Biblio "SEBO"
POR CAUSA DE DÓRIS
"Essa viagem tinha que ser justamente agora?", pensou Lali, contrariada.
Fazia apenas três dias que suas aulas tinham terminado. Uma temporada difícil, com muitos exames no cursinho e ensaios de bale para o festival de fim de ano, dia e noite, inclusive aos domingos.
Agora, estava bem preparada para o vestibular (tinha escolhido História), o espetáculo de bale fora um sucesso.
Tudo isso era muito bom, mas não diminuía seu cansaço. Fazia tempo que ela sonhava com essas férias que seriam curtas. Só pensava em dormir bastante, sem pensar em horários.
Depois de alguns dias, como sempre acontecia, ela ia achar que o tempo não passava, que não tinha nada para fazer. . . Cansada de ler, de tomar sol e de passear com as amigas, adoraria viajar. Mas, por enquanto, não, por favor. . .
Essa Dóris tinha que aparecer justamente agora?
Ela chegara de repente, num domingo, como quem cai de outro planeta. Hospedada em casa de parentes de Lali, vinha dos Estados Unidos com uma bolsa de estudos. Estava fazendo pesquisa sobre as famílias brasileiras.
A de Lali fora escolhida para ser entrevistada por ser uma família típica da classe média, supunha a jovem americana: o casal e quatro filhas, sendo Lali, nos seus gloriosos dezoito anos, a caçula e a única solteira.
Família padrão! Lali achou graça. Será que muitas outras eram assim? Geralmente a vida em sua casa era uma loucura. Principalmente nos fins de semana.
Chegavam as irmãs casadas com os maridos, os filhos pequenos com as pajens, às vezes alguns amiguinhos. Vinham as amigas de Lali, às vezes um ou outro colega da Faculdade. Vinham os parentes do pai e da mãe. às vezes até de outras cidades.
Esse "às vezes" tão repetido queria dizer muitíssimas vezes, quase sempre. Como a tia Tetê que aparecia infalível-mente todos os domingos para o cafezinho, com bolo de fubá, das cinco horas.
Dóris, por sorte, chegou num dia calmo. Os sobrinhos e amigas de Lali não tinham aparecido. A tia do cafezinho, com o marido, sim, mas eles não atrapalharam a entrevista que foi rápida. Tão rápida, tão fácil, que alguém sugeriu a Dóris uma outra pesquisa.
De quem fora aquela idéia "maravilhosa"? Quem falou em Santa Rita? Lali não se lembrava do culpado desse crime contra o sossego do próximo. Com certeza uma das irmãs que chegara mais tarde. Ou sua mãe?
Dóris aceitou imediatamente a sugestão. Com muito entusiasmo, porque se lembrava de férias maravilhosas passadas em fazenda brasileira.
Seus pais tinham morado muito tempo no Brasil. Ela viajara com dois anos e quando completou doze teve que voltar, com grande tristeza, para os Estados Unidos. Um irmão de seu pai era casado com uma moça de São Paulo. Moravam perto, Dóris gostava muito dela, conversavam sobre o Brasil e falavam em português freqüentemente.
É claro que ela gostaria muito de conhecer a vida e os costumes de uma cidadezinha do interior. E quanta coisa teria para contar à tia Laura.
Tudo bem, mas quem acompanharia a visitante? Sugerir é fácil. Mas no minuto seguinte todos tinham uma boa desculpa para não viajar. Escaparam com jeito e com classe.
Dóris estava tão interessada em conhecer o. pessoal do interior quanto Lali em dormir até o meio-dia naquele começo de férias. Mas quando Lali "acordou", a turma já tinha marcado o dia da viagem. A acompanhante seria... Lali, naturalmente.
Dóris se foi com seu sorriso radioso e sua simpatia. Depois chegaram amigas, um grupinho alegre e barulhento. Por que Lali estava aborrecida? Mostrar o interior de São Paulo para a jovem americana era uma grande idéia. Palpites não faltaram.
De Cirlene:
— A Dóris vai adorar Santa Rita. Pelo menos lá ela não vai encontrar tanta poluição.
De Carolina:
— Ela vai levar uma impressão muito boa da gente. Já esteve em teatros, museus, concertos e shows. Faltava conhecer a vida calma do interior, aquela gente boa. . .
De Adriana Maria:
— Isso mesmo. Ela fica sabendo que os brasileiros não pensam só em carnaval e futebol.
De Isabela:
— E que não temos só secas no Nordeste, enchentes no Sul, favelas, miséria e analfabetismo. Acho um privilégio mostrar nossa Terra para essa garota. É uma questão de patriotismo.
"Engraçada a preocupação das meninas com a nossa imagem no exterior" — pensou Lali. "Mas elas não querem mover uma palha para ajudar. Até parecia que estavam dando entrevista para a televisão. Fazendo seus discursinhos com a maior demagogia, como políticos em vésperas de eleições! Não, elas não podiam estar falando seriamente”.
Lali ficou irritada.
— E porque vocês não são patriotas e não vão com ela?
Não. . . Ninguém tinha tempo, nem condições. Nem parentes em Santa Rita. Portanto, o patriotismo ficava por conta de Lali que andava tão cansada.
Os tios do interior ficaram contentes com a próxima visita. Lali já tinha feito seus planos: "Chegando lá, apresento Dóris a todo mundo. Ela pode pesquisar à vontade enquanto fico em casa dormindo".
Tia Tetê vendo Lali desanimada, tentou consolá-la:
— Quem sabe você encontra o seu príncipe nessa viagem?
— Pode ser, tia. Olhe que ele já está demorando...
Lali não se interessara para valer por nenhum de seus amigos e admiradores. Eram bonzinhos, simpáticos, alguns bem bonitões. Mas pareciam tão imaturos!
— São uns cabecinhas de ovo — dizia a tia Tetê.
Mas Lali não podia seguir a cabeça da tia que tinha idéias estranhas e umas corujices incríveis!
Quando ela falava em príncipe, não se referia ao príncipe encantado dos sonhos das jovens solteiras. Era príncipe real mesmo. Estava pensando seriamente no Andrew da Inglaterra e no Albert de Mônaco. Vendo Lali, certamente eles cairiam a seus pés, perdidamente apaixonados.
Lali achava graça. Tia é tia.
— Nesse caso devo ir correndo para a Europa. Ou você acha que eles aparecem por aqui?
— Por que não? O Andrew não esteve nas Malvinas? É só questão de oportunidade. . . Para eles, viajar pelo mundo é mais fácil que eu ir para o Guarujá.
Lali ria, esquecendo seu aborrecimento.
— Está bem, tia, continue sonhando.
— Acho que vou gostar muito de Santa Rita — tinha dito Dóris com um sorriso cativante.
Não dava para ficar com raiva dela. Era muito simpática e não tinha culpa de ter chegado num momento inoportuno.
Lali retribuíra o sorriso, sem dar a perceber pensava: "Espero que sim, porque para mim vai ser a maior amolação".
Ela não podia imaginar que muitas surpresas a aguardavam em Santa Rita. Um fio diferente — precioso — seria acrescentado ao fino tecido de sua vida. E mudaria tudo...
O PRESENTE DE LALINHA
Fazia tempo que Lali ia para a casa dos tios. Antigamente ela adorava aquele lugar, aqueles parentes. Passava lá todas as suas férias quando criança. Desde um inesquecível Natal.
Ela se lembrava muito bem. Devia ter uns nove anos naquela ocasião. Seus pais, precisando visitar um primo muito doente, numa cidade distante, resolveram deixar Lali na casa dos tios de sua mãe. Era a primeira vez que a garota se separava da família.
— Você vai ficar no quarto de Lalinha — disse tia Haydée.
Lali seguiu atrás dela sem responder. Não estava interessada em quartos. Só queria que seus pais voltassem logo e que fossem passar o Natal em casa. O pai tinha prometido que estariam juntos. Ele compreendia que seria triste para a menina passar as festas sozinha em casa de parentes que ela mal conhecia.
Lá não havia criança. A casa era antiga e silenciosa. Silenciosa demais, com pouca gente e muitos retratos dos antepassados.
Fileiras de retratos nas paredes, de pessoas sérias e importantes cujos olhos seguiam Lali como se temessem alguma reinação.
Enquanto subiam a escada que levava ao segundo pavimento do casarão, Lali ia pensando no que poderia fazer para se divertir. Qual seria o melhor momento e lugar para soltar o ratinho de plástico que trazia no bolso? E quando iria pôr para funcionar o saco de risadas que tio Valter tinha emprestado?
Lali ficara encantada com aquela novidade: uma pequena almofada que escondia uma gravação de risadas tão contagiantes que a gente não conseguia resistir e ria também. Ele faria sucesso na hora do terço, se é que os tios ainda rezavam o terço, todos reunidos, como antigamente.
— Tia, você conhece o saco de risadas?
Tia Haydée se voltou sorrindo e ficando dez anos mais moça.
— Se for um brinquedo, nunca vi. Chamo de saco de risadas o meu vizinho Fábio porque é fofinho e ri o tempo todo.
Entraram num quarto, no fim do corredor. Tinha uma cama antiga, de madeira escura, alegrada por uma colorida colcha de retalhos. Sobre o toucador de mármore, de espelho oval, uma bacia e jarra para água, de louça, com uma linda decoração de rosas. E mais: uma cadeira de balanço, outra sem balanço e aquele armário grande que parecia cheio de mistérios.
— Veja, Lali, como era o quarto de uma mocinha no século passado.
A garota arregalou os olhos.
— Pensei que Lalinha era sua filha, ou sobrinha!
— Já estou acostumada com esses enganos. Falamos de Lalinha como se ela fosse jovem e. ainda vivesse aqui. Era uma criatura adorável que deixou uma impressão de eterna mocidade. Você nunca ouviu falar de Eulália, avó de sua avó? O apelido dela era Lalinha.
— Ouvi, sim. Como era ela?
— Muito alegre. Dizem que aprontava as maiores reinações. Uma vez, com a casa cheia de visitas, ela pôs vinagre no licoreiro, e ficou espiando de longe as caretas das pessoas que provavam aquela "delícia".
Lali estava gostando muito dessa antepassada.
— Conte mais, tia.
— Sei mil casos de Lalinha. Se fosse contar todos, não terminaria hoje.
— Só mais um.
Vamos ver. . . Houve aquele caso com o Dr. Álvaro. Ele veio ver um doente aqui em casa e Lalinha colocou um ovo choco na maleta do médico. O ovo se quebrou mais cedo do. que ela esperava e você pode imaginar o "perfume" que se espalhou na valise do doutor e na casa inteira. O doente piorou, o doutor ficou louco da vida, puseram Lalinha de castigo. Mas ela não se importava com isso. Continuava alegre e cada vez mais travessa.
— Você tem uma fotografia dela?
— Ninguém tem. Ela não gostava de fotografias. Dizia que as pessoas ficavam duras e sem graça. Quando alguém conseguia, de surpresa, tirar uma foto de Lalinha, ela não dizia nada. Mas depois cortava sua cabeça na fotografia. E ficava
rindo do espanto das pessoas que viam aquele corpo decapitado.
— Será que era feia?
— Não. Dizem que era muito bonita. Certa vez, seu pai comprou na Europa uma boneca maravilhosa que era o retrato da filha. A única diferença eram os cabelos: os de Lalinha, bem escuros. Os da boneca, muito louros.
— Essa boneca ainda existe?
— Nunca vi, não sei para quem ficou. Lalinha dizia que gostaria de deixá-la para uma criança que fosse parecida com ela, ao menos nas reinações. Queria uma herdeira alegre e travessa como ela. Não me lembro de ninguém que fosse assim
na nossa família.
Quando ficou sozinha, Lali foi desfazendo a mala e pensando em Lalinha. Pensava em Lalinha criança. Difícil acreditar que se tratava da avó de sua avó. . .
De todas as meninas da família, só ela tinha aquele nome, Eulália, que sempre achara muito feio. Agora estava começando a gostar dele.
Aquele quarto antigo, de teto muito alto, móveis escuros e pesados, tinha para Lali um encanto especial. Não parecia nem um pouco triste. Ao contrário, dava-lhe uma sensação de alegria, de aventura... E o armário enorme, além de guardador de segredos — como a garota desconfiava — parecia ideal para a gente brincar de esconder.
Grande e pesadão — um antepassado dos modernos armários embutidos — tinha duas portas duplas em cima e duas embaixo.
Lali abriu a mais próxima e viu uma porção de travesseiros e cobertores empilhados na mais perfeita ordem. A parte do lado direito continha uma fileira de cabides vazios.
Enquanto pendurava seus vestidos, a garota percebeu, na madeira ao fundo, uma rachadura que deixava passar uma réstia de luz. Muito antigo, era natural que estivesse trincado. Mas, de onde viria aquela claridade?
Lali passou as mãos pelos cantos, procurando... Procurando novidades. . . Percebeu logo uma dobradiça que só uma criatura muito curiosa (xereta) como ela poderia descobrir. Do lado oposto, havia um pequeno trinco.
Aberto o trinco, ela forçou, puxou e empurrou o fundo do armário até que ele se moveu. Era uma porta! Saindo por ali, a garota foi dar em uma pequena sacada de onde pulou facilmente para o terraço grande, cuja escada ia dar no quintal.
Lali desceu e encontrou uma cozinha muito ampla, onde uma porção de mulheres se agitavam preparando assados, doces e bolos para a ceia de Natal.
— Olhem a garotinha!
— É parente da D. Haydée.
— Como é bonita!
Uma das mulheres encheu as mãos de Lali de douradas balas de ovos.
"Que gente boa!”, pensou a garota. "Aquela noite, afinal, poderia não ser tão triste, mesmo sem crianças, sem os pais, sem presentes..."
Voltou para o quarto e continuou a investigar.
Os travesseiros ficavam sobre quatro gavetas grandes. Tirando tudo do lugar, Lali abriu a gaveta de cima e se equilibrou sobre ela para examinar a parte superior do armário.
Ele era dividido ao meio por uma prateleira. Um dos lados estava ocupado por uma porção de almofadas pequenas. O outro continha várias gavetas estreitinhas. Que poderia haver ali? Jóias, lencinhos? Quem guardaria objetos de uso constante lá nas alturas?
Aquelas gavetinhas de nada não combinavam com o tamanhão do armário. Pareciam um disfarce...
Desconfiada, Lali tirou todas as gavetas. Com o nó dos dedos ia batendo na madeira do fundo como uma experiente exploradora de armários antigos. De um lado o som era diferente. Haveria outra porta secreta lá em cima?
Tanto mexeu, aqui e ali, que uma folha de madeira deslizou mostrando um nicho alto e largo.
Dentro dela, uma caixa comprida, embrulhada num papel de seda amarelado. Lali tirou o papel cuidadosamente. E teve a maior das surpresas: em cima de um embrulho feito com um xale antigo, estava. . . o seu retrato!
Era uma fotografia, meio apagada, de Lali num jardim, com os cabelos iluminados pelo sol, um cachorrinho nos braços.
Mas ela não se lembrava daquele lugar, daquele vestido esquisito, nem do cachorrinho.
Atrás da foto estava escrito com tinta já descorada: Lalinha com nove anos de idade.
Foi então que Lali entendeu: ela e Lalinha eram muito parecidas mesmo.
Desenrolou o xale depressa e encontrou a boneca mais bonita que já tinha visto. O vestido de rendas e preguinhas estava mais para o amarelo, mas a boneca parecia nova.
Era a cópia perfeita do retrato, a cópia mais do que perfeita de Lali, por causa dos cabelos claros.
De repente, Lali se sentiu muito feliz. Não só pela boneca.
Tinha a deliciosa impressão de que aquele quarto era seu, e sua a casa silenciosa e acolhedora. Sentiu-se parte de tudo aquilo, como num retorno mágico ao passado.
Não tinha a menor dúvida de que a boneca estivera durante todos aqueles anos à espera de que ela a descobrisse. E como se estivesse falando com outra menina, uma amiga de sua idade, disse alto:
— Obrigada, Lalinha. Adorei o seu presente!
Ouviu barulho lá fora. A batida da porta de um carro, vozes alegres, conhecidas!
Espiou pela janela. Seus pais tinham chegado. A mãe já estava entrando e perguntando por Lali.
Com a fotografia e a boneca na mão. a garota desceu as escadas gritando:
— Mamãe! Tia Haydée! Adivinhem o que eu achei...
MERGULHO NO PASSADO
Tia Haydée não tinha mudado muito desde a última visita de Lali, há três ou quatro anos. Só os cabelos, antes grisalhos, estavam completamente brancos. Eram ainda fartos e fofos.
"Não deviam ficar brancos" — estranhou Lali.
"Se tomassem da alma a cor exata
Os cabelos que brancos se tornaram
ficariam de ouro e não de prata..."
Quase disse isso a ela. . . Mas apenas abraçou demorada-mente a tia que estava contente e emocionada.
Dóris foi recebida com o mesmo carinho que rodeou Lali desde o primeiro minuto. A tia achava que, estando longe de sua terra e de sua família, a jovem precisava de muito afeto, que foi espontâneo, instantâneo, porque todos simpatizaram imediatamente com ela.
Sem perder tempo, Dóris começou a trabalhar, fazendo mil perguntas sobre a vida e os costumes das pessoas e da cidade.
Todos se surpreendiam ao ver como ela falava bem nossa língua. Dóris contou que nunca deixara de falar português, com os pais ou a tia. Também não perdia oportunidade de conversar com estudantes brasileiros, por prazer, por saudade e para se atualizar. Em Santa Rita ela queria que as pessoas a corrigissem, se errasse, e lhe ensinassem expressões antigas ou próprias da região.
Falando com os mais jovens, ela pedia que ensinassem termos da gíria, que ela achava muito engraçada e expressiva.
E assim, num instante, Dóris conquistou uma porção de amigos.
Ela se mostrou entusiasmada com a possibilidade de conhecer uma antiga fazenda de café que ficava pertinho da cidade.
A idéia fora de tio Djalma, que estava feliz com a animação de Dóris. Ele explicou, dando risada:
— A fazenda Santo Antônio, da família Frazão, é a mais bonita dos arredores. Depois da nossa, é claro.
A deles era a Monte Santo que ficava mais distante. Não dava para ir e voltar no mesmo dia. E a casa grande estando em reforma, as meninas não teriam o necessário conforto para dormir lá?
Tia Haydée contou que a prima Carlota adorava visitas e uma boa prosa. Dóris não teria dificuldades para entrevistá-la.
"Mas tio Djalma ia viajar no dia seguinte. Como é que elas iriam para a fazenda?", pensava Lali.
Tinha esquecido que em Santa Rita os parentes e vizinhos apareciam muitas vezes por dia para prosear, levar um doce, um recado. Não havia problema. Companhia é que não ia faltar.
Dito e feito. Na manhã seguinte, o primo Jucá, que não era primo (como a prima Carlota), chegou na hora do cafezinho. Ofereceu condução com o maior prazer.
— Aqui são todos primos? — estranhou Dóris.
Tia Haydée disse que não. Mas muitas pessoas que não eram parentes tinham o afetuoso costume de chamar os amigos de primos.
Durante a curta viagem para a fazenda, primo Jucá divertiu as garotas com o relato dos usos e costumes de Santa Rita.
Falou das comemorações religiosas, das quermesses, das festas juninas.
Dóris riu muito quando ele contou que algumas jovens, quando estavam demorando para casar, roubavam uma imagem de Santo Antônio.
— Dá certo? — perguntou ela, interessadíssima.
— Parece que dá — afirmou o primo Jucá. — Pelo menos no caso de minha mãe deu certo. Até hoje ela fica sem jeito quando toca no assunto.
— O que aconteceu? — quis saber Lali.
— Certa vez ela foi passear em casa de parentes. Estava com um namoro sem solução. Na hora de voltar, escondeu na bolsa um Santo Antoninho que morava no criado-mudo (sabe o que é, Doris? Um mini-armário que hoje chamamos de mesa de cabeceira) da tia Elvira. Logo depois, ela conheceu meu pai e seis meses depois estavam casados e felizes. Mamãe foi uma jovem muito tímida. Imagino o que lhe custou roubar o santo e depois devolvê-lo e confessar o furto.
— Precisava contar tudo? Era uma condição para ser atendida? — perguntou Dóris.
— Não. Minha mãe achou que devia.
— De jeito nenhum. No começo não podia acreditar. A Marianinha, era incrível! Depois, achou muita graça.
Primo Jucá continuou desfiando seu rosário de casos:
— Uma vez, outra jovem, muito impaciente, roubou um Santo Antônio para ver se arranjava noivo. O tempo passava e nada acontecia. Muito zangada, ela jogou o santo pela janela. Ouviu um grito e foi ver o que era. Tinha acertado na cabeça de um rapaz que ia passando. Arrependida, ela o fez entrar, conversaram, ficaram amigos. Depois namoraram e casaram, o que prova que Santo Antônio não falha.
As garotas riram de toda aquela superstição. Os tempos haviam mudado. Uma jovem de hoje não ficaria esperando que um noivo caísse do céu. Se estivesse interessada em alguém, iria à luta. Se não encontrasse ninguém do seu agrado, nem nem por isso ficaria chorando as mágoas. Certamente teria tantas atividades, trabalho, estudo, viagens, diversões, amigos, que se sentiria feliz e realizada, mesmo sem casamento.
Lali se lembrou de sua infância. Quando se machucava, uma tia de sua mãe costumava dizer: "Não foi nada. Quando casar, sara". Com certeza queria que a garotinha entendesse que, com o correr dos dias, a dor ia desaparecer. Mas passava também a idéia falsa de que casamento é remédio para tudo. Ainda bem que os tempos mudaram. . .
Prima Carlota, avisada por telefone, estava impaciente à espera das moças. Mas declarou que só depois do lanche — uma tentação para quem não queria engordar — responderia às perguntas de Dóris. Deixando a mesa, as duas se fecharam no quarto da dona da casa para ninguém interromper a entrevista. Essa precaução parecia exagerada porque ela tinha dito que estava sozinha em casa.
— Meu filho João foi a Santa Rita. O Dinho, meu neto, deve estar por aí. . . Disse que voltaria logo. Esse menino não pára! Mas, a casa é sua, Lali, não faça cerimônia. Se quiser qualquer coisa, fale com a Dalva, minha ajudante, ou mande chamar o fiscal.
Lali estranhou. Que fiscal? Depois se lembrou que, naquela região, fiscal é o nome dado ao administrador das fazendas.
Prima Carlota já tinha mostrado a Lali o quarto de hóspedes. Se ela quisesse descansar um pouco enquanto esperava Dóris. . .
Mas Lali não tinha vontade nenhuma de descansar. Passou os olhos distraidamente nos livros e revistas sobre a mesinha, à disposição das visitas.
Seu cansaço crônico tinha desaparecido misteriosamente. Um dia convidativo, luminoso a esperava lá fora.
Mas não pôde deixar de notar que aquele quarto era parecido com o de Lalinha. A cama chamou especialmente sua atenção. Era muito original. Tinha na cabeceira uma pintura que Lali pensava já ter visto em quadros antigos. Pelo menos, a idéia era a mesma: Uma jovem se debruçava, descuidada, sobre um rio de águas revoltas. Atrás dela, muito atento, estava o seu anjo-da-guarda.
Até aí, nada demais. No anjo é que estava um toque muito pessoal (e inesperado) do artista. Sem nenhuma dúvida quanto ao sexo dos anjos, ele colocara no guardião da donzela uma barba comprida e cerrada. Por convicção, por originalidade? Ou seria uma homenagem ao noivo (marido) da jovem?
Lali achou graça mas não encontrou a solução daquele mistério...
Descendo do quarto, ela encontrou uma grande sala de teto alto, tão espaçosa que a luz do sol, entrando pelas enormes janelas, não a iluminava até o fundo.
Na parede, perto da entrada, na parte mais escura, havia uma fileira de retratos, como na casa da tia Haydée. Perto das janelas, tudo parecia mais claro e alegre. Ali ficava uma escrivaninha de tampo arredondado de correr (tio Djalma tinha uma igual) e muitas estantes com livros bem-conserva-dos e arrumados com capricho. Ao lado, poltronas aconchegantes tão grandes e gordas que eram boas para a gente se acomodar e ler, dormir, até morar. . . Vasos enormes, em suportes altos, apresentavam samambaias verdes e volumosas, belíssimas.
As janelas eram daquelas de peitoril largo onde a gente pode sentar-se folgadamente.
Lali se aninhou num deles, apreciando o jardim formado de canteiros em vários níveis.
Admirou as flores alegrinhas 'e simples que quase não se encontram mais: bocas-de-leão, cravinas, brinco-de-princesa, onze-horas. Junto ao muro coberto de hera agarradinha, uma cercadura azulada de agapantos.
Faltava alguma coisa. Todo jardim antigo não podia dispensar um pé de manacá. Não, não faltava. Lá estava ele, num canteiro mais afastado, um pequeno arbusto mostrando um alegre festival de flores azuis e brancas.
Lali, exigente, ainda queria mais: uma fonte. Onde se viu jardim bonito sem fonte? Era obrigatório, também, um cara-manchão de primaveras com um banco para a gente sentar e namorar.
Ela ia dizendo (pensando) para a gente sentar e sonhar. Saiu namorar, sem querer. . .
Ao longe, ouvia-se um murmúrio de água. Será que a fonte existia?
Não resistindo à curiosidade, ela partiu para a sua pesquisa particular. Pulou a janela, como Lalinha faria. E, sem demora, encontrou a fonte que derramava sua água límpida numa espécie de bacia de pedra cinzenta.
Perto dela, uma árvore cheia de frutas e passarinhos numa cantoria alegre.
"Perto da límpida fonte
há uma árvore vibrante
e por mais que a fonte cante
sempre um pássaro responde."
Sem saber por que, Lali se lembrava de versos lidos há muito tempo... Era um poema longo no qual o poeta comparava o seu canto de amor com o canto da fonte sempre respondido pelos passarinhos. Terminava, cheio de curiosidade e expectativa:
"Ao meu canto esperançado
eu quero ver quem responde..."
"Por que será que estamos sempre esperando alguma coisa ou alguém? Uma decisão, uma resposta, uma mudança importante?", pensou Lali.
O caramanchão também existia. Ficava um pouco mais adiante e tinha um "teto" de primaveras roxas.
Será que Lalinha tinha conhecido esta fazenda? Talvez tivesse descansado muitas vezes naquele banco. Sozinha? Acompanhada?
Lali soltou sua imaginação, compondo uma cena de romance. Andava muito romântica ultimamente, talvez por influência do ambiente belo e calmo de Santa Rita.
Será que as jovens de hoje são sonhadoras como as do tempo antigo? Mudam-se os tempos, mas o coração não muda. A vida é que se torna tão diferente...
Algumas amigas de Lali eram românticas, mas procuravam disfarçar, como se isso fosse um defeito, ou um sentimento fora de moda...
Mas lá estava Lalinha (na imaginação de Lali) com um longo vestido de musselina. Segurava um chapéu de abas largas, da mesma cor do vestido. Verde-água. Não, lilás ficaria melhor. Combinaria mais com os cabelos compridos e brilhantes que parecia uma meada de seda preta. Ela estava esperando alguém, com toda certeza.
De repente, um leve rumor de passos, pedregulhos rolando...
Só podia ser ele, o bem-amado.
Com a risada de Lali, sumiu a imagem de Lalinha. O entanto se desfez.
O vulto branco que surgira na alameda de azaléas parou, assustado. Era um cabritinho que se perdera de sua família e entrara no jardim e nos sonhos de Lali...
— Vem. meu querido. Como você é bonito!
Deu um passo na direção dele, mas o animalzinho, muito arisco, se virou e desapareceu num instante.
"Dóris deve estar me esperando" pensou Lali, despedindo-se de seus sonhos.
Caminhou, entre as flores do passado, de volta ao presente.
O ESPELHO
Passando de repente da claridade do jardim para a penumbra da sala, do sonho para a realidade, Lali se sentiu um pouco atordoada.
Foi então que reparou no espelho. Ele ficava na parede oposta à dos retratos. Bem na frente dele, uma fotografia chamou a atenção da garota. De todos os retratos, aquele era o mais moço. Aliás, era o único jovem.
Devia ser o famoso tio Ar lindo, a personagem mais conhecida da família Frazão por sua beleza, bondade e vida infeliz.
Passara muitos anos ali na fazenda, enclausurado no seu quarto. Nunca aparecia para as visitas. Tinha uma doença grave, e, sem queixas, e sem esperanças, vivia à espera da morte.
Um dia correu o boato de que tentara o suicídio. Ele sobreviveu, mas a família procurou encobrir o caso. O rapaz deixou a fazenda, nunca mais voltou. Ninguém se animou a pedir notícias ou a perguntar o que realmente acontecera, com receio de magoar aquela gente tão boa.
Ele era bonito mesmo — pensava Lali — apesar da roupa severa, do penteado antiquado, da barba grande. Nisso até que ele estava moderninho. . . Seus olhos eram muito atraentes, olhos tristes e profundos de quem guarda um segredo...
Em seguida, Lali foi para o lado oposto e examinou o espelho que ficava sobre um aparador estreito. Tinha uma belíssima moldura de madeira entalhada e, nos quatro cantos internos, uma delicada grinalda de flores desenhadas no próprio cristal.
Um cristal tão límpido que boa parte da sala se refletia nele com nitidez absoluta. Lali não olhava para a sua imagem e sim para a parede atrás dela, para o retrato do tio Arlindo cujos olhos pareciam estar olhando para ela.
Examinou com calma e prazer os antigos, lindos objetos do aparador e quando ergueu os olhos para o espelho, estremeceu de susto. A imagem do tio Arlindo parecia agora muito próxima!
O rapaz tinha, uma expressão de surpresa no olhar. E dava a impressão perfeita de que ia falar. . .
Lali se virou bruscamente derrubando um castiçal de prata do aparador.
Devia ter sido uma ilusão de ótica, sonho ou miragem... Sonho não era, pois ela estava bem acordada. Na penumbra da sala, um efeito qualquer de luz e de sombra, um esvoaçar de cortina, tudo poderia dar a impressão de proximidade do retrato.
Quando ela se abaixou para pegar o castiçal, ouviu uma voz, bem real, ao seu lado.
— Deixe que eu apanho.
Endireitou-se, admirada. Um rapaz alto olhava para ela com curiosidade. Como se ele também não estivesse acreditando no que via.
— Você não é a moça americana que D. Carlota estava esperando. . .
— Não. Minha tia é amiga de D. Carlota. Eu trouxe a Dóris.
— Está muito pálida. Deve ser o calor. Aceita um refresco?
Sem esperar resposta, saiu para o corredor e disse lá pra dentro:
— Dalva, quer trazer uma laranjada aqui na sala?
De volta, ele foi até a escrivaninha e pegou um caderno de capa preta, explicando:
— Estou dando uma mãozinha para o Seu João. Tenho que voltar para o trabalho. Se precisar de alguma coisa, estou às ordens. Mande chamar o Eduardo. Sou eu — terminou, rindo.
"Que estranha maneira de se apresentar", pensou Lali.
Agradeceu, mas não disse o seu nome ao simpático fiscal. Para quê? Era um estranho e nunca mais se veriam.
Dóris apareceu à sua procura. Tivera uma demorada e proveitosa conversa com D. Carlota.
Surgira um problema: a volta. Primo Jucá telefonara avisando que um defeito no carro o impedia de ir buscar as moças.
A prima Carlota queria que elas ficassem mais, seu filho voltaria logo da cidade. E o neto tinha que aparecer. Por onde andaria o Dinho?
Lalinha e Dóris estavam dispostas a esperar o ônibus que passava pertinho da fazenda, mas a dona da casa não concordou.
Se tinham mesmo pressa, o fiscal as levaria, embora não fosse pessoa de confiança.
Mandou chamar o Edu, abraçou as garotas, numa despedida carinhosa, e entrou, apressada, para atender o telefone.
Um garoto fora avisar o fiscal. De longe as meninas viram o Eduardo saindo de uma casa perto do pomar. Parecia zangado.
"Seria pelo trabalho de levá-las à cidade?" pensou Lali, constrangida.
Se o motivo era esse, ele disfarçou muito bem. Logo estava numa prosa animada com Dóris.
"Simpatia à primeira vista. . .”, reparou Lali, enciumada. Mas sem nunca ter sentido nada semelhante, ela não sabia que estava com ciúme.
O rapaz fez o carro seguir devagarinho pela fazenda e foi mostrando as plantações, o gado, o terreiro de café, as cocheiras, o moinho de fubá, tudo o que pudesse interessar a Dóris.
Ele falava de seu trabalho com tanto entusiasmo que as moças perceberam que Eduardo não era um administrador comum. Não mesmo.
Tinha feito o curso de agronomia em Piracicaba e o de engenharia de alimentos em Campinas. Ao mesmo tempo que procurava melhorar a qualidade dos produtos da fazenda, fazia uma pesquisa sobre alimentos. Tentava descobrir uma fórmula que fosse ao mesmo tempo nutritiva e saborosa. A soja, exemplificou ele, com tantas qualidades, para muita gente tem um gosto horrível. Seria maravilhoso transformar a soja, ou um produto semelhante, num alimento gostoso que as crianças pedissem como pedem sorvete ou chocolate.
— Por que tudo que é saudável tem que ser ruim? — disse Dóris, pensando em certos alimentos que detestava.
Lali contou:
— Quando eu era criança e mamãe vinha com a colher de remédio, a gente perguntava: É gostoso? Ela respondia: "Se fosse gostoso não seria remédio". E eu ficava pensando que bem podiam fazer um remédio parecido com doce de leite que eu adorava.
— Pois eu vou descobrir o alimento gostoso, podem acreditar — afirmou Edu, muito confiante.
Eduardo contou ainda que ia fazer parte do PAM.
— PAM? É companhia de aviação? Ou algum campeonato esportivo? — indagou Dóris.
— Nada disso. É um projeto novo: Plano Agrícola Municipal. Foi criado há pouco tempo. Serão estudadas as possibilidades de cada região, os agricultores terão orientação para plantar o mais indicado para as suas terras e na venda dos produtos diretamente ao povo. É mais ou menos isso. Como o projeto vai ser implantado logo em toda a região de Campinas, Santa Rita também será beneficiada. Estou muito interessado numa espécie mais produtiva de milho e quero experimentá-la na Santo Antônio. Se o Seu João concordar...
Soja, uma espécie diferente de milho. . . Não era o assunto mais interessante do mundo, mas ficava quando era Eduardo quem falava sobre isso. Tanto assim que o tempo passou rapidamente. Quando repararam já estavam entrando na cidade.
Eduardo deixou as garotas na porta da casa da tia Haydée. E se foi, assobiando alegremente.
— Que dia maravilhoso, não? — perguntou Dóris, animadíssima.
— Foi, sim. Tudo muito gostoso — respondeu Lali, sabendo que a amiga ia estranhar aquela expressão.
— Gostoso? O que você achou gostoso? Não estou falando de comida.
— Nem eu, o dia, o passeio, a conversa, tudo foi gostoso. É modo de dizer. Nossa língua é assim.
— Aaah! Vou anotar. E do Ed, o que você achou?
— Que Ed, menina?
— Ora, Lali. Você estava muito quieta, distraída, mas não me diga que não reparou no administrador. O apelido de Eduardo é Ed, não?
— Entre nós o mais comum é Edu ou Dudu.
— Sei. . . Mas gosto mais de Ed. Achei o Ed muito bonito, cabeça boa. . . Como é que vocês dizem quando um homem é bonito? Já sei: um gato. O Ed não é um gatão?
Lali riu. Não disse nem sim, nem não. A Dóris parecia muito entusiasmada e não era só pela fazenda. . .
Era muito inteligente. Aprendia tudo tão depressa!
Charme ela não precisava aprender, tinha até demais, esbanjava.
Tudo bem, mas ela precisava ter feito tanto charme para o Eduardo?
A CASA DAS LARANJEIRAS
No dia seguinte, Lali acordou tarde.
Que silêncio! Parecia que ela estava sozinha no casarão, sozinha na cidade e no mundo!
Desceu rapidamente, mas não encontrou ninguém lá embaixo.
Havia movimento na cozinha e Júlia, preparando o café para a jovem, contou que a tia tinha saído com Dóris.
Deixara um recado: se Lali quisesse ir ao encontro delas, estariam na casa da prima Emília que morava em frente à matriz, numa casa grande de esquina, porta na rua e nove janelas. Não tinha o que errar.
Mas Lali não estava com vontade de conversar. Depois do café (com broa de fubá), tomou um banho rápido e escolheu um vestido próprio para aquele calor. Branco, leve, de decote grande, enfeitado de renda. Comprido e rodado, com jeito de roupa antiga, combinava bem com a casa de tia Haydée e com o estado de espírito de Lali, muito voltado para o passado.
Estava arrumando o cabelo no toucador de Lalinha, quando ouviu gritos e risadas na rua.
Um grupo de garotos descalços, de shorts, e algumas moças e rapazes, corriam atrás... da chuva!
Naquele dia ensolarado, uma nuvem, solitária e desgarrada, derramava uma chuva-surpresa sobre um pequeno trecho da rua. E só ali!
Ela deslizava lá em cima, e, aqui embaixo, o bando ruidoso a seguia, deliciando-se com aquele chuveiro gigante.
Lali nunca tinha visto uma chuva assim, localizada. Só mesmo em Santa Rita!
A rua ficou novamente silenciosa e muito mais fresca depois daquela rega especial. Lali continuou na janela.
Se ela vivesse em 1928, quando tia Haydée era jovem, como seria sua vida? Ficaria fechada em casa, como a maioria das moças, bordando o enxoval e esperando casamento? Sem poder ao menos escolher o marido? Que horror! Não, ela nunca faria parte da turma das acomodadas.
Aprenderia a fazer de tudo — e bem feito — para ser independente e para saber mandar. Sua casa seria gostosa e hospitaleira, ela, mãe alegre, esposa carinhosa, sem abrir mão de seus direitos como pessoa.
Achava indispensável ter um tempo só seu, sagrado, para ler, ouvir música, passear, até para não fazer nada... praticaria esportes, andaria de bicicleta, de carro.
Aprender a dirigir podia ser uma batalha, mas ela lutaria e venceria. Como tia Lourdes, a primeira mulher a dirigir em Santa Rita. Muito jovem, andava pela cidade inteira num carro moderno e possante. Os irmãos tinham uma agência de automóveis e ela não perdia tempo.
Certa vez, um médico, de propósito, ou por incompetência, jogou o carro em cima dela. Não podendo desviar o seu, tia Lourdes virou rapidamente para a esquerda e, sem outra saída, entrou com carro e tudo no terraço de uma sorveteria.
Era hora de pouco movimento, não houve danos, a não ser mesas e cadeiras derrubadas. Juntou gente, os homens dispostos a se divertir com o incidente.
Tia Lourdes não se abalou. Ficou sentadinha lá dentro e perguntou calmamente:
— Tem sorvete de creme? Quero uma taça dupla!
Ninguém se atreveu a rir. E foi assim que ela, sem querer, inventou o auto-sorvete, depois seguido pelo auto-lanche, auto-pizza, e outros semelhantes, muito populares nos anos 80.
Tia Lourdes sempre foi uma mulher moderna. Lali queria ser assim em 1908, 1928 ou 1988.
Por brincadeira, começou a imaginar que vivia na época de Lalinha e naquela casa. Estava esperando o marido para almoçar. Tinha pressa porque ia dar aula no colégio das irmãs, pondo noções de História e idéias novas na cabecinha de suas alunas. O marido já estava atrasado!
Esperou cinco minutos e foi ficando impaciente. Se demorasse mais, não se veriam porque ela devia sair logo depois do almoço para o colégio.
De vez em quando passava um carro, uma charrete e logo a rua ficava vazia de novo.
Não vinha ninguém. Que brincadeira mais sem graça!
Ia desistir do faz-de-conta quando percebeu um vulto lá no fim da rua. Vinha na direção da casa de Lalinha.
Era um homem alto, de roupa caqui e botas de cano longo. Um chapéu leve lhe encobria as feições, mas ele tinha um jeito familiar.
Passou sem ver Lali, que ficou desapontada, desistiu do passado e voltou para a época atual.
Não demorou muito, Júlia chamou ao pé da escada:
— D. Lali, visita para a senhora.
Era Eduardo!
Se ela parecia admirada, ele, mais ainda. Ao vê-la entrando na sala, teve uma alegre exclamação de surpresa:
— Lalinha!
— Não. Meu nome é Lali — corrigiu, sem entender aquela confusão.
— Lalinha — teimou o rapaz. — Com esse vestido e os cabelos soltos, você se parece demais com Lalinha. Eu já tinha notado isso na fazenda, mas podia ser apenas imaginação minha. . . Mas agora, não há dúvida, a semelhança é impressionante.
— Como é que você sabe? Tia Haydée disse que não existem fotografias de Lalinha. Eu só vi uma, do tempo em que ela era criança. Parecia muito comigo.
— Na fazenda existe uma de Lalinha quando jovem.
— Na Santo Antônio? Como foi que eu não vi?
— Está na casa de hóspedes que vocês não visitaram. Foi lá que vi Lalinha.
— Tia Haydée disse que ela não gostava de fotografias.
— Deve ser verdade. O que está na fazenda não é fotografia. É um retrato a óleo que o avô de D. Carlota pintou.
— Com certeza eram muito amigos para ela consentir.
— Ouvi dizer que ele era apaixonado por Lalinha; mas não deu certo. Ela se casou com um rapaz do Rio, um diplomata, se não me engano. Vivia viajando.
— Como é que você sabe de coisas tão íntimas, sem fazer parte da família?
— Por D. Carlota, claro. Você viu como ela gosta de contar histórias. O que ela não sabe, não aconteceu — terminou Eduardo, rindo.
— Gostaria de ver esse retrato.
— Então vamos. Deixei o carro na oficina aqui perto. Vou buscá-lo num instante.
— Preciso avisar minha tia.
— Deixe um recado. Diga que saiu comigo e ela não vai ficar preocupada. Estará em boas mãos — terminou ele, risonho.
"Além de confiado, é convencido", pensou Lali.
Mas parecia que o pessoal de Santa Rita era assim mesmo: simples e franco.
Foi com a maior simplicidade (ou cara-de-pau) que ele disse:
— Eu estava esquecendo do que vim fazer aqui. Trazer estas frutas que D. Carlota mandou para vocês.
Entregou uma cesta de mangas, vermelhas e perfumadas, que Lali admirou e agradeceu.
Disse à Júlia que ia dar umas voltas, que a tia não se preocupasse. Mas não disse com quem saía. Para quê?
Dez horas da manhã. Céu de porcelana azul, límpido, translúcido. O ar era tão puro e cheiroso (cheiro de terra, ou de férias?) que deixava Lali ligeiramente atordoada.
A casa de hóspedes, rodeada de laranjeiras novas, redondinhas, ficava no alto de uma colina. Voltada para o poente.
Não havia campainha na porta. Um sino de ferro anunciava as visitas. Lali gostou desse detalhe e também da lanterna no alto da porta.
Havia outro sino do lado de dentro. Quando entraram, sons alegres de um sininho da felicidade saudaram a chegada da garota.
Lá dentro, tudo claro e espaçoso. Não havia muitos cômodos, mas eram todos amplos. A sala tinha móveis de junco e muitas almofadas nos sofás e no chão. E uma mesa comprida para uma porção de gente se reunir numa refeição demorada.
"A mesa, não se envelhece" — diziam os antigos. Lali era da mesma opinião. Quando a companhia era boa, ela tinha preguiça de se levantar da mesa. Ficava alongando a conversa enquanto tomava lentamente o cafezinho ou um licor, fazendo durar os momentos felizes.
Na cozinha, além de todos os armários com que uma dona de casa poderia sonhar, havia um fogão a gás, outro de lenha para os saudosistas. E não era tudo. De repente Eduardo disse, muito animado:
— Surpresa! Feche os olhos um pouquinho.
Lali obedeceu.
Qual seria a surpresa? Forno de microondas? Refrigerador triplex? Tudo isso Lali já conhecia, pelo menos de vista, ou de ouvir falar.
Eduardo tomou a mão de Lali e levou a garota para o ponto que desejava. Disse:
— Pode abrir os olhos. Veja que maravilha.
O que entusiasmava tanto o rapaz era um forno antigo. . . Daqueles de barro que toda fazenda tinha, ótimo para assar pães, biscoitos e pizza, se pizza estivesse em moda naquele tempo.
— Este forno é feito em módulos de concreto refratário. É pequeno, jeitoso, pode ser montado em qualquer lugar (parecia que estava fazendo um comercial de TV) e funciona tão bem como aqueles antigos que exigiam um espaço muito grande. Você gosta de pão feito em casa? — perguntou Eduardo, que, pelo jeito, gostava muito.
— Depende. . . Quando acho pronto, eu gosto — caçoou Lali, que não entendia muito de cozinha.
É tão fácil de fazer! Por aqui todo mundo sabe. Até eu. Por falar nisso, estamos testando receitas diferentes para depois ensinar aos empregados: pão de três farinhas, pão de abobrinha e outras novidades.
— E são gostosos? — perguntou Lali, duvidando.
— Uma delícia. Um dia desses você vai experimentar.
— Ainda bem. Pensei que você fosse fazer já uma grande fornada de pães. Não dá tempo.
— É verdade. Um cafezinho é muito mais rápido. Aceita?
— Só se for de coador de verdade, como diz meu pai. Coador de pano, será que tem?
— Claro. D. Carlota não admite outro. E o café é da Santo Antônio, torrado e moído na fazenda. Produção pequena, mas especial, um luxo.
— Imagino. Hoje é raro a gente tomar um bom café.
— Deste você nunca vai esquecer. . .
Haveria uma segunda intenção no que ele dizia? Lali não tinha certeza.
A cozinha estava bem provida de mantimentos também. Como Eduardo explicou, a partir de janeiro a casa grande ficava cheia de hóspedes. Os que gostavam mais de sossego preferiam ficar ali no meio do laranjal.
— É uma casa encantadora.
— D. Carlota cuida dela com muito carinho. Disse que foi construída para Joel, o neto mais velho que estava para casar. Mas ele desistiu, está solteiro até hoje. Vai ser do que casar primeiro.
Conversavam e riam como que se conhecessem há muito tempo, esquecidos do motivo especial daquele passeio.
— E Lalinha? — lembrou a garota de repente.
— Deixei o melhor para o fim. Vamos lá.
Primeiro Eduardo mostrou os cômodos que Lali ainda não tinha visto.
Havia um quarto grande, de casal, que uma mobília branca tornava ainda mais claro e espaçoso. As cortinas também eram brancas, leves, presas dos lados por um laço.
No peitoril das janelas, abertas para um jardinzinho, as jardineiras de gerânios vermelhos alegravam a vista e o coração.
"Esses gerânios encarnados que na janela vivem debruçados vão morrer debruçados na janela."
Os versos de Guilherme de Almeida, de um livro que tia Tetê lhe emprestara há pouco tempo, vieram instantaneamente ao pensamento de Lali. Felizmente, aquelas flores não iam ter o mesmo destino triste. Estavam muito bem cuidadas.
O segundo quarto, menor, era destinado à música e leitura. Tinha livros e discos, aparelho de som. E duas bergéres de chintz estampado — esse tipo de cadeira era a paixão de Lali — com espaldar bem alto e abas largas que quase escondem seu ocupante.
Sozinho na parede maior, para ser devidamente apreciado, o retrato de Lalinha.
Uma jovem alta e esbelta, de cabelos escuros e lisos pelos ombros. Olhava diretamente para a gente, como tinha olhado, de frente para o pintor, com uns olhos grandes e risonhos.
Talvez ela quisesse ficar séria, mas os lábios se entreabriam num sorriso espontâneo. Como se estivesse achando graça em posar, logo ela que não gostava disso. Seu rosto parecia ter uma luz por dentro e toda a sua imagem dava uma impressão de vida e de alegria que não devia ser fácil de reproduzir. Mas o pintor conseguira, porque a conhecia bem. Porque a amava.
Lalinha tinha nas mãos um chapéu de abas largas da mesma cor do vestido comprido, de um roxo pálido.
— É Lalinha mesmo ou sou eu de cabelos escuros?
— Eu não disse que vocês parecem gêmeas?
— Nesse caso, não posso elogiar a figura da minha antepassada. A pintura eu posso: é uma beleza! O pintor foi muito feliz. Ela parece estar viva, essa dama de vestido lilás.
— "Lady Lilá", como diz o Seu João. D. Carlota não comentou nada sobre sua semelhança com Lalinha?
— Não houve tempo. Ela precisava dar uma entrevista para a Dóris. Além disso, de calça comprida e cabelo preso, eu não estava nem um pouco parecida com uma dama antiga. D. Carlota nem reparou em mim.
— Você é que pensa. . . Ela não perde nada. Espere e verá...
"Era hora de voltar", pensou Lali, aborrecida.
— Adorei tudo isso, Eduardo, mas tenho que ir embora.
Ele concordou. Fechou a casa cuidadosamente. Devagar, como quem não quer partir.
No terraço, ao lado da escada, havia um pé de jasmim e o seu perfume os acompanhou até o carro.
No caminho os dois ficaram em silêncio a maior parte do tempo.
Mas era um silêncio agradável, cheio de tranqüilidade, compreensão e harmonia. E de uma sensação de felicidade cujo motivo eles ainda não queriam confessar...
O TERCEIRO ENCONTRO
Lali não tinha diário. Quem acha tempo para escrever um na correria dos dias de hoje? E ela estava bem crescida para isso.
Assim mesmo, ela descobriu um jeito de marcar acontecimentos importantes. Sentindo-se muito infantil (e feliz!) ela escreveu na sua agenda de maneira que só ela entendesse:
CL — 15 - 12 E: xx
Essa "fórmula" esquisita era na realidade bem simples. CL queria dizer Casa das Laranjeiras. Em seguida vinha a data, a letra E, de Eduardo e duas cruzinhas significando dois encontros.
O dia estava tão quente que as garotas deixaram as visitas e passeios para o fim da tarde.
Conversavam com tia Haydée quando o telefone tocou. Ela foi atender e voltou contrariada.
— Algum problema, tia? — perguntou Lali.
— Sim e não. . . Era o Barretinho. Ele quer conversar com Dóris.
— O Barretinho do cartório?
— Não existe outro. Felizmente. . .
Lali achou graça na carinha aborrecida da tia.
— O que aconteceu? Vocês brigaram?
— Não. Ele nunca me fez nada, mas eu não gosto do Barretinho porque ele está sempre menosprezando o Djalma. Você sabe como é o seu tio. Ele finge que não percebe e continua a tratar bem aquele antipático.
Lali também ficou zangada.
— Quem ele pensa que é? Que desaforo!
Lali se lembrava do Barretinho, um homem de idade indefinível, descorado, de olhos claros muito míopes, escondidos atrás de lentes grossas. Tinha cabelo ralo, cor de areia e um sorrizinho irônico nos lábios finos que só se abriam para dizer coisas desagradáveis. Isso para ele era ser espirituoso... Tinha a mania de falar com o cigarro no canto da boca. Esse bendito e sempre presente cigarro ficava balançando, subindo e descendo ao sabor da conversa, e esparramando cinza no chão para desespero das donas de casa que o homenzinho visitava. Tia Haydée ganhou um furo redondo e fundo no tapete novo da sala na última (tomara que fosse!) visita do Barretinho.
Quando a cinza caía, D. Nhanhã varria o chão ostensivamente, pegava a cinza com a pá e ia jogar fora. Depois voltava e ficava de plantão para a próxima varrida. Ignorava os sinais que o marido lhe fazia. "Essa é a boa!", pensava. "Então ela não podia zelar pela ordem e limpeza de sua casa? Tinha mais era vontade de varrer o Barretinho também... Pena que ele era amigo de seu filho. Não! O Paulo, bom rapaz, é que era amigo de verdade dele. Ninguém mais teria coragem de publicar, só de pena, os horríveis sonetos do Barretinho no jornal de domingo."
Para castigo dos assinantes, o homem escrevia versos (poesia não era) a propósito de tudo e também sem propósito nenhum. Gostava de dedicar seus poemas a todas as pessoas ricas de Santa Rita.
Aos domingos, D. Lourdes, irmã de tia Haydée, se divertia. Ao abrir o jornal ela dizia, rindo:
— Vamos ver contra quem o Barretinho escreveu hoje.
Isso porque ela achava os versos tão ruins que não eram uma homenagem. Eram um desaforo. . .
Barretinho também era conhecido como Mister Barretinho por causa de sua mania de falar inglês. É bom conhecer outros idiomas, mas ele fazia do seu interesse por essa língua uma amolação geral. Vivia com um livro debaixo do braço e passeava pela cidade mostrando às pessoas que conseguia agarrar os seus grandes conhecimentos.
Tio Djalma, muito paciente, ouvia, elogiava. . . Em troca, era uma de suas vítimas prediletas. Como não falava inglês, era chamado de preguiçoso, desinformado. Para não dizer, claramente, burro. . .
Tio Djalma dava risada
— Deixa isso pra lá, Barretinho. Vou falar inglês com quem? Com os bois e cavalos da fazenda?
Esperteza dele. Estudara inglês para uma viagem ao exterior. Depois, tomou gosto, se aperfeiçoou, comprou livros que lia com facilidade e prazer.
Mas escondia bem os seus conhecimentos. Se o Barretinho soubesse, ele não teria mais sossego.
Outra vítima, mais tímida e indefesa, era Sebastião Maria, do armazém. Trabalhara duro desde garoto, sem tempo nem condições de estudar. A única tristeza desse homem alegre e simpático era não ter instrução. Claro que não sabia inglês.
Barretinho, percebendo que Sebastião era sensível aos seus comentários maldosos, redobrava as críticas, chamando-o de português ignorante para baixo.
Todas as tardes o Barretinho aparecia com um livro, revista ou jornal em inglês que encomendava em São Paulo. Instalava-se na farmácia do Afonso ou no bar do Irineu.
No começo, os comerciantes tinham medo que o Mister afugentasse a freguesia, mas o pessoal aprendeu depressa a se defender.
Quando o homem surgia querendo mostrar seus livros ou ensinar a turma; ou, o que era pior, com um papel na mão, ameaçando ler seu último soneto (que nunca era o último), cada um dava uma desculpa:
— Com licença, eu já estava de saída.
— Tenho um compromisso inadiável.
— Preciso ir ao dentista.
Só tio Djalma ficava ouvindo, mostrando interesse, balançando a cabeça com ar de aprovação.
Tia Haydée ria contando esse fato. Acontece que recentemente ele tivera um problema de ouvido. Estava um pouco surdo e usava um aparelho para melhorar sua audição. Quando o Barretinho começava a lengalenga, ele o desligava. O aparelho, claro, porque o Barretinho era indesligável.
Dóris querendo aperfeiçoar seu português quase não falava sua língua. Mas, assim como suas amigas faziam tudo para ajudá-la, ela quis também ajudar o Barretinho. Telefonou para ele e marcaram um encontro na sorveteria.
O lugar estava cheio de estudantes, por causa das férias, e do calor. Sentaram-se a uma mesa na calçada. E o espetáculo começou.
Logo nas primeiras frases, Lali percebeu que o inglês do Barretinho era chinês, para qualquer pessoa. Sentia-se mal e não conseguia disfarçar seu constrangimento.
Dóris disfarçava, continuava sorridente. Mas não compreendia nada do que o Barretinho falava!
E ele, atrapalhadíssimo, não entendia o que Dóris dizia. Uma coisa atroz!
Os estudantes começaram a prestar atenção, a dar risada. A princípio disfarçadamente. Mas como Barretinho, para se fazer entender, gesticulava e falava muito alto, eles não agüentavam. Choravam de rir.
O Mister, zangado, passou a ofendê-los. Chamava-os, em português claro, de invejosos e burros. Eles retrucavam, chamando Barretinho de palhaço, ignorante bilíngüe, etc. etc. Esses "etcs." eram bem ofensivos. Por fim, os adversários esqueceram a presença das garotas e o bate-boca ameaçava transformar-se numa briga feia.
De repente, Eduardo abriu caminho entre a turma, cada vez mais alterada, já rodeando a mesa. Segurou Lali e Dóris pelo braço e forçando a passagem, com brados de "com licença", e alguns empurrões, tirou as duas da sorveteria.
Pararam sob uma árvore do jardim fronteiro.
Dóris se preocupava.
— E o Barretinho? É capaz de levar uns socos.
— Seria bem-feito. Mas sosseguem que aqueles rapazes não são de nada. Só querem se divertir e fazer barulho.
Mas outra pessoa se preocupava. E interferiu com uma desculpa bem-bolada.
Foi chegando de mansinho, abriu caminho com aquela calma e simpatia que todos admiravam. E disse ao Barretinho, assustado e furioso:
— Seu Barreto, esqueceu o nosso encontro? Fui ao cartório e me disseram que o senhor estava aqui.
E aos estudantes:
— Com licença, amigos. Temos um assunto importante a resolver.
Levou Barretinho para o cartório de onde ele não devia ter saído.
O salvador era. . . Sebastião Maria!
ALEGRE, TRISTE...
Tudo terminara bem, mas Edu queria que Dóris esquecesse aquele episódio ridículo. Sugeriu:
— Que tal a gente ir tomar chá na tia Marta?
— Tia de quem? — perguntou Lali. — Parece que todo mundo aqui é tio ou primo de alguém.
O rapaz concordou:
— Tem razão, mas agora estou falando não de uma pessoa mas de um salão de chá muito especial que tem mil coisas deliciosas. E uma "pastiera de grano". . . Hum. . . É o meu doce predileto — terminou ele com um suspiro.
Dóris se animou. Gostava de conhecer lugares diferentes e novas pessoas. Desde que elas não falassem um inglês ininteligível...
O lugar era muito agradável. Por um largo portão de ferro — antigo, lindamente trabalhado, notou Lali — entrava-se em um jardim tão grande que parecia um parque. Nos canteiros centrais havia roseiras em flor de uma beleza incrível. Do lado esquerdo ficava uma estufa de orquídeas e plantas raras. Mais adiante, debaixo de árvores, havia prateleiras com dezenas de plantas em vasos: avencas, begônias, gloxínias, violetas e crisântemos.
Não se tratava de uma mansão com um imenso jardim, como as moças estavam pensando. Era uma imensa floricultura ao ar livre.
Lá no fundo, meio escondido pela plantação de pinheiros, viram um convidativo chalé com cortinas de xadrez vermelho nas janelas. Era a casa de chá.
— Tem "pastiera"? — perguntou Edu, com uma ansiedade infantil.
Tinha. E também sucos naturais, incomuns, e um chá de amêndoas inesquecível. Como inesquecível era a música romântica, a tarde dourada, a companhia. . .
Edu não fez nenhuma referência à Casa das Laranjeiras. Lali gostou dessa discrição. Aquele fora um momento só deles, um delicioso segredo que compartilhavam.
Quando saíram, Edu comprou para Dóris um vasinho de violetas brancas debruadas de azul que a garota tinha admirado.
Lali não mostrara preferência por nenhuma flor, encantada com todas. Ganhou um maravilhoso buquê de rosas vermelhas.
— Escolhi estas porque acho que combinam com você — disse Edu com simplicidade.
Lali gostou das flores, da frase, do olhar dele, mais do que amigo.
Caminharam lentamente para o portão, não querendo terminar o passeio e não encontrando pretexto para prolongá-lo.
Até Dóris, a tagarela ("tagarela bilíngüe", pensou Lali com afeição), estava silenciosa admirando suas violetas.
Enquanto esperava que Edu abrisse o carro, uma garotinha suja e maltrapilha se aproximou delas e pediu um dinheiro para comprar leite para os irmãozinhos.
Parada na esquina, uma mulher pequena e magra, com uma criança no colo e mais três estiradas na calçada, olhava e esperava.
Edu, vendo a cena, desistiu de partir naquele momento.
Chamou a garotinha e foi com ela em direção à esquina. Conversou um pouco, voltou e disse às moças:
— Essa família é de fora. As crianças estão cansadas e com fome. Vou com elas até o bar mais próximo. Vocês querem vir ou preferem esperar aí, no jardim?
Dóris e Lali resolveram ir também.
Eduardo acomodou mãe e filhos numa mesinha e pediu leite e sanduíches para eles.
A garotinha mais velha agarrou o copo de leite com as duas mãos, mantendo-o junto ao corpo como se tivesse medo que lhe fosse tirado. Olhou ansiosa para a mãe:
— Até onde eu posso beber?
Reparando na surpresa dos jovens, a mãe explicou:
— Ela nunca tomou um copo inteiro. Tinha que repartir com os outros. . .
As crianças — e a mãe também — comeram com uma fome desesperada.
Dóris brincou com as crianças, perguntou seus nomes, mas elas não queriam perder tempo em responder. De repente o moço bonzinho podia mandar tirar da mesa toda aquela comida. . .
Lali, sentindo os olhos molhados, foi até à porta para disfarçar.
Edu deu algum dinheiro à mulher e mostrou a casa paroquial. Lá D. Sinhana providenciaria alimentação e abrigo para a família. E depois trataria de arranjar médico, creche, emprego, o que fosse necessário.
Ela se foi, consolada, e as crianças, saciada a fome, pareciam um pouco mais espertas.
Ainda bem que tinham encontrado Edu e não outra pessoa, talvez não tão compassiva e interessada. O problema fora momentaneamente solucionado, mas aquela impressão de miséria e desamparo não saía do pensamento de Lali e Dóris.
A tarde perdeu sua beleza e despreocupada alegria.
Na despedida, agradeceram muito as flores e o passeio ao pensativo Edu. Ele tinha um jeito de quem pede desculpas por haver na cidade — no mundo — pessoas tão necessitadas...
Quando entraram, tia Haydée comentou:
— Que beleza de flores! Rosa vermelha quer dizer paixão. Quem deu ? Não me digam que foi o Barretinho. . .
— Foi um nosso admirador — respondeu Lali, fazendo mistério.
A tia achou graça e não insistiu. Lali apreciou essa discrição. Não tinha vontade de falar sobre Edu. Seria a presença de Dóris que a embaraçava? Talvez a garota estivesse muito interessada nele. . . Ou um certo receio de "dar azar"?
"O segredo é a alma do negócio" costumava dizer seu pai. Era melhor, mais prudente falar daquela "amizade" quando tudo estivesse mais assentado. . . Tudo o quê? Ora, fosse o que fosse...
Dóris deixou as violetinhas enfeitando a sala.
Lali escolheu um lindíssimo botão para o seu quarto. E entregou o buquê, com um beijo, para a tia que ficou feliz.
Subiu para o quarto enquanto Dóris contava à tia, muito curiosa, o encontro com o Barretinho.
Apesar de tudo, fora uma tarde maravilhosa, pensava Lali. E o terrível Barretinho até que fora bem útil. Se não fosse ele, não teriam visto Edu naquele dia.
Abriu sua agenda e fez mais uma cruzinha ao lado da letra E.
RECORDANDO E APRENDENDO
Dóris ficou encantada com o bolo de fubá, alto e fofo, que apareceu na hora do café da manhã acompanhando os pãezinhos de minuto e a geléia de jabuticaba.
— Você não conhecia este bolo? — admirou-se tia Haydée.
— Conhecia. Mas não tão leve e gostoso. Por que o pãozinho tem nome de pão de minuto ?
— Porque é feito rapidamente.
— Pensei que fosse por ser comido rapidamente — xeretou Lali.
— Por isso também — concordou a tia. E perguntou a Dóris:
— Você conhece pamonha?
— Não.
— É um creme que se cozinha nas próprias folhas do milho verde.
Lali deu palpite de novo.
— Tem um perfume delicioso de fazenda, de férias.
Dóris achou graça.
— Não sabia que as férias tinham cheiro.
— Pois no Brasil tem, fique sabendo.
— Vou tomar nota.
Lali continuou, para fazer inveja à amiga.
— Você já comeu bananada de colher?
— Não. Só comi de banana. Aqui é diferente?
— Engraçadinha. . . Estou falando daquele doce que não é de cortar.
— Ah, bom. Nunca experimentei.
— E cocada com ovos?
— Não...
— E goiabada cascão, ambrosia, docinho de leite, de abóbora, de batata, roxa e branca, bolinha de queijo em calda, compota de manga, pé-de-moleque, paçoquinha?
— Pé-de-moleque, paçoquinha? Que nomes engraçados! Vou tomar nota. Mas vocês costumam fazer tudo isso de uma vez?
— Antigamente sim — explicou tia Haydée. — Agora, só nas festas. Tudo ficou difícil porque não se encontram boas empregadas. Na fazenda, a gente fazia lingüiça, queijo, requeijão e grandes tachadas de doces. Até os tachos de cobre desapareceram, ninguém mais tem. . . Às vezes as famílias sô reuniam para fazer quitanda.
— Que nome esquisito! Quitanda não é o lugar onde são vendidos frutas e legumes?
— É, mas também chamamos de quitanda docinhos e tudo o que é feito de massa: pães, rosquinhas, bolachas, sequilhos. Dia de quitanda era dia de muito trabalho, mas também de festa. Fazia-se uma quitanda enorme de coisas gostosas. Na próxima visita de vocês (tem que ser mais longa), iremos até Monte Santo e irão ver e provar as famosas quitandas.
Mais tarde, Dóris foi para a igreja com tia Haydée. Era a vez da tia mudar as toalhas e flores dos altares, trabalho que fazia com prazer e devoção.
Lali sempre dava um jeitinho de ficar em casa, descansando. Esperando. . . Porque no fundo, bem no fundo do coração, guardava a esperança de notícias de Edu: uma visita, convite para um passeio.
Enquanto "descansava" folheava um velho álbum de fotografias. Ultimamente, sem saber o motivo, sentia mais do que interesse, um repentino amor pelo passado. Tudo que era antigo lhe dava uma sensação de saudade e de ternura.
Sua fotografia predileta era a do casamento de tia Haydée e de tio Djalma. Fora tirada na entrada da casa de sua madrinha — tinha explicado a tia — numa escada de mármore tão larga como escadaria de igreja. A noiva estava com um vestido de renda, um pouco mais curto na frente deixando ver os sapatinhos de cetim. O véu era simples com uma grinalda de flores de laranjeira e realçava o rosto bonito, tão jovem! Seu buquê era de rosas amarradas por uma longa fita acetinada.
O noivo também chamava a atenção. Usava fraque, calças listradas, sapatos (polainas?) cheios de botõezinhos. E cartola! Muito bonito e elegante, parecia um galã do cinema mudo.
Lali se enternecia olhando para tia Haydée. Parecia tão moça e inexperiente! Depois de casada, fora morar numa cidade grande como requeria a profissão do marido. Agora ela falava com segurança e conhecimento em quitandas e tudo o mais, mas naquele tempo — ela mesma tinha contado — recém-saída do colégio, não sabia fazer um café.
Mas aprendera, longe da família, entre pessoas estranhas, numa cidade estranha, e se tornara dona de casa e mãe maravilhosa. Tivera duas filhas e muitos netos que moravam em Campinas e costumavam passar as férias em Santa Rita e Monte Santo, nos meses de janeiro e julho.
Havia outra foto dos noivos com os convidados. Tia Haydée podia dizer o nome e a história de cada um. Para Lali eram quase todos desconhecidos, mas ela gostava da fotografia. Não se cansava de ver uma garotinha de vestido de seda, sapatos de pulserinha, cabelo curto de franja e no alto da cabeça um grande laço de fita larga. Aquela era Márcia em criança. Sua mãe.
Dóris voltou do passeio animadíssima. Tinha aprendido muito, conversado pra valer. Encontrara na igreja muitas amigas da tia Haydée. Como eram amáveis as senhoras brasileiras! Elas a levaram de casa em casa, ainda bem que moravam perto. Uma lhe dera uma linda planta de folhas aveludadas e muito cheirosa. Como era mesmo o nome? Malvada?
— É malva, Dóris — ensinou Lali.
— Isso mesmo. Vou tomar nota.
Outra fizera questão de lhe oferecer uma toalha de crochê, e mais outra um pano de prato pintado por ela. "Vá guardando para o enxoval", tinham dito.
E de conversa em conversa, de presente em presente, de cafezinho em cafezinho, o tempo tinha voado.
Quando ficaram sozinhas, Dóris perguntou:
— Adivinhe quem eu vi na cidade.
— Não tenho a menor idéia. O Barretinho?
— Oh, não! Foi o Ed. Ele estava na porta do banco, conversando, mas não procurou a gente. Só disse "oi" de longe. Estava muito bonito, com uma camisa branca realçando aquele bronzeado. Lindo de morrer.
— Quem te ensinou a dizer isso, Dóris?
— Por quê? É feio? Não é uma expressão correta?
— Sossegue. É correta, sim e nesse caso, corretíssima até. É um grande e merecido elogio.
— Foi a Cidinha da D. Amália que me ensinou. Ela disse que todas as moças daqui acham o Ed lindo de morrer.
"Então, o Eduardo tinha muitas admiradoras" — pensou Lali. E sentiu um espinho no coração.
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE TIO ARLINDO
A tarde, as garotas iam visitar tia Augusta. Era irmã da avó de Lali, soubera que a menina estava na cidade, queria vê-la.
"Ver" é força de expressão. Queria conversar. Tia Augusta tivera um problema na vista, estava cega.
Dóris também ia porque tia Augusta adorava visitas, gostava de novidades. Era um documentário vivo da vida da cidade. Como a prima Carlota, o que tia Augusta não sabia, não valia a pena a gente saber.
Quando entraram no quarto, Lali ficou admirada com a atmosfera de serenidade que havia ali.
Tia Augusta estava sentada perto da janela. Parecia forte e muito tranqüila. Seus cabelos brancos estavam bem penteados, o rosto era tão calmo que a gente se acalmava só de olhar para ele. À primeira vista não parecia ter problemas. Depois é que a gente reparava que seus olhos escuros estavam fixos no mesmo ponto.
Era um livro de recordações. Sabia o nome, idade, filiação, profissão (e o mais intrincado parentesco entre as famílias) de todas as pessoas que moravam na cidade e nas fazendas próximas. Interessou-se muito por Lali, quis saber notícias de todos. E fez mil perguntas a Dóris, cuja vivacidade a deixou encantada.
Não podendo ver televisão, tia Augusta não perdia os noticiários do rádio. Sabia de tudo o que ia pelo mundo. Interessou-se pela opinião das jovens sobre os mais diversos assuntos: livros, artes, modas, sexo, política. Armas nucleares... E sobre a ameaça não de uma terceira, mas de uma última guerra mundial, sem dia seguinte.
— Fale mais um pouco, menina — disse ela, segurando a mão de Lali. Gosto de ouvir sua voz. É voz de gente bonita, assim como sua mão. Como você é? De que cor são seus cabelos?
— São castanhos, tia. Claros, quase loiros.
— Lali é muito bonita — corujou tia Haydée. — Você se lembra da Márcia? — Ela tem alguns traços da mãe, mas se parece de maneira impressionante com Lalinha, a beleza da família. É alta e muito magrinha como quase todas as jovens de hoje que não comem para não engordar.
— Comer pouco é melhor para a saúde — disse tia Augusta, que sabia das coisas.
— Concordo, mas não é preciso exagerar. Bem, tirando essa magreza, Lali é perfeita: bonita, inteligente e de bom gênio.
— Como é bom ter tias! — disse Lali. E continuou: — Não acredite, tia Augusta, ela está exagerando.
— Acho que não. Haydée sempre foi muito sensata.
— É tudo verdade — confirmou Dóris. — Lali é isso e muito mais: É muito graciosa — não anda, flutua — espirituosa e boa companheira.
— Como é bom ter amigas! — suspirou Lali. — Mas agora chega, gente. Vamos mudar de assunto.
Dóris perguntou a tia Augusta se no tempo dela a vida não era triste para as moças. Sem televisão, sem poder sair com os namorados, sem barzinhos e discotecas, como é que a mocidade se divertia?
Tia Augusta deu risada.
— Triste? Era tão alegre quanto hoje, na minha opinião.
E ela falou dos bailes freqüentes, dos casamentos, das festas da igreja com procissões e quermesses concorridíssimas, das serenatas (existe hoje alguma coisa tão bonita e romântica?), dos festejos de Natal, Ano Novo e Carnaval. Era um bom tempo. Os jovens aproveitavam todas essas oportunidades de encontro; se era baile não perdiam uma dança, se era festa não perdiam uma conversa. As moças eram disputadíssimas. Como é mesmo que se diz hoje?
— Paqueradas — respondeu Dóris depressa, feliz por estar ensinando gíria brasileira a uma brasileira.
Dóris continuava:
— Mas não é verdade que as moças não podiam escolher marido? E tinham que casar com o rapaz que os pais escolhiam? Será que esses casamentos davam certo?
Tia Augusta respondia com paciência que era verdade e não era. Davam certo e não davam, como atualmente.
— Hoje as jovens se casam com quem bem entendem, mas também descasam muito. Existe maior liberdade de escolha, mas os pais, tias e avós continuam torcendo por um determinado candidato, fazem planos, dão palpites.
— Pode ser, mas as moças seguem sua cabeça ou seu coração — disse Lali.
Tia Augusta perguntou, rindo:
— Vocês sabiam que a prima Carlota estava doida para conhecer Lali? Queria porque queria que Lali conhecesse-o neto dela. Não se encontraram, minha filha?
— Não. . . O Dinho tinha saído, não nos vimos. Pelo que a senhora está dizendo, acho que foi melhor assim.
— Estou estranhando a Carlota! Ela é insistente. Não sei como não mandou o moço atrás de você com um pretexto qualquer. . .
Lali ficou séria.
— Não quero nem pensar num casamento arranjado. Pretendo decidir sozinha. Gostei da prima Carlota, mas o neta dela não me interessa nem um pouco.
— Então você é como a Haydée que faz questão de escolher o marido. E soube escolher. Posso contar como foi?
Tia Haydée disse que podia, sim.
— A família inteira esperava que Haydée se casasse com um dos primos, como era comum naquele tempo. Mas vieram para a cidade novos dentistas. Logo correu a notícia de que eram jovens atraentes. As moças ficaram alvoroçadas.
Haydée deu jeito de passar com as irmãs pelo consultório e viu um dos rapazes. Ficou interessada. Recém-saída de colégio interno, mas muito espertinha, ela convenceu a mãe de que precisava tratar dos dentes com urgência.
Sempre acompanhada, foi ao consultório. Atendida pelo sócio do Djalma, ela não se atrapalhou. Inventou, decidida:
— Já combinei com o outro. Ele está?
Djalma apareceu, contente por ter uma cliente nova. E logo uma das moças mais bonitas da cidade, que ele já conhecia de nome, de fama. . .
Tia Haydée protestou:
— Deixe disso, Augusta. Faz tanto tempo...
— Os dois se entenderam muito bem. Quando o tratamento terminou, apesar de ter sido muito mais demorado do que devia, ficaram tristes. Ela morava na fazenda, não se encontrariam facilmente. Então, Djalma pediu Haydée em casamento. Como estão vendo, as moças não eram tão bobinhas e passivas como muita gente imagina. Sabiam ser espertas quando queriam.
— O que aconteceu com o outro dentista? — quis saber Lali. — Também arranjou namorada?
— O Joaquim de Paula era um rapaz maravilhoso. Desses amigos para toda a vida. Ficou muito amigo de Haydée, creio que foi padrinho de casamento. Nessa ocasião já estava namorando uma jovem bonita e simpática, a Nenzica. Casaram-se no ano seguinte.
— Mas nem sempre era assim — lembrou tia Haydée. — Algumas moças, mais tímidas, casavam contrariadas com quem os pais queriam. Outras contestavam a escolha deles, brigavam, criavam problemas. Outras, mais decididas, fugiam.
— Não!!! — disseram Lali e Dóris, ao mesmo tempo. Tia Augusta riu do espanto das garotas.
— É verdade. Aconteceu com o primo Joãozinho. No dia do casamento do irmão dele (Você foi Haydée? Eu estava lá), a casa cheia de gente e de confusão, ninguém reparou que o João tinha desaparecido. Aproveitou a oportunidade para fugir com a filha do administrador, uma bela e alegre moça de quem gostava há muito tempo.
— E quando descobriram? — perguntou Dóris, torcendo pelo casalzinho.
— Era tarde. Já estavam casados. A família dizia que ele ia se arrepender, que o casamento não duraria. Durou. . . Viveram juntos até os setenta e tantos anos e tiveram quinze filhos.
"Parece que o único caso realmente triste acontecido em Santa Rita foi o do tio Arlindo", pensou Lali. E não resistiu.
— Tia Augusta, é verdade que o tio Arlindo se suicidou?
— Quem foi que disse? Essa história foi mal-contada.
— Ouvi dizer que ele se matou porque era doente.
— E sempre assim. Um simples boato se transforma numa verdade indiscutível só porque ninguém tem coragem de perguntar. Foi bom você tocar no assunto. . . É por isso, também, que eu gosto dos jovens. Eles querem saber, vão ao fundo das coisas.
— Mas para a prima Carlota eu não teria coragem de perguntar. Ela poderia ficar aborrecida. . . Eu tinha uma vontade de saber a verdade! Não me conformava com uma morte assim, de um rapaz jovem e bonito...
“Como o Eduardo” ... ia acrescentando. Mas parou em tempo.
Tia Augusta começou do princípio.
— Na casa do primo Arlindo havia um espelho grande, muito antigo. . .
Lali não se conteve.
— Ainda está lá, eu vi.
Arlindo gostava de ficar na sala grande, lendo o jornal, meio escondido na sua poltrona de espaldar largo. Um biombo tornava o seu cantinho mais isolado. Quando havia visitas ele ficava lá, sem tomar parte na animação geral. Um dia, começou a reparar nas moças que passavam em frente ao espelho, que ele via sem ser visto. Quase todas paravam, endireitavam o cabelo ou o vestido, faziam pose, ensaiavam sorrisos ou simplesmente se admiravam.
Certa vez, apareceu uma jovem muito bonita. Ela parou, examinou as flores do aparador e se foi, sem se olhar no espelho. Foi por essa, diferente das outras, que sendo bonita não era tão vaidosa, que o primo Arlindo se interessou. Logo estava completamente apaixonado.
— Ele chegou a casar? Então não morreu logo?
— Calma, Lali. Você está ficando mais casamenteira que a prima Carlota! Claro que ele morreu, meu bem, não podia ficar para semente. Mas isso aconteceu muito mais tarde. Quanto ao tiro, não foi disparado por ele.
— Então foi uma briga? Um atentado? Acho que duelo não se usava mais... — era Lali tentando adivinhar.
— Nada disso. Ele estava no seu quarto, conversando com um amigo de São Paulo que lhe mostrava um revólver, novo, que usara só uma vez. E aconteceu o acidente, muito comum. Uma bala tinha ficado no cano, o rapaz inexperiente não percebeu, um tiro saiu e acertou o ombro do primo Arlindo, quase no peito, o que seria fatal. O rapaz ficou desesperado.
Para não deixar o amigo em situação delicada, primo Arlindo disse que ele mesmo tinha disparado o revólver sem querer.
Ninguém acreditou num acidente. E surgiu o boato de que ele tentara se suicidar porque estava desenganado pelos médicos.
— Então ele morreu logo depois?
— Não. O ferimento não foi grave. Ele resolveu ir para São Paulo e nunca mais voltou. O povo achou que tinha morrido por lá.
— E a doença?
— Arlindo sempre teve saúde frágil, sofria dos pulmões. Por insistência do médico da família ficou morando em São José dos Campos, onde passava muito bem. Sarou, casou-se e nunca mais voltou por estes lados.
— Nunca mais? — estranhou Dóris. Por quê?
— Quem é que sabe? Naquele tempo as viagens eram mais difíceis do que agora. Talvez ele tivesse medo de uma recaída se deixasse São José. Ou, seus pais já tendo morrido, ele não quisesse rever a fazenda, antes tão alegre.
— Com quem ele se casou? — a casamenteira queria saber.
— Com a moça que não se olhou no espelho, a irmã do amigo causador do acidente.
As garotas riram, contentes com a verdadeira, alegre versão da história.
Tia Augusta também era curiosa. Chegara sua vez de perguntar.
— E vocês? Não encontraram nenhum rapaz interessante na cidade?
— Só o Barretinho — disse a gaiata da Dóris.
Tia Augusta deu uma risada gostosa.
— Falando sério, só o Eduardo — disse Lali, que já segurava a mão de tia Augusta para despedir-se.
Alguma coisa na voz de Lali, na sua mão que tremeu, deixou tia Augusta mais alerta.
— Que Eduardo?
— O administrador da Santo Antônio. Ele é maravilhoso, na sua profissão e como gente — disse Dóris.
— Vocês se encontraram muito com ele?
— Vamos, meninas! — chamou tia Haydée, que já se despedira e esperava por elas no portão.
Lali respondeu apressadamente, mas com um entusiasmo que não conseguia disfarçar:
— Umas duas ou três vezes. Até logo, tia, gostei muito, muito de te ver.
— Adeus, querida. Um beijo, Dóris,
A voz de tia Augusta parecia cansada. Uma sombra passou pelo seu rosto. Ou seria apenas o efeito de uma nuvem, lá fora, encobrindo o sol?
UMA INCRÍVEL REVELAÇÃO
A hora de voltar para casa chegou inesperadamente. Muito mais cedo do que Lali desejava.
Um parente de tia Haydée iria para São Paulo no dia seguinte, bem cedo. Dóris achou ótimo e, imaginando que Lali estivesse ansiosa para regressar, combinou tudo sem consultá-la.
"Tão depressa!" — pensou Lali. "Bem que podiam ficar mais uns dias e voltar no ônibus. Queria tanto ver Edu mais uma vez..."
Mas não disse nada. Assim como não se queixara a Dóris na ida, não reclamou da volta.
Logo que ficou sabendo do repentino regresso, telefonou para a fazenda, perguntando pelo fiscal. Queria marcar um encontro para se despedir tranqüilamente, se possível a sós.
Alguém (devia ser a Dalva) disse que ele tinha ido para Campinas. D. Carlota também não estava, saíra com o neto.
Durante a viagem, pensava em tudo o que tinha deixado para trás. Presente e passado se entrelaçavam no seu pensamento, nos seus sentimentos. Lembrou-se da maneira pela qual conhecera Edu, da casa da fazenda, do espelho, do tio Arlindo.
O caso dele era parecido com o seu. A vida, não. A semelhança, a única ligação era o espelho, isto é, o fato de Lali não se ter olhado no espelho.
Olhara, através dele, para o retrato. E vira alguém. . .
Seria uma espécie de indicação do tio Arlindo? Uma orientação, vinda do passado, de uma pessoa que soubera escolher e fora feliz?
Que loucura! Que idéia mais absurda e infantil! O tranqüilo ambiente da Santa Rita, as lembranças do passado, as fotografias, a casa de D. Carlota, as histórias de tia Augusta, tinham marcado muito, atiçado a sua imaginação de moça romântica. Sugestões. . . Ela não tinha nada a ver com tio Arlindo, com sua família e com um espelho antigo que certamente não era um espelho mágico. . . E Edu, então, o que tinha a ver com tudo aquilo? Um estranho, empregado da fazenda?
Mas, era curioso. Tio Arlindo e ela, duas pessoas de épocas diferentes, de famílias diferentes, encontrando alguém muito especial através de um espelho, do mesmo espelho.
Lali tinha escrito para tia Haydée e D. Carlota dando notícias e agradecendo as gentilezas. Para Eduardo também, explicando a súbita partida.
Dóris seguiria para o Sul. Queria conhecer Foz do Iguaçu. Na volta visitaria Lali, antes de viajar para sua terra.
Uma correspondência intensa ia de São Paulo para a Santo Antônio, de Santo Antônio para São Paulo. E não eram mais cartas de explicações. Eram de amor mesmo.
Foi um tranqüilo fim de semana que o inesperado aconteceu. Como uma bomba de efeito terrível, destruidor.
Naquele sábado, Lali tinha recebido carta de Edu. A mais terna, amorosa e cheia de saudades, de promessas de um próximo encontro.
Dóris chegou de surpresa, à tarde. "Ela ia ficar contente e admirada ao saber do seu namoro com o Edu", pensava Lali.
Mas a amiga tinha muito o que contar e Lali não conseguiu dizer nada.
Dóris adorara o Sul. Tinha aprendido "um monte" de palavras novas, arranjara um namorado brasileiro, voltava para casa rica de amizades e experiências.
De repente, antes que Lali pudesse anunciar a grande novidade, Dóris perguntou, curiosa:
— E Edu, aquele gatão? Deu notícias ou se esqueceu da gente? Sabe que meu coração balançou por causa dele? Foi o rapaz que mais me impressionou aqui no Brasil. Tão bonito, tão inteligente! Pena já ser casado. . .
— Como? Que foi que você disse? — a voz de Lali saiu tão alta que era quase um grito. Ela ficou branca e foi até a janela para esconder sua perturbação.
Dóris, ocupada em escrever seu endereço para a amiga, não percebeu nada. Escrevia e falava sem levantar a cabeça. — Será possível, Lali?* Você não se lembra mais do administrador da Fazenda Santo Antônio? Como é desligada! Não pode ter se esquecido tão depressa do Ed. Sabe o que me disseram? Que ele bebe muito. Por isso quase foi despedido, justamente no dia em que fomos lá. Que falta de responsabilidade, para quem é casado e tem três filhos! Foi isso o que o pessoal comentou, acho que foi D. Carlota, você não estava junto? O Seu João andava muito aborrecido com a situação. Se não fosse o filho dele, o famoso Dinho que nós não vimos, a fazenda ficaria abandonada. Pelo jeito o Ed não é de nada e. . .
Nesse momento, o telefone tocou.
— Com licença, Dóris. Vou atender e volto já.
Abençoado telefone! Ela podia atender no seu quarto e ganhar tempo para se acalmar.
Entrou, trancou a porta, tirou o fone do gancho, mal podendo falar.
Era engano.
O que Dóris contara seria verdade? Ela não tinha razão nenhuma para mentir e inventar coisa tão grave.
E tia Haydée que não a avisara! De repente Lali percebeu que estava sendo injusta. Nunca tinha dito uma palavra sobre seu interesse pelo rapaz. E, agora se lembrava bem, a tia e Edu nunca tinham se encontrado. Quando Edu fora à casa da tia, ela tinha saído; quando Lali saíra com ele, a tia nem ficou sabendo. Então, porque ela faria comentário sobre o administrador?
Até parece que Eduardo tinha evitado os parentes de Lali... Pensando bem, ele era meio estranho. Agora ela sabia o motivo. Tudo se encaixava.
As lágrimas querendo saltar. Não deixaria!
Ficou sentada por alguns minutos, tentando se acalmar. Lavou o rosto, controlou-se e desceu para se despedir da amiga.
Por mais que tentasse, não podia esconder completamente sua perturbação e tristeza.
— Você está esquisita! É por que vou embora? — perguntou Dóris triste-contente.
— Vou sentir muito a sua falta, sabia? — disse Lali, abraçando a amiga.
— A gente ainda se vê, não é? Um dia você vai me visitar. Ou eu volto. Tenho que voltar, adoro este país.
— Até outra vez, Dóris. Felicidades.
— Pra você também. Não se esqueça de mim, Lali.
Lali estava com sorte. Seus pais iam a um casamento, as irmãs não tinham aparecido. Ela podia ficar sozinha, pensar, esfriar a cabeça, tentar se refazer daquele golpe que Dóris, inocentemente, lhe desfechara.
Ainda bem que não tinha falado sobre Eduardo com ninguém da família. Nem com as amigas.
Se falasse, haveria muitas perguntas que não poderia responder. Sabia muito pouco sobre Edu — apenas que o amava. E isso era suficiente para ela.
Nunca perguntara o nome de sua família, que descobrira mais tarde por causa das cartas. No lugar reservado ao remetente, ele escrevia: Eduardo F. Diniz.
E ela sonhava com seu futuro nome: Eulália Sampaio Diniz. Lindo!
Sabia pouco porque achava indelicado fazer muitas perguntas. Ia parecer interrogatório de polícia. Ou de crediário, que horror! Achava terríveis certas perguntas que todos os pais costumavam fazer: Como é o nome dele? Filho de quem? É de família conhecida, tradicional? Tem emprego? "Uma pessoa vale pelo que é, não pelo nome ou pelo emprego que tem!" pensava Lali.
Edu devia ser de família modesta, sem grandes recursos. Trabalhava para custear seus estudos e pesquisas. Ele tinha contado que trabalhara desde o primeiro ano de faculdade, para ganhar experiência e para não ser pesado para os pais.
Era um rapaz bem-educado, educação de berço que não tem nada a ver com riqueza. Um pouco confiado, mas os jovens de hoje são mesmo mais descontraídos e sem-cerimônia.
Mas, agora, seus pensamentos chegavam ao ponto crítico, dolorido: Por que não contara que era casado? Queria conseguir o divórcio primeiro? Com três filhos, era problema. Muito freqüente hoje, mas não era com isso que Lali sonhava. Não queria construir sua felicidade sobre a tristeza de outros.
Além de tudo, um alcoólatra! Não dava para entender.. . Nas poucas vezes que estiveram juntos, ele tomara cafezinho, um suco, no máximo uma cerveja. Parecia sempre sóbrio, de seus atos e palavras.
Tinha que ficar de cabeça fria. Nada de choro, nem de recriminações. . . Mas, como é que ele podia escrever uma carta cheia de belas palavras de amor, de planos, de sonhos? Cheia de mentiras? Porque esconder fatos tão importantes era mais do que mentir. . .
Não escreveu mais para Edu. Outras cartas foram chegando e ficando sem resposta.
Por isso, o convite de Vanessa foi recebido com uma espécie de salvação. Sem exagero.
Seria bom ela afastar-se um pouco de seu ambiente, ver o problema de longe, de fora, se isso fosse possível.
Vanessa insistira muito para que Lali fosse passar alguns dias com ela em Ubatuba.
Estava animadíssima ao telefone.
— Você quer saber quem vai? Mariana e Alessandra, minhas irmãs, que vão levar duas amigas cada uma. Não, não é muita gente, a casa é grande. Mariana leva Ana Paula Detzel e Beatrizinha. Você conhece, não é? Alessandra combinou com Evelize e Roberta, de Campinas. São legais. Eu levo você e Karen. Meus pais não vão. Meus avós acompanham a gente, não para tomar conta, queremos que eles se divirtam. São idosos, sim, mas não parecem. São sex. Até já tiraram carteirinha! Não sabe o que é isso? Por onde você andou, Lali? Estou falando da carteirinha sex, de sexagenário. Todas as pessoas de mais de 65 anos podem tirar carteirinha para andar de ônibus sem pagar. Mas não se assuste, os dois velhinhos têm mais disposição do que qualquer jovem. Adoram movimentos e sei que vão curtir as férias mais do que a gente. Diga que vai, Lali, não invente desculpas.
No dia seguinte, Lali partiu para Ubatuba. Precisava se distrair. E, principalmente, esquecer...
OUTRA REVELAÇÃO INCRÍVEL
Voltou da praia bronzeada, mais bonita, mais serena.
Sua companhia fora muitíssimo apreciada pelas moças e pelos velhos. Os avós de Vanessa gostaram tanto de Lali que a intimaram a passar com eles as próximas férias.
E havia Roberto, irmão de Karen, que não se conformava com a separação no fim da temporada. Tinha ido a Ubatuba só para um fim de semana e acabara ficando, encantado com Lali. Morava no Rio.
— Você não me convida para ir visitá-la em São Paulo?
— Tudo bem. Você pode aparecer quando quiser.
Sem se dar por vencido com o "entusiasmo" da resposta de Lali, ele disse que iria mesmo, assim que pudesse.
Em casa, quatro cartas de Eduardo que Lali não abriu. Durante a semana chegaram mais duas que tiveram o mesmo destino.
Depois, mais uma, bem volumosa. Depois, nada. Ele silenciou.
Melhor assim. Tudo acabaria no silêncio, no vazio. Sem brigas, pelo menos. . .
Certa tarde de sábado, fazia um calor inusitado em São Paulo e Lali aproveitava a piscina com os sobrinhos, quando a mãe avisou:
— É melhor você mudar de roupa. Temos visitas.
— Não... Será que eu preciso aparecer? Você e as meninas não podem fazer sala?
— Acontece que a visita é para você. Um amigo seu. "Roberto. Afinal, ele tinha vindo mesmo", pensou a garota.
— Está bem, mamãe. Diga ao Roberto que eu já vou.
— Não é Roberto nenhum. É o neto da prima Carlota, lá de Santa Rita. Não se lembra dele?
— Eu nem conheço! Ele estava fora quando fomos à fazenda.
— Mas o Dinho perguntou por você. Parece muito ansioso para te ver. . .
— Que coisa mais estranha. . .
De repente Lali ficou nervosa. Com certeza o Dinho soubera do caso... O Eduardo tinha falado nela. Pedira ao rapaz que levasse um recado. . . Que situação desagradável!
— Vamos, filha — insistiu a mãe. — Não deixe o rapaz esperando muito.
Lali subiu e mudou de roupa. Pôs um leve vestido branco que a deixava com a aparência de uma garota de quinze anos. De cabelos soltos e úmidos, sem pintura, corada, estava muito bonita. E muito infeliz porque o seu triste segredo fora descoberto.
Ao se aproximar da sala, viu um rapaz alto de pé junto à lareira. Seu pai conversava animadamente com ele.
Assim de longe o Dinho se parecia com o Edu! Engraçado como todos os rapazes se pareciam com ele! Na praia, várias vezes ela tivera essa doce-amarga impressão. Edu não saía do seu pensamento.
O pai se virou e viu Lali.
— Filha, venha cumprimentar o Dinho. Fazia anos que eu não via esse garoto e. . .
Interrompeu-se olhando espantado para Lali e Edu!
Era muito diferente a atitude daqueles dois. Ele, transbordante de alegria, ela, rígida e séria.
Lali pensava rapidamente na maior confusão. Dinho? Edu? Seriam gêmeos? Que loucura! O fiscal e o neto da prima Carlota nem sequer eram parentes. . .
Continuava olhando, atuardida, para o rapaz que a cumprimentava calorosamente.
Finalmente, ela recuperou a voz:
— Tudo bem? D. Carlota está boa? (E com a maior frieza do mundo) E sua esposa?
— Que esposa, Lali? Que novidade é essa?
Dinho, ou Edu, estava com uma cara cômica de tão admirada.
O pai de Lali também estranhou a pergunta.
— Você está distraída, menina. Deve ter tomado muito sol. O Dinho ainda não se casou, é claro. A prima Carlota não deixaria de nos convidar. Imagine se ela ia esquecer os compadres. . .
Compadres? Lali não entendia nada mesmo.
Outra vez o telefone ajudou. O pai de Lali foi atender e ela se viu sozinha com o rapaz.
— Que aconteceu, querida? Pensei que você estivesse doente, zangada comigo, que tivesse fugido de mim. Não recebeu uma porção de cartas?
Segurando a mão de Lali, Edu (ou Dinho) fazia essas perguntas com um ar tão terno que o coração da garota se apertou. Como brigar, terminar tudo? Assim não era possível. . .
— Precisamos conversar com calma porque não estou entendendo nada. Papai chama você de Dinho, diz que a prima Carlota é comadre dele. . . Afinal, o que significa tudo isso? Pensei que você fosse o administrador da fazenda.
Ele riu, deliciado.
— Não. . . você gostou de mim pensando que eu fosse o Eduardo Sancho?
— O administrador também se chama Eduardo?
— Pois é. Mas ninguém faz confusão porque o apelido dele é Edu, o meu é Dinho.
— Dinho nunca foi apelido de Eduardo.
— No meu caso, é. Você não conhece direito a vovó. Quando eu era pequeno ela me chamava de Eduardinho. Mais crescido, reclamei e ela passou a me chamar de Dinho.
"Céus", pensava Lali. "O seu Edu não era casado, não tinha filho nenhum. E certamente, não bebia. Era bom demais para ser verdade..."
Mas continuou séria, querendo esclarecer tudo.
— No dia em que visitamos a Santo Antônio, a prima Carlota disse que o neto tinha saído e que era para eu falar com o fiscal, se quisesse alguma coisa. Aí, você entrou na sala, disse que estava ajudando o Seu João, o que é que eu podia pensar?
Sorriu, meio encabulada e continuou recordando.
— Eu estava impressionada com aquela casa antiga, aquele pessoal de outros tempos. E, de repente, tive a impressão de que o retrato do tio Arlindo se movia. . . Era você chegando. . .
— Eu percebi que você estava assustada. Fiz uma entrada sensacional, não foi?
— Só. . . Pensei que fosse um fantasma, nem sei o quê... E você falando em Dona Carlota, Seu João. Quem não faria confusão?
— Edu deu risada, feliz.
— É um costume que tenho desde criança. Quando vovó ficava zangada e me dava uma bronca, eu a chamava de Dona Carlota! "Está bem, Dona Carlota, não faço mais isso, Dona Carlota, me perdoa, Dona Carlotinha!"
Ela achava graça e ficava desarmada. Daí, passei a chamar papai de Seu João, sempre. A gente gostava dessa brincadeira. E você não se enganou completamente, porque naquele dia eu era de fato o administrador da Santo Antônio por causa de problemas com o Sancho.
— O outro Eduardo? O que aconteceu com ele?
— Infelizmente tivemos de despedi-lo. Ele bebia muito, não trabalhava, só criava casos. Seu João conseguiu interná-lo numa clínica e a família vai ficar na fazenda até ele se recuperar.
— Espere um pouco. . . naquela tarde, quando você nos levou de volta para a cidade, vi que estava saindo de uma casa e parecia muito zangado. Era a casa do fiscal?
— Isso mesmo. Ele estava pior do que nunca: bateu na mulher, assustou as crianças, um problema sério. Que família infeliz! Mas, falando de nós, meu bem, infeliz fiquei eu com o seu silêncio. E muito preocupado. Telefonei, você estava viajando. Sem me avisar, nem nada! Pensei que estivesse namorando outro... Duvidei de você. Você me perdoa, querida, será que pode me perdoar?
— Lali o abraçou com força, escondendo o rosto no ombro do rapaz. Ela é que precisava de perdão por causa de suas dúvidas. Devia saber que o seu Edu não seria capaz de enganar ninguém.
Explicou, carinhosamente:
— Eu viajei mesmo. Precisava de tempo, de distância para pensar em nós. Tinha que saber se o que eu sentia era um entusiasmo passageiro ou alguma coisa maior.
Não estava contando a verdade inteira para não magoar o rapaz. Não falaria de seu sofrimento.
— E, além disso. . .
Ele estava impaciente demais. Interrompeu:
— Mas o que foi que descobriu sobre nós. Diga logo.
— Calma. . . Além disso, havia um problema muito sério. Dóris fez confusão de nomes e pessoas e me deu uma notícia terrível: o nosso amigo Edu (ou Ed, como ela dizia) era casado, tinha três filhos e bebia muito. O que mais me perturbou foi o fato de você não ter me contado a verdade. Daí, achei melhor me afastar até ficar mais calma.
— Oh, Lali. Como é que eu podia imaginar! E como pôde duvidar de mim, me julgar tão, tão. . . cafajeste?
— Quando a gente ama, não raciocina direito.
— O quê? Repita isso, por favor. Você tem certeza? Quando a gente ama. . . Foi isso que descobriu durante a viagem?
— Você não sabe? Não tinha percebido desde o começo? Então não sou tão transparente como dizem. . .
— Oh, Lali! Será mesmo o que estou pensando, desejando tanto? Diga de novo: o que você sente por mim?
— Tenho certeza de que é amor.
— Oh, Lali!
Eduardo, sempre tão desembaraçado e seguro de si, parecia incapaz de dizer mais do que isso. Esse "Oh, Lali!" ele repetiu uma porção de vezes, no auge da felicidade.
Ficou para jantar e os dois namorados finalmente contaram sua história para a família reunida.
Tia Tetê estava muito alegre e entusiasmada (esperava ser madrinha de casamento...) e disse que Eduardo parecia um príncipe de verdade.
Uma das irmãs de Lali suspirou:
— Essa história parece um romance de Madame Delly. . . A irmã mais velha não se conteve:
— Que Madame Delly, Claudinha. Isso não existe.
— Como não? Não me diga que não leu os livros que eram da vovó! Onde é que eles foram parar, mamãe? Quero mostrar se existem ou não os livros de Madame Delly.
Sabrina explicou com paciência:
— Eu sei que esses livros existem, acho que são mais de cem. Acontece que muita gente se engana pensando que o M. quer dizer Madame. Porque não Mademoiselle ou Monsieur? Não, cismaram com Madame. . . Na verdade, os livros foram escritos por dois irmãos, Marie e Frédéric Petijean de La Rosière. Vai ver que o M. era de Marie, já que ela escreveu a maior parte da obra.
— Você não está inventando tudo isso, Sabrina? — indagou Cláudia, desconfiada.
— Quem sou eu para inventar tanto? Minha imaginação não é tão grande assim. Se fosse, eu ia ser escritora. Assinaria assim: S. Sampaio e todo mundo ia falar dos livros do Senhor Sampaio. Fique sabendo que li uma reportagem sobre Delly. A vida dos dois irmãos daria um romance. Recortei e guardei o artigo, é só você ler.
Márcia voltou à história, para ela mais interessante, de sua filha e Eduardo.
— Acho incrível a confusão que Dóris e Lali fizeram. Você nunca reparou no nome que vinha nas cartas, Lali?
— Claro que sim. Eduardo F. Diniz. Nunca pensei que o F fosse de Frazão.
— Uma confusão muito natural — explicou Edu. — Lali não conhecia bem a gente, como ia entender? Frazão é o nome da família da vovó. Ela passou a vida inteira na fazenda, era conhecida de todo mundo. O pessoal se acostumou a dizer: a família Frazão, a fazenda dos Frazão, esquecendo que o nome do vovô era Diniz. No começo ele ficava aborrecido, depois achava graça. Comentava que parecia marido de artista e que estava perdendo sua identidade.
— O jantar foi alegre, demorado. Depois do café ficaram um bom tempo ao redor da mesa, como Lali gostava, prolongando o mais possível aqueles momentos felizes.
Combinaram entre eles que ficariam noivos logo. O casamento podia esperar. Lali ainda era muito nova, tinha muito estudo pela frente.
Eduardo contou que Dona Carlota, animadíssima, já estava fazendo planos. Ela gostaria que o casamento fosse na fazenda, se Lali concordasse. Tinha feito uma promessa. Pedira ao Santo Antônio de sua devoção uma boa esposa para o seu querido Dinho. O santo tinha caprichado. . . Era sua obrigação agradecer, pagar a promessa, festejar bastante.
Lali achou ótimo. Estava radiante, mas de repente, ficou muito calada.
— O que é agora, meu bem? Está querendo me trocar pelo fiscal?
— Estava pensando que há muitas coisas que ainda não entendi direito. Meu pai disse que é compadre da prima Carlota. Por quê?
— Muito simples: ele e sua mãe batizaram meu irmão Joel.
— Outra dúvida: você sabia quem eu era quando me viu pela primeira vez?
— Imaginava. Dona Carlota ficou no maior assanhamento quando soube que ia chegar uma sobrinha de D. Haydée, a que se parecia com Lalinha. E não parava de me atormentar, de me forçar a procurá-la.
— Forçar?! Quer dizer que você não queria?
— Não é isso. Estava curioso e interessado, mas primeiro queria ver como você era. Tinha medo de uma decepção. Podia ser uma moça linda, mas convencida e antipática, sei lá. . . Por isso, fingi que saí da sede — como vovó disse a vocês — voltei e fiquei observando, como tio Arlindo fazia.
— Seu fingido. E daí?
— O resto você sabe. Cheguei, vi. . .e gostei. Se não tivesse gostado, nada, nem ninguém, me obrigaria a procurar você.
— Pois é. Foi chegando, muito à vontade, apressadinho, dando ordens para a Dalva. . . E nem assim eu desconfiei!
— O que eu acho ótimo. Prova que gostou de mim sem nenhum interesse. Não foi pela amizade de nossas famílias, nem por eu ser um dos melhores partidos do Brasil, não, do mundo, na opinião sensata de D. Carlota e de D. Tetê. Foi única e exclusivamente pelo meu encanto pessoal. Paixão fulminante, à primeira vista! Não foi, Lali?
Quando conseguiu parar de rir, Lali perguntou:
— Você reparou que fomos praticamente "apresentados" pelo tio Arlindo?
— Pensei nisso muitas vezes.
— E não acha que somos muito românticos para quem está pertinho do século XXI?
— Acho. E isso é ruim, meu amor?
Teresa Noronha
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