apoiar. Anna procurou sua lanterna, mas ela devia
ter rolado para dentro de algum arbusto fora da vista. Ela se apressou atrás da mulher.
A velha parou sobre a rocha olhando a vastidão das montanhas. O céu estava acinzentado, mas Anna conseguia ver as cristas e curvas da terra estendendo-se até o horizonte.
- Korban quase pegou ocê dessa vez. - disse a mulher sem se virar para Anna. - Achei mió aproveitá a chance de avisá ocê antes. Mas o velho Ephram sempre foi sem
as paciência.
- Você quer dizer Ephram Korban?
- O dono dessas paragem. Ou pelo menos ele gosta de pensar isso.
- Mas você está falando no presente. Ele está morto.
- Como se fizesse arguma diferença. - Ela cuspiu de cima da pedra nas árvores abaixo.
- Quem era aquela mulher que vi? - A cabeça de Anna estava clareando um pouco. - E a garotinha na cabana?
A velha riu, mas era um gargarejo alquebrado, pesado pelo cinismo. - Ocê tem a visão, é, tem sim. Soube disso da primera veiz que botei meus ôio em ocê. Agora, chega
de pergunta até nóis tá longe desse lugar. Porque esse lugar é do Korban.
Anna seguiu a mulher para fora da rocha e para baixo do morro por uma trilha estreita, espantada de ver como os velhos sapatos de couro duro da nrulher desviavam
de raizes e pedras, o bastao batendo agilmente na terra em busca de apoio. Elas se dirigiram para o cmne atnis de Beechy Gap.
Anna parou para recuperar o folego, esfregando o abdomen-Uma pergunta. O que significa "va fora congelar"?
- "Va congelar fora"... Velho feitiço da montanha. Significa "o que esta morto, continua morto". Anna teria que se lembrar disso. Ela esperava, ao contrario do que
Ransom havia falado sobre ferraduras e trevos de quatro folhas, que esse pequeoo feiti<;:o nao tivesse se desgastado como tempo.
CAPÍTULO 34
Adam havia passado suas longas horas de insônia tentando se livrar dos pensamentos que orbitavam sua mente como lixo espacial. E a maior parte desses pensamentos
era sobre perguntar à Srta. Mamie se havia algum jeito de cancelar sua estadia no solar. Ele não ligava para reembolso. Paul poderia ficar com sua câmera, seus lábio
carnudos e sua arrogância pelas seis semanas restantes, no que lhe dizia respeito. Tudo o que Adam precisava era se ver livre desse lugar.
Eles tiveram outra discussão, dessa vez no estúdio após carregar o tronco para o porão. Paul estava se exibindo para William Roth, que atirava na direção de várias
mulheres ao mesmo tempo, e Adam tentou levar Paul para um canto para que pudessem conversar. Paul zombou e disse: - Por que não vai para a cama, princesa? Sei que
você fica entediada falando sobre outra coisa que não você mesma.
Adam finalmente havia conseguido dormir próximo do que pareceu ser a meia-noite, apesar de a lua estar tão brilhante que parecia que o tempo não havia passado. E
novamente ele havia tido o sonho, o sonho da queda da balaustrada. Mas dessa vez ele reconhecera o homem que estava tentando empurrá-lo do topo da casa. Era o homem
que ele imaginara ter visto no closet quando Paul estava guardando sua câmera. O homem no retrato. Ephram Korban.
E novamente Korban havia pressionado Adam sobre o parapeito. A madeira dura pressionada contra sua cintura. Mesmo enquanto estava sonhando, deu-se conta de que não
deveria estar sentindo dor durante um sonho.
Mas todos os seus sentidos estavam funcionando: ele podia sentir o doce odor das faias, ouvir o tilintar metálico do riacho, saborear o odor rançoso de cemitério
presente no hálito fétido da respiração de Korban, ver as estrelas girando loucamente no céu quando ele finalmente o empurrou por cima do parapeito.
- Você não tem nenhuma vaidade. - disse Korban - Não posso me alimentar de seus sonhos. Eles são feitos de ar.
Os dedos de Adam se emaranharam na barba do homem, tentando desesperadamente se agarrar aos pelos grossos. Mas enquanto Korban o empurrava para longe, seus pelos
eram arrancados. E exatamente quando Adam caiu, soltando-se do casaco de lã de Korban, ele olhou para dentro de seus olhos.
Os olhos brilharam de um negro carvão até ficarem de uma cor âmbar. As mãos implacáveis de Korban soltaram os braços de Adam, que gritou enquanto era arremessado
para o chão, vinte metros abaixo.
O ar assoviou à sua volta como uma chaleira em agonia.
O grande abismo do espaço girou sobre ele, mais e mais distante, sua suavidade perdida enquanto ele estendia as mãos para o céu a procura de algo para se segurar.
As janelas da casa brilharam em faixas luminosas, as vidraças borrando em sua visão periférica. Seu sangue correu para os pés. Esse sonho era muito mais estranho
que qualquer outro que ele havia tido. Porque as pessoas deveriam acordar quando sentiam coisas em seus sonhos.
Mas Adam estava ciente do impacto quando sua cabeça bateu no círculo pavimentado da estrada. Ele ouviu claramente o ruído dos ossos sendo esmagados, quando a espinha
se dobrou como uma ave de papel, engasgando-se quando a respiração lhe foi brutalmente arrancada dos pulmões, quando mordeu a língua na metade e a parte amputada
foi espremida entre os dentes que se quebravam, sentiu o gosto do próprio sangue morno e quando vomitou no momento que a bacia quebrada perfurou o estômago e os
rins.
Enquanto sua carne arruinada se espalhava e vazava pelo chão, pôde ver claramente seus olhos ao lado da cabeça. Eles brilharam na sua direção, as íris marrons perdidas
nos globos brancos, as pupilas dilatadas com o choque e o medo, nada de pálpebras para esconder sua reprovação. Mesmo dormindo, ele reconheceu o absurdo de ver seus
próprios olhos. Mal podia esperar para contar isso para Paul.
Exceto que você não deve sentir dor em um sonho. E o que mais poderia ser isso senão dor? Esse lençol vermelho que caíra sobre ele como uma centena de guilhotinas
sulfurosas. Bandas de eletricidade explodiram pelo corpo destroçado, os nervos gritando como quatro sirenes em um quartel de bombeiros. Adam tentou rir. Não era
engraçado, experimentar essa inundação alaranjada em seu cérebro, quando com certeza ele estava morto?
Mas espere um segundo. Será que você pode sonhar que está morto?
Mas como você sabe que está morto? Esse era o tipo de coisa que lhe daria uma dor de cabeça se não soubesse que estava dormindo. Mas Adam estava com dor de cabeça,
de qualquer forma. Ele se ajoelhou para juntar o cérebro derramado, arrumando-o num montinho e depois o colocando de volta no crânio quebrado.
Quando seus dedos rasparam as convoluções fumegantes do próprio cérebro, ele notou que seu corpo estava espalhado à sua frente. Isso era estranho, surreal, daliesco.
Ele esperava ser acordado a qualquer instante e se ver rindo entre os travesseiros. Mas ele não acordou. Ele ficou de pé, observando a poça vermelha que se espalhou
por debaixo de seu corpo e à volta de sua cabeça. Um fragmento de fêmur aparecia em uma das coxas, à mostra por entre o tecido cinza de seu pijama. O osso brilhava
branco e úmido na luz pálida da lua. A cabeça estava virada de lado na direção dos degraus que levavam ao Solar Korban.
Mas sua cabeça real, pelo menos aquela que abrigava sua alma, estava olhando para cima, na direção do portal negro.
Formas vazaram pela bocarra, formas brancas e finas, como teias de aranha sendo sopradas pela brisa de uma vassoura.
Algumas coalesceram em formas mais ou menos humanas, homens, mulheres, uma garotinha, os rostos brancos, os olhos negros como o interior do saguão de entrada. Algumas
delas em saias vitorianas, ou calças com culotes, alguns homens com sobretudos e chapéus de feltro, algumas mulheres com gorros, outras com coques altos. Os jovens
com calças curtas, as meias remendadas e sapatos de couro de bico quadrado, as meninas em vestidos lisos e fitas nas tranças. Um bebê se materializou aos pés de
uma mulher, a fralda rasgada pendurada às pernas rasgadas.
Adam deu um passo para trás quando eles se aproximaram. Eles não estavam caminhando, mas sim flutuavam, deslizavam, voavam, os braços abertos, as bocas indolentes
com um sorriso cheio de propósito. Eram cerca de doze figuras e ele viu Lilith entre eles, a camareira com o vestido flutuante, mas ela era mais enevoada que os
demais. A cozinheira gorda, que ele havia visto antes colocando os pratos para lavar, estava secando as mãos no avental.
Ele gritou, mas ninguém consegue escutá-lo quando você está morto.
Havia passado, e muito, o tempo de acordar.
* * *
Ele tentou correr, mas permaneceu transfixado, congelado, tão frio quanto uma lápide no inverno de dezembro.
As figuras se reuniram à volta do corpo estendido no chão, os fantasmas - sim, claro que eram fantasmas, se eu vou realmente ter um pesadelo, que seja da pior espécie
- se misturaram e se uniram, sem mostrar nenhuma preocupação com as convenções sociais do espaço pessoal. E Adam, agora mais fascinado que aterrorizado, também olhou
para baixo, na direção do objeto da atenção deles.
Era ele, ele mesmo, a pessoa antes conhecida como Adam Andrews. Lá estava a verruga em seu queixo, a pequena cicatriz branca em seu cotovelo, de quando ele caíra
de bicicleta com nove anos, a curva estranha de seu segundo dedo, que ele destroncara gravemente jogando futebol no colégio. Lá estava sua mão, as unhas cortadas
desigualmente, alguns fios da barba de Korban ainda presos em seus dedos rígidos. Lá estava o anel prateado com a granada que Paul havia lhe dado.
Lá estava seu sangue, sua carne e seu corpo.
Um som baixo preencheu o pátio, se estendendo através da colina, um hino fúnebre que lembrava Adam o canto de baleias que ouvira. Era uma linguagem bizarra, sonora
e triste. As sílabas do som desafinado se uniram em um caos, um ruído coagulado e denso. Estava emanando do solar, como se a porta de entrada fosse a garganta da
casa.
Os fantasmas viraram-se para a porta, solenes apenas como os fantasmas conseguem ser. Adam engoliu em seco, olhou para as mãos e viu que eram feitas do mesmo nevoeiro
que os outros, tecido das mesmas fibras imateriais. Ela era um fantasma. Isso significava...
Ele estava realmente morto.
Riu para si mesmo e fechou os olhos sonhadores. Ele teria que esquecer que estava bravo com Paul, pelo menos até lhe contar sobre o sonho. Ele se perguntou se estaria
roncando e então lembrou- se de que havia separado as camas de forma que não podia contar com a cutucada de Paul em suas costelas.
E agora, ele adoraria receber cócegas, ser acariciado até acordar, puxar o corpo de Paul para perto, sentir algum calor humano.
* * *
Porque estar morto era um assunto enregelante. Ele devia ter chutado as cobertas para longe durante o sono.
Sim, claro. Qualquer coisa maluca faz sentido se você analisar por tempo suficiente. E decidir deixar Paul deve ter agitado algumas coisas estranhas na selva Jungiana.
Mas por que sua mente não deveria lhe dar um susto às vezes enquanto você está dormindo? E o que poderia ser um tema melhor para umas férias que esse parque temático
de gente morta? Qual era aquele velho filme preto e branco, mesmo? Ah, Carnaval de Almas, dançando com os mortos, acorde e diga "Era tudo um sonho". E o velho Ephram
Korban É o tipo de coisa que induz pesadelos.
Então, por que não aproveitar e seguir com a procissão? Você acordará em breve, de volta ao mundo real com seus problemas reais, do tipo como lidar com Paul, de
verdade.
Ele abriu os olhos e se viu ainda dentro do pesadelo.
Os fantasmas estavam se curvando, levantando o cadáver. Divertido, Adam juntou-se a eles. Quando um dos braços rolou para fora, ele o pegou e o dobrou por cima do
peito. Os fantasmas elevaram o corpo e caminharam na direção da porta do solar, pálidos companheiros em uma procissão silenciosa. Adam seguiu atrás deles enquanto
subiam os degraus. Esperando à porta estava seu malfeitor, Korban.
O homem abriu um sorriso frio de triunfo, os olhos como esferas de ônix.
- Bem-vindo ao seu túnel da alma, Adam. - disse Korban.
Por um momento, Adam esqueceu que estava sonhando. Korban segurou a porta aberta enquanto a procissão adentrava a escuridão. Adam foi incapaz de deixar de acompanhá-los.
O rosto de Korban flutuava por perto e o homem estendeu um braço de boas-vindas. Conforme Adam escorregou para dentro da escuridão que o esperava, ele descobriu
que não era o solar que o estava engolindo.
O saguão de entrada era um túnel, um tubo de paredes rígidas de pedra vitrificada, uma boca sempre escancarada, toda negra, além da luz e das coisas que a luz poderia
atingir. Adam estremeceu, mais frio agora que o gelo fantasmagórico, não querendo mais brincar de ter o pesadelo.
Hora de acordar...
Porque Korban estava se transformando, os olhos deixando de serem órbitas escuras para se tornarem sóis odiosos.
Porque Korban estava brilhando com um calor repugnante, Korban o estava prendendo, pegando- o por dentro, dentro de seu peito, dentro de seu coração-
POR FAVOR POR FAVOR POR FAVOR ACORDE!
Os dedos de Korban apertaram e uma nova dor irrompeu, uma dor além da compreensão humana, tão intensa que mesmo o Adam morto e sonhando gritou. Korban o puxou para
dentro do túnel e ele soube o que o estava aguardando à frente era pior que qualquer coisa que seu cérebro poderia imaginar.
Ele gritou novamente, gritou e gritou, fechou os olhos de sonho de forma que não visse o que estava à frente...
Mas ele sabia o que estava à frente, a coisa que ele havia enterrado tão profundamente em sua mente que ela havia esquecido. E como todas as coisas esquecidas à
força, havia apenas ficado mais poderosa com os longos anos de hibernação. E quando uma lembrança enterrada finalmente se liberta de seu caixão e cava seu caminho
rumo à liberdade, ela não terá um olhar carinhoso para com o coveiro.
Essa era uma lembrança que possuía dentes.
Ele gritou novamente e a mão em seu peito estava balançando, balançando-o -
- Acorde, Adam!
Ele abriu os olhos, mas ainda estava vendo os vislumbres de sua lembrança enterrada, a imagem fazendo com que jogasse os braços para a frente em pânico. Ele atingiu
Paul no ombro.
- Ei!
Paul estava ao lado da cama de Adam apenas de cueca. Adam olhou para ele, sem piscar. Um leve brilho da lua penetrava pela janela e o fogo lançava uma luz avermelhada
nas paredes.
- Você devia estar tendo um pesadelo dos diabos. - disse Paul.
Adam ficou deitado imóvel, rolando os olhos nas órbitas, o peito dolorido da lembrança da dor. A colcha estava enrolada à sua volta. Relanceou os olhos para os cantos
do quarto, para a porta do closet, esperando a lembrança exumada mostrar sua cara na primeira sombra que encontrasse. Olhou para o retrato sobre a lareira, observando
os lábios de Korban abrirem-se e darem as boas-vindas dentro do túnel.
- Quero dizer, você conseguiu até me acordar com sua agitação, - disse Paul e então adicionou, com um leve tom de zombaria - e eu estava do outro lado do quarto.
Adam flexionou os dedos, esticou-se e limpou o suor da testa e do lábio superior.
Ele respirou profundamente, uma respiração doce e acordada, e nada nunca foi tão saboroso, nem o chocolate com cereja de seu sundae favorito, nem o mais seco dos
Chardonnay e nem mesmo o primeiro beijo de um amante.
Paul colocou as mãos na cintura, agora impaciente. - Você sonhou com minha mulher de branco? Ou você vai continuar sem falar comigo?
Adam abriu a boca, contente por descobrir que a ponta de sua língua ainda estava no lugar.
- Você está certo sobre uma coisa. - Adam sussurrou, as palavras secas em sua garganta. - Era um pesadelo dos diabos.
CAPÍTULO 35
Lindo.
Spence segurou a página de tal forma que o luar vindo da janela brilhasse em cheio nas palavras. Estivera esperando aqui. Todos esses anos. As bênçãos da Musa, a
doce inspiração, o sonho adormecido da criação. O Dom.
A casa havia lhe dado outra obra-prima.
Ele reclinou-se na cadeira e riu. O som ecoou nas madeiras do quarto, chocalhou a cômoda no espelho, riu de volta das paredes, curvou-se à volta da cornija da lareira,
reverberou nas pedras e espiralou no ar como poeira ao vento. O retrato de Korban sorriu de forma maligna em um entendimento secreto.
O quarto estava muito melhor agora que estava vazio. Havia Spence e a Royal. Spence e as palavras. E o mundo além das palavras?
O mundo não importava. O que importava era a interpretação, a reflexão humana, o esculpir da ilusão. A arte. Simbolismo.
As palavras.
As palavras de Spence.
E daí que os últimos romances haviam se desviado de curso, não haviam se sustentado, haviam perdido a vida dentro de sepulturas de indecisão? O que importava era
que Spence havia sido ungido. Os críticos o amavam. A coluna de crítica literária do New York Times o havia colocado não uma, mas duas vezes na primeira página.
E as pessoas insignificantes, os escritores iniciantes, as multidões das cafeterias e os patéticos professores universitários de literatura devoraram seus livros,
como peixes comedores de lodo. Isso foi antes de os programas de entrevista na televisão indicarem os best-sellers da moda com seus gostos do tipo siga-o-líder em
uma política de uma-mão-lava-a-outra.
Não que as pessoas insignificantes importassem, a não ser pelo fato de fornecerem o estímulo de adoração pelas massas. Spence não escrevia para elas. Ele também
não escrevia para os críticos. Eles eram tão cegos quanto Homero havia sido, estufados como se tivessem dado alguma contribuição para o processo criativo, javalis
que não conseguiriam reconhecer que estavam se alimentando nos mesmos cochos onde cuspiam. Mesmo os editores não eram mais que intrusos, mais apaixonados pelo produto
do que pela arte.
Nos últimos tempos, a carreira de Spence estava mais voltada para a busca. Deveria haver um modo de desvendar as camadas do simbolismo, adentrar no coração do significado.
Alcançar a verdade das coisas sem a distração do som da máquina de escrever, sem os dedos desajeitados que serviam como os agentes do cérebro. Evidente que havia
algum tipo maior de clareza, que não o preto da tinta no branco do papel.
Ele atingiria isso, em breve. Em seu pináculo espiritual, o momento em que toda a história humana, todas as leis do universo, todas as teologias, todos os grãos
de poeira poderiam ser condensados na mais pura forma. Quando tudo poderia se tornar uma unidade.
Uma única e verdadeira Palavra.
Spence suspirou. Até atingir esse estado divino, que comandava a essência, ele teria que trabalhar com essas ferramentas idiotas de linguagem. Edgar Allan Poe sempre
discursava sobre a "unidade do efeito", como cada palavra tem que contribuir para o todo. Aquele homem paranoico e embebido em absinto estava no caminho certo, mas
não seria melhor simplesmente encontrar uma única palavra que fosse o efeito?
Pelo menos ele poderia amar o que havia escrito, a despeito das falhas morais. Ele leu o último parágrafo escrito:
E ele, tornando-se Noite, encontrou seus membros, seu sangue e prazer, estendendo-se sobre as colinas. Escapando das pedras negras e frias que foram sua prisão,
da montanha que era seu sepulcro, da casa que era seu coração. Seus dedos agora eram mais que meras árvores, seus olhos mais que espelhos, seus dentes mais que madeira
quebrada. Ele, tornando-se Noite, poderia espalhar suas águas escuras, poderia elevar suas marés em praias distantes, poderia engolfar e afogar tudo o que não fosse
escuridão à sua volta e que não mais o ameaçaria.
A Noite andava em ambos os lados do nascente, mais uma vez imperiosa e sonhadora.
Spence colocou a página sobre a mesa. Esfregou os olhos. Dois dias. Ele estava escrevendo por dois dias?
Sua barriga roncou. Ele gostaria de comer algo. Bridget estaria esperando no café da manhã. Talvez ele até considerasse perdoá-la.
Ele colocou outra folha em branco na Royal antes de deixar o quarto, para que ela o estivesse esperando quando retornasse. Ele a olhou da porta. O papel branco o
olhava acusadoramente.
- Não se preocupe, a Palavra voltará. - respondeu ele para o quarto, para a casa ou para o que quer que estivesse esperando naquelas paredes. Então fechou a porta.
CAPÍTULO 36
Sylvia atravessou a cabana e jogou um pouco de sal no fogo para manter os feitiços afastados. Depois colocou um cataplasma sobre o joelho de Anna, onde os cortes
eram mais profundos. Um pouco da mistura gosmenta vazou pelo tecido e escorreu pela perna.
- Isso deve de consertá ocê direitinho. - disse Sylvia - Num é?
- É o de sempre. Fulige de chaminé e melado cozido com um pôco de breu de pinhêro. É mió enrolá um corte com têia de aranha, mas não tem muita aranha aqui pra cima.
- Isso não vai causar uma infecção?
- Nada é mais limpo que fulige de chaminé. É limpo pelo fogo, sabe?
Cicatrizaria bem. Sylvia não achava que poderia consertar as outras coisas que estavam erradas com Anna, as células ruins que estavam queimando dentro dela. E achava
que não deveria, mesmo que soubesse quais ervas usar. Parte de ter o poder para curar era saber quando a natureza deveria seguir seu próprio curso. Saber quando
os mortos deveriam permanecer mortos e quando os vivos deveriam seguir os rumos de sua alma.
Anna estava marcada, tão claramente como se seu destino houvesse sido escrito por um juiz. A pena disso era que ela estava apenas começando a vida, apenas começando
a compreender seus dons poderosos e assustadores. Mas Sylvia sabia que a doença na jovem também havia tornado seus poderes mais fortes. Era por isso que havia sido
tão fácil Korban chamá-la ao solar.
Anna pressionou o cataplasma sobre o joelho e bebeu da caneca de barro feita à mão. - Obrigado, senhorita -
- Sylvia. Sylvia Hartley.
- E obrigada pela água. Nunca experimentei uma água tão boa quanto essa que vocês têm aqui na montanha.
Sylvia aquiesceu com a cabeça e lançou um graveto ao fogo.
Anna estava apenas jogando conversa fora. Ninguém gostava de lembrar eventos ruins recentes. E Sylvia havia aprendido ao longo dos anos que esperar com paciência
era a única coisa na qual uma pessoa poderia se tornar realmente boa. Ela havia esperado um longo tempo pela lua azul de outubro.
- Você quase foi convocada.
- É assim que você chama quando um fantasma quase mata você?
- É. A gente chama de má sorte também. - Sylvia ficou de pé e pescou a chaleira pendurada em um gancho acima do fogo. Colocou um pouco da água fumegante na xícara
de Anna e foi até o armário para pegar algumas folhas de dentro de um pote de cerâmica. Voltou e quebrou algumas folhas dentro da água quente.
- Tem cheiro bom. Parece com menta. - Anna absorver o odor.
- É. Menta com um cisco de raiz de cerejêra. Vai diminui sua dor de cabeça.
- Como você sabe?
- Eles sempre me dão uma dor de cabeça, quando tô espantando eles. Esses que tão recém- morto são fácil de vê, mas são mais turrão de ir embora pra dentro da cova.
Anna bebericou o chá e deu a Sylvia um olhar de soslaio. - E como eles ainda não "convocaram" você?
Sylvia deu uma risada que pareceu mais um soluço molhado.
- Tenho meus osso de gato e minhas raiz de cobra e meus pó de lagarto... tenho também um armário cheio de pranta e pele de bicho. E aqui minha proteção especiar.
Sylvia remexeu sob o xale em algum lugar próximo ao coração. Ela virou a palma para fora, para mostrar a Anna uma pequena coisa branca que Sylvia não trocaria nem
por um saco de ouro.
- Um pé de coelho? - As sobrancelhas escuras de Anna formaram pontas de flechas em sua testa.
- Num é só um pé de coêio, moça. É o pé trasêro esquerdo de um coelho de sepultura, morto numa meia-noite de inverno.
- Outro dos símbolos antigos, como Ransom me falou.
- Eles querem dizê o tanto que ocê quisé que eles diga. É tudo sobre o quanto ocê acredita neles.
Anna colocou a xícara sobre a mesa rústica. Ela estremeceu, a despeito de estar próxima do fogo.
- Que noite. Sinto como se fosse uma velha de mil anos.
- Véia? Não espero que ocê me dê crédito nisso, mas eu tenho cento e cinco anos, um pôco mais, um pôco menos. Mas talvez ocê credite. Eu num credito muito também.
Eu mantenho minhas força e tudo mais, mas eu credito que isso tem de haver com o Korban. Como se ele tivesse esticando minhas idade pra que eu num môrra enquanto
ele num acabá comigo antes.
Anna apoiou o queixo sobre as mãos. O fogo refletiu em seus olhos esverdeados.
Os zôio. Deus, ela é a image cuspida de Rachel.
- O que Korban quer? - perguntou Anna. - Estudei fantasmas por um bom tempo, mas a maior parte deles queria apenas escapar daqui. Desse mundo, quero dizer.
Sylvia olhou para o fogo junto com Anna. O sol estava começando a se insinuar ao leste, mas o aposento ainda estava escuro, como se a noite hesitasse em ir embora.
- Korban qué tudo de volta. Tudo que foi dele um dia e um pôco mais.
- Por quê?
- Por quê? - Sylvia havia pensado sobre isso inúmeras vezes ao longo dos anos, mas ainda não sabia a resposta correta. - Chamá-lo de maligno seria chovê no moiado.
Talvez ele fosse mau quando tivesse vivo, mas agora ele tá é muito pió. Ele gostava era de possuí as coisa, mudá elas pra se encaixá no seu mundo. Acho que ele ainda
faz isso. Será que é mau quando alguém qué ficá com tudo que amô?
- Não estou certa de ter amado algum dia.
As palavras apertaram o coração de Sylvia. Korban havia convocado Anna por uma boa razão. Não importava o que Rachel havia tentado fazer. Talvez ninguém nunca escapasse
de lá, morto ou vivo.
- Ephram... - a voz de Sylvia diminuiu, incerta. Ela tinha novamente dezesseis anos, estranha, mas com um coração flamejante, como se tanto o mundo quanto ela fossem
jovens e ainda cheios de promessas. - Eu amei o Ephram. Todo mundo amô. As muié, pra modo de bem dizer. Ele era muito bonito a seu modo, mas não era só as aparência.
Tinha algo nele, um magnetismo. Ninguém conseguia arresisti ele por muito tempo.
- Eu consegui um emprego na casa, como todas as muié que vivia nessa montanha naquele tempo. Os hômi tavam tudo atarefado, trabaiando pra limpá a terra e manter
as coisa em ordi. Ninguém disse nada quando o povo começô a morrê. O machado de arguém saía voando e rachava alguma cabeça, uma árvore caía em cima das costa de
arguém, achavam uma pessoa afogada na lagoa, as carne inchada e a língua azul pra fora. Era tudo acidente, nas nossa cabeça. "Uma maré de azar", nóis dizia uns pros
ôtro, mas nóis tudo sabía que num era bem assim.
Sylvia apertou os punhos contra o peito. Ela nunca havia contado a ninguém essa próxima parte. Ela havia mantido essa história quieta e em paz no fundo de sua mente,
como um lagarto em uma fenda segura. Mas essa criança tinha coisas piores pelas quais passar. O sofrimento de Sylvia não era nada comparado a isso.
- Uma noite o fogo da lareira dele se apagou. Eu fiquei morta de medo. Esse era o meu trabáio e era uma coisa que toda santa vez eu via o Ephram, o que não era lá
muito seguido. Mas cada vez que eu via o sujeito, por Deus, ocê nunca esquecia e ficava se lembrando disso na sua cabeça, o rosto dele, as mão, a voz, até seu coração
doê. Pelo menos era o jeito que a coisa funcionava comigo, mas acho que era assim com a muierada toda.
Sylvia ficou em silêncio. Mesmo através das décadas, o momento ainda estava vívido. Ela foi invadida pela inundação morna da paixão misturada com o terror. Seus
olhos estavam enevoados e ela não lutou contra isso dessa vez, apenas deixando as lágrimas rolarem pelo rosto.
- O Ephram, ele tava no quarto. Mas era como se sua vida fosse o fogo. Ele tava só deitado na cama, engasgando, mais ou menos. Eu tava muito assustada, criança,
ocê não imagina o tanto que eu tava assustada.
Sylvia fungou. - Mas, de novo, talvez ôce possa imaginá. Esqueci que ocê acabou de tê um encontro esquisito. E ele me fez acendê aquele fogo e dizê as palavra que
nunca divia de ter dito.
Anna tocou no ombro de Sylvia. O gesto lhe deu forças para continuar.
- Quando eu por fim acendi o fogo, Ephram veio até eu. Ele me abraçô e eu oiei dentro dos olho negro dele e eu teria feito qualquer coisa por ele. E ele me bejô
e fez tudo o mais que queria. Mas uma coisa era certa, eu queria tanto quanto ele. E quando a coisa acabô, ele me mandô imbora. Não disse uma palavra que seja, apenas
abotoô a camisa e remexeu no fogo um pôco, como se eu fosse um pedaço de carne de um bicho que ele tivesse caçado.
- Eu quase que nunca mais oiêi ele de novo, tava com tanto medo. Medo tanto dele me querê quanto dele não me querê. Mas umas semana dispois, minhas regra passaram.
Deus de misericórida, aí eu fiquei com medo mesmo. Mas não tinha nenhum ôtro sinal, dismodi qui segui minha vida, esperando e rezando. Os mês passaram, veio o inverno
e veio a primavera. No verão, minha barriga começô a crescê, mas só um tiquinho. Foi aí que eu fiquei sabendo. E eu fiquei sabendo que tava errado, pelo jeito devagar
que tava a coisa.
O coração de Sylvia estava trovejando agora. E a velha raiva e o amor perdido a estavam preenchendo, envenenando-a novamente. Anna pegou a mão dela e a apertou.
Isso acalmou um pouco Sylvia. Ela tinha que fazer isso, pelas duas.
- Korban gostava de ficá em cima da casa no meio da noite. Lá na balaustrada. O pôvo falava que ele ficava lá convocando as coisa escura, as criatura invisível que
se arrastava e flutuava em volta da noite. Mas nessa época eu já sabia o que ele tava fazendo.
- Ele tava chamando seus convocado. Mandando eles fazê seu trabáio ruim. Enfeitiçando eles. Eu subi as escada uma noite. Era lua cheia, uma lua azul de outubro,
igual a que vai ser amanhã. Lembro do chero de sassafrás no ar e de um sereno tão grosso que ocê podia senti na pele. O alçapãozinho que levava pro teiado tava aberto,
dismodi qui eu botei a cabeça pra fora e vi ele junto do parapeito, olhando pra desolação iluminada pela lua.
O fogo estalou e emitiu um longo chiado. Sylvia fechou os olhos e terminou a história antes que Korban tivesse forças para impedi-la.
- Eu subi divagarinho até a balaustrada e ele ainda tava de costas pra mim. Quando firmei os pé no chão, fiquei de pé e, por Deus, como o vento soprava forte. Como
se fosse a respiração de todo o céu solta de uma só vez. Eu corri até o Ephram, minhas rôpa balançando atrás de mim no vento. Ele se virô quando eu alcancei ele.
A boca de Anna estava aberta, a xícara entre os dedos frouxos. O fogo cuspiu, jogando uma brasa na direção dela. Sylvia a alcançou com o sapato e esmagou-a no chão.
Isso é um sinal de que tá marcada pra morrer, tanto quanto qualquer um. Quando uma brasa voa na sua direção, ocê tá frito.
- E o que aconteceu? - Anna perguntou, os olhos arregalados. Como se estivesse em uma varanda distante trocando histórias inventadas de fantasmas. Como se aquilo
não fosse real.
- Eu empurrei ele pra fora do parapeito. E ele deixou. Nem tentou levantá a mão pra se defende. Só ficou sorrindo enquanto caía. Ocê nunca ouviu um grito daquele
tipo, criança. É do tipo que os coêio dão quando uma coruja crava as garra no pescoço dele. Só que muito mais longo e mais alto.
- Mas tinha uma risada misturada nisso também. Foi aí que me dei conta de que não seria assim fácil se livra do Ephram Korban.
Anna balançou a cabeça. Sylvia podia ver que ela estava pensando sobre o assunto, organizando, tentando fazer as peças se encaixarem. Foi bom ter contado a história,
depois de tantos anos. Talvez agora ela pudesse morrer com o coração leve, se e quando sua hora chegasse. - E o seu bebê? - perguntou Anna.
Sylvia olhou para dentro do fogo. Estava cansada, esmagada pelo peso de mais de um século de assombrações. Mantê-los à distância por todos esses anos não havia sido
fácil, especialmente quando ficaram em maior número. Ela esperava que seus patuás, sua fé e seus encantamentos fossem suficientes. Existiam várias bonecas naquela
pequena cabana, um bando de gente morta.
- O sol tá nascendo. - disse ela. - Ocê tá segura o suficiente agora. Nóis duas precisamo de dá uma caminhada.
CAPÍTULO 37
Malditos pássaros.
William Roth esperava pegar um falcão de cauda vermelha no ar, ou pelo menos algo colorido como um gaio azul ou um cardeal. O jeito escolhido pela natureza foi dar
cores aos machos das espécies, enquanto as fêmeas foram feitas para se misturar com o ambiente. Se pelo menos as fêmeas humanas se comportassem desse jeito, seguissem
a ordem das coisas. Cris e aquela pequena joia chamada Zainab eram tão esquivas quanto as aves dos Apalaches. As únicas coisas aladas por perto eram os corvos, pretos,
feios, observando das árvores à espera de um funeral.
Roth olhou através de suas lentes para o sol que nascia. As montanhas setentrionais dos Apalaches o lembravam das montanhas da Escócia, arredondadas e ricas. Ele
faria alguns rolos de paisagens, que eram sempre as preferidas das revistas de viagens e similares. Se fosse para ele não ter sorte com as mulheres, poderia pelo
menos fazer o dinheiro para pagar as contas.
Ela caminhou para fora das árvores onde a ponte se estendia pelo grande vale de granito e vegetação arbustiva. Muito abaixo, corria um pequeno rio prateado, escorrendo
entre as grandes pedras em seu caminho para o oceano. Korban realmente sabia como viver. Construir uma mansão no topo do mundo, ter uma casa cheia de serventes jovens,
brincar de artista e aproveitar o que a vida tinha de melhor. Quem poderia culpá-lo por não querer deixar essas coisas para trás? Se Roth fosse Korban, ele certamente
viraria um fantasma e ficaria por aqui.
Roth riu de leve. Ele havia visto fotos que as pessoas diziam ser de fantasmas. Roth conseguia repetir o truque simplesmente borrando um negativo ou brincando com
luzes em um quarto escuro. Se fosse dada a ele uma hora, poderia produzir uma centena de exposições duplas ou triplas e ele nem precisaria de um computador para
fazê-lo. Ele poderia colocar Elvis na lua, poderia fazer Ephram Korban flutuar sobre a casa, poderia colocar a cabeça de Cris Whitfield no corpo nu de Marilyn Monroe.
Isso seria um projeto digno de fazer. Ou talvez a garota do Spence, que ele vira antes do amanhecer, vagando pelo solar com um olhar vazio e uma marca azulada no
rosto. Spence deve ter brincado de forma um pouco mais rude que o normal. Talvez Roth pudesse se esconder no banheiro deles e fazer algumas fotos com iluminação
da lareira do velho desgraçado fazendo-a trabalhar. Depois chantageá-lo ou vender as fotos para um tabloide, de um jeito ou de outro ganhando alguns trocados.
Ele caminhou na direção da ponte, mudou para lentes mais longas e avançou o filme. O ar soprou à sua volta, um vento de montanha que podia enregelar os ossos. Mas
não era apenas o vento. Os corvos haviam voado da floresta e agora se empoleiravam sobre os corrimões da ponte. Dezenas deles. Olhando para Roth com os olhos de
vidro negro. Esperando.
- Que inferno. - disse ele.
- O inferno está apenas na mente, Sr. Roth.
Ele se virou e Lilith estava de pé no meio da ponte. Mas que diabos? De onde ela havia surgido?
- Espero que não esteja pensando em nos deixar.
- Hum. Estava só estudando a vista. - disse, levantando a câmera. - A vista deste lugar é perfeitamente adorável.
Ele a olhou atentamente. O vestido preto aderia a seu corpo de um jeito dramático. Ela era um pouco pálida e o lembrava das garotas do norte da Inglaterra, das cidades
industriais onde o nevoeiro e a chuva encurtavam os dias de sol. Ainda assim, ela era jovem e tinha curvas. Se as garotas que serviam eram boas o suficiente para
Korban, por que não seriam para o Senhor William Metelão Roth?
- Muitas coisas agradáveis para se ver por aqui. - disse ele, sorrindo. Mulheres jovens gostavam de seu sorriso. Ou fingiam gostar, o que dava no mesmo.
- Sim. Eu costumava pintá-las. Antes de trabalhar para Ephram Korban.
- Trabalhar para Korban? Ele morreu faz um bom tempo, e você é bem jovem. Ela deu seu próprio sorriso, misterioso e efêmero. Uma ave tímida, aquela.
- Diga-me. - disse ele, tocando gentilmente nas lentes - Você se importa se eu fotografar a mais bela coisa que encontrei desde que cheguei aqui?
- Fique à vontade, Sr. Roth.
Ele levantou a câmera e apontou na direção dela, ajustou o zoom sobre seus seios, focando em um dos mamilos. Sutiãs não eram parte desse uniforme, aparentemente.
Provavelmente calcinhas também não. Essa garota era definitivamente eficiente.
Ele tirou algumas fotos de seu rosto, belamente enquadrado pelos cabelos e olhos negros como os corvos, a pele lisa como as rochas na chuva, os lábios espertos e
vivos com um sorriso. Quando devotou atenção suficiente para adulá-la, disse: - Você nunca tira uma folga? Não me importaria de conhecê-la melhor. Tirar algumas
fotos em um ambiente um pouco mais reservado.
- Isso pode se arranjado, Sr. Roth.
- Pode me chamar de William, amor.
Ela imitou seu sotaque falso. - Certo, William Amor.
Tinha senso de humor, também. Ela seria um prazer de conquistar. Roth moveu-se em sua direção, esperando ficar próximo o suficiente para que ela apreciasse o brilho
de seus olhos acinzentados. Algo passou próximo a seu rosto e ele abanou com a mão.
Deus salve a maldita rainha, era uma aranha!
Ele deu um passo para trás e viu a teia entre ele e Lilith, estendendo-se pela ponte como um arame dourado, o orvalho matinal captando o nascer do sol. Ele detestava
aranhas. Da África ao Ártico, os pequenos seres pulam sobre você com suas presas afiadas. Ele havia lido, não lembrava onde, que não importava onde você estivesse
na Terra, haveria uma aranha a dois metros de você, e acreditava nisso.
Ele olhou para as madeiras toscas da ponte. A desgraçada com listras amarelas estava se dirigindo para uma rachadura, o cérebro de aracnídeo provavelmente rindo
às custas de Roth. Ele pisou com a bota na aranha, raspando nos veios da madeira, mandando sua alma de aranha para o inferno onde, com um pouco de sorte, Deus as
alimentava com nada mais que DDT.
- Desculpe, amor. - disse ele para Lilith - Espero que ela não a tenha incomodado.
O sorriso perpassou os lábios finos, rápido como um inseto. - Você não a matou, você a entregou.
- Como assim?
- Coisas vivas nunca morrem, elas apenas se movem pelos túneis mais profundos da alma.
- Hum, certo, certo.
- Agora, se você me desculpar, A Srta. Mamie provavelmente está se perguntando onde estou. Não posso ficar longe da casa por muito tempo.
Ela passou por Roth e ele sentiu o sopro de sua fragrância. Ele apreciava esse tipo de coisa, colecionava fragrâncias do mesmo modo que outros colecionavam números
de telefone ou roupas íntimas. Essa cheirava um pouco como terra e um pouco como fruta madura e suculenta.
Ela parou no final da ponte. - Eu o vejo depois, então.
- Não perderia isso por nada na vida. - disse ele e observou seu belo e pequeno traseiro balançar enquanto ela caminhava pela estrada arenosa que levava ao solar.
Quando ela desapareceu no meio das árvores, ele voltou a atenção para a paisagem. As escarpas haviam perdido o brilho, agora que o sol havia nascido. Era melhor
ele pegar as coisas e voltar.
Os corvos observaram enquanto ele colocava as lentes nos estojos. Os malditos pássaros não tinham medo. Ele pensou em enxotá-los, dispersando-os pelo vale. Ah, deixa
pra lá. O dia era promissor com a bela e suave Lilith na agenda.
Ele estava se preparando para voltar para o solar e tomar café da manhã quando viu a teia novamente. Ainda esticada com aqueles padrões finos e sinistros, no mesmo
lugar. Lilith havia passado por dentro dela. E ainda estava lá, inteira e perfeita, pronta para pegar coisas do ar.
Esse lugar o deixaria maluco se não tomasse cuidado.
CAPÍTULO 38
Mason arrancou a casca do carvalho, empolgado com o cheiro tânico da madeira. Ele trabalhou com a machadinha, raspando como se estivesse tirando a pele de um animal.
O tronco estava escorado com algumas tábuas velhas, complicado de trabalhar à volta, mas a arte nunca era um processo fácil. Com os arames que aumentavam o suporte,
o carvalho havia esperado seu toque como um amante masoquista e desnudo em uma câmara de tortura.
As faixas avermelhadas de casca empilhavam-se a seus pés e ele tropeçava nelas conforme tocava na superfície lisa da madeira. Aqui ficariam os braços, um joelho
aqui, um ombro forte lá. Esse nó poderia ser um pulso.
Ele não havia mentido para a Srta. Mamie. A estátua valeria o trabalho. Nada realmente grande era criado sem algum grau de risco. Sofrer pela arte, esse era o ingresso
para o topo. Sacrificar tudo e todos, especialmente a si mesmo.
Mason manejou a machadinha de lado, na área que seria o pescoço. Ele a puxou para trás e bateu novamente, e de novo, o contorno da forma impresso em sua mente, suas
mãos certas do que fazer. Ele entalhou até que seu ombro e bíceps queimaram, removendo as sessões de madeira morta que bloqueavam a emergência da verdadeira forma.
As chamas nas extremidades das velas vibravam conforme o ar se agitava com os impactos e sua respiração.
Quando não pôde mais levantar o braço, Mason deu um passo para trás e afastou as aparas de madeira com o sapato. Moveu-se através do espaço do estúdio e estudou
o tronco de diferentes ângulos. A altura dos ombros, o ângulo do cotovelo, a distância entre os pés, tudo tinha que ser precisamente medido. Enquanto estava dando
um passo para trás para ter outro ângulo de visão, tropeçou na pintura a óleo que havia escorado no armário.
Ele se ajoelhou e pegou-a. Novamente, foi atingido por sua beleza singular. Como ele se sentiria se seu trabalho nunca saísse do porão, se ficasse para sempre nas
trevas, para nunca ser apreciado e admirado? Seu trabalho seria melhor que isso, mas o pintor tinha talento. As pinceladas macias e as cores, o tom de branco do
solar, o esplendor da floresta notuma, as nuvens turbulentas tão vivas quanto a realidade.
Ele olhou mais de perto, para o topo do solar. O borrão junto da balaustrada estava mais claro agora e havia se estendido por vários centímetros sobre a pintura.
Mason olhou para dentro do nevoeiro e piscou. Havia ângulos e formas no borrão. Ele trouxe a lamparina da mesa e a inclinou na direção da pintura.
Mason traçou o formato de uma das figuras com o dedo. A forma era de um branco acinzentado mais profundo que o borrão, sugerindo uma figura humana. Mais formas flutuavam
além dela, além da linha pálida e grossa que retratava o parapeito da balaustrada. Pessoas?
Pessoas ficariam deslocadas naquela pintura. O solar era o motivo, uma imagem tão dominante por si própria que manchá-la com humanidade seria um insulto cruel. Será
que alguém mais havia feito a mesma observação que Mason e tentado cobrir aquelas pessoas no telhado? Ou o artista se dera conta, ao completar a obra, e tentara
corrigir isso antes que o óleo secasse?
A Srta. Mamie saberia, ou talvez Lilith, que mostrara interesse na pintura. Talvez lhe fosse permitido levar a pintura para seu quarto e pendurá-la ao lado do retrato
de Korban Um mestre e seu dominio.
Ele encostou a pintura novamente no armário. Seu próprio trabalho era mais importante. Esse era o primeiro lema de um artista. Dever criativo em primeiro lugar,
tudo o mais em segundo.
Alem disso, Mama estava observando.
A madeira o chamou na linguagem dos não nascidos. Ele respondeu, com formão e garras, dentes e machadinha, lamina afiada e alma faminta.
CAPÍTULO 39
Adam encontrou a Srta. Mamie após o café da manhã. Estava sentada em uma cadeira da biblioteca com as mãos sobre o colo. Estava vestida em um tom verde-floresta,
o vestido mostrando a pele pálida de seu colo. Ela havia trocado seu colar de pérolas por um colarinho apertado de seda.
Ela levantou as mãos, revelando alguns pedaços de madeira espalhados sobre um tecido. Tinha uma faca em uma das mãos, cavacos de madeira aderidos à lâmina. Enquanto
Adam observava, ela cortou um pedaço grosso de vinha e começou a enrolá-lo no que pareceu o torso de uma boneca. A cabeça da boneca parecia uma fruta escura e enrugada,
as feições esticadas e distorcidas pela secagem.
Os Abramov estavam na outra extremidade da biblioteca, distantes da lareira e da luz do sol que penetrava pelas janelas altas. Eles estavam tocando um minueto em
andante que lembrava Mozart. As notas ricas vibraram contra a pele de Adam.
Ele se sentou no sofá à frente da Srta. Mamie e curvou a cabeça em silêncio respeitoso. Observou os dedos dos músicos pairarem sobre as cordas. O duo cresceu seu
tempo e então passou por uma recapitulação, brincando com a melodia antes de finalmente sustentar as notas tônicas e quintas do finalle. Adam e a Srta. Mamie aplaudiram
juntos.
- Bravo! - disse ela - Extraordinariamente delicado. Ephram Korban ficaria satisfeito. Enquanto os Abramov começavam uma nova peça, Adam reclinou-se na direção da
Srta. Mamie - Como está a senhorita?
- Muito bem, Sr. Andrews. Você gosta do meu pequeno hobby? Um antigo artesanato apalachiano, ensinado pelo próprio Ephram. Dizem que quando você entalha uma boneca
dessas, está criando um lar para uma alma perdida.
- Parece ruim para as mãos.
- Mas elas são presentes amáveis. O que pensa dessa aqui?
Ela segurou a figura encarquilhada, com os membros retorcidos dando um ar aleijado ao triste objeto. Era horrível, os olhos toscos, um maior que o outro.
- É maravilhoso. Penso que Daniel Boone não teria conseguido fazer melhor.
- Está apreciando a hospedagem até agora?
- Na verdade, gostaria de falar sobre isso com a senhorita. Decidi encurtar minha estadia. Tenho, hmm, negócios urgentes para resolver.
A sobrancelha da Srta. Mamie escureceu e ela apertou os lábios. Largou a pequena figura de madeira e ela caiu ao chão, a pequena e estranha cabeça rolando para longe.
- Ah, minha nossa, que queda enorme. - disse ela, em um tom tão baixo que Adam mal a ouviu.
Adam levantou a mão. - Não estou pedindo um reembolso. Meu colega de quarto ficará.
A Srta. Mamie olhou pela janela. Uma nuvem deve ter passado sobre o sol, pois a biblioteca ficou mais escura. A melodia dos Abramov mudou para um tom mais soturno
e começou a revolver em torno de um agitato.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
- Eu sei que a van não retornará nas próximas semanas. Gostaria de saber se seria possível outro tipo de solução.
- Você não compreendeu. Ninguém pode sair. Especialmente você.
O rosto da Sra. Abramov se fechou, enquanto ela aumentava o ritmo de sua melodia caótica. Havia restado pouco da beleza original da música que estava sendo extraída
dos instrumentos pelo casal fazia poucos minutos. As notas agora eram mais um lamento torturado que uma música.
Adam olhou pela janela. - Um dos empregados não pode me levar a cavalo? Eu vi dois dos hóspedes em montarias outro dia.
- Ainda não é a hora. - disse a Srta. Mamie, finalmente desviando o olhar da janela. Seus olhos brilhavam com algo que Adam considerou ser raiva. - A festa é hoje
à noite. Um encontro encantador, sob a luz do luar na balaustrada do telhado. É como uma tradição sagrada no Solar Korban.
- Posso pagar mais pelo trabalho. Sei que isso é muito inconveniente.
* * *
A Srta. Mamie pareceu furiosa e tocou o medalhão fora de moda pendurado em seu colarinho. - Ele... ele não quer que você se vá.
- Paul?
A Srta. Mamie pareceu se recuperar um pouco. - Black Rock é a meio dia de distância em um cavalo. E você pertence a esse lugar.
A música de cordas aumentou em intensidade, fragmentando-se em um caos cromático.
- Vou a pé, então.
A música parou abruptamente, tremendo no ar, constrangida em seu isolamento.
- Ninguém pode ir embora. - disse ela.
Adam seguiu seu olhar até o retrato de Korban sobre a lareira, a mesma face que lhe havia sussurrado palavras no pesadelo que tivera sobre os túneis da alma. Adam
estremeceu. A própria casa ficou sotuma, como se as paredes estivessem escuras de irritação. O ar estava pesado e mesmo o fogo da lareira não deixava o ambiente
mais animado. Adam aproximou-se da lareira e esfregou as mãos, tentando eliminar os restos do pesadelo de sua mente.
Ele olhou para a boneca quebrada. Um pedaço de tecido estava inserido no interior de uma fenda do torso. Algodão cinza, como de seu pijama.
- Continuem a tocar. - disse a Srta. Mamie aos Abramov.
CAPÍTULO 40
Roth encontrou Spence na área de fumantes, sentado em uma cadeira de balanço cujas pernas pareciam se curvar para fora com o esforço de sustentá-lo.
- Como está nosso Shakespeare? - perguntou Roth.
O escritor já bebera algo, provavelmente uísque, a julgar por sua aparência. Não eram nem dez horas da manhã. Spence certamente estava vivendo conforme sua reputação.
Roth havia suspeitado que o escritor havia afetado uma indulgência ao álcool tão falsa quanto suas conquistas ou o sotaque de Roth.
- Melhor impossível, como sempre. - disse Spence, o rosto pálido e os olhos quase rosas pela falta de sono.
- Você gostaria de alimentar os críticos com uma pá, não é mesmo? Quero dizer, eles foram terrivelmente duros com você nos últimos anos.
Spence deixou sair um suspiro úmido, sua papada flexionando como um verme gordo. - Existe apenas um crítico que eu gostaria de acertar. Meu primeiro.
Roth se sentou em uma cadeira de vime finamente trançado e colocou a bolsa da câmera no chão. Se trabalhasse direito, um Spence aos frangalhos seria uma excelente
adição à galeria de celebridades doentes de Roth. Porque Spence estava cabeça e pescoço à frente de uma corrida rumo a um desfiladeiro invisível.
- Sua velha mãe, aposto. - disse Roth - Elas podem ser bem opressoras.
- Minha mãe era uma santa. O crítico a que me refiro está morto faz um bom tempo. Mas tenho minhas esperanças de que Deus misericordioso me colocará frente à frente
com ele na vida além túmulo.
Roth sorriu. - Claro, de que serve o céu se você não pode se vingar de seus velhos inimigos? Spence tomou um grande gole de uísque. - Você está me entediando Sr.
Roth. Eu odeio tédio.
- Escute, amigo, tive essa ideia...
- Deixe-me adivinhar. Você tem um livro que gostaria que eu escrevesse e vamos dividir o dinheiro depois que eu fizer o trabalho.
- Não tão simples assim. Estava pensando em um livro grande sobre Korban. Farei as fotografias, farei a parte de pesquisa, converterei alguns desses retratos em
arquivos digitais. Tudo o que você tem que fazer é colocar seu nome na capa e digitar algumas páginas de introdução.
- Meu nome não é mais o que foi um dia.
- Esse projeto é muito natural. Um ricaço excêntrico constrói para si um império rural e então morre de um jeito misterioso. Podemos inclusive adicionar a parte
de assombrações. Não tenho problemas com inserir alguns orbes transparentes ou pó de pirlimpimpim sobre o negativo.
- Falando de fadas. - disse Spence. Através dos vidros da varanda, puderam ver um jovem carregando uma câmera de vídeo para a floresta.
- O amiguinho dele permite que saia assim sozinho? Pareceu ser do tipo grudento e ciumento.
- Roth havia sido levado a experimentar meninos esporadicamente, quando não havia meninas por perto. Homens tinham arestas meio rudes para seu gosto, mas ofereciam
um elemento de perigo que nenhuma mulher conseguia igualar. Ainda assim, Spence era empertigado com esses assuntos, de forma que era melhor parecer homem. Ele não
fez nenhum comentário.
- Ephram Korban teria desprezado esse tipo de fraqueza moral depravada. - disse Spence.
- Você fala como se o conhecesse.
- Não, mas eu o compreendo. Posso senti-lo. Essa casa lhe pertenceu, mais do que uma simples possessão material.
- Ah, você acredita nessa viagem de fantasma?
- Eu senti o espírito me animar.
Roth se perguntou quantas bebidas o homem havia derrubado com o café da manhã. - Então, por que não um livro? Podemos fazer como um tributo, se você achar melhor.
Spence levantou-se com esforço. - Antes quero escrever um romance barato, algo com vampiros, um papa marciano ou uma conspiração governamental. Com uma trama amorosa
suspeita. Alguém tem que ter algum tipo de amor para fazer a panela esquentar.
- Pense sobre isso.
- Com licença, tenho um trabalho a fazer. Trabalho de verdade. - Spence carregou o copo vazio para a biblioteca, sem dúvida para enchê-lo.
Roth se sentou à sombra da varanda. Imaginou Spence morto em uma banheira, o corpo gordo, tripas esbranquiçadas à vista em uma foto de duas páginas em um tabloide.
Moby Dick. Essa seria uma fotografia que valeria mais que mil palavras. E vários milhares de dólares.
Como fazer aquele coração cansado explodir? Talvez um sexo a três com Bridget e Lilith? Ou talvez Paul e Adam sobre ele? Com sua homofobia, Spence provavelmente
tinha alguns bons esqueletos guardados no armário.
Roth sorriu. Havia um jeito mais fácil, um que não envolvia a cumplicidade de terceiros.
Se Spence estava tão apaixonado por seu maldito trabalho, o que aconteceria se ele acabasse na lareira? Melhor ainda, ele poderia colocar a culpa em algum fantasma.
Quem poderia provar o contrário?
CAPÍTULO 41
O vento passou pelas árvores que circundavam o cemitério, uma música solitária para um lugar final de descanso, no alto da montanha. Sylvia apoiou-se em seu bastão,
olhando a partir da cerca, o corpo muito frágil para arriscar-se em uma escalada. A velha ajoelhou-se na grama, procurando pelo chão por um minuto, então pegou algo
e passou pela cerca para Anna. Era um trevo de quatro folhas.
- Para dar sorte? - perguntou ela.
- Melhor que sorte. Deixa ocê vê os morto.
- Eu já faço isso.
- Só quando eles qué. Esse aí dá o poder sobre eles. - Sylvia acenou com a cabeça na direção da sepultura de Rachel Faye Hartley. - Aquela ali é que ocê vai querer
chamá.
- Chamar?
- Que venha o fogo, e o morto aparece. Diz isso trêis vêis. É o feitiço.
- Não posso fazer isso.
- Tá no seu sangue. Só tem que acreditá.
Anna olhou para a pedra fria, as flores esculpidas por alguma mão delicada, um buquê que nunca murchava. Ela acreditava em fantasmas e assim os via. E desde que
ela havia chagado ao Solar Korban, os via melhor que nunca. Talvez sempre tivesse sido uma questão de fé. Parte da crença poderia vir dos espíritos mortos e o fantasma
tinha que se imaginar de volta ao reino dos vivos.
Talvez Anna e o fantasma tivessem que se encontrar na metade do caminho em uma união de almas tristes e escravizadas, e se ela apenas tivesse que recitar um velho
encantamento das montanhas, isso não era pedir demais. O fantasma, nesse caso uma pessoa que vivera com o nome de Rachel Faye Hartley, é que teria que fazer o real
esforço. Afinal de contas, seria Rachel que teria que sair da eterna e negra paz dos escombros para ascender e retornar a um mundo que talvez fosse melhor esquecer.
Um mundo que tinha apenas uma promessa de dor e solidão.
Anna olhou para o trevo. Será que conseguiria acreditar nessa magia? Com o câncer devorando sua carne, ela teria que colocar toda sua fé na permanente existência
da alma ou, de outra forma, seria melhor ela própria pular do telhado do Solar Korban. Sem fé, de que adiantava?
Ela fechou os olhos e disse as palavras. - Que venha o fogo, que venha o fogo, que venha o fogo.
Um calafrio a envolveu, uma suave friagem imortal. Quando ela abriu os olhos, a mulher de branco estava a sua frente, o buquê em suas mãos diáfanas. Era como se
Anna estivesse olhando em algum espelho, pois se reconheceu no rosto pálido e transparente.
- Anna. - disse a mulher, naquele mesmo tom murmurado que assombrava seus sonhos, que a havia chamado na trilha e a levado pela floresta até onde o espírito de George
Lawson a havia agarrado com a mão decepada.
- Você. - disse Anna - Foi você que me chamou para vir para cá. Não foi Ephram Korban!
- Você se tornou uma linda mulher, como sempre imaginei. - As palavras eram como jatos de água fria.
- Do que você está falando?
- Odiei mandar você para longe. Pensei que era o único jeito de salvá-la dele. Mas eu não sabia.
- Mandar-me embora? - Anna olhou para Sylvia, que puxou mais o xale à volta dos ombros ossudos. Sylvia balançou a cabeça, o rosto cansado, as rugas aumentando, como
se houvesse envelhecido cinquenta anos desde que chegara ao cemitério. Anna olhou para o fantasma de Rachel, de volta para Sylvia e novamente para o fantasma. Seus
olhos eram do mesmo formato, a sobrancelha arqueada escura, o mesmo ar de mistério. Iguais às de Anna.
Iguais às de Anna.
- Você é ela. - A constatação cortou Anna com a lenta certeza de uma geleira se movendo, mais implacável que o câncer, uma verdade impossível que era ainda mais
horrível porque o impossível tornara-se ordinário.
O sangue de Anna congelou-se nas veias, tão duro quanto a geada que ainda brilhava nas sombras das lápides.
- É tudo minha culpa. - disse Rachel - Esse é o meu pesar, isso é o que me assombra no túnel da minha alma. O medo que Ephram usa para me controlar.
- Ephram Korban. O que me importa ele? - As lágrimas de Anna corriam sobre o rosto como que traçados por dedos sem vida. Os lábios fantasmagóricos abriram-se e a
forma de Rachel brilhou sob o nascer do sol. - Foi duro para mim perder você, pior que morrer. Pior ainda que estar morta. Porque estar morta é a mesma coisa que
estar viva, só que pior.
- Duro para você. - disse Anna - Todas as noites, em cada novo lar adotivo, cada vez que algum estranho me dava abrigo, eu rezei para Deus que você deveria sofrer.
Mesmo nunca tendo conhecido você. Porque nunca pertenci!
- Eu também sofri!
- Eu odiei você por não ter estado lá, por nunca ter existido. E agora eu encontro você e você ainda não existe.
- Você não entende, Anna. Precisamos de você.
- Precisar, precisar, precisar! E eu? Eu também tive necessidades. - Anna jogou o trevo na grama da sepultura, os soluços a sacudindo. - Vá embora. Eu não acredito
em você.
- Anna. - disse Sylvia - Ela pode tá morta, mas ela tem sangue.
- Você pode ficar com seu sangue. Para mim, chega! - Anna moveu-se entre as pedras, a visão borrada pelas lágrimas, mal ciente de seus pés, apenas querendo estar
distante, de volta ao mundo ordinário da dor, da solidão comum.
A voz de Rachel atravessou a grama, enfraquecida, como que vazando de dentro da boca de um túnel interminável. - Ele nos assombra, Anna. Estamos mortos e ele ainda
nos assombra.
Anna sequer diminuiu o ritmo. Ela havia vindo para cá para encontrar seu próprio fantasma. Agora ela havia feito isso e era ainda pior do que poderia ter imaginado.
Seu fantasma não conseguiu lhe dar conforto e o consolo de uma vida após a morte. Seu fantasma lhe trouxera a promessa de solidão eterna, a prova de que ela nunca
pertenceria, não importa qual lado da sepultura a reivindicasse.
- Ocê não tem ideia de como é. - gritou Sylvia atrás dela, as palavras varridas pelo vento de outubro. - É muito pió perdê uma fia. Eu sei do que tô falando. Porque
eu perdi a Rachel.
Anna parou próximo da sombra do mausoléu de Ephram Korban. Ela se virou e o movimento pareceu tão lento quanto o giro da terra, rugas de pesar raivoso em sua face,
a carne anestesiada por essa nova verdade impossível.
Ephram Korban e Sylvia. Então Rachel.
E Anna.
O nome de Korban flutuou à sua frente como uma neblina úmida, como se as letras esculpidas no mausoléu dessem peso às palavras de Sylvia. Sangue. O sangue de Ephram
Korban corria nela, tão manchado como aquele lado ancestral que a havia amaldiçoado com a Visão, tudo atado a essa montanha antiga em solo apalachiano, uma terra
entristecida que não podia nem segurar seus cadáveres.
Sylvia chamou mais uma vez, mas Anna não estava escutando. Ela pulou a cerca, o coração em fogo com um único desejo.
Que os mortos continuassem mortos.
Que os mortos continuassem mortos para sempre.
CAPÍTULO 42
Mason limpou o suor da testa. Ele havia tirado a camiseta, mas o estúdio ainda era quente demais. Lascas de carvalho estavam sobre seus braços e peito. Seus ombros
haviam cruzado o ponto de simplesmente doer. A dor havia se transformado em um tambor surdo batendo constantemente no fundo de sua cabeça.
Seu instrutor de escultura em Adderly, Dennis Graves, havia lhe dito que a chave para a arte estava na resistência. A primeira peça de Mason havia sido a palavra
"resistência" em um bloco de pinheiro. Aquele esforço desajeitado hoje encontrava-se deitado sobre o aparelho de televisão agora morto de sua mãe. Mason havia dado
a escultura a ela como uma criança do jardim de infância traz para casa uma pintura feita com os dedos. Isso foi antes de sua cegueira, apesar de que, quando sua
visão se fora, ela o segurava no colo e corria os dedos sobre as letras.
Algum dia ele lhe daria outra escultura com uma palavra só pra ela: "sonhos".
Ele a faria em bronze ou cobre, algo durável. Talvez até granito. Mas a palavra seria muito pesada. Talvez ela ficasse pesada mesmo com pau balsa ou ar.
Mason havia terminado a etapa com a machadinha e o enxó. A forma grosseira estava terminada. O céu havia ficado escuro no porão de pequenas janelas. Não sabia se
isso significava chuva ou se o fim do dia se aproximava. Ele havia perdido há muito a noção do tempo.
Mason trabalhou com seu formão largo e maço, aplainando sessões do carvalho. Os veios estavam cooperando, como se estivessem com pressa de adquirirem logo sua forma
final. A estátua estava se revelando muito rapidamente e não era possível que ele já estivesse tão adiantado assim. Era quase como se a madeira estivesse bombeando
de volta a energia através de suas ferramentas para suas mãos.
Claro, Mase. Qualquer coisa que queira pensar. Liberdade criativa.
E olhe só, os ombros estão retos, um dos braços de Korban estará cruzado sobre o estômago, o outros atrás, nas costas. Uma postura aristocrática. Um homem que sabe
a que veio.
O espaço vazio do porão engolia os sons de metal no metal e metal na madeira.
Saia daí, Korban. Sei que está aí, em algum lugar no interior desse pedaço esquecido de carvalho. CANTE para mim, seu velho desgraçado e belo. Levante-se e caminhe.
Mason fechou os olhos rapidamente quando um jato de poeira veio na direção de seu rosto. Ele direcionou o formão para um espaço ao lado do braço esquerdo da estátua.
Resistência. Sonhos.
Ele teria que mandar outra palavra para Dennis Graves. Espírito.
Você tem que ter espírito, de outra forma, está perdido. O material tem que ter espírito. Você não conseguiria espremer alma de uma pedra. Ela deveria já existir,
teria que ter existido para sempre, esperando lá para que o artista a liberasse.
O vento da respiração do espírito soprou dos quatro cantos. É de lá que vinham essas imagens de sonhos. Não eram novas visões ou ideias de verdade. Eram coisas que
já existiam, que apenas tinham que ser reveladas para as mentes humanas.
Certo. Certo. Agora você está se perdendo, cabeça de bagre.
A pretensão artística é esperada, e toda aquela balela poderia se tornar útil depois de você ser "descoberto". Mas agora, a realidade é que você está levando uma
surra de trabalho e não consegue parar. Você deveria dar uma pausa para comer e descansar.
Mas VOCÊ NÃO CONSEGUE PARAR.
Mason enrugou o rosto numa careta e martelou o formão no flanco do quadril. Ele achava que não era um bom sinal quando as pessoas começavam debates filosóficos consigo
mesmas. Ele deveria estar em um transe criativo. Ele queria isso, procurara isso, rezara por isso para os deuses dos sonhos impossíveis.
Olhou para o busto de Korban e ele pareceu sorrir de volta de cima da mesa. Os lábios de madeira se separaram: - Então, por que você não consegue parar?
Posso parar quando quiser.
- Certamente. Eu acredito em você, Sr. Jackson.
Olhe, você não pode simplesmente ligar e desligar a criatividade quando quiser. Você deve acompanhá-la enquanto tiver condições, deve segurar a mão da Musa enquanto
ela quiser dançar com você.
- Ótimo. Sem argumentos. Mas vamos ver você parar.
Certo. Mas quero que você saiba que os músculos dos meus ombros, braços e dedos gritarão de dor porque eles estão mais apertados que um carretel de linha industrial.
Além disso, estou fazendo isso pela Mama, não por mim.
O busto disse: - Desculpas, desculpas.
Vou mostrar a você. Lá vamos nós...
Mason acertou o formão. Cinco centímetros de madeira vermelha foram arrancados de um lugar que seria o joelho de Korban. Ele reposicionou a lâmina e preparou o maço
para outra pancada.
O busto riu, um som parecido com o farfalhar de roedores. - Você não está parando.
Certo. Deixe o meu caso em paz. Apenas tenho que me ACOSTUMAR com a ideia.
Mason entalhou outra apara de carvalho e então olhou para suas ferramentas espalhadas pelo chão por entre a sujeira de madeira.
Viu? Posso desviar os meus olhos se quiser. Apenas como um experimento, vou pensar em outra coisa além da estátua de Ephram Korban. Consideremos, por exemplo, a
adorável Anna Galloway...
Mason pausou, uma gota de suor dependurada na ponta de seu nariz.
- Ah, então é justo que Anna faça seu coração cantar. - disse o busto - Você pode tê-la, sabia? Quando acabar. Eu prometo. E eu sempre cumpro minhas promessas.
Mason apertou os dentes e deu ao martelo um balanço mais forte que o normal. Ele poderia parar a qualquer momento que quisesse. Ele não queria pensar nela agora.
Não queria pensar, não queria pensar, não queria pensar -
- Com quem estava falando, eu me pergunto?
Mason girou, o martelo na mão, levantado como se fosse atacar um agressor. William Roth afastou-se, os olhos acinzentados arregalados de surpresa. Ele quase deixou
cair as garrafas que estavam em seus braços.
- Calma, companheiro.
Mason baixou o martelo. A magia estava quebrada. - Desculpe-me, acho que me deixei entusiasmar, por um instante.
* * *
- Pareceu mais que apenas um instante para mim. Você tem trabalhado nessa coisa sem parar?
Mason aquiesceu. A dor na parte de trás das costas mandou as primeiras pontadas vermelhas a seu cérebro. Ele esfregou seu bíceps direito.
Roth olhou por trás de Mason para a estátua. - Meu Deus, como você conseguiu fazer tanto assim já? Você deve estar trabalhando como se fosse uma manada de castores!
Mason olhou para a estátua e tentou vê-la como Roth a via.
Todos os membros estavam claramente sugeridos na madeira e era distinguível a figura humana. A cabeça era um bloco sem feições, mas em proporções exatas com o resto
do corpo. As pernas se erguiam da base com vibração e força.
- Está surgindo. - disse Mason - Prometi a Srta. Mamie que ficaria encantadora.
- Por que a pressa? Você vai acabar arrebentando uma artéria, se continuar desse jeito.
- Diga-me, posso lhe perguntar uma coisa? - disse Mason.
- Contanto que abaixe o martelo.
Mason colocou o martelo sobre a mesa ao lado do busto. - Dê uma olhada nessa pintura. Roth colocou as garrafas sobre a mesa e Mason levantou a tela na direção da
luz da lamparina mais próxima.
Roth franziu os lábios em aprovação. - Uma pintura e tanto.
- O que você vê naquele borrão ali, no topo do solar? Junto do parapeito da balaustrada? Roth se curvou na direção da pintura e observou as formas. - Parecem pessoas,
para mim.
Pergunto-me quem teria arruinado a pintura.
- Você acreditaria se eu lhe dissesse que não existiam pessoas ali dois dias atrás?
Roth olhou para Mason e então de volta para a pintura. - Eu diria que seu traseiro está apitando mais que uma chaleira, de tanto trabalhar.
- Bem, talvez tenha alguma coisa a ver com os produtos químicos usados na pintura. Isso me intrigou, só isso. Como sou um artista, sei o que significa chegar próximo
da perfeição.
Roth deu sua risada alta. - Não se iluda com toda essa conversa ruim sobre artista. É tudo uma questão de oportunidade de vender o que puder.
Mason esfregou o queixo e sentiu a barba por fazer. Ele estava negligenciando sua higiene. Podia sentir o odor de suas axilas. Para Roth, o estúdio deveria estar
fedendo como a lavanderia de uma academia de ginástica. Mason ajoelhou-se e retirou a camiseta, balançando os cavacos de madeira. Olhou de soslaio para a estátua
e sentiu-se culpado por pensar em abandoná-la.
- O que está fazendo por aqui? - perguntou a Roth, antes que sua mente ficasse fixa em Korban novamente.
- Preciso revelar alguns negativos. A Srta. Mamie disse que poderia usar a adega. Escuro o suficiente por aqui, não acha?
- E quente também. Eles devem manter essa fornalha a toda. É do outro lado daquela parede ali. Eu os ouço alimentando-a a cada três ou quatro horas.
- Esse tal de Korban não deve ter sido muito do tipo "salvem as árvores".
Mason olhou novamente para a estátua. - Talvez, de algum modo insano, ele seja as árvores.
- Vá pegar um pouco de sol, Mason. Você está ficando fora de órbita.
- Talvez você tenha razão.
- Relaxe um pouco, divirta-se outro tanto. - Roth sorriu, brilhando seus dentes vulpinos. - Vá tentar a sorte com aquela garota, a Anna. Ela é o seu estilo.
- Não, obrigado. Tenho preocupações suficientes. Melhor colocar um pouco de comida para dentro, para que eu possa terminar essa coisa.
Das escadas, Mason deu uma última olhada na estátua que se tornaria Ephram Korban. Ficaria maravilhosa. Demris Graves comeria seu martelo de iiNeja. Essa cria<;:ao
estava se moldando para tornar-se um deus.
CAPÍTULO 43
Spence chorou.
A beleza, a elegância da prosa, estava se derramando sobre ele como a maré negra em seu romance. Ele podia senti-la se aproximando. Com cada sentença, cada preposição,
cada pontuação, ele se aproximava da Palavra.
As chaves tilintaram quando bateram na carruagem, o sino badalante do retorno anunciando a gloria vindoura. Spence mal podia enxergar a página através do borrão
de suas lágrimas, mesmo com o sol se pondo pela janela, mas ele não tinha necessidade de ver. O escritor fantasma estava comandando seus dedos, fazendo-os voar sobre
as teclas, as palavras nem remotamente mais suas.
Spence se perguntou se isso faria diferença. A palavra autor era derivada de autoridade. Ele sempre se orgulhara de estar sob controle e de sua maestria sobre a
linguagem, dos malabarismos com o alfabeto, truques com os verbos, do esplendor dos substantivos. Mas isso era uma escrita inabitada, uma linguagem mais profunda,
as fendas entre o som e o pensamento. Comunicação que adentrava diretamente no coração da verdade.
Ele estava vagamente ciente da presença de Bridget na cama. Ele iria até ela quando a escuridão chegasse. Uma nova força surgira em sua carne, seu sangue rejuvenescido,
seu poder de efetuar restaurado. As dádivas e bênçãos da Palavra. O ato do sacrifício sempre retornava algum poder para aquele que se sacrificava.
O quarto estava frio, mesmo com o fogo crepitando e subindo pela chaminé como se ansiasse pela liberdade do céu. Seus dedos estavam duros como pingentes de gelo,
mas ainda assim acionavam as teclas, a música de cubos de gelo em um copo. Ephram Korban observava Spence do retrato, o mais encorajador dos editores, os olhos negros
sugerindo guinadas na trama.
Bridget poderia esperar, impaciente e ansiosa no calor da cama. Por agora, havia apenas a página. A última página.
Spence suspirou. O final era sempre uma pequena morte. Aquela palavra agridoce, "Fim".
Talvez Fim fosse a única e verdadeira Palavra. A única palavra que sempre tivera importância.
CAPÍTULO 44
O solar deu as boas-vindas a Anna quando ela chegou. O acabamento escuro, o pé-direito alto e o fogo rugindo na lareira da sala de estar. E Korban, o velho benevolente
Ephran, Vovô Ephram, sorriu amavelmente de seu posto vigilante sobre a lareira.
Talvez ela realmente pertencesse a esse lugar. Tanto quanto qualquer outro. Ela não pertencia a nenhum outro lugar, no fim das contas. E o Solar Korban era o fim
do mundo, o tipo de lugar no qual Anna merecia passar seus últimos dias, andando por esses cumes batidos pelo vento no meio do duro coração do inverno apalachiano.
Se morresse aqui, seu espírito atenderia ao verdadeiro chamado, seu fantasma poderia flutuar sobre o solar do mesmo modo como vira várias vezes em seu sonho.
E era isso assim tão ruim?
Contanto que Rachel Faye Hartley permanecesse na sepultura ou assombrasse as trilhas de Beechy Gap, nunca cruzando esse portal de pedra e madeira, Anna poderia ficar
tão satisfeita quanto qualquer coisa moribunda e inquieta. Olhar pela balaustrada do telhado, como uma viúva sem um marido pelo qual chorar, nem mesmo uma mãe, esperando
pelo que quer que viesse depois da passagem para a eternidade. Poderia uma vida após a morte ser pior que sua vida atual, pela qual ela passara sem nenhum efeito
positivo, nunca sabendo o completo e misterioso poder do amor?
Não. A morte nunca poderia ser tão ruim quanto sua vida, uma vida que o câncer invadira, na qual ela havia sido abandonada, na qual andara um milhão de tristes quilômetros
sozinha.
- Anna?
Deus. Não ele, não agora. Ela limpou rapidamente os olhos, fingindo que haviam sido atingidos pela fumaça que veio da chaminé quando o vento deu uma guinada. - Oi,
Mason.
- Estou contente de encontrar você. Estava precisando lhe perguntar algo.
- Contanto que não seja pessoal.
- Ei, você está bem? Parece um pouco mexida.
- Como se tivesse visto um fantasma? - Anna conseguiu dar uma risada amarga.
- Bem, é mais ou menos isso que gostaria de perguntar a você. Porque há uma pintura do Solar Korban lá em baixo no porão - Anna moveu-se para perto do calor convidativo
da lareira do saguão de entrada, esfregando as mãos. O movimento tinha a intenção de manter uma certa distância entre ela e Mason, mas ele se aproximou desconfortavelmente
dela. Ele olhou os corredores e então falou, a voz mais baixa.
- A pintura tem um borrão sobre o telhado - disse ele - e o modo como a pintura está se degradando, parece que o artista talvez tenha escondido algumas figuras em
uma camada mais profunda da pintura, como uma imagem subliminar. Porque o borrão está começando a se parecer com pessoas.
- Os artistas não reciclam suas telas algumas vezes? Talvez o pintor tenha pintado por cima de um erro ou esboço rápido.
- Bem, foi isso que eu pensei, também. Mas agora consigo ver seus rostos.
Anna olhou para o retrato de Korban, se perguntando quantas vezes aquele rosto havia vivido na imaginação febril de algum pintor, quantas incontáveis horas seu parente
a muito morto havia se sentado em repouso empertigado como um objeto de adoração. Mesmo Cris havia comentado sobre como o solar e o rosto de Korban ficavam rondando
sua mente até que tudo que seus dedos conseguiam era desenhá-lo em carvão, tinta e lápis de cor. E Mason havia contado para Anna sobre o busto de Korban, como a
imagem do falecido assombrava seu sono e o impulsionava a trabalhar obsessivamente.
- Deixe-me adivinhar. - disse Anna - Uma das faces é Ephram Korban. Porque você o vê cada vez que fecha os olhos.
- Uma delas é Ephram Korban. - ele olhou de lado para o retrato, como se não confiasse de ficar de costas para ele. - Mas isso não é tão estranho, considerando que
ninguém parece fazer algo criativo aqui que não envolva o desgraçado, de um jeito ou de outro.
- Ele parece tão encantador, não é?
- Tão encantador quanto um ninho de serpentes, talvez.
- Korban foi bastante pintado por aqui. Grande coisa. O que mais tem de estranho na pintura?
- Um dos outros rostos. Quer dizer, o óleo da pintura está seco, e pelo pó na moldura, pode ter um ano ou vinte. Talvez mais. E você me disse que nunca esteve aqui
antes.
- Nunca minto, a não ser que tenha uma boa razão. - A não ser para mim mesma. Venho mentindo para mim mesma desde que aprendi a falar.
- Então, como você é uma caçadora de fantasmas, talvez fique interessada em saber como o seu rosto está nela.
O fogo cuspiu uma brasa nas pedras da lareira, na direção de Anna. Mason a esmagou com o pé.
- Mostre-me. - disse Anna.
CAPÍTULO 45
William Roth tirou os negativos de dentro do frasco de vidro com movimentos de quem tem prática. Ele havia desenrolado centenas de rolos de filme, mas essa era a
primeira vez que fazia isso dentro de uma adega. Uma luz vermelha teria sido útil, mas isso não era pior que revelar no interior de uma tenda no Sudão ou em uma
barraca na Amazônia. Ele misturou os compostos químicos sob a luz da lanterna, depois apagou-a, revelou os negativos e lavou-os com água.
Faltava apenas secar o filme. O ar do porão era parado, o que impediria a poeira pesada de aderir à emulsão. Havia poeira para todo lado nesse lugar, junto com as
cinzas dos fogos constantes. E aquele sujeito, Mason, com todos os seus cavacos e pó.
Roth tateou ao longo da superfície de trabalho, encontrou os fósforos e o globo de vidro aquecido da lamparina, então riscou o fósforo e encostou ao pavio. Ele havia
estendido um barbante cruzando a sala e dependurou os seis rolos de filme com a ajuda de prendedores de roupa que pegara emprestado com a servente. Após pendurar
a última tira, colocando um prendedor adicional na ponta para esticar a celulose, aproximou a lamparina para observar seu trabalho de perto.
Ah, ali estavam as fotografias da ponte, e mesmo sem cores e com os tons de preto, branco e cinza invertidos, ele podia dizer quais fotos adicionariam à lenda que
era Roth. Ele olhou pelos quadrados das imagens, chegando àqueles da ponte e de Lilith.
- Mas que diabos? - Ele aproximou mais a lamparina, mesmo correndo o risco de encurvar a celulose pelo calor.
Ali estava a ponte, onde desaparecia dentro dos pinheiros que levavam de volta à civilização de Black Rock. Os corvos esquisitos estavam perfeitamente delineados
sobre os corrimões e a teia de aranha congelada pendurava-se como uma renda negra sobre as fotos. Mas Lilith não aparecia em nenhuma delas.
Roth esfregou os olhos. Talvez ele tivesse avançado o filme demais, tirado as fotos dela após o filme ter acabado. Isso era o tipo de coisa que um amador faria,
vovós e titias, mas não um mestre. Quando fora a última vez que Roth cometera um erro?
- Mas que porcaria desgraçada! -murmurou ele, seu sotaque agora uma mistura de Manchester e classes baixas de Cleveland. Talvez fosse o momento para um drinque,
relaxar junto à lareira e descansar um pouco. Os benefícios da fama e de um carisma falso talvez fossem efêmeros se ele continuasse desse jeito. Em especial porque
Spence estava se mostrando duro como uma parede de pedras. Se a sorte de Roth não melhorasse logo, ele poderia começar a culpar a maldição de Korban ou alguma coisa
do estilo.
Ele levantou a lamparina, as bases empoeiradas das garrafas à sua volta como olhos ancestrais. Ele tirou uma das garrafas da estante. O vidro escuro tinha apenas
uma etiqueta simples, engarrafado aqui mesmo na fazenda. À tinta, alguém havia escrito 1909. Provavelmente um ano decente. Decente o suficiente para apagar a lembrança
da ponte, de qualquer forma. E talvez decente o suficiente para aquecer seu coração e as pernas da bela e suave Lilith.
Roth colocou a garrafa embaixo do braço e deixou o porão, as fotografias confiadas à escuridão.
CAPÍTULO 46
- Ela não vai me deixar partir. - disse Adam.
- Droga. - Paul deu outra tragada de seu baseado. O odor doce da maconha espalhou-se pela varanda traseira. - Uma pena, princesa.
Era o terceiro baseado de Paul naquele dia. Uma conversa racional seria impossível. Mas até aí, não tinha sido sempre assim? Não havia muita coisa restante para
discutir, de qualquer forma.
Adam estava encostado no parapeito, observando as montanhas. Paul estava em uma das cadeiras de balanço, não se preocupando em chegar sua cadeira mais perto de Adam.
O som do piano vazava da biblioteca, sufocando a canção matinal dos pássaros. Alguém riu embriagadamente dentro da casa, sem dúvida outro artista sofredor que havia
se autoinfligido a miséria de ir embora.
Adam não possuía nem essa patética desculpa para seus pesadelos. Porque havia ido dormir sóbrio e sua mente estava demasiadamente límpida, preservando cada pequeno
detalhe de sua morte e subsequente ressurreição.
- Sabe de uma coisa? - O rosto de Paul parecia sinistro enquanto ele dava uma profunda tragada. Ele segurou a respiração e então a expeliu na direção de Adam com
um floreio. - Talvez se você desse uma relaxada, poderia aproveitar melhor a vida. Você sempre tem que ser tão sério assim sobre tudo?
Um garoto certinho de Manhattan. Esse era Adam, com certeza. Preocupado com fundos de investimentos quando a maior parte das pessoas estava se preocupando com encontrar
um amante para a noite, decidindo qual banda era e melhor do momento ou escolhendo um novo estilista para suas roupas. Pelo menos Adam não era egoísta. Era por isso
que fazer a relação dar certo era tão importante para ele. Era por isso que queria adotar uma criança.
Ele queria compartilhar o que tinha a oferecer, doar-se. Ele queria um lar no coração de alguém. Só que agora ele temia que não fosse no de Paul.
- Coloque para fora. - disse Adam - Vá em frente e me destrua. Isso é tudo o que você tem feito desde que chegamos aqui, mesmo. Pode acabar com isso logo.
Paul deu uma risadinha. - O mártir. Pregos nas palmas das mãos, uma lança entre as costelas. Pobre garoto. Você me deu uma ideia para meu próximo vídeo. O nobre
sofrimento de Adam Andrews. Filmado no modo lamento contínuo.
Idiota. Idiota.
Adam fechou um punho, a raiva misturando-se com o medo, criando uma mistura quente que queimava em suas entranhas. Mas perder o controle daria a vitória final a
Paul. Ele sempre perdia com graça. E tinha uma grande experiência nisso.
Ele forçou a voz a ficar calma e baixa. - Olha, já que estou preso aqui por mais cinco semanas, podemos pelo menos ser civilizados um com o outro? Desse jeito, podemos
depois olhar para esse dia e fingir que não foi assim tão ruim.
A cadeira gemeu quando Paul se levantou e a brasa da guimba do baseado voou até a grama ao lado da varanda. Paul caminhou até Adam e inclinou-se até que seu rosto
estivesse tão próximo que Adam podia sentir o cheiro da machona e bebida em seu hálito.
- Agora você está sendo sensato. - disse Paul - Já que estamos presos um ao outro, podemos aproveitar.
Adam tentou esquivar-se do contato, mas Paul o abraçou, a respiração quente no pescoço de Adam.
- Paul, acho que não...
- Shh. Você fica todo excitado e ligado nesse Ephram Korban, falando dele em seus sonhos, mas é provável que eu esteja mais disponível.
- Não posso, sabendo que você não liga para mim. Agora pare com isso, a Srta. Mamie pode nos ver.
Paul deu um passo para trás e olhou nos olhos de Adam. Sorriu. Seu maldito cabelo estava desgrenhado e ele estava mortalmente belo, e sabia disso.
De súbito, seu rosto mudou, contorcido, e Ephram Korban, aquele rosto cruel e maligno do pesadelo de Adam, olhou para ele como uma máscara de halloween.
E o sonho voltou com todo seu fulgor e realismo, Korban jogando-o sobre o parapeito da balaustrada, só que dessa vez ele o estava beijando, a respiração quente e
fétida, a língua como uma cobra insistente, a boca lhe roubando o ar dos pulmões. Então, drenado e vazio, Korban sugando-o para dentro do longo túnel em direção
ao que Adam sabia que o esperava logo após a curva. A coisa que ele mais temia.
Para Adam, não haveria nada. Nessa parte de seu túnel, após ele passar pelos fantasmas, entraria no seu pesadelo de infância. No pesadelo de sufocamento, sem visão,
sem som, sem toque, exceto a escuridão pressionando à sua volta. Nenhum sabor, a não ser o suave nada desprovido de ar.
Nenhum sentimento a não ser o medo que vinha com o isolamento. E o terrível conhecimento de que aquela bolha era completa, intacta, imutável. Solidão eterna.
Seria por isso seu desejo desesperado de adotar? Fazer com que alguém precisasse dele? De forma que a criança não pudesse deixá-lo, pelo menos por muitos anos? Anos
que a textura preto e branco da vida seria mantida distante.
Ele piscou e era Paul à sua frente, não Ephram Korban. As notas do piano eram como agulhas de gelo sopradas pelo vento.
Apenas uma lembrança ruim. Que idade você tinha quando teve pela primeira vez esse sonho de sufocação? Três, quatro? Antes mesmo de saber sobre palavras?
E essa casa trouxe isso de volta, o sonho voltou farejando seus calcanhares como um estranho cão negro que o seguiu até em casa. Um cão que não chega próximo o suficiente
para ser cuidado, mas que também não fica distante o suficiente para ser esquecido.
Adam não sabia o que significava o sonho e ele também não estava interessado na opinião de um psicólogo. Apenas sabia que não queria ficar só. Mesmo que isso significasse
render-se, perder, agarrar e aferrar-se em desespero. Ele colocou os braços à volta de Paul, agarrando-se a ele como se estivesse sobre areia movediça.
O sonho da morte. Ephram Korban. Os fantasmas. Tudo parte disso. A casa poderia abocanhá-los com suas presas e então engoli-lo para dentro de seu estômago negro.
Engoli-lo sozinho, a não ser que ele levasse alguém consigo para dentro do vácuo silencioso.
- Eu me preocupo com você. - murmurou Paul em seu ouvido. - Não vê isso?
Paul se preocupava com a pele, com a carne. Mas tudo bem. Era tudo o que eles eram, de qualquer modo. Eles não possuíam espírito. Duas almas nunca poderiam juntar-se
em uma, nem mesmo nos sonhos.
Adam deixou escapar uma respiração rápida. Ele odiava os sentimentos que inundavam seu corpo, a paixão que o traía. Mas amor e ódio eram basicamente a mesma coisa,
e ambos eram melhores do que não sentir nada. Qualquer coisa era melhor do que o sufocamento da solidão que o esperava no seu túnel da alma. Ele puxou Paul para
perto.
- Eu tenho uma ideia. - disse Paul - Vamos para cima do telhado. Vamos subir aquelas escadinhas. Brincar um pouco lá onde você teve aquele sonho. E prometo não empurrá-lo
lá de cima.
- Isso é o que sempre dizem. - disse Adam - E a próxima coisa que você percebe é que está olhando para o próprio fantasma.
- Confie em mim. - Paul pegou sua mão e o levou para dentro.
Quando entraram na casa, Adam se deu conta de que as pessoas nunca entregavam seus corações, não importava o quão inclinadas, desesperadas ou solitárias estivessem.
Corações sempre tinham que ser roubados. Pela força ou pela enganação. Amor era assassinato, morte por roubo cardíaco e as alternativas eram muito piores.
Os olhos pintados de Korban os olharam, brilhando com fria empatia, sábio perante a futilidade dos sonhos humanos.
CAPÍTULO 47
Anna segurou a lamparina mais alto. O ar no porão cheirava a madeira e podridão, as sombras rondando os cantos como coisas sólidas. A estátua de Mason esgueirou-se
com o tremeluzir da chama, as formas grosseiras sugerindo uma força obscena. O busto de Korban era ainda mais inquietante, pois a face havia ficado mais vívida com
o polimento da madeira. Havia sido entalhada com todo o amor que Deus havia invocado para criar Adão e Eva.
- O que quer dizer? - perguntou Mason.
- Acho que quer dizer que você é obcecado.
- Estou falando da pintura.
- Você fez tudo isso desde ontem?
- Ei, os críticos me amarão, Mama ficará orgulhosa, sou o Michelangelo da montanha, o herói não identificado da escultura, blá, blá, blá. Mas olhe a maldita pintura.
Anna olhou. Lá, na balaustrada do telhado, estava um grupo de figuras em relevo branco contra o fundo escuro. Mais à frente estava a mulher que Anna havia visto
em seus sonhos, a mulher com o longo vestido fluido, o buquê nas mãos. A boca da mulher estava aberta, pega em um grito ou sussurro, os olhos suplicantes, implorando
liberdade para as formas às suas costas.
- Essa é você. - disse Mason.
- Não. A princípio, pensei que fosse.
- Você viu essa pintura antes?
- Em meus sonhos. No último ano, desde que descobri... desde que decidi vir para o Solar Korban.
- Se não é você, então quem é?
- Você não acreditaria se eu lhe contasse.
Mason balançou o braço indicando seu trabalho. - Eu me tornei um gênio do dia para a noite, cada vez que fecho os olhos, Korban está exatamente ali, me dizendo para
voltar ao trabalho, você, Ransom e metade dos hóspedes convencidos de que essa casa é mal assombrada e essa pintura pintou a si própria sem ninguém ver. Agora me
diga no que não vou acreditar.
- Certo. Prometa que não vai rir.
- Não estou com humor para rir desde que cheguei aqui. Sou um artista sério, não sabia disso?
- Ah, claro. Você tem "sofrimento" escrito na testa. É seu escudo contra o mundo. Essa é sua desculpa para manter as pessoas distantes. Você é tão duro quanto a
madeira dessa maldita estátua.
Os olhos de Mason brilharam com raiva e, por um momento, Anna viu Stephen, a máscara de raiva incontida com a aceitação de Anna sobre a morte iminente, os cálculos
sobre o que ela perderia, o desprezo quando ele soube que ela estava de partida para uma casa "mal assombrada" que nunca registrara nenhum dado empírico anômalo.
Mason agarrou seu braço, apertando-o o suficiente para machucar. - Agora me escute. Quando eu tinha seis anos de idade, minha mãe comprou um pacote de massa de modelar.
Foi como mágica, enterrar meus dedos naquele negócio, torcendo e moldando do jeito que queria. Pela primeira vez na vida, eu tinha controle sobre alguma coisa.
- Eu fiz um dinossauro para minha mãe, copiando de uma figura de um livro. Eu inclusive coloquei uma fileira de placas ósseas em sua espinha e espinhos em seu rabo,
dois longos chifres e olhos que pareciam que poderiam encarar um T. Rex. Mama adorou. Pela primeira vez na vida, havia feito algo que a deixara orgulhosa.
Mason apertou mais forte e Anna temeu que ele tivesse perdido a razão e que quebraria seu braço como se fosse uma de suas espátulas de modelagem. Ele falava cada
vez mais rápido, o rosto vermelho, os olhos negros e distantes. - E meu pai chegou, viu o dinossauro, derrubou-o no chão e pisou em cima. Chamou-me de um maldito
sonhador, um idiota preguiçoso. Eu ainda consigo ver aquela pegada no chão, as marcas de sua bota na massa. Fez com que me sentisse bem especial, pode crer.
- E você é especial porque vê coisas que não existem. Bem, deixe-me lhe dizer uma coisa, pequena senhorita esquisita, essa não é uma de suas histórias de acampamento.
Isso está acontecendo e é real. - Ele a empurrou para perto da pintura. - Você consegue ver que está acontecendo.
Ela se soltou torcendo o braço e se distanciou com a lamparina. O movimento da luz fez as sombras mudarem de lugar, dando a ilusão de que a estátua havia mudado
de posição junto com as tábuas e o fio que as seguravam. Ela olhou para dentro da pequena chama da lamparina, onde o laranja dava lugar ao azul e então ao amarelo.
Talvez, se ela queimasse os olhos, nunca mais veria outro fantasma no pequeno tempo que ainda lhe restava. Cega para a Visão ou para qualquer visão.
- Essa não sou eu. - disse ela, ordenando que as lágrimas evaporassem. - É minha mãe.
- Sua mãe?!
- Ela está aqui. Morta. Ela é um deles agora. E eles podem ficar com ela, no que me toque.
- Um de quem? Espere um segundo. Não estou entendendo nada.
- Junte-se ao clube. Eu entendi cada vez menos durante o dia.
Ela bateu com a lamparina sobre a bancada de trabalho de Mason com força suficiente para tilintar os vidros. As trevas saltaram sobre eles enquanto a chama fraquejava,
mas então iniciaram o lento retrocesso na direção de Anna. - Aqui. Você vai precisar disso, pois fica bem escuro quando sua cabeça estiver dentro de seu rabo, Mason.
Anna subiu as escadas, agradecendo o ar frio que se derramava sobre ela como dedos feitos de nevoeiro. Então a dor veio novamente, em ondas gentis, lembrando-a da
areia que escorria lentamente na fresta da ampulheta que dividia o passado do futuro. Logo, a areia acabaria e a escuridão viria cobrar sua alma. Logo, mas definitivamente
não logo o suficiente.
A cada degrau ela batia o pé e repetia seu pequeno ritual de contagem regressiva.
Dez, um palito e uma argola... Nove, um fiapo e uma argola... Oito, um par de biscoitos...
- Anna. Espere!
Sete, um canudo dobrado... Seis, um nove no espelho...
- Sinto muito.
Ela também sentia.
Cinco, uma pequena foice... Quatro, uma cruz com um braço...
- Estou assustado.
Junte-se ao clube.
Três, forcado de inglês... Dois, um gancho vazio...
Um, uma linha que divide...
- Ajude-me.
Zero.
Nada. Nada.
Ela abriu a porta e andou pelo corredor, dentro das artérias da casa, atenta para sua respiração contida e paciente, seu coração morno e acolhedor. A aceitação lhe
trouxe paz. Esse era o primeiro e último lugar ao qual ela pertencera. Sylvia Hartley estava certa. Ela teve que voltar ao lar.
CAPÍTULO 48
Ela teve que voltar ao lar. Sylvia moeu a raiz seca, o sangue correndo pelas veias como neve derretida pelas pedras no final do inverno. Apenas mais algumas horas
até o pôr do sol e o nascer da lua azul. Sylvia havia rezado por essa noite por quase cem anos e as cinzas de uma prece são mais fortes que os fogos mais quentes
do inferno.
Os espíritos reviraram-se na terra, giraram em seus túneis, inquietos, perturbados pelo poder crescente de Ephram Korban. Ela conhecia Ephram melhor que ninguém,
melhor até mesmo que Margaret ou "Senhorita Mamie", como ela passou a se chamar. Muitas foram as noites nas quais a voz de Ephram assombrou o vento de Beechy Gap,
sussurrando para Sylvia, fazendo-a se arrastar atrás de seus patuás. E ele estava evocando uma tempestade agora, havia convocado George Lawson e um dos novos hóspedes,
outros ainda por vir. No próximo nascer do sol, Korban os teria todos. Mesmo Anna. Especialmente Anna.
Sylvia pegou o frasco com ossos de gato, espalhando alguns no almofariz. Sua mão doeu ao segurar a pedra, mas o pó teria que ser tão fino quanto poeira de sepultura.
Ela socou a mistura novamente, macerou as ervas secas, tremendo. O fogo crepitou, o que ela considerou um bom augúrio.
Sua fé seria suficiente? Ela tinha os feitiços, passara toda a vida ensaiando para essa noite. Por tempo demais ela havia caminhado por essas montanhas, colhendo
raízes e lendas, cruzando as fronteiras para conversar com os mortos, mesmo quando esses apenas queriam ficar em paz. O feitiço agarrou-se a seus lábios rachados
como as balbucias de um delírio febril.
Quando fosse o momento certo, ela o diria. Gelo e fogo. Ephram Korban era como gelo e fogo. Morto e vivo. Ambos iguais, quando você chega à raiz de tudo.
Ela pegou uma pequena caixa de cedro de uma reentrância da longa parede. O pedaço de tecido estava cinza com a idade, manchado com o fruto da alma de quem o havia
usado. Sylvia o encostou aos lábios, murmurando "vá para fora congelar", beijou-o e colocou-o no pequeno monte de pó no almofariz.
Ela pilou a pedra de encontro ao tecido, as fibras se desfazendo, das cinzas às cinzas, do pó ao pó, do gelo ao fogo.
CAPÍTULO 49
Roth lambeu os lábios. Essa era a parte boa. A garota havia caído em sua conversa boba. Engolido o anzol, a linha e a chumbada. O que lhe deu uma ideia do que ele
faria com Lilith quando conseguisse entrar em seu quarto.
Ela o levou por uma pequena porta na copa, uma que ele nunca havia reparado antes, um lugar de descanso e sombras que parecia ideal para as classes inferiores. Imagine,
os serventes estavam sempre presentes, como se nunca precisassem dormir. Uma vez, ele vira uma empregada cuidando do fogo na sala de estar às três da manhã, e os
trabalhadores chegavam a toda hora com cargas de lenha.
Roth seguiu Lilith, que descia por uma escada estreita. Essa era uma sessão separada do porão, separada por paredes da área onde Mason trabalhava e Roth havia revelado
seus negativos. Quando a porta se fechou atrás deles, estavam em uma escuridão completa. Nenhum dos dois tinha uma lamparina e a inabilidade de ver excitou Roth,
fazendo sua pele vibrar de ansiedade. Ou talvez fosse o ar morto e frio, a sensação de clausura que faziam seu coração acelerar.
Ela havia sido fácil e ansiosa, certo. A maior parte das mulheres agia como se dar uma rapidinha à luz do dia fosse uma afronta aos deuses. Lilith nem mesmo havia
terminado sua primeira taça de vinho antes de se inclinar para Roth, dando a ele seu sorriso especial, olhando dentro dos olhos cinzentos que nenhuma mulher em sã
consciência poderia resistir.
Ela estendeu uma mão, deixando a outra na parede para não perder o equilíbrio. Ele tocou o cabelo de Lilith e deslizou a mão para baixo onde deveria estar seu ombro,
mas ela se manteve alguns passos à sua frente. Ela não havia falado desde que ele fizera sua sugestão, apenas sorrira em submissão e inclinara a cabeça para a porta
secreta. Ela gostava de jogos, se gostava.
Roth desceu do piso de madeira para uma área dura e plana. Então ouviu o fósforo riscando alguns passos a frente e o brilho de uma chama apareceu. O rosto de Lilith
era um círculo de luz, mas era impossível, porque ela estava ao seu lado. O vestido preto deixava seu corpo invisível e, por um momento, suas mãos e rosto pareciam
estar flutuando pelo ar. Ele largou o cabelo dela, ou o que quer que estivesse tocando, e deu um pulo para trás quando ela acendeu uma vela.
- Devemos ter fogo. - murmurou ela, a voz rouca. Roth olhou para sua mão e viu que estava coberta de teias de aranha. Ele gemeu e limpou a mão na calça.
Ela riu de leve. - Isso o assustou, Sr. Roth?
- Odeio aranhas, lembra? Desde que eu tinha nove anos e uma delas entrou na minha boca enquanto me arrastava sob a varanda. Tive pesadelos por uma semana seguida
após isso.
- Pobre garoto. Você está a salvo comigo.
- Espero que não a salvo demais, hum? Eu vivo para o perigo e você está parecendo bem perigosa agora, meu amor.
Quando a vela finalmente pegou fogo, ele pôde perceber os cantos penumbrentos do aposento, se perguntando se havia aranhas espreitando nas sombras. Dois metros de
você, diziam. Contanto que elas permanecessem a dois metros. Ele notou uma alcova, que possuía outra vela. Como ela havia acendido aquela? Talvez aquele aposento
levasse a outro, mas então ele viu as costas de Lilith e seu próprio rosto. Um espelho, tão grande quanto a cama sob ele, refletia o aposento. Garota levada.
Ele lambeu os lábios e correu a língua sobre os dentes. O aposento era pequeno e as paredes de alvenaria, tão grossas que nenhum som poderia escapar. Talvez ela
apreciasse soltar a voz quando estivesse dando uma. Nada a que Roth se opusesse.
O aposento estava livre de mobília, tirando a cama, e isso incomodou Roth por um momento. Não havia cobertores sobre o colchão, apenas um tecido de linho que necessitava
urgentemente de uma lavagem. O lugar era tão desanimador quanto a cela de um monge. Mas ele esqueceu de tudo isso quando Lilith colocou a vela sobre a lareira e
sentou-se na cama, olhando para ele com olhos devassos.
Olhos negros. Mais profundos que um bastão de carvão de Newcastle. Ele não viu as coisas que desejava ver. Ele gostava que as garotas tivessem um pouco de medo,
ou pelo menos um pouco de apreensão. Fazia com que se esforçassem mais para agradar.
Mas ele não se apegaria a detalhes. Todas eram iguais, depois de tudo feito. E a pele dela tinha uma aparência suficientemente cremosa. Ele havia pensado que ela
coraria um pouco, mas Lilith apenas sorriu novamente, e algo naquele sorriso o incomodou.
- Você não vai se envolver em confusão, não é? Se envolvendo com os hóspedes? - perguntou ele, mais para quebrar o silêncio do que por preocupação real.
- A Srta. Mamie diz que a satisfação dos hóspedes é o segredo para bons negócios. - disse ela e, novamente, o sorriso endiabrado estava em seus lábios. Por um momento,
Roth se sentiu como o seduzido ao invés do sedutor. Era sua fama, seu charme, sua aura de poder que a havia atraído.
Seu coração batia forte e ele moveu-se pelo aposento em direção à cama. Ela deitou-se sobre a cama, abrindo os braços, abrindo-se para ele.
- Sou tão bonita como uma pintura, Sr. Roth?
Ele engoliu em seco. Talvez fosse todo aquele vinho que ele havia bebido, mas estava ficando excitado rápido demais. Sentiu-se como um menino de escola idiota olhando
para uma revista de sacanagem. Ele não gostava de perder o controle. Nenhuma garota podia mexer com suas emoções tão facilmente.
Os seios dela haviam se achatado debaixo do colarinho do vestido e ela levantou os joelhos de modo que suas pernas ficaram abertas. O vestido escorregou pelas coxas
e Roth não pôde desviar o olhar para longe do espaço escuro entre os quadris dela. Ele nunca havia ficado tão duro na vida.
Ou talvez fosse essa casa, aquela coceira esquisita que havia sentido bem lá no fundo de sua cabeça desde que chegara. A coceira parecia ter aumentado e se espalhado
pelos membros. Fogo, era isso que era. Um pequeno jato de calor expandindo em um brilho.
Ele se ajoelhou, querendo tocá-la. Ele teria que ir devagar ou se tornaria um animal. Ele não queria apenas dar umazinha, ele queria que fosse devagar e gostoso.
Elas gostavam disso. Ele gostava de ouvi-las gemendo e implorando para que acabasse.
Mas agora ele estava com receio de que estivesse escorregando, de que o poder e controle tivessem mudado de dono e que ela estivesse ditando as regras. Suas mãos
tremeram quando as estendeu na direção dela e ele ficou subitamente bravo consigo. Ele nunca tremia. Ele havia tirado fotos de rinocerontes atacando a dez metros
de distância, com uma câmera à mão livre, e elas haviam saído tão claras e focadas como o cartaz com letras do oftalmologista.
Então ele fez o que sempre fazia quando queria prolongar ou negar sua paixão: pensou sobre seu trabalho. A batelada de negativos que ele revelara essa manhã. Algo
neles o havia incomodado, mas não conseguia lembrar direito no momento. Definitivamente, o vinho o pegara de jeito. E sua raiva contra Spence também havia toldado
seus pensamentos. Bem, apenas um modo de exorcizar o diabo.
Ele colocou as mãos na parte inferior das coxas dela. Sua pele era tépida, a mesma temperatura do aposento. Estranho, mas ele a esquentaria rapidamente. Nada como
um pouco de fricção para consertar aquilo. Mas ainda não.
Roth subiu na cama, pensou em remover as calças, mas decidiu esperar. As mãos de Lilith estavam em seus ombros, à volta de seu pescoço, puxando seu rosto na direção
do dela. Que diabos, não há motivo para fazê-la sofrer mais. Por alguma razão, a falta de calor no corpo dela o excitou ainda mais. Talvez fosse esse aposento com
jeito de cripta que a deixasse gelada. Ele tomou como desafio pessoal avivar seu fogo.
Seus lábios se pressionaram contra os dela e a língua dele moveu-se incertamente na boca dela. Para uma garota atirada, ela estava agindo como se nunca houvesse
beijado antes. Ele hesitou, pois algo estava errado dentro da boca dela.
Roth pressionou seu corpo sobre o de Lilith, o corpo dela moldando-se ao seu mesmo com o vestido. Os seios dela comprimiram-se debaixo dele e ele gostou do que sentiu.
Mas ele estava sendo cuidadoso para não gostar demais daquilo. Devagar e gostoso era o jeito correto, ainda que seu sangue estivesse bombeando forte por sua carne.
O que era isso dentro da boca dela?
Era como o resto dela, um pouco fria demais. Qual era a temperatura debaixo da terra, constantes dezenove graus ou algo assim? Mas com certeza a boca dela deveria
ser quente e não tão seca. Era quase como se ele estivesse colocando a língua no interior de um bolso de camisa. Ele esperava que ela não fosse seca assim em todos
os lugares.
Lilith gemeu dentro de sua boca. Ela não tinha nenhum líquido?
Ela se contorceu debaixo dele e ele esqueceu de quão esquisita era sua língua. Ele pegou o ombro do vestido e começou a puxá-lo para expor um pouco mais de carne
sob a luz da vela.
- Sim. - gemeu ela.
- Sim. - disse outra voz. Que diabos?
Provavelmente apenas um eco nas paredes de pedra. Um truque de acústica.
Mas o ar morto do aposento engolia o som inteiro em vez de deixá-lo reverberar.
Roth captou um leve movimento que o distraiu do fluxo de sangue abaixo da cintura. Então ele se lembrou do espelho e o olhou. Talvez se observasse e visse aquele
traseiro adorável debaixo dele, poderia reavivar sua excitação.
No espelho, seu rosto ficou maior, como se estivesse se vendo por uma lente. E por que aquilo estava errado?
Foi apenas por uma fração de segundo, mas tempo suficiente para que ele se desse conta de que o espelho estava caindo sobre a cama, sobre eles, como que em câmera
lenta. E aquele espelho deveria pesar uns cinquenta quilos. Se ele quebrasse...
Se ele se quebrasse, Roth poderia ficar gravemente ferido. Gravemente.
Mas ele não podia se mover, pois Lilith tinha seus membros à sua volta e, com os diabos, ela era forte. Ele gemeu enquanto tentava se livrar dela, mas ela tinha
muitos braços, braços demais, arranhando e se agarrando. Viu seu reflexo no espelho e ela não era mais Lilith, mas uma aranha negra, achatada e grossa, as presas
próximas a seus lábios, procurando um beijo de alma.
Viúva negra, sua mente gritou para ele, ela sempre devora seu parceiro.
Olhando para cima, ele mal reconheceu seu reflexo, os olhos grandes, a boca um túnel negro, as pontas dos oito braços de Lilith se agarrando a ele, os pelos dos
palpos tocando sua carne.
Mas antes que a dor conseguisse lançar sua teia, o espelho estava sobre ele e conforme o vidro se quebrou, não era seu rosto nele, mas o de Korban.
Então os fragmentos prateados penetraram sua carne e Lilith deixou correr seu veneno, levando-o para o longo túnel negro, Ephrarn Korban sorrindo para ele, segurando
uma colher que se revolvia como o remexer frenético das aranhas.
- Hora de tomar seu xarope, Sr Roth - disse Korban.
CAPÍTULO 50
- Como está nossa estátua? - A Srta. Mamie esperava que sua impaciência estivesse profundamente enterrada, do mesmo modo que suas emoções, a não ser quando sob o
olhar penetrante de Ephram.
- Ficará adorável. - disse Mason, de pé à porta de seu quarto, os olhos inchados, o cabelo desfeito. - Quer entrar?
Ela e Ephram haviam passado muitas noites preciosas ali, horas que pareciam ainda mais doces com a distância dos anos. Mas o quarto a perturbava porque para sempre
teria o fedor e as máculas deixadas por Sylvia, como se as paredes ainda carregassem as lembranças dos pecados de Ephram. Ela poderia perdoar, com certeza. Todas
as mulheres perdoam, era como o amor funcionava, mas ela nunca poderia esquecer. Mesmo que Ephram a fizesse viver mil anos.
Mason abriu a porta e ela olhou além dele na direção da lareira, o orvalho secando na janela, o rosto sorridente de Ephram na parede.
- Eu só tenho um minutinho. - disse ela - Estou atarefada me preparando para a festa.
- Festa?
- A festa da lua azul. É uma tradição no Solar Korban. Sua presença é obrigatória.
- Claro. Acho que tenho tempo para isso.
- Não tempo demais, espero. Sei que você é dedicado a seu trabalho.
- Isso me lembra uma coisa. Você sabe algo sobre a pintura que retrata o solar e está lá no porão?
O ódio preencheu a Srta. Mamie, queimou-a, chamuscou-a como o amor de seu marido morto. Ela não mais se importava se Mason visse as chamas em seus olhos. Ele não
poderia escapar, de qualquer forma. Ele estava tão preso à casa quanto ela.
Ela forçou um sorriso, a boa anfitriã. - Mestre Korban, receio. Ele tentou a sorte como pintor.
A raiva abriu um túnel negro em seu coração, o fio pelo qual Ephram mantinha seu controle sobre ela. Um vento gélido soprou da boca do túnel, congelando seu peito.
A ameaça e a promessa de Ephram. Ele precisava que ela sentisse medo tanto quanto precisava das emoções dos outros. Ela apenas desejava que seu amor fosse tudo o
que ele exigia dela. Mas simplesmente amor nunca era suficiente.
- Ele era talentoso. - Mason não deve ter reparado seu tormento. Ela era eficiente em escondê-lo, depois de todas essas décadas.
- Um de seus maiores pesares foi nunca tê-la acabado. - disse ela - Existe algo melancólico no último trabalho de um artista, mesmo quando os talentos do artista
são ordinários e mortais. As pessoas sempre têm esperança de deixar uma impressão que viverá após suas mortes.
- Nossa vaidade. - disse Mason - E isso nos deixa loucos. Porque sabemos que nunca vamos atingir a perfeição.
- Perfeição. - A Srta. Mamie não precisava da pintura a sua frente para lembrá-la. Ela poderia fechar os olhos e ver a casa, as janelas iluminadas, as nuvens baixas,
a balaustrada sobre o telhado. Ela poderia sentir o gosto da brisa que soprava do nordeste, cortante após sua jornada sobre a tundra canadense. Música de cordas
movia-se pelo ar, fumaça saía das chaminés na direção do olho redondo da lua. E Ephram os chamou para cima, convocando seus escravos espirituais e enviando-os atrás
de Rachel Faye Hartley.
Ephram não gostava que sua própria família tivesse segredos escondidos dele. Rachel havia fugido, saltado para a morte da balaustrada do telhado. Rachel havia levado
seus segredos consigo para a sepultura, mas também os trouxera de volta de lá.
A dor cresceu dentro da Srta. Mamie, consumindo-a em um fulgor de ódio. Ephram e Sylvia estavam ligados pelo sangue. A família bastarda sempre teria um lugar maior
em seu coração eterno, não importava os sacrifícios que a Srta. Mamie pudesse fazer. Não importava quão profunda fosse sua devoção. E aquela pintura, a que Ephram
denominava seu trabalho em andamento, era uma lembrança eterna disso tudo.
Ela se virou, na direção do corredor, o retrato de Ephram próximo o suficiente para ser tocado.
- Aquela pintura deveria ter sido queimada há muito tempo. - disse ela.
- Anna disse que a mãe dela estava na pintura.
- Esqueça Anna. Concentre-se apenas em sua estátua.
- Anna disse que nunca esteve aqui. Como Korban poderia ter sabido? Ele também está na pintura. E alguém que se parece com você.
- Ilusões. - disse a Srta. Mamie - Nunca confie em um artista, pois os sonhos são enganadores e as visões, efêmeras.
- Posso confiar em alguém?
- Confie em seu coração. Sr. Jackson. Essa é a única coisa na qual vale a pena confiar.
- Meu coração está sendo puxado em três direções diferentes.
Ela estudou o rosto do jovem. Ele era muito parecido com Ephram em alguns modos, teimoso e orgulhoso, com receio da fraqueza e do fracasso. Mas Ephram havia tomado
as rédeas de sua vida, determinado a não deixar nada inacabado em seu trabalho. Obcecado com o controle de seu mundo.
- Acho que você deve apenas partir seu coração em pedaços suficientes para seguir em frente. Contanto que o maior pedaço fique com a estátua.
- Não se preocupe. Eu a deixarei orgulhosa. Deixarei todos orgulhosos.
- Tenho certeza de que deixará. Eu o vejo à noite. Não se atrase.
A porta se fechou. A Srta. Mamie tocou no medalhão à volta do pescoço. Quando Ephram novamente estivesse vestindo carne, ele provaria que o amor nunca morre. Sylvia,
Rachel, Anna, Lilith e todas as outras seriam esquecidas, seriam cinzas de lembranças, esvanecendo, morrendo e, por fim, perdidas nas trevas. Enquanto a Srta. Mamie
e Ephram continuariam em fogo, juntos para sempre.
CAPÍTULO 51
Anna se sentou em sua cama, enrolada em um cobertor. O quarto havia ficado frio durante a tarde, a temperatura caindo com o fogo baixo. Ela se pegou olhando o retrato
de Ephram Korban, procurando em seu rosto feições genéticas que foram passadas para ela. Korban, Rachel e Sylvia. E no meio disso tudo um pai sem rosto, que a tirara
da montanha, a abandonara apenas com um primeiro nome e morrera em vez de retornar às montanhas. Pelas próprias mãos e um laço, de acordo com Sylvia.
Ela havia ficado sem rumo por tanto tempo, sem raízes e desconectada, e agora ela pertencia a pessoas demais. Sua linhagem de sangue era muito retorcida, as gerações
torcidas por qualquer que fosse a magia que diminuísse a passagem do tempo no solar. Porque se Sylvia tinha cento e cinco anos e Anna vinte e seis, então Rachel
havia morrido a menos de três décadas atrás. Ou talvez quando morresse, se tornasse atemporal, os anos não mais contando.
Houve uma batida na porta e Cris entrou. - Oi, garota. O que há de novo?
- Apenas remoendo umas coisas.
- Ei, isso não é jeito de passar o tempo em um retiro de artistas. Deixe isso para os idiotas que pensam que está tudo bem passar fome em nome da arte. Ou para fotógrafos
cabeça de bagre.
- Ah, e o ponto disso é?
- É exatamente esse o ponto. Se não importa, se é apenas um sonho molhado solitário, por que não se divertir?
- Talvez você esteja certa. Estou levando as coisas um pouco a sério demais.
- Esse é o espírito. - Cris foi para o banheiro, parando à porta. - Desculpe-me. É meu período. Lua cheia hoje.
- Fiquei sabendo.
- E uma grande festa no telhado. A Srta. Mamie disse que não deveríamos perdê-la. Se Mason estiver por lá, talvez você se dê bem. - Cris piscou o olho e então fechou
a porta. Anna apertou o cobertor mais à volta dos ombros.
Quando Cris saiu, vasculhou seu armário por um casaco. - Ei, você andou mexendo no meu bloco de desenhos?
- Não estive aqui o dia todo.
Cris o segurou para que ela visse. Espalhados em uma grande folha de papel, em riscos cortantes de lápis vermelho, estavam as palavras Vá congelar lá fora e volte
em fogo.
- Talvez tenha sido uma das camareiras. - disse Anna - Um bilhete avisando para colocar mais lenha no fogo.
- Está ficando frio, certo. Outubro nas montanhas. Se não fosse pelas folhas caindo, eu preferiria o Rio de Janeiro. Vejo você à noite. - Cris abanou e a deixou,
amarrando o cabelo em um rabo de cavalo enquanto saía.
Anna observou os veios da madeira na porta enquanto essa se fechava. Uma forme se sobrepôs contra os painéis de carvalho escuro. Uma mão pálida, segurando um buquê,
a mulher com olhos desesperados. E aquela única palavra sussurrada - Anna.
Descansar em paz aparentemente não era permitido nem para os mortos nem para os vivos.
CAPÍTULO 52
Mason queria ter trazido uma lamparina, uma vez que a tarde ficara subitamente escura, nuvens pesadas lambendo as montanhas vindas do noroeste, como fumaça de fogos
numa pradaria distante. Pelo menos, ele estava fora da casa, longe do olhar questionador da Srta. Mamie. Ele não queria ir para o porão, pelo menos não até sua mente
ficar clara. Anna estava certa, ele estava obcecado e era muito mais que apenas uma busca pela apreciação de sua arte.
Ele andou pela estrada na direção do celeiro. Era hora de Ransom alimentar e tratar dos cavalos. Talvez Anna estivesse ajudando. Como Mason, ela provavelmente preferia
a companhia do velho da montanha que daqueles arruaceiros toscos no solar. E ela era doida por cavalos.
Se ele a visse, poderia se desculpar, falar abertamente. Talvez tentar entendê-la. Ela sabia de mais coisas do que havia dito e, ao contrário dos outros hóspedes,
reconhecia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo no Solar Korban. E os dois tinham outra coisa em comum.
Porque, apesar de ela tentar muito esconder, algum tipo de sofrimento se escondia dentro dela, águas turbulentas abaixo da superfície calma. Ou talvez ele apenas
gostasse de olhar dentro de seus olhos azuis e sua imaginação tinha se encarregado do resto. A imaginação sempre havia sido sua bênção e sua maldição, sua porta
de saída de uma vida na fábrica têxtil, um demônio que se agarrava às suas costas a cada momento de sua vida acordado e uma grande parte dos momentos nos quais estava
dormindo.
Ele seguiu a linha da cerca, parando uma vez para olhar para o solar. Várias das janelas estavam iluminadas, mas a maior parte de sua fachada era escura e desinteressante.
Algumas notas altas de piano soaram na brisa. Ele olhou para o telhado, no espaço plano sobre as janelas das empenas onde o parapeito demarcava a balaustrada. Algumas
pessoas se moviam além do parapeito branco, provavelmente os empregados preparando a festa. Mason comparou o solar real com a pintura do porão.
Não havia competição. O solar real era muito mais assustador. Ele não engoliu a mentira de Anna sobre nunca ter estado antes no solar, apesar de Korban ter pintado
o quadro décadas antes de ela nascer. Mason havia memorizado seu rosto bem o suficiente para saber que com certeza era Anna que estava naquela pintura, completa
com buquê, vestido branco e tudo o mais.
A Srta. Mamie também não gostava daquela pintura. Ela agira quase como se tivesse medo dela, apesar da óbvia adoração a Korban. Ele balançou a cabeça. Por que ela
era tão insistente sobre ele terminar a estátua? Ela parecia mais ansiosa para vê-la pronta que o próprio Mason, como se tivesse seus próprios críticos a quem agradar.
Ele colocou as mãos nos bolsos. A floresta parecia mais próxima e escura, como se tivesse caminhado para perto enquanto ninguém estava olhando. Uma coruja piou de
seu poleiro nas árvores à sua direita. Ele caminhou mais rápido.
Imaginação.
Certo, Mase. Grande sonho. Korban no cérebro.
O sonho era apenas uma pilha fedida do que quer que seja que ele havia pisado. O celeiro estava à frente, uma luz tênue de um lampião quadrado escapando pela porta.
Mason se apressou na direção dela. Ele olhou sobre a porta e viu que a ferradura estava com as pontas voltadas para baixo. Não conseguia se lembrar se essa era a
posição boa ou a que chamava os fantasmas. Ele quase ficou com vontade de ter um patuá para balançar na frente da porta.
Mason entrou, os passos abafados pelo feno espalhado sobre as tábuas do assoalho. Ele não viu Ransom nem Anna. O cheiro de arreios de couro e o odor adocicado do
sorgo da ração dos cavalos pairava no ar. A porta oposta, que levava ao campo, estava fechada. Ele engoliu e estava para chamar quando ouviu a voz de Ransom entre
as carroças: - Vai simbora George... Ocê não tem nada pra assuntá por essas banda.
As sombras da charrete e das carroças estavam altas nas paredes, as aduelas, raios e pontas dos forcados lançando sombras ondulantes sobre as paredes de madeira.
Ransom falou novamente e, dessa vez, Mason o achou, agachado ao lado de uma das carroças.
- Eu tenho meus patuá, George. É procê me deixá em paz, diacho. - Os olhos do faz-tudo estavam arregalados, olhando para o assoalho cinzento.
Não era George o nome do sujeito que morrera em um acidente? Será que Ransom acreditava em fantasmas e as crenças locais finalmente o deixaram maluco?
Então Mason viu George.
E George parecia morto, com os olhos ocos afundados em sua substância vaporosa em uma forma impossível, o coto do antebraço apontando para cima. George parecia tão
morto que Mason podia ver através dele. E George estava sorrindo, como se estar morto fosse a melhor coisa que lhe tivesse acontecido.
- Fui mandado para convocar você, Ransom, velho amigo. - As palavras pareciam vir de todos os cantos do celeiro, raspando como folhas secas que haviam sido sopradas
pelos ventos de invernos passados. Um arrepio correu pela espinha de Mason, seu escalpo arrepiou-se, ele se sentiu como se fosse desmaiar.
Porque isso não era um sonho.
Ele não poderia colocar a culpa em sua imaginação por isso.
- Vai simbora, danado. - disse Ransom, a voz trêmula. Ele manteve os olhos fixos na coisa- George e não reparou em Mason. George deu um passo para frente.
Mas não era um PASSO, não é mesmo, Mason? Porque George não moveu um músculo, apenas flutuou para frente, como um espantalho escorregando em um arame.
Ar frio irradiava da coisa-George, gelando o espaço confinado do celeiro. Mason não estava pronto para chamar aquilo de fantasma. Porque, quando ele falara para
Anna que apenas acreditaria quando os visse, na verdade estava mentindo. Ele ainda não acreditava.
E ele não acreditava no que estava pendurado na única mão da coisa-George. A mão decepada, os dedos leitosos flexionando como se ansiosos para dar uma boa pegada
no pescoço de alguém.
- Vamos, Ransom. - disse a voz de cemitério - Machuca só por um segundo. E não é assim tão ruim lá dentro, depois que passa pelas cobras.
- Por que, George? Eu nunca fiz nada procê, homi. - Os olhos de Ransom estavam arregalados de terror. - Ocê era bom, um homi de bem. No que ocê foi se meter?
A gargalhada balançou o telhado de zinco. O coração de Mason deu um salto mortal.
- Eu me enfiei em um túnel, velho amigo. Porque eu tinha que saber. Agora me deixe convocar você para vir junto. Korban não gosta de ficar esperando.
Houve um rangido enferrujado e o forcado rolou para frente. Os olhos de Ransom olharam para os lados procurando uma saída. Ele viu Mason.
- O patuá não tá funcionando, Mason. Como pode o patuá não funcioná?
George se virou na direção de Mason, novamente sem mover nenhuma de suas extremidades esfarrapadas e enevoadas. - Há muito espaço por lá, rapaz. O túnel não tem
fundo.
Ransom se encolheu entre a charrete e uma carroça e Mason virou-se para correr. Tarde demais. A porta do celeiro moveu-se sozinha e bateu, trancando-os do lado de
dentro.
Mason correu ao longo da parede, deixando uma boa distância entre ele e o fantasma - você acabou de chamá-lo de FANTASMA, Mason. E isso não é um bom sinal - até
que ele ficou ao lado da charrete. Ele caiu de joelhos, os ossos batendo nas tábuas do assoalho. Ele engatinhou para o lado de Ransom. - Que diabos é aquela coisa,
Ransom?
Ransom olhou por entre os raios da roda da carroça. Mason podia sentir o odor de medo do homem, sal, cobre e gengibre.
- É sobre isso que vinha avisando ocê, fio. Ele é um deles agora. Do povo do Korban.
- Eu não acredito em fantasmas.
O patuá de Ransom estava firmemente seguro em seu punho. - Isso num importa é de nada, porque agora os fantasma acredita nocê.
A forma flutuou para frente, os braços levantados, o coto esfarrapado da amputação tremulando com o movimento. Mason se pegou olhando para o coto, se perguntando
por que um fantasma não estaria inteiro.
Fantasma - você o chamou de fantasma novamente, Mason.
O forcado estalou, rolando de seu canto na direção deles.
- Vá simbora. - gritou o velho, com a voz alquebrada - Tenho meus poder de espantá ocê.
- Vem brincar comigo, Ransom. - disse a coisa-George - É solitário lá dentro, só as cobras para fazer companhia. Podemos ficar juntos e conversar sobre os velhos
tempos. E Korban tem trabalho para todo mundo.
Ransom levantou seu patuá. - Tá vendo isso? Tenho meu pó de lagarto, mil em rama, raiz e espada de São Jorge. É procê ir embora.
George gargalhou novamente e um trovão chocalhou nas vigas do celeiro, os cavalos relinchando nos estábulos ao lado.
- Não acredite em todas as pequenas coisas que falam para você. - disse George - É só um bocado de velhas histórias. Porque não é nisso que você acredita, não é
mesmo, Ransom?
- É no quanto. - disse Ransom, derrotado, olhando para o pequeno farrapo de pano que envolvia suas ervas e pós. O pano estava atado com um pedaço de fita azul. Um
pó branco escapava pela abertura.
Subitamente, Ransom ficou de pé e jogou o patuá em George. - Cinzas de uma oração, George!
Mason estava congelado pelo próprio medo e uma estranha fascinação enquanto o patuá se abria e os conteúdos se espalhavam em uma nuvem de verde e poeira cinza. O
material flutuou sobre o fantasma, misturou-se com seu vapor, foi pego numa lufada de vento da fresta debaixo da porta e rodopiou à volta da forma.
George brilhou, esmaeceu brevemente, chiou como uma vela cuja cera estava por acabar...
Jesus Cristo, está funcionando. ESTÁ FUNCION...
A nuvem de ervas assentou-se no assoalho e George limpou os olhos.
- Agora vocês rapazes me deixaram realmente furioso. - disse o fantasma, a voz neutra e fria, vazando dos cantos do celeiro como um nevoeiro. - Eu tentei ser bacana,
Ransom. Só eu e você, dando uma longa caminhada para dentro do túnel como dois bons amigos. Mas você tentou lançar um feitiço em mim.
George balançou a cabeça translúcida. O movimento gerou uma brisa que congelou Mason até os ossos. Ransom se encolheu tensamente atrás da roda da carroça. O fantasma
flutuou para frente, compassadamente, agora a apenas sete metros de distância, quatro, três. Um ruído metálico enferrujado encheu o celeiro.
George levantou a mão amputada. - Eles me tomaram a mão do martelo, Ransom. Ele a tomou de mim.
O fantasma pareceu quase tristonho, como que debatendo internamente se seguiria ou não as ordens de um observador ausente. Mas as profundas cavernas de seus olhos
brilharam novamente, tremulando em bronze e ouro e radiando laranja, o rosto contorcendo-se em algo que deixava as feições humanas quase irreconhecíveis. Era como
um couro murcho, vincado e rachado, com pústulas no lugar dos olhos. A voz soou novamente, mas não era a voz de George, era uma combinação de dúzias de vozes, uma
congregação, um coral de almas perdidas. - Venha, Ransom. Estamos esperando você.
Os cavalos escoicearam as portas dos estábulos. Um bezerro berrou no campo lá fora. A charrete e as carroças balançavam loucamente. O lampião caiu ao chão e as sombras
subiram pelas paredes como insetos gigantescos.
O bezerro berrou novamente, e mais uma vez, o som se sobressaindo na cacofonia.
- O bezerro berrou três vezes. - sussurrou Ransom - Sinal certo de morte.
Mason encolheu-se ao seu lado, querendo perguntar o que diabos estava acontecendo. Mas sua língua parecia um pedaço de arreio contra o céu da boca. Ele tinha quase
certeza de que não conseguiria que ela articulasse uma palavra. Ransom olhou para George e então para a porta fechada. A porta estava muito distante.
Mason tocou na manga de Ransom, mas era tarde. Ransom tentou correr para a porta. O fantasma nada fez enquanto as botas de Ransom martelavam o assoalho do celeiro.
Mason se perguntou se deveria correr também. Ransom moveu-se rapidamente, os braços balançando enlouquecidos.
Ele vai conseguir!
Ransom estava a cerca de dois metros da porta quando a ceifadeira pulou - PULOU, pensou Mason, como um gato - com um gemido de metal e madeira tensionados, as hastes
enferrujadas do arado de vento rodando para baixo e para frente. Ransom virou-se e encarou a máquina antiga como que implorando por clemência.
Seus olhos encontraram-se com os de Mason e ele sabia que nunca esqueceria aquele olhar, mesmo que tivesse sorte, conseguisse escapar de George e vivesse mais de
cem anos. O rosto de Ransom ficou branco, o sangue drenado de sua pele como se tentando se esconder nos órgãos que a ceifadeira não poderia atingir. Os olhos de
Ransom eram esferas úmidas de terror. A pele coriácea de sua mandíbula esticando enquanto ele abria a boca para gritar, rezar ou balbuciar algum encantamento antigo
das montanhas.
Então a ceifadeira varreu para frente, empalando Ransom e o empurrando com força para trás. Seu corpo bateu na porta, sendo cravado nela por duas dúzias de enormes
pregos de aço. Ransom gorgolejou e um vapor avermelhado foi cuspido de sua boca. Os olhos se perderam dentro do túnel no qual a morte o havia lançado.
A carroça e a charrete pararam de balançar, as paredes voltaram a seus lugares e um silêncio súbito vibrou pelo ar. O corpo do velho pendeu nos vergalhões como um
pedaço de carne crua na ponta de um garfo. Mason se forçou a desviar o olhar das vísceras e da carnificina. O lampião lançou um jato de luz, como se as chamas fossem
alimentadas pelo vento da alma de Ransom deixando seu corpo.
George flutuou na direção de Mason, que deu um passo para trás.
- Você não está aqui. - disse Mason. Ele levantou as mãos, as palmas abertas. - Eu não acredito em você, então você não existe.
O fantasma parou e olhou para a própria carne diáfana. Após algumas batidas de coração, ele olhou novamente para Mason e sorriu.
- Eu menti. Não importa naquilo que acreditamos. - disse ele suavemente, flutuando mais um metro na direção dele. - É no que Korban acredita.
O fantasma estendeu a mão para frente, a mão na mão, em um cumprimento. Frio como mármore e morto como terra de sepultura.
Mason se virou e correu, esperando o pulo da ceifadeira ou ser agarrado pela mão do fantasma. Ele perdeu o chão em uma abertura entre as tábuas do assoalho e caiu.
Olhou para os pés e viu o alçapão do porão de depósito de vegetais.
Ele se arrastou para trás e abriu o alçapão, mergulhando para dentro dele. Agarrou o primeiro degrau da escada e puxou-se para dentro da escuridão úmida do porão.
Se poções e rezas não deram certo, então um alçapão não era o que iria parar um fantasma. Mas seus músculos assumiram o controle e seu lado racional foi silenciado.
Ele estava com metade do corpo para dentro do porão quando o alçapão bateu violentamente em suas costas. Uma onda prateada de dor lhe subiu a espinha. Então ele
sentiu algo agarrando o tecido de suas calças. Uma pancada suave, caminhante.
Dedos.
Ele chutou e balançou as pernas, agarrou o segundo degrau e puxou-se para dentro da escuridão. Ele ficou sem peso por um momento, o estômago encolhendo-se de vertigem.
Então, ele estava caindo, uma gota dentro da eternidade, que era muito rápida para um grito. A porta bateu nos caixilhos acima dele e ele estatelou-se no chão do
porão. O ar foi espremido para fora de seus pulmões, mas isso não importava porque ele não estava certo se estivera respirando desde que entrara no celeiro.
O porão estava imerso no mais completo breu, exceto por algumas nesgas de luz que passavam pelas frestas do assoalho acima dele. Ele tentou mover os braços e algo
caiu ao chão. Ele tateou e espremeu a coisa em sua mão, sentindo-a. Ela havia caído sobre uma caixa de batatas.
Mason rolou e ficou sobre os pés, encolhendo-se atrás da caixa. Ele tentou lembrar o que Ransom havia falado sobre outra porta do outro lado do porão e sobre um
túnel que conectava-se com o solar. George talvez já estivesse aqui em baixo. Quão bem será que os fantasmas enxergavam no escuro?
Botas e pés marchando podiam ser ouvidos alto e pesados sobre ele, dando-se conta de que seu pulso estava martelando nos ouvidos. Ele abriu a boca para ouvir melhor.
Estava tudo quieto lá em cima. Mason sentiu o odor de terra e maçãs verdes. Tentou determinar o arranjo das coisas no porão, descobrir onde ficava a saída, mas ele
havia perdido a orientação no escuro.
Ele poderia achar a escada novamente, mas um alçapão funcionava para ambos os lados. O que o estaria esperando quando subisse? A ceifadeira, com seus vergalhões
ensanguentados? George, pronto para dar-lhe uma mãozinha? Ou talvez Ransom, cheio de furos, agora um deles, o que quer que eles fossem?
Ele pensou em Anna e na sua autoconfiança serena, sua força interna disfarçada de distração. Ela dizia entender sobre fantasmas e não havia ridicularizado as crenças
de Ransom. Ela não ficaria histérica se visse um fantasma. Ela saberia o que fazer, se ele pudesse chegar até ela. Mas o que alguém vivo poderia saber sobre fantasmas?
Seus pensamentos acelerados foram interrompidos por um som suave. Primeiro, ele pensou que fosse o ranger da ceifadeira flexionando suas garras metálicas no celeiro.
Mas o som era áspero e não metálico.
Era o raspar de dedos no tecido. A mão.
Ele chutou e se contorceu e mais batatas caíram na terra fria.
Os barulhos soaram novamente, de todos os lados, de muitas fontes diferentes para serem cinco dedos fantasmagóricos.
Então ele reconheceu o som, um com o qual ele se familiarizara enquanto vivera no lixão de Sawyer Creek.
Não era um som áspero, era um pequeno guincho. Ratos.
CAPÍTULO 53
- Vá embora. - disse Anna ao fantasma que havia saído da parede e agora estava à sua frente em esplendor evanescente. Rachel deslizou para perto, o buquê triste
estendido como desculpa ou pesar. - Nunca quis magoá-la, Anna.
- Então por que me trouxe de volta? Por que simplesmente não me deixou morrer feliz e sem saber de nada, sem ninguém para odiar?
- Precisamos de você, Anna. Eu preciso de você.
- Precisar, precisar, precisar. Você alguma vez pensou que eu poderia ter precisado de alguém, em todas aquelas noites nas quais chorei até adormecer? E agora você
espera que eu sinta pena de você apenas porque você está morta?
- Não sou apenas eu, Anna. Ele prendeu todos aqui.
Os mortos tinham poder de escolha sobre onde suas almas se conectariam com o mundo real? Será que a passagem abria-se em um lugar particular para cada pessoa ou
os fantasmas pairavam sobre seus locais prediletos de assombração porque eles desejavam voltar à existência? Essas eram as perguntas que os parapsicólogos de linha
dura nunca perguntavam. Eles estavam ocupados demais tentando validar sua própria existência para sentir qualquer empatia por aqueles espíritos condenados a vagar
pela eternidade.
Mas Anna não estava se sentindo muito empática naquele momento. - E se você fosse livre, para onde iria?
Rachel olhou pela janela, para as montanhas que se estendiam pelo horizonte. - Para longe. - disse ela.
- E Korban prendeu sua alma aqui? Por que ele faria isso?
- Ele deseja possuir tudo que sempre teve e muito mais. Ele quer ser servido e adorado. Ele possui sonhos não realizados. Mas acho que é amor que o prende aqui.
Talvez, por trás de tudo, ele sinta medo de ficar só.
- Outro ponto em comum com a família, além do sangue. - disse Anna - Bem, não ligo de ficar só, não mais. Porque encontrei o que sempre quis e agora descobri que
na verdade nunca quis isso.
- Temos os túneis da alma, Anna. Onde encontramos as coisas que assombraram nossas vidas e sonhos. Em meu túnel, sou incapaz de salvar você e vejo Korban distorcer
seu poder até que ele o sirva. Nossa família tem a Visão, Sylvia e eu, mas ela é mais forte em você. Porque você pode ver os fantasmas mesmo sem ter que apelar para
feitiços ou encantamentos.
- Talvez os encantamentos me ajudem. - disse Anna -Não existe um que faz com que os mortos permaneçam mortos? "Vá para fora congelar", é isso?
- Não o pronuncie, Anna. Porque logo você também será convocada e Ephram será muito forte para qualquer um de nós detê-lo.
Anna levantou-se da cama. - Vá para fora congelar.
Rachel dissolveu-se um pouco, o buquê esmaecendo em fibras transparentes em sua mãos, os olhos repletos de tristeza etérea. - Você é nossa última esperança. A última
esperança de Sylvia.
- Vá para fora congelar.
Rachel apagou-se contra a porta - Sylvia! - murmurou ela.
- Vá para fora congelar. A terceira vez é um encantamento.
Rachel desapareceu. Anna olhou para o retrato de Ephram Korban. - Você pode ficar com ela, eu não ligo.
Anna colocou a jaqueta, pegou a lanterna e saiu para uma caminhada, desejando estar tão longe de Rachel quanto possível. Se Rachel iria ficar no Solar Korban, ela
daria uma volta até Beechy Gap.
Rachel havia dito que Sylvia sabia algum tipo de segredo. Talvez Sylvia soubesse um encantamento que mantivesse todos os fantasmas longe. Anna havia dedicado uma
grande parte de sua vida caçando fantasmas. Agora que eles estavam por todos os lados, ela nunca mais queria ver outro enquanto estivesse viva. Ou mesmo depois disso.
CAPÍTULO 54
Mason deu um pulo para trás, encostando as costas em uma parede de terra úmida. Outra batata doce rolou para o chão. Pelo menos ele esperava que fosse uma batata
doce. Mais guinchos romperam da escuridão, um coro de gemidos à sua volta.
Ele preferia muito mais encarar de frente o fantasma de George Lawson, mão decepada, ceifadeira ensanguentada e tudo o mais que ficar ali no escuro. Ele pensou em
dar uma corrida até a escada, mas estava desorientado. Era mais provável que ele desse de cara num barril de maçãs ou tropeçasse nas caixas espalhadas pelo chão
de terra. E cair levaria seu rosto para o nível deles.
De sua esquerda, veio o som raspado e fendido de dentes mordendo zinco. Talvez dois metros adiante, mas era difícil saber com certeza na escuridão. O aposento era
como um caixão, com o ar estagnado, sem cantos ou arestas que fizessem qualquer diferença para quem estivesse preso dentro dele. Ele se encolheu em uma bola, olhando
para as fendas nas madeiras, para as linhas amarelas que eram seu único conforto. Ele sentiu o cheiro do próprio suor de pânico e se perguntou se isso traria os
ratos mais para perto.
As folhas rasparam pelo assoalho acima e então a porta do celeiro foi aberta com um gemido enferrujado. Isso foi seguido por um ruído surdo e Mason imaginou o corpo
de Ransom batendo nas tábuas, os membros balançando inutilmente. Então o lampião foi levado e Mason fechou os olhos contra uma escuridão como nunca antes havia visto.
Não. Tinha havido uma escuridão pior.
Engraçado como as coisas retornam. Talvez fosse um dos túneis de sua alma. Uma lembrança enterrada a tanto tempo que a carne havia apodrecido de seus ossos, que
o esqueleto havia começado a retornar ao pó, que sua existência não podia mais ser provada. Mas uma pequena faísca sempre permanece, aquela brasa escondida, apenas
esperando por um sopro de vento para trazer o corpo de volta à vida, para ressuscitar a lembrança em toda sua glória horrível.
Engraçado como acontecera.
A lembrança era isso. Só que não podia ser real. Ou havia sido na primeira vez que fora no escuro? Não fazia diferença. Porque eles eram o mesmo, o passado e o presente,
entrelaçados no mesmo medo terrível.
Os guinchos.
Os ratos, rolando pelo escuro como aquelas batatas doces ou brinquedos de criança. Quantos?
Um já era demais. Quantos guinchos? Mason prendeu a respiração para poder ouvir. Dez. Quinze. Quarenta.
Mama estava fora da cidade. Alguém havia morrido, era tudo que Mason sabia, porque ele nunca vira Mama chorando tanto. E Mason sentira a mudança nela quando o havia
dado todos aqueles beijos e abraços e o colocado no colo por todas aquelas horas. Então ela se foi.
E Papai, Papai com suas garrafas, foi tudo o que Mason viu depois disso. Ele deitou em seu berço, os cobertores molhados, muito assustado para chorar. Se ele chorasse,
talvez Mama viesse. Mas se ela não viesse, Papai viria. Papai só ficaria furioso, gritaria e quebraria alguma coisa.
Então Mason não disse nada. O tempo passou ele nada disse. Não havia sol na janela, apena a luz que Papai acendia e apagava. Papai dormiu no chão uma vez e Mason
olhou pelas barras de madeira do berço e o viu, com sua garrafa vazia derrubada, a bebida espalhada pelo chão.
Papai acordou, esfregou os olhos, bocejou, olhou para Mason, deixou-o molhado. Papai apagou a luz e, conforme a porta se fechava, Mason lembrava daquela cunha de
luz desaparecendo, do quão assustado ele estava conforme ela ficava menor e menor, então de quando a porta bateu e a escuridão era maior, espessa, total.
O tempo passou, ou melhor, não passou, o pequeno coração de Mason bombeando, batendo e gritando. Chorar seria pior. Mama não estava lá e seu choro poderia trazê-los.
Ele fechou os olhos e os abriu novamente. Uma escuridão era da mesma cor de outra.
Agachando-se no porão, Mason fechou os olhos e os abriu novamente, tentando afastar a memória piscando os olhos. Cobriu o rosto com as mãos. Ele se lembrava de ter
lido em algum lugar que os ratos sempre atacavam suas partes mais macias primeiro, os olhos, a língua e os genitais. Ele não tinha mãos suficientes para todos esses
lugares.
Essa era a lembrança, a primeira vez. As descobertas que o escuro proporciona. O roçar na parede. O tatear de garras pela madeira. O guincho de prazer com a descoberta.
Estava tão escuro no aposento que ele não conseguia nem ver os olhinhos brilhantes quando finalmente tentou.
Mas Mason os ouvia, mesmo com os cobertores molhados cobrindo sua cabeça. As lambidas suaves de suas línguas no líquido. A garrafa de Papai. O líquido derramado
os havia atraído. Seria suficiente para saciá-los? Iriam embora?
Por favor, por favor, vão embora.
Os guinchos agora soavam como risadas, como um sorriso contido, molhado de saliva. Ir embora? Claro que eles não irão embora, essa era a escuridão e eles reinavam
na escuridão. Eles andaram até o berço, a cauda raspando atrás de si. Não, não, NÃO.
Isso era agora e não uma lembrança, ele não era uma pequena criança, ele não tinha mais medo dos ratos. E como o porão estava mais escuro que o mundo lá fora, ele
conseguia ver o contorno da porta. Tudo o que ele precisava fazer era abrir os olhos.
A voz de Mama chegou até seus ouvidos e ele não tinha certeza se as palavras eram faladas ou apenas imaginadas: - É SEMPRE a lembrança, Mason. A Grande Imagem do
Sonho. Nunca deixe seus sonhos se irem. Eles são a única coisa que você tem nesse mundo.
E algo rápido, molhado e quente raspou em seu rosto, logo abaixo de seu olho esquerdo. Pode ter sido apenas a ponta do cobertor deslizando, sim, claro, era isso,
ratos não comem pequenos meninos, isso não são pequenas patinhas pressionando suas pernas, é apenas sua imaginação, e você sempre teve uma imaginação fértil, não
é mesmo?
E você viveu o bastante para aprender que a escuridão não se espalha para sempre, que ratos não dominam tudo à sua volta, apenas seus sonhos, E SONHOS SÃO Á ÚNICA
COISA QUE VOCÊ TEM NESSE MUNDO.
E Mama finalmente chegou em casa, abriu a porta, acendeu a luz e o segurou, mas era tarde demais, dias, anos tarde demais, pois os ratos haviam devorado você, devorado
seus olhos e agora é sempre escuro, e eles reinam no escuro, e Mama não pode mais abrir a porta porque eles devoraram os olhos dela também. Ela fica somente sentada
na cadeira em seu ninho de ratos em Sawyer Creek e...
- Parece que ocê tá numa bela enrascada.
A voz, vinda de lugar nenhum e de todos os lugares, parecia fazer parte da escuridão. E a escuridão tinha que ter cores diferentes, porque um profundo túnel negro
se abriu a sua frente, como uma garganta. De pé, ao lado da boca do túnel, estava Ransom Streater, ferimentos escorrendo e tudo o mais, uma perfeita linha de perfurações
cruzando o peito do macacão, um dos botões torcidos.
Ransom estava sorrindo com sua boca de gambá, a cabeça careca e os olhos mortos, mortos, mortos.
- Korban me mandô até seu lugar ruim. - disse Ransom - Ocê devia de ver o meu. O meu é pió que o seu, pode acreditar em eu. Mas o Korban disse que se eu for um bom
ajudante, que eu vou sair do meu lugar ruim logo, logo. Tudo que tenho de fazê é levá ocê junto comigo pra fora desse lugar.
- Onde estou?
- Uái, no coração, é onde ocê tá. Mas o Korban qué mandá ocê de volta. Diz que ocê tem trabáio pra fazê.
- Que trabalho? - Mason abriu mais os olhos, ainda que os ratos estivessem famintos e os olhos fossem macios e suculentos. Mas a imagem não mudou e Ransom continuava
de pé, brilhando à sua frente, com o túnel por detrás, longo, negro, profundo e frio, com a diferença de que agora havia uma luz vermelha ao final, uma luz preciosa,
bela, sem ratos, Mama estava abrindo a porta.
Mason ficou de pé, ouviu os ratos correndo para seus buracos invisíveis. Ele disse a única coisa que lhe passou pela cabeça. - Você está morto.
- E não é um passeio no parque, posso jurar procê. - Ransom tocou em seus ferimentos, as sobrancelhas levantando-se quando ele colocou o dedo no orifício entre as
costelas. - Pelo menos ocê teve escolha.
Mason aproximou-se, a luz sinalizando. Ele olhou brevemente para a escuridão atrás de si, ouviu o barulho dos bigodes, garras e dentes molhados. Estremeceu. Korban
manteria esse lugar o esperando.
Mas a melhor coisa a fazer era colocar os medos para trás, por tanto tempo quanto possível. Negar sua existência. Enterrá-los.
- Aonde leva o túnel, Ransom?
- Para o fim, uái. Pra onde mais ele levaria?
Mason engoliu em seco. Ele lembrava que Ransom, o velho e vivo Ransom, havia lhe dito que o túnel levava de volta às fundações do solar. Ele pensou em correr para
a escada, mas ouvia os guinchos e línguas lambendo. Então, a voz de Mama derramou-se pela negra garganta do túnel. - Sonhos são tudo que temos, Mason. Agora venha
para cá e deixe sua Mama orgulhosa.
E não era apenas a voz de Mama, aqui na fazenda escura e suja de Korban, que o incomodava. Era a sugestão de guinchos em suas palavras, como se escorressem à volta
de grandes e curvos dentes de um roedor.
Mason seguiu Ransom para dentro do túnel negro, piscando conforme a luz ficou intoleravelmente forte. Uma lamparina estava acesa sobre a mesa. Mason estava no estúdio,
a estátua inacabada esperando à sua frente.
- Túneis da alma, Mason. - disse Mama - Estarei observando.
Mason virou-se a tempo de ver a longa e hedionda cauda cinzenta desaparecendo para dentro do túnel. Ransom permaneceu nas sombras do porão. - Nóis tudo tem trabáio.
Minha parcela é esperá no túnel. A sua é desse lado, por agora.
Mason ajoelhou-se, tremendo, e pegou uma goiva. Segurou seu maço a aproximou-se da estátua, estudando a forma grosseira de carvalho. Ephram Korban estava ali em
algum lugar, do mesmo modo que habitava tudo. No coração de tudo.
Mama mentiu. Ela disse que os sonhos são tudo que temos nesse mundo. Mas temos pesadelos, também. E lembranças.
E algumas vezes não é possível saber a diferença.
Mason atacou a madeira como se sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO 55
Sylvia abriu a porta antes que Anna chegasse à cabana. - Tava esperando ocê.
Anna passou por ela sem esperar convite. Sylvia olhou para o tecido dobrado sobre a lareira, o que envolvia seu encantamento. Todos os truques do livro e alguns
que havia ouvido muito tempo atrás à volta de fogueiras, estavam moídos e espalhados dentro daquele pedaço de tecido, e palavras haviam sido ditas sobre a mistura
que poucos lábios ousariam dizer. Mas agora não era o momento de ficar assustada ou com dúvidas.
- Esquenta seus osso aí. - disse Sylvia, movendo-se para uma velha cadeira de vime próxima ao fogo. - Essa noite é uma daquelas que a gente tem certeza de que o
inverno frio tá logo ali na curva da estrada.
- Você não me contou tudo. - disse Anna, indo direto à questão, mas ajoelhando-se em vez de se sentar.
- Tem certas coisa que sabê delas é demais. Já é ruim o suficiente que ocê tenha a Visão. Mas se ocê não tomá cuidado onde pisa, logo, logo vai tá é do lado errado
da morte.
- Mas por que minha mã... não, não minha mãe, quero dizer Rachel Hartley, pensa que eu sou algum tipo de salvação para os assombrados? Por que ela me chamou até
aqui? Se Korban já os tem, o que eu posso fazer? Só porque eu vejo fantasmas não quer dizer que eu tenha poderes especiais.
- Lembra o que foi que eu falei procê sobre poder? Não é naquilo que ocê acredita que importa, é quanto você acredita. - Sylvia manteve os olhos fixos nas chamas
que dançavam, não deixando seu olhar deslizar até o tecido dobrado, não importando o quanto eles quisessem dar uma espiada.
- Eu não devo nada a Rachel. - disse Anna - Você disse que o sangue corre mais grosso que a água. Mas isso não é tudo o que faz as pessoas pertencerem umas às outras.
- Criança, eu sei como dói. Eu me odiei pelas minhas fraqueza, meu pecado com Korban. Eu tentei cem vezes me dizê que ele causou isso, ele me enfeitiçô e fez tudo
acontecer. Mas é sempre fácil mentir pra ocê mêma, num é? É fácil empurrá tudo pra debaixo do tapete e esperá que ninguém vai vê a verdade, muito menos ocê.
É claro, mulher, você sabe a verdade, não é? Ephram deixou você matá-lo sob uma lua azul de forma que seu espírito pudesse entrar na casa. Mas você nunca imaginou
que Ephram acabaria convocando e colecionando todos os que morressem em suas terras. E você com certeza nunca imaginou que ele manteria a Srta. Mamie jovem, transformando
amor em veneno.
- Seu pecado foi há muito tempo. - disse Anna - Você deveria ter sido capaz de se perdoar após todos esses anos.
- Eu sempre fiquei com medo de dexá a coisa solta e caí de amores por ele. - disse Sylvia - Ocê não tem ideia de quantas veiz eu quis que aquela noite acontecesse
de novo, mas ao mesmo tempo eu tava toda cheia de nó por dentro com medo. Talvez fosse tudo obra do Ephram, um dos truque dele. Mas é uma coisa assustadora e terrível
quando seu coração é roubado desse jeito. E também é assustador e terrível queimá de ódio por alguma coisa.
- Mas Rachel...
- Eu amei ela, do mesmo jeitinho que ela ama ocê. E do mesmo tanto que o Ephram me amou.
- Você disse que a Srta. Mamie estava mantendo ele vivo. Isso e os espíritos daqueles que ele prendeu no solar. Aqueles que ele usa como combustível, algum tipo
de sifão da alma, alimentando- se de seus sonhos e dores.
- Pelo que ocê acha que o Ephram queima? - Sylvia curvou-se e pegou o atiçador, cutucando a lenha até que as faíscas subiram pela chaminé. - Os morto é igual os
vivo. Eles querem coisa que não podem tê. Os sonho inacabado de Ephram, uma fome danada. É por isso que ocê tá aqui.
Sylvia sentiu o tremor em seus membros, o sangue circulando asperamente pelas veias estreitas. Ela havia sido velha por tempo demais. Tinha arrependimentos demais,
havia se entregado para o pior tipo de calhorda possível. Se pelo menos pudesse fechar os olhos e descansar em paz. Mas Ephram Korban não permitiria.
Sylvia estava presa a esse lugar, viesse fogo ou enchente, e Rachel havia descoberto muito tarde que o que pertencia a Ephram sempre retornava. A morte de Rachel
nesse lugar foi a única chance de Anna. Porque Ephram encontraria Anna, aquele dom da Visão brilhando como um farol espectral no céu noturno .
- E meu pai? - perguntou Anna - Você tem alguma fotografia dele?
- As pessoa não tem fotos por aqui não, ainda mais aqueles que querem continuá morto. Já ouviu falar da magia das boneca? Onde eles roubam seu rosto e dispois sua
alma? Ocê é a única que pode livrá eles do Ephram.
- Não me importo com isso. - disse Anna - Os mortos ainda estarão mortos e eu continuarei sem nada. Pelo menos, se eu morrer no solar, terei um lugar aquecido para
assombrar.
Sylvia deixou as lágrimas rolarem. Essa era uma boa arma para se usar às vezes. Anna caiu na armadilha, aproximou-se e a abraçou.
- Rachel deu a vida pra que ocê pudesse escapá. - sussurrou Sylvia no ouvido de Anna - Se Ephram pegá a Rachel agora, ocê vai perdê ela pra sempre. E ainda tem os
que tão preso na casa, nem todos eles são pecador. Como aquela garota fantasma, Becky, que ocê viu na primeira noite aqui. Aquela criança nunca machucô uma mosca.
Se algum espírito merece ficar livre, é o dela.
Anna cerrou os punhos. - O que devo fazer? Sou só uma pessoa. Estou fraca, estou morrendo, minha alma não está na melhor das formas, pra começar. Como diabos posso
acreditar?
- Ocê deve segui seu coração, Anna. - Sylvia foi até a janela - O sol tá pra se pôr. Ocê sabe o que isso singifica.
- Sim, sim, sim. A lua azul.
Sylvia cruzou o aposento, mancando lentamente, amaldiçoando silenciosamente Ephram por entortar seus ossos e enrugar sua pele. Ela colocou a mão no ombro de Anna,
deixou uma lágrima se acumular no olho e então disse: - Ocê apenas segue seu coração. Isso é que significa acreditar.
Sylvia lhe deu outro abraço, dessa vez correspondido, agarrado, com um desespero que poderia ter nascido de uma vida de solidão. Sylvia finalmente a soltou e deu
um passo para trás. - É mió ocê voltá pra casa agora. A Srta. Mamie tá esperando.
Anna voltou para a floresta que escurecia. O vento estava cortante, frio o suficiente para deixar o orvalho precoce endurecido. Essa era uma noite para congelar,
pensou Sylvia. Uma noite para os mortos.
Ela fechou a porta da cabana e foi até a lareira, acariciou o tecido dobrado e ofereceu cinzas de orações para seu conteúdo.
CAPÍTULO 56
- Estão adiantados, cavalheiros. - disse a Srta. Mamie.
- Só apreciando a vista. - disse Paul, os pés no parapeito, uma taça de vinho nas mãos.
- Um pôr do sol encantador. - disse ela.
Adam olhou para o horizonte, as montanhas cobertas com ouro derretido, as encostas enrugadas em diferentes tons de cores e sombras. O vento carregava a promessa
de mudança, o ar repleto dos últimos odores agridoces do outono. Talvez fosse por isso que ele andava tão rabugento nos últimos dias. O inverno sempre se parecia
com morte para ele, uma terra árida e cinzenta para ser suportada, tanto quanto os pesadelos de sua infância. E ele havia culpado Paul por isso, aquela mudança sazonal
que o deixara inquieto por dentro.
- Não está contente de ter ficado, Sr. Andrews? - perguntou a Srta. Mamie.
Adam e Paul trocaram olhares. - Sim. - disse Adam - Eu tenho tendências melodramáticas algumas vezes. Não é mesmo, Paul?
- Com certeza, bonequinha. - ele bateu de leve na mão de Adam, o que a Srta. Mamie poderia tomar como sendo um gesto de suporte moral, mais que um gesto romântico.
- Esse é o melhor momento de nossas vidas.
Paul virou-se para a Srta. Mamie. - Está tudo bem se eu trouxer minha câmera de vídeo? Essa paisagem está de matar.
A Srta. Mamie sorriu. - Por que não? Penso que essa noite será memorável e valerá a pena ter um registro disso.
Lilith se aproximou, encheu o copo de Paul e ofereceu vinho para Adam, que levantou a mão recusando polidamente. - Não, obrigado. Sou o motorista hoje.
A risada da Srta. Mamie foi carregada pelo vento. - Ah, você é engraçado. Não me admira que Ephram goste tanto de você.
- Por falar nisso, estou surpreso que não haja um retrato dele nessa balaustrada. - disse Paul.
- Esse era um de seus lugares favoritos, quando estava vivo. Ele amava uma boa festa, especialmente na lua cheia.
Os Abramov estavam sentados de encontro ao parapeito próximo ao bar, afinando os instrumentos. A queda de temperatura afetava a madeira e eles tinham que ajustar
constantemente a tensão das cordas. Enquanto tocavam uma série de escalas, a mudança de tom dava à música uma qualidade discordante e atonal.
- Os Abramov prometeram um dueto original. - disse a Srta. Mamie - Composto especialmente para a ocasião. Agora, se vocês me derem licença, tenho alguns preparativos
a fazer.
Após sua partida, Adam se inclinou para frente em sua cadeira e segurou o parapeito, ousando olhar por cima dele para o pequeno telhado sobre a varanda e para o
arco da estrada no pátio, vinte metros abaixo. O local onde ele havia morrido. Ele engoliu em seco, fechou os olhos e sentou-se novamente na cadeira.
- Qual é o problema, princesa? - perguntou Paul - Você ficou pálida.
- Não devia ter tomado a segunda taça de vinho.
- Como posso transformá-lo numa garota festiva se você não suporta mais bebida que isso? A noite é uma criança.
- Sim, mas parece que tenho cem anos, agora.
Paul deu um tapinha no joelho de Adam. - Você fica aqui e descansa seus velhos ossos, então. Vou pegar minha câmera.
- E talvez dar uns tapas no seu baseado?
Paul deu aquele sorriso endiabrado e irresistível. - Ele me deixa mais criativo. E todo o resto.
- Guarde um pouco para mim.
- Você não mudou nadinha, não importa o que eles digam. - Paul olhou à volta, inclinou-se para frente e beijou Adam no rosto. - Como disse a moça, será uma noite
inesquecível.
Adam observou enquanto Paul cruzava a balaustrada e descia pela escada. Lilith e a cozinheira mal encarada estavam preparando a mesa com o bufê. Os Abramov retornaram
seus instrumentos para os estojos e agora estavam longe do parapeito, conversando com a mulher mediterrânea, Zainab. A fumaça saía das quatro chaminés, subindo acima
das árvores que circundavam o solar.
Adam encolheu-se na cadeira, tremendo. Ele não se importaria se houvesse uma fogueira agora. O outono estava morrendo e o inverno, chegando. Frio, cinza e sufocação.
Uma pena que essa noite não pudesse durar para sempre.
CAPÍTULO 57
O suor escorria como o sangue de um ferimento de espingarda, seus músculos gritando enquanto Mason passava a goiva sob a inclinação do que seriam as maçãs do rosto
de Korban. Ele raspou o formão na madeira dos ombros com sua mão esquerda. Ele nunca havia entalhado com ambas as mãos ao mesmo tempo, mas qualquer coisa era possível
agora. A madeira parecia descascar por vontade própria. Estavam com pressa, tanto ele quanto a estátua.
A voz veio novamente do busto, a voz que o havia pressionado a continuar, deixando Mason em um frenesi de cortes, entalhes e marteladas. Isso o havia assustado,
de início, mas agora a voz era apenas a de outro instrutor, talvez o mais exigente de todos com quem ele trabalhara.
Esse era o mais exigente dos críticos, também. O túnel o estava esperando, se ele falhasse.
O berço negro, os ratos, sua Mama com a voz guinchada e a longa cauda cinza.
- Mais no ombro, seu idiota. - disse o busto.
Mason olhou para o busto, para Korban, para sua criação, sua primeira obra-prima. A lamparina na bancada deixava o lado esquerdo do busto nas sombras.
Os lábios de madeira moveram-se novamente. - Rápido. Eles estão esperando.
- Quem? - a sílaba de Mason foi um sussurro. O ar do porão estava carregado com uma estática sobrenatural. Os pelos nas costas de suas mãos arrepiaram-se. Chamas
rugiam na chaminé central, do outro lado da parede de pedra.
- Siga com o trabalho, escultor.
- Preciso descansar.
- Você terá tempo de sobra para descansar depois.
Mason largou as ferramentas sobre a bancada, secou a sobrancelha e caiu de exaustão no chão de concreto. Então ele viu a pintura de Korban do solar, que alguém devia
ter alterado enquanto Mason não estava por perto. Porque as pessoas agora eram claramente visíveis, em grossas pinceladas de tinta. A mulher com o buquê havia se
movido para frente, além do parapeito, e sua posição havia mudado, os braços abertos, os olhos arregalados. Ela estava caindo.
E Mason não ligava para o que Anna havia dito, toda aquela bobagem sobre aquela mulher ser sua mãe, porque aquele era o rosto de Anna, aqueles eram os olhos de Anna
e aquela mulher tinha um meio sorriso misterioso que ninguém mais no mundo poderia ter.
- Ah! - disse o busto - Então é a mulher que você deseja, no fim das contas. A preciosa Anna.
- O que tem ela? - Mason estava além do ponto de duvidar de sua sanidade. Alguns artistas diziam que seus trabalhos falavam com eles, então escutar a voz de Korban
talvez não fosse assim tão estranho. Mas a linha divisória, o passo a mais que transformava um gênio em uma alma torturada com um certificado, ocorria quando o artista
começava a responder ao objeto em questão.
- Você pode tê-la, assim que me acabar. Já prometi fama a você. E eu sempre cumpro minhas promessas.
A resposta de Mason foi pegar o formão da bancada. Levantou o maço, dobrando o cotovelo para testar seu peso. Pensou em girar o corpo e enterrar a ponta grossa de
ferro entre os olhos de Korban.
Uma pancada de um maço quebraria o busto em dois pedaços. Mas como você poderia matar algo que já estava morto?
A estátua tremeu diante dele, os membros ainda grosseiros flexionando-se. O veios quebraram-se ao longo de um antebraço e o bloco da cabeça inclinou-se, um pequeno
nó soltando-se de onde Mason planejara entalhar a boca.
- Acabe-me. - gemeu o buraco do nó da madeira.
Mason largou o martelo e deu um passo para trás, suor, poeira e medo queimando seus olhos. Os braços de madeira moveram-se em sua direção, cavacos de carvalho caindo
das mãos toscas. Mason bateu de encontro à bancada, derrubando o busto. Ele olhou para baixo e viu os olhos fixos nele. Era o mesmo olhar frio que havia nas pinturas
de Korban espalhadas pela casa. Perfeito demais.
- E Anna? - perguntou Mason.
- Prometo que vocês dois ficarão juntos. Seremos uma grande família feliz.
Isso fazia sentido, tanto sentido quanto Mama olhando do túnel e provavelmente também uma versão bêbada e de olhos vermelhos de seu pai. Como nos velhos tempos,
com ratos nas paredes, as trevas por todos os lados e seu pai desmaiado no chão. Se conseguisse levar Anna junto com ele para esse lugar, as trevas poderiam ser
um pouco mais suportáveis. Korban sempre mantinha suas promessas. Como você poderia não confiar naqueles olhos maravilhosos e sábios?
Mason pegou a machadinha. Os críticos haviam se pronunciado. Mais entalhes na esquerda. Faça com perfeição. Grande imagem de sonho trazida à vida. Crie.
Madeira. Carne. Coração. Sonho.
CAPÍTULO 58
Anna sentiu-se como se estivesse de volta a um de seus sonhos, aqueles que haviam preenchido suas noites durante o último ano. Como ela havia feito tantas vezes
antes, na terra perdida dos sonhos, aproximou-se do solar pela floresta. A grande forma da casa cresceu por entre as árvores que a circundavam como enormes guardiões.
As janelas eram olhos, brilhantes e frios, mesmo com a luz de dezenas de fogos em seu interior. As chaminés vomitavam uma respiração de transição efêmera, matéria
em energia, substância em calor. A porta da frente murmurava boas-vindas suaves, a escuridão de seu interior prometendo paz.
Mas esse sonho acordado tinha características além de todos os outros, como se um sétimo sentido tivesse se somado ao sexto. A grama era grossa sob os sapatos e
uma geada brilhante se grudava à pele da terra. O céu estava brilhante tanto a oeste quanto a leste, pintado de lavanda e marrom por um pincel enorme e incerto.
O vento havia se tornado um suspiro e a rendição do outono pairava pelo ar frio. O solar esperava. Ephram Korban esperava.
Esse é o lugar ao qual pertenço? Estou realmente voltando ao lar?
Sylvia havia dito que Anna era um combustível. Que Korban iria consumi-la, usá-la, transformar sua alma em cinzas.
E o que isso importava? Que seu amor, ódio, raiva e orgulho fluíssem para dentro da casa. Para Ephram Korban. Ninguém a tinha desejado mesmo.
Ela riu estonteada quando cruzou a varanda, a energia estática bruta da casa fluindo para seu corpo, aquecendo-a, fazendo-a sentir-se maravilhosa. Voltando ao lar,
lar era onde seu coração estava.
A Srta. Mamie estava esperando. Ela abriu a porta e abriu caminho para Anna entrar, abrindo os braços em boas-vindas. - Ephram disse que você viria.
Anna sentiu-se embriagada. Mesmo sua dor estava cedendo, os fogos do câncer morrendo em seu interior. Ela ofereceria tudo. Korban poderia ter sua dor, sua solidão,
seu sentimento de nunca ter pertencido. Bon appétit.
Sim, ela havia retornado ao lar. Esse lugar havia aberto sua alma, havia permitido que ela visse fantasmas. Havia dado o que ela queria. Ela poderia morrer feliz
aqui.
- Você está adorável essa noite. - disse a Srta. Mamie. As palavras soaram como se viessem de um lugar muito distante. O fogo rugiu e estalou no final da sala de
estar. Anna olhou para o retrato de Korban sobre a lareira. Avô. Com os olhos tão brilhantes e amorosos.
Como ela pôde resistir a unir-se novamente à sua família? Que o círculo fique novamente completo. O que importava se as pessoas estavam vivas ou mortas? Quando você
vai a fundo na questão, há realmente alguma diferença?
Um, uma linha que divide... Então Zero. Nada. Tudo igual.
Anna olhou para a casa com novos olhos. As colunas, os cantos, os entalhes na lareira, os painéis de madeira avermelhada, os pisos de carvalho lustrados. Ela não
culpava Korban por nunca querer sair desse belo lugar. Ela também não queria ir embora agora.
- Você chegou bem a tempo para a festa. - disse s Srta. Mamie - Lá em cima na balaustrada.
Combustível. Pintar.
Alguma coisa sobre a pintura. Ela lá em cima, ao lado do fogo. Mason.
- O que foi, querida? - A Srta. Mamie colocou uma mão fria no queixo de Anna - Você não está se sentido doente, está?
- Onde está Mason?
- O escultor? Está ocupado agora, mas ele se juntará a nós. Assim que acabar.
Anna se deixou conduzir às escadas. Algo nas paredes a incomodava, algo que ela sabia que deveria lembrar. Mas elas estavam subindo agora, a Srta. Mamie mostrando
o caminho. Chegaram ao segundo andar e Anna olhou pelo corredor na direção de seu quarto. As lâmpadas astrais ao longo do corredor pareciam brilhar e depois diminuir,
como que alimentadas por uma respiração lenta e tranquila.
Elas alcançaram o terceiro andar. Anna não havia visitado essa parte do solar antes, apesar de resquícios apagados de alguma memória ancestral a cutucarem por dentro.
As paredes eram cobertas com tábuas de pinho barato, como as usadas em vagões de trens. Sem pinturas. Havia portas que deveriam levar a outros quartos e janelas
de empena em cada extremidade do andar. Uma lanterna de condutor em uma mesa feita à mão próximo ao corrimão da escada era a única luz.
A lanterna.
Mason tinha uma como essa no porão.
Onde estava Mason? Ela tentou se lembrar de seu rosto, mas ele estava perdido no meio do nevoeiro de sua cabeça, junto com tudo o mais. As paredes vibraram, incharam
e contraíram-se. A casa estava se movendo ao ritmo de sua respiração. Ela começou a ficar tonta, então a Srta. Mamie a encostou em uma pequena escada.
Anna olhou para cima, como que pelo olho do mundo, para as nuvens que captavam o brilho prateado da lua. A balaustrada. O topo do fim do mundo. Onde seus próprios
fantasmas a aguardavam.
Ela forçou os braços e pernas a subirem. Era hora de encontrar a si própria.
CAPÍTULO 59
Spence havia encontrado a Palavra.
Ele sentiu - não, soube - o que estaria esperando no final de seu último parágrafo.
A verdade vem em momentos improváveis. O único e verdadeiro Deus vem nas formas mais estranhas. Todos os dons tinham peso. Cada dom demanda um valor igual em sacrifício.
As paredes vibrantes e inchadas da casa o haviam distraído, a princípio. Apenas outro mal, outra coisa para roubar sua atenção, para desviá-lo da estrada para a
glória. Bridget engasgou e gritou quando elas tomaram forma, quando as imagens diáfanas caíram do teto e subiram do assoalho de carvalho, quando elas flutuaram oca
e friamente pelo quarto.
Spence as enxotou impacientemente. O verdadeiro caminho brilhante acenava para ele e tudo o mais eram bobagens e excesso literário. O caminho verdadeiro levava à
próxima sentença, que levava a próxima palavra a se lançar na polpa de madeira, enquanto o metal martelava a tinta no papel e lhe dava existência.
A noite estava pronta, a respiração emprestada e mantida prisioneira, pulmões de ébano e terra, pés de granito, braços ceifando os momentos de dormir dos olhos daqueles
que não enxergavam. Outubro gritava, um tapete de geada, uma reviravolta do vento marrom, o final de algo. O tempo andava para trás, frio para água quente e dura.
Vá para fora congelar e volte...
Ele se inclinou para frente na cadeira, sem se preocupar se o ar enregelante drenava suas forças. Ele não precisava gastar sua carne com Bridget. Ele estava tendo
uma relação melhor aqui, ele e a Palavra verdadeira. Sombras brancas moveram-se pelo quarto em silêncio, o fogo congelado, seus dedos coçando.
Volte para... o quê?
A Palavra estava lá, provocando, esperando, impulsionando-o, corpo e alma, para frente, flutuando fora do alcance.
- Deixe-me lhe dizer, colega, o que você está esperando?
Spence pensou inicialmente que as palavras haviam vindo de sua própria mente, como se um diálogo entrecortado estivesse tentando forçar caminho rumo à superfície
da narrativa. O fogo rugiu e ainda assim uma brisa gelada lhe escorregava pela nuca. Seus dedos se apoiaram na mesa.
A voz voltou novamente, não uma Musa, não Bridget, não Korban. - Anda logo com isso, homem. Não é o diabo do fim do mundo ainda.
Spence virou-se, lançou um olhar furioso ao fotógrafo que estava no canto do quarto, a face obscurecida pelas sombras. - Maldito seja você, por que não bateu na
porta? Não suporto interrupções quando estou trabalhando.
O sotaque de Roth diminuiu, tornando-se anasalado como no meio-oeste. -Nós temos túneis da alma, Jeff. E adivinhe quem está dentro do seu?
- Você está louco. - disse Spence - Venha para onde eu possa vê-lo.
O fotógrafo fez um leve movimento com a mão na direção do quadro de Korban. - Ele disse que você pode levar sua máquina de escrever, mas que todas as teclas estarão
emperradas.
Spence tentou se levantar, a raiva vibrando dentro dele e enviando um brilho forte de dor para a têmpora esquerda.
Roth riu, a voz se tornando aguda, acelerada como aquela voz aguda e estridente do passado de Spence. A voz da Srta. Eileen Foxx. - X tem som de CH, igual como em
XIXI - disse ela, o corpo de Roth sacudindo com a risada de júbilo.
- F-f-foxx Botox? - disse Spence, confuso, o peito crivado de dor. O calor se espalhou por sua genitália, uma umidade estranha, quase agradável.
Roth moveu-se novamente para as sombras e desapareceu. A última advertência de Eileen Foxx pairou no ar como uma ameaça. - É melhor você passar de ano, Jefferson,
ou estarei esperando. Sim senhooorrrr, e você ficará após a escola comigo.
Spence ficou olhando o fogo até que a umidade entre suas pernas ficou gelada, então virou-se novamente para a máquina de escrever, as palavras na página quase como
símbolos entalhados por uma civilização perdida. Elas não tinham mais significado, mas ele sabia que não estavam completas. Ele necessitava daquela palavra.
A sala inteira riria dele novamente se ele não encontrasse a palavra.
CAPÍTULO 60
Mason levantou novamente o formão, o maço na mão direita escorregadia. A pilha de cavacos de madeira estava da altura dos tornozelos à sua volta, a estátua entalhada
em uma forma reconhecível. A cabeça ainda necessitava de muito trabalho, mas os braços e pernas estavam lá, o torso tão forte e feio quanto um coto. Isso era uma
obra-prima horrível, um toque de mestre rústico, uma visão criativa que ninguém deveria ver.
Olhos.
A coisa necessitava de olhos, para poder ver. E quando ela pudesse ver, então o quê?
- Você não está trabalhando, escultor. - disse o busto.
- Estou pensando. - disse Mason.
- Você pensará quando eu mandar você pensar. Agora acabe.
Acabar. E ele poderia ter tudo, fama, fortuna, a aprovação de Mama. E a garota. Ah, não se esqueça da garota.
Ele olhou para a pintura novamente. A figura de Anna havia mudado de posição, estava definitivamente caindo e os braços agora estavam bem abertos, o buquê escorregando
de seus dedos, o meio sorriso mudado para um longo túnel redondo de um grito.
Anna. Algo sobre Anna que ele deveria lembrar, se conseguisse pensar em algo além da estátua. Os sussurros escaparam novamente dos cantos do porão e ele temeu que
o túnel houvesse se aberto novamente, que Mama sairia e o cheiraria, com o nariz pontudo de roedor, lhe mostraria os dentes afiados, balançaria os bigodes e falaria
sobre o poder dos sonhos.
Mas o sussurro se espalhou novamente e a voz agora era a de Anna: - Mason. A voz vinha da pintura.
- Não lhe dê ouvidos, escultor. - disse o busto - Preciso de você. Dê-me meus olhos. E minha boca. Estou com fome.
Anna falou novamente da pintura: - Ele o está consumindo, Mason. Ele está consumindo a todos nós.
- Trabalhe! - ordenou o busto.
- Consumindo nossos sonhos. - disse Anna - Quanto mais próxima fico da morte, mais eu entendo.
Próxima da morte? Anna?
Ele tinha que encontrá-la. Algo estava errado. Algo estava errado com ele. Ele olhou para as mãos machucadas, as ferramentas, as coisas que deram forma a essas monstruosidades
à sua frente. De onde tinham vindo essas gárgulas? Não de sua imaginação, isso era certo.
- Sonhe-me para a vida. - ordenou o busto - Não pare agora. Sonhar com Korban.
Não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Bons ou maus, trazendo-lhe fama ou não. Deixando sua Mama orgulhosa, ou não.
Ele desejava seus próprios sonhos. Não os de Korban.
Mason levantou o formão, pressionando-o contra o peito da estátua, levou o braço atrás e bateu com força no formão. O busto gritou. Mason bateu com o martelo no
busto, lançando-o ao chão.
- Escultooooor! - Korban rugiu, uma voz como milhares de fogos devorando o ar do estúdio, sacudindo os pilares da casa.
A estátua estremeceu, os membros moveram-se com o gemido das farpas de madeira e ela se libertou dos pregos que a mantinham equilibrada. As mãos de madeira se moveram
e ficaram enroscadas nos arames. As pernas haviam sido divididas em baixo, mas os pés não haviam sido refinados, meros pedaços de carvalhos recobertos com casca.
Os pés pesados arrastaram-se pelo chão.
Movendo-se na direção dele.
Mason chutou a bancada, derrubando a lamparina sobre ela. A chama se apagou quando o globo de vidro quebrou. Eles estavam na escuridão.
Ele e Korban.
Exceto que Korban estava acostumado à escuridão, Korban alimentava-se da escuridão, Korban era a escuridão.
Mason tateou à frente do rosto e moveu-se naquilo que achou ser a direção das escadas. Ele tropeçou sobre algo metálico e então caiu nos braços da estátua animada,
os ossos se chocando contra a madeira...
Não, eram apenas os postes da velha cama. Mas agora ele estava confuso, todas as direções pareciam a mesma e ele ouvia o contorcer e guinchar atrás de si. Ruídos
de roedores.
Não, não, não, não, não o berço.
E na trilha desse pensamento veio outro, igualmente assustador. Ele havia ansiado por criar uma obra de arte eterna. E ele havia feito isso. Isso era seu sucesso
imortal.
Os braços da estátua estalavam enquanto procuravam seu criador, o som igual ao de ossos secos quebrando. Korban estava se esticando, experimentando o novo corpo
na escuridão. O belo e desajeitado corpo, entalhado pelo toque amoroso de Mason.
- Estou cego. - disse a voz abafada de Korban, como se estivesse mastigando serragem. - Você não terminou meus olhos.
Os dedos de Mason tatearam nos pilares de suporte. Ele abaixou-se atrás deles e ajoelhou-se no escuro. Tentou controlar a respiração, mas não conseguia. As batidas
fortes de seu coração o denunciariam. Os pesados pés de madeira arrastaram-se em sua direção.
Se ele está cego, também está surdo. A não ser que parte dele ainda esteja no busto. Se for assim, talvez ele também possa CHEIRAR você.
Mason estremeceu violentamente com a imagem de um rato encostando-se às suas costas, os bigodes balançando e o nariz contorcendo-se enquanto cheirava o ar à procura
de suporte. Korban era um rato, um rei roedor, pronto para pegá-lo. A cauda grossa escorregou no chão frio de concreto. Mason pressionou as pálpebras até que a dor
expulsou a imagem em uma explosão de verde brilhante.
- Venha cá, escultor. - disse Korban, a voz mais clara agora, mais estridente. Será que ele havia se movido novamente para o busto?
Os pés desajeitados escorregaram mais próximos e, então, foram para longe.
Onde estão as escadas?
- Não me traia. - disse Korban. A voz preencheu o estúdio, mas os ecos foram tragados pelo ar parado.
A estátua deve ter encontrado o busto e o levantado do chão. Qual dos dois estava incorporado por Korban? Ou ele habitava os dois ao mesmo tempo? Se ele podia preencher
a casa toda de uma vez, então com certeza ir e vir entre alguns pedaços de madeira seca não era nenhum truque complexo.
Dois passos pesados para frente. O som áspero ou era a estranha e trabalhosa respiração de Korban ou era o ar quente passando pelos encanamentos sobre sua cabeça.
- Precisamos um do outro. - murmurou Korban.
Fama, fortuna e a garota. E tudo que Mason tinha que fazer era continuar fazendo aquilo pelo qual vivera e ansiara até hoje, o que estava em seu sangue, aquilo para
o qual nascera e pelo qual valia o risco de morrer.
Criar.
Trazer os sonhos à vida. Ele nascera para criar.
Ele poderia fazer Korban e Korban poderia fazê-lo. O que Anna havia dito? Não era no que você acreditava, mas o quanto você acreditava. Ele acreditava em sua arte.
Mason ficou tentado a estender o braço e tocá-lo, acariciar os músculos suaves e a pele de madeira.
Esse seria seu trabalho eterno. Seria simples, na verdade. Apenas transferir as feições que havia feito no busto para a estátua. Trazer Korban total e finalmente
à vida.
Ele ouviu um estalido, um som suave que poderia ter sido um riso contido. Ou o suspiro de um rato.
- Acabe-me. - sussurrou Korban.
Render-se seria tão fácil. Render-se a um sonho. Por que se preocupar em fugir dos desejos mais profundos de seu coração, o chamado dos fogos de sua alma?
A voz de Anna veio da escuridão, do canto onde ficava a pintura: - Ele devorará seus sonhos, Mason.
Mason se lançou desordenadamente na direção das escadas e subiu-as tropeçando, o porão vívido com os estalos furiosos de madeira e o escorregar de coisas invisíveis,
o túnel frio de escuridão lambendo seus calcanhares e ameaçando engoli-lo para sempre.
CAPÍTULO 61
Sylvia parou defronte à porta da frente. Ela não havia estado na casa por muitos anos. Desde a morte de Rachel. Um arrepio cruzou-lhe o corpo, trazido por mais que
simplesmente a friagem de outono. Isso era como entrar em uma igreja, terreno sagrado, um lugar onde as almas andavam livremente.
Ela apertou o patuá que havia escondido dentro da blusa, junto do calor de seu coração. Estava assustada, mas tinha fé. A lua estava subindo, lançando uma luz fria
sobre as montanhas como se um novo dia estivesse nascendo. Talvez estivesse. Um dia de noite sem fim, onde as coisas renascem, quando as promessas negras eram mantidas
e rompidas. Quando os feitiços carregavam o peso das preces.
Sylvia abriu a porta sem bater. Ephram sabia que ela estava ali, com certeza. Não havia necessidade de ser sorrateira. E os outros, eles moviam-se nas paredes, agitavam-se
no porão, espiavam por entre as frestas das pedras da lareira.
O retrato de Ephram quase lhe roubou o que havia restado de sua respiração. Ela havia visto aquele rosto em milhares de sonhos, metade deles pesadelos, a outra metade,
o tipo de sonho que lhe deixa envergonhado quando você acorda.
- Olhe para mim. - murmurou ela.
Ephram olhou para ela com os escuros olhos pintados.
- Tô véia. - disse ela - Eu fiquei viva por meio da magia todos esses ano. Andando por aí, esperando essa lua azul sua. Bem, tô aqui agora e não tô bem certa do
que ocê tem a pretensão de fazer sobre esse assunto.
A pintura caiu da parede, a moldura pesada se quebrando, a tela dobrando-se. Quando uma pintura cai, é um sinal certo de que o modelo está para morrer. Mas quando
uma pintura de uma pessoa morta cai...
As chamas rugiram pela chaminé, dedos de fogo voaram na direção de Sylvia, lembrando-a da noite no chão do quarto de Korban, a noite que plantara a semente de Rachel
profundamente dentro dela. Uma noite de fogo gelado.
E essa era outra noite de calores proibidos, uma noite de geada e chamas. Ela se dirigiu para a escada, deixando o rosto de Ephram caído no chão de madeira, próximo
ao calor da lareira. Eles estavam esperando na balaustrada do telhado, sob a lua nascente. Anna, a Srta. Mamie e Lilith. Ephram se juntaria em breve e Sylvia não
perderia isso por nada no mundo. Nesse mundo ou em qualquer outro além dele.
Ela apertou o patuá até os dedos doerem, o coração pulsando de fé enquanto subia as escadas.
CAPÍTULO 62
Mason mergulhou para dentro da luz do corredor como se fosse água benta. Ele bateu a porta do porão e escorregou a trava metálica, trancando-a. Por que havia uma
tranca do lado de fora? O que era mantido no porão que necessitava de um tranca?
Agora que estava fora do ar sufocante do porão, sua mente começou a clarear. E os pensamentos que vieram eram quase tão assustadores quanto o transe criativo que
o havia consumido de dentro para fora. Ele encostou-se na porta, o coração batendo forte.
Bela jogada, Mase. No caso de você ter esquecido, esse cara está morto a mais de oitenta anos e você acha que PORTAS vão pará-lo agora?!
Mas Korban havia sido desajeitado e enrijecido quando movera-se para a estátua. Isso porque o fantasma ou espírito ou o que quer seja tinha se movido para dentro
de um objeto feito pelo homem. Porque Korban precisava daquela energia, daquele fazimento, antes de tomar para si aquele objeto de incorporação.
Então, talvez, ele passe através da PORTA, cabeça de bagre. Parece que ele não precisa seguir nenhum tipo de regra por aqui.
Talvez. Mason socou a porta frustrado. A porta retumbou em resposta como se mãos de madeira batessem do outro lado. Mason olhou pelo corredor.
- Socorro! - gritou ele. Com certeza alguém ouviria o barulho e veria que havia algo de errado. Havia movimentação no fim do corredor. A porta da copa abriu-se.
- Graças a Deus! - disse Mason, caminhando para longe da porta do porão. Um de seus painéis de madeira trincou e rachou-se com as batidas. - Tem um... hmm...
Mason ainda estava procurando as palavras quando se deu conta de que seriam desnecessárias. A cozinheira tinha saído da copa, um cutelo na mão gorda. Ele podia ver
o cabo de madeira da faca. Toda ela, até sua ponta brilhante. Ele estava vendo através da mão da mulher.
Ela era feita da mesma substância leitosa que Ransom e George. O que significava...
Mason olhou para a direita. O corredor terminava em uma pequena porta. Ele teria que passar pela - ou através - da cozinheira para chegar ou à porta da frente ou
à porta dos fundos da casa. E ele tinha a sensação de que deveria se apressar, pois as paredes estavam começando a zumbir com aquela estranha energia estática que
ele sentira no porão.
A porta do porão estilhaçou e cedeu, e as mãos avermelhadas de carvalho da Korban passaram pelo buraco. A cozinheira, subitamente sólida, bloqueou o corredor com
o corpanzil etéreo. Seu lábio estava curvado como se tivesse acabado de cheirar manteiga rançosa. O cutelo dançou à sua frente, a lâmina de metal refletindo as chamas
das lamparinas.
Mason afastou-se dela, apesar de não haver para onde correr. Korban lançou o braço em sua direção pela da fenda na porta, acertando Mason na cabeça com um punho
rústico. Uma escuridão repleta de faíscas inundou seu crânio enquanto ele caía ao chão. Quando ele piscou para se desvencilhar da inconsciência, sangue escorria
de seu escalpo e ele viu redemoinhos nos veios da madeira da parede.
A parede estava se movendo, ou sua cabeça estava rodando. Não, era a parede. Havia algo dentro da parede.
Um rosto tomou forma e emergiu da madeira. A face esboçou um sorriso quando projetou-se para dentro do corredor. O fantasma de George Lawson abanou a mão reserva
e flutuou na direção de Mason.
Korban destruiu a trava metálica e a porta do porão abriu-se. Mason se forçou a ficar de pé e correu na direção da cozinheira, esperando que ela fosse tão macia
quanto parecia. Ele se abaixou e mergulhou entre suas pernas, do modo como havia sido ensinado nas aulas de futebol em Sawyer Creek. Seus ossos rangeram quando ele
afundou na carne gelada e ele ouviu algo estalando em seu ombro.
Fantasmas não deveriam ser sólidos. Mas até aí, fantasmas não deveriam ser. O cutelo assobiou pelo ar e ele olhou para cima a tempo de ver o rosto da cozinheira,
morto e inalterado. Seria a mesma expressão que ela teria cortando cenouras para um refogado.
Ele tentou rolar para a esquerda, mas o cutelo ricocheteou na parte de cima de seu braço. Ele soltou uma respiração agonizante e as gotas de sangue voaram sobre
seu rosto quando ela levantou o cutelo para outra investida. Ele engatinhou como uma aranha aleijada pelo chão, desviando-se dela, os pés pesados de Korban trovejando
pelo corredor.
Mason pulou para a escada, agarrando o corrimão para se puxar para cima. Seu coração bateu violentamente, enviando jorros de sangue do ferimento enquanto ele se
rebocava escada acima. O sangue foi, de uma forma inusitada, uma lembrança de que ele ainda estava vivo. Em um mundo onde sonhos transformavam-se em pesadelos, sangue
era bem-vindo e a dor significava que ainda se podia sentir.
Mason alcançou o segundo andar e olhou na direção da suíte mestre. William Roth encontrava-se nas sombras, ao lado da porta fechada de Spence.
- Corra! - gritou Mason, tentando desesperadamente fechar a abertura rasgada no braço. - Os fantasmas... Korban...
Então todas as palavras se perderam quando Roth foi banhado pela luz das lâmpadas astrais. O rosto do fotógrafo estava pendurado aos farrapos, um zigue-zague de
cicatrizes recentes fazendo seu sorriso ficar deformado. Os globos oculares estavam brancos, como lentes vazias.
O fotógrafo mostrou um punho pálido enquanto Mason tentava coordenar as cordas vocais em um grito.
- Olá, companheiro. - disse o fantasma-Roth, as palavras balbuciadas e abafadas. Os lábios cortados abriram-se novamente e coisas viscosas caíram da boca morta e
comaçaram a caminhar sobre a roupa estraçalhada. Aranhas.
Ambas as pontas do corredor escureceram. Um vento forte apagou todas as lamparinas nas paredes. Era o longo túnel negro, correndo em sua direção de ambos os lados,
e que levariam Mason de volta aos ratos.
A voz de Ransom ressoou das paredes: - Têmo túnel de alma procê, Mason.
A estátua cambaleou escada acima, como um manequim embriagado. Mason espiou por sobre o corrimão e viu o busto aninhado no braço da estátua, como um bebê carregado
pela mãe.
Os lábios do busto se separaram e um lamento ecoou da madeira, como se toda a casa se juntasse à voz de Korban: - Acabe-MEEEEE!
Mason correu para as escadas. O terceiro andar estava escuro. Apenas os fachos leitosos de luar através das janelas impediam que Mason corresse a toda contra uma
parede. Ele tentou sugar ar para os pulmões, mas o ar negro era como uma coisa sólida, espesso e sufocante. Ele ouviu as vozes e olhou para cima, vendo um quadrado
de claridade.
O alçapão para a balaustrada do telhado!
Onde o fantasma de Anna havia gritado na pintura.
CAPÍTULO 63
A lua cheia nasceu cortando por entre os galhos das árvores. A floresta brilhou com a geada e a respiração de Anna brilhava à sua frente. A Srta. Mamie levou-a até
o parapeito e Anna olhou para as terras à volta, que seriam seu lar. Ela pertencia a essa casa, a essa montanha, a Ephram Korban.
- Você é linda. - disse a Srta. Mamie, levantando a lamparina até o rosto de Anna. - Posso ver por que Ephram deseja tanto você. Por isso e pelo seu dom.
Os Abramov se sentaram em suas cadeiras, aproximaram os instrumentos de seus corpos como um encontro de amantes. Paul encaixou a câmera em um tripé, Adam observando-o.
Cris e Zainab conversavam próximas ao bar, Lilith rindo e reabastecendo seus copos. Os outros hóspedes estavam em um grupo na outra extremidade do parapeito, conversando
em vozes baixas e animadas.
- Você sabe por que está aqui, não é mesmo, Anna? - perguntou a Srta. Mamie.
- Porque eu pertenço a esse lugar. - As palavras eram de outra pessoa.
- Eu também. - disse Sylvia e a Srta. Mamie se virou, encarando a velha.
- Não. - disse a Srta. Mamie, o rosto queimando de ódio. - Essa é a noite de Ephram. Ele me disse que você nunca retornaria, que ele a havia usado.
- O Ephram precisa de mim mais que precisa docê.
- Eu o mantive vivo e ele me manteve jovem. Olhe para você, seu saco patético de ossos. E pensou que ele poderia amar alguém como você!
- O amô é como uma porta que abre pros dois lado. A morte é igual. Gelo e fogo. Mas ocê nunca haveria de saber, num é? Ocê não sabe de nada de magia, nem de feitiços,
nem de fé nem de qualquer das coisa que prenderam o espírito do Ephram nessa casa por todos esse tempo.
- Você é uma bruxa louca, balbuciando sobre ervas e pós. É de mim que ele precisa. Sei como fazer as bonecas!
- Bem, ele vai chegar loguinho e daí ocê vai podê perguntar direto pra ele. Agora, o que vamô fazê com a pequena Anna?
- Anna?
Anna levantou a cabeça com a menção de seu nome, a noite como água, o mundo em câmera lenta. Os Abramov iniciaram o dueto solene, os arcos deslizando sobre as cordas
com suave melancolia, as notas vibrando ao vento. Essa era a casa de Anna. Ela não era Anna Galloway, nunca havia sido. Aquela vida era um sonho, o câncer letal
era um sino que havia sido badalado para trazê- la para casa, a morte apenas uma lenta transição que a levaria de volta para si mesma.
Ela era Anna Korban.
E ela se moveria por essas paredes para sempre.
O frio do mundo tornou-se o gelo dentro dela, o coração congelado da eternidade, enquanto ela se encaminhava para aquela linha divisória.
- E ela? - perguntou Sylvia.
- Ah, Anna morre. - disse a Srta. Mamie - Pela última vez.
CAPÍTULO 64
Mason subiu a escada aos tropeções na direção da balaustrada e para o ar frio da noite.
A presença de um grande espaço à sua volta, e a altura à volta, fez sua cabeça rodar e o estômago embrulhar. O mar de noite e as distantes montanhas ondulantes ao
fundo sugaram a força de suas pernas como se os ossos tivessem sumido. Ele se forçou a não pensar no chão lá embaixo, por todos os lados. O patético medo de alturas
empalideceu frente aos novos medos que ele havia descoberto.
Mason piscou, o sangue sobre os olhos, e olhou para a cena surreal na balaustrada. Anna estava junto ao parapeito, entre a Srta. Mamie e uma velha trajando um vestido
imundo e um xale rasgado. Pareciam estar discutindo sobre Anna, que tinha uma aparência drogada ou sonolenta, cambaleando na estranha luz lançada pela lua. O suor
de Mason esfriou no ar outonal e ele tocou na ferida no ombro. A dor o trouxe com violência para a realidade e ele correu para Anna.
- A pintura! - disse ele - Você estava me chamando!
- Quem é você? - perguntou Anna.
- Onde está a estátua? - perguntou a Srta. Mamie - Você não a deixou sozinha lá embaixo, deixou?
Ele olhou atrás de si, para a portinhola. - Temos que dar o fora daqui, Anna!
Mason pegou o braço dela e o frio da pele o inundou como um choque elétrico. Ele olhou dentro dos olhos dela e viu uma escuridão interna sem fim. Túneis. Seus olhos
eram túneis da alma, levando-a a morte ou abrindo-se de uma negritude interna ainda maior.
Antes que ele pudesse sacudi-la ou perguntar o que estava errado, a estátua colocou a cabeça disforme para fora da portinhola de acesso à balaustrada. Gritos emergiram
dentre os convidados enquanto a estátua se levantava toscamente sobre o piso, os membros pesados estalando e batendo, o formão de Mason ainda cravado no peito, o
busto aninhado debaixo do braço grosso. Os Abramov pararam a música no meio de um arpeggio. Uma taça se quebrou. A Srta. Mamie engasgou e correu na direção da forma
inacabada. - Ephram!
A estátua ficou de pé sobre pernas instáveis, o busto aninhado olhando furiosamente para Mason com uma raiva fervente nos olhos. A Srta. Mamie lançou os braços à
volta do torso de madeira.
A velha meteu a mão no interior de seu xale e puxou um envelope de tecido de dentro. Ela o desdobrou, aproximando-se da estátua com passos lentos. - Trouxe aquilo
que ocê queria, Ephram.
Mason olhou da velha para Anna. Ambas tinham os mesmos olhos cinzentos e Mason se deu conta de por que pareciam tão familiares. Porque eram os olhos que ele havia
tão carinhosamente esculpido no busto de Ephram Korban.
Ele novamente estendeu os braços para Anna, para puxá-la na direção da portinhola, incapaz de pensar em algo que não fosse fugir dali. Três lances de escada, a casa
repleta de fantasmas. Korban nunca os deixaria sair. Mas eles tinham que tentar.
Antes que Mason sequer conseguisse mover as pernas, o fantasma apareceu junto do parapeito, a imagem cuspida de Anna. Ela segurava um buquê de flores à sua frente.
Exatamente como a mulher na pintura.
- Mãe. - disse Anna.
CAPÍTULO 65
Esse não era o modo como a Srta. Mamie havia imaginado essa noite, o modo que ela havia desejado durante todas as milhares de horas solitárias, quando tinha nada
mais que o rosto de Ephram no espelho, seu espírito na lareira, as palavras vindas de um retrato.
Essa noite deveria ser perfeita, uma união de duas almas, tudo o mais esquecido. Ephram e sua amada Margareth, juntos novamente, unidos tanto na vida quanto na morte.
Com sonhos a serem concretizados.
E lá estava aquela encarquilhada Sylvia, que tentara o pobre Ephram tanto tempo atrás. E agora Rachel havia chegado. Rachel, que nunca deveria ter estado na casa.
Essa era a razão de ela e os serventes de Korban a terem perseguido, terem-na feito pular para a morte. Ephram havia dito que aqueles que o traíssem nunca ficariam
livres, mas àqueles que o servissem seria permitido uma segunda e derradeira morte. Era por isso que a Srta. Mamie havia entalhado as bonecas com cabeça de maçã,
os pequenos fantoches que abrigavam as almas escravizadas.
- O escultor não acabou seu trabalho. - disse a Srta. Mamie para a estátua. O busto respondeu: - Ele terminará.
Sylvia ajoelhou-se ante a estátua, desdobrou o tecido, levantou um punhado de pó nas mãos enrugadas. - Cinzas de uma oração, Ephram. Fiz como ocê me disse.
A Srta. Mamie agarrou-se à estátua, seu amado Ephram, que estava vestindo carne depois de todos esses anos sob a forma de fumaça e sombras. - Do que ela está falando,
Ephram?
A estátua varreu os braços de carvalho, arremessando a Srta. Mamie ao assoalho da balaustrada. Ela se virou e ficou de quatro, a roupa rasgada, o belo vestido que
havia guardado para a lua azul aos farrapos. Para a segunda lua de mel.
- Ephram? - perguntou ela.
- Ele não precisa docê. - disse Sylvia.
A Srta. Mamie engatinhou até ele e abraçou as pernas ásperas. - Ephram! Você me ama! A estátua a chutou para longe. - Enfeitice-me, Sylvia.
- Me devolve meus anos primêro. - disse Sylvia - Me faz jovem de novo. Como ocê prometeu.
- Enfeitice-me!
- Ocê disse que sempre cumpre suas promessa. - Sylvia levantou o tecido repleto de poções mágicas.
- Do que ela está falando, Ephram? - perguntou a Srta. Mamie. Subitamente, ela sentiu-se fria, como se um glaciar houvesse cortado seu coração. Olhou para as mãos.
A pele se enrugou perante seus olhos enquanto rugas profundas vincavam a pele, pequenos rios de idade correndo escuros sob a luz do luar. Ela tocou no rosto, a pele
se esticando e enrijecendo-se sobre o crânio, ao mesmo tempo que cedia sobre o queixo.
Oh, Deus, ela estava envelhecendo!
- Você me prometeu, Ephram. - disse ela - Juntos para sempre.
A estátua e o busto se juntaram em uma gargalhada. Os hóspedes correram para a portinhola, mas Lilith a fechou e ficou sobre ela. - Ninguém deixa o Solar Korban.
- disse ela, sorrindo como um esqueleto.
CAPÍTULO 66
Anna caminhou na direção de Rachel, movendo-se como se nadasse em uma água escura. - O que você está fazendo aqui?
- Tentei avisá-la, mas você não ouvia.
- Sobre Sylvia?
- Ela sempre amou Korban. Foi por isso que ela o matou, para agradá-lo. É por isso que ela aprendeu magia, feitiços e poções, que mantiveram o espírito dele vivo
até que pudesse finalmente trazê-lo de volta.
- Isso é tudo uma loucura, um sonho bizarro. - disse Mason.
Anna lhe deu um meio sorriso. Será que ele não conseguia ver o óbvio? Tudo era tão mais fácil quando você estava morto. Porque os mortos não precisam mais sonhar.
CAPÍTULO 67
- Estou vendo, mas não estou acreditando. - disse Paul, a cabeça inclinada para o visor da câmera. - Isso é demais. Romero após LSD, John Carpenter em contenção
de despesas.
Adam deu um puxão em seu braço. - Temos que dar o fora daqui!
- Documentário chocante! Não perderia isso por nada no mundo.
- Que diabos, Paul, isso é como no meu sonho. Você não vê? Todo mundo está morto.
Paul levantou os olhos da câmera, dando o sorriso de garotão. - Nem todos, princesa. Só você.
- Não faça isso. - disse ele.
- Ou você está trabalhando para o cara desse lado, ou o serve do outro lado. Você pode morrer, se quiser, mas eu prefiro ser o próximo Alfred Hitchcock, como Korban
me prometeu.
- Não estou morto, seu idiota miserável.
Paul riu. - Como queira.
Adam olhou para sua mão, que segurava a manga da camisa de Paul.
Os dedos passavam pelo tecido, agarrando o vazio. Ele colocou a mão no peito. Quando mesmo que seu coração parara de bater?
Jesus amado, tenha piedade de mim, quando meu coração parou de bater?
Paul apontou para o parapeito e para o caminho pavimentado à frente da casa. Adam não pôde se conter e olhou.
Havia uma forma, lá embaixo, torcida, rasgada e quebrada. Dois metros de comprimento, vestida com um pijama cinza, escurecida com líquido. A forma estava mortalmente
imóvel.
E só. Terrivelmente só.
CAPÍTULO 68
Spence colocou um dedo trêmulo sobre a Royal. Os fantasmas passavam por ele, a carne nebulosa gelando o quarto. Roth havia ido embora, Bridget estava perdida em
algum lugar.
Spence pressionou uma tecla.
F.
A única e verdadeira Palavra, se desvelando, mostrando a pele dourada, abrindo a carne para ele. Um convite para entrar.
A agitação dos fantasmas fez as páginas do manuscrito voarem enquanto as formas brancas se infiltravam no teto. O maior trabalho de todos os tempos. Eles podiam
levá-lo de volta à sala de aula de Aileen Foxx, mas dessa vez ele teria algo para mostrar a eles, para calar as pequenas bocas moles e impressionar os olhos cruéis
e sem vida. Ele tinha a prova de sua superioridade.
Suas entranhas doíam, o suor escorria nas axilas, o couro cabeludo latejava. A tensão elétrica dos fantasmas fez o cabelo no dorso de suas mãos se arrepiar. Ele
pressionou outra tecla e um "o" bateu ao lado do F.
Ele pensou que a única e verdadeira Palavra seria algo mais nobre e raro, algo com sete sílabas que apenas os gigantes literários e dicionários saberiam. Engraçado
que a palavra era comum, elementar. Mas as opiniões de Spence não tinham mais peso agora.
Ele era apenas um instrumento, a espada e o cetro, a pena, a pederneira e o aço. A Palavra era o início e o fim das coisas.
Vá para fora congelar e volte em fo...
Ele bateu o "g", chorando ao final de seu trabalho, já sentindo o velho vazio, já sentindo necessitar novamente de Bridget. Alguém para salvá-lo de si mesmo.
Ele olhou para Ephram Korban, para o rosto amável, os olhos encorajadores, os lábios generosos que lhe haviam fornecido cada palavra desse trabalho descomunal.
- Obrigado, senhor. - disse Spence.
Os fantasmas haviam ido embora, agora. Sem distrações. Sem desculpas. Apenas ele mesmo, a Palavra e Korban. Enquanto ele observava, o retrato ficou escuro, como
uma velha televisão se apagando.
Ele procurou as teclas, cego pelas lágrimas, e colocou o dedo desajeitado e imerecedor sobre a letra magnífica.
CAPÍTULO 69
Sylvia sentiu um jato de energia correndo pelas veias, o cansaço escorregando para longe, o doce sumo da juventude derramando-se sobre ela como uma cachoeira de
água refrescante. Ela inclinou a cabeça para trás e riu. Deixe que a Srta. Mamie volte ao pó. Ephram amara apenas uma, aquela que havia feito os sacrifícios. A que
tivera fé. Aquela que havia rasgado o vestido fúnebre ensanguentado da própria filha, que havia quebrado ossos de coruja, penas de corvos, raízes e dúzias de outras
coisas.
A que dera os patuás errados para Ransom. A que construíra a ponte para Ephram voltar para esse mundo por meio das cinzas de mil orações. Aquela que havia pronunciado
os feitiços, que havia enviado a magia para os ventos e trazido Anna, a que fisgara Anna na carne mais profunda de seu coração e a enfeitiçara, deixando-a cega para
que a morte pudesse completar o círculo.
Ah, Sylvia tinha fé, com certeza, e ela desejava todos os frutos dessa fé. Ela desejava Ephram de volta.
Ela se levantou, novamente com dezesseis anos, ansiosa por oferecer a nova virgindade ao homem que roubara sua alma, que havia incendiado a chama eterna de seu coração.
Ela jogou uma pitada do pó sobre a estátua, imaginando aqueles grandes braços amando-a, aqueles lábios rústicos e quentes sobre sua pele, aqueles olhos queimando
dentro dos seus para sempre.
- Fale. - disse a estátua.
Ela sussurrou, tremendo: - Vá para fora congelar e volte em fogo.
CAPÍTULO 70
Com as palavras de Sylvia, as quatro colunas de fumaça das chaminés se insinuaram, adensando- se em um nevoeiro espesso. A fumaça enviou seus dedos esfarrapados
na direção de Anna, costurando entre Mason, Sylvia e a estátua que abrigava parte da alma de Ephram Korban. O busto, que continha o resto do poder invisível e eterno
de Ephram, sorriu para Anna com afeição perversa.
Mason abanou a fumaça com as mãos, mas ela escorregava através dele e os dedos cinzas, iluminados pela lua, rastejaram sobre Anna como vermes enregelados. Eles encontraram
a parte macia de sua garganta e tornaram-se sólidos, apertando em uma força gentil, quase erótica. Ela levantou as mãos para empurrá-los para longe, mas relaxou
sob a carícia insistente.
Seus pulmões queimavam pela falta de ar e uma tontura gélida correu por sua espinha para a base do crânio. Anna tentou falar, Mason a tinha segura pelos ombros e
a balançava, enquanto ela estava parcialmente consciente do movimento na balaustrada. Mas a maré cinza estava adentrando pelos cantos de sua visão, empurrada por
uma grande onda negra de vazio.
Ela não soube dizer quando a mudança aconteceu. A linha havia sido mais tênue do que ela jamais imaginara. Por alguns breves momentos, ela estava em ambos os lados,
viva e morta ao mesmo tempo, mas esse momento passou e ela cruzou a barreira. Ela finalmente se encontrou, seu verdadeiro eu. Ela tornou-se o fantasma que sempre
quis ser.
A dor interior havia sumido. Em seu lugar, um vácuo inquietante, uma ânsia vazia. Solidão. Ela estava morta e ainda não pertencia.
E a morte era igual à vida, porque o mundo era o mesmo: Sylvia sussurrando algo para a estátua, a Srta. Mamie ajoelhada e soluçando, as mãos sobre o rosto como que
tentando segurar a carne no lugar, Lilith flutuando sob o luar, os Abramov sentados com olhos vazios, agora tocando um tom fúnebre, Mason sobre ela, gritando sobre
uma pintura falante, Korban em madeira, sonhos se tornando realidade e todo tipo de loucura. Será que ele não via que nada disso importava?
Morte e vida, as duas eram iguais agora.
Rachel flutuou à sua frente, segurando o buquê. - Sinto muito, Anna. Eu a abandonei. Anna estendeu as mãos para o buquê. Seu corpo caiu ao chão.
- Anna! - Mason pulou em sua direção, tentando segurá-la e amparar a queda, mas o corpo que ela havia abandonado caiu para longe dele. Ela ouviu sua carne tombando
sobre as tábuas do assoalho da balaustrada, mas seu espírito continuou caindo. Através da casa, através desse espaço de negra inanidade que se tornaria seu lar.
A morte não era uma libertação. Morte, pelo menos no entendimento de Ephram Korban, era apenas mais uma prisão, repleta das mesmas sombras e sofrimentos da vida.
Com a diferença que aqui não havia escapatória nem esperança e ainda ninguém a quem pertencer.
- Anna! - A voz de Rachel, um vento gemente de dentro de uma sepultura, um chamado desesperado.
Ainda assim, Anna caiu.
CAPÍTULO 71
Mason segurou Anna nos braços. Seu rosto estava pálido, os olhos vidrados e arregalados. Ele encostou a bochecha em sua boca. Sem respiração.
Sem respiração.
Raiva e medo cresceram dentro dele, as lágrimas queimando nos olhos. Ele olhou para aquela lua estufada e obscena. Ela estava morta. E era culpa dele. Ele havia
falhado.
Ele gentilmente a deitou no chão, limpando o sangue de seu rosto, e virou-se para a estátua. A velha que Korban chamara de Sylvia havia mudado, estava jovem, o rosto
contorcido num sorriso sinistro. Mason ficou de pé, apesar da longa queda além do parapeito lhe deixar tonto e da sensação de estar no topo do mundo torcer suas
entranhas de terror.
- Vá para fora congelar. - Sylvia repetiu, a pele vibrante e fresca ao luar. Anna não havia lhe falado algo sobre gelo e fogo?
Deus, por que ele não conseguia se lembrar? E será que isso importava?
Porque essa estátua, sua criação, sua maldita imagem de sonho, estava de pé sobre a balaustrada como um monstruoso ídolo de madeira, nascido da vaidade, fé e amor.
Sim, amor. Porque Mason havia amado seu trabalho.
- Você me terminará, não é mesmo, escultor? - disse o busto calmamente, aninhado entre os grossos braços da estátua. - Você me ama. Todos me amam.
-Você havia me prometido Anna. - disse Mason.
- Ah, ela. Ela não é nada. Um mal necessário. E você aprenderá que a carne é efêmera, mas o espírito é eterno. Não é verdade, minha querida Sylvia?
- Quando você dá seu coração a alguém, você a possui. - disse a mulher. E apesar de agora possuir uma beleza que rivalizava com a de Anna, as sombras à volta de
seus olhos eram mais velhas que as montanhas Apalaches, escuras, frias e repletas de segredos.
- Então pague seu débito. - disse Ephram - complete o feitiço.
- A tercêra vez é um encantamento. - disse ela - Mas primêro, tem uma promessa que ocê tem que cumprir.
- Promessa? Qual promessa? - A estátua levantou os olhos para a lua e os veios de carvalho brilharam como centenas de diamantes. Geada. Ela havia congelado a madeira.
Gelo e fogo.
Mason não estava certo da conexão entre as duas palavras. Mas ele entendia fogo. A lamparina da Srta. Mamie brilhava perto do parapeito, onde ela a havia deixado
quando Korban surgira. Mason pensou se ele conseguiria pegá-la antes de Korban achar que já era hora de começar a jogar corpos do topo de sua casa.
CAPÍTULO 72
- Anna. - chamou Rachel novamente. Anna abriu os olhos para a escuridão.
A escuridão não era absoluta. Ela piscou.
- Onde estou? - perguntou ela, a voz flutuando como se dita por uma centena de línguas.
- No porão.
- Da casa?
- Todos nós vivemos aqui. - disse outra pessoa, e uma mão estava na sua, pequena e fria.
- Você! - disse Anna - A pequena garota da cabana, a que Sylvia chamou de Becky.
- Você veio nos ajudar. - E a menina sorriu.
- Eu não posso ajudar você. - disse Anna. E agora ela via Rachel, etérea e brilhante contra uma cortina de escuridão.
- Eu tive que esperar você morrer, Anna. - disse Rachel - Você tem o dom, mais forte ainda que o meu. Korban me matou porque sabia que eu era mais forte que Sylvia.
Mas não como você. Quando você estava viva, você tinha a Visão. Mas agora que morreu, você tem a Terceira Visão.
- Terceira Visão?
- O poder de olhar da morte em direção à vida. O poder de nos unir. De manter nossos sonhos, de um jeito que Ephram nunca pôde, porque ele os queria para si. Ele
desejava nossos medo e ódio, mas se esqueceu da fé. Porque nós acreditamos em você, Anna.
- Acreditar. Assim fala a maior mentirosa do mundo. - Ela queria poder rir, mas em sua grande terra de nada e desesperança, um som desses não poderia existir.
- Acredite. - disse Rachel - Torne-se o veículo. Una nossos sonhos, nossos sonhos reais. Deixe nossos sonhos invadirem você, para que possamos finalmente morrer.
- Você quer morrer?
- Mais do que qualquer coisa. - disse a garota.
- Ajude-nos. - disse outra voz vinda da fumaça cinzenta desse novo mundo de morte.
- Livre-nos de Korban. - disse outra e ainda outra mais. Quantas almas Korban havia aprisionado ao longo dos anos? Quantas das poções de Sylvia e feitiços haviam
lançado sua magia de aprisionamento?
- Siga seu coração. - disse Rachel.
- Meu coração. Ele apenas me leva ao inferno.
- Ele pertence aos vivos.
- Não. Eu pertenço a esse lugar.
- Sylvia mentiu, não eu.
- Não confio em nenhum de vocês. Por que deveria acreditar?
- Escute. Não sou sua mãe.
- Você não é minha mãe?!
- O poder de Ephram é que ele permite que você veja apenas o que quer ver. Ele lhe dá o que você deseja. Por que você acha que finalmente pode ver os mortos?
Anna não pensou que seria possível descer a um congelamento maior que a morte, mas a revelação fez sua alma girar. Ela havia sido uma idiota. Como poderia encontrar
seu próprio fantasma?
- Sylvia usou você. - disse Rachel - Ela me usou também. Somos apenas gravetos para serem lançados em seu fogo sacrifical.
- Odiei você. - disse Anna - Quando Sylvia me disse que você era minha mãe, achei que finalmente havia encontrado alguém para culpar. Agora sou só eu e estou tão
perdida quanto sempre estive.
- Sinto muito. Eu quis lhe avisar, mas Ephram me controla também. Tudo o que desejo agora é nunca ter nascido.
-- Isso vale para mim também. - disse Anna.
- Você não está só, Anna. Algo aconteceu. O feitiço de aprisionamento foi quebrado.
- As bonecas. - disse Adam.
- Adam? - perguntou Anna. Seus olhos da alma não podiam vê-lo nas sombras. - Você está morto?
- Eles dizem que estou, então devo estar.
- O que tem as bonecas? - perguntou Rachel.
- A Srta. Mamie as fez. - disse Adam - Entalhadas, com pequenas cabeças de maçã. Eu vi a minha, apenas não sabia do que se tratava. Acho que ela esculpiu uma para
cada um que morreu.
- Ela está morta. - disse Anna - Acho que ela nunca esculpiu uma para si.
- Então ela não pode mais nos prender. - disse Rachel - Estamos livres.
- Não livres. - disse Anna - Não até que Ephram tenha sido morto pela derradeira vez.
- Salve-nos. - disse Becky.
- Tire-nos daqui. - disse Adam.
- Você é a escolhida. - disse Rachel - Você foi trazida para cá por um motivo.
Outras vozes vieram da escuridão à volta, implorando, encorajando. Anna sentiu a energia delas fluindo para si, uma corrente de calor que rodopiou seu coração morto.
- A Terceira Visão, Anna. - disse Rachel - Não sou sua mãe, mas estaria orgulhosa se fosse. Porque você é forte. Até mesmo mais forte que Ephram.
- Não sei. - disse Anna - O que devo fazer?
- Diga. O que Sylvia lhe ensinou. Só que de trás para frente.
- Gelo e fogo?
- Sim. E acredite nisso. Os vivos permanecem vivos, os mortos se vão.
Vivos. Talvez viver não fosse assim tão ruim, mesmo com dor, pesar e fracasso. Mas pelo menos a vida oferecia esperança, segundas chances, escolhas. O que era essa
dor que crescia em sua alma agora? A dor da esperança, o desejo de uma carne esquecida, o arrependimento das coisas por fazer e das palavras não ditas?
Ela pensou em Mason na balaustrada, enfrentando o monstro de madeira que havia feito, um monstro que assombraria essa montanha como nenhum fantasma conseguiria.
Assombraria como um deus, com raiva, poder e arrogância, como se todas as coisas vivas lhe pertencessem.
- Saia o fogo, entre o gelo. - disse Rachel. - Diga isso.
Anna abriu a boca morta e sonhadora. Dezenas de vozes se juntaram à dela, Becky, Adam, Rachel, todas se unindo em um coro, um cântico de esperança, uma ânsia pela
liberdade final. - Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo. Saia o fogo, entre o gelo.
Um, uma linha que divide...
Dois, um gancho vazio...
Três, forcado de inglês...
A terceira vez é um encantamento, abrindo a porta. Para um aposento de esperança. Uma casa de fé. Uma casa para a alma de Anna Galloway.
Ela era Anna. Ela estava viva.
Ela abriu os olhos, viu o círculo alvo da lua, sentiu o frio de outubro na pele, sentiu o sabor da fumaça que saía das chaminés, sentiu o cheiro das folhas apodrecidas
levado pelo vento, ouviu o distante rugir do coração de Ephram Korban. Ela colocou a mão sobre o próprio coração. Batendo. Em ritmo com o dele. E com o dos espíritos
que ela carregava dentro de si, as esperanças e sonhos combinados dos mortos descontentes.
Combustível.
Ephram desejava combustível, ela lhe daria combustível.
Ela se levantou e, apesar de seu corpo ainda estar deitado sobre a balaustrada, ela não precisava de carne para sua tarefa. Tudo o que ela precisava era a fé de
seu espírito. Porque ela finalmente havia encontrado algo ao qual pertencer, algo que lhe oferecia mais que apenas uma escuridão sem fim, algo maior que ela mesma.
Sua casa estava cheia e Korban era uma casa dividida. Presa entre gelo e fogo.
CAPÍTULO 73
A Srta. Mamie se levantou, o corpo cadavérico e seco.
Onde estava sua a carne, a beleza que Ephram lhe havia dado? Ela queria um espelho, porque espelhos nunca mentiam. E nem Ephram. Porque Ephram a amava. Ele a havia
matado por alguma razão, com certeza.
Talvez o amor deles teria lugar do outro lado, não no lado mortal. Aquilo era a única coisa que fazia sentido. Ela ainda tinha olhos, podia ver o mundo mortal e
podia sentir todos os estranhos sabores da morte, e a morte era igual a vida, apenas melhor.
Ela iria para Ephram agora, sob seus termos, do modo como ele a havia criado. Mas por que Sylvia ainda estava viva? E novamente jovem e bela?
Ephram poderia explicar tudo isso. Afinal, eles teriam a eternidade para isso.
Ela caminhou na direção dele, apesar de seu espírito estar costurado ao céu noturno , pesado e espesso, e ela lutou para caminhar sobre a trama de escuridão.
Uma aura desfocada brilhava sobre os cortes grosseiros dos ombros da estátua. Ephram elevou o busto de bordo como se fosse um troféu, mostrando-se para o mundo,
mostrando para o mundo o homem que possuía os dois lados.
- Manda ela embora. - disse Sylvia para ele - Aí eu termino o feitiço.
- Sylvia. - disse Ephram, a estátua e o busto falando em uníssono. - Eu lhe dei tudo.
- Quero isso mais que tudo o resto. Não vai sê bastante ter seu coração. Quero ela fora do seu coração pra sempre!
- Você foi a única que amei.
- Sim, mas isso é a mesminha coisa que ocê falô pra ela. Mas ocê mentiu pra uma de nós. A Srta. Mamie lutou contra a gravidade que a empurrava para a escuridão.
Túneis da alma, Ephram havia dito que todos tínhamos túneis da alma. Qual é o meu, Ephram? O que eu temo mais que tudo na vida?
Sylvia olhava com grandes olhos apaixonados para o belo tronco de carvalho. Seus feitiços haviam trazido uma horda enevoada, juntando-se à volta da estátua como
adoradores aos pés de um profeta renascido:
Ransom, confuso e triste, os dedos remexendo no patuá que não tinha poder. George Lawson, oferecendo a mão decepada como um tributo.
Os Abramov, os instrumentos esquecidos, a música ainda sendo tocada sozinha. Lilith, brilhando mais e menos, como uma pintura inacabada.
William Roth, aranhas saindo pelos olhos.
O busto sorriu para o céu noturno . - Adeus, Margaret.
A Srta. Mamie moveu a mão para o medalhão. Mas ele havia desaparecido. Estava junto do vestido vazio e o pó do corpo decomposto. Então ela percebeu que já se encontrava
em seu túnel. Porque esse era seu maior medo, e agora ela veria seu amor indesejado esvaindo-se em um ralo escuro, seu sacrifício recusado, um século de promessas
resultando em nada.
Ela sentiu a alma se esvanecendo ao vento, para ser carregada na direção das montanhas, onde Ephram estaria sempre fora do alcance.
CAPÍTULO 74
Não mesmo.
Nem em um milhão de anos!
Mas Mason não podia negar. O corpo de Anna havia tremido ao seu lado. Os cílios se agitaram.
O peito elevou-se levemente por baixo da mancha de sangue que Mason lhe havia deixado na camisa. A respiração resfriou o suor na palma de sua mão. Ela estava de
volta.
E mesmo no medo e estarrecimento, um jato de prazer correu por seu sangue, uma felicidade como ele nunca havia sentido. Isso tudo era um sonho maluco, tinha que
ser, mas os sonhos eram tudo agora.
Mason olhou para a adorável madeira avermelhada da estátua que ele havia feito, para os espíritos à sua volta, para o busto de bordo que exigia que Sylvia terminasse
o feitiço.
Os olhos de Anna se abriram, as íris não mais azuis. Eram vermelhas, então amarelas e laranjas, brilhando em todas as cores do fogo.
E ela se levantou, exceto que o corpo continuou sobre o piso da balaustrada. Ficou de pé. Um fantasma, mas ainda assim seu corpo respirava.
Ela estava em ambos os lados ao mesmo tempo, morta e viva.
- Ela... ela não devia de voltar! - Sylvia gemeu, voltando a se curvar como uma velha, apesar de sua juventude. - Ocê matô ela como matô Rachel!
- Eu preciso dela. - disse Korban - Ela é parte da casa. Agora termine o feitiço. Eu mantive minha promessa. Margaret se foi.
Os lábios vivos de Anna se abriram em um glorioso meio sorriso, as palavras escorrendo como um coral de vozes moribundas: - É o fogo, Mason.
Ele tocou no queixo dela, quente com o calor humano. - Você confia em mim? - murmurou ele, o tipo de coisa que diria apenas em um sonho. Mas não tinha mais nada
a perder.
Talvez isso fosse a arte verdadeira, a criação que lhe dava retorno, o trabalho que completava a si mesmo. Essa era a maior de todas as imagens de sonho.
- Talvez. - disse Anna - O Fogo.
"Talvez" era o suficiente para arriscar tudo. Mason sabia o que tinha que fazer, o que deveria ter feito muito tempo atrás. Ele abaixou-se para a lamparina, vendo
os olhos de Anna em suas chamas intoxicantes.
CAPÍTULO 75
Oh, Deus, algo estava errado.
Sylvia jogou o pó do patuá sobre Ephram e pressionou o vestido fúnebre de Rachel sobre seu coração.
Anna não deveria ter voltado. Ela tinha que estar morta e assombrando a casa, servindo Ephram, servindo com seus sangue, energia e poder. Mas lá estava ela, respirando,
piscando e sussurrando com o escultor.
E os olhos de Anna não estavam corretos. Pessoas demais olhavam por eles, todos furiosos como cobras presas em uma caixa.
Ela faria com que ele se livrasse de Anna também, do mesmo modo como se livrara da Srta. Mamie. E de Rachel. Ela ficaria livre de todas elas. Apenas ela e Ephram.
Ela estava ansiosa para testar o novo corpo. Um século de espera era tempo demais. Ela gastara dez mil feitiços nesse homem e era hora de um pouco de compensação.
O belo busto abriu a boca. Seria esquisito beijar aquela coisa, fazer amor com uma estátua que nem tinha todas as partes ainda, mas sempre diziam que o amor achava
um jeito. E ela teria a eternidade para aprender como domá-lo para sempre e ensiná-lo o valor de seus encantamentos, invocações e feitiços. Ser desejada para sempre.
Ela abriu a boca para dizer o feitiço a última vez.
- Vá para fora congelar e volte em...
CAPÍTULO 76
Anna sabia que esse era o momento, o tempo da encruzilhada eterna. O momento para os fantasmas morrerem.
- Aqui vai o seu maldito fogo! - gritou Mason sobre a música louca e as folhas esvoaçantes. Ele agarrou a lamparina, a carne da mão chiando, e pulou na direção de
Ephram, gritando na direção do céu. Levantou a lamparina sobre a cabeça e jogou-a na direção da estátua.
Anna liderou o salto para fora do corpo, o espírito um canal para os sonhos aprisionados e esperanças perdidas de todas as almas penadas.
Combustível.
A lanterna se quebrou na estátua, o óleo espesso embebendo o carvalho, as chamas azuis, vermelhas e laranjas lambendo a forma desequilibrada de Korban. Uma língua
de fogo correu sobre seu braço, ateando fogo ao busto de bordo. Gritos gêmeos rasgaram a noite enquanto o fogo crescia rugindo, açoitado pelo fogo ensandecido.
O peito de Anna esvaziou-se enquanto os fantasmas torturados do solar passavam através dela, voavam sobre as tábuas da balaustrada e enxameavam à volta de seu odiado
mestre. Seu combustível alimentou dez vezes o fogo, vinte vezes, enquanto a estátua tombava e dançava em agonia. O busto caiu ao chão, os lábios arregaçados em uma
dor infinita. Mason chutou-o na direção da estátua, de volta para a coluna infernal de fogo.
Anna afastou-se cambaleando, livre de todos os espíritos, a não ser o seu. A luta era estonteante demais para se observar, mesmo com Segunda ou Terceira Visão. Uma
fumaça ácida saía pelas chaminés do solar, faíscas vermelhas e brilhantes voando pelo ar.
O solar oscilou, as paredes se curvando e estalando, as vigas quebrando como ossos secos. As empenas gemeram na angústia do colapso. Línguas de fumaça derramaram-se
pelas portas e janelas, enrolando-se nos pilares e escurecendo o céu.
Korban girou na escuridão em uma valsa enlouquecida de morte, Sylvia ajoelhando-se a seus pés, os vivos e mortos tentando desordenadamente escapar do fogo que ardia
em ambos os lados da linha divisória entre a vida e a morte.
CAPÍTULO 77
Uma parede de chamas cruzava a balaustrada, cortando a fuga pela portinhola. Mason semicerrou os olhos contra a fumaça, os nervos da mão chamuscada gritando em ondas
alternadas de dor vermelha e laranja, a cabeça e o braço em agonia pelos machucados. Ele caminhou tropegamente até o parapeito e olhou para baixo, a escuridão lhe
dando vertigens.
Uma mão o tocou e ele se virou, pronto para se render, para deixar Ephram Korban tragá-lo para dentro de seu pesadelo interminável.
Era Anna.
- As árvores. - disse ela - Acho que conseguiremos alcançá-las.
- Eu não consigo. - disse ele, a garganta seca. - Alturas.
- Todos temos que enfrentar nossos medos cedo ou tarde. E você acabou de queimar sua obra-prima. O que mais você tem a perder?
- Você.
- Certo, então. Venha, pois eu sou egoísta demais para sobreviver a esse inferno todo sozinha.
Ela subiu no parapeito no ponto mais distante possível das chamas. Um choupo balançava-se nas correntes de ar geradas pelo fogo, os galhos roçando o parapeito. Vidro
quebrou-se abaixo, as chamas explodindo para fora das janelas e rugindo pelas bocas das chaminés. A casa toda oscilava e rachava com os espasmos da destruição.
- Ephram Korban. - disse Anna - Ele está morrendo junto com a casa.
Ela agarrou os ramos, puxou-se na direção da árvore e virou-se para Mason. - Depressa!
Ele tomou a mão dela, fechou os olhos e lançou uma perna à volta do ramo grosso. Seu estômago se contorceu, sentindo o espaço abaixo dele, a longa e profunda abertura
entre seu frágil corpo e o chão...
Não pense, Mason.
Ela voltou dos mortos e você está preocupado com uma coisinha à toa como cair daqui.
Mas não era com a queda que ele estava preocupado, mas sim com a aterrissagem. O morrer. Porque ele havia visto os olhos ocos e ausentes daqueles que haviam contemplado
os túneis negros. Ele preferia a cegueira a qualquer daqueles horrores escondidos, aqueles segredos de sua alma que chafurdavam muito longe da luz.
Ele caminhou precariamente sobre o ramo, a mão dela segurando sua camisa ensanguentada e, no momento que eles alcançaram o tronco, ele estava segurando a sua também.
As paredes estavam desabando. Era o fim. Spence olhou para o papel, para a Palavra.
F-o-g-o.
Chamas se infiltraram por entre as frestas do assoalho, a fumaça irrompeu da lareira. A vidraça se estilhaçou para fora e as chamas jorraram por debaixo da porta
do closet como água colorida.
Uma voz aguda gritou através do estalar do fogo: - Saia, Jeff!
A Musa? Ele olhou de sua mesa, confuso. O trabalho era lindo. Deslocado desse caos maligno, dessa destruição, desse inferno Dantesco. Mas a Palavra - a palavra não
poderia ferir seu criador, poderia?
Ele estivera enganado. A Palavra mentira. Korban havia mentido.
O escritor era o mestre. A linguagem sua escrava.
O quarto estava tomado pela fumaça agora. Bridget, gritando do corredor, abaixou-se fora de vista. Spence inclinou-se para frente, as molas da cadeira rangendo.
Ele tentou pegar o manuscrito, mas labaredas famintas subiram pela parte de trás da escrivaninha.
Ele ficou de pé, os olhos turvos e os dedos insensíveis. A fumaça entrou por suas boca e garganta, enquanto ele começou a se mover para a porta. Ele não podia deixar
seu manuscrito. Virou- se com esforço, tonto com a falta de oxigênio. As páginas haviam se tornado uma fogueira, as sentenças virando vapor, a Palavra perdida no
calor de sua própria mentira gloriosa.
Spence cambaleou até o dormente da porta, uma pontada de arrependimento no peito. Ele não havia pressionado a tecla do ponto final. Ele não havia terminado seu manuscrito.
Ele tentou novamente retornar para o quarto, mas o teto estava desabando, a casa entrando em colapso, a máquina de escrever perdida numa maré de amarelo e vermelho.
O fogo sugou o oxigênio pela janela e uma brisa escaldante enviou uma folha de papel pela porta. Spence a agarrou, segurando-a de encontro ao peito.
Chorando, ele se arrastou pelo corredor, tossindo e cuspindo.
CAPÍTULO 78
- ... fogo. - murmurou Sylvia, terminando de pronunciar o feitiço, apesar de agora ser muito, muito tarde.
Todos aqueles anos de espera, de sacrifício, de decepções estavam perdidos. Os anos que Ephram lhe tinha dado de volta, os anos roubados de Margaret, estavam sumindo,
recuando para o passado. Por direito, eles deveriam ser seus. Ephram deveria ter sido seu.
Seu amante de madeira se contorcia e se curvava sobre a balaustrada queimada e descascada. Por trás da parede de chamas, ele havia perdido um pouco de sua majestade.
Mas ainda tinha poder, aquele magnetismo que a havia levado a sacrificar tudo por ele. Ele estava morrendo novamente, a terceira e última vez, e precisava dela.
Ela sentiu isso de forma tão intensa quanto sentiu o cabelo encolhendo com as chamas e a umidade da pele evaporando com o calor.
- Sylviaaaaa!! - rugiu ele, ou talvez tivessem sido apenas as línguas de fogo.
Ela se arrastou em sua direção, para dentro do fogo. Ao contrário da última vez que vira Ephram, dessa vez o fogo queimou seu corpo e sua alma.
Quando as chamas lhe roubaram a respiração, enquanto os olhos secaram nas órbitas e o cérebro ferveu, ela compreendeu que a possessão funcionava para os dois lados.
Quando você dá seu coração a alguém, essa pessoa possui você. E você a possui em retorno.
Para os dois lados. Gelo e fogo.
E dor, uma agonia congelante de dor. A coisa chamada amor. Uma coisa suicida e assassina.
CAPÍTULO 79
Anna desceu, trançando por entre os galhos. Mason estava logo atrás, descendo com um cuidado nervoso. O calor do solar rugia sobre ela, pedaços de madeira e cinzas
voando na ventania do incêndio. A sensação a lembrou de que estava viva, de que a morte que ela recepcionara com carinho era agora uma coisa contra a qual lutava
para fugir. Talvez estar vivo significasse nada mais que lutar para ficar distante da morte.
Talvez.
Ou talvez Rachel estivesse certa. Você deve viver para algo maior que si, pertencer a algo que valha a pena. Então você se torna merecedor de seu descanso.
- Segure-se, Mason, estamos quase chegando.
- Ótimo. Porque eu acho que a casa está ruindo.
Eles finalmente alcançaram o chão, Mason cambaleando, fraco pelos ferimentos. Ela lhe deu suporte, levando-o através do jardim do solar, para longe. O calor havia
derretido a geada e a grama estava molhada, o vapor elevando-se. Quando alcançaram uma distância segura, ela e Mason caíram ao chão, livrando os pulmões da fumaça,
observando a pira funeral de Korban conforme estendia seus longos dedos na direção da lua.
As grandes estruturas enegrecidas da casa delineavam-se contra o céu e Anna viu o rosto de Korban nas chamas, centenas de vezes o tamanho original, encarcerado em
seu próprio túnel negro, aquele no qual seus sonhos morriam, onde seus servos o abandonavam e onde seu coração se transformava em cinzas. O túnel no qual ele não
tinha nada e no qual seu trabalho permanecia para sempre inacabado.
As grandes empenas dobraram-se, os parapeitos caindo para os lados. As colunas iônicas quebraram-se e o pórtico desmoronou com um trovão. As janelas jorravam chamas,
as paredes amontoadas umas sobre as outras, o piano lançando um acorde metálico quando caiu no porão. Vidros quebravam, chamas rugiam e a fumaça afunilava-se para
o topo da casa como uma garganta maligna no fim do mundo.
- Olhe! - disse Anna, apontando para o outro lado do pátio coberto de geada, na orla da floresta. Pequenas bonecas de madeira moviam-se entre as sombras.
- Alguns deles escaparam. - disse Mason - Eles estão vivos, não é?
- Claro. - Ela se deu conta de que sua Segunda Visão havia sido cegada, de algum modo, havia perecido junto com os fantasmas de si mesma que ela havia dado a Ephram
Korban.
Havia se livrado de um fardo.
Cavalos galopavam pelo campo, relinchando de pavor. Então a noite foi dilacerada por um guincho hediondo que ecoou sobre as montanhas. O chão tremeu, as árvores
curvaram-se para trás e o celeiro ruiu. As cercas também caíram, brilhando como ossos úmidos ao luar.
- Ele está levando tudo consigo. - disse Anna.
- Isso significa que ele está...?
- Morto? Se é que sabemos o que isso pode significar agora.
Ele colocou seu braço à volta dela e ela relaxou contra ele, agradecida pelo seu calor. - Acho que é tudo um sonho. Mas sonhos não são grande coisa. Acho melhor
estar acordado.
- Eu tambem.
Eles se sentaram na grarna, observando o fogo diminuir, e esperaram o alvorecer.
CAPÍTULO 80
- A ponte se foi. - disse Cris - Não sobrou nada, a não ser alguns troncos na borda do penhasco.
- Não estou surpresa. - disse Anna - Korban levou com ele tudo que lhe pertencia. Um maníaco por controle até o final.
O sol da manhã elevou-se sobre as montanhas, derretendo a geada restante e um nevoeiro elevou- se do chão como uma alma penada, juntando-se às últimas colunas fumarentas
dos escombros do solar. Anna e Mason se sentaram sobre montes de feno, junto com Zainab e Paul. Anna havia atrelado dois cavalos a um abrigo próximo, enquanto os
demais e o gado pastavam no pomar, não mais contidos por cercas das doces lâminas da grama de outono. Porcos chafurdavam próximos ao limite de uma pequena lagoa
ao pé do declive e as corruíras cantavam como se o mundo houvesse sido renovado.
Anna olhou para Mason novamente. Ele segurava a mão dentro de um barril de água, onde um cano derramava água fria das encostas. Ele estava com queimaduras de segundo
grau. Provavelmente ficariam cicatrizes, mas os ferimentos eventualmente se curariam.
TUDO eventualmente se cura, pensou Anna. Mesmo que você não tenha o poder de patuás, feitiços e ervas. Ou o poder sobre a vida e a morte.
Paul rasgou uma faixa da cintura da camisa, mergulhou-a na água e a amarrou à volta do ferimento do braço de Mason. - Fui escoteiro. - disse ele.
- Sênior? - gemeu Mason.
- Não, lobinho.
- Sinto muito pelo seu amigo.
- É, vou lidar com isso depois que parar de mentir para mim mesmo. Depois de entender o que aconteceu.
- Todos temos a nossa culpa com a qual lidar. - disse Mason - E aprendemos com nossos erros.
- Eu com certeza gostaria de ter salvo minhas filmagens. Poderia ter ficado rico e famoso. Quem vai acreditar nisso tudo agora?
- Você não ia querer nenhuma prova disso. - disse Mason - E se se der conta do que tem que pagar para atingir o sucesso, não é tanto assim.
- Ele está em choque? - perguntou Anna a Paul.
Paul olhou nos olhos de Mason e então mediu seu pulso. - Não. Talvez meio desequilibrado, mas...
- Você não vai se livrar de mim assim tão fácil. - disse Mason.
- Ficar em choque não é algo tão ruim. - disse Anna - É o melhor amigo de um soldado moribundo.
- De onde diabos veio isso?!
- Não sei. Só pipocou em minha cabeça.
Paul ficou de pé e esfregou os olhos. - Acho que estamos todos sofrendo de desorientação. Ou talvez de histeria. Porque minha câmera não mentiu para mim.
- Tudo teve que ir. - disse Anna - Porque tudo pertencia a Ephram Korban.
- Então como vamos provar que tudo isso foi real?
- Acho que não vamos querer provar nada. - disse Mason.
- Estou curiosa para saber se eles viram a fumaça no vale. - disse Cris.
- Provavelmente não. - disse Anna - Já estaríamos ouvindo a sirene de um helicóptero da Guarda Florestal, a essas alturas.
Era estranho ser lembrado de que havia outro mundo além do topo dessa montanha, um mundo de sanidade e ordem, onde os mortos permaneciam sob a terra, na maioria
das vezes, e as pessoas ficavam à deriva em suas próprias vidas. Anna ficou de pé, caminhando em direção aos escombros do celeiro. - Foi uma boa coisa que o departamento
de incêndios florestais não chegasse aqui a tempo de apagar o incêndio. Dessa forma, nada de Ephram restará por aqui.
- Contaremos a eles, então? - perguntou Mason - Quero dizer, o que realmente aconteceu?
- Tenho uma teoria. - disse Anna - Mas uma teoria é tão útil nessa situação quanto um palito de fósforo no inferno. Supostamente, existem algumas antigas trilhas
que descem pelo lado da montanha. Vou achar uma, descer a cavalo até o rio e depois segui-lo até encontrar uma estrada.
- Precisa de companhia? - perguntou Mason.
- Não do tipo que fica tonta com alturas. Além disso, você precisa se cuidar.
- Vou com você. - disse Zainab.
Anna balançou a cabeça. - Não. Precisam de você por aqui. E tenho uma boa experiência com cavalos. Vou mais rápido se for sozinha.
Paul concordou com a cabeça. - O escritor está com problemas para respirar. Engoliu fumaça demais. Boa sorte, Anna.
Paul, Cris e Zainab caminharam pela estrada na direção de onde Spence e Bridget estavam, próximos à fundação da casa como fantasmas que se sentiam obrigados a assombrar
o lugar. Mas não existiam mais fantasmas no Solar Korban. Todos haviam partido, para qualquer que fosse o destino que lhes estava reservado antes de a Srta. Mamie
trancafiá-los dentro das bonecas toscas e Korban sequestrar seu voo noturno rumo à eternidade.
O Solar Korban era nada mais que uma pilha de cinzas, carvão e brasas. E Korban não era nada, apenas uma lembrança incinerada, um fulgor na panela cósmica. Um sonho
já meio esquecido, mais esquecido a cada segundo que passava, e Anna tinha certeza de que o magnífico mausoléu de mármore continha apenas um punhado de pó, as palavras
Chamado cedo demais desgastadas como a mentira que eram.
Antes do nascer do sol, ela caminhou até Beechy Gap e visitou o local onde vira as estranhas figuras entalhadas. A cabana havia sumido, uma pequena pilhas de cinzas
marcando sua existência.
As figuras deviam ter deixado de existir, também, dirigindo-se para os céus em fogo e fumaça. Livres afinal.
Anna procurou cela e arreios entre os escombros do celeiro. Levantou uma tábua quebrada e viu a face branca de Ransom, uma trilha de sangue seco no canto da boca.
O pedaço de pano de seu patuá estava firmemente preso entre os dedos da mão rígida. Ela o cobriu antes que Mason o visse.
Os mortos mereciam respeito. A morte não era romântica ou glamourosa. Ela estava cansada de se preocupar com seus motivos, esperanças e sonhos infindáveis. Sua fascinação
havia desaparecido. Ela não tinha mais desejo de algum dia ver um fantasma, especialmente o dela.
Mesmo Rachel, apesar de que as duas haviam compartilhado uma conexão íntima muito mais profunda que a de uma mãe com a filha.
Talvez esse tenha sido o modo pelo qual Anna estava destinada a pertencer. Aquele era seu povo, sua conexão, um parentesco espiritual, não importa o quão breve.
De um modo esquisito, talvez eles estivessem habitando seu interior, seu sangue, nas células cancerosas que devoravam seus órgãos e a empurravam inexoravelmente
rumo à escuridão final. Ela era um fantasma tanto quanto uma mortal. Uma estranha em duas terras estranhas.
Mas todos eles eram. Cada coisa orgânica que algum dia aspirou a fagulha da vida. A morte começa com o nascimento.
E daí?
Será que ela realmente esperava que, tornando-se um fantasma, compreenderia o que era tornar-se um? Ela havia vivido por vinte e seis anos e nem sequer se aproximara
do sentido da vida nesse período. Por que a morte deveria ser um mistério menor para aqueles que a experimentavam?
No tocante ao agora, o ar estava fresco e a dor interna ao redor de seis, um nove no espelho, ou talvez um cinco, uma pequena foice. Uma enorme distância de um zero.
Ela poderia viver por aqueles que haviam partido e por aqueles que ainda estavam por vir. Semanas ou meses, tudo era um precioso e efêmero presente.
Anna viu um brilho prateado entre os escombros, moveu algumas vigas e encontrou rédeas, logo em seguida uma cela e cobertores. Ela os retirou do entulho. Mason observou
com interesse enquanto ela arreava um dos cavalos.
Um pouco da fumaça que ela respirara se acumulou nos pulmões e começou a subir. Ela limpou a garganta e cuspiu ruidosamente. - É assim que eles fazer em Sawyer Creek?
Mason sorriu. Não era um sorriso assim tão ruim, apesar do rosto estar manchado de fumaça, cinzas e cansaço.
Ela carregou o cobertor até ele e o colocou sobre seus ombros.
- Melhor você ficar aquecido, melhor prevenir. - disse ela.
- Vá para fora congelar?
- Isso não é engraçado.
- Eu sei.
CAPÍTULO 81
Spence pegou um pedaço de cinza enegrecida enquanto se sentava no chão. Não. Não era a Palavra.
Ele pegou outro e mais um.
A Palavra resistiria. Um simples fogo não poderia destruí-la. Ele tossiu. As cinzas haviam se grudado às suas lágrimas, deixando o rosto grosso e empelotado. Ele
tossiu novamente, o estômago se agitando.
- Por que você não vai para longe desse lugar? A fumaça não lhe faz bem. Ele se virou. A Musa?
Não. Briget, a Miss Pêssego da Geórgia, sua última sacanagem.
- Seu fanfarrão idiota. - disse Bridget. - Fique feliz que aquela porcaria se queimou. Talvez um dia você possa escrever uma história de verdade, algo que não se
pareça com merda de cavalo.
Real? Como ela ousava criticar...
- E você pode me deixar de fora dela. - Ela se afastou, parou e se virou, com a mão sobre a boca. - Não sei o que vi em você. Mas com certeza agora consigo lhe ver
com clareza.
- Não me deixe!
- Acredito que você mencionou que essa é sua parte preferida. "FIM". Bem, acho que aprecio ela também.
Spence a observou se afastando. Ela não importava. Era apenas outra muleta, um esboço de personagem. Alguém do populacho. Ele ficou sob a chuva de cinza e negro,
esperando a Palavra pairar sobre ele.
Talvez se ele conseguisse se lembrar da história, trazê-la novamente à vida, ela o levaria novamente à Palavra.
Algo sobre a noite? Ele tocou na folha de papel amassada dentro do casaco. Talvez depois, após se passarem alguns anos, ele seria capaz de lê-la. E talvez ela contivesse
alguma pista do longo encanto da noite.
Mas a noite estava partindo, retirando-se na direção das montanhas azuladas, encaminhando-se para outros escritores, outros veículos. Ela lançaria sua capa amorosa
em outra parte do mundo, lançaria seus dons em outras paragens, sussurraria sentenças secretas. E Spence estava novamente só, com nada mais que suas palavras.
As cinzas continuaram a chover.
CAPÍTULO 82
Mason tentou curvar os dedos da mão direita queimada. Um choque de dor subiu pelo braço, parando brevemente no corte do ombro, apenas para ganhar impulso antes de
atingir o cérebro. Ele mordeu a língua para evitar gritar.
Talvez isso fosse o significado de sofrer, afinal de contas. A arte do sacrifício. Não era sobre resistir à inanição, lutar por reconhecimento, lutar contra o medo
do fracasso. Talvez fosse sobre acabar e deixar ir embora. E se dar conta de que os sonhos que você traz à vida algumas vezes não tinham lugar no mundo real e era
melhor deixá-los quietos no mundo dos sonhos.
Os críticos mais severos não estavam em Nova Iorque ou Paris. Eles não estavam nas escolas de arte e não vestiam boinas, ostentavam cavanhaques nem bebiam expressos.
Algumas vezes, eles viviam em seu espelho.
- Como você está? - perguntou Anna, apertando o arreio à volta da barriga do cavalo. Ela tinha mãos fortes.
- Bem, acho que não vou poder esculpir por um tempo. - Mason pensou nas ferramentas, enterradas em algum lugar sobre as camadas de cinzas e ossos no porão. Ele não
tinha vontade de vê- las novamente.
Anna concordou com a cabeça, ajustou a cela e acariciou as orelhas do cavalo, que bufou de prazer.
Ele tinha que perguntar. - Como foi... você sabe?
- Estar morta? - Os olhos azuis fixaram-se em um ponto distante além do alcance da vista.
- Aham.
- Alguém que me ama disse que é igual estar viva, só que pior.
Mason olhou para a coluna de fumaça. O vento a estava empurrando para longe e ele sentiu o cheiro de maçãs. Agora que o sol havia saído, o céu estava azul como só
ficava no inverno.
Dezembro chegaria com a neve suave, as noites ficariam curtas novamente e a primavera chegaria. Grama cresceria sobre as ruínas, vinhas se enrolariam nos pilares
enegrecidos. O granito dormiria debaixo da pele de terra. O sol nasceria e se poria, as estações seguiriam seu curso, os ponteiros incansáveis dos relógios girariam
apenas em uma direção.
Adiante.
- O que pretende fazer depois? - perguntou Mason.
- Não sei ainda. Acho que estou curada da metafísica. Deixe os mortos descansarem. Eles mereceram. - Ela colocou um pé no estribo e montou no cavalo. Era uma combinação
natural.
- E você?
- Depende. Assim que chegar a Sawyer Creek, vou dizer a Mama que os sonhos não são a única coisa que temos nesse mundo.
- Verdade? O que mais temos?
- Dor.
- Sonhos e dor. Que mistura adorável. Talvez você possa adicionar “fé” a sua lista.
O tipo de mistura da qual talvez o amor fosse feito.
Mason pensou se algum dia descobriria. Ele olhou para o chão e viu um pouco de cor no meio de uma pilha de feno solto. Ele chutou o feno para longe e, então, viu
flores. Um buquê de flores do campo. Flores da montanha, recém-colhidas e doces, os talos envolvidos em uma fita limpa. Ele o entregou para Anna. - Alguém deve ter
deixado isso para você.
Ela pegou o buquê e o cheirou. - Os mortos permanecem mortos. - murmurou ela. - E que descansem em paz.
Anna entrelaçou o buquê no bridão, relaxou as rédeas e o cavalo levantou a cabeça.
- Vejo você em breve, Mason. Cuide-se!
Ela sacudiu as rédeas e o cavalo iniciou a jornada pela estrada de terra.
- Ei, Anna! - gritou ele - Você estava falando sério quando disse aquilo lá na balaustrada?
Ela não parou, mas virou-se na cela e olhou para trás. Ela gritou sobre o ruído ritmado dos cascos do cavalo. - Sobre confiar em você? Talvez!
Anna deu-lhe um meio sorriso e o deixou pensando para qual das perguntas a resposta era talvez.
Scott Nicholson
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