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Series & Trilogias Literarias
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA
34
St. James, Londres
O cúmplice de Gabriel ainda não sabia de seus planos — o que não é de surpreender, pois não era ninguém menos que Julian Isherwood, único dono da Isherwood Fine Arts. Entre as centenas de pinturas controladas pela galeria de Isherwood estava Madona e a Criança com Maria Madalena, atribuída a Ticiano. No momento, porém, a pintura estava trancada no depósito subterrâneo de Isherwood, sua imagem escondida por uma camada protetora de toalhas de papel. Isherwood agora detestava aquela pintura quase tanto quanto detestava o homem que a tinha desfigurado. Aliás, na mente inquieta de Isherwood, aquele glorioso pedaço de tela veio simbolizar tudo o que estava errado em sua vida.
Para Isherwood, fora um outono a ser esquecido. Só tinha conseguido vender um quadro — uma pintura italiana menor para um pequeno colecionador de Houston — e contraído uma tosse crônica e rascante capaz de esvaziar um recinto mais depressa do que uma ameaça de bomba. Dizia-se que ele estava mais uma vez envolvido numa crise da terceira idade, sua sétima ou oitava — a contagem dependia de levar em conta ou não a prolongada Fase Azul por que passou depois de ser dispensado pela garota que operava a máquina de café expresso do Costa, em Piccadilly. Jeremy Crabbe, o atlético diretor do departamento dos Grandes Mestres da casa de leilões Bonhams, achou que uma festa-surpresa poderia levantar o ânimo do abatido Isherwood, uma ideia que Oliver Dimbleby, a nêmesis gorducha de Isherwood da Bury Street, descartou como a coisa mais tola que já ouvira. “Devido à saúde precária de Julie no momento”, observou Oliver, “uma festa-surpresa poderia matá-lo”. Sugeriu apresentar a Isherwood uma habilidosa prostituta, mas essa era a solução de Oliver para qualquer problema, pessoal ou profissional.
Na tarde em que Gabriel voltou a Londres, Isherwood fechou a galeria mais cedo e, como não tinha nada melhor a fazer, rumou para a Duke Street debaixo de uma chuva forte para tomar um drinque no Green's. Acompanhado por Roddy Hutchinson, considerado por todos o mais inescrupuloso negociante de toda St. James, Isherwood rapidamente consumiu uma garrafa de Burgundy branco, seguida por uma dose de conhaque. Pouco depois das seis, cambaleou até a rua para pegar um táxi, mas quando o veículo se aproximava, foi acometido por um terrível acesso de tosse que o impediu de erguer o braço.
— Maldição! — vociferou Isherwood quando o carro passou direto, molhando sua calça. — Maldição, maldição, maldição!
Os gritos provocaram outra rodada de tosse intermitente. Quando cessou, afinal, ele notou uma pessoa apoiada na parede de tijolos da ruela que levava à Masons Yard. Usava uma capa de chuva e uma boina puxada sobre os olhos. O pé direito estava cruzado sobre o esquerdo, e os olhos iam de um lado para o outro, examinando a rua. Observou Isherwood por um instante com um misto de preocupação e pena. Em seguida, sem uma palavra ou som, virou-se e começou a atravessar o antigo pátio de macadame. Contra a vontade, Isherwood o seguiu, tossindo como um paciente tuberculoso a caminho do sanatório.
— Deixe-me ver se entendi bem — disse Isherwood. — Primeiro você recobre meu Ticiano com cola de rabo de coelho e toalhas de papel. Depois põe o quadro no meu depósito e desaparece sem dar notícia. Agora reaparece sem avisar, parecendo exausto, e me diz que precisa do Ticiano para um de seus pequenos projetos extracurriculares. Será que esqueci alguma coisa?
— Julian, para esse esquema funcionar, eu vou precisar que você engane o mundo da arte e se comporte de uma forma que alguns colegas seus poderão considerar antiética.
— Isso faz parte do meu trabalho, queridinho — retrucou Isherwood dando de ombros. — Mas o que eu ganho com isso?
— Se der certo, não haverá mais ataques como aquele de Covent Garden.
— Até o surgimento de algum outro lunático jihadista. Aí voltaremos à estaca zero, não é? Deus sabe que não sou perito no assunto, mas me parece que o jogo terrorista é meio parecido com o mercado de arte. Tem seus altos e baixos, suas boas e más temporadas, mas nunca termina.
Na sala de exposições da galeria de Isherwood no andar superior, as lâmpadas do teto brilhavam com a suavidade de velas. A chuva tamborilava na claraboia e o casaco ensopado do marchand, que ele ainda não tinha tirado, pingava. Isherwood franziu a testa ao ver uma poça no assoalho e olhou para a pintura apoiada no pedestal coberto por um tecido grosso.
— Você sabe quanto vale essa coisa?
— Num leilão justo, 10 milhões estaria ótimo. Mas no leilão que tenho em mente...
— Garoto levado — interrompeu Isherwood. — Muito, muito levado.
— Você falou com alguém sobre isso, Julian?
— Sobre a pintura? — Isherwood balançou a cabeça. — Nem um pio.
— Tem certeza? Nenhum momento de indiscrição no balcão do Greens? Nenhuma confidência na cama com aquela garota absurdamente jovem da Tate?
— O nome dela é Penélope — disse Isherwood.
— Ela sabe sobre o quadro, Julian?
— É claro que não. Não é assim que funciona quando se tem um trunfo, meu querido. Ninguém sai se vangloriando por uma coisa dessas. Fica-se em silêncio até chegar o momento certo. Só depois se faz o anúncio com o alarde de praxe. Espera-se também uma compensação pela própria esperteza. Mas, no seu panorama, eu devo, na verdade, ter prejuízo... pelo bem dos filhos de Deus, é claro.
— Seu prejuízo será temporário.
— Quanto tempo?
— A CIA está cobrindo todas as despesas operacionais.
— Não é uma frase que se ouve todos os dias numa galeria de arte.
— De qualquer forma, você vai ser reembolsado, Julian.
— Claro que vou — falou Isherwood com uma falsa confiança. — Isso me lembra da vez em que Penélope me disse que o marido dela não chegaria na próxima hora. Eu estou velho demais para pular muros de jardins.
— Continua se encontrando com ela?
— Penélope? Ela me deu o fora — respondeu Isherwood, meneando a cabeça. — No fim, todas elas acabam indo embora. Mas não você, meu querido. E nem essa maldita tosse. Estou começando a pensar nela como uma velha amiga.
— Você já foi ao médico?
— Não consegui marcar uma consulta. O Sistema Nacional de Saúde anda tão ruim atualmente que estou pensando em entrar para a Igreja de Cristo Cientista.
— Achei que você era hipocondríaco.
— Ortodoxo, na verdade. — Isherwood pegou a ponta de uma toalha de papel no canto superior direito da tela.
— Cada pedaço de pintura que você tirar do lugar eu tenho que colocar de volta.
— Desculpe — disse Isherwood, enfiando a mão no bolso do casaco. — Existe um precedente para isso, sabe. Alguns anos atrás, a Christie's vendeu um quadro atribuído à Escola de Ticiano pelo valor irrisório de 8 mil libras. Mas a tela não era da Escola de Ticiano. Era do próprio Ticiano. Como você pode imaginar, os donos não ficaram muito satisfeitos. Acusaram a Christies de malversação. Advogados se envolveram. Houve histórias cabeludas na imprensa. Más vibrações por toda parte.
— Talvez possamos dar à Christies uma oportunidade de se redimir.
— Talvez eles gostassem. Mas tem um problema.
— Só um?
— Nós já perdemos as vendas dos Grandes Mestres.
— É verdade — concordou Gabriel ?, mas você está se esquecendo do leilão especial da Escola de Veneza programado para a primeira semana de fevereiro. Um Ticiano recém-descoberto poderia ser a coisa certa para animar um pouco mais o evento.
— Garoto levado. Muito, muito levado.
— Eu me declaro culpado.
— Considerando minhas ligações passadas com certos elementos desagradáveis dessa operação, seria melhor manter alguma distância entre a galeria e a venda final. Isso quer dizer que vamos precisar recrutar os serviços de outro marchand. Dadas as circunstâncias, vai ter que ser ambicioso, furtivo, astuto e um merdinha de primeira classe.
— Já sei em quem você está pensando — disse Gabriel ?, mas tem certeza de que ele pode dar conta?
— Ele é perfeito — respondeu Isherwood. — Agora só precisamos de um Ticiano que pareça autêntico.
— Acho que eu posso conseguir isso.
— Onde você pretende trabalhar?
Gabriel olhou ao redor do salão.
— Aqui é um ótimo lugar.
— Há algo mais de que você precise?
Gabriel entregou uma lista. Isherwood colocou os óculos de leitura e franziu a testa.
— Um rolo de linho italiano, um ferro de passar profissional, um par de visores de aumento, um litro de acetona, um litro de ácido glicólico, um litro de solução mineral, uma dúzia de pincéis Winsor & Newton série 7, duas lâmpadas de halogênio com pedestal, um disco de La Bohème, de Giacomo Puccini... — Olhou para Gabriel por cima dos óculos. — Você sabe quanto isso vai me custar?
Mas Gabriel pareceu não ter ouvido. Estava diante da tela, uma das mãos apoiando o queixo, a cabeça inclinada para o lado numa atitude meditativa.
Gabriel acreditava que a arte da restauração era meio parecida com fazer amor. Era melhor fazer devagar e com atenção esmerada aos detalhes, com pausas ocasionais para descanso e distração. Mas, numa emergência, se o artista e a obra se conhecerem bem, uma restauração pode ser feita numa velocidade extraordinária, com mais ou menos os mesmos resultados.
Gabriel se lembraria muito pouco dos dez dias seguintes, pois foram um borrão quase insone de linho, solvente, líquidos e pigmentos ao som da música de Puccini e iluminados pelo brilho ofuscante das lâmpadas de halogênio. Seus temores iniciais quanto à condição da tela felizmente se provaram exagerados. De fato, assim que ele concluiu o novo revestimento e removeu o verniz amarelado, descobriu que o trabalho original de Ticiano estava na maior parte intacto, exceto por uma série de manchas no corpo da Virgem e quatro linhas de abrasão provocadas pelo antigo esticador. Como já havia restaurado diversos Ticianos, Gabriel foi capaz de restaurar a pintura quase tão rapidamente quanto o próprio mestre ao pintá-la. Sua paleta era a paleta de Ticiano, bem como suas pinceladas. Apenas as condições de seu estúdio eram diferentes. Ticiano sem dúvida trabalhava com uma equipe de talentosos aprendizes, enquanto Gabriel não tinha assistente a não ser Julian Isherwood, o que significava ajuda nenhuma.
Sem um relógio, ele tinha apenas uma vaga noção do tempo, e quando raramente dormia, era numa cama de armar no canto do recinto, embaixo de uma luminosa paisagem de Claude. Tomava baldes de café do Costa e sobreviveu à base de biscoitos que Isherwood contrabandeava da Fortnum & Mason para a galeria. Sem tempo para se barbear, deixou a barba crescer. Para sua surpresa, estava ainda mais grisalha do que da última vez. Isherwood disse que a barba lhe dava a impressão de que o próprio Ticiano estava diante da tela. Em vista da incrível habilidade de Gabriel com um pincel, não estava muito longe da verdade.
Em sua última noite em Londres, Gabriel passou na Thames House, o quartel-general do MI5 na margem do rio Tâmisa, onde, como prometido, ele informou a Graham Seymour que a operação tinha vindo dar nas Ilhas Britânicas. O humor de Seymour estava terrível e seus pensamentos, nitidamente em outro lugar. O filho do futuro rei estava decidido a se casar no fim da primavera, e cabia a Seymour e seus colegas da Polícia Metropolitana cuidar para que nada estragasse a ocasião. Ouvindo as lamúrias de Seymour, Gabriel não pôde deixar de pensar nas palavras de Sarah quando se falaram no pátio do café em Georgetown. Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.
Como que para ilustrar o ponto de vista, Gabriel saiu da Thames House e encontrou a Jubilee Line do metrô fechada na hora de pico devido a um pacote suspeito. Voltou para a Masons Yard a pé e, com Isherwood observando-o, aplicou uma camada de verniz ao Ticiano recém-restaurado. Na manhã seguinte, instruiu Nadia a depositar 200 milhões de dólares no TransArabian Bank. Depois pegou um táxi e foi em direção ao Aeroporto de Heathrow.
35
Zurique
Poucos países tiveram papel mais proeminente na vida e na carreira de Gabriel Allon do que a Confederação Suíça. Ele falava fluentemente três de suas quatro línguas e conhecia seus vales e montanhas como as curvas e reentrâncias do corpo da esposa. Já tinha matado na Suíça, já tinha sido sequestrado na Suíça e já tinha exposto alguns de seus segredos mais repulsivos. Um ano antes, num café na base das geleiras Les Diablerets, havia feito um voto solene de nunca mais pôr os pés no país. Era engraçado como as coisas pareciam nunca correr de acordo com o planejado.
Atrás do volante de um Audi alugado, ele passou pelos sombrios bancos e lojas da Bahnhofstrasse e entrou numa estrada movimentada que margeava a costa oeste do lago Zurique. O esconderijo estava localizado três quilômetros ao sul do centro da cidade. Era uma estrutura moderna, com janelas demais para o gosto de Gabriel e um ancoradouro em forma de T coberto de neve. Ao entrar, ouviu uma voz feminina cantando suavemente em italiano. Sorriu. Chiara sempre cantava para si mesma quando estava sozinha.
Deixou a mala no vestíbulo e seguiu o som até a sala de estar, que tinha sido convertida num posto de comando provisório. Chiara olhava a tela de um computador ao mesmo tempo que descascava uma laranja. Quando a beijou, sentiu seus lábios muito quentes, como se ela estivesse com febre. Foi um longo beijo.
— Eu sou Chiara Allon — murmurou ela, afagando a barba desgrenhada dele.
— E quem seria você?
— Já não sei muito bem.
— Dizem que a idade causa problemas de memória — comentou ela, ainda o beijando. — Você devia tentar óleo de peixe. Ouvi dizer que ajuda.
— Prefiro dar uma mordida nessa laranja.
— Imagino que sim. Faz tempo.
— Já faz muito tempo.
Chiara dividiu a fruta e pôs uma parte na boca de Gabriel.
— Onde está o resto da equipe? — perguntou ele.
— Estão vigiando um funcionário do TransArabian Bank que tem ligações com o movimento jihadista.
— Então você está sozinha?
— Agora não mais.
Gabriel desabotoou a blusa de Chiara. Seus mamilos logo ficaram enrijecidos ao seu contato. Ela deu a ele outro pedaço da fruta.
— Talvez seja melhor não fazermos isso na frente de um computador — falou.
— A gente nunca sabe quem pode estar vendo.
— Quanto tempo nós temos?
— Tanto quanto você precisar.
Chiara pegou a mão dele e levou-o para cima.
— Devagar — disse, quando ele a pôs na cama. — Devagar.
O quarto estava na penumbra quando Gabriel afastou-se exausto do corpo de Chiara. Ficaram deitados em silêncio por um longo tempo, perto um do outro mas sem se tocarem. De fora vinha o ruído distante de um barco, seguido um momento depois pelo som da marola batendo no ancoradouro. Chiara apoiou-se no cotovelo e passou o dedo ao longo do nariz de Gabriel.
— Quanto tempo você pretende manter?
— Já que preciso dele para respirar, pretendo manter o quanto for possível.
— Eu estava falando da barba, querido.
— Eu a odeio, mas algo me diz que posso precisar dela durante essa operação.
— Talvez você devesse mantê-la depois da operação também. Acho que você fica...
— Não diga isso, Chiara.
— Eu ia dizer distinto.
— É o mesmo que chamar uma mulher de elegante.
— Qual é o problema?
— Você vai entender quando as pessoas começarem a dizer que você é elegante.
— Não vai ser tão ruim.
— Isso nunca vai acontecer, Chiara. Você é bonita e sempre será bonita. E se eu continuar com essa barba depois da operação, as pessoas vão começar a pensar que você é minha filha.
— Agora você está sendo insensato.
— Biologicamente, é possível.
— O quê?
— Você ser minha filha.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Nem pense.
Ela riu em silêncio e não disse nada.
— No que está pensando agora? — perguntou Gabriel.
— No que poderia ter acontecido se você não tivesse notado aquele homem com a bomba debaixo do casaco andando pela Wellington Street. Nós estaríamos almoçando quando a bomba explodisse. Teria sido uma tragédia, claro, mas nossas vidas continuariam normais, como as de todo mundo.
— Talvez isso seja o normal para nós, Chiara.
— Casais normais não fazem amor em esconderijos.
— Na verdade, eu sempre gostei de fazer amor com você em esconderijos.
— Eu me apaixonei por você num esconderijo.
— Onde?
— Em Roma. Aquele apartamentinho próximo à Via Veneto para onde eu levei você quando a Polizia di Stato tentou matá-lo naquela terrível pensione perto da estação de trem.
— Em Abruzzi — disse Gabriel com pesar. — Que pena.
— Mas o esconderijo era adorável.
— Você mal me conhecia.
— Na verdade, eu o conhecia muito bem.
— Você preparou um fettuccine com cogumelos.
— Eu só faço fettuccine com cogumelos para pessoas que amo.
— Faça um agora.
— Você tem trabalho a fazer antes.
Chiara ligou um interruptor na parede acima da cama. Uma minúscula lâmpada de halogênio para leitura ofuscou Gabriel.
— Precisa disso? — perguntou, apertando os olhos.
— Senta.
Ela pegou uma pasta da mesinha de cabeceira e entregou a ele. Gabriel abriu-a e, pela primeira vez, viu Samir Abbas. O rosto era anguloso, com óculos, barba rala, pensativos olhos castanhos e entradas profundas no cabelo. Quando a foto foi tirada, ele andava por uma rua na parte residencial de Zurique. Usava terno cinza, o uniforme dos banqueiros suíços, e uma gravata prateada. A pasta parecia cara, assim como os sapatos. O sobretudo estava desabotoado e as mãos, sem luvas. Falava ao celular. A julgar pelos lábios, Gabriel imaginou que estivesse falando alemão.
— Esse é o homem que vai ajudar você a comprar um grupo terrorista — disse Chiara. — Samir Abbas, nascido em Amã em 1967, formado pela Escola de Economia de Londres e contratado pelo TransArabian Bank em 1998.
— Onde ele mora?
— Em Hottingen, perto da universidade. Quando o tempo está bom, ele vai a pé para o trabalho, para emagrecer. Se está ruim, pega o bonde de Römerhof até o distrito financeiro.
— Que bonde?
— O número oito, é claro. Que outro?
Chiara sorriu. Seu conhecimento do transporte público europeu, assim como o de Gabriel, era enciclopédico.
— Onde é o apartamento dele?
— Número 4 da Carmenstrasse. Um pequeno prédio pós-guerra, com o exterior de estuque, seis apartamentos ao todo.
Esposa?
— Dá uma olhada na próxima foto.
Mostrava uma mulher andando pela mesma rua. Usava roupas ocidentais, com exceção de um hijab emoldurando o rosto infantil. Segurando sua mão esquerda, estava um garoto, talvez de 4 anos. Levada pela mão direita, uma garota que parecia ter 8 ou 9.
— O nome dela é Johara, que significa “joia” em árabe. Trabalha meio período como professora no centro comunitário islâmico na zona oeste da cidade. A filha mais velha estuda lá. O garoto passa o dia numa creche. Os dois falam alemão-suíço com fluência, mas Johara se sente muito mais confortável com o árabe.
— Samir frequenta a mesquita?
— Ele reza no apartamento. Os filhos gostam de desenhos animados norte-americanos, para desgosto do pai. Mas sem música. Música é estritamente proibida.
— Ela sabe sobre as doações de Samir?
— Como os dois usam o mesmo computador, seria difícil não saber.
— Onde fica o computador?
— Na sala de estar. Nós o grampeamos no dia em que chegamos. Ele nos dá uma razoável cobertura de áudio e vídeo. Estamos também lendo os e-mails dele e monitorando a navegação. Seu amigo Samir gosta de pornografia jihadista.
— E o celular dele?
— Deu um pouco mais de trabalho, mas conseguimos também. — Chiara apontou para a foto de Samir. — Ele leva o aparelho no bolso direito do sobretudo. Nós o grampeamos no bonde enquanto ele ia para o trabalho.
— Nós?
— Yaakov cuidou do esbarrão, Oded pegou o celular e Mordecai cuidou da parte técnica. Samir estava lendo jornal. A coisa toda levou dois minutos.
— Por que ninguém me falou nada sobre isso?
— Não queríamos incomodar.
— Alguma outra coisa que tenham se esquecido de me contar?
— Só uma.
— O quê?
— Estamos sendo vigiados.
— Pelos suíços?
— Não, não pelos suíços.
— Por quem?
— Três chances. As duas primeiras não contam.
Gabriel pegou seu BlackBerry criptografado e começou a digitar.
36
Lago Zurique
Demorou quase 48 horas para Adrian Carter chegar a Zurique. Encontrou Gabriel no fim da tarde na plataforma de uma balsa com destino ao subúrbio de Rapperswil. Usava uma capa de chuva marrom-clara e levava um exemplar do jornal Neue Zürcher Zeitung embaixo do braço. O papel estava molhado de neve.
— Estou surpreso por você não estar usando as credenciais da Agência — comentou Gabriel.
— Eu tomei precauções ao vir aqui.
— Como viajou?
— Classe econômica plus — respondeu Carter, ressentido.
— Você disse aos suíços que vinha?
— Você deve estar brincando.
— Onde está hospedado?
— Não estou.
Gabriel olhou em direção à silhueta de Zurique, pouco visível atrás de um manto de nuvens baixas e neve caindo. A cena inteira era desbotada — uma cidade cinzenta à beira de um lago cinzento. Combinava com o estado de espírito de Gabriel.
— Quando você pretendia me contar, Adrian?
— Contar o quê?
Gabriel entregou a Carter um envelope de carta em branco. Dentro havia oito fotos de oito diferentes agentes de campo da CIA.
— Quanto tempo demorou para localizá-los? — perguntou Carter, passando lentamente as fotos.
— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta?
— Acho que não. — Carter fechou o envelope. — Meu melhor pessoal está ocupado em outros lugares no momento. Tive que usar o que havia disponível. Dois deles são recém-saídos da Fazenda, como costumamos chamar.
A Fazenda era o campo de treinamento da CIA em Camp Peary, na Virgínia.
— Você destacou principiantes para nos vigiar? Se eu não estivesse tão bravo, me sentiria insultado.
— Tente não levar para o lado pessoal.
— Esse seu truque poderia ter detonado a coisa toda. Os suíços não são burros, Adrian. Aliás, eles são muito bons. Eles observam. E ouvem também. E ficam muito aborrecidos quando espiões operam no território deles sem assinar o livro de hóspedes na entrada. Até mesmo experientes agentes de campo já se encrencaram aqui, inclusive nossos. E o que Langley faz? Manda oito garotos sem experiência que não vêm à Europa desde que fizeram o último ano do colégio no exterior. Sabia que um deles trombou com Yaakov uns dias atrás porque estava olhando para baixo, atento a um mapa da cidade de Zurique? Essa é para entrar para a história, Adrian.
— Você já provou seu argumento.
— Ainda não — retrucou Gabriel. — Quero todos fora daqui. Esta noite.
— Receio não ser possível.
— Por quê?
— Porque a alta cúpula está bastante interessada em sua operação. E a alta cúpula decidiu que ela exige um componente operacional norte-americano.
— Diga à alta cúpula que já existe um componente operacional norte-americano. Chama-se Sarah Bancroft.
— Uma simples analista do Centro de Contraterrorismo não conta.
— Essa simples analista poderia superar os oito imbecis que você mandou para nos observar.
Carter olhou para o lago sem dizer nada.
— O que está acontecendo, Adrian?
— Não é o quê. É quem. — Carter devolveu o envelope a Gabriel. — Quanto vai me custar para você queimar essas malditas fotos?
— Pode começar a falar.
37
Lago Zurique
Havia um pequeno café no convés superior da cabine de passageiros. Carter bebeu um café turvo. Gabriel tomou chá. Os dois dividiram um sanduíche de ovo borrachudo e um saco de batatas fritas passadas. Carter guardou a nota para lançar em suas despesas.
— Eu pedi para você manter o nome dela em segredo — disse Gabriel.
— Eu tentei.
— O que aconteceu?
— Alguém passou a informação para a Casa Branca. Fui levado ao Salão Oval para um intenso interrogatório. McKenna e o presidente trabalharam juntos, tira bom, tira mau. Posições estressantes, privação de sono, suspensão de comida e bebida, todas as técnicas que agora estamos proibidos de usar contra o inimigo. Não levou muito tempo para eles me vencerem. Ele também sabe o nome da mulher muçulmana com incontestáveis credenciais jihadistas que você levou para a cama... falando em termos operacionais, é claro.
— E...?
— Ele não está feliz.
— É mesmo?
— Tem medo de que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita sejam prejudicadas se a operação sair dos trilhos. Logo, não quer mais que Langley seja um simples passageiro.
— Ele quer que você pilote o avião?
— Não só isso — respondeu Carter. — Quer que cuidemos da manutenção, do combustível, da cozinha e da bagagem no compartimento de carga.
— Controle total? É isso que você quer dizer?
— Sim.
— Não faz sentido, Adrian.
— Que parte?
— A coisa toda, francamente. Se nós conduzirmos o espetáculo, o presidente pode negar qualquer responsabilidade para os sauditas se algo der errado. Mas se Langley estiver no comando, as chances de isso acontecer desaparecem. É o mesmo que bloquear um soco com o queixo.
— Sabia que eu não tinha visto as coisas nesses termos, Gabriel? — Carter pegou a última batata frita. — Posso?
— Faça bom proveito.
Carter jogou a batata na boca e passou um longo tempo pensativo esfregando a ponta dos dedos para tirar o sal.
— Você tem direito de ficar irritado — disse afinal. — Se eu fosse você, também estaria irritado.
— Por quê?
— Porque desembarquei na cidade com uma história fraca achando que iria colar, mas você merece mais do que isso. A verdade é que o presidente e seu fiel e ignorante servo James A. McKenna não estão preocupados com o fracasso da operação Al-Bakari. Na verdade, eles estão preocupados com o sucesso.
— Tente outra vez, Adrian. Os dias têm sido difíceis.
— Parece que o presidente está perdido de amor.
— Quem é a garota de sorte?
— Nadia — murmurou Carter ao passar o guardanapo de papel na boca. — Está louco por ela. Adora a história dela. Adora sua coragem. Mais importante, adora a operação que você montou ao redor dela. É exatamente o tipo de coisa que estava querendo. Honesta. Inteligente. Pró-ativa. De longo alcance. E se encaixa à perfeição na visão de mundo do presidente. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta. Ele quer a rede de Rashid subjugada e neutralizada antes da próxima eleição e não quer dividir os créditos.
— Então ele quer seguir sozinho? Sem parcerias?
— Não exatamente — respondeu Carter. — Quer que recrutemos os franceses, os ingleses, os dinamarqueses e os espanhóis, pois eles que foram atacados.
— Não quer chamar os italianos também, não?
— Não, eles estão muito bem, pelo que ouvi.
— Precisava saber — disse Gabriel. — Adrian, não é uma mera ação publicitária. É uma doutrina sagrada. Impede que uma operação vá pelos ares. Mantém os agentes vivos.
— Suas preocupações foram devidamente registradas.
— E descartadas.
Carter não disse nada.
— Como ficamos eu e o resto da equipe nisso tudo?
— Sua equipe vai se retirar sem alarde do campo e ser substituída pelo pessoal da Agência. Você vai ficar como consultor até o espetáculo ter começado.
— E depois?
— Você vai ser liberado do processo.
— Pois eu tenho notícias para você, Adrian. O espetáculo já começou. Aliás, a estrela do espetáculo vai fazer sua estreia aqui em Zurique amanhã à tarde.
— Vamos ter que adiar isso até a nova equipe administrativa estar no lugar.
Gabriel fitou as luzes fracas de Rapperswil na linha da costa.
— Você está esquecendo uma coisa — disse depois de um momento. — A estrela do espetáculo é uma diva. Muito exigente. E não vai trabalhar para qualquer um.
— Você quer dizer que ela vai trabalhar para você, o homem que matou o pai dela, mas não para nós?
— Sim.
— Eu gostaria de verificar essa afirmação pessoalmente.
— Fique à vontade. Se quiser falar com Nadia, ela pode ser contactada em seu escritório no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement, em Paris.
— Na verdade, tínhamos a esperança de que você trabalhasse conosco durante a transição.
— Esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco. — Gabriel ergueu o envelope com as fotos. — Além do mais, se eu fosse aconselhar Nadia, recomendaria que ficasse o mais longe possível de você e de seus agentes recém-saídos da Fazenda.
— Eu e você somos adultos. Participamos de guerras juntos. Salvamos vidas. Fizemos os trabalhos sujos que ninguém mais queria fazer ou não tinha coragem para fazer. Mas agora estou ficando ofendido.
— Fico contente de não ser o único.
— Você acha mesmo que isso é uma coisa que eu quero fazer? Ele é o presidente, Gabriel. Eu só posso seguir as ordens dele ou pedir demissão. E não tenho intenção de me demitir.
— Então, por favor, diga ao presidente que eu lhe desejo tudo de bom — disse Gabriel. — Mas alguma hora você precisa lembrar a ele que Nadia é só o primeiro passo para desmantelar a rede de Rashid. No fim, a operação não vai ser honesta, inteligente e pró-ativa. Só espero que o presidente não se apaixone quando chegar a hora de tomar decisões firmes.
A balsa estremeceu quando atracou no ancoradouro. Gabriel levantou-se abruptamente. Carter recolheu as xícaras vazias e os guardanapos e varreu as migalhas para o chão com as costas da mão.
— Eu preciso saber de suas intenções.
— Pretendo voltar a meu posto de comando e informar a minha equipe que vamos para casa.
— É sua decisão final?
— Eu nunca faço promessas vazias.
— Então me faça um favor.
— Que favor?
— Dirija devagar.
Os dois saíram da balsa com um intervalo de alguns segundos e caminharam pelo píer escorregadio até um pequeno estacionamento na ponta do terminal. Carter sentou no banco do carona de um Mercedes e rumou para a fronteira alemã; Gabriel assumiu o volante de seu Audi, passando pela ponte de Seedamm, em direção à margem oposta do lago. Apesar do conselho de Carter, estava dirigindo bem rápido. Assim, já tinha chegado no esconderijo quando Carter ligou outra vez com o resumo do novo acordo operacional. Seus parâmetros eram simples e nada ambíguos. Gabriel e sua equipe manteriam seu domínio no campo enquanto a operação não chegasse ao solo sagrado da Arábia Saudita. No momento, disse Carter, não havia espaço para novas negociações. O presidente não iria permitir que a inteligência de Israel aprontasse na terra de Meca e de Medina. A Arábia Saudita era uma inflexão no jogo. A Arábia Saudita era um campo minado. Se a operação atravessasse a fronteira saudita, explicou Carter, tudo iria por água abaixo. Gabriel desligou e ficou sozinho no escuro, pensando no que fazer. Dez minutos depois, ligou para Carter e aceitou os novos termos com relutância. Então entrou na casa e informou à equipe que eles não continuariam em ação por muito tempo.
38
Paris
Longe da mansão na avenue Foch, Nadia al-Bakari havia construído para ela um confortável pied-à-terre. Continha um escritório, uma sala de estar, sua suíte e uma galeria de arte particular com doze de suas mais queridas pinturas. Espalhavam-se pelo apartamento muitas fotografias de seu pai. Em nenhuma ele estampava um sorriso, preferindo mostrar a juhayman, a tradicional “expressão zangada” dos beduínos árabes. A única exceção era uma foto espontânea tirada por Nadia a bordo do Alexandra no último dia da vida dele. Sua expressão era um pouco melancólica, como se ele de alguma forma estivesse ciente do que o esperava mais tarde naquela noite no Velho Porto de Cannes.
Emoldurada em prata, a imagem ficava na mesinha de cabeceira da cama de Nadia. Ao lado via-se um relógio Thomas Tompion, adquirido num leilão pela quantia de 2,5 milhões de dólares e presenteado a Nadia quando ela fez 25 anos. Agora ele andava alguns minutos adiantados, o que Nadia considerou misteriosamente apropriado. De tempo em tempo, desde que despertara às três da madrugada com um sobressalto, ela olhava os traços imponentes do relógio. Necessitada de cafeína, pôde sentir uma dor de cabeça começando a latejar. Mesmo assim, continuou imóvel em sua grande cama. Durante a sessão final de seu treinamento, Gabriel recomendou que evitasse quaisquer mudanças na programação diária — uma programação que dezenas de seus empregados sabiam de cor. Ela levantava sem falta todas as manhãs às sete horas em ponto, nem um minuto mais cedo ou mais tarde. A bandeja com o café da manhã tinha que ser deixada na mesa do escritório. A não ser que fosse especificado algo diferente, deveria conter uma garrafa térmica de café filtrado, um jarro de leite quente, um copo de suco de laranja recém-preparado e duas fatias de 15 centímetros de tartine com manteiga e geleia de morango ao lado. Os jornais deveriam ser depositados no lado direito de sua escrivaninha — o Wall Street Journal em cima, seguido pelo International Herald Tribune, o Financial Journal e o Le Monde ?, bem como seu itinerário do dia num folder de couro. A televisão deveria estar ligada na BBC, sem volume, com o controle remoto ao alcance da mão.
Agora eram seis e meia. Sem conseguir deixar de pensar em nada além das pontadas na cabeça, ela fechou os olhos e tentou cochilar, mas foi perturbada trinta minutos depois por sua antiga governanta, Esmeralda, que bateu de leve na porta. Como de costume, Nadia continuou na cama até ela ir embora. Então vestiu um robe e, sob o olhar atento do pai, andou descalça até o escritório.
Foi recebida por um aroma de café fresco. Encheu uma xícara, acrescentou leite e três colheres cheias de açúcar e sentou-se à escrivaninha. Na televisão viam-se imagens de caos em Islamabad, resultado de outro poderoso carro-bomba da Al-Qaeda que havia matado mais de cem pessoas, quase todas muçulmanas. Nadia deixou sem volume e abriu o folder de couro com o itinerário. Era surpreendentemente agradável. Dentro de duas horas, ela deveria sair de casa e voar para Zurique. Lá, numa videoconferência no Dolder Grand Hotel, ela e seus assistentes mais próximos se encontrariam com executivos de uma empresa de óptica com sede em Zug, da qual a AAB Holdings detinha a maior parte. Logo em seguida, teria uma segunda reunião, sem a presença de assistentes. No tópico estava escrito “particular”, e isso significava que o assunto eram as finanças pessoais de Nadia.
Fechou o folder de couro e, como sempre, passou a hora seguinte lendo os jornais enquanto tomava café com torradas. Pouco depois das oito, ligou o computador para conferir o status dos mercados asiáticos, depois passou um bom tempo alternando entre os vários canais de notícias da TV a cabo. Sua última parada foi na Al Jazeera, que trocara a carnificina em Islamabad pelo relato de um ataque do Exército israelense à Faixa de Gaza que havia matado dois dos principais estrategistas do Hamas. Definindo o atentado como “um crime contra a humanidade”, o primeiro-ministro turco exortou as Nações Unidas a punir Israel com sanções econômicas — exortação rejeitada, no segmento seguinte, por um importante clérigo saudita. “Foi-se o tempo da diplomacia”, declarou ao bajulador jornalista da Al Jazeera. “Chegou a hora de todos os muçulmanos se unirem na luta armada contra os invasores sionistas. E que Deus castigue os que ousarem colaborar com os inimigos do Islã.”
Após desligar a televisão, Nadia voltou ao quarto e vestiu uma roupa de ginástica. Ela nunca tinha se preocupado com atividades físicas, e desde os 30 se preocupava cada vez menos. Por obrigação, todas as manhãs elevava sua frequência cardíaca e alongava braços e pernas porque isso era algo esperado de uma empresária moderna que vivia quase sempre no Ocidente. Ainda sentindo uma leve dor de cabeça, ela encurtou sua já breve rotina diária. Depois de uma caminhada tranquila na esteira, se exercitou por um tempo num tapete de ioga de borracha. Em seguida deitou-se de costas, imóvel, os tornozelos juntos e os braços abertos. Como sempre, a posição lhe deu uma sensação de ausência de peso. Naquela manhã, porém, também fez com que tivesse uma nítida e chocante revelação de seu futuro. Ficou deitada por um bom tempo, sem mudar de posição, decidindo se ia ou não a Zurique. Bastaria dar um telefonema, pensou. Um telefonema, e o fardo seria retirado. Mas não o deu. Ela acreditava que havia sido posta na terra, naquele lugar e naquela época, por uma razão. Acreditava que o mesmo era verdade para o homem que tinha matado seu pai, e não queria desapontá-lo.
Nadia levantou-se e, lutando contra a tontura, voltou ao quarto. Depois de tomar banho e se perfumar, entrou no closet e escolheu a roupa, substituindo as cores claras que preferia por tons mais sóbrios de cinza e preto. Penteou o cabelo com extremo cuidado. Quando passou por Rafiq al-Kamal e entrou na limusine trinta minutos depois, tinha no rosto a juhayman dos beduínos. A transformação estava quase completa. Era uma rica mulher saudita planejando vingar o assassinato do pai.
O carro atravessou o portão frontal da mansão e ganhou a rua. Enquanto rumava para o Bois de Boulogne, Nadia viu o homem que conhecia como Max andando alguns metros atrás de uma mulher que poderia ou não ser Sarah. Nesse momento, uma moto, dirigida por uma figura esbelta, de capacete e jaqueta preta de couro, apareceu por um instante perto da janela. Algo naquele homem trouxe à Nadia uma lembrança dolorosa. Provavelmente não era nada, disse a si mesma quando a moto desapareceu numa rua lateral. Apenas um nervosismo de última hora. Apenas sua mente lhe pregando peças.
Devido à recomendação da Al-Saud, Nadia sentiu-se obrigada a manter mais do que apenas a antiga equipe de segurança de seu pai. A estrutura básica da empresa permanecera a mesma, assim como a maior parte da diretoria. Daoud Hamza, um libanês formado em Stanford, ainda administrava as operações cotidianas. Manfred Wehrli, um suíço imperturbável, permanecia gerenciando as finanças. E a equipe jurídica, conhecida como Abdul & Abdul, continuava mantendo as coisas mais ou menos na linha. Acompanhados por vinte assistentes adicionais, criados, ajudantes-gerais e agregados diversos, todos estavam reunidos no salão VIP do Aeroporto Le Bourget quando Nadia chegou. As dez horas, eles ocuparam o Boeing Business Jet da AAB, e às 10h15 rumavam para Zurique. Passaram o voo de uma hora fazendo cálculos ao redor da mesa de conferência e ao chegarem ao Aeroporto de Kloten se amontoaram num comboio de sedans Mercedes. Foram a uma velocidade considerável pelas encostas arborizadas de Zurichberg até a graciosa entrada do Dolder Grand Hotel, onde os gerentes os escoltaram até uma sala de reunião com um nome que parecia alpino e uma vista do lago que fazia valer o ultrajante preço para entrar ali. A delegação da empresa de óptica suíça já havia chegado e estava se servindo fartamente no luxuoso bufê. A equipe da AAB se acomodou e começou a abrir suas pastas e laptops. O pessoal da AAB nunca comia durante as reuniões. Regras de Zizi.
A reunião estava programada para durar duas horas. Demorou trinta minutos a mais e foi concluída com um pedido de Nadia para investir 20 milhões de francos adicionais na empresa suíça, para ajudar a aperfeiçoar suas instalações e a linha de produção. Depois de alguns cumprimentos, a delegação suíça partiu. Ao atravessarem o elegante saguão, eles passaram por um árabe magro de barba rala de 40 e poucos anos sentado sozinho com uma pasta ao lado. Cinco minutos depois, um telefonema o convocou para a sala de reunião de onde os suíços tinham acabado de sair. Esperando ali sozinha estava uma linda mulher com incontestáveis credenciais jihadistas.
— Que as bênçãos de Deus estejam convosco ? disse ela em árabe.
— E convosco também ? respondeu Samir Abbas no mesmo idioma. ? Espero que sua reunião com os suíços tenha ido bem.
— Questões materiais ? disse Nadia, com um aceno displicente.
— Deus tem sido muito generoso com a senhorita ? falou Abbas. ? Reuni algumas propostas de como investir seu dinheiro.
— Eu não preciso de consultoria para investimentos, Sr. Abbas. Eu sei fazer isso sozinha.
— Então em que posso ajudar, Srta. Al-Bakari?
— O senhor pode começar se sentando. Depois pode desligar seu BlackBerry. Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.
— Entendo perfeitamente.
Ela sorriu.
— Tenho certeza de que entende.
39
Zurique
Eles sentaram em lados opostos da mesa de reunião, servidos apenas de água mineral suíça, que nenhum dos dois tocou. Entre eles repousavam dois celulares, telas escuras, cartões SIM removidos. Evitando olhar o rosto desvelado de Nadia, Samir Abbas parecia estudar o lustre acima de sua cabeça. Escondido em meio às luzes e aos cristais havia um minitransmissor de curta distância instalado mais cedo por Mordecai e Oded. Eles agora monitoravam seu sinal num aposento no quarto andar, com todas as contas pagas pelo Serviço Clandestino Nacional da CIA. Gabriel estava ouvindo no esconderijo na margem oposta do lago por meio de uma conexão segura de micro-ondas. Seus lábios moviam-se um pouco, como se tentasse dizer a Nadia a próxima fala.
— Gostaria de começar oferecendo minhas sinceras desculpas.
Por um instante, Abbas pareceu perplexo.
— A senhorita acabou de depositar 200 milhões de dólares na instituição financeira em que trabalho, Srta. Al-Bakari. Não consigo imaginar por que se desculparia.
— Porque pouco depois da morte de meu pai o senhor me pediu uma doação para uma das instituições beneficentes islâmicas da qual é associado. Eu recusei... um tanto rispidamente, se bem me lembro.
— Foi um erro ter me aproximado num momento tão delicado.
— Eu sei que o senhor só quer cuidar de meus interesses. Zakat é algo muito importante para nossa fé. De fato, meu pai acreditava que dar esmolas era o mais importante dos Cinco Pilares do Islã.
— Seu pai era impecável em sua generosidade. Sempre pude contar com ele quando estávamos em necessidade.
— Ele sempre falou muito bem do senhor.
— E da senhorita também. Seu pai a amava muito. Nem consigo imaginar sua perda. Sinta-se em paz pensando que seu pai está com Deus no Paraíso.
? Inshallah — disse ela num tom saudoso ?, mas devo dizer que não tive um único momento de paz desde o assassinato. E minha dor é agravada pelo fato de seus assassinos não terem sido punidos pelo crime.
— A senhorita tem direito a sua ira. Todos temos. O assassinato de seu pai foi um insulto a todos os muçulmanos.
— Mas o que fazer com essa ira?
— Está me pedindo um conselho, Srta. Al-Bakari?
— No campo espiritual — respondeu ela. — Sei que o senhor é um homem de muita fé.
— Como seu pai — replicou.
— Como meu pai — repetiu ela com suavidade.
Abbas olhou diretamente nos olhos dela por um breve momento antes de desviar outra vez a vista.
— O Corão é mais do que as palavras de Alá recitadas — explicou ele. — É também um documento legal que rege todos os aspectos de nossas vidas. E deixa muito claro o que fazer em caso de assassinato. A lei é conhecida como Al-Qisas. Como parente vivo mais próximo da família, a senhorita tem três opções. Pode simplesmente perdoar os culpados por bondade. Pode aceitar um pagamento dos assassinos. Ou pode fazer aos assassinos o mesmo que eles fizeram com a vítima, sem matar ninguém além deles.
— Os homens que mataram meu pai eram assassinos profissionais. Foram mandados por outros.
— Então os mandantes dos assassinos que são os maiores responsáveis pela morte de seu pai.
— E se eu não conseguir perdoá-los?
— Nesse caso, pelas leis de Alá, a senhorita tem o direito de matá-los. Sem matar ninguém mais — acrescentou rápido.
— Uma proposição difícil, não concorda, Sr. Abbas?
O banqueiro não respondeu, mas olhou diretamente para o rosto de Nadia pela primeira vez sem o menor traço de decoro islamita.
— Algum problema? — perguntou Nadia.
— Eu sei quem matou seu pai, Srta. Al-Bakari. E sei por que ele foi morto.
— Então também deve saber que não é possível puni-los de acordo com as leis do Islã. — Fez uma pausa. — Não sem ajuda.
Abbas pegou o BlackBerry desligado de Nadia e examinou-o em silêncio.
— Não há razão para ficar nervoso — disse ela em voz baixa.
— Por que eu estaria nervoso? Eu administro contas individuais com enormes valores para o TransArabian Bank. No meu tempo livre, solicito fundos para instituições beneficentes legítimas para amenizar o sofrimento de muçulmanos em todo o mundo.
— E é por isso que eu queria falar com o senhor.
— Quer fazer uma contribuição?
— Uma contribuição substancial.
— Para quem?
— Para o tipo de homem que possa fazer a justiça a que tenho direito.
Abbas colocou de volta no lugar o BlackBerry de Nadia, mas não disse nada. Nadia sustentou seu olhar por um tempo longo e desconfortável.
— Nós dois moramos no Ocidente, mas somos filhos do deserto. Minha família veio do Nejd, a sua, de Hejaz. Podemos dizer muita coisa com muito poucas palavras.
— Meu pai falava comigo com os olhos — falou Abbas, com ar saudoso.
— O meu também — disse Nadia.
Abbas abriu sua garrafa de água mineral e colocou um pouco no copo, devagar, como se fosse a última água da face da terra.
— As instituições a que estou associado são legítimas — falou, afinal. — O dinheiro é usado para construir estradas, escolas, hospitais e coisas do tipo. De vez em quando, uma parte chega às mãos de um grupo das áreas tribais do noroeste do Paquistão. Tenho certeza de que esse grupo ficará muito grato por qualquer ajuda. Como sabe, eles perderam seu principal patrocinador recentemente.
— Não estou interessada no grupo das áreas tribais do Paquistão — observou Nadia. — Eles não são mais eficientes. O tempo deles já passou.
— Diga isso para os habitantes de Paris, Copenhague, Londres e Madri.
— É do meu entendimento que o grupo das áreas tribais do Paquistão não teve nada a ver com esses ataques.
Abbas ergueu o olhar abruptamente.
— Quem disse tal coisa?
— Um homem da minha equipe de segurança que mantém contato com a inteligência saudita.
Nadia ficou surpresa com a facilidade com que a mentira saiu de seus lábios. Abbas fechou a garrafa e pareceu considerar a resposta dela com cautela.
— Existem rumores sobre o pregador iemenita — disse por fim. — O que tem um passaporte norte-americano e também fala como um norte-americano. Os rumores dizem ainda que ele está expandindo suas operações. Operações beneficentes, é claro — acrescentou Abbas.
— O senhor sabe como entrar em contato com essa organização?
— Se tiver mesmo a intenção de ajudá-los, acredito que possa fazer a apresentação.
— O quanto antes melhor.
— Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
— Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
— Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
O encontro se desenrolou da maneira exata com que havia sido planejado. Abbas voltou a seu escritório, Nadia para o avião, Oded e Mordecai para o esconderijo na margem oeste do lago. Gabriel nem se deu ao trabalho de recepcioná-los. Estava debruçado sobre o computador na sala de estar, fones nos ouvidos, resignação no rosto. Apertou pause, rew e, então, play.
? Eles não são o tipo de homens que gostam de receber ordens, Srta. Al-Bakari, principalmente de mulheres.
? Eu não sou uma mulher qualquer. Sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e espero por isso há muito tempo.
? Eles também... há centenas de anos, aliás. São homens de grande paciência. E a senhorita também deve ter paciência.
? Eu tenho um pedido, Sr. Abbas. Pelo que aconteceu com meu pai, é essencial que eu saiba com quem vou me encontrar e que estarei em segurança.
? Não precisa se preocupar, Srta. Al-Bakari. A pessoa que tenho em mente não representa absolutamente nenhuma ameaça à sua segurança.
? Quem é essa pessoa?
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel pausou, rebobinou e voltou a tocar.
? O nome dele é Marwan Bin Tayyib. É reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca e um homem santo.
Gabriel apertou stop. Depois, relutante, transmitiu o nome a Adrian Carter, em Langley. A resposta de Carter chegou cinco minutos depois. Era uma reserva para um voo matinal de volta a Washington. Classe econômica plus, é claro. A vingança de Carter.
40
Langley, Virgínia
— Muito bem — disse Carter. — Uma performance brilhante. Uma obra-prima. De verdade.
Ele estava parado na frente dos elevadores na suíte executiva do sétimo andar, com um sorriso tão autêntico quanto as plantas artificiais de seu escritório sempre às escuras. Era o tipo de sorriso consolador dos executivos na hora da demissão, pensou Gabriel. Só faltavam o relógio de ouro, um modesto bônus pelos serviços prestados e um jantar de cortesia para dois na steak house Mortons.
— Entre — continuou Carter, batendo no ombro de Gabriel, algo que jamais tinha feito. — Eu tenho uma coisa para mostrar a você.
Depois de descerem ao subsolo do edifício, os dois andaram pelo que pareceu mais de um quilômetro ao longo de corredores cinza e brancos. O destino era um deque de observação com janelas dando para um cavernoso espaço aberto que tinha a atmosfera do andar de negócios de Wall Street. Nas quatro paredes piscavam painéis de vídeo do tamanho de um quadro-negro. Abaixo, duzentas telas de computador iluminavam duzentos rostos. Gabriel não sabia exatamente o que estavam fazendo. A bem da verdade, ele nem sabia mais se ainda estava em Langley ou mesmo na Virgínia.
— Resolvemos que era hora de reunir todo mundo sob o mesmo teto — explicou Carter.
— Todo mundo? — perguntou Gabriel.
— Esta é a sua operação — disse Carter.
— Isso tudo é para uma operação?
— Nós somos norte-americanos — falou Carter com pesar. — Só fazemos coisas grandes.
— Já tem seu próprio código postal?
— Na verdade, nem tem nome ainda. Por enquanto, estamos chamando de Rashidistão, em sua homenagem. Vamos fazer um pequeno tour.
— Devido às circunstâncias, acho que mereço um tour até um pouco mais longo.
— Será que vamos começar essa discussão tola de novo?
— Só se for necessário.
Carter conduziu Gabriel por uma estreita escada em espiral até o andar do centro de operações abaixo. O ar parado cheirava a carpete recém-colocado e circuitos elétricos superaquecidos. Uma jovem de cabelo preto espetado passou sem dizer uma palavra e ocupou uma das inúmeras estações de trabalho no centro da sala. Gabriel olhou para uma das telas no alto e viu vários intelectuais famosos de Washington conversando sob o brilho intenso de um estúdio de televisão. Não havia áudio.
— Eles estão planejando um ataque terrorista?
— Que eu saiba, não.
— Então por que assistir a isso? — perguntou Gabriel, olhando ao redor com uma mistura de espanto e desânimo. — Quem são essas pessoas?
Até mesmo Carter, o líder nominal da operação, pareceu pensar um momento antes de responder.
— A maioria é da CIA — disse afinal ?, mas temos também gente do FBI, da ANS, do Departamento de Justiça e do Tesouro, além de vários contratados, os de crachá verde.
— Eles fazem parte de alguma espécie ameaçada?
— Muito pelo contrário — respondeu Carter. — Nem eu sei bem quantos trabalham em Langley hoje em dia. Mas sei de uma coisa: a maioria ganha muito mais do que eu.
— Fazendo o quê?
— Alguns são ex-funcionários do contraterrorismo que triplicaram o salário indo para empresas privadas. Em muitos casos, fazem o mesmo trabalho e mantêm as mesmas credenciais. Mas agora são pagos pela ACME Security Solutions ou outra entidade privada, e não pela Agência.
— E o resto?
— Coletores de dados — explicou Carter ?, e graças à reunião em Zurique ontem eles encontraram um grande filão. — Apontou em direção a uma das estações de trabalho. — Aquele grupo ali está cuidando de Samir Abbas, nosso amigo do TransArabian Bank. Estão desmembrando o sujeito, e-mail por e-mail, telefonema por telefonema, transação por transação. Conseguiram encontrar rastros anteriores ao 11 de Setembro. Até onde sabemos, só Samir já valeu pela operação toda. É incrível como ele conseguiu se esconder de nós todos esses anos. Ele pega pesado. Assim como o amigo dele da Universidade de Meca.
A garota de cabelo espetado entregou uma pasta a Carter, que em seguida levou Gabriel a uma sala de conferência com isolamento acústico. Uma única vidraça dava vista para o andar do centro de operações.
— Aqui está o seu garoto — disse Carter, entregando a Gabriel uma foto 8x10. ? O dilema saudita encarnado.
Gabriel examinou a fotografia e viu a imagem séria do xeique Marwan Bin Tayyib. O clérigo saudita tinha a barba longa e malcuidada de um muçulmano salafista e a expressão de um homem que não se importa em ser fotografado. Um ghutra vermelho e branco pendia de sua cabeça de uma forma que revelava o chapéu taqiyah branco por baixo. Diferentemente da maioria dos homens sauditas, ele não prendia o adorno na cabeça com a corda branca circular conhecida como agal. Era uma demonstração pia que dizia ao mundo que ele pouco se importava com a própria aparência.
— O que você sabe sobre ele? — perguntou Gabriel.
— Ele vem do núcleo central wahhabita ao norte de Riad. Aliás, existe uma cabana de pau a pique na cidade natal dele onde dizem que o próprio Wahhab ficou hospedado uma vez. Os homens de sua aldeia sempre se consideraram os guardiões da verdadeira fé, os mais puros entre os puros. Até hoje, estrangeiros não são bem recebidos. Se por acaso um deles chega à aldeia, os nativos escondem o rosto e se afastam.
— Bin Tayyib tem ligações com a Al-Qaeda?
— Ligações tênues, porém inegáveis — respondeu Carter. — Ele foi uma figura-chave no despertar do fervor islâmico que varreu o reino depois da tomada da Grande Mesquita em 1979. Em sua tese de doutorado, ele argumenta que o secularismo é um complô inspirado no Ocidente para destruir o Islã e a Arábia Saudita. Tornou-se leitura obrigatória entre certos membros radicais da Casa de Saud, inclusive o nosso velho amigo príncipe Nabil, o ministro do Interior saudita que até hoje se recusa a admitir que dezenove dos sequestradores do 11 de Setembro eram cidadãos do seu país. Nabil ficou tão impressionado com a tese de Bin Tayyib que o recomendou pessoalmente ao influente cargo na Universidade de Meca.
Gabriel devolveu a fotografia a Carter, que a observou com desdém antes de colocá-la na pasta.
— Não é a primeira vez que o nome de Bin Tayyib é ligado à rede de Rashid — falou. — Apesar do passado radical, Bin Tayyib trabalha como assessor do ultrassecreto programa de reabilitação de terroristas da Arábia Saudita. Pelo menos 25 sauditas voltaram ao campo de batalha depois de se formarem no programa. Consta que quatro estão no Iêmen com Rashid.
— Alguma outra ligação?
— Adivinhe quem foi a última pessoa a ser vista na presença de Rashid na noite em que ele mudou de lado?
— Bin Tayyib?
Carter anuiu.
— Foi Bin Tayyib quem fez o convite para Rashid falar na Universidade de Meca. E foi Bin Tayyib que o acompanhou na noite da deserção.
— Você chegou a tocar nesse assunto com seus amigos de Riad?
— Nós tentamos.
— E...?
— Não chegamos a parte alguma — admitiu Carter. — Como você sabe, a relação entre a Casa de Saud e os membros do establishment clerical é complicada, para dizer o mínimo. A Al-Saud não consegue governar sem o apoio dos ulemás. E caso se oponham a um teólogo influente como Bin Tayyib por causa de nós...
— Os jihadistas podem se sentir ofendidos.
Assentindo, Carter vasculhou a pasta e mostrou duas folhas de papel — transcrições de interceptações da ANS.
— Nosso amigo do TransArabian Bank fez duas ligações interessantes de seu escritório esta manhã, uma para Riad e outra para Jeddah. Na primeira, diz que está fazendo negócios com Nadia al-Bakari. Na segunda, diz que tem uma amiga que deseja discutir assuntos espirituais com o xeique Bin Tayyib. Em separado, as duas ligações parecem inocentes. Mas se juntarmos as duas...
— Não há dúvida de que Nadia al-Bakari gostaria de ter uma palavrinha com o xeique em particular.
— Para discutir assuntos espirituais, é claro. — Carter devolveu as transcrições à pasta. — A questão é — continuou, fechando a pasta — se vamos deixar que ela vá.
— Por que não deixaríamos?
— Porque seria uma violação de todos os nossos acordos vigentes com o governo saudita e seus serviços de segurança. O Hadith é claro ao dizer que não pode haver duas religiões na Arábia. E a Al-Saud deixou claro que eles também não vão tolerar dois serviços de inteligência.
— Quando vocês vão entender que eles são o problema, não a solução?
— No dia em que não precisarmos mais do petróleo deles para abastecer nossos carros e nossa economia — respondeu Carter. — Já prendemos e matamos centenas de cidadãos sauditas desde o 11 de Setembro, mas não dentro da Arábia Saudita. O país está fora de alcance para infiéis como nós. Se Nadia quiser encontrar o xeique Bin Tayyib, ela vai ter que fazer isso sozinha, sem retaguarda.
— Não podemos trazer a montanha até Maomé?
— Se você quer saber se Bin Tayyib pode viajar para fora da Arábia Saudita para se encontrar com Nadia, a resposta é não. Ele está em muitas listas de procurados. Nenhum país europeu, em sã consciência, o deixaria entrar. Se Bin Tayyib é uma ameaça, não temos escolha a não ser mandar Nadia ir à montanha sozinha. E se a Al-Saud descobrir que ela está lá em nosso nome, cabeças vão rolar.
— Você deveria ter pensado nisso antes de criar uma agência inteira do governo para cuidar desse assunto ? observou Gabriel, apontando para o centro de operações do outro lado do vidro. ? Mas agora é problema seu, Adrian. Nos termos do nosso recente acordo operacional, este é o momento em que eu entrego as chaves e desapareço.
— Queria saber se você não aceitaria alguns ajustes ? disse Carter com cautela.
— Sou todo ouvidos.
— Antes de me tornar o líder da maior força de contraterrorismo do mundo, eu recrutava e administrava espiões. E se existe uma coisa que qualquer espião detesta é mudança. Você encontrou Nadia. Você a recrutou. Faz todo o sentido você continuar na administração.
— Você quer que eu atue como seu oficial de campo?
— Acho que sim.
— Sob sua supervisão, é claro.
— A Casa Branca só admite que o controle da Agência seja total. Receio que minhas mãos estejam atadas.
— Não é do seu feitio se esconder atrás da alta cúpula, Adrian.
Carter não respondeu. Gabriel pareceu considerar a questão com seriedade, mas na verdade já tinha tomado uma decisão. Inclinou a cabeça para olhar através do vidro à prova de som e perguntou:
— Você tem alguma sala para mim aqui?
Carter sorriu.
— Já mandei fazer um crachá para você poder entrar no edifício sem precisar de escolta — falou. — É verde, claro.
— Verde é a cor do nosso inimigo.
— O Islã não é o inimigo, Gabriel.
— Ah, sim, tinha esquecido.
Carter conduziu Gabriel até um cubículo cinza num canto afastado do centro de operações. Nele havia uma mesa, uma cadeira, uma linha telefônica interna, um computador, um cofre para documentos, uma bolsa para colocar papéis confidenciais depois de queimados e uma xícara de café com o emblema da CIA. A garota do cabelo espetado trouxe uma pilha de pastas e voltou a seu posto sem dizer nada. Enquanto abria a primeira pasta, Gabriel ergueu o olhar e viu Carter admirando a vista do Rashidistão da plataforma de observação. Parecia contente consigo mesmo. Ele merecia. Agora a operação era dele. Gabriel era apenas mais um contratado, um homem num caixote cinzento com um crachá verde pendurado no pescoço.
41
Riad, Arábia Saudita
O Boeing Business Jet operado pela AAB Holdings entrou no espaço aéreo do reino da Arábia Saudita precisamente às 17h18. Como de praxe, o piloto britânico informou de imediato os passageiros e a tripulação para que as mulheres a bordo começassem a trocar as roupas ocidentais por trajes islâmicos apropriados.
Dez das mulheres logo fizeram isso. A décima primeira, Nadia al-Bakari, permaneceu em seu lugar habitual, repassando um grande calhamaço de papéis, até as primeiras luzes de Riad surgirem como pedaços de âmbar espalhados pelo solo desértico. Um século atrás, a capital saudita era pouco mais que um posto avançado no deserto com muros de barro, quase desconhecida para o mundo ocidental, uma mancha no mapa entre as encostas das montanhas Sarawat e o litoral do Golfo Pérsico. O petróleo transformou Riad numa moderna metrópole de palácios, arranha-céus e shoppings. Porém, sob muitos aspectos a riqueza do petróleo era uma miragem. Para cada bilhão que a Al-Saud gastou tentando modernizar seu sonolento império no deserto, foi esbanjado outro bilhão em iates, prostitutas e casas de férias em Marbella. Pior ainda, o governo tinha feito muito pouco para preparar o país para o dia em que o último poço secasse. Dez milhões de estrangeiros labutavam nos campos de petróleo e nos palácios enquanto centenas de milhares de jovens sauditas não conseguiam encontrar emprego. Fora o petróleo, as maiores exportações do país eram tâmaras e exemplares do Corão. E fanáticos barbudos, pensou Nadia com repugnância, enquanto observava as luzes de Riad se intensificarem. Quando se tratava da produção de extremistas islâmicos, a Arábia Saudita era líder de mercado.
Nadia afastou o olhar da janela e examinou o interior do avião, decorado como uma majlis, com confortáveis poltronas ao longo do corredor e ostentosos tapetes orientais. Os assentos eram ocupados por membros da diretoria da AAB, todos homens — Daoud Hamza, a equipe jurídica Abdul & Abdul e, claro, Rafiq al-Kamal, que encarava Nadia, a desaprovação transparecendo em seu rosto, como se tentasse lembrar a ela que era hora de trocar de roupa. Eles estavam para aterrissar numa terra de mulheres invisíveis, o que significava que Rafiq seria mais do que apenas o guarda-costas de Nadia. Atuaria também como seu acompanhante do sexo masculino e por lei seria obrigado a estar com ela em todos os lugares públicos a que fosse. Em poucos minutos, Nadia al-Bakari, uma das mulheres mais ricas do mundo, teria os direitos de um camelo. Menos ainda, pensou ressentida, pois até um camelo tinha o direito de mostrar o rosto.
Sem dizer uma palavra, ela levantou-se e andou em direção à parte traseira da aeronave, onde ficavam seus aposentos particulares elegantemente mobiliados. Abrindo o armário, viu suas roupas sauditas penduradas no cabide: um simples thobe branco, uma manta abaya preta bordada e um véu facial niqab negro. Pelo menos uma vez na vida, pensou, ela gostaria de andar pelas ruas de seu país em vestes brancas e folgadas, e não dentro de um casulo preto apertado. Não era possível, claro; nem mesmo uma enorme riqueza como a dos Al-Bakari oferecia proteção contra a fanática polícia religiosa mutaween. Além do mais, não era hora de desafiar as normas sociais e religiosas da Arábia Saudita. Ela tinha vindo a sua terra natal para se encontrar em particular com o xeique Marwan Bin Tayyib, reitor do departamento de teologia da Universidade de Meca. Sem dúvida, o estimado acadêmico religioso acharia estranho se, na véspera da reunião, Nadia fosse presa pelos barbudos por não usar trajes islâmicos adequados.
Relutante, despiu seu terninho Oscar de la Renta e vestiu-se de preto com uma lentidão clerical. Com o niqab agora escondendo o rosto que Deus havia lhe dado, postou-se diante do espelho e examinou a própria aparência. Somente os olhos eram visíveis, além de um tentador pedaço do tornozelo. Todas as outras provas visuais de sua existência tinham sido apagadas. Sua volta à cabine de passageiros mal provocou um olhar dos homens. Apenas Daoud Hamza, libanês, se deu ao trabalho de notar sua presença. Os outros, todos sauditas, claramente evitavam olhar para ela. A doença tinha voltado, pensou, a doença que era a Arábia Saudita. Não fazia diferença Nadia ser sua empregadora. Alá a tinha feito mulher, e ao chegar à terra do Profeta, ela assumiria o papel a que fora designada.
A aterrissagem no Aeroporto Internacional King Khalid coincidiu com as orações da noite. Proibida de rezar com os homens, Nadia não teve escolha a não ser esperar paciente enquanto eles cumpriam aquele importante pilar do Islã. Depois, rodeada por diversas mulheres com véu, desceu sem jeito a escada do avião, lutando para não tropeçar na abaya. Um vento gelado açoitava a pista, trazendo consigo uma espessa nuvem marrom da poeira do Nejd. Inclinando-se contra o vento para se equilibrar, Nadia seguiu os homens em direção ao terminal geral. Lá eles se separaram, pois o terminal, como outros espaços públicos na Arábia Saudita, era segregado por gênero. Apesar das etiquetas da AAB, sua bagagem foi vasculhada em busca de pornografia, álcool ou qualquer outro sinal de decadência ocidental.
Saindo pelo outro lado do edifício, ela entrou no banco traseiro de uma limusine Mercedes que a esperava com Rafiq para o trajeto de 35 quilômetros até Riad. A tempestade de areia tinha reduzido a visibilidade a apenas poucos metros. Às vezes, os faróis dos carros que vinham na direção contrária tremulavam como luzes de alerta de um pequeno navio, mas na maior parte do caminho eles pareciam estar totalmente sós. Nadia queria desesperadamente tirar seu niqab, mas sabia que não deveria fazer isso. Os mutaween estavam sempre alerta para mulheres sem véu em automóveis — principalmente ricas mulheres ocidentalizadas voltando da Europa para casa.
Depois de quinze minutos, a silhueta de Riad afinal surgiu na escuridão amarronzada. Passaram depressa pela Universidade Islâmica Ibn Saud e trafegaram por uma série de rotatórias até a King Fahd Avenue, a principal via do novo e próspero distrito financeiro de Al-Olaya em Riad. Logo à frente erguia-se a torre prateada do Kingdom Center, parecendo uma moderna valise de diplomata largada no lugar errado, à espera do dono. À sua sombra estava o novo e cintilante Makkah Mail, reaberto depois das orações da noite e agora sendo atacado por hordas de ávidos consumidores. Mutaween armados de cassetetes moviam-se pela multidão em duplas, em busca de indícios de conduta ou relacionamentos impróprios. Nadia pensou em Rena, e pela primeira vez desde sua convocação à casa de Seraincourt sentiu uma pontada de medo.
O temor diminuiu pouco depois quando o carro virou na Musa Bin Nusiar Street e entrou em Al-Shumaysi, um bairro de palácios murados habitado por príncipes da família Al-Saud e outras elites sauditas. O complexo residencial dos Al-Bakari ficava no lado oeste do bairro, numa rua patrulhada sempre por soldados e policiais. Uma mistura elaborada de Oriente e Ocidente, o palácio era cercado por três acres de espelhos d’água, fontes, gramados e palmeirais. Suas altas muralhas brancas foram projetadas para afastar o mais determinado inimigo, mas nada podiam fazer contra a poeira, que rodopiava pelo pátio quando a limusine passou pelos portões de segurança.
No pórtico estavam de prontidão dez membros da equipe doméstica permanente, todos asiáticos. Ao sair da limusine, Nadia gostaria de cumprimentar todos calorosamente. Porém, no papel de uma distante herdeira saudita, ela passou por eles sem dizer nada e começou a subir a extensa escadaria central. Quando chegou ao primeiro patamar, já tinha arrancado o niqab do rosto. Depois, na privacidade de seus aposentos, tirou a roupa e ficou nua de corpo inteiro em frente a um espelho, até que uma tontura a fez cair de joelhos. Quando se recuperou, lavou os cabelos para remover a poeira do Nejd e deitou-se no piso com os tornozelos juntos e os braços abertos, esperando que o familiar sentimento de ausência de peso a tomasse. Estava quase no fim, pensou. Poucos meses, talvez apenas poucas semanas. E estaria terminado.
Eram onze e meia da manhã em Langley, mas no Rashidistão a atmosfera era de noite permanente. Adrian Carter estava na mesa de comando, um telefone de conexão segura numa das mãos, uma folha de papel na outra. O telefone estava ligado a James McKenna, na Casa Branca. A folha era a impressão do cabograma mais recente da base da CIA em Riad. Dizia que NAB, o nome não tão cifrado da Agência para Nadia al-Bakari, havia chegado em casa em segurança e parecia não estar sob vigilância — jihadista, saudita nem outra qualquer. Carter leu a mensagem com uma expressão de profundo alívio antes de entregá-la a Gabriel, cujo rosto permaneceu inexpressivo. Não disseram nada um ao outro. Não precisavam. A aflição que sentiam era partilhada. Tinham uma agente em território hostil e nenhum dos dois teria um momento de paz até que ela voltasse em seu avião, saindo do espaço aéreo da Arábia Saudita.
Ao meio-dia, horário de Washington, Carter voltou a seu escritório no sétimo andar enquanto Gabriel dirigiu-se para a casa na N Street para dormir; seu corpo precisava. Acordou à meia-noite, e à uma hora estava de volta ao Rashidistão, com seu crachá verde e Adrian Carter tenso a seu lado. O segundo cabograma de Riad chegou quinze minutos depois. Dizia que NAB tinha saído de seu complexo residencial em Al-Shumaysi e eslava agora a caminho de seus escritórios na Al-Olaya Street. Ficou lá até a uma da tarde, quando foi levada para o Four Seasons Hotel para um almoço com investidores sauditas, todos homens. Ao partir do hotel, seu carro virou à direita na King Fahd Street ? fato curioso, pois seu escritório era na direção oposta. Foi vista dez minutos depois, indo para o norte pela Highway 65. A equipe da CIA não tentou segui-la. Agora NAB estava por conta própria.
42
Nejd, Arábia Saudita
O vento diminuiu ao meio-dia e no fim da tarde a paz se estabeleceu mais uma vez no Nejd. Seria uma paz temporária, como costumava acontecer no platô, pois, no oeste distante, nuvens negras de tempestade moviam-se devagar acima dos desfiladeiros das montanhas Sarawat como um grupo de hejazis montados. Tinham se passado duas semanas desde as primeiras chuvas e no solo do deserto rebentavam hesitantes os primeiros brotos de grama e flores silvestres. Em poucas semanas, a terra estaria verde como os prados de Berkshire. Depois a fornalha explosiva se acenderia outra vez e nenhuma gota cairia do céu — não até o próximo inverno quando, com a graça de Alá, as tempestades mais uma vez viriam das encostas das Sarawat.
Para o povo do Nejd, a chuva era uma das poucas coisas boas que vinham do oeste. Eles consideravam tudo o mais, inclusive seus assim chamados compatriotas de Hejaz, com desprezo e zombaria. Era a fé que os tornava hostis à influência externa, uma fé que lhes fora dada três séculos atrás por um austero pregador reformista chamado Muhammad Abdul Wahhab. Em 1744, ele forjou uma aliança com uma tribo do Nejd chamada Al-Saud, dando origem, assim, à união do poder político e religioso que afinal levaria à criação do moderno Estado da Arábia Saudita. Era uma aliança instável, e de tempos em tempos a Al-Saud sentia-se compelida a pôr os barbados fanáticos do Nejd em seus devidos lugares, às vezes com a ajuda de infiéis. Em 1930, a Al-Saud usou metralhadoras britânicas para massacrar os guerreiros sagrados dos Ikhwan na cidade de Sabillah. E depois do 11 de Setembro a Al-Saud juntou forças com os odiados norte-americanos para derrotar aversão moderna dos Ikhwan conhecida como Al-Qaeda. Mas, apesar de tudo isso, o casamento entre os seguidores de Wahhab e da Casa de Saud resistia. Eles dependiam uns dos outros para a própria sobrevivência. Na paisagem inclemente do Nejd, não se podia pedir muito mais.
Apesar dos extremos do clima, o asfalto recente da Highway 65 era negro e suave, como os rios de óleo cru que corriam abaixo. Seguindo em direção ao noroeste, a rodovia percorria o caminho da antiga rota das caravanas que ligavam Riad à cidade-oásis de Hail. Poucos quilômetros ao sul de Hail, perto da cidade de Buraydah, Nadia orientou o motorista a virar numa estrada menor de pista dupla que ia para o oeste pelo deserto. Rafiq estava agora visivelmente inquieto.
Nadia não havia dito nada sobre seus planos de viajar ao Nejd até o momento em que partiram do Four Seasons, e mesmo então suas explicações foram obscuras. Ela falou que iria jantar no acampamento familiar do xeique Marwan Bin Tayyib, um importante membro dos ulemás. Depois do jantar — que seria estritamente segregado por gênero, claro — ela se encontraria em particular com o xeique para discutir questões relacionadas com o zakat. Não seria necessário ter um acompanhante na reunião, já que o clérigo muçulmano era um homem bom e instruído, conhecido por sua extrema piedade. Não haveria qualquer preocupação com segurança. Al-Kamal aceitou as diretrizes, mas estava claro que não gostou nem um pouco.
Já haviam se passado alguns minutos das cinco e a luz do sol ia se esvaindo aos poucos no céu sem fim. Eles passaram por pomares de tâmara, limão e laranja, reduzindo a velocidade só uma vez para permitir que um pastor com vestes de couro atravessasse a estrada com suas cabras. Al-Kamal parecia relaxar a cada quilômetro rodado. Nativo da região, ele apontava alguns dos lugares mais importantes à medida que apareciam. Em Unayzah, uma cidade intensamente religiosa conhecida pela pureza do islamismo, ele pediu que Nadia fizesse um pequeno desvio para poder ver a modesta casa onde ele, ainda criança, tinha vivido com uma das quatro esposas do pai.
— Eu nunca soube que você era daqui — comentou Nadia.
— O xeique Bin Tayyib também é — disse ele, balançando a cabeça. — Eu o conheço desde garoto. Estudamos na mesma escola e rezamos na mesma mesquita. Marwan era bem rebelde na época. Teve problemas por atirar uma pedra na vitrine de uma locadora de vídeo. Dizia que aquilo não era islâmico.
— E você?
— Eu não me incomodava com a loja. Não havia muito mais a fazer em Unayzah além de ver filmes e ir à mesquita.
— Imagino que o xeique tenha moderado seu ponto de vista desde então.
— Os muçulmanos de Unayzah não sabem o significado da palavra “moderação” — disse Al-Kamal. — Se Marwan mudou desde aquela época, foi apenas em público. Marwan é um islamita de alto a baixo. E não dá muito valor à Al-Saud, apesar de ser muito bem pago por eles. Eu ficaria alerta.
— Vou me lembrar disso.
— Talvez fosse melhor eu ir ao encontro com a senhorita.
— Eu vou ficar bem, Rafiq.
Al-Kamal permaneceu em silêncio quando eles saíram de Unayzah e mergulharam outra vez no deserto. Bem à frente deles, depois de um mar de pedras e rochedos, erguia-se uma escarpa rochosa, as extremidades escavadas e desgastadas por milhões de anos de vento e areia. O acampamento do xeique situava-se ao norte do afloramento que percorria a borda de um profundo wadi. Nadia podia sentir a carroceria do automóvel batendo em grandes pedras enquanto seguiam por uma esburacada estrada de terra.
— Gostaria que tivesse dito aonde iríamos — comentou Al-Kamal, segurando-se no banco. — Poderíamos ter pegado um dos Range Rovers.
— Eu não achei que seria tão ruim.
— É um acampamento no deserto. Como achou que chegaríamos aqui?
Nadia riu.
— Espero que meu pai não esteja vendo isso.
— Na verdade, espero que ele esteja. — Al-Kamal olhou para ela por um longo tempo antes de falar. — Eu nunca saía de perto do seu pai, Nadia, nem quando ele discutia negócios bastante sigilosos com homens como o xeique Bin Tayyib. Ele confiava sua vida a mim. Infelizmente, não pude protegê-lo naquela noite em Cannes, mas ficaria feliz em me interpor àquelas balas. E faria o mesmo pela senhorita. Entende o que estou dizendo?
— Acho que sim, Rafiq.
— Ótimo — falou. — Se Deus quiser, o encontro desta noite vai ser um sucesso. Mas da próxima vez me avise antes para eu fazer os arranjos necessários. É melhor assim. Sem surpresas.
— Regras de Zizi? — perguntou ela.
— Regras de Zizi — respondeu ele, confirmando com a cabeça. — As regras de Zizi são como os ensinamentos do Profeta, que a paz esteja com ele. Siga-as com atenção e Deus há de garantir uma vida longa e feliz. Ignore-as... — Deu de ombros. — É então que as coisas ruins acontecem.
Chegaram a um aglomerado de carros estacionados de qualquer jeito na borda do wadi: Range Rovers, Mercedes, Toyotas e algumas picapes velhas. Próximo ao estacionamento, brilhando com luzes internas, havia duas grandes tendas comunitárias. Dezenas de tendas menores espalhavam-se pelo deserto, todas equipadas com um gerador e uma antena parabólica. Nadia sorriu sob o véu de seu niqab. Os sauditas adoravam voltar ao deserto durante o inverno para retomar contato com sua herança beduína, mas a devoção pela tradição parava por aí.
— O xeique está claramente indo muito bem.
— A senhorita devia ver a vila dele em Meca — observou Al-Kamal. — Tudo isto aqui foi comprado e pago pelo governo. Do ponto de vista da Al-Saud, é um dinheiro bem gasto. Eles tomam conta dos ulemás, e os ulemás tomam conta deles.
— Por que neste lugar? — perguntou Nadia, olhando ao redor.
— Muito antes de a Arábia Saudita existir, membros do clã do xeique traziam os animais aqui durante o inverno. Os Bin Tayyib acampam aqui há séculos.
— A próxima coisa que você vai me dizer é que veio aqui quando era garoto.
Al-Kamal abriu um raro sorriso.
— Eu vim.
Ele fez sinal para o motorista estacionar num espaço distante dos outros carros. Depois de ajudar Nadia a sair da Mercedes, parou para observar um Toyota Camry. Se não fosse pela fina camada de poeira, pareceria ter acabado de andar nas docas de Dhahran.
— O carro dos seus sonhos? — perguntou Nadia com ironia.
— É o modelo que eles dão de presente aos que se formam no programa de reabilitação de terroristas. Eles dão entrada numa casa, um carro e uma boa garota para se casar: todas as armadilhas de uma vida normal para ficarem presos a este mundo e não ao mundo do jihad. Eles compram a lealdade dos ulemás e compram a lealdade dos jihadistas. É o caminho do deserto. É o caminho da Al-Saud.
Al-Kamal disse para o motorista ficar no carro e depois levou Nadia em direção às duas tendas comunitárias. Poucos segundos depois surgiu um jovem para recepcioná-los. Usava um thobe que ia até abaixo do joelho no estilo salafista e um chapéu taqiyah sem adornos. Sua barba era longa porém rala e o olhar, de uma gentileza surpreendente para um homem saudita. Depois de proferir as tradicionais saudações de paz, apresentou-se como Ali e disse que era um talib, ou aluno, do xeique Bin Tayyib. Parecia ter uns 30 anos.
— O jantar acabou de começar. Seu guarda-costas pode vir conosco, se quiser. As mulheres estão ali — acrescentou, gesticulando em direção à tenda da esquerda. — Há vários membros da família do xeique aqui esta noite. Tenho certeza de que se sentirá em casa.
Nadia trocou um último e breve olhar com Al-Kamal antes de se dirigir à tenda. Duas mulheres com véu apareceram, saudaram-na calorosamente no árabe do Nejd e a conduziram pela abertura. Dentro havia vinte outras mulheres idênticas. Estavam sentadas em tapetes orientais grossos, ao redor de travessas cheias de carneiro, frango, berinjela, arroz e pão árabe. Algumas usavam niqab como Nadia, mas a maioria estava com todo o corpo encoberto. No espaço fechado da tenda, seu enérgico falatório soava como o som de cigarras. Houve silêncio por um momento enquanto Nadia foi apresentada por uma das mulheres que a recebera. Aparentemente, elas estavam esperando a chegada de Nadia para começar a comer, pois uma das mulheres exclamou em voz alta uAl-hamdu lillah!”, que significava “Graças a Deus!” Em seguida atacaram as travessas como se não comessem há muitos dias e não fossem ver comida por muito tempo mais.
Ainda em pé, Nadia observou por um tempo aquelas figuras veladas e sem forma antes de se sentar entre duas mulheres de mais de 20 anos. Uma chamava-se Adara; a outra, Safia. Adara era sobrinha do xeique e vinha de Buraydah. O irmão tinha ido ao Iraque para lutar contra os norte-americanos, desaparecendo sem deixar vestígios. Safia revelou ser esposa de Ali, o talib. “Meu nome foi dado em homenagem a uma mulher muçulmana que matou um espião judeu na época do Profeta”, explicou orgulhosa antes de acrescentar o obrigatório “que a paz esteja com ele”. Rafiq tinha razão quanto ao Toyota Camry: era o presente de Ali por sua formatura no programa de reabilitação de terroristas. Safia também era, junto com um dote respeitável. Estavam esperando o primeiro filho para dali a quatro meses.
? Inshallah, vai ser um garoto — disse ela.
— Se Deus quiser — repetiu Nadia com uma serenidade que não combinava com seus pensamentos.
Nadia serviu-se de uma pequena porção de galinha e arroz e olhou para as outras mulheres ao redor. Poucas haviam tirado seus niqabs e a maioria tentava comer com os rostos encobertos, inclusive Adara e Safia. Nadia fez o mesmo, enquanto ouvia o constante murmúrio à sua volta. Era uma conversa banal demais: fofocas de família, o mais novo shopping de Riad, as realizações dos filhos. Só dos filhos homens, é claro, pois meninas eram símbolo de fracasso reprodutivo. Era assim que passavam a vida, trancadas em quartos separados, em tendas separadas, na companhia de mulheres iguais a elas. Não iam ao teatro, pois não havia uma única sala de espetáculos em todo o país. Não iam a discotecas, pois a música e a dança eram estritamente haram. Não liam nada a não ser o Corão — que estudavam em separado dos homens — e revistas sob censura pesada que faziam propaganda de roupas que elas não podiam usar em público. Às vezes satisfaziam umas às outras com prazer físico, o pequeno segredo sujo da Arábia Saudita, mas a maioria levava uma vida de tédio sufocante e deprimente. E quando chegasse a hora seriam enterradas dentro da tradição wahhabita, numa cova sem identificação, debaixo das areias escaldantes do Nejd.
Apesar de tudo isso, Nadia não conseguiu deixar de sentir um estranho conforto pela acolhida calorosa de sua gente e de sua fé. Era uma coisa que os ocidentais nunca entenderiam sobre o Islã: ele abrangia tudo. Despertava todos de manhã com o chamado às orações e recobria todos como uma abaya durante o restante do dia. Estava em cada palavra, cada pensamento e cada feito de um muçulmano devoto. E estava ali, naquela reunião comunitária de mulheres veladas, no coração do Nejd.
Foi aí que ela sentiu a primeira terrível pontada de culpa. Atingiu-a de súbito como uma tempestade de areia e sem a cortesia de um alerta. Ao se aliar com israelenses e norte-americanos, ela estava renunciando a sua fé como muçulmana. Era uma herege, uma apóstata, e o castigo pela apostasia era a morte. Seria uma morte a que essas mulheres veladas e entediadas ao seu redor fechariam os olhos. Elas não tinham escolha; se ousassem sair em sua defesa, sofreriam o mesmo destino.
O sentimento de culpa passou logo, sendo substituído pelo medo. Para se fortalecer, pensou em Rena, sua guia, seu farol. E pensou em como era conveniente que seu ato de traição ocorresse naquele lugar, no território sagrado do Nejd, no afável abraço de mulheres veladas. Se ela tivesse algum receio quanto ao caminho escolhido, já era tarde demais. Porque, pela abertura da tenda, ela viu Ali, o talib barbado, vindo do deserto com seu curto thobe salafista. Era hora de conversar com o xeique. Depois disso, com a graça de Alá, as chuvas cairiam e tudo seria consumado.
43
Nejd, Arábia Saudita
Nadia seguiu o talib pelo deserto, ao longo da borda do wadi. Não havia propriamente um caminho, apenas um sulco de terra batida, resquício de uma antiga trilha de camelos escavada muito antes de qualquer um no Nejd ter ouvido falar de um pregador chamado Wahhab ou mesmo de um mercador de Meca chamado Maomé. O talib não levava nenhuma tocha, pois não era necessário. O caminho era iluminado pelas estrelas brilhando no vasto céu e pelo hilal da lua flutuando sobre um distante pináculo rochoso, como um crescente no topo do mais alto minarete do mundo. Nadia carregava os sapatos de salto alto numa das mãos enquanto a outra suspendia a barra da abaya preta. O ar agora estava cruelmente gelado, mas a terra era quente sob seus pés. O talib andava alguns metros à frente. Seu thobe parecia ter luz própria sob o brilho da lua. Estava recitando baixinho versos do Corão para si mesmo, mas com Nadia ele não falou uma palavra sequer.
Chegaram a uma tenda sem antena parabólica nem gerador. Dois homens estavam agachados na entrada, os rostos jovens e com barba iluminados pelo brilho mortiço de uma pequena fogueira. O talib proferiu suas saudações de paz, abriu a tenda e fez sinal para Nadia entrar. O xeique Marwan Bin Tayyib estava sentado com as pernas cruzadas num tapete oriental simples lendo o Corão sob a luz de um lampião a gás. Fechando o livro, examinou Nadia por um longo tempo através de seus pequenos óculos redondos antes de convidá-la a se sentar. Ela se abaixou bem devagar, tomando cuidado para não expor alguma parte do corpo, e acomodou-se numa postura devota perto do Corão.
— O véu cai bem em você — comentou Bin Tayyib com admiração ?, mas pode tirar, se quiser.
— Eu prefiro manter.
— Nunca imaginei que você fosse tão devota. Sua reputação é de uma mulher independente.
Estava claro que o xeique não havia dito isso como um elogio. Pretendia testá-la, mas ela não esperava outra coisa. Nem Gabriel. Oculte apenas a nossa presença, tinha dito ele. Atenha-se à verdade sempre que possível. A mentira é o último recurso. Era o método do Escritório. O método do espião profissional.
— Independente do quê? — perguntou Nadia, provocando-o.
— Da charia — respondeu o xeique. — Fui informado de que você nunca usa o véu no Ocidente.
— Não é prático.
— É do meu conhecimento que cada vez mais nossas mulheres preferem permanecer veladas quando viajam. Me disseram que muitas mulheres sauditas cobrem o rosto quando vão tomar chá na loja da Harrods.
— Elas não administram grandes empresas de investimentos. E a maioria bebe mais do que chá quando está no Ocidente.
Ouvi dizer que você é uma delas.
Atenha-se à verdade sempre que possível...
— Confesso que gosto de vinho.
— É haram — disse ele num tom repreensivo.
— Pode culpar meu pai. Ele me deixava beber quando eu estava no Ocidente.
— Ele era condescendente com você?
— Não — respondeu ela, balançando a cabeça ?, não era. Ele me mimou bastante. Mas também me passou sua fé grandiosa.
— Fé em quê?
— Fé em Alá e em Seu Profeta Maomé, que a paz esteja com ele.
— Se não me falha a memória, seu pai se considerava um descendente do próprio Wahhab.
— Diferente da família Al-Asheikh, não somos descendentes diretos. Somos de um ramo distante.
— Distante ou não, o sangue dele corre nas suas veias.
— É o que se diz.
— Mas você escolheu não se casar e ter filhos. Isso também é uma questão de praticidade?
Nadia hesitou.
A mentira é o último recurso...
— Minha maturidade veio com o assassinato de meu pai — respondeu. — Minha dor tornou impossível até considerar a ideia de um casamento.
— E agora sua dor trouxe você até nós.
— Não a dor — observou Nadia. — A raiva.
— Aqui no Nejd, às vezes é difícil separar esses dois sentimentos. — O xeique abriu um sorriso solidário, o primeiro. — Mas você precisa saber que não está sozinha. Existem centenas de sauditas na sua situação: bons muçulmanos cujos entes queridos foram mortos pelos norte-americanos ou até hoje apodrecem nas jaulas da baía de Guantánamo. E muitos têm procurado os irmãos em busca de vingança.
— Nenhum deles viu o pai ser morto a sangue-frio.
— Você acredita que isso a torna especial?
— Não, acredito que meu dinheiro me torna especial.
— Muito especial — concordou o xeique. — Já faz cinco anos que seu pai foi martirizado, não é?
Nadia assentiu.
— É um longo tempo, Srta. Al-Bakari.
— No Nejd, é um piscar de olhos.
— Nós esperávamos que viesse mais cedo. Até enviamos nosso irmão Samir para entrar em contato com você. Mas você rejeitou suas súplicas.
— Não me foi possível ajudar vocês naquela época.
— Por que não?
— Eu estava sendo vigiada.
— Por quem?
— Por todos. Inclusive pela Al-Saud.
— Eles recomendaram que não tomasse nenhuma atitude para vingar a morte de seu pai?
— Não nesses termos exatos.
— Eles disseram que haveria consequências financeiras?
— Eles não foram específicos, mas disseram que as consequências seriam graves.
— E você acreditou neles?
— Por que não acreditaria?
— Porque eles são mentirosos. — Bin Tayyib deixou aquelas palavras pairando no ar por um momento. — Como posso saber que você não é uma espiã enviada pela Al-Saud para me colocar numa armadilha?
— Como posso saber que o senhor não é o espião, xeique Bin Tayyib? Afinal, é o senhor que está na folha de pagamento da Al-Saud.
— Assim como a senhorita. Ao menos são os rumores.
Nadia lançou um olhar gélido para o xeique. Imaginou como ele a veria — dois olhos negros como carvão o encarando em meio ao niqab negro. Talvez houvesse algum valor no véu, afinal.
— Tente entender nosso ponto de vista, Srta. Al-Bakari — continuou Bin Tayyib. — Durante os cinco anos desde que seu pai foi martirizado, você não disse nada sobre ele em público. Você parece passar o mínimo de tempo possível na Arábia Saudita. Você fuma, bebe, abandonou o véu... a não ser, claro, quando tenta me impressionar com sua devoção... e desperdiça centenas de milhões de dólares em arte dos infiéis.
Obviamente, o teste do xeique ainda não havia terminado. Nadia recordou as últimas palavras ditas por Gabriel no Château Treville. Você é filha de Zizi. Nunca deixe que eles esqueçam isso.
— Talvez tenha razão, xeique Bin Tayyib. Talvez eu devesse ter me envolvido numa burca e declarado na televisão minha intenção de vingar a morte de meu pai. Sem dúvida essa teria sido a atitude mais sábia.
O xeique deu um sorriso conciliatório.
— Já ouvi falar de sua língua perversa — falou.
— Eu tenho a língua de meu pai. E a última vez que ouvi sua voz ele estava sangrando e morrendo nos meus braços.
— E agora você quer vingança.
— Eu quero justiça... a justiça divina.
— E quanto à Al-Saud?
— Parece que eles perderam o interesse por mim.
— Não me surpreende — disse Bin Tayyib. — Nem mesmo a Casa de Saud sabe se vai sobreviver aos distúrbios que varrem o mundo árabe. Eles precisam de amigos onde puderem encontrar, mesmo que usem thobes curtos e tenham as barbas descuidadas dos salafistas.
Nadia mal acreditava no que ouvia. Se o xeique estava dizendo a verdade, os governantes da Arábia Saudita tinham renovado o acordo de Fausto, o pacto com o diabo que levara ao 11 de Setembro e a inúmeras outras mortes desde então. A Al-Saud não tinha escolha, pensou. Eram como um homem segurando um tigre pelas orelhas. Se mantivessem a fera presa, poderiam sobreviver um pouco mais. Mas se a soltassem, seriam devorados no mesmo instante.
— Os norte-americanos sabem disso? — perguntou ela.
— A chamada relação especial entre o Estados Unidos e a Casa de Saud é coisa do passado — explicou Bin Tayyib. — Como você deve saber, Srta. Al-Bakari, a Arábia Saudita está fazendo novas alianças e encontrando outros consumidores para o seu petróleo. Os chineses não se importam com aspectos como direitos humanos e democracia. Eles pagam as contas no prazo e não metem o nariz em assuntos onde não são chamados.
— Assuntos como o jihad?
O xeique assentiu.
— O Profeta Maomé, que a paz esteja com ele, nos ensinou que existem Cinco Pilares do Islã. Nós acreditamos que existe um sexto. O jihad não é uma escolha. É uma obrigação. A Al-Saud entende isso. Mais uma vez, eles estão dispostos a olhar para o outro lado desde que os irmãos não criem problemas dentro do reino. Esse foi o maior erro de Bin Laden.
— Bin Laden está morto — falou Nadia assim como o seu grupo. Estou interessada em alguém que possa detonar bombas em cidades da Europa.
— Então está interessada no iemenita.
— Você o conhece?
— Já me encontrei com ele.
— E conseguiria falar com ele?
— Essa é uma pergunta perigosa. E mesmo se eu pudesse falar com ele, com certeza não me daria ao trabalho de conversar sobre uma rica mulher saudita em busca de vingança. Você precisa acreditar no que está fazendo.
— Eu sou a filha de Abdul Aziz al-Bakari e descendente de Muhammad Abdul Wahhab e com certeza acredito no que estou fazendo. E estou interessada em muito mais do que apenas vingança.
— No que você está interessada?
Nadia hesitou. As palavras seguintes não eram dela. Tinham sido ditadas pelo homem que matou seu pai.
— Eu só gostaria de retomar o trabalho de Abdul Aziz al-Bakari — disse mostrando seriedade. — Vou entregar o dinheiro nas mãos do iemenita para ele fazer o que desejar. E talvez, se Deus quiser, um dia bombas explodirão nas ruas de Washington e Tel Aviv.
— Imagino que ele ficaria muito grato — falou o xeique, cauteloso. — Mas tenho certeza de que ele não vai poder oferecer nenhuma garantia.
— Não estou à procura de garantias. Apenas uma promessa de que vai usar o dinheiro com cuidado e sabedoria.
— Está propondo uma única doação?
— Não, xeique Bin Tayyib, estou propondo uma relação de longo prazo. Ele faz os ataques. E eu pago por eles.
— Quanto dinheiro estaria disposta a fornecer?
— Quanto ele precisar.
O xeique sorriu.
? Al-hamdu lillah.
Nadia ficou na tenda por mais uma hora. Depois seguiu o talib ao longo da beira do wadi até o carro. Choveu durante a viagem de volta a Riad, e ainda estava chovendo no fim da manhã seguinte, quando Nadia e seu entourage embarcaram no avião de volta à Europa. Assim que saiu do espaço aéreo saudita, ela retirou o niqab e a abaya e vestiu um terno Chanel claro. Em seguida telefonou para Thomas Fowler em sua casa ao norte de Paris para dizer que os encontros na Arábia Saudita tinham ido melhor do que o esperado. De imediato, Fowler fez uma ligação para uma empresa de capital de risco pouco conhecida do norte da Virgínia — uma ligação que foi automaticamente redirecionada para a mesa de Gabriel no Rashidistão. Gabriel passou a semana seguinte monitorando com atenção as manobras financeiras e legais de Samir Abbas. Depois de um modesto jantar com Carter num restaurante de frutos do mar em McLean, Gabriel seguiu outra vez para Londres. Carter deixou que viajasse num Gulfstream da Agência. Sem algemas. Sem agulhas hipodérmicas. Sem ressentimentos.
44
St. James, Londres
Um dia depois da volta de Gabriel a Londres, a Christies anunciou uma oferta-surpresa em sua próxima venda dos Grandes Mestres de Veneza: Madona e a Criança com Maria Madalena, óleo sobre tela, 110 por 92 centímetros, atribuída a Ticiano. Por volta de meio-dia, os telefones da casa de leilões não paravam de tocar e até o fim do dia mais de quarenta importantes museus e colecionadores já estavam na disputa. À noite, a atmosfera no bar do Greens estava elétrica, embora Julian Isherwood não estivesse lá.
— Eu o vi pegando um táxi na Duke Street ? murmurou Jeremy Crabbe ao beber seu drinque com gim e cerveja amarga. ? Parecia mesmo arrasado, coitado. Disse que iria passar uma noite tranquila sozinho com sua tosse.
É raro a pintura de um artista como Ticiano ressurgir, e quando isso acontece, em geral vem acompanhada por uma boa história. Era esse o caso de Madona e a Criança com Maria Madalena, mas a história tanto podia ser uma tragédia quanto uma comédia ou conto com lição de moral, dependendo de quem a contasse. A Christie’s divulgou a versão resumida oficial da procedência da pintura, mas, no vilarejo na zona oeste de Londres conhecido como St. James, aquilo foi descartado de imediato como uma completa porcaria. Logo estava circulando uma versão não oficial que seguia mais ou menos as seguintes linhas.
Parecia que, em agosto último, um aristocrata de Norfolk não identificado de grandes títulos mas recursos minguantes decidiu, com relutância, se separar de uma parte de sua coleção de arte. Esse nobre entrou em contato com um marchand de Londres, também não identificado, e perguntou se ele aceitaria comprar algo. Esse marchand de Londres estava ocupado na época — verdade seja dita, estava tomando sol na Costa del Sol — e só no fim de setembro conseguiu ir até a casa do aristocrata. O marchand considerou a coleção sem brilho, para dizer o mínimo, mas concordou em adquirir algumas pinturas do aristocrata, inclusive um trabalho muito sujo atribuído a alguém da oficina de Palma Vecchio. A quantia envolvida nunca foi descoberta. Diziam que fora muito pequena.
Por razões não esclarecidas, o marchand abandonou os quadros em seus depósitos e só depois encomendou uma rápida limpeza no Palma Vecchio. A identidade do restaurador nunca foi revelada, embora todos concordassem que ele fizera um ótimo trabalho num período de tempo muito curto. De fato, a pintura estava em tão bom estado que conseguiu atrair a atenção de Oliver Dimbleby, o prestigiado negociante de Grandes Mestres da Bury Street. Oliver adquiriu o quadro numa transação — as outras pinturas envolvidas nunca foram divulgadas — e logo a pendurou em sua galeria, podendo ser vista apenas com visita agendada.
Porém, não ficaria lá muito tempo. De fato, 48 horas depois, foi comprada por uma tal de Onyx Innovative Capital, empresa de investimentos com sociedade limitada registrada na cidade suíça de Lucerna. Oliver não negociou diretamente com a OIC, mas com um simpático sujeito chamado Samir Abbas, do Trans Arabian Bank. Após debater os detalhes finais num chá no Hotel Dorchester, Abbas entregou a Oliver um cheque de 22 mil libras. Oliver logo depositou o dinheiro em sua conta no Lloyds Bank, consumando assim a venda, e iniciou o processo burocrático de garantir a licença de exportação necessária.
Foi a essa altura que o caso tomou um rumo desastroso, pelo menos do ponto de vista de Oliver. Numa tarde sombria no fim de janeiro, chegou à galeria de Oliver uma figura desalinhada, vestida com muitas camadas de roupa, que, com uma pergunta casual, botou tudo de pernas para o ar. Oliver nunca revelaria a identidade do homem; apenas diria que era um estudioso da Renascença italiana, principalmente da Escola de Veneza. Quanto ao questionamento feito por esse homem, Oliver estava disposto a responder textualmente. E se lhe pagassem uma boa taça de Sancerre, ele interpretava a cena inteira. Oliver adorava contar histórias sobre si mesmo, em especial quando não eram elogiosas, o que quase sempre era o caso.
— Ora, Oliver, camarada, e esse Ticiano aqui?
— Não é um Ticiano, meu bom homem.
— Tem certeza?
— Certeza absoluta.
— De quem é, então?
— Palma.
— Sério? Muito bom para um Palma. Da oficina ou dele mesmo?
— Da oficina, querido. Da oficina.
Foi então que a figura desalinhada inclinou-se, meio instável, para examinar mais de perto — um gesto que Oliver recriada todas as noites sob gargalhadas estrondosas no Greens.
— Vendido, é? — perguntou o homem, puxando o lóbulo da orelha.
— Na semana passada — respondeu Oliver.
— Como um Palma?
— Da oficina, querido. Da oficina.
— Por quanto?
— Meu bom homem!
— Se eu fosse você, daria um jeito de voltar atrás.
— Por que razão?
— Veja a técnica. Veja as pinceladas. Você deixou um Ticiano escapar entre os dedos. Que pena, Oliver. Abaixe a cabeça. Confesse seus pecados.
Oliver não fez uma coisa nem outra, mas em questão de minutos estava ao telefone com um velho amigo do Museu Britânico que sabia muito mais sobre Ticiano do que a maioria dos historiadores de arte. Ele correu para St. James debaixo de um dilúvio e parou diante da tela parecendo o único sobrevivente de um naufrágio.
— Oliver! Como você pôde?
— É tão óbvio assim?
— Eu apostaria minha reputação.
— Pelo menos você tem uma. A minha vai estar na privada se essa informação vazar.
— Você tem uma opção.
— Qual?
— Ligue para o Sr. Abbas. Diga que o cheque voltou.
E não pense que a ideia não passou pela cabecinha desonesta de Oliver. Aliás, ele passou boa parte das 48 horas seguintes tentando descobrir algum estratagema aceitável moral e legalmente que pudesse usar para se desembaraçar do negócio. Como não encontrou nenhum — ao menos nenhum que depois lhe permitisse dormir tranquilo ?, ele ligou para o Sr. Abbas para informar que a Onyx Innovative Capital era na verdade a orgulhosa proprietária de um Ticiano recém-descoberto. Oliver se ofereceu para levar a pintura ao mercado, esperando ao menos obter uma boa comissão em meio àquela catástrofe, mas Abbas telefonou no dia seguinte para dizer que a OIC seguiria outro caminho.
— Tente não me desapontar — disse Oliver, melancólico.
— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Marquemos um almoço na próxima vez que vier a Zurique, Sr. Dimbleby. E a propósito, Sr. Dimbleby, o pessoal da Christie’s deve chegar aí em uma hora.
Eles chegaram de supetão, como sequestradores profissionais, e levaram o quadro para a King Street, onde foi examinado por uma série de peritos em Ticiano de todo o planeta. Todos deram o mesmo veredicto e, por um milagre, ninguém violou o rígido acordo de confidencialidade que a Christie’s os obrigou a assinar para receber os honorários. Até mesmo Oliver, em geral falante, conseguiu se manter em silêncio até quando a Christie’s divulgou o trabalho. Mas ele tinha razão de segurar a língua. Oliver tinha sido um estúpido.
Porém, até Oliver conseguiu sentir um pouco de prazer no frenesi que se seguiu ao anúncio. E por que não? Estava sendo um inverno terrível até aquele momento, com a austeridade do governo, as nevascas e os ataques a bomba. Oliver ficava feliz só de poder levantar os ânimos, mesmo que isso significasse bancar o idiota em troca de drinques no Green’s. Além do mais, ele conhecia bem as regras. Já tinha participado muitas vezes daquele jogo, sendo bastante aclamado.
Na noite do leilão, ele fez o que seria sua última apresentação. No encerramento, deu três bis e juntou-se à multidão que se dirigia à Christie’s para o grande espetáculo. A gerência teve a delicadeza de reservar um lugar na segunda fila para ele, bem em frente ao púlpito do leiloeiro. À esquerda encontrava-se seu amigo e concorrente Roddy Hutchinson e, à esquerda de Roddy, Julian Isherwood. O lugar à direita de Oliver estava desocupado. Pouco depois, foi preenchido por ninguém menos que Nicholas Lovegrove, consultor de arte dos mais ricos. Lovegrove tinha acabado de chegar de Nova York. Num avião particular, claro. Lovegrove não usava mais linhas aéreas comerciais.
— Por que essa cara arrasada, Ollie?
— Pensando no que poderia ter sido.
— Sinto muito pelo Ticiano.
— A gente ganha aqui, perde ali. Como vão os negócios, Nicky?
— Não posso me queixar.
— Não sabia que você lidava com os Grandes Mestres.
— Na verdade, eles me apavoram. Olha só este lugar. É como estar numa maldita igreja: só anjos, santos, mártires e crucificação.
— Então por que está na cidade?
— Um cliente deseja se aventurar em novas áreas.
— O cliente tem um nome?
— O cliente quer permanecer anônimo... bem anônimo.
— Sei como é. Seu cliente quer se aventurar em novas áreas adquirindo um Ticiano?
— Você logo vai ficar sabendo, Ollie.
— Espero que seu cliente tenha bolsos bem fundos.
— Eu só trabalho para bolsos fundos.
— O que se fala por aí é que a coisa vai ser grande.
— Antecipação desmedida.
— Você deve estar certo, Nicky. Você sempre está certo.
Lovegrove não se deu ao trabalho de discutir. Tirou o celular do bolso do blazer e consultou a lista de contatos. Como de praxe, Oliver deu uma espiada na tela depois de Lovegrove selecionar o número. Não é que isso é interessante?, pensou. Muito interessante.
45
St. James, Londres
O quadro adentrou o salão no meio do espetáculo, como uma garota bonita chegando numa festa depois do que poderia ser considerado um atraso elegante. A festa tinha sido um tanto tediosa até então e a garota bonita ajudou a alegrar bastante o ambiente. Oliver Dimbleby sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Julian Isherwood mexeu no nó da gravata e deu uma piscadela para uma das garotas na mesa telefônica.
— Lote 27, o Ticiano — murmurou o provocativo Simon Mendenhall, leiloeiro-chefe da Christie’s e o único homem bronzeado de Londres. — Vamos começar com 2 milhões?
Terry O’Connor, o último magnata endinheirado da Irlanda, fez as honras. Em trinta segundos o lance já estava em 6,5 milhões de libras. Oliver Dimbleby se virou para a direita e murmurou:
— Continua achando uma antecipação desmedida, Nicky?
— Ainda é o primeiro round — sussurrou Lovegrove ?, e ouvi falar que está vindo um forte vento contrário.
— Eu daria outra olhada na previsão do tempo se fosse você, Nicky.
Os lances estagnaram nos 7 milhões. Oliver, com uma coçada no nariz, subiu para 7,5 milhões.
— Canalha — murmurou Lovegrove.
— Quando você precisar, Nicky.
O lance alto de Oliver reacendeu o frenesi. Terry O’Connor passou como um rolo compressor por cima de vários lances seguidos, mas os outros desafiantes não recuaram. O irlandês ofereceu 12 milhões logo antes de Isherwood entrar sem querer na disputa quando Mendenhall confundiu uma tosse discreta com um lance de 12,5 milhões. Mas a coisa logo se resolveu, pois segundos depois um apostador deixou todos espantados ao oferecer, por telefone, 15 milhões. Lovegrove pegou o celular e discou.
— Como estamos? — perguntou o Sr. Hamdali.
Lovegrove explicou a situação. No tempo que levou para fazer isso, o lance por telefone já tinha sido superado. A garota estava de volta à festa, com Terry O’Connor, por 16 milhões.
— O Sr. O’Connor gosta de se dar ares de pugilista, não?
— Campeão de meios-médios na universidade.
— Vamos atingi-lo com um bom gancho, então, que tal?
— Com quanta força?
— O suficiente para saberem que estamos falando sério.
Lovegrove chamou a atenção de Mendenhall e ergueu dois dedos.
— Temos 20 milhões de libras na sala. Não está com você, madame. Nem com você, senhor. E não está com Lisa, por telefone. Está na sala, com o Sr. Lovegrove, num lance de 20 milhões de libras. Temos 20,5 milhões?
Sim. Estava com Julian Isherwood. Terry O’Connor imediatamente ofereceu 21. Um apostador ao telefone subiu para 22. Alguém em outra linha entrou na disputa com uma oferta de 24, que foi derrubada por uma de 25. Mendenhall virava para lá e para cá como um dançarino de flamenco. O leilão parecia uma luta até a morte, justo o que ele desejava.
— Tem alguma coisa errada aqui — disse Lovegrove ao celular.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Mas...
— Por favor, faça outra oferta.
Lovegrove obedeceu.
— O lance atual é de 26 milhões, na sala, com o Sr. Lovegrove. Alguém quer dar 27?
Lisa acenou na mesa telefônica.
— Tenho 28 por telefone. Agora são 29, no fundo da sala. Agora 30. Agora 31, com o Sr. O’Connor, na sala. Agora 32. Passou a 33. Não, não vou aceitar 33,5 milhões, estou querendo 34. E parece que consegui, com o Sr. Isherwood. Sim? Sim, consegui. Está na sala, por 34 milhões, com o Sr. Isherwood.
— Faça outra oferta — requisitou Hamdali.
— Eu não aconselharia.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove, ou meu cliente encontrará um consultor que o faça.
Lovegrove sinalizou 35. Em questão de segundos os lances por telefone passaram dos 40.
— Faça outra oferta, Sr. Lovegrove.
— Eu não...
— Faça a oferta.
Mendenhall anunciou a oferta de Lovegrove, de 42 milhões.
— Agora está em 43, com Lisa, por telefone. Agora 44, com Samantha. E 45, com Cynthia.
Foi então que Lovegrove detectou a calmaria pela qual estava esperando. Deu uma olhada em Terry O’Connor e viu que ele tinha desistido.
— Quanto essa pintura vale para seu cliente? — perguntou a Hamdali.
— O suficiente para uma oferta de 46.
Lovegrove fez a oferta.
— Agora estamos em 46, na sala, com o Sr. Lovegrove — disse Mendenhall. — Alguém vai me dar 47?
Na mesa telefônica, Cynthia começou a gesticular, como se tentasse chamar a atenção de um helicóptero de resgate.
— Agora está com Cynthia, por telefone, por 47 milhões de libras.
Não houve em seguida nenhuma oferta por telefone.
— Vamos acabar com isso? — perguntou Lovegrove.
— Vamos — respondeu Hamdali.
— Quanto?
— Meu cliente aprecia números redondos.
Lovegrove arqueou uma sobrancelha e levantou cinco dedos.
— A oferta é de 50 milhões de libras — anunciou Mendenhall. — Não está com você, senhor. Nem com Cynthia, por telefone. Oferta de 50 milhões, na sala, pelo Ticiano. Último aviso, última chance. Todos de acordo?
Mendenhall bateu o martelo, os apostadores suspiraram e houve uma última conversa animada entre o Sr. Hamdali e Lovegrove, que ele não conseguiu ouvir muito bem porque em seu outro ouvido Oliver Dimbleby gritava algo que ele também não entendeu. Em seguida vieram os cumprimentos dissimulados com os perdedores, o flerte obrigatório com a imprensa, que queria descobrir a identidade do comprador, e a longa caminhada até os escritórios da Christie’s, no andar de cima, onde a papelada final foi preenchida num ar de solenidade fúnebre. Já eram quase dez horas quando Lovegrove assinou seu nome no último documento. Ao sair pelas portas ostentosas da Christie’s, deu de cara com Oliver e os rapazes na King Street. Estavam indo para o restaurante Nobu, atrás de spicy tuna rolls e de uma olhada no mais recente talento russo.
— Venha conosco, Nicky — gritou Oliver. — Divirta-se um pouco com seus irmãos britânicos. Você tem passado tempo demais na América. Está perdendo a graça.
Lovegrove ficou tentado, mas sabia que o programa acabaria mal, então os viu irem embora em táxis e pegou o caminho de volta para o hotel, a pé. Enquanto caminhava pela Duke Street avistou um homem saindo da Masons Yard e entrando num carro que o aguardava. Ele tinha porte mediano; o carro era um ‘aguar sedan lustroso, com jeito de veículo do governo britânico. Assim como o homem de cabelos grisalhos já sentado no banco de trás. Não olharam em sua direção quando ele passou pelo carro, mas Lovegrove ficou com a incômoda impressão de que estavam fazendo piada dele.
Havia sentido o mesmo durante o leilão — o leilão onde tinha desempenhado um papel de destaque. Alguém passou a perna em alguém naquela noite, disso Lovegrove estava certo. E temia que talvez tivessem passado a perna em seu cliente. Mas Lovegrove não estava na reta. Ele tinha acabado de ganhar milhões de libras só por erguer o dedo algumas vezes. Não era uma maneira ruim de ganhar a vida, pensou, com um sorriso. Talvez devesse ter aceitado a oferta de Oliver e ido à festa pós-leilão. Não, decidiu, ao virar a esquina em Piccadilly, tinha sido melhor recusar. As coisas acabariam mal. Sempre acabavam, quando Oliver estava envolvido.
46
Langley, Virgínia
Três dias úteis depois, a Christie’s depositou a soma de 50 milhões de libras — menos o valor das comissões, impostos e diversas taxas de movimentação — na filial de Zurique do TransArabian Bank. A Christie’s recebeu a confirmação da transferência às 14h18, horário de Londres, junto com os duzentos homens e mulheres reunidos no centro operacional subterrâneo conhecido como Rashidistão, logo tomado por uma grande comemoração, que ecoou pelas salas da comunidade de inteligência norte-americana e até mesmo dentro da própria Casa Branca. A celebração não durou muito tempo, pois ainda havia muito trabalho a ser feito. Depois de muitas semanas de fadiga e preocupação, a operação de Gabriel afinal tinha dado frutos. Agora era a hora da colheita. E depois da colheita, se Deus quisesse, viria o banquete.
O dinheiro passou um dia em Zurique antes de seguir para a sede do TransArabian em Dubai. Não toda a quantia. Por determinação de Samir Abbas, que tinha uma procuração, 2 milhões de libras foram transferidos para um pequeno banco particular em Talstrasse, Zurique. Além disso, Abbas autorizou doações generosas para um bom número de grupos e instituições beneficentes islâmicos — inclusive o Fundo Islâmico Mundial pela Justiça, a Iniciativa Palestina Livre, os Centros para Estudos Islâmicos, a Sociedade Islâmica da Europa Ocidental, a Liga Mundial Islâmica e o Instituto para a Reconciliação Judaico-Islâmica, o favorito de Gabriel. Abbas também reservou uma taxa de consultoria generosa para si mesmo, que, estranhamente, resolveu retirar em dinheiro vivo. Entregou uma parte para o imame de sua mesquita usar como achasse adequado e escondeu o resto na despensa de seu apartamento em Zurique, ato que foi flagrado pela câmera de seu computador e projetado ao vivo nas telas gigantes do Rashidistão.
Como havia um bom tempo que Langley e a ANS suspeitavam de ligações entre o TransArabian e o movimento jihadista, ambos já estavam familiarizados com as transações do banco, assim como os especialistas em financiamento ao terror no Departamento do Tesouro e o FBI. Assim, Gabriel e a equipe no Rashidistão puderam monitorar o dinheiro quase em tempo real conforme ele fluía por uma série de negócios de fachada e empresas-fantasma — todas criadas às pressas em jurisdições com legislações frouxas nos dias que se seguiram ao encontro de Nadia com o xeique Bin Tayyib no Nejd. A velocidade com que o dinheiro se moveu de conta em conta demonstrou que a rede de Rashid tinha um nível de sofisticação que não correspondia a seu tamanho e relativa juventude. Também revelou — deixando Langley em alerta — que a rede já tinha se expandido para muito além do Oriente Médio e da Europa Ocidental.
As evidências do alcance global de Rashid eram abundantes. Lá estavam os 300 mil dólares que apareceram de repente na conta de uma empresa de caminhões em Ciudad del Este, no Paraguai. E os 500 mil dólares pagos a uma empresa de construção em Caracas. E os 800 mil dólares encaminhados para uma empresa de consultoria para negócios on-line sediada em Montreal — cujo dono era um argelino que já havia sido vinculado à Al-Qaeda, no Magrebe Islâmico. O maior pagamento — de 2 milhões de dólares — foi para a QTC Logistics, uma empresa de frete e corretagem de alfândega sediada em Sharjah, um emirado juridicamente poroso à beira do golfo. Poucas horas depois da chegada do dinheiro, a equipe do Rashidistão já monitorava os telefones da QTC e investigava seus registros de até três anos atrás. Realizaram o mesmo procedimento com a empresa de Montreal, embora a vigilância física do argelino tenha sido delegada para o Serviço Canadense de Segurança e Inteligência. Gabriel se opôs com firmeza à entrada dos canadenses na investigação, mas foi vencido por Adrian Carter e seu recém-descoberto aliado na Casa Branca, James A. McKenna. Essa foi só uma de muitas batalhas, grandes e pequenas, que Gabriel perderia enquanto via a operação fugir cada vez mais do seu controle.
Enquanto as informações entravam no centro operacional, a equipe produziu uma matriz atualizada que ofuscou aquela construída por Dina e pelo resto do time de Gabriel após os primeiros ataques. McKenna aparecia no centro de vez em quando só para admirá-la, assim como membros de diversas comissões do Congresso envolvidas com os serviços de inteligência e segurança interna. E, numa tarde de neve no fim de fevereiro, Gabriel avistou o presidente dos Estados Unidos na plataforma de observação, e ao lado o diretor da CIA e Adrian Carter orgulhosos. O presidente estava claramente satisfeito com o que via. Era honesto. Era inteligente. Era pró-ativo. Uma parceria entre o Islã e o Ocidente para derrotar as forças do extremismo. Uma vitória da inteligência sobre a força bruta.
A operação foi criação de Gabriel, a obra-prima de Gabriel, mas ainda não tinha produzido nenhuma pista concreta referente à localização do líder operacional da rede nem de seu líder inspirador. Foi por essa razão que Gabriel ficou surpreso quando começou a ouvir rumores acerca de prisões iminentes. Confrontou Adrian Carter no dia seguinte, na sala de conferência com isolamento acústico do centro operacional. Carter passou um tempo reorganizando o conteúdo de uma pasta antes de confirmar os rumores. Gabriel bateu no crachá verde ao redor do pescoço e perguntou:
— Isso me dá o direito de opinar?
— Acho que sim.
— Você está prestes a cometer um erro, Adrian.
— Não seria o meu primeiro.
— Eu e minha equipe dedicamos muito tempo e esforço para montar essa operação. E agora você vai fazer a coisa toda em pedaços em troca da prisão de alguns criminosos de baixo escalão.
— Acho que você está me confundindo com outra pessoa — disse Carter, impassível.
— Com quem?
— Com alguém que tem o poder de tomar decisões executivas. Eu sou o vice-diretor de operações da CIA. Tenho superiores neste prédio. Há colegas ambiciosos de outras agências com interesses distintos, um diretor da inteligência nacional, membros do Congresso e James A. McKenna. E, por último, mas não menos importante, o presidente.
— Nós somos espiões, Adrian. Não prendemos pessoas. Salvamos vidas. Você precisa ser paciente, assim como seus inimigos. Se continuar deixando o dinheiro fluir, vai conseguir se manter um passo à frente deles por anos. Vai observá-los. Vai escutá-los. Vai deixá-los gastar tempo e esforços preciosos planejando ataques que nunca conseguirão levar a cabo. E você só vai prender pessoas como último recurso, se for necessário para evitar que uma bomba exploda ou que um avião caia.
— A Casa Branca discorda — falou Carter.
— Então se trata de política?
— Prefiro não especular quanto às motivações.
— E quanto a Malik?
— Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
Gabriel encarou Adrian, cético.
— Você não acredita nisso, Adrian. Foi você que disse que os atentados na Europa foram tramados por alguém que se iniciou em Bagdá.
— E ainda acredito nisso. Mas a meta dessa operação nunca foi encontrar um homem. A ideia era desmantelar uma rede terrorista. Graças a seu trabalho, temos evidências suficientes para prender ao menos sessenta criminosos em dezenas de países. Quando foi a última vez que alguém prendeu sessenta desses caras? É uma conquista impressionante. É sua conquista.
— Vamos torcer para que sejam as sessenta pessoas certas. Caso contrário, talvez isso não evite o próximo ataque. Pode até levar Rashid e Malik a adiantarem os planos.
Carter começou a entortar um clipe de papel para deixar o arame reto, sem falar nada.
— Você já pensou no efeito que isso vai ter na segurança de Nadia?
— É possível que Rashid ache o momento das prisões suspeito — admitiu Carter ?, por isso estamos pensando em protegê-la com uma série de vazamentos planejados na imprensa.
— Que tipo de vazamentos?
— O tipo que retrate as prisões como ápice de uma investigação de vários anos, que começou quando Rashid ainda se encontrava nos Estados Unidos. Acreditamos que isso deva gerar discórdia dentro de seu círculo interno e paralisar a rede.
— “Acreditamos”?
— É nossa esperança — disse Carter, sem qualquer ironia.
— Por que não fui consultado sobre nada disso? — perguntou Gabriel.
Carter ergueu o clipe, agora já reto.
— Achei que estivéssemos fazendo isso agora.
Essa foi a última conversa que tiveram por vários dias. Carter se manteve no sétimo andar, enquanto Gabriel passou a maior parte do tempo supervisionando a retirada de sua equipe do campo. No fim de fevereiro, a Agência já tinha assumido responsabilidade total pela vigilância física e eletrônica de Nadia al-Bakari e Samir Abbas. Da operação original de Gabriel restaram apenas dois esconderijos vazios — um situado num pequeno vilarejo ao norte de Paris e outro nas margens do lago Zurique. Ari Shamron decidiu manter o Château Treville, mas ordenou que a casa em Zurique fosse desativada. Chiara cuidou pessoalmente da papelada antes de pegar um avião até Washington para se juntar a Gabriel. Eles se acomodaram num flat do Escritório na Tunlaw Road, em frente à embaixada russa. Carter colocou dois agentes para vigiá-los, só para garantir.
Com Chiara em Washington, Gabriel reduziu bastante o tempo que passava no Rashidistão. Chegava em Langley para a reunião matinal do alto escalão e depois passava algumas horas olhando sobre os ombros dos analistas e dos coletores de dados antes de voltar para Georgetown e se encontrar com Chiara para o almoço. Em seguida, se o tempo estivesse bom, saíam para fazer compras ou passear pelas ruas agradáveis, discutindo sobre o futuro. As vezes parecia que apenas estavam retomando a conversa interrompida pelo atentado em Covent Garden. Chiara até levantou a questão de trabalhar na galeria de Isherwood.
— Pense nisso — disse ela, quando Gabriel se opôs. — É só o que estou pedindo, querido. Apenas pense nisso.
Por enquanto, porém, a única coisa que ocupava os pensamentos de Gabriel era a segurança de Nadia. Com a aprovação de Carter, ele revisou os planos da Agência para a proteção a longo prazo da bilionária e até ajudou no esboço do material que seria vazado na imprensa norte-americana. Concentrou a maior parte de seus esforços numa campanha incansável dentro do Rashidistão para evitar que as prisões ocorressem, dizendo para qualquer pessoa disposta a escutar que a Agência, ao ceder à pressão política, iria cometer um erro catastrófico. Carter parou de ir às reuniões em que Gabriel estava presente. Era perda de tempo. A Casa Branca tinha dado ordens a Carter. Agora ele estava em contato permanente com amigos e aliados em dezenas de países coordenando o que seria a maior prisão de militantes jihadistas desde a queda do Afeganistão.
Numa sexta-feira de manhã no fim de março, Gabriel puxou Carter de lado por tempo suficiente para dizer que pretendia sair de Washington e voltar para a Inglaterra. Carter sugeriu que ele adiasse um pouco a viagem para não perder o grande evento.
— Quando começa? — perguntou Gabriel, melancólico.
Carter olhou para o relógio e sorriu.
Em poucas horas começou o efeito dominó. Foi tão rápido, e atingiu uma escala tão grande, que a imprensa teve dificuldades para acompanhar o ritmo da história que se desenrolava.
As primeiras prisões se deram nos Estados Unidos, onde as equipes de táticas especiais do FBI executaram uma série de batidas simultâneas em quatro cidades. Capturaram a célula de egípcios em Newark com planos de descarrilhar um trem da Amtrak que iria para Nova York. E a célula de somalis em Minneapolis que pretendia efetuar ataques químicos contra diversos prédios de escritórios no centro da cidade. Além da célula de paquistaneses de Denver, já nos estágios finais do planejamento de uma série de ataques a arenas esportivas lotadas para matar centenas de pessoas. O caso mais alarmante, no entanto, era em Falls Church, na Virgínia, onde uma célula com seis membros estava prestes a executar um atentado contra o novo Centro de Visitantes do Capitólio. No computador de um dos suspeitos, o FBI encontrou fotos de turistas e crianças em excursões escolares na fila para entrar no prédio. Outro suspeito tinha alugado um armazém isolado para começar a construir bombas de peroxiacetona. O dinheiro viera do argelino em Montreal, que foi preso junto com outros oito canadenses.
Na Europa, o alcance foi ainda maior. Em Paris, os terroristas planejavam ataques à torre Eiffel e ao Museu d’Orsay. Em Londres, os alvos escolhidos eram a London Eye e a Parliament Square. E, em Berlim, tramavam um atentado devastador como o de Bombaim aos visitantes do memorial do Holocausto perto da Brandenburg Gate. Copenhague e Madri, atingidas pela primeira série de ataques, revelaram mais células. O mesmo se deu em Estocolmo, Malmö, Oslo e Roma. Pelo continente inteiro, contas bancárias foram congeladas e empresas foram fechadas. Tudo graças ao dinheiro de Nadia.
Um por um, primeiros-ministros, presidentes e chanceleres apareceram na imprensa para proclamar que desastres haviam sido evitados. O presidente norte-americano foi o último a se pronunciar. Resoluto, descreveu a ameaça como a mais séria enfrentada desde os ataques de 11 de setembro e insinuou que mais prisões estavam por vir. Quando lhe pediram que dissesse como as células foram descobertas, ele passou a palavra para seu consultor em contraterrorismo, James McKenna, que se recusou a responder. Ele se esforçou bastante, no entanto, para ressaltar que a conquista havia sido obtida sem recorrer a técnicas utilizadas pela administração anterior.
— A ameaça evoluiu — declarou McKenna e nós evoluímos junto.
Na manhã seguinte, o New York Times e o Washington Post apresentaram artigos prolixos descrevendo um triunfo que era fruto do trabalho entre diversos agentes da lei e serviços de inteligência e já vinha sendo executado há quase uma década. Além disso, ambos os jornais publicaram editoriais louvando a “visão moderna do presidente na luta contra o extremismo global” e, à noite, nos talk shows da TV a cabo, membros da oposição apareceram com uma expressão bem abatida. O presidente tinha feito mais que eliminar uma rede terrorista perigosa, alegou um estrategista de renome. Ele tinha acabado de garantir mais quatro anos no poder. A corrida por 2012 já estava encerrada. Era hora de começar a pensar em 2016.
47
Palisades, Washington
Naquela mesma tarde, o diretor da CIA convocou os funcionários para a Bolha, o auditório futurista de Langley, para uma reunião de motivação. Ellis Coyle decidiu não participar. Eventos desse tipo, Ellis sabia, eram tão previsíveis quanto as noites em casa com Norah. Começaria com as baboseiras de sempre sobre orgulho restaurado e uma Agência em recuperação, uma Agência que afinal encontrara seu lugar num mundo sem a União Soviética. Coyle já tinha escutado esse mesmo discurso de sete diretores, cada um dos quais saiu do cargo deixando a CIA ainda mais fraca e disfuncional do que estava quando haviam entrado. Sem talentos e enfraquecida pela reorganização da comunidade de inteligência norte-americana, a Agência estava em ruínas. Nem mesmo Coyle, um dissimulador profissional, foi capaz de sentar na Bolha e fingir que a prisão de sessenta suspeitos de terrorismo anunciava um futuro melhor — principalmente porque ele sabia como essa conquista havia sido obtida.
Houve um engavetamento envolvendo quatro carros na Canal Road e, assim, Coyle conseguiu terminar o audiobook A revolta de Atlas no caminho de volta para casa. Quando chegou em Palisades, viu a casa de Roger Blankman toda iluminada, com dezenas de carros de luxo alinhados na rua estreita.
— Ele está dando outra festa — disse Norah, recebendo o beijo frio de Coyle. — É algum tipo de evento para arrecadar fundos.
— Deve ser por isso que não fomos convidados.
— Não seja mesquinho, Ellis. Não combina com você.
Ela colocou mais uns centímetros de Merlot no copo enquanto Lucy entrava na cozinha com a coleira na boca. Coyle, obediente, prendeu-a no pescoço da cadela e juntos andaram até o Battery Kemble Park. Próximo ao pé de uma placa de madeira, num ângulo preciso de 45 graus inclinado para a direita, havia uma marca de giz. Significava que um pacote aguardava por Coyle no local de retirada número três. Coyle apagou a marca com a ponta do sapato e começou a andar.
Estava escuro em meio às árvores, mas Coyle não precisava de lanterna. Ele conhecia o caminho tão bem quanto a palma de sua mão. Do MacArthur Boulevard, a trilha seguia plana por apenas alguns metros antes de se transformar numa subida íngreme pela encosta da colina. No alto do parque havia uma clareira, onde ficava a velha artilharia pesada durante a Guerra Civil. À direita havia uma ponte de madeira que cruzava um rio estreito. O local de retirada número três ficava logo depois dela, embaixo de um tronco de carvalho caído. Era de difícil acesso, em especial para um homem de meia-idade com problemas crônicos de coluna, mas não para Lucy. Ela sabia onde era cada ponto de retirada só de ouvir Coyle dizer seu número e conseguia alcançá-los em questão de segundos. Além disso, a menos que o FBI descobrisse uma forma de falar com cachorros, ela nunca poderia ser chamada para testemunhar. Lucy era a agente de campo perfeita, pensou Coyle: esperta, eficiente, destemida e provida de uma lealdade inquestionável.
Ele parou por um instante para ver se havia o som de passos ou vozes. Como não ouviu nada, deu o comando para Lucy esvaziar o local de retirada número três. Ela disparou em meio ao mato, quase invisível por causa de seu pelo preto, e foi chapinhando pelo leito do rio. Em poucos segundos voltou pelo mesmo caminho, subindo com dificuldade, com um pedaço de pau na boca, que soltou obedientemente aos pés de Coyle.
Tinha cerca de 30 centímetros de comprimento e quase 5 centímetros de diâmetro. Coyle segurou-o nas duas pontas e fez um movimento de torção. Ele se abriu com facilidade, revelando um compartimento interno, onde havia um pequeno papel. Coyle o retirou, fechou o pedaço de pau e deu a Lucy para que ela devolvesse ao local de retirada. Provavelmente o operador de Coyle o resgataria antes do amanhecer. Ele não era o agente de inteligência mais esperto que Coyle já conhecera, mas era esforçado e nunca atrasava nos pagamentos. O que não era surpresa. O serviço do agente enfrentava muitas ameaças, tanto internas como externas, mas a falta de dinheiro não era uma delas.
Coyle leu a mensagem usando a luz da tela do celular e largou o papel num saco plástico. O mesmo saco que usou cinco minutos depois para recolher as fezes de Lucy. Amarrado com um nó firme, balançava como um pêndulo, batendo no pulso de Coyle enquanto ele fazia o percurso de volta para casa. Agora não faltava muito, pensou. Mais alguns segredos, mais algumas incursões pelo parque com Lucy ao lado. Ficou imaginando se teria mesmo coragem para partir. Aí pensou nos óculos antiquados de Norah, na casa enorme do vizinho e no audiolivro sobre Winston Churchill que escutou enquanto estava preso no trânsito. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Coyle também seria determinado, no final.
Do outro lado do rio, em Langley, a festa continuou por boa parte da semana seguinte. Eles celebraram o trabalho duro. Celebraram a superioridade de sua tecnologia. Celebraram o fato de terem conseguido superar o inimigo. E, principalmente, celebraram Adrian Carter. A operação, diziam, com certeza seria vista como uma das melhores da carreira de Carter. As falhas foram esquecidas, os pecados foram perdoados. Não importava que Rashid e Malik ainda estivessem lá fora, em algum lugar. Por enquanto eram terroristas sem uma rede, e graças a Carter.
O Rashidistão continuou na ativa, mas suas fileiras foram reduzidas por uma onda de rápidas realocações. O que tinha começado como uma iniciativa ultrassecreta de serviços de inteligência, agora, em grande parte, era uma atribuição de policiais e promotores. A equipe não rastreava mais o fluxo de dinheiro por uma rede terrorista. Em vez disso, tinha intensas discussões com advogados do Departamento de Justiça para decidir quais evidências eram admissíveis e quais nunca deveriam ver a luz do dia. Nenhum dos advogados se deu ao trabalho de perguntar a opinião de Gabriel Allon, pois não ficaram sabendo de sua participação.
Com a operação no estágio final, Gabriel dedicou a maior parte de seu tempo e energia no processo de saída. A pedido do King Saul Boulevard, ele conduziu uma série de entrevistas de encerramento e negociou um sistema permanente para compartilhar informações, sabendo muito bem que os norte-americanos não obedeceriam aos termos estabelecidos. O acordo foi assinado com bastante alarde numa cerimônia com poucos convidados no escritório do diretor, e depois Gabriel seguiu para o departamento de pessoal para entregar a credencial verde. O que devia ter levado cinco minutos consumiu mais de uma hora, pois ele foi forçado a assinar inúmeros compromissos por escrito, nenhum dos quais tinha a menor intenção de cumprir. Quando a sede do departamento por tinta finalmente foi saciada, um guarda uniformizado escoltou Gabriel até o saguão. Ele continuou lá por alguns minutos para observar uma nova estrela sendo gravada no memorial da CIA e ao sair deu de cara com a primeira tempestade violenta da primavera demasiado curta de Washington.
Quando Gabriel chegou em Georgetown, a chuva tinha parado e o sol brilhava forte de novo. Almoçou com Chiara num café exótico ao ar livre, próximo à American University, e depois voltaram para a Tunlaw Road, pois precisavam arrumar as malas antes do voo para casa. Quando chegaram ao prédio, viram um Escalade preto blindado esperando na frente da entrada, com o escapamento soltando fumaça. Uma mão acenou. Pertencia a Adrian Carter.
— Algum problema? — perguntou Gabriel.
— Depende do ponto de vista.
— Você pode ir direto ao ponto, Adrian? Temos um voo.
— Eu tomei a liberdade de cancelar suas reservas.
— Que atencioso.
Entrem.
Parte Três
Empty Quarter
48
The Plains, Virgínia
A casa se erguia no ponto mais alto da propriedade, à sombra de carvalhos e olmos. Tinha um telhado de cobre fosco e varandas elegantes nos dois andares, com vista para a pastagem verde. Os vizinhos haviam sido levados a crer que o dono era um lobista rico de Washington chamado Hewitt. Não havia nenhum lobista em Washington chamado Hewitt, ou pelo menos nenhum que tivesse qualquer ligação com a encantadora fazenda de 40 acres localizada na Estrada Municipal 601, 3 quilômetros ao leste de The Plains. O nome foi gerado por um algoritmo aleatório dos computadores da CIA, que administrava a fazenda por meio de uma empresa de fachada. A Agência também era proprietária do trator John Deere, da picape Ford, do cortador Bush Hog e de dois cavalos baios. Um se chamava Colby, o outro, Helms. De acordo com os espertinhos de plantão da Agência, ambos eram submetidos, como todos os funcionários da CIA, ao polígrafo, em testes anuais, para garantir que não haviam mudado de lado, seja lá o que isso quer dizer.
Naquela tarde os cavalos mastigavam a grama bem cuidada da pastagem quando a Escalade transportando Gabriel e Chiara chegou na fazenda e subiu sacolejando o longo caminho de cascalho. Um segurança da CIA permitiu a entrada do grupo na casa e, depois de pegar os casacos e celulares de todos, indicou o salão. Ao entrarem, viram Uzi Navot encarando o bufê com o olhar ávido e Ari Shamron tentando tirar café da garrafa térmica. Sentado próximo à lareira apagada, com trajes adequados para um longo fim de semana na região rural inglesa, estava Graham Seymour. A seu lado, Adrian Carter franzia a testa enquanto ouvia James McKenna sussurrar algo em seu ouvido, com tom de urgência.
As pessoas reunidas naquele cômodo representavam uma espécie de irmandade secreta. Desde os ataques de 11 de setembro, esse grupo trabalhara junto em incontáveis operações, a maior parte das quais nunca chegou ao conhecimento público. Tinham lutado uns pelos outros, matado uns pelos outros e, em alguns casos, sangrado uns pelos outros. Apesar de divergências ocasionais, os laços que criaram entre si foram capazes de transcender o tempo e os caprichos inconstantes de seus líderes políticos. Viam sua missão de forma muito clara: eram — pegando emprestada uma expressão de seus inimigos — o “Conselho da Shura” do mundo civilizado, uma espécie de assembleia consultiva. Executavam as tarefas desagradáveis que ninguém mais estava disposto a encarar e depois se preocupavam com as consequências, em especial quando havia vidas em jogo. James McKenna não era um membro do conselho e nunca seria. McKenna era um animal político, o que significava, por definição, que ele era parte do problema. Sua presença prometia ser um fator complicador, ainda mais se pretendesse passar o tempo inteiro sussurrando ao ouvido de Carter.
McKenna se sentia mais confortável com mesas retangulares, então, por sugestão sua, o grupo foi para a sala de jantar. Era óbvio por que Carter não gostava dele: McKenna era tudo o que Carter não era. Era jovem. Estava em forma. Ficava bem atrás de um púlpito. Também tinha uma confiança extrema em si mesmo, independentemente de essa segurança ser justificada ou merecida. McKenna não tinha sangue nas mãos, nem pecados em sua carreira. Nunca confrontou o inimigo olhando pela mira de uma arma nem o questionou numa sala de interrogatório. Nem sequer falava os idiomas de seu inimigo. Mas tinha lido incontáveis relatórios sobre ele e falado dele com muita precisão em diversas reuniões. Sua maior contribuição à literatura do contraterrorismo foi um artigo que certa vez escrevera para a revista Foreign Affairs, no qual argumentava que os Estados Unidos seriam capazes de absorver outro ataque terrorista e sair fortalecidos. O texto chamou a atenção de um senador carismático, e quando o senador se tornou presidente, ele colocou boa parte da responsabilidade pela segurança do país nas mãos de um vigarista político que certa vez passara uma semana em Langley servindo café para o diretor.
Houve um momento embaraçoso na hora de decidir quem sentaria na ponta da mesa, Carter ou McKenna. Na tradição da irmandade, a presidência das reuniões era determinada pela geografia, mas não existia nenhum regimento interno que dissesse como proceder na presença de um intruso político. Por fim, McKenna cedeu a ponta da mesa para Carter e se acomodou ao lado de Graham Seymour, que lhe parecia menos ameaçador do que o quarteto de israelenses. Carter colocou o cachimbo e a bolsa de tabaco na mesa, prontos para uso posterior, e abriu um laptop criptografado. Armazenado no disco rígido havia a cópia de uma ligação interceptada pela ANS. Tinha sido feita às 10h36 da manhã do dia anterior, no horário da Europa Central, entre uma filial de Zurique do TransArabian Bank e os escritórios de Paris da AAB Holdings. Os interlocutores eram Samir Abbas e sua nova cliente, Nadia al-Bakari. Eles conversaram por dois minutos e doze segundos, num árabe formal. Carter distribuiu cópias da tradução da ANS. Em seguida, abriu o arquivo de áudio no computador e apertou play.
A primeira voz na gravação era da secretária executiva de Nadia, que pediu para Abbas aguardar enquanto ela transferia a ligação. Nadia atendeu seis segundos depois. Após as obrigatórias saudações islâmicas de paz, Abbas disse que tinha acabado de falar com um “associado do iemenita”. Parecia que os empreendimentos do iemenita tinham acabado de sofrer uma série de reveses e precisavam desesperadamente de mais financiamento. O associado desejava fazer seu apelo a Nadia em pessoa e estava disposto a discutir planos futuros, inclusive diversos negócios pendentes na América. Esse associado, que Abbas descreveu como sendo “muito próximo” do iemenita, tinha sugerido Dubai como ponto de encontro. Pelo visto, ele visitava aquele rico emirado com frequência e tinha, inclusive, um apartamento modesto no distrito de Jumeirah Beach. Desnecessário dizer que o associado do iemenita sabia das preocupações concernentes à segurança da Srta. Al-Bakari e estaria disposto a encontrá-la num lugar onde ela se sentisse segura e confortável.
? Onde?
? No Burj Al Arab.
? Quando?
? Em uma semana, contando a partir de quinta-feira.
? Terei um compromisso de negócios nesse dia, em Istambul.
? A agenda do associado é muito cheia. Por algum tempo, não haverá outra oportunidade para que ele a conheça.
? Quando ele precisa de uma resposta?
? Receio que precise da resposta agora.
? Que horas ele gostaria de me ver?
? Às nove horas da noite.
? Meus guarda-costas não permitirão nenhuma alteração.
? O associado me garante que não haverá nenhuma.
? Então, por gentileza, diga a ele que estarei no Burj na noite da quinta-feira que vem, às nove horas. E peça para que ele não se atrase. Eu nunca coloco dinheiro nas mãos de pessoas que chegam atrasadas em reuniões.
? Posso assegurar que ele não irá se atrasar.
? Haverá mais alguém presente?
? Apenas eu. A menos, claro, que a senhorita prefira ir sozinha.
? Na verdade, prefiro que o senhor vá.
? Então ficarei honrado em estar a seu lado. Vou aguardar no saguão. Você tem o número do meu celular.
? Vejo o senhor na quinta-feira que vem. Inshallah.
? Inshallah, Srta. Al-Bakari.
Carter pausou o áudio.
— A próxima gravação é de uma ligação que foi feita para a casa de Samir seis horas antes desta que acabamos de ouvir. Ele dormia profundamente e não gostou de ser acordado pelo telefone. Seu humor mudou quando escutou a voz do outro lado da linha. O cavalheiro não se deu ao trabalho de se identificar. Ele fez a ligação de Jeddah, na Arábia Saudita, usando um celular que não tinha nenhum histórico e parecia não estar mais ativo. Ocorreram algumas falhas e havia bastante ruído de fundo. Eis um trecho.
Carter apertou play.
? Diga a ela que precisamos de dinheiro. Diga que estamos dispostos a discutir planos. Deixe claro que estamos enviando alguém importante.
Pausa.
— Quem é o associado próximo do iemenita que deseja se encontrar com Nadia? — foi a pergunta retórica de Carter. — Essa ligação parece dar a resposta. Exigiu certo esforço por causa da baixa qualidade, mas a ANS foi capaz de manipular a gravação e fazer uma análise de voz. Cruzaram a informação com todos os nossos bancos de dados, inclusive os de comunicações por rádio e celular obtidos no Iraque no auge da insurreição. Uma hora atrás eles encontraram um registro compatível. Alguém se atreve a adivinhar a identidade do homem com quem Samir Abbas estava falando?
— Estou tentado a dizer Malik al-Zubair — falou Gabriel ?, mas isso seria impossível. Sabe, Adrian, Malik é um rumor. Malik é um palpite de Dina.
— Não, não é — admitiu Carter. — Dina tinha razão. Malik é real. Ele estava em Jeddah dois dias atrás. E pode ou não ir para o hotel Burj Al Arab em Dubai na noite da quinta-feira que vem para conversar com sua nova benfeitora, Nadia al-Bakari. A questão é: o que devemos fazer?
Carter bateu o cachimbo no cinzeiro. Estava aberta a sessão do Conselho da Shura.
49
The Plains, Virgínia
Era uma operação norte-americana, o que significava que a decisão a ser tomada cabia aos norte-americanos. McKenna deixou claro que não tinha nenhuma intenção de dar a primeira opinião, assim, astutamente, passou a palavra a Carter, que começou, como era típico dele, se desviando um pouco do assunto. A digressão começou na Base Operacional Avançada Chapman, um posto da CIA numa região remota do leste do Afeganistão, onde, em dezembro de 2009, um homem a serviço da Agência chamado Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi anunciou que tinha um relatório para entregar a seus operadores. O Dr. Balawi, um físico da Jordânia que tinha ligações com o movimento jihadista, vinha fornecendo informações cruciais para a CIA, usadas para atingir militantes da Al-Qaeda no Paquistão. Sua missão verdadeira, no entanto, era penetrar na CIA e no serviço de inteligência da Jordânia — uma missão que teve um fim desastroso no dia em que ele detonou uma bomba escondida embaixo de seu casaco e matou sete agentes da CIA. Foi um dos piores ataques individuais contra a Agência em toda sua história e certamente o pior no decorrer da longa carreira de Adrian Carter como diretor de operações. Demonstrou que a Al-Qaeda estava disposta a gastar tempo e esforços extraordinários para se vingar dos serviços de inteligência que a perseguiam. E provou que, quando espiões ignoram regras básicas do ofício, agentes acabam mortos.
— Você está sugerindo que Nadia al-Bakari tenha uma aliança com a Al-Qaeda? — perguntou McKenna.
— Não estou sugerindo nada parecido com isso. Na verdade, é minha opinião que, quando a história secreta da guerra global contra o terrorismo finalmente for escrita, Nadia vai ser considerada um dos ativos mais valiosos que trabalharam no lado do Ocidente. É por isso que eu detestaria perdê-la porque nos tornamos gananciosos demais e a colocamos numa situação em que não a deveríamos colocar.
— Malik não a está convidando para ir ao Waziristão do Sul — argumentou McKenna. — Ele está pedindo para encontrá-la num dos hotéis mais famosos do mundo.
— Na verdade — respondeu Carter ?, não sabemos se vai ser Malik al-Zubair ou Ninguém al-Ninguém. Mas a questão não é essa.
— E qual é a questão?
— Viola as regras do ofício. Você lembra das regras, não é, Jim? A primeira diz que devemos controlar tantos fatores ambientais quantos forem possíveis. Nós escolhemos a hora. Nós escolhemos o local. Nós escolhemos os móveis. Nós escolhemos as bebidas. E, se possível, nós mesmos as servimos. E nós certamente não deixamos alguém como Nadia al-Bakari chegar a menos de um quilômetro de distância de um homem como Malik.
— Mas às vezes jogamos com as cartas que temos — rebateu McKenna. — Não foi isso que você disse ao presidente no dia em que perdemos aqueles sete agentes da CIA?
Gabriel notou um raro lampejo de raiva nos olhos de Carter, mas, quando ele falou de novo, sua voz estava calma e controlada como sempre.
— Meu pai era um ministro episcopal, Jim. Eu não jogos cartas.
— Então qual é sua recomendação?
— Essa operação tem ido melhor do que qualquer um de nós se atreveu a imaginar — falou Carter. — Talvez não seja prudente abusarmos da sorte com uma jogada de risco no fim do último quarto da partida.
Shamron demonstrou irritação. Ele considerava o uso de metáforas esportivas impróprio para um negócio tão vital como a espionagem. Na opinião de Shamron, agentes de inteligência não jogam basquete, não perdem cestas e não fazem faltas. Só há o sucesso ou o fracasso — e o preço do fracasso numa região como a do Oriente Médio costuma ser sangue.
— Parar por aqui? — perguntou Shamron. — É isso que você está sugerindo, Adrian?
— Por que não? O presidente conseguiu a vitória dele e a Agência também. Melhor ainda, todo mundo fica vivo para continuar a lutar. — Carter esfregou as mãos duas vezes e disse: ? Halas.
McKenna pareceu perplexo. Gabriel explicou a referência.
? Halas é a palavra em árabe para “terminado”. Mas Adrian sabe muito bem que essa guerra nunca vai terminar. É uma guerra eterna. E ele teme que ficará bem mais sangrenta se deixarmos um líder habilidoso como Malik escapar por entre nossos dedos.
— Ninguém quer a cabeça de Malik mais do que eu — concordou Carter. — Ele merece, pelo caos que causou no Iraque, e varrê-lo da face da terra deixaria o mundo mais seguro. Homens-bomba existem aos montes. Mas gênios do crime, verdadeiros gênios do crime, são um tanto difíceis de substituir. Elimine os mentores como Malik e restarão apenas um bando de aspirantes a jihadista tentando descobrir como preparar bombas de peroxiacetona no porão da casa das mães.
— Então por que não deixar Nadia participar da reunião? — perguntou McKenna. — Por que não deixá-la escutar o que Malik tem a dizer sobre seus planos?
— Porque tenho um mau pressentimento.
— Mas eles confiam nela. Por que não confiariam? É a filha de Zizi. Descendente do próprio Wahhab, pelo amor de Deus.
— Admito que eles confiaram nela — respondeu Carter mas é uma questão em aberto se ainda confiam, agora que tiveram sua rede desfeita.
— Você está se amedrontando à toa — falou McKenna. — Mas suponho que isso seja previsível. Afinal, você já está nesta área há muito tempo. Passou os últimos dez anos lendo os e-mails deles, escutando telefonemas, buscando significados ocultos. Mas às vezes não há nenhum. Às vezes um casamento é apenas um casamento. E às vezes uma reunião num hotel é só uma reunião num hotel. Além do mais, se não somos capazes de fazer com que uma empresária bem protegida como Nadia al-Bakari entre e saia do Burj Al Arab em segurança, talvez devêssemos pensar em mudar de emprego.
Carter ficou em silêncio por um momento.
— Alguma chance de mantermos um tom profissional nesta reunião, Jim?
— Achei que fosse o que estivéssemos fazendo.
— Devo presumir que você esteja falando pela Casa Branca?
— Não — respondeu McKenna. — Deve presumir que eu esteja falando pelo presidente.
— Se você está em sintonia com o que o presidente pensa, por que não nos diz o que o presidente quer?
— Ele quer o que todos os presidentes querem. Quer um segundo mandato. Caso contrário, os pacientes vão retomar o controle do hospício e todo o progresso que fizemos contra o terrorismo irá por água abaixo.
— Você quer dizer extremismo — corrigiu Carter. — Mas e quanto à reunião em Dubai?
— Tanto o presidente como eu gostaríamos que ela participasse, com a cavalaria por perto, claro. Ouça o que ele tem a dizer. Tire foto dele. Consiga suas digitais. Grave sua voz. Determine se ele é de fato Malik ou algum outro membro de peso da rede.
— E o que dizemos para nossos amigos dos serviços de segurança dos Emirados?
— Nossos amigos dos Emirados têm sido aliados pouco confiáveis em várias questões, desde terrorismo e lavagem de dinheiro até comércio ilícito de armas. Além do mais, pela minha experiência, nunca dá para se saber com certeza com quem você está falando nos Emirados. Pode ser um leal inimigo jihadista determinado ou um primo remoto de segundo grau.
— Então não falamos nada? — perguntou Carter.
— Nada — concordou McKenna.
— E se determinarmos que de fato é Malik?
— Nesse caso o presidente gostaria de tirá-lo de circulação.
— O que isso significa?
— Use sua imaginação, Adrian.
— Foi isso que eu fiz após o 11 de Setembro, Jim, e você disse em público que eu devia ser preso por causa de minhas ações naquela ocasião. Então, se você não se importar, eu gostaria de saber exatamente o que o presidente está me pedindo para fazer.
Foi Shamron, e não McKenna, quem respondeu.
— Ele não está pedindo para você fazer nada, Adrian. — Shamron olhou para McKenna e perguntou: — Não é verdade?
— Me disseram para tomar cuidado com você.
— Disseram o mesmo para mim.
Isso pareceu deixar McKenna satisfeito.
— O presidente não está disposto a autorizar uma operação secreta num país árabe semiamistoso em tempos delicados como estes. Ele sente que isso poderia constranger o regime e deixá-lo mais vulnerável às mudanças que estão varrendo o Oriente Médio.
— Mas israelenses correndo frenéticos de um lado para o outro em Dubai é outra história.
— Por acaso, isso tem bastante a ver com os fatos.
— E que fatos são esses?
— Malik tem bastante sangue israelense em suas mãos, o que significa que vocês têm todos os motivos para desejar sua morte.
— Boa estratégia, Sr. McKenna — falou Shamron. — Mas o que nós recebemos em troca?
— A gratidão do presidente norte-americano mais importante e transformador de toda uma geração.
— Igualdade? — perguntou Shamron.
McKenna sorriu e repetiu:
— Igualdade.
CONTINUA