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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REVELADA / C.C. Hunter
REVELADA / C.C. Hunter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O barulho da porta rangendo ao se abrir preencheu o espaço minúsculo. Antes que Della Tsang ouvisse passos, o cheiro invadiu seu nariz. Outro vampiro. Mas não qualquer vampiro...
Ele.
Chase Tallman. O cara com quem ela lamentava ter uma ligação. Que tinha lhe doado seu sangue para garantir que sobrevivesse a uma rara segunda transformação, e que fizera dela uma Renascida — uma vampira muito mais forte e capaz de ver fantasmas. Não que tivesse pedido por isso ou desejado... principalmente a parte de ver fantasmas.
Os passos dele o levaram até o pequeno cômodo do tamanho de um armário. A porta rangeu de novo ao se fechar. O coração de Della martelava contra o peito.
Ela tinha ido até o inferno à procura dele. Tinha até viajado à França para encontrá-lo e voltara de mãos vazias.
E agora ele simplesmente aparecia.
Ali.
No banheiro feminino da lanchonete Whataburger.

 

 

 

 

 

 

A porta do cubículo ao lado dela se abriu e se fechou. Com certeza ele não iria... Ele não se atreveria a... Ouviu o barulho de alguém pisando sobre a tampa do vaso sanitário.

Ele se atreveu.

Ela olhou para cima. Ele olhou para ela por sobre a parede do cubículo. O cabelo castanho-escuro parecia um pouco mais comprido. Os olhos verdes brilhantes faiscavam de bom humor.

— Mas olha que surpresa encontrar você aqui! — Ele sorriu, sem dúvida ao ver a posição dela — joelhos dobrados, travados no ar, o traseiro suspenso a cinco centímetros do vaso sanitário, o jeans no meio das coxas. Graças a Deus a blusa azul-clara era longa o suficiente para cobrir suas partes íntimas.

Ela puxou o jeans com tudo e fechou o zíper. Sem nunca tirar os olhos de Chase, mas desejando que as mãos estivessem ao seu alcance. Os dedos cravados em torno do seu pescoço. Ele não estaria com aquele sorrisinho idiota na cara agora.

— Não vai nem usar papel higiênico? — ele caçoou.

Ele achava aquilo engraçado? Sério? O cara estava pedindo pra morrer? Será que não tinha a menor ideia de quanto a falsidade dele a magoara?

Se ela não precisasse tanto de informações, já teria acabado com a raça desse vampiro. E de um jeito bem lento e doloroso.

Mas ela precisava descobrir algumas coisas, precisava encontrar o tio dela, o homem que tinha matado a tia e estava deixando que o pai dela fosse acusado do assassinato. E Chase tinha essa informação. Desde o início, e mentira a respeito.

Pouco tempo antes, ela tinha descoberto a verdade. O homem que Chase chamava de Eddie, que o adotara quando ele tinha 14 anos e o ajudara em sua primeira transformação, ligando-se a ele na segunda, era tio de Della.

Quem mandou você?, ela tinha perguntado a Chase mais de mil vezes. E mais de mil vezes ele tinha mentido.

Por mais que odiasse admitir, ela entendia a lealdade de Chase por esse homem. Eddie não só era como um pai para ele, mas Della sabia melhor do que ninguém como um vínculo de sangue entre vampiros podia mexer com a cabeça e as emoções de uma pessoa. Mas a lealdade de Chase pelo seu tio significava que ele tinha sido desleal com ela. Ele tinha feito essa escolha. E ela não se perdoaria se deixasse o próprio pai ir para a prisão pelos pecados do tio.

Disparando para fora do cubículo ao mesmo tempo que Chase, ela encurralou num canto aquele vampiro cínico de um metro e oitenta de altura. Seu sangue corria com fúria nas veias.

Ele estendeu as palmas das mãos para cima, os ombros tensos, mas os olhos sem demonstrar um pingo de medo. Muito pelo contrário, as duas pupilas verde-claras ainda tinham um ar de provocação. Ah, como ela queria dar uma lição naquele palhaço! Della se inclinou para a frente, quase encostando o nariz no dele, para que soubesse que ela não se sentia nem um pouquinho intimidada.

Uma estratégia da qual se arrependeu no mesmo instante. Aquela proximidade, o perfume masculino em torno dela, a atração, o jeito sedutor... tudo aquilo pelo que ela culpava a ligação entre eles, tiravam sua sanidade. Ela lutou contra tudo isso. Não queria!

— O que está te deixando com esse arzinho tão feliz? — ela grunhiu.

— Você! — ele ousou dizer. — Estar perto de você me deixa feliz.

Ela encostou a palma da mão no peito dele, pronta para lhe dar um bom empurrão contra a parede.

— Espere! — ele pediu.

— Por que eu deveria? — ela sibilou.

Os lábios dele se abriram num sorriso ainda maior. Ele apontou para a parede atrás de si.

— A placa diz que você precisa lavar as mãos primeiro.

Aquela foi a gota-d’água. Os caninos dela se projetaram. Os olhos arderam, um sinal claro de que suas íris castanhas, herança do pai oriental, já estavam faiscando de fúria.

— Eu não sou funcionária da lanchonete. — Ela o fulminou com os olhos. A deslealdade dele era uma farpa em seu coração. — Onde está Feng, meu tio?

O ar brincalhão desapareceu do rosto dele e ela foi capaz de jurar que uma sombra de culpa obscureceu os olhos verdes.

— Eu ia te contar.

— Claro que ia.

— Eu não ia... — Ele parou de falar, como se as palavras não parecessem adequadas. Levou cerca de dois segundos para ela perceber o que ele estava a ponto de falar.

— Não ia o quê? Mentir pra mim? Tudo o que você fez até agora foi mentir pra mim.

— Della? — Ela mal registrou seu nome sendo chamado da porta. O fato de estar com as presas projetadas e os olhos incandescentes nem chegou a preocupá-la. Ou melhor, quando ela reparou nisso, já era tarde demais. A porta do banheiro se abriu com tudo.

Chase, numa manobra rápida, trocou de lugar com ela e usou seu braço para esconder o rosto de Della do olhar de Lilly. No entanto, a maneira como ele se inclinou mais para perto, a mão na parede, os lábios a centímetros dos dela, deu a impressão de que estavam trocando beijos — e muita saliva — no banheiro. Ah, sim, como se isso fosse algo que ela de fato fizesse. Todo mundo sabia quantos germes podia se encontrar em banheiros públicos.

— O que...? Della? — deixou escapar Lilly, sua ex-amiga humana, como se estivesse chocada. A garota ficou na ponta dos pés para ver sobre o ombro de Chase.

— É... você?

Della olhou para o lado e escondeu os olhos faiscantes e os caninos projetados.

— Sim.

— Ah, meu Deus! — disse Lilly. — E quem é... você?

Sem dúvida, a pergunta agora era dirigida a Chase. Della não olhou para ver a expressão dele, mas sabia que o vampiro já deveria ter jogado sobre a garota todo o seu charme: um sorriso irresistível e olhos inocentes de um bom menino.

— Um amigo. — A voz dele ainda estava cheia de provocação.

— Estou vendo, um amigo e tanto! — disse Lilly em tom brincalhão. — Você é o famoso Steve?

Os ombros de Chase ficaram tensos. Seu olhar saltou para a Della, o humor em seus olhos desaparecendo e se transformando em mágoa, talvez até mesmo ciúme.

Não que ele tivesse direito de sentir isso.

Della forçou suas presas para dentro e tentou acalmar a vampira dentro dela.

— Não, é só alguém que eu conheço de Shadow Falls.

Sentindo-se mais sob controle, ela cutucou Chase para que ele se afastasse, dando a ela um espaço de alguns centímetros, mas não mais do que isso. Não havia espaço suficiente para ele se afastar mais. Ela se concentrou em Lilly e fez um gesto para Chase.

— Precisamos conversar. Você pode nos dar...

— Não — disse Chase. — Eu só vim dizer oi. Passo na sua cabana mais tarde.

— Não! — Ela lhe lançou um olhar frio. Ele não ia fugir. Della agarrou o braço dele, os dedos se fechando em torno do bíceps. — Prefiro conversar agora. — Ela estampou um sorriso no rosto por causa de Lilly.

— Não seja boba. Hoje é dia do seu clube da Luluzinha. — Ele se soltou com delicadeza dos dedos dela, sem ter de fazer o menor esforço.

Então, antes que percebesse a intenção dele, Chase plantou um beijo rápido em seus lábios. A língua deslizando pelo lábio inferior, enfraquecendo seus joelhos. Aquele gostinho... Aquele beijo rápido tirou o fôlego dela. Fez seu corpo arrepiar. Seu coração ansiar. E ela odiou sua própria fraqueza.

Della respirou fundo, lutando contra a ligação entre eles e, ao mesmo tempo, resistindo ao desejo de despejar toda a sua fúria em cima dele outra vez. Mas antes que pudesse prever o seu próximo movimento, Chase já tinha cruzado a porta e desaparecido.

Lilly, em quem Della não pensava fazia mais de um ano, encostou-se na parede, chocada diante da saída superveloz de Chase.

— Uau, ele é rápido! — Então ela riu e balançou o dedo para Della. — Ora, ora, senhorita Tsang. Quer dizer então que está de segredinhos!

Você nem imagina!, Della quis gritar. O primeiro segredo era mesmo de arrasar. Della não era mais humana. Daí a razão de morar em Shadow Falls, um internato para seres sobrenaturais. Se não fossem os problemas em casa, ela ainda estaria na escola — com os amigos que a compreendiam e não a julgavam por entornar um copo de sangue de vez em quando.

Ela nem sequer entendia por que Lilly tinha aparecido aquela noite. Se sua mãe não tivesse ouvido o convite da garota e insistido para Della ir, ela não estaria naquela festa regada a cerveja. Mas como a família dela não conhecia seus segredos, era meio difícil explicar por que não podia manter as antigas amizades.

— Não, não tenho segredo nenhum — Della mentiu. — Não é o que pareceu. Ele é só... um cara.

— Ele não parecia só um cara.

— As aparências enganam. — Della foi andando em direção à porta. Atravessou o corredor e respirou fundo para ver se ainda conseguia sentir o cheiro de Chase. Soltou um profundo suspiro. Apenas o cheiro de hambúrgueres e batata frita impregnava o ar. Ainda assim, percorreu o lugar com os olhos, na esperança de ainda vê-lo por perto. Nada.

Chase tinha ido embora. Por que diabos ela o deixara escapar? A resposta esbarrou em suas costas. Literalmente. Lilly. Se Della tivesse usado sua força para detê-lo, a amiga de outros tempos teria se assustado. E depois poderia ter contado aos pais de Della. E com toda aquela confusão acontecendo por causa do pai sendo acusado de assassinato, a última coisa que ela queria era dar a eles mais um motivo para não dormirem à noite.

Ela se virou para Lilly, mas ouviu alguém chamando seu nome.

— Della Tsang?

Della se virou e viu a senhora Chi se aproximando. Ela era uma vizinha idosa que tinha de uma pequena joalheria junto com o marido, a apenas algumas quadras da casa de Della.

— Eu não vejo você há uma eternidade, mocinha!

— Olá! — cumprimentou Della, notando o olhar da vizinha sobre Lilly. — Esta é minha amiga Lilly Shay.

— Como vai? — disse a senhora Chi. Lilly apenas acenou com a cabeça. Mal tinha olhado a mulher nos olhos e já estava tirando o celular do bolso. Será que a mãe dela não tinha lhe ensinado boas maneiras?

— Como vai Chester? — perguntou Della. Antes de passar a morar em Shadow Falls, ela cuidava do gato dos vizinhos quando saíam de férias.

— O mesmo de sempre. Me trouxe um rato morto ontem. Chamei a dedetizadora e disseram que não encontraram nenhum rato na minha casa ou na loja. Onde é que esse gato vai pegar ratos?

— Ele dá suas voltinhas por aí — disse Della, lembrando-se de que tinha visto o gato bisbilhotando o barracão de ferramentas do pai alguns dias antes, quando ela tinha ido, tarde da noite, até um bar de sobrenaturais em busca de sangue.

A senhora Chi deu um tapinha no braço de Della.

— Vou comprar um hambúrguer para Bojing. Ele está na loja... fechando o caixa. — Ela olhou para Lilly. — Muito boa noite. E tenham cuidado. É perigoso duas meninas andando sozinhas por aí. O bairro não é tão seguro quanto costumava ser.

— Pode deixar. — Della observou enquanto a anciã seguia em direção ao balcão da lanchonete. Então estampou no rosto o que esperava ser uma expressão amigável, mas encarou a amiga loira ainda irritada com o seu jeito rude.

— Você já acabou seu hambúrguer?

— Já.

— Então talvez possa me deixar em casa. — Ela não sabia se Chase tinha falado sério sobre conversarem mais tarde ou se poderia acrescentar aquilo à sua lista de mentiras. Devia ser mentira, mas ela precisava estar lá, apenas para o caso de ele aparecer. Não iria deixá-lo escapar desta vez.

— Estamos indo à casa de Susie assistir a um filme.

— Tudo bem. Lamento, mas hoje não vai dar pra mim. Estou naqueles dias. — Ela apertou a parte inferior da barriga. Claro que era outra mentira. Tio Chico já tinha feito sua visitinha aquele mês e ido embora. Mas a Mãe Natureza costumava atormentar as mulheres com a sua provação mensal, e Della descobriu que as garotas malvadas tinham o direito de usá-la como desculpa quando necessário.

Lilly fez uma careta.

— Mas a sua mãe já me... — Ela fechou a boca e até repuxou os lábios como se quisesse engolir as palavras de volta.

— Minha mãe já... o quê? — perguntou Della, sentindo que Lilly tinha os seus próprios segredos.

A menina revirou os olhos verdes e Della lembrou que nunca se importara muito com o que Lilly dizia. Mesmo antes de Shadow Falls, ela e Lilly já tinham se afastado.

— Desembucha! — exigiu Della.

— Sua mãe me pagou para sair com você.

Della ficou ali, mortificada e furiosa ao descobrir que a mãe tinha pagado alguém para ser amiga dela. Della tinha amigos. Tinha as duas melhores amigas do mundo em Shadow Falls.

No momento, não havia nada que quisesse mais do que ir para casa, fazer as malas e voltar para o lugar a que pertencia. Onde não se sentia um monstro.

— Não que eu não quisesse ver você nem nada. Mas não ia recusar vinte pratas.

— Me leva pra casa? — Deixando o cheiro de gordura e carne para trás, Della disparou para fora do restaurante, lutando contra a tentação de voar sozinha para casa. Quando o ar frio do Texas bateu em seu rosto, ela respirou fundo e engoliu as lágrimas que se acumulavam na garganta. Poderia estar dilacerada por dentro, mas nem morta deixaria Lilly saber disso.

Della não abriu mais a boca. Quando o carro parou em frente à sua casa, Lilly olhou para ela. Della precisava reconhecer que a garota parecia arrependida.

— Preciso devolver o dinheiro da sua mãe?

— Não. Fique com ele. — Della saltou do carro e parou diante da porta da frente para escutar. A irmã ia passar a noite na casa de uma amiga. Se tivesse sorte, conseguiria se esgueirar até o andar de cima e evitar um confronto. Ela não ouviu a televisão ligada. Bem devagar, girou a maçaneta e disparou para dentro.

A sala de estar estava vazia, graças a Deus. Chegou à escada e colocou o pé no primeiro degrau quando ouviu os acordes de uma música vindo do escritório do pai. Della se lembrou de quando ficava naquele escritório com ele, jogando xadrez, rindo e arranjando soluções para os problemas do mundo. Ou, pelo menos, para os problemas dela. Para o que quer que estivesse acontecendo em sua vida, seu pai tinha um conselho.

Agora, não havia mais conselhos. Ele mal notava a presença dela. Como fizera todas as noites durante as três semanas em que ela ficara em casa, ele já tinha se trancado no escritório. Perguntou-se se ele se escondia lá dentro para evitá-la. Pensando bem, com uma suspeita de assassinato pairando sobre a cabeça, ele devia estar se escondendo da vida. Aquela manhã ela o ouvira dizer à mãe que não sabia por quanto tempo conseguiria manter o emprego. As pessoas estavam sussurrando pelas suas costas.

Sinto muito, pai. O nó na sua garganta dobrou de tamanho. Era culpa dela. Culpa dela que o caso arquivado de assassinato de sua tia Bao Yu tinha sido reaberto. Culpa dela que o pai estivesse sendo acusado de assassinato, embora fosse inocente.

Sim, o sangue na faca usada para matar a tia era idêntico ao do pai. Apenas um gêmeo univitelino poderia ter o mesmo sangue. Pena que o tio Eddie, seu gêmeo idêntico, já tinha forjado a própria morte. Algo que a maioria dos adolescentes fazia quando virava vampiro. Viver com uma família humana, tentando esconder a sua nova natureza, era quase impossível. Della sabia disso muito bem.

Nesse instante algo lhe ocorreu. Se tivesse feito o mesmo, se ela tivesse forjado a própria morte, ido embora, nada disso teria acontecido. A família não estaria sofrendo agora.

Ela já tinha colocado o pé no segundo degrau quando a mãe enfiou a cabeça pelo vão da porta da cozinha.

— Por que voltou tão cedo?

Não responda. Não responda. Invente qualquer bobagem. Ela abriu a boca, à espera que alguma mentira se formasse, escapasse dos seus lábios, mas a mesma humilhação que sentira antes espicaçou-a outra vez e seu temperamento explosivo levou a melhor sobre ela.

— Acho que você não pagou o suficiente a Lilly. — Della disparou pelas escadas. Desta vez sem conseguir engolir as lágrimas.


Capítulo Dois

Della entrou no quarto e se jogou na cama, sentindo no peito uma grande bola de dor. Ouviu os passos da mãe e quis bater em si mesma, com força, por não manter a boca fechada. A mãe já tinha muito com que se preocupar. Mas, caramba! Ela não sabia quanto aquilo a deixara envergonhada?

— Della? — A mãe abriu a porta.

— Estou cansada, mãe. Quero dormir — disse com a cabeça enfiada no travesseiro, rezando para a voz não falhar.

O colchão curvou-se sob o peso da mãe.

— Ela... contou a você?

Della assentiu.

— Eu... estava tentando ajudar.

Ela sentiu a mão da mãe nas suas costas. Rolou na cama e se sentou de um salto, não querendo que a mãe notasse sua baixa temperatura corporal. Toda vez que a mãe a tocava, Della via preocupação em seus olhos.

— Eu não preciso de ajuda. — Della puxou os joelhos contra o peito e abraçou-os. — E com certeza não preciso que você pague ninguém para ser meu amigo. Eu tenho amigos, muitos, em Shadow Falls.

— Mas você não está naquela escola agora. Não é como se... Eu não fiz... Ela estava me ajudando a carregar as compras de supermercado e eu comentei que devia vir ver você. Eu não tinha troco, então coloquei uma nota de vinte nas mãos dela e disse que ela poderia nos fazer uma visita.

— Esqueça isso, está bem? — pediu Della.

— Talvez se voltasse a se matricular na sua antiga escola, reencontrasse seus velhos amigos, você fosse... mais feliz.

— Não. Eu sou feliz. Assim que as coisas... se ajeitarem aqui, vou voltar para Shadow Falls.

Lágrimas encheram os olhos da mãe.

— Querida, pode ser que demore um bom tempo para que as coisas... se ajeitem. E o julgamento ainda pode demorar meses.

— Ele não vai a julgamento. Eles vão perceber que tudo não passa de um erro e rejeitar as acusações. — Pelo menos de acordo com o que dissera Burnett, um dos proprietários de Shadow Falls e membro da Unidade de Pesquisa de Fallen (UPF), o equivalente sobrenatural do FBI, e o advogado meio bruxo que ele tinha enviado para ajudar na defesa de seu pai.

Lágrimas encheram os olhos da mãe.

— Eu quero acreditar nisso, Della, mas temos que ser realistas.

Realistas? Della viu a dor nos olhos da mãe. A constatação foi um chute no estômago. Não, um chute no coração!

— Ah, meu Deus! Você pensa que ele... — A emoção encheu sua garganta. — Você acha que ele fez aquilo! Acha que papai matou a irmã? Como pode acreditar nisso? Você o conhece melhor do que ninguém.

— Eu não acho... — A mãe dela engoliu em seco. — São simplesmente as provas...

— Eu não dou a mínima para as provas! Papai não fez aquilo.

— Eu acredito que não. — A mãe limpou as lágrimas dos olhos. — Mas, querida, ele não se lembra do que aconteceu. Estava desmaiado. Não consegue nem afirmar a própria inocência.

A temperatura do quarto no mesmo instante começou a cair. E rápido. Só uma coisa poderia deixar o quarto tão frio e com tamanha rapidez. Elas tinham companhia. E do tipo que não respirava mais...

Ele não estava desmaiado!

As palavras soaram na cabeça de Della, mas apenas para que ela as ouvisse. Seus olhos vagaram pelo quarto. Ali, na frente da janela, suspenso no ar, pairava o fantasma da tia. Ela usava o vestido cheio de sangue outra vez. E flutuava no ar como se uma brisa imperceptível a embalasse. Lágrimas escorriam pelas suas bochechas, mas ela parecia mais irritada do que triste. Era a primeira vez que Della a via desde que deixara Shadow Falls.

Deixe minha mãe falar, Della disse mentalmente.

Era a primeira vez que a mãe dizia alguma coisa sobre o caso do pai. Ele nunca falava com Della sobre a acusação de assassinato, então isso era o mais perto que ela conseguiria chegar de ouvir o que o pai pensava a respeito.

— Me conte o que aconteceu, mãe. — Quanto mais Della soubesse, melhores seriam suas chances de ajudar, mas será que a mãe contaria a ela?

A mãe esfregou as mãos nos braços, tentando afugentar o frio.

— Eu não deveria ter dito nada.

— Não! — contestou Della. — Eu mereço saber.

— Querida, seu pai...

— Eu faço parte desta família. Isso está afetando a todos nós. Não podemos continuar guardando segredos.

Uma lágrima caiu dos olhos da mãe.

— Isso é tudo, eu não sei mais nada. — O frio fazia com que vapor saísse de seus lábios. Della esperava que a mãe não visse. — A única coisa que ele me disse foi que acordou com os paramédicos prestando socorro. A irmã dele já estava... morta. Disse que havia sangue por todo lado. Daquele dia em diante ele nunca mais parou de ter pesadelos com aquela cena. Ficou com muito medo que os pais o mandassem a um psiquiatra e o internassem no St. Mary.

— O sanatório? — perguntou Della.

A mãe assentiu.

— Sharron! — o pai chamou.

O olhar da mãe se encheu de culpa. Ela enxugou as lágrimas.

— Já vou, querido! Estou aqui.

Passos soaram na escada. Ele parou no umbral da porta. Seu olhar pousou sobre Della e, como sempre fazia quando a via, ele recuou um pouco. Talvez não fisicamente, mas por dentro. Piscou e suas pupilas dilataram. O que havia nela que lhe causava tanta dor?

— Ah, você está em casa... — A decepção irradiava da voz dele. Os olhos se desviaram para a mãe. — Pensei que ela tivesse saído. — Ele enfiou as mãos nos bolsos.

— Eu voltei. Você estava no seu escritório, então não quis incomodar. — Della esperava que isso soasse normal, mas era difícil na presença de um fantasma com sangue pingando do vestido e um olhar assassino fitando o pai dela.

— Por que está tão frio aqui em cima? — ele perguntou. — Você mexeu no termostato?

— Não, senhor — disse Della.

Ele saiu do quarto. Della ficou sentada ali, sentindo o coração doer e o ambiente gelado à sua volta. Voltando a olhar para o fantasma, Della rezou para que não começasse a nevar. O fantasma já tinha feito aquilo uma vez.

A mãe ficou observando o pai se afastar. Fitou a porta vazia por um segundo antes de se virar para Della outra vez. Alívio e mais culpa enchiam os olhos da mãe. Ela apertou a mão de Della, como uma desculpa silenciosa. Por sorte estava tão frio que as mãos geladas da mãe estavam quase na temperatura do corpo de Della.

Então ela soltou a mão de Della e se levantou. Estava quase na porta quando olhou para trás.

— Eu só quero que você seja feliz, querida.

Ao som dos passos da mãe descendo as escadas, Della olhou de volta para o fantasma furioso, que estava ali de pé, sacudindo a cabeça para ela.

Mentira. É tudo mentira. Ele se lembra. Ele se lembra de tudo!

— Você se lembra? — perguntou Della, sabendo quanto os fantasmas não eram confiáveis. Aparentemente a morte, a violenta em particular, mexia com a psique do espírito, tornando a recuperação da memória e a comunicação mais difíceis.

O suficiente para saber que ele está mentindo, ela disse.

— Você acha que ele a matou? — perguntou Della.

O espírito ficou ali parado, a dor e a decepção estampadas no rosto.

— E se não tiver sido o meu pai, mas o seu irmão Feng?

Ela inclinou a cabeça para o lado como se lembrasse.

Não, Feng já estava... Ele morreu. Num acidente de carro.

Talvez fosse a hora de dizer a verdade à tia.

— Não, ele é um vampiro como eu e sua filha, Natasha. Você me fez encontrar Natasha, lembra? E havia Chan, também. Chan forjou a própria morte para evitar que os pais descobrissem que ele tinha se tornado um vampiro. Assim como Feng.

Os olhos de Bao Yu ficaram vidrados. O olhar, vazio. Será que ela não tinha entendido?

— Conte pra mim. Me diga em detalhes o que aconteceu. — Della preparou-se para ouvir. Quando a tia não falou, Della acrescentou: — Ou me mostre. — Seu peito se apertou com a sugestão. Os fantasmas podiam fazê-la entrar em seus pensamentos e reviver as experiências deles. Um mês antes, o fantasma lhe dera um vislumbre rápido daquela noite. A visão de alguém de pé sobre a tia morta, com uma faca na mão. Alguém que se parecia com o pai dela.

Se ela conseguisse encontrar o tio, Burnett tentaria obter um julgamento sobrenatural para o pai dela. Talvez até mesmo evitar que fosse julgado. Mas eles precisavam de uma prova. Precisavam do tio dela.

— Estou falando sério — disse Della. — Mostre pra mim.

É muito feio.

Della apertou os punhos.

— Na visão que você me mostrou, Feng estava de pé sobre você com uma faca. Foi ele que matou você? Pense, Bao Yu. Pense.

Não. Feng, ele... ele não tinha a... Chao, ele... O espírito fechou os olhos, como se estivesse revivendo a visão. Não foi Feng. Foi Chao.

A aparição se dissipou no ar.

Sumiu.

Della murmurou palavras que a mãe a repreenderia por dizer. Então, com a audição de vampiro, ouviu os pais conversando aos sussurros no andar de baixo. Embora não fosse muito educado, ela pulou da cama e foi até o corredor para ver o que conseguia ouvir. Suas três semanas ali não tinham lhe rendido nada, nenhuma nova informação. Como iria ajudar a desvendar o mistério se os pais não confiavam nela?

— Por quê? — perguntava a mãe ao pai. A voz dela era um mero sussurro, mas seu tom era tenso, cheio de angústia. — Por que você a trata desse jeito?

A respiração de Della ficou suspensa.

— Assim como? — rebateu o pai com rispidez. — Só perguntei se tinha mexido no termostato.

— Não foi o que você perguntou, foi o modo como fez isso. Você não ouviu a resposta dela? “Não, senhor”, como se você fosse um general. É como se tudo que você dissesse a ela fosse uma acusação. Ela é nossa filha! Você não a ama?

Della engoliu o nó de dor preso na garganta.

Ela esperou pela resposta do pai, com medo do que ouviria.

— Ela simplesmente não é...

— Não é o quê? — perguntou a mãe.

— Ela mudou. Não é a mesma pessoa.

Mudou? Della encostou-se à parede. Ah, droga, pode apostar que sim, ela de fato tinha mudado. Tinha se tornado uma vampira, mas ele não sabia disso. E de maneira nenhuma ela poderia contar.

— É claro que mudou. Já é uma moça.

— Não, é mais do que isso. E eu não fiz nada errado — o pai rebateu. — Já tem muita coisa acontecendo para que eu me preocupe com... isso. E não entendo por que ela está aqui. Isso só deixa as coisas mais difíceis. Mande-a de volta.

Della colocou a palma da mão sobre a boca. Lágrimas, mais quentes do que a pele dela, rolaram pelo dorso da sua mão.

— Ela está aqui porque te ama! — acusou a mãe. — Você não consegue ver isso?

Soaram passos e a porta do escritório bateu com estrondo.

Della deslizou pela parede do corredor, abraçou os joelhos e ficou sentada ali, dando total vazão às lágrimas. Ela tinha ido para casa porque Marla, sua irmã, havia pedido. Agora Della se perguntava: não seria melhor para todos se ela voltasse para Shadow Falls?

Quantas vezes ainda teria que lembrar? Não pertencia mais àquela família.

Della se levantou, voltou para o quarto e pegou o celular. Procurou o nome de alguém com quem sabia que podia contar. Alguém que estava se tornando mais um pai para ela do que o homem no andar de baixo.

Ela ligou para Burnett.


Capítulo Três

Chase Tallman estava parado do lado de fora da entrada da casa de Della, as mãos apertadas em punhos. A raiva queimando nos olhos. Alguém precisava dar uma lição naquele homem e Chase teria o maior prazer em se apresentar para a tarefa. Será que ele não via quanto estava ferindo a própria filha? O fato de não saber que Della estava ouvindo a conversa não era desculpa.

Chase podia sentir a tristeza de Della. Sentir o nó dentro do peito dela.

Os pais deveriam amá-la incondicionalmente. Os pais dele tinham feito isso. Ele nunca duvidara. Della merecia esse amor também, caramba!

Chase havia aterrissado no telhado da casa, perto da janela de Della. Ela não estava em seu quarto, mas então ele a viu do lado de fora, no corredor, os ombros caídos numa postura de derrota. Della Tsang não suportava a derrota. Atrás daquele ar durão havia vulnerabilidade, mas ela quase nunca entregava os pontos. O que tinha acontecido?

Ele saltou do telhado e ficou ao lado da porta, ouvindo as palavras impiedosas de Chao Tsang. Cada uma delas.

Talvez Feng Tsang, ou Eddie Falkner, como Chase chamava o homem que o criara depois da morte de seus pais, estivesse errado. Talvez Chao de fato tivesse matado a irmã. Pelo bem de Della, ele esperava que não, mas naquele momento Chase não tinha uma opinião muito boa sobre o pai dela.

Ele voou de volta para o telhado, querendo consolar Della. O gosto dela, aquele beijo rápido que ele tinha roubado, ainda permanecia em sua língua e ele ansiava por mais. Mas tudo o que queria agora era abraçá-la. Consolá-la.

Agora ela estava de costas para a janela, o celular no ouvido e obviamente distraída, ou teria percebido a presença dele ali.

Ele inclinou a cabeça para ouvir com quem ela estava falando. Com uma distância de alguns metros e uma vidraça separando-os, tudo o que ele podia dizer era que a voz era de um homem.

Sua memória voltou para Lilly confundindo-o com Steve. Aquilo tinha doído. Será que Della havia ligado para Steve em busca de consolo?

— Eu preciso voltar para Shadow Falls. Você pode ligar para o meu pai e dizer que estou com notas muito ruins?

Então era Burnett ao telefone.

Ela fez uma pausa, depois voltou a falar.

— Eu não me importo. Invente alguma coisa. Ele vai concordar. — Os ombros dela ficaram mais tensos. — Não, ele vai. Ele não me quer aqui. — Ela prendeu a respiração. A tristeza transpareceu em sua voz. — Amanhã está ótimo.

Chase soltou o ar com frustração e fúria. Fúria contra o pai dela por ser um filho da mãe e frustração porque... Chase não a queria de volta em Shadow Falls.

Por causa da desconfiança com que Burnett olhava para ele, se Della voltasse, seria quase impossível vê-la. Aquelas últimas três semanas longe dela já tinham sido um inferno. Naquele momento, então, a necessidade que sentia de ficar perto dela obrigou-o a aceitar o que tinha que fazer.

Aquilo mudaria tudo, mas era o mais recomendável. E ele já teria feito, se Burnett não tivesse estragado tudo.

Chase pensou em abrir a vidraça e contar a ela sobre os planos dele, mas se lembrou da raiva que ela estava sentindo. Della iria tentar impedi-lo. Ele não podia deixar que isso acontecesse.

Sabendo que Della acabaria por ouvi-lo ou sentir o seu cheiro a qualquer momento, ele desenhou um coração com o dedo na janela embaçada e foi embora.

Tinha se afastado menos de um quilômetro quando sentiu o odor de lobisomens... e sangue. Mergulhou no mesmo instante, o cheiro ainda mais forte. Felizmente, o sangue era animal. Ele voltou a ganhar altitude e foi cuidar dos seus assuntos particulares.

— O que aconteceu? — perguntou Burnett.

Della segurou o celular com mais força.

— Nada.

— Della?

Tudo bem, era mentira. Mas talvez não. Às vezes, “nada” só significava que doía muito dizer aquilo em voz alta. Ela ouviu um estalo do lado de fora e se virou.

— Só um minuto! — Disparou até a janela e ergueu o nariz. O cheiro de Chase era perceptível. Então viu o coração desenhado na vidraça.

— Droga! — murmurou.

— O que foi? — perguntou Burnett.

Ela não sabia por quê, mas não estava pronta para contar a Burnett sobre Chase. Constrangimento, com certeza, por ela ter deixado que ele fugisse. Não que ela quisesse proteger Chase.

Ela não devia nada a ele.

Mais tarde contaria a Burnett. Com sorte, depois que conseguisse arrancar alguma informação de Chase e descobrir o paradeiro do tio.

— Pensei ter ouvido alguém. — Ela se debruçou no parapeito da janela e perscrutou o céu.

— E então? — perguntou Burnett.

— Não há ninguém aqui.

— Quando foi a última vez que você se alimentou? — Burnett perguntou, com certeza achando que ela não estava em sua melhor forma. E ele talvez estivesse certo. Ela tinha deixado Chase fugir. Não uma, mas duas vezes.

— Quando? — ele repetiu.

Ela sabia que ele não iria contar as duas mordidas no hambúrguer e as três batatas fritas que ela tinha comido no restaurante. Não, ele se referia a sangue.

— Terça-feira. — Ela tinha ido ao bar atrás de sangue.

— Você pode sair de casa à noite? Vou encontrá-la no parque ao lado da sua casa e levo um pouco de sangue.

Ela odiava que ele sentisse que devia cuidar dela.

— Eu posso esperar até voltar para Shadow Falls.

— Não, não é saudável!

— Talvez eu vá até o bar. — Ela não iria, mas Burnett não precisava saber disso.

— Não, não vá ao bar esta noite. É quase lua cheia. Os lobisomens estarão por aí e o bar sobrenatural é o primeiro lugar em que vão. Encontro você no parque ao lado da sua casa.

O estômago de Della roncou quando ela pensou no sangue, provando que Burnet estava certo. Ela precisava se alimentar. Mas algo sobre voltar a morar na sua casa tinha feito com que ignorasse a fome, como se ficar sem sangue fosse ajudá-la de alguma forma a se entrosar mais com a família. Torná-la mais humana. Droga! Ela era patética!

Seu olhar recaiu sobre o coração desenhado na vidraça e ela se lembrou da outra razão por que não podia sair. E se Chase aparecesse de novo?

— Eu acho mesmo que posso esperar. Por que não...

— Della. — O tom de voz dele era sério. Um tom que lhe dizia que qualquer argumento seria inútil.

— Tudo bem. Mas vai ter que ser mais tarde, quando os meus pais forem para a cama.

Talvez até lá Chase já tivesse voltado, ou ela o teria encontrado.

— Eu envio uma mensagem com os detalhes lá pela meia-noite. — Ele desligou.

Della recolocou o celular no bolso de trás da calça e contemplou a noite, sentindo-se solitária.

A lua, quase cheia, pairava no céu escuro. Seus instintos lhe diziam para dar mais crédito à cautela de Burnett. Os lobisomens estavam ganhando força com o brilho lunar agora.

Embora ela já não odiasse a espécie como um todo, sua condição de vampira nunca a deixaria confiar em vira-latas perambulando pela noite. Poderia topar com um delinquente.

Mas não era um lobisomem que a preocupava agora ou que a fazia sentir um vazio no peito. Não, os responsáveis por isso eram seu pai e um vampiro mentiroso e conivente.

Onde está você, Chase? Que tipo de joguinho está fazendo agora?

Por que ele vinha e depois desaparecia? Por que parecia tão feliz ao vê-la? Ele sabia que seu tio havia matado a tia dela? Será que sabia que ela, Burnett e a UPF estavam à procura do homem? O mesmo homem que tinha ajudado Chase a sobreviver como um Renascido. Será que Chase o estava protegendo?

Ele tinha que estar, não é? Por que outro motivo teria desaparecido de repente depois que ela lhe mandara uma mensagem com a foto dele com o tio?

Ela pressionou a testa contra o vidro frio, lembrando-se do beijo breve, e lutou contra as emoções contraditórias que surgiam sempre que ela se permitia pensar em Chase. Sentimentos que ela gastava muita energia negando, mas que, em breves momentos como aquele, não conseguia refutar.

A maldita ligação sanguínea a deixava emocionalmente presa a ele. Não que isso mudasse alguma coisa.

Será que Chase não era esperto o suficiente para perceber que, por mais que sentisse alguma coisa por ele, se tivesse que escolher entre o pai e ele, o pai levaria a melhor? Seria quase como arrancar seu coração. Mas quem precisava de um coração? A droga do órgão só estava lhe causando problemas!

Chase entrou numa casa daqueles bairros de classe média do subúrbio de Houston. Eddie a alugara pouco tempo antes, usando o nome Jacob Mackey. Ele tinha ficado um mês afastado do seu cargo de cientista pesquisador — um trabalho que o Conselho dos Vampiros tinha lhe propiciado. O cargo tinha salvado não só a sua própria pele, mas a de Chase e Della, e daqueles cerca de vinte outros vampiros que tinham passado pela fase de renascimento nos últimos cinco anos. Eddie era o médico e cientista que descobrira o tratamento da transfusão, além de muitos outros procedimentos que tinham ajudado a salvar sua espécie e outras.

Eddie não se dedicava só à tarefa de garantir melhores tratamentos de saúde para a espécie dos vampiros, mas tinha sido o pai substituto de Chase desde a queda do avião. Depois, quando Chase passou pelo processo de renascimento, ele tinha se ligado a ele de bom grado. Chase lhe devia isso. E, mais importante, ele o amava. Não que trocassem palavras de carinho, mas atitudes falavam mais alto do que palavras.

Razão pela qual aquilo tudo seria tão difícil.

Chase foi até a sala de estar, onde Eddie estava sentado em sua velha poltrona reclinável marrom — a única mobília que levava com ele sempre que se mudava. Na mesa lateral estava a foto emoldurada que também sempre carregava com ele. Kirsha. A parceira de sangue de Eddie, que tinha morrido um ano depois que estavam juntos.

Baxter veio correndo e cutucou a perna de Chase com o focinho.

Eddie lia o jornal e, só quando Chase desabou no sofá, ele olhou para o filho adotivo.

Observou Chase com atenção. Eddie o conhecia tão bem que era inútil tentar esconder alguma coisa. Não que o pai já não tivesse guardado segredos dele. Até que Della tivesse lhe contado sobre Bao Yu, não sabia nada sobre o assassinato.

— Por que está com os olhos tão brilhantes, filho?

— Chao Tsang, seu irmão gêmeo. Talvez você esteja errado. Talvez ele tenha matado sua irmã.

Eddie sentou-se, endireitando a poltrona reclinável com um baque seco. Sua expressão era séria.

— Isso é ridículo. Já contei a você o que aconteceu. Nós vamos encontrar Douglas Stone e obter a nossa prova.

— Você disse que não viu o assassino. E quanto mais eu conheço o seu irmão gêmeo mais...

— Pare! — disse Eddie. — Por que meu irmão faria isso?

— Por que ele iria tratar a filha com tamanho desrespeito? Você tem alguma ideia de quanto ele a está magoando?

Eddie respirou fundo e a emoção encheu seus olhos.

— Você lamenta por ela. Tem uma ligação de sangue com a garota, então é compreensível, mas não o acuse desse jeito. Chao já está enfrentando acusações demais.

— Assim como você — rebateu Chase. — A UPF está na sua cola por causa disso! Está tudo uma loucura. Vá embora. Não me diga para onde está indo, não me ligue. Me deixe fazer o que eu tenho que fazer. Quando Douglas Stone for encontrado e a UPF não estiver mais perseguindo você, eu procuro o Conselho dos Vampiros e eles podem avisá-lo.

Eddie balançou a cabeça, bem devagar.

— Não. Faça o que tem que fazer. Não se preocupe comigo.

Chase passou a mão sobre o rosto. Droga, aquilo era difícil!

— Precisamos da ajuda da UPF.

— O Conselho está cuidando de tudo — Eddie insistiu.

— Você mesmo me disse que o Conselho está procurando Douglas Stone há mais de 16 anos. Não conseguiram encontrá-lo. O que faz você pensar que vão encontrá-lo agora?

— Eles percebem a urgência agora, que a coisa toda tomou grandes proporções.

Chase olhou para o teto tentando encontrar uma maneira fácil de dizer, mas não havia. Ele olhou para Eddie.

— Estou renunciando à minha posição no Conselho.

Para sua surpresa, Eddie não pareceu sobressaltado.

— Para trabalhar para eles? A UPF?

Chase assentiu.

— O vínculo que você tem com ela é tão forte assim? — perguntou Eddie, com uma leve pontada de dor na voz. O que Eddie estava perguntando na verdade era se o vínculo que Chase tinha com Della era mais forte que o vínculo que havia entre eles. Não era. Ele tinha uma dívida de gratidão com Eddie, por vários motivos, mas o que sentia por Della era diferente. — E para ela não é tão forte? — Eddie continuou. — Por que ela não se une a você no Conselho?

— Ela é teimosa, assim como você. — Eddie olhou para a foto de Kirsha. Chase sabia que Eddie não podia contestar. Sabia quanto era forte uma ligação sanguínea. Droga, o homem nunca tinha voltado a se casar! E já tinham se passado dez anos. Ele poderia ter encontrado outras mulheres, mas Chase se lembrava do pai adotivo dizendo que seu coração sempre pertenceria a uma única mulher.

— Você já tentou convencê-la? — perguntou Eddie.

Chase percebeu que precisava falar com toda a franqueza.

— Não é apenas o vínculo. — Ele engoliu em seco. — Eu vejo o bem que a UPF está fazendo.

— E você não vê o bem que o Conselho tem feito?

— Claro que sim, mas o Conselho sempre adotou a política “nós contra eles”. Todos os seres sobrenaturais precisam se unir. A UPF está trabalhando para isso. É uma boa meta.

— O fato de acharmos que cuidar da nossa própria espécie é mais importante faz com que sejamos vistos como inimigos?

— Não. Não como inimigos. O Conselho precisa existir. Mas, para governar, precisamos nos unir. Não só aos outros sobrenaturais, mas ao governo federal e à polícia humana.

— Se a UPF conseguir o que quer, o Conselho deixará de existir.

Chase tinha a sensação de que a completa desconfiança de Eddie em relação à UPF era mais do que apenas uma postura política. Mas isso era algo de que Eddie nunca falava.

— Então alguém precisa mostrar à UPF que isso está errado. Eu poderia ser essa pessoa. — Ele apertou os punhos. — Olha, eu não estou dizendo que os procedimentos deles são irrepreensíveis, mas concordo com muitas das políticas que adotam. Unidos podemos fazer mais. Ter mais recursos. Fontes que poderiam nos ajudar a encontrar Stone.

Eddie se voltou para a janela, fitando a noite. A culpa tomou conta de Chase. Tinha sido criado como filho de Eddie durante todos aqueles anos, e Eddie esperava que ele seguisse seus conselhos.

— Eu sei que você não respeita a minha decisão — disse Chase.

— Se me perguntar se eu concordo com a sua decisão, vou dizer que não. — Eddie se virou. — Mas eu o respeito o suficiente para não tentar detê-lo. Você é dono do seu próprio nariz, Chase Tallman. — Um sorriso triste apareceu em seus olhos. — Você é muito parecido com o seu pai. Ele e eu nunca concordamos na política também.

— Então me respeita o suficiente para fazer mais uma coisa por mim — arriscou Chase. — Vá para outro lugar. Para algum lugar em que a UPF não possa encontrá-lo. Para algum lugar que eu não saiba onde é. Assim, quando me perguntarem onde você está, eu não terei que mentir. Porque, se eles não encontrarem Stone, vão atrás de você para que diga a eles.

— Ou vão condenar meu irmão. — Eddie suspirou. Olhou outra vez para a escuridão do lado de fora. Vários segundos se passaram antes que voltasse a fitar Chase. — Se não encontrarem Stone, eu me entrego.

Chase deu um pulo do sofá.

— O quê?! — Ele sacudiu a cabeça. — Não! Vão prender você.

— Ou vão prender meu irmão. Ele não tem culpa nenhuma. Eu já não posso dizer o mesmo.


Capítulo Quatro

— Você não fez aquilo. — Os olhos de Chase queimavam de frustração.

— Não, eu não matei Bao Yu. Teria trocado de lugar com ela um milhão de vezes. Mas me juntei à gangue dos Abutres, Chase.

Depois que Chase descobriu que a tia de Della tinha sido morta, Eddie contou a Chase toda a história.

— Você era jovem e estava assustado.

— Mas o erro foi meu. Eu assumo. Foi por minha causa que eles a mataram.

— Isso não faz de você culpado — insistiu Chase.

Eddie franziu a testa.

— De certa forma, faz, filho.

A calma de Eddie fez Chase cerrar a mandíbula.

— Como? Você optou por não matar ninguém, agora vai pagar o preço por terem matado alguém que você amava. — Ele andou do sofá até a mesa de centro uma vez. Depois duas. Em alguns momentos, Chase tinha desejado que também tivesse morrido com a família, mas Eddie o fizera ver que a vida valia a pena.

— Eu cometi um erro — disse Eddie. — Sou mais responsável pelo que aconteceu do que Chao. E antes de deixá-lo pagar por isso, eu vou pagar. — Os olhos escuros de Eddie encontraram os de Chase com um olhar firme. — Agora respeite a mim e a minha vontade como eu respeito a sua.

Eddie estava falando sério. A emoção apertou o peito de Chase.

— Vou encontrar Douglas Stone. Não vou deixar você ir para a prisão. — E Chase estava falando sério.

Eddie pôs a mão no ombro do filho adotivo.

— Eu não tenho nenhuma dúvida de que você vai fazer tudo que puder. — Deu no ombro de Chase um aperto sincero. — Enquanto isso cuide da minha sobrinha. Você a chama de teimosa, e está certo: os Tsang são cabeça-dura. Mas, filho, você também é teimoso. — Seu sorriso se alargou. — Vocês dois vão formar um bom par.

O conselho de Eddie vinha do coração. Chase devia muito àquele homem, e, certo ou errado, ele sentia como se estivesse virando as costas para ele.

Então lhe ocorreu que o que ele sentia por Eddie, Della sentia pelo pai. Se Chase gostava ou não daquele homem, mesmo que ele não fosse merecedor da afeição da filha, era inegável que Della estava ligada a ele pelo afeto.

— Você precisa conhecê-la — disse Chase. — Ficaria orgulhoso dela.

— Eu não tenho dúvida. Posso ver que você gosta mesmo dela. Será que ela sente o mesmo por você?

— Como eu disse, ela é teimosa.

Eddie sorriu.

— Mas você vai conquistá-la.

Chase colocou a mão sobre a de Eddie. Por que era tão difícil dizer adeus? Parte dele desejava ser exatamente quem Eddie queria que ele fosse, mas Chase não estava cego para os erros e acertos do Conselho.

Chase baixou a mão até Baxter e deu-lhe um bom afago na orelha.

— Leve Baxter para a casa de Kirk. Vou pegá-lo lá. — Não que Chase estivesse com muita vontade de encontrar Kirk. Kirk Curtis era o melhor amigo de Eddie e um membro do Conselho. Estava inclusive com Chase quando encontraram o avião depois da queda.

Eddie assentiu.

— Tem certeza de que James Burnett vai aceitar você depois do que aconteceu? Você já disse que ele é um sujeito difícil.

A mesma pergunta borbulhava no subconsciente de Chase.

— A carta me liberando do Conselho ajudaria.

— Kirk pode providenciar isso. Ele está em seu escritório agora. — Eddie fez uma pausa. — E se isso não funcionar, volte para o lugar a que você pertence.

— Vai funcionar. — Chase recusava-se a acreditar no contrário. — Tem que funcionar. — Ele sentiu um nó no estômago ao pensar na possibilidade de que seu pedido fosse negado. Mas até mesmo se tudo corresse às mil maravilhas e Burnett concordasse em aceitá-lo, não seria fácil. Pois de maneira alguma o vampiro o deixaria voltar sem lhe passar um belo sermão.

Se Burnett se excedia em alguma coisa, era em dar broncas. E se havia uma coisa que Chase não suportava era levar broncas. Nunca gostara de engolir sapos.

Mas isso teria que começar a mudar. Por Della, ele faria isso.

Despedindo-se com um aceno, Chase deixou a sala de estar. Baxter o seguiu, olhando para ele com a cauda balançando. Chase se ajoelhou.

— Eu volto para te levar comigo. Prometo.

O celular de Chase, enfiado no bolso de trás, apitou com a chegada de uma mensagem. Ele se levantou e puxou-o do bolso.

Seu coração deu um salto quando o nome de Della apareceu. Quando ele partira numa missão, para tentar achar o canalha que havia assassinado a irmã de Eddie, ela tinha tentado entrar em contato com ele. Tinha sido difícil não poder atender ao chamado dela. Tinha doído ainda mais quando ela parou de tentar entrar em contato com ele. Chase leu a mensagem.

Está pondo seu plano em prática agora?

— Apenas o plano de reconquistá-la — disse para si mesmo enquanto saía.

Della tinha dado o braço a torcer e mandado mais uma mensagem a Chase. Agora ela estava com os olhos fixos no telefone, esperando para ver se ele iria responder.

Quando não ouviu a chegada de nenhuma mensagem, andou pelo quarto por mais dez minutos.

Para lá.

E para cá.

Para lá.

E para cá.

Sentindo-se como uma fera enjaulada, notou o relógio na mesa de cabeceira. Não eram oito horas ainda. Seus pais ainda estavam no andar de baixo, e em geral só subiam para o quarto depois das onze.

Ela foi até a janela, abriu a vidraça até a metade e sentiu uma forte lufada do ar frio de novembro.

Chase ainda estaria por perto?

Um leve rastro do seu cheiro ainda pairava do lado de fora da janela, mas não era fresco. Olhando por cima do ombro, Della voltou a consultar o relógio e sentiu o estômago se contrair com a vontade de saltar para o céu escuro e sair no encalço do sanguessuga mentiroso.

Quem sabe bastassem apenas algumas voltas no quarteirão? Talvez ele estivesse por perto. Ela foi até o armário, despiu a blusa colorida e trocou por uma baby look preta. Então tirou da mala a peruca preta e o travesseiro extragrande e moldável que tinha trazido de Shadow Falls. Enfiou os dois travesseiros sob o cobertor para fazer parecer um corpo, em seguida ajeitou a peruca sob a parte superior da coberta, deixando de fora só algumas mechas do cabelo liso e preto, para parecer convincente.

Deu um passo para trás e avaliou sua imitação dela mesma. Parecia um pouco o corcunda de Notre Dame. Ela voltou e ajeitou melhor os travesseiros. Afofou-os mais um pouco, depois se afastou outra vez para avaliar o resultado da sua obra de arte.

Droga! Agora ela parecia uma garçonete boazuda do Hooters, com aqueles peitões. Tirou novamente as cobertas e deu um tapão no seu eu de travesseiros, para reduzir os peitos.

Depois foi até a porta para ter certeza de que o disfarce convenceria a mãe quando ela desse aquela passadinha habitual pelo seu quarto, para se certificar de que a filha estava dormindo. No mesmo instante imaginou a mãe descobrindo a falsa Della e ficando superchateada.

Piscando, Della desviou o olhar, mas seus olhos se detiveram no porta-retratos sobre a cômoda. A foto tinha sido tirada num baile, quando ela e o pai estavam prestes a dançar uma valsa. Ela tinha 8 anos. O pai estava ajoelhado, com o braço ao redor da sua cintura. Ela ainda se lembrava do quanto ele a fizera se sentir especial aquela noite.

Então se lembrou das palavras da mãe. Ela é nossa filha! Você não a ama mais?

Um nó apertou sua garganta. Della olhou para a janela. Tinha que encontrar Chase, não só encontrá-lo, mas fazê-lo entregar o tio dela à UPF. Levantando-se, pegou o celular e colocou-o no bolso de trás da calça; em seguida foi até a janela e abriu-a. Bem devagar, para não ser ouvida no andar de baixo, ela subiu no telhado. Depois se virou para fechar a janela e deu um salto no ar, mergulhando no céu noturno.

Duas vezes ela voou ao redor do bairro, na esperança de localizar o rastro de Chase. Não sentiu nada. Ou quase nada. Farejou alguns lobisomens. E cerca de trinta metros adiante, viu três jovens. Seriam eles? E se eram, estariam apenas dando uma volta pelo bairro ou procurando encrenca?

Quando voou mais baixo, o cheiro ficou mais forte e ela conseguiu dar uma boa olhada nos três. Não vestiam trajes de gangue, então era provável que não fossem delinquentes, apenas jovens, que por acaso eram lobisomens, divertindo-se num sábado à noite. Ela não podia condená-los por isso.

Quando Della estava prestes a voar mais alto, um dos lobisomens deve ter farejado o seu cheiro. Um deles e logo em seguida os outros dois olharam para cima. Ela viu os três rostos encarando-a e depois franzindo a testa com ar de desagrado. Sem querer arranjar problema, ela correu de volta para casa.

Della tinha acabado de fechar a janela quando seu celular tocou.

Chase?

Ela se apressou para pegar o celular no bolso do jeans.

— Alô? — respondeu antes mesmo de checar o número no visor.

— Della?

Demorou um segundo para ela reconhecer a voz de Natasha e só mais um para se sentir culpada por não ter procurado mais a prima, desde que a deixara em Shadow Falls. Por uma boa razão, é claro: não queria ter de explicar que seu próprio pai tinha sido acusado de matar a mãe da garota. Della e Natasha tinham ficado muito amigas depois que ela e Chase tinham salvado a vida da prima e a do namorado, Liam.

— Oi, Natasha!

— Adivinha quem Liam viu hoje cedo, quando foi visitar a mãe?

— Não faço ideia — disse Della.

— Chase! E ele perguntou a Liam se gostaríamos de morar na casa dele enquanto ele passa uma temporada fora. É claro que sabemos que ele está apenas sendo gentil e nos oferecendo um lugar para ficar. Você já viu a casa dele? Poderia alugá-la num piscar de olhos.

— Já vi, sim. — Della se lembrou do ambiente aconchegante, todo em couro e madeira. A cabana, isolada na floresta, era um convite para relaxar. E a prima estava certa. Chase poderia alugá-la com facilidade.

Della se lembrou do quanto Chase tinha ficado feliz quando encontraram Natasha e Liam.

Fazia menos de um mês, mas parecia ter se passado uma eternidade desde então. Ela na época estava a um triz de se entregar a Chase. Droga! Quase tinha dormido com o vampiro mentiroso!

Ela foi até a janela, onde o cheiro dele era mais perceptível.

— Liam e Chase conversaram um tempão — disse Natasha.

Chase teria contado a Liam sobre o caso de assassinato?

— Você ainda está hospedada na casa dos seus pais? — perguntou Natasha.

— Sim.

— Eu estava preocupada. Olha, sei que o seu pai foi acusado pelo assassinato da minha mãe.

— Chase contou a Liam? — perguntou Della.

— Não, Burnett explicou quando perguntei de você. Não posso nem imaginar quanto deve estar sendo difícil pra você.

Della respirou fundo.

— Ele não matou a sua mãe.

— Eu sei. Burnett contou sobre o nosso outro tio e que vocês dois acham que foi ele quem fez isso. Mas, depois, Chase disse a Liam...

— Eu não me importo com o que ele disse! Meu pai não é um assass...

— Chase não acha que ele seja!

Della ouviu as palavras, mas não as digeriu.

— Então por que ele está protegendo um assassino? Por que não entregou Feng?

— Ele disse que Feng, ou Eddie, como ele chama nosso tio, não a matou também. Mas eles sabem quem a matou. E estão procurando pelo sujeito e se desdobrando para fazer com que seu pai seja inocentado.

Della ficou ali parada um instante, tentando fazer seu cérebro absorver os novos fatos.

— Mas ele mentiu para mim o tempo todo. E depois sumiu quando descobri que ele conhecia o nosso tio.

— Não vou dizer que tenha agido certo — disse Natasha —, mas sei que ele gosta muito de você. E Liam disse que ele estava tentando fazer a coisa certa.

— A única maneira de fazer a coisa certa é entregar Feng para a UPF. Eles que decidam se ele está dizendo a verdade. — Della respirou fundo.

— Onde está Chase? — Ela prendeu a respiração, esperando. Cheia de esperança.

— Ninguém sabe. — Então, depois de um segundo, acrescentou: — Ah, e Burnett está tentando encontrar uma maneira de justificar por que ainda estou viva. Dizer que eu fui sequestrada e eles tinham identificado o corpo errado.

Della achou aquilo um absurdo. Ela estava pensando que todo mundo viveria melhor se ela tivesse forjado a própria morte, e ali estava sua prima tentando desfazer a dela. Quem estaria mais certa?

— Se alguém tem competência para fazer isso, é Burnett — disse Della

Ela só ouviu silêncio do outro lado da linha. Então Natasha falou.

— Eu sei que você ainda tem a sua família, e talvez eu vá ter a minha de volta, mas... neste momento, você é a única família que tenho. Eu queria muito ver você só pra conversar. Por favor.

— Tá, eu prometo aparecer em breve.

Chase estacionou em frente à entrada de Shadow Falls. Burnett com certeza já tinha ouvido o barulho do carro e sentido o cheiro dele. Será que ele já estava se preparando para soltar os cachorros em cima dele, naquele exato momento?

Passando a mão no rosto, Chase lembrou a si mesmo que não devia abrir a boca. Se Burnett permitisse que Chase voltasse para Shadow Falls, iria exigir respeito.

Chase não tinha nenhum problema em tratar alguém com respeito. Ele tinha um problema com Burnett. Não que Burnett não merecesse respeito. Chase não estaria ali se não merecesse. Mas Burnett não respeitava Chase. E embora não gostasse de admitir, a falta de respeito do agente não era gratuita. Mais de uma vez Chase havia mentido para o homem.

Você está certo de que esse Burnett James vai aceitá-lo depois do que aconteceu? A pergunta de Eddie trouxe os temores de Chase à tona.

Como Chase não tinha certeza absoluta de que Burnett de fato o aceitaria de volta, ele decidiu se garantir.

Antes de ir a Shadow Falls, tinha parado no escritório da UPF e entregado uma ficha preenchida se candidatando a agente. No mesmo envelope ele incluiu uma cópia de sua carta de demissão do Conselho e suas próprias necessidades pessoais: queria morar em Shadow Falls e ter Burnett como seu superior.

Seu objetivo era que a UPF pressionasse Burnett a concordar com a sua contratação. Afinal de contas, eles eram os chefes de Burnett.

E pelo que ele sabia, Burnett já tinha recebido um telefonema do escritório da UPF. Chase viu a luz do escritório principal de Burnett se acender.

Então Burnett estava esperando por ele. Respirando fundo, Chase seguiu em frente, para enfrentar o que quer que viesse pela frente.

Será que seria tão difícil assim? Ele já tinha enfrentado Eddie e Kirk. E apesar da conversa com Eddie ter sido emocionalmente difícil, Kirk, que era como um tio para Chase, tinha sido menos compreensivo. Não que isso fosse uma surpresa; por fazer parte do Conselho, Kirk via a atitude de Chase como uma traição. Eu mesmo treinei você! As palavras de Kirk ainda ecoavam dentro da cabeça e do coração de Chase.

Ele estava quase no portão de Shadow Falls quando ouviu a voz de Burnett lá de dentro do escritório.

— Vou mandar uma mensagem para ela daqui a pouco e avisar que você vai no meu lugar. Não se esqueça do sangue. E não mencione isso.

Por alguma razão Chase sabia que Burnett estava falando de Della. E “isso” tinha que ser algo a respeito dele próprio.

Através da escuridão Chase viu Lucas Parker abrir a porta e sair na varanda do escritório. Tinha nas mãos uma garrafa com sangue para Della. Se Chase soubesse que ela precisava de sangue, ele poderia ter providenciado.

Sentiu-se um idiota. É claro que ela precisaria de sangue! Tinha ido morar com os pais, fingindo ser humana. Desde que ele se transformara, nunca havia precisado conviver com seres humanos, e, portanto, não tinha pensando nisso. Foi um golpe no seu ego saber que ele tinha deixado Della na mão.

Mais uma vez.

Só mais uma coisa que ele tinha que corrigir por ela.

Os passos de Lucas se aproximaram e Chase olhou para ele. O lobisomem de cabelos escuros e olhos azuis o abordou com um sorriso. Embora Lucas fosse um lobisomem, Chase não tinha nenhum problema com o cara. Poderia até fazer amizade com Lucas. O lobisomem tinha ido contra a própria família e se aliado ao Conselho dos Lobisomens com a intenção de trabalhar para a UPF.

Lucas parou.

— Boa sorte. — Era como se ele soubesse muito bem o que Chase estava enfrentando. — Vai por mim, sempre diga “sim, senhor” e nem pense em bater boca.

Com os ombros tensos, Chase andou até o escritório. Entrou pela porta da frente. A única luz acesa era a do escritório dos fundos. O escritório de Burnett.

Tentando esconder seu desconforto, ele entrou. Burnett estava sentado atrás da escrivaninha. Seus olhos estavam amarelo-claros, um sinal de que o homem já estava irritado.

O vampiro mais velho tinha alguns centímetros de altura e cerca de dez quilos a mais que Chase. Não que ele estivesse com medo — pelo menos não de levar uma surra. O homem tinha outros meios de feri-lo.

Della respeitava Burnett. De certa forma, ele desempenhava o papel de pai para Della mais do que o próprio pai. Se Burnett estivesse determinado a manter Chase longe dela, tudo ficaria mais difícil. Não impossível, porque Chase não permitiria isso, mas mais difícil.

Burnett olhou para a cadeira em frente a ele com um convite no olhar, embora não muito amistoso. Chase puxou do bolso o envelope dobrado, contendo outra cópia da sua demissão e seus requisitos, e colocou-o sobre a mesa.

E se sentou. Em silêncio. O tempo avançava a passo de tartaruga. Seria algum tipo de teste? Decidido a ter outra chance, Chase pigarreou.

— Eu percebi que...

— Voltou, não é? — interrompeu Burnett.

Chase assentiu. Quando o homem não estendeu a mão para pegar o envelope, ele imaginou que Burnett já tinha falado com alguém da UPF e sabia o que havia ali dentro. E pela cara dele, não tinha gostado nem um pouco.

Mas será que Burnett estava com raiva porque Chase impusera a condição de trabalhar sob o comando dele e morar em Shadow Falls, ou estava simplesmente com raiva de Chase?

— Desta vez é diferente — defendeu-se Chase.

— Você espera que eu acredite nisso?

— Eu trouxe o...

— Eu sei — rebateu Burnett, sem deixar Chase terminar.

Chase mais uma vez tentou encontrar o melhor jeito de lidar com a situação.

— Eu seria um trunfo para a UPF.

Os olhos de Burnett brilharam um pouco mais.

— Para a UPF, sim. Para Shadow Falls e para Della... não!

Chase enrijeceu

— Estamos ligad...

— Eu não dou a mínima para quem você é! Você a magoou! — ele gritou, golpeando com o punho a pesada mesa de carvalho e fazendo-a saltar do chão. — Ela já está magoada o suficiente por causa do pai. Não precisa de um cara da sua laia para fazê-la sofrer.


Capítulo Cinco

— Nunca tive a intenção de magoá-la! — Chase sentiu seus próprios olhos ficarem mais brilhantes.

— Sua intenção não significa nada pra mim! — retrucou Burnett. — Você salvou a vida dela e então se mandou. Não uma, mas duas vezes! —Seu punho martelou a mesa mais uma vez.

Chase se perguntou quantos golpes a mesa aguentaria antes de desabar no chão. Mas melhor na mesa do que nele.

— Você não acha que a magoou? — Seus olhos brilhantes desafiaram Chase a negar.

— Acho que sim — admitiu Chase. — Da primeira vez, eu fui embora porque sabia que, quando você descobrisse que eu estava trabalhando para o Conselho, não me deixaria ficar. Da segunda... Eu fui para não causar problema, não para criar um.

— Você foi embora para proteger Feng Tsang e deixar o pai de Della levar a culpa por um assassinato.

Chase ergueu o olhar.

— Eu fui para encontrar o responsável por cometer o assassinato.

— Que no caso é o próprio Feng Tsang — acusou Burnett. — Della viu numa visão...

— Eu não sei o que Della viu, mas Feng não matou a irmã. Mas ele sabe quem foi.

Burnett não parecia convencido.

— Você sabe onde Feng está?

Chase olhou Burnett nos olhos com sinceridade.

— Não.

— Se você soubesse, me diria?

Ele poderia mentir e controlar o batimento cardíaco, mas suspeitava que Burnett adivinharia.

— Não.

— Então você ainda está protegendo esse cara?

— Eu estou tentando proteger quem é inocente. E isso inclui o pai de Della.

Burnett voltou a se inclinar.

— Engraçado, isso é o que eu estou tentando fazer. E você sabe quem é mais inocente do que Chao Tsang? — ele fez uma pausa. — Della.

Ele entendeu o que Burnett estava querendo dizer.

— Você não precisa proteger Della de mim.

— Uma ova que não! — As palmas de Burnett golpearam a mesa mais uma vez. Seus caninos projetados eram uma lembrança nada sutil de quanto ele poderia ser perigoso.

Chase teve que trincar os dentes para não mandar Burnett para o inferno. Em vez disso, ficou ali sentado em silêncio. Total silêncio. Em algum lugar do escritório havia um relógio que marcava os segundos. Chase parou de contar quando chegou aos sessenta.

Burnett por fim se reclinou na cadeira, não numa postura relaxada, mas sem parecer pronto para o ataque.

— Se você sabe quem matou a tia de Della, por que não entrega o cretino para a UPF e pronto?

— Eu preciso de ajuda — admitiu Chase.

— E o Conselho não vai ajudar você?

Chase aprumou os ombros, não para se defender, mas para ser sincero.

— Eles tentaram. O nome dele é Douglas Stone.

Burnett ficou ali sentado sem dizer nada.

— Quem é o sujeito?

Antes que Chase pudesse responder, o celular de Burnett anunciou a chegada de uma mensagem de texto. Assim que a leu, suas pupilas cintilaram de raiva. E, quando tirou os olhos do celular, eles descarregaram toda a sua fúria em cima de Chase.

Ela teria sido provocada por ele ou pela pessoa que enviara a mensagem? Não importava, Chase concluiu, porque no momento ele era o único alvo.

— E agora você me vem esmolar ajuda — Burnett sibilou.

Foi a palavra “esmolar” que tirou Chase do sério.

— Não estou esmolando nada! — Ele respirou fundo para acalmar sua revolta, principalmente diante do olhar de fúria à sua frente. — Estou oferecendo meus serviços à UPF.

Burnett se inclinou para a frente outra vez. Chase já o vira espumando de raiva, mas nunca como naquele momento.

— Então ofereça seus serviços a eles, senhor Tallman. Não tente me envolver ou envolver Shadow Falls nisso.

Chase se preparou para a briga. Será que a mensagem era sobre isso?

— A UPF com certeza sabe o valor de ter outro Renascido entre seus agentes. Minhas condições...

Os caninos do homem se projetaram e seus olhos ficaram mais brilhantes.

No mesmo instante, Chase percebeu o erro que tinha cometido. Ele nunca deveria ter tentado fazer uma manobra estratégica para convencer Burnett.

— Minha intenção era...

— Pegue sua intenção e... — ele atirou o envelope na direção de Chase — e vá pro inferno! Saia daqui! Ninguém, nem você nem a UPF, me diz o que eu devo fazer! Não passou pela sua cabeça que eu abriria mão do meu cargo na UPF para proteger aqueles que eu amo? E ninguém — ninguém — me força a fazer nada!

Certo, agora Chase sabia muito bem o que tinha feito de errado. Tentara forçar Burnett a aceitá-lo de volta.

A escrivaninha entre eles de repente foi arremessada contra a parede. Burnett James levantou-se, agora em toda a sua glória de vampiro.

Caramba! Aquele tinha sido um grande erro!

— Suma daqui! — Burnett sibilou. — Enquanto ainda pode!

Chase se levantou.

— Olha, eu me toquei que não devia...

— Suma daqui!! — Burnett ordenou.

Chase ouviu o aviso na voz do vampiro e viu também nos olhos dele. Desesperado, mas não a ponto de querer perder a vida, ele se virou e saiu do escritório.

Merda! Merda! Merda! Chase fervia enquanto andava a passos rápidos até a varanda. Ele tinha estragado tudo. Daquele jeito, nunca teria Della de volta.

Daquele jeito, talvez nem merecesse tê-la de volta. Ele deveria saber que o tiro sairia pela culatra.

Della aterrissou no parque em meio às árvores e esfregou os braços para combater o frio, arrependida por não ter vestido um casaco. O brilho da lua se refletia no metal dos brinquedos do parquinho infantil, na clareira a cerca de cem passos de distância. Outro calafrio percorreu suas costas. Havia algo estranho e quase sinistro num parque infantil vazio, como se sua inocência tivesse lhe sido roubada.

Um balanço rangeu quando a brisa fria o agitou. O barulho pareceu alto, como um pedido de ajuda no silêncio da noite.

Ela olhou em volta, para as sombras escuras, e levantou o nariz para se certificar de que não havia ninguém escondido por ali.

Seu telefone bipou. Provavelmente Burnett.

Quando ela puxou o celular do bolso, ouviu um carro se aproximar e o motor sendo desligado. Alguém abriu a porta do carro e, em seguida, ela sentiu o cheiro de lobisomem. Embrenhou-se mais entre as árvores, olhando para o céu com a intenção de planejar sua saída caso o lobisomem viesse até ela. Justo quando clicou no nome de Burnett, ela reconheceu o cheiro. Mesmo antes de ler, ela já sabia qual era o conteúdo da mensagem.

Burnett não tinha vindo. Será que Lucas tinha trazido Kylie? Ela inspirou mais uma vez.

Nada de Kylie. A decepção tomou conta dela. Bem que ela precisava conversar com uma amiga.

Virando-se, viu o namorado bonitão da amiga camaleão cruzando o estacionamento. O lobisomem de 18 anos, de cabelos escuros e mais de um metro e oitenta, segurava uma garrafa térmica na mão. A barriga dela roncou.

— Ei... — cumprimentou Della. Depois acrescentou um obrigada e pegou a garrafa.

— Ok — disse ele.

— Por que Burnett não veio?

— Um imprevisto — disse o lobisomem.

— Um novo caso?

— Eu acho que não — disse Lucas.

Della não tinha certeza se ele estava escondendo alguma coisa ou querendo ser vago.

Lucas não era muito de falar. A maioria dos lobisomens não era. Não que isso desagradasse Della. Ele amava Kylie, uma das melhores amigas de Della, e Lucas era bom para ela.

— Você se importa? — Ela levantou a garrafa térmica.

— Não. Meu trabalho não estará completo até que você faça isso.

Eles foram até o parquinho.

Ela olhou para trás, só então percebendo o que ele tinha dito.

— Burnett instruiu você a não ir embora até que eu beba isto?

Quando ele não respondeu, ela soube que sim.

— Isso é ridículo!

— Ele apenas sabe quanto é difícil ser vampiro enquanto se está tentando conviver com humanos.

Ela sentiu um pouco de conforto ao saber que não era só ela que se sentia assim.

— Eu ouvi dizer que você está voltando para Shadow Falls. — Lucas ficou de pé ao lado dos balanços.

Uma nova onda de dor encheu o peito de Della.

— É verdade — ela respondeu rápido, em seguida levantou o bico da garrafa e bebeu. O fluido doce de O negativo espalhou-se por sua língua e ela teve de lembrar a si mesma para beber mais devagar e saborear. Burnett tinha enviado um sangue de primeira.

— Eu vi Kylie e Miranda antes de sair. Contei a elas — disse ele. — Ficaram eufóricas. Miranda não tinha ninguém com quem brigar depois que você foi embora.

— Nós não brigamos tanto assim. — Ela se deixou cair num balanço e chutou o chão com os calcanhares das botas.

— Sei. — Lucas riu. — Elas sentem sua falta.

Della apertou com força a corrente do balanço. E apenas ficou ali, o assento plástico arredondado do balanço pressionando seu traseiro, e bebeu o sangue, pensando nas duas amigas.

— Eu também — Della disse por fim. Não que ela não conversasse com as amigas, ela conversava cerca de duas vezes por dia. Mas ainda assim sentia falta delas. Sentia falta de tudo e de todos em Shadow Falls. Ali era seu lar. Então, por que o pensamento de voltar doía tanto? A resposta borbulhou da dor em seu peito. Porque seu pai não queria a própria filha por perto.

Depois de tomar mais alguns goles, ela viu Lucas inclinar a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo alguma coisa. Normalmente, a audição, a visão e a força de um vampiro eram superiores às de um lobisomem, exceto na época da lua cheia. É por isso que os vampiros tinham que ficar em estado de alerta durante esse período. Ainda assim, ela inclinou a cabeça e escutou para ver se conseguia ouvir alguma coisa.

Sirenes. Várias delas. Ela se levantou e tomou o último gole do seu jantar.

— Vamos dar uma olhada. — Ela ainda não estava pronta para voltar para o seu quarto e continuar lambendo as feridas.

Eles jogaram a garrafa térmica no banco do carro de Lucas. No momento em que saíram do bosque, viram três viaturas da polícia, com sirenes ligadas e faróis acesos, no estacionamento de um centro comercial a cerca de uma quadra dali. Ali ficavam a pequena joalheria dos Chi, uma loja de conveniência 24 horas e uma pizzaria. Será que alguém havia tentado sair com um pacote de cerveja sem pagar?

Lucas parou antes de se aproximar do burburinho e sua expressão endureceu. Della, ainda lutando contra o frio, levantou o rosto e sentiu o cheiro do que tinha feito Lucas franzir o cenho. Sangue. Muito sangue, assim como um cheiro de...

— Lobisomens — Della disse em voz alta. Embora o rastro fosse fraco.

Ela se lembrou de ter visto os três lobisomens andando na rua mais cedo. Vislumbrou em sua mente todos os três rostos, também.

— Precisamos chamar Burnett. — Della estremeceu de frio.

— Não sabemos se os lobisomens têm alguma coisa a ver com isso — disse Lucas, defendendo sua espécie.

Ela não podia culpá-lo. Lucas estava certo. De todas as espécies que habitavam a Terra, os seres humanos eram os piores para causar problemas. E derramamento de sangue.

— Foi um assalto — disse alguém no celular. Uma ambulância chegou e dois rapazes uniformizados saltaram do veículo.

Olhando por trás de um casal em pé na frente dela, Della esperava ver os paramédicos correrem para dentro da única loja aberta, uma loja de conveniência.

Mas eles passaram por aquela porta e...

— Que não seja a loja dos Chi!... — Della murmurou, enquanto tentava abrir caminho em meio às outras pessoas.

Merda! Era a joalheria! Alguém teria arrombado a loja? Mas de quem seria todo aquele sangue? Os Chi fechavam a loja às sete. Aquela hora já deviam estar em casa dormindo.

Outra lufada do ar frio de novembro fez com que arrepios percorressem os braços nus de Della. Ela enfiou as mãos nos bolsos do jeans para aquecer os dedos.

De repente ouviu um miado. Ela olhou para a direita e, para seu alívio, a senhora Chi estava lá, carregando nos braços Chester, o seu grande gato laranja malhado.

— Ai, graças a Deus! — suspirou Della. — O que aconteceu, senhora Chi? O senhor Chi está bem?

— Eu não sei — disse a senhora Chi. — Eu... Eu...

O gato desapareceu. Agora os braços dela estavam vazios. A senhora Chi ofegou junto com Della, e então a mulher olhou em volta, para o chão.

— Chester? Chester?

De dentro da loja, Della ouviu um dos policiais dizer:

— O gato ainda está vivo. Alguém precisa levar este animal a um veterinário. — Della de repente reconheceu o frio. O tipo de frio que vinha com a morte — que vinha com os mortos.


Capítulo Seis

O peito de Della apertou, e ela sentiu dor atrás da caixa torácica. Os calafrios tinham triplicado e perseguiam uns aos outros na sua pele. Ela olhou para sua vizinha idosa, lembrando que, quando tinha se transformado em vampiro e a senhora Chi ouvira falar que ela estava doente, tinha levado uma canja para Della. Será que a anciã sabia...?

A senhora Chi olhou para Della.

— Você viu meu gato? — Em seguida, o pânico tomou conta dos seus olhinhos puxados. — O que aconteceu? Eu trouxe hambúrgueres e então... — Ela se desvaneceu no ar, transformando-se em nada mais do que uma mancha de névoa no meio da noite. Ou será que a névoa estava nos próprios olhos de Della?

— Não — disse Della. — Fale comigo. Quem fez isso com a senhora?

— Quem fez o quê? — Lucas perguntou, agora de pé ao lado dela.

Della ignorou-o e abriu caminho através da multidão, querendo provar para si mesma que estava errada. Justo quando ela ia saltar a fita amarela com que um policial tinha acabado de bloquear a frente da loja, Lucas a alcançou.

— Você não pode ir lá. — Ele se inclinou mais na direção dela. — Della? O que está acontecendo? Você está agindo de um jeito estranho. Daquele jeito estranho que Kylie costuma ficar quando vê fantasmas.

Della ignorou Lucas e ouviu o diálogo dos policiais.

— Quantos? — perguntou um dos paramédicos.

— Dois — alguém respondeu. — Disseram que foi na loja deles. Alguém que foi abastecer o carro viu pela janela o velho caído no chão.

* * *

Chase tinha pegado o carro e dirigido até algumas estradas secundárias, onde podia pisar mais fundo no acelerador. Tinha até baixado a capota, esperando que o ar frio o ajudasse a pensar num jeito de sair da enrascada em que tinha se metido.

Enquanto o motor rugia, ele lembrou algo que seu pai lhe dissera anos atrás. Chase tinha quebrado a vidraça de um vizinho sem querer, enquanto jogava bola. O velho dono da casa era rabugento e mal-humorado. Chase não estava com coragem de enfrentá-lo. A mãe tinha concordado em fazer isso por ele, mas, quando o pai descobriu seu plano, ficou muito bravo.

Quando você cometer um erro, filho, enfrente as consequências.

Ele vai gritar comigo, pai.

Bem, vai mesmo. Você quebrou a vidraça dele. Ele tem o direito de gritar.

Chase manobrou o carro e voltou para Shadow Falls.

Estacionou. As luzes estavam apagadas no escritório. Burnett devia estar na cabana que dividia com Holiday. Ele atravessou o portão, sabendo que o alarme tocaria.

Quando subiu o primeiro degrau da varanda, ouviu a voz de Holiday, sem dúvida tentando acalmar o marido. Parecia que essa era a missão de vida daquela mulher.

Chase bateu na porta.

— Seja esperto e dê o fora daqui! — As palavras e a raiva de Burnett atravessaram a porta.

— Eu não vou embora — respondeu Chase.

A porta se abriu. Os olhos brilhantes de Burnett o fitaram.

— Posso entrar? — perguntou Chase.

— Eu preferia que não — avisou o líder do acampamento, mas deu um passinho para trás.

Chase entrou. Holiday atravessou o corredor num passo rápido, trazendo no colo Hannah, a filhinha deles de cabelos castanhos, e colocou o bebê nos braços do marido.

— O que está fazendo? — perguntou Burnett a ela.

— Você me pediu para não deixá-lo matar Chase. Acho que isso não vai acontecer se estiver com Hannah no colo. — A mulher de olhos verdes parecia determinada. — Além disso, a fralda dela está suja e é a sua vez de trocar.

Burnett aninhou o corpinho sonolento contra ele.

— Eu ainda tenho uma mão livre. — Burnett olhou para Chase. — Por que você voltou?

Chase engoliu o nó na garganta. Não era medo, era orgulho.

— Porque me lembrei de algo que meu pai disse. Quando você cometer um erro, enfrente as consequências. Eu cometi um erro, Burnett.

— Se você estar se referindo a voltar aqui, eu concordo.

— Não. Cometi um erro tentando pressioná-lo. Você exige respeito, e, acredite ou não, eu o respeito. O que eu fiz foi provavelmente a coisa mais desrespeitosa que alguém poderia ter feito. Estou pedindo para você relevar a minha estupidez. Me deixe ficar aqui.

— Por causa de Della?

— Sim. Mas não só por isso. Eu quero trabalhar para a...

— Eles podem treinar você. — A voz de Burnett soou cheia de raiva.

— Não quero ser um agente da UPF apenas. — Chase enfrentou o olhar duro do homem — Quero ser um ótimo agente da UPF. Quero aprender com o melhor. E você é o melhor que eu já conheci. Della me disse que você assume riscos e viola regras para fazer o que é certo. Esse é o tipo de agente que eu quero ser. Estou pedindo para que seja o meu tutor. Me ensine a fazer isso. Trabalhar seguindo regras e mesmo assim sendo fiel a mim mesmo.

Burnett ficou parado ali, com os olhos ainda flamejantes. O bebê olhou para Chase com um sorriso banguela. O contraste entre os dois olhares só fez o momento ficar mais bizarro.

— Estou pedindo mais uma chance — disse Chase. — Me deixe conquistar o seu respeito. Vou fazer qualquer coisa que for preciso.

A expressão de Burnett arrefeceu um pouco. Ele olhou para a esposa. Ela assentiu. O marido suspirou, olhou para a filha e franziu a testa, em seguida, olhou para Chase.

— Qualquer coisa?

— Qualquer coisa — confirmou Chase.

— Você sabe trocar fraldas sujas de cocô?

O cheiro atingiu o nariz de Chase e seu pomo de adão estremeceu. Ele deu um passo à frente, pronto para cumprir o seu dever.

— Posso aprender.

— Não com o meu bebê — disse Holiday. — É a sua vez, Papai. — Ela apontou para o corredor.

Burnett olhou para Chase.

— Mas eu preciso...

— ... trocar uma fralda. É a minha vez de falar. — Holiday fez um gesto para o marido sair.

Burnett deixou o cômodo com a filha sorridente nos braços. Enquanto ele saía, Chase o ouviu dizer:

— Hannah, como você pode ser tão fofa e cheirar tão mal?

— Obrigado — agradeceu Chase, sentindo que a concordância de Holiday com a permanência dele em Shadow Falls significava mais do que ele supunha.

— Não me agradeça. — Holiday se aproximou. — O que você disse não foi brincadeira.

— Eu falei sério.

— Acredito em você. — Ela olhou para o corredor por onde Burnett e Hannah haviam desaparecido. — Você sabe que meu marido pode ser osso duro de roer, mas ele é o homem mais decente que eu conheço. Jurou que nunca causaria mal a ninguém sem necessidade. E nunca quebrou esse juramento. Embora algumas vezes eu precise lembrá-lo disso.

Chase assentiu.

— Ele tem muita sorte de ter você.

— Eu, por outro lado... — ela continuou —, nunca fiz juramento nenhum. E, Chase Tallman, se você magoar Della mais uma vez, eu mesma vou arrancar suas bolas e dá-las de comida a ratos e escorpiões famintos. Fui clara?

Chase fez que sim. Ele teria dito “sim, senhora”, mas sua língua se recusou a sair de dentro da boca. Não só por causa da parte do “arrancar as bolas”, mas também da dos ratos e escorpiões famintos. Essas palavras nunca deveriam usadas numa frase que mencionasse as suas partes mais sensíveis...

— Agora pode ir andando. Se precisar de um lugar para dormir à noite, a cabana catorze está vazia.

* * *

— Acho melhor a gente dar no pé — disse Lucas talvez pela oitava vez.

E se a senhora Chi voltasse e pudesse dizer a Della quem tinha feito aquilo? Ela precisava saber. Precisava encontrar os delinquentes e fazê-los pagar pelo crime.

— Eu vi os caras — ela murmurou, o olhar fixo na joalheria, enquanto os paramédicos tiravam um corpo numa maca. Seu peito estava apertado com um nó de dor.

— Viu quem? — perguntou Lucas.

— Os lobisomens. Estavam em três.

Lucas falou num sussurro:

— Não sabemos se foram lobisomens que fizeram isso.

— O cheiro deles está por todo lado! — respondeu Della. — Sinto muito se isso não te agrada, mas nós dois sabemos muito bem o que aconteceu.

— Só porque estavam aqui não significa que mataram alguém — Lucas contestou em voz baixa.

— Só vamos saber com certeza quando começarem a procurar as provas. E, se alguém não avisar logo a UPF, pode ficar impossível encontrar provas.

Lucas fechou os olhos como se tentasse digerir as palavras dela.

— Vamos avisar Burnett. — Della tirou o celular do bolso e digitou uma mensagem.

Chase cobriu os olhos com a mão e suspirou. O cheiro de tinta fresca impregnava todo o cômodo e estava começando a lhe dar dor de cabeça.

Uma batida na porta da cabana ecoou pelas grossas paredes de madeira. Ele nem precisou adivinhar quem era. Tinha ouvido e sentido Burnett do lado de fora no segundo em que sua cabeça encostara no travesseiro. E estava dando graças a Deus por Burnett não ter planejado interrogá-lo aquela noite. Ele já tinha engolido sapos suficientes aquele dia.

— Entre — disse Chase em voz baixa, levantando-se e sabendo que Burnett podia ouvi-lo. No momento em que se vestiu e entrou na sala, Burnett já estava sentado no sofá — mergulhado na escuridão. Seus olhos não estavam brilhantes, um bom sinal. O homem acenou para a cadeira em frente. Chase obedeceu e se sentou.

— Douglas Stone. — Burnett disse o nome e nada mais. Não chegou a dizer que queria informações, mas isso estava implícito. E como Chase já tinha irritado o homem além da conta, decidiu não abusar da sorte. Levantou-se, foi até a mesa da cozinha e tirou da mochila um arquivo. Então entregou-o a Burnett.

— É tudo o que temos sobre ele.

Burnett abriu o arquivo e folheou-o. O único ruído no ar da noite era o farfalhar de papéis. Por fim olhou para Chase.

— A maioria dessas informações é de quinze anos atrás.

Chase assentiu.

— Eu sei.

A frustração deixou ainda mais severa a expressão do vampiro mais velho.

— Você sabe quanto é difícil encontrar alguém com base nessas informações desatualizadas?

— É bem difícil. Eu sei. Mas não impossível.

— Mas improvável — Burnett sibilou.

— Há um relatório novo de um braço do Conselho no final do arquivo. Alguém chamado Douglas Stone foi interrogado por causa de outro assassinato.

Burnett virou mais algumas páginas, leu e voltou a olhar para Chase.

— Na França? — Respirou fundo outra vez. — É por isso que você estava lá?

Chase confirmou com a cabeça, esperando que o fato de ele ter salvado Miranda Kane deixasse Burnett menos inclinado a despejar a sua ira sobre ele.

— O tio de Della estava com você?

— Sim.

Burnett continuou a encará-lo.

— Mas você não sabe onde ele está agora...

— Não.

— Não sabe porque disse a ele para não contar a você, certo? — Burnett acusou-o.

Mais uma vez, Chase preferiu dizer a verdade.

— Isso mesmo.

Burnett olhou de volta para o arquivo.

— Você veio de mãos vazias da França? Não conseguiu encontrá-lo?

— Temos provas de que alguém com a descrição dele passou por lá, usando o nome Don Williams, e voou de volta para os Estados Unidos. Todas as nossas tentativas de localizar um Don Williams na França e nos países vizinhos deram em nada. Deve ser um nome falso. Agora estão investigando aqui nos Estados Unidos.

— E o que encontraram? — perguntou Burnett.

Chase fez uma pausa.

— Nada ainda. Eu passei semanas procurando. Mas a UPF tem muito mais recursos que o Conselho para encontrar pessoas.

Burnett arqueou uma sobrancelha.

— De fato. Mas, infelizmente, quando a gente procura a verdadeira escória da terra, não é esse tipo de recurso que costuma ajudar. É quem você conhece, outros canalhas como ele, que estejam dispostos a colaborar.

— Então eu devia ter ido atrás da minha própria lista de cafajestes? — Chase perguntou com um toque de sarcasmo, mas logo se deu conta disso e mudou de atitude. — Entendo seu ponto de vista.

Burnett concordou.

— Ah, eu recebi outro telefonema da UPF. Querem que você trabalhe em período integral. Você acabou mesmo o ensino médio?

— Um ano atrás — disse Chase.

— E a faculdade? — perguntou Burnett.

— Fiz um semestre e poderia destrancar a matrícula, mas estou ansioso para começar a minha carreira na UPF.

Burnett fechou o arquivo.

— Trabalhando sob o meu comando e morando aqui, vai ter de seguir regras.

Chase não ligava muito para regras.

— Tenho certeza de que podemos abrir exceções.

Os olhos de Burnett ficaram um pouco mais brilhantes.

— Eu não vou abrir exceções com você. Ou segue as regras ou vai ter de morar em outro lugar.

Chase sentiu um aperto no estômago.

— Quais são as regras? — Se Burnett dissesse que ele não poderia ficar perto de Della, Chase jogaria tudo para o alto.

O celular de Burnett apitou com a chegada de uma nova mensagem. Ele pegou o aparelho e leu a mensagem, franzindo a testa.

Não que Chase esperasse uma boa notícia aquela hora.

Burnett se levantou e enfiou o arquivo debaixo do braço. Depois apontou para o envelope no sofá.

— Esse é o seu contrato, e aí estão as regras da UPF. Vamos conversar sobre as minhas mais tarde. Tenho que ir. — Ele deu uma batidinha com o dedo no arquivo que segurava. — Eu vou ficar com isso.

— Algum problema? — perguntou Chase. — Posso ajudá-lo com alguma coisa?

— Não. — A maneira inflexível com que o homem deu a resposta monossilábica levantou suspeitas em Chase.

— É sobre Della? — Chase se levantou.

— Eu disse que não preciso de ajuda. — Burnett afirmou.

— Espere aí, você não pode...

Burnett deu meia-volta e encarou Chase.

— Sim, eu posso! Você disse que queria conquistar o meu respeito. Então, comece me ouvindo. Eu vou cuidar disso.

Chase sustentou o olhar gelado de Burnett.

— Della está em perigo? Diga que ela não está em perigo e faço o que você mandar.

— Ela não está em perigo.

Burnett deixou a cabana. Chase desabou na cadeira e passou as mãos no cabelo. Então pegou o celular e enviou uma mensagem de texto para Della.

Você está bem? Como vão as coisas?

Nenhuma resposta. Será que ela ainda estava chateada?

Tudo dentro dele gritava para ir atrás de Della, mas que droga! Ele sentia que aquele era o primeiro teste de Burnett. Respirou fundo e se lembrou do tom de sinceridade na voz do líder do acampamento ao assegurar que ela não estava em perigo.

Chase podia confiar nele?

E se estivesse errado?


Capítulo Sete

Café. Della não tomava a bebida amarga e escura, mas a garçonete nem perguntou se queriam. Só deixou duas xícaras cheias sobre a mesa como se tivessem pedido.

Por isso Della agora segurava a xícara morna e a girava entre as mãos. Lucas estava sentado à sua frente. Não tinha tocado no café, mas devorava um hambúrguer com a fome de um leão.

Pelo telefone, Burnett tinha insistido para que Della e Lucas se afastassem da cena do crime antes que a mídia mostrasse seus rostos nos noticiários.

— E se a senhora Chi voltar? — Della tinha insistido.

— Se aprendi uma coisa sobre fantasmas desde que me casei com minha esposa é que, se eles querem falar com você, dão um jeito de te encontrar. Tem uma lanchonete 24 horas virando a próxima esquina. Me esperem ali. Vou ver o que consigo descobrir e encontro vocês lá.

Della consultou o celular e viu que eram quase duas da manhã. Por que Burnett estaria demorando tanto? Ela olhou pela janela, na direção da noite fria e escura. Sua mente divagou para longe dos Chi e se concentrou em Chase. E se ele voltasse à casa dela procurando-a? Ela contaria a Burnett sobre a visitinha dele ao cubículo do banheiro?

Passos determinados soaram pela calçada. Della olhou para a porta da lanchonete, esperando ver Burnett. Vestido com um jeans desbotado, camisa preta e jaqueta de couro preto, o vampiro parecia uma força a ser reconhecida.

Ela temia que ele considerasse o assassinato dos Chi mais uma inconveniência do que um caso importante. Mas no momento que viu seu olhar sobre ela, soube que seus temores eram infundados. Apesar da sua aspereza e aparência rude, havia bondade inata nele.

Ele desabou numa cadeira ao lado dela, cumprimentando Della e Lucas com um aceno de cabeça. A garçonete, uma loira platinada de uns trinta e poucos anos, veio balançando os quadris de um jeito sedutor, com uma xícara e um bule de café nas mãos.

— Olá, querido! — Ela colocou a xícara na mesa, inclinando-se sobre Burnett enquanto a enchia até a borda, como se para ter certeza de que ele daria uma boa olhada em seu decote.

Burnett agradeceu com a cabeça e, para desgosto da mulher, nem por um segundo desviou os olhos para olhar os peitos dela.

— Querem mais alguma coisa? — perguntou ela. — Nada mesmo?

— Não, obrigado. Está tudo bem. — O tom de Burnett praticamente a dispensou. Mas era mais prático do que rude.

A garçonete se afastou, muito menos sedutora agora. O olhar de Burnett deslocou-se para Della.

— Meus sentimentos.

Della engoliu um nó na garganta.

— Ela era apenas uma vizinha, mas era... boa. Eu a vi esta na noite no Whataburger. Estava comprando hambúrgueres para o marido. Ela me disse para ter cuidado.

— A que horas você a viu? — perguntou Burnett.

— Um pouco depois das sete.

Ele pegou sua xícara.

— Os sanduíches ainda estavam na embalagem. — Ele tomou um gole do café fumegante. Fez uma careta e engoliu a bebida. — Alguém pode tê-la seguido e ameaçado com uma arma, ou eles já estavam lá dentro.

— Então a porta não estava arrombada? — perguntou Lucas.

— Não.

Della girou um pouco mais a própria xícara.

— Se alguém batesse na porta da loja, eles teriam aberto.

— Mesmo para estranhos e àquela hora da noite? — perguntou Burnett.

— Sim. — Della olhou por vários segundos para a bebida escura e fria em sua xícara. — Se alguém pedisse o dinheiro, eles provavelmente teriam dado também. — Ela olhou para Burnett. — Foram lobisomens?

— Não dá para ter certeza. Havia muito sangue na cena do crime e eu senti cheiro de lobisomem, mas os lobisomens em geral gostam de exibir sua força física nesta época do mês. E nada parecia muito revirado.

— Talvez eles fossem alvos fáceis e os lobisomens não precisassem usar a força física. — O estômago de Della se apertou.

— Pode ser. Já chamei uma perita paranormal para fazer a autópsia. Saberemos mais quando tiver terminado o laudo. É quase certeza de que vai demorar alguns dias. — Seu olhar se desviou para Lucas. — O que você acha?

— Ele vai defender a própria espécie — Della disse com ironia.

Burnett franziu a testa.

— Deixe ele responder primeiro.

— Mas ele já me disse. Não acha que eram...

Burnett pigarreou. Della percebeu que ele tinha razão. Não era em Lucas que ela precisava descarregar a sua raiva.

— Desculpe — disse para o lobisomem. — Eu só... — Aquele maldito nó na garganta apareceu mais uma vez.

— Está tudo bem. — Lucas inclinou-se. — Dói... perder as pessoas de quem gostamos.

Della lembrou que Lucas tinha perdido a avó não fazia muito tempo.

Burnett se acomodou melhor em sua cadeira.

— Então, o que você captou? — perguntou a Lucas outra vez.

— Seis rastros diferentes. Três eram fracos, como se fossem de mestiços.

— Seis? — perguntou Della. Ela se deu conta de que não tinha percebido algo importante. — Os cheiros que eu senti na joalheria, eles não eram... conhecidos. Eu não sei se pertenciam aos mesmos caras que vi mais cedo.

— Você os viu? — perguntou Burnett.

— Foi por volta das sete e meia. Eu saí... por um instante. Senti o cheiro deles e passei a voar mais baixo. Estavam a cerca de meio quarteirão da loja.

— Quando diz que sentiu o cheiro deles, isso inclui sangue?

— Não — disse Della. E se ela sequer tivesse visto os assassinos? Precisava parar de tirar conclusões precipitadas.

— Você conseguiu dar uma boa olhada neles? — perguntou Burnett.

— Sim. Tinham em torno da minha idade, talvez um pouquinho mais.

— Estavam com trajes de gangue?

— Não — disse Della. — Pareciam jovens lobisomens dando uma volta num sábado à noite.

— Pode ser justamente esse o caso — disse Burnett. — Mas mesmo que sejam inocentes, podem ter visto alguma coisa. Você acha que conseguiria descrevê-los?

— Sim — disse Della.

Ele a ouviu descrever os traços faciais dos lobisomens e registrou as respostas no celular.

Depois de colocar o telefone de volta no bolso, Burnett girou a xícara nas mãos como se hesitasse tocar em outro assunto.

— O espírito da sua vizinha te contou alguma coisa?

— Não. Ela estava confusa. — Então Della se lembrou do gato. — O gato dela estava no seu colo e depois não estava mais. Ouvi alguém dizer que o gato ainda estava vivo e que alguém tinha que levá-lo ao veterinário. — Della engoliu outro nó na garganta. — A gente sabe que lobisomens e felinos não se dão muito bem.

— E o fato de o gato ainda estar vivo pode significar que não eram lobisomens — Lucas acrescentou.

Della não podia negar.

Burnett suspirou.

— Saberemos mais quando as autópsias saírem.

— Será que a família já foi notificada? — Della lembrou que a filha deles morava na Califórnia.

Burnett olhou para a sua xícara.

— A polícia está cuidando disso.

Della se lembrou da senhora Chi segurando seu gato listrado. Ela amava Chester.

— Você pode descobrir para onde levaram o gato?

Burnett fez que sim.

O silêncio encheu o ambiente. Apenas garfos se chocando contra pratos.

— Eu quero trabalhar no caso — disse Della.

Burnett levantou uma sobrancelha.

— Você já está trabalhando num caso.

— Você trabalha em dois ou três casos ao mesmo tempo — rebateu Della.

— Eu não tenho 17 anos — disse ele, franzindo a testa.

— Vou fazer 18 mês que vem!

Burnett olhou para Lucas.

— Por que você não volta pra Shadow Falls? Eu levo Della para casa.

Della revirou os olhos. Ela não precisava que a levassem para casa!

Lucas estendeu a mão para pegar a conta.

— Pode deixar que eu pago — disse Burnett, sentando-se na cadeira de Lucas.

Della observou Lucas se afastando, então se virou para Burnett.

— Seu lado machista está mostrando as garras de novo... O que acha de dar um chega pra lá nele?...

— O quê? — Burnett perguntou, com a testa franzida.

Ela sacudiu a cabeça.

— Lucas vai ter que andar mais para chegar até o carro do que eu para chegar em casa. Por que você não foi acompanhá-lo?

Burnett piscou.

— Eu queria conversar com você... a sós.

— Então aquele comentário sobre me levar para casa era só para disfarçar? É isso que está dizendo?

Ele abriu a boca para responder, depois voltou a fechá-la. E ela sabia por quê. Ela ouviu o coração dele acelerar, pronto para contar uma mentira.

— Acho que não...

— Caramba! Tudo bem! — protestou Burnett. — Pode me xingar porque eu queria ter certeza de que vai chegar em casa em segurança.

— Não, vou te xingar por achar que eu não posso cuidar de mim mesma. E não diga que é porque se importa comigo. Porque você se importa com ele também. É porque sou uma garota.

Ele passou a mão no rosto.

— Ok, admito. Posso ser um pouco mais protetor com as garotas. Isso faz de mim um cara machista? Acho que não. Mas posso ouvir Holiday na minha cabeça dizendo que sim.

Ela sorriu com ar de vitória.

— Você deveria ouvir mais a sua esposa.

Os olhos dele ficaram um pouco mais brilhantes.

— Eu deixo que me avise sempre que estou sendo machista, mas é bom que vá se acostumando. Não vou conseguir mudar, porque não vou parar de me preocupar com você. Não mais do que você ou Chase vão parar de me arranjar problema.

Della recostou-se, apreciando o fato de Burnett aceitar que ela não cederia. Porque, caramba!, sim, faria questão que ele...

— Você já viu Chase? — ela perguntou.

Burnett não disse uma palavra. Nem precisava dizer.

— Ele entregou Feng? — ela perguntou, com um fio de esperança, mesmo que o seu coração soubesse que Chase protegeria Feng, assim como ela protegeria o pai.

— Não. Ele está dizendo que um homem chamado Douglas Stone matou sua tia.

— E então?

— E eu só coloquei as mãos na ficha do cara dois minutos antes de a sua mensagem chegar.

— A ficha dele?

— O Conselho dos Vampiros andou procurando o sujeito. Mas não conseguiram encontrá-lo.

Ela afundou na cadeira.

— Você acredita nisso? É bem conveniente, não acha? Meu tio é acusado de assassinato e de repente eles sabem quem matou a irmã dele.

— Você tem razão. Pode ser mentira. Mas não é que ele não se lembrasse de quem fez aquilo. A ficha mostra que o Conselho está procurando esse cara há mais de quinze anos.

— Então, se Feng é inocente, por que não sai do esconderijo? Por que não se apresenta e conta tudo à UPF?

Burnett pousou a mão sobre a mesa.

— Talvez porque sabe que, se não o encontrarem, ele vai ser acusado. Ou talvez... esteja escondendo mais alguma coisa.

— O que mais poderia estar escondendo? — perguntou Della.

— Não sei.

— Mas você acredita em Chase?

— Acredito que Chase acredita nisso. Só não sei se ele está certo.

— Então Chase simplesmente apareceu do nada, logo antes de você vir para cá, e deu na sua mão a ficha de quem eles acham que matou a minha tia?

Burnett puxou a xícara mais para perto.

— É um pouco mais do que isso.

Alguma coisa no jeito como Burnett desviou os olhos quando respondeu revelou que havia algo que ela ainda não sabia.

— Ah, mas que bosta! O que você não está querendo me contar?

Burnett olhou para ela.

— Chase se demitiu do Conselho.

— Ele... se demitiu? Mas era tão leal a eles!

Burnett girou a xícara outra vez.

— E... mandou o currículo dele para a UPF.

Ela sacodiu a cabeça. Menos de um mês atrás, quando Della pensava que o relacionamento estava evoluindo, ela tinha sugerido que Chase fizesse justamente isso. Ele tinha respondido que ela é quem deveria trabalhar para o Conselho. Eles haviam tido uma briga.

Então, antes que qualquer uma dessas duas coisas tivesse acontecido, ela descobriu todas as mentiras dele, seus artifícios para enganá-la, e ele tinha fugido.

Então, por que tinha se demitido agora? Será que tinha segundas intenções?

— Você vai contratá-lo?

— Eu não contrato agentes. — Ele fez uma pausa. — Mas, sim, a UPF vai contratá-lo.

— Mas ele foi falar com você sobre isso? — ela acusou. — Então você o ajudou...

— Na verdade, ele foi falar com eles primeiro.

Burnett ergueu a xícara.

— Outra coisa. Duas, na verdade.

— Por que eu tenho a sensação de que não vou gostar?

Quando ele não respondeu de imediato, ela suspirou.

— Apenas me diga.

— Chase vai trabalhar sob o meu comando. E morar em Shadow Falls.

Ele colocou a xícara de volta na mesa. O baque da xícara de cerâmica branca na mesa pareceu pontuar suas palavras.

— Ora, mas isso não é fantástico?! E por quê? — ela perguntou.

— Por várias razões. — Os olhos dele se apertaram. — Embora eu acredite em Chase quando diz que não sabe onde o tio está, não custa nada ficarmos de olho nele para o caso de Feng decidir entrar em contato. Você tem que concordar com isso.

Ela concordava, sim, mas gostava tanto quanto um soco no estômago. Puxou a xícara mais para perto e, quase como se estivesse punindo a si mesma, tomou um gole.

Droga, como era horrível! Teve que se esforçar muito para não cuspir tudo.

— Qual é o outro motivo?

Ele se inclinou um pouco mais para a frente.

— Chase me deixa possesso. Ele é arrogante e cabeça-dura.

Será que lembrava alguém?, Della quase falou, mas mordeu a língua.

— Apesar de estar equivocado às vezes, as intenções dele são boas. Com algum treinamento, será uma grande cartada tanto para a UPF quanto para Shadow Falls.

Ouvir coisas positivas sobre alguém que a tinha magoado tanto era como espremer um limão depois de cortar o dedo com papel. Doía. Uma dor que chegava até o osso.

Burnett a encarou com um olhar severo.

— Você e Chase, vocês vão se dar bem.

— Ah, mas claro que vamos! Vamos ser como unha e carne. — Ou fogo e gasolina. — Você sabe onde ele está agora?

Burnett olhou bem para ela.

— Não pense nem por um minuto que estou dizendo que você tem que fazer as pazes com ele. A decisão é sua e somente sua. E se ele tentar te pressionar, seja do jeito que for, vou chutar a bunda dele com tanta força que vai se ver na França outra vez antes mesmo de recuperar o fôlego.

— Não se preocupe — disse Della. — Quando tentar me pressionar, nem vai estar mais respirando! — Ela se levantou. — Ele está em Shadow Falls agora?

Burnett franziu a testa.

— São quase duas da manhã. Você vai voltar para casa. Vou ligar amanhã e falar com o seu pai sobre você voltar para Shadow Falls. Aí você vai poder interrogar Chase.


Capítulo Oito

Já fazia uma hora que a preocupação corroía o estômago de Chase. Ele por fim se vestiu e saiu para dar uma volta ao redor da escola. Voou baixo, diminuindo a altura do voo para passar sob as árvores, só tentando aplacar um pouco a ansiedade que corria pelas suas veias. Ele queria ver Burnett chegar e se certificar de que Della estava bem, antes de sair para interrogar alguns vermes. Sim, porque o pequeno sermão de Burnett tinha dado a Chase algumas ideias.

Della ainda não tinha respondido à sua mensagem. Não que ele achasse que ela responderia. Algo que ele iria corrigir muito em breve. Ele queria que as coisas voltassem a ser como antes. Quando ela ficava feliz em vê-lo. Quando, ao se inclinar para roubar um beijo, ele não corria o risco de perder um olho.

Recordando aquele beijo, ele percebeu que queria mais. Queria tudo dela. Queria protegê-la, tocá-la. Tê-la ao seu lado noite e dia.

Será que bastaria para ela que ele tivesse desistido do Conselho e se tornado agente da UPF? Ou será que ela ainda desejava fazê-lo pagar pelos seus erros do passado? Ele torcia para que não. Mas, conhecendo Della, sabia que ela não o perdoaria assim tão fácil.

Enquanto voava ao longo da cerca de Shadow Falls, viu os faróis de um carro entrando no estacionamento.

Quando Lucas desceu do carro, Chase se aproximou.

— E aí?

— Você está meio atrasado — disse Lucas.

Chase não sabia muito bem como responder, então decidiu não dizer nada.

— Della está bem?

— Sim, está.

— O que aconteceu? — Chase perguntou.

— Um casal de idosos, vizinhos de Della e dos pais, foi assassinado. Parece que Della conhecia bem os dois e gostava deles.

— Mas que droga... — lamentou Chase, lembrando-se da conversa rude que Della ouvira na noite anterior, entre os pais, e sabendo que ela não precisava de mais uma tragédia. — Pegaram os assassinos?

— Ainda não. Burnett está esperando a autópsia.

— Então é um caso para a UPF? Os assassinos eram sobrenaturais?

— Muito provável. — Lucas começou a andar na direção do portão.

— Vampiros? — Chase perguntou, sabendo que isso só tornaria as coisas mais difíceis para Della.

— Lobisomens — respondeu Lucas. — Mas eles ainda não têm certeza.

— Onde foram mortos? — Chase se lembrou do cheiro de lobisomem que sentira ao deixar a casa de Della.

— Num centro comercial no bairro dela.

— Nossa! Eu senti mesmo cheiro de lobisomem e de sangue perto da casa dela ontem à noite, quando passei por lá mais cedo.

— De sangue? E você não foi ver o que era?

— Não. Quer dizer, voei mais baixo, mas o sangue era animal.

Lucas franziu a testa.

— De um felino?

— Eu... não tenho certeza. — Lobisomens, por serem caçadores por natureza, conseguiam distinguir melhor os diferentes tipos de sangue animal. — Por quê?

— Um gato foi ferido também.

— Caramba! — exclamou Chase. — Deviam ser eles, então.

— É melhor você contar a Burnett.

— Vou contar. — Mas ele teria que fazer isso depois do seu compromisso, algo que Chase tinha sérias suspeitas de que Burnett não aprovaria. Convenhamos, Burnett estava prestes a apresentar suas regras, então era melhor que Chase fizesse tudo que fosse possível antes que tivesse de prometer cumpri-las.

Chase passou pelo escritório, ao voltar para as cabanas. Tentou pensar numa maneira de pedir mais informações sobre Della.

— Então Burnett não deixou você vir esta noite? — perguntou Lucas.

— Não — disse Chase, outra resposta franca. Era melhor não tentar esconder mais nada. Ele poderia se acostumar a isso.

O lobisomem encolheu os ombros.

— Acho que foi melhor assim. Della está bem chateada com você.

— Ela te disse isso? — O que mais teria mencionado?

— Não. Ela disse a Kylie. — Lucas franziu a testa. — E Kylie me fez prometer não dizer nada. O que significa que eu preciso aprender a ficar de boca fechada.

— Não se preocupe — tranquilizou-o Chase. — Eu não acho que a antipatia de Della por mim seja segredo pra ninguém agora.

Della voltou para casa. Graças a Deus, Burnett não tinha insistido em acompanhá-la. Mas ele não deixou que ela fosse embora sem antes lhe dar um aviso.

— Tenha cuidado.

Como se ela fizesse outra coisa além de ter cuidado.

— Me passe uma mensagem quando chegar.

Ela revirou os olhos, mas não perdeu tempo mandando-o mais uma vez para o inferno.

Por mais tentador que fosse desafiar Burnett e ir atrás de Chase, ela sabia que o agente ficaria furioso. E Burnett furioso era jogo duro. No entanto, ainda com as emoções à flor da pele, ela fez o caminho mais longo até sua casa apenas para gastar mais energia. E para verificar se havia algum lobisomem perambulando pela região. Mesmo com o coração pesado por causa de Chase, seu tio e a acusação de assassinato contra seu pai, ela tinha a intenção de descobrir quem tinha matado seus vizinhos. Encontrá-los e fazê-los pagar por isso.

Seguindo a linha das árvores, ela voou mais baixo quando chegou perto do centro comercial, perto o suficiente para sentir todos os rastros. Nada. Até o mais leve resquício havia desaparecido. Esquivando-se das copas das árvores, resolveu voltar para casa, mas então viu o bosque onde ficava o parque. Decidida a fazer apenas uma passagem rápida por lá, ela mudou sua rota.

A lua, quase cheia, pulverizava luz sobre as árvores, produzindo sombras. A princípio ela não notou coisa alguma, mas então percebeu. O cheiro almiscarado de lobisomem; mais de um, na verdade. Sabendo do perigo que era enfrentar lobisomens tão perto da lua cheia, ela decidiu apenas voar por ali. Se eles parecessem suspeitos, ela ligaria para Burnett.

Viu, Burnett? Eu tomo muito cuidado!

Ao voar um pouco mais baixo, os rastros ficaram mais intensos e mais familiares. Mas como ela não tinha identificado muito bem os cheiros na joalheria, não tinha certeza se eram dos mesmos lobisomens que vira antes. Ela precisava ver os caras para confirmar.

Antes que avistasse os lobisomens, ela viu outra pessoa. Uma garota. Uma garota humana, se o nariz de Della estava certo. Ela estava correndo, suando, o medo exalando por todos os poros. Della perdeu a garota de vista, quando outro aglomerado espesso de pinheiros ergueu-se do chão. Mas o que ela não perdeu foi o som do grito da menina. Ele se elevou no ar e o terror puro que Della percebeu no grito causou um arrepio na sua espinha.

Dane-se! Já não dava mais para ser cuidadosa.

Ela começou a descer.

Quando passou por um bosque, viu a menina loura, não aparentando mais de 15 anos, cercada por lobisomens. O estranho é que os cheiros não eram muito fortes, talvez nem fossem lobisomens puro-sangue. O que significava que talvez não estivessem em sua força plena, também.

— Eu chamei a polícia, seus idiotas, e eles já estão vindo! — a garota gritou, cheia de bravura, mas o tremor em sua voz denunciava seu medo.

Della contou quatro deles. Com certeza absoluta, ou quase isso, de que conseguiria dar conta de todos os quatro, dependendo apenas de quanta força lunar eles tinham, Della voou para baixo. Sentindo seus olhos ficarem mais brilhantes e seus caninos se projetarem, ela pousou bem no meio do grupo.

Eles perceberam assim que ela aterrissou, ou talvez um segundo antes, porque desviaram os olhos da garota para encará-la. Sem dúvida, a antipatia deles por vampiros fazia dela um alvo ainda mais atrativo. Aqueles lobisomens não eram os garotos que ela tinha visto antes. Mas ela não podia dizer com certeza se eram os lobisomens que tinha farejado na joalheria. Mesmo assim, eles pareciam bem mal-encarados.

Pelo canto do olho, Della viu a garota fugir correndo e sentiu alívio por não ter que se preocupar com ela.

— Desculpe me intrometer — ela disse com ironia, enquanto avaliava a situação. Ela sabia que ficaria bem se apenas conseguisse manter distância e atrair a atenção deles, sem deixar que pusessem suas patas sujas em cima dela. Apurou as orelhas para ouvir a menina, avaliando a distância a que estava. Quando sentisse que a garota já não estava em perigo ou tinha chegado a um lugar público onde os lobisomens não poderiam atacá-la, ela conseguiria sair de lá voando e deixar os vira-latas a ver navios. Então ligaria para Burnett.

Era um bom plano. E um plano que teria funcionado se seus ouvidos não estivessem tão atentos à garota, distraindo-a dos dois lobisomens que se aproximaram por trás. Cada um agarrou-a por um braço.

Com certeza eram lobisomens mestiços, porque o cheiro deles não era tão forte.

Ah, merda! Ela sentiu um punho bater em suas costelas e perdeu o fôlego. Preocupou-se por um instante ao perceber que talvez não tivesse quebrado apenas uma unha. Não que ela fosse facilitar para eles... ou deixar que levassem a melhor.

Ela apenas teria que enfrentar mais alguns socos e pontapés...

— Ah, então vocês querem lutar, não é? Por que não me disseram antes?

Desvencilhando-se das garras de um dos lobisomens, ela desferiu um soco contra mais um que surgiu para confrontá-la. Ele desabou no chão.

Outro correu na frente dela, o punho preparado para golpeá-la. Ela chutou o brutamontes direto nos países baixos. Ele gritou como um filhotinho.

Então ela usou o cretino, que ainda se segurava a ela, como um pino de boliche para derrubar os outros dois que vinham na sua direção.

Estava se preparando para voar quando outros dois saltaram por trás dela.

Merda! Recuou o punho.

Merda! Começou a chutar.

Merda! Tomou um soco forte no estômago.

Chase pousou ao lado do centro comercial, ainda decorado com a fita amarela da polícia indicando a cena do crime. Prendeu o ar nos pulmões, depois de respirar fundo. Um leve rastro de lobisomem pairava no ar, mas não forte o suficiente para que ele pudesse ter certeza de que se tratava do mesmo cheiro com que tinha se deparado mais cedo. Olhando para o norte, em direção à casa de Della, a tentação de ir até lá bateu forte. Muito forte.

Será que Burnett tinha contado a Della sobre ele?

Ela estaria empolgada, indiferente ou chateada?

Droga, ele queria vê-la!

Quase arrancou em direção à casa dela, mas ouviu em sua cabeça o aviso de Burnett. Você disse que queria conquistar o meu respeito. Então comece a conquistá-lo me ouvindo.

Reprimindo seu impulso, ele decolou para longe da casa dela, mas quando estava no ar viu duas viaturas da polícia, luzes piscando, descendo a toda velocidade uma rua — uma rua que levava ao parque.

Achando que isso talvez pudesse ter algo a ver com os lobisomens, e se sentindo um pouco mal por não ter checado isso mais cedo aquela noite, Chase acelerou, na esperança de se inteirar da situação antes que a polícia chegasse.

Da posição em que estava, que não lhe permitia uma visão muito boa, viu e farejou o problema. Lobisomens. Com certeza lobisomens, ou pelo menos lobisomens mestiços. Um grupo deles. Ele achava que eram uns seis — não, oito —, todos contra um. Ele respirou fundo e soube no mesmo instante que alguns daqueles caras eram os mesmos com quem tinha cruzado mais cedo. Outra inspiração profunda e seu nariz captou o cheiro de vampiro. A vítima, talvez? Depois o cheiro explodiu em seu cérebro e foi direto para o coração. O ar em seu peito congelou.

— Caramba! — sibilou, rezando para que não fosse tarde demais.


Capítulo Nove

Quando estava a poucos metros do tumulto, Chase viu que Della ainda estava de pé. Sangrando, mas de pé. E o cheiro de sangue da sua parceira de ligação o deixou sedento de mais sangue. Com um rosnado partindo da alma, ele arremessou os lobisomens para longe de Della, dois de cada vez. Seus corpos aterrissaram entre as árvores, um deles chegando a ficar preso nos galhos de um pinheiro.

Ainda envolvida no caos da briga, Della golpeou Chase no queixo. Doeu demais, mas ele nem se mexeu.

— Sou eu! — Chase tentou chegar onde ela estava, mas Della recuou, com o punho ainda fechado.

De repente, o reconhecimento atingiu Della.

— Eu pensei...

Ela prendeu o fôlego e passou a mão sobre o lábio, manchando de sangue a bochecha.

— Você está bem? — ele perguntou, o ar ainda preso em seu peito, a fúria fazendo seu sangue borbulhar e deixando seus olhos incandescentes.

— Eu podia ter dado conta sozinha — ela retrucou.

O fato de ela ainda ter seu orgulho intacto era um sinal de que estava bem.

— Sim, mas eu não quero que você fique com toda a diversão. — Sirenes encheram a noite e luzes azuis brilharam por entre as árvores. Ruídos de pneus guinchando ao parar na orla do parque ecoaram.

— Temos que dar o fora daqui! — ele disse e sorriu. Della não levantou voo. Ele ouviu passos se aproximando rápido e correu para a frente, agarrou-a pela cintura e puxou-a de encontro a ele — onde ela se encaixou à perfeição —, decolando no céu escuro. Eles mal tinham ultrapassado as copas das árvores quando ele ouviu os policiais abordando os lobisomens.

Por uma fração de segundo, ela lutou para se desvencilhar dele.

Olhando para baixo, ela deve ter visto a polícia. Então ficou quieta, seu corpo colado ao dele, o coração batendo de encontro ao seu peito, enquanto Chase voava para longe. Que Deus o ajudasse, mas ele podia jurar que o coração dela estava batendo mais rápido do que o dele.

Seria por causa da sua presença? Ou ela só estava reagindo ao ardor da luta?

— Aterrisse — ela disse por fim.

— Só mais um pouco. — Ele saboreou a proximidade do corpo dela e pressionou o rosto na curva do seu pescoço. O doce aroma da pele dela e do xampu encheu o nariz de Chase.

Sabendo que ela não iria tolerar a proximidade por muito tempo, ele aterrissou num beco a uma quadra da casa dela.

Ela se afastou dos braços dele assim que seus pés tocaram o chão. Ainda desequilibrada, olhou para ele com olhos brilhantes.

— Onde está Feng?

Chase respirou fundo e tentou se enganar, convencendo a si mesmo de que a raiva que ela sentia ainda era resquício da briga com os lobisomens.

— Eu não sei.

— Não sabe porque disse a ele para não contar a você?

Ele quase negou, mas estava cansado de mentir para ela.

— Sim. Feng não a matou, Della. Eu vou encontrar a pessoa que fez isso. E vou livrar o seu pai da cadeia.

Della apenas olhou para ele, a mágoa refletida em seus olhos.

— Por que meu tio não se entrega e diz que é inocente? — Incapaz de se conter, ele estendeu a mão para colocar atrás da orelha uma mecha do cabelo escuro dela. Ela o deteve, levantando a mão, e ele reparou nos hematomas nos dois braços dela e no rosto também.

— Você tem certeza de que está bem? — A vontade de voltar correndo e esmurrar os cretinos que a tinham machucado queimava em suas entranhas.

— Eu fiz uma pergunta! — Ela deu um passo para a frente, seus olhos de um tom laranja brilhante.

Ele teve que pensar por um segundo para se lembrar do que tinha sido perguntado.

— Se Eddie se entregar, a UPF simplesmente vai jogar o assassinato nas costas dele. Eles nem vão procurar esse outro cara.

— Você não pode ter certeza — ela acusou. — E o nome dele não é Eddie!

— Sim, eu sei disso, e você também. Mas desde que ele me resgatou daquele acidente de avião e salvou a minha vida, eu o conheço como Eddie.

Então ele sentiu aquele frio sobrenatural que costumava acompanhar a tia morta de Della. Enfiou as mãos nos bolsos do jeans.

Della olhou para o beco escuro, abrindo e fechando os punhos com força. Ainda seria o pânico, ou a tia estava de volta para causar problema? Então ela se virou para encará-lo.

— Nós precisamos voltar.

— Voltar...? — Estava quase frio demais para pensar.

— Ao parque. Um daqueles lobisomens pode ser o assassino.

— Sim, mas a polícia está lá.

— Não importa. — Ela começou a andar como se fosse decolar.

Ele a pegou pelo braço.

— Importa, sim. Se a gente aparecer, eles vão suspeitar que fazíamos parte da gangue. Eu não acho que Burnett ia gostar de nos tirar da prisão.

— Talvez eles sejam os assassinos de algumas pessoas de quem eu gostava. — A voz dela tremeu e sua respiração fez com que uma nuvem de vapor pairasse diante dos lábios dela. Ela olhou outra vez para o beco.

— Por acaso tem mais alguém aqui? — ele perguntou.

Della se virou para Chase, surpresa.

— Você consegue vê-la?

— Não. — Pelo menos ele esperava que não. Não ia nem arriscar olhar para aquele beco. — Eu só sinto o frio.

— Ela era minha vizinha. — A voz dela ficou embargada de dor e tristeza.

Chase percebeu que Della não tinha se afastado dele. Daria seu braço direito para que ela se recostasse em seu corpo. Della não era do tipo que se apoiava nas pessoas com muita frequência, mas, se ela precisasse, ele queria ser a pessoa a quem ela recorreria.

— Sinto muito — disse ele.

— Você não é o único que sente muito. É por isso que eu tenho que voltar.

Ele apertou mais o braço dela.

— Voltar lá é uma péssima ideia. — Mas ela tinha razão. A UPF precisaria interrogar os lobisomens antes que a polícia humana os soltasse.

— Eu vou ligar para Burnett. — Sem dúvida ele ficaria furioso ao descobrir que Chase estava com Della. Era certeza que Chase levaria uma bronca homérica, mas isso não importava.

O telefone de Della apitou com a chegada de uma mensagem de texto. Como se de repente ela percebesse que Chase a estava tocando, ela olhou para a mão em seu braço e puxou-o; em seguida, pegou o celular do bolso. Depois de ler a mensagem, olhou para a frente, intrigada.

— O que foi? — ele perguntou.

— É Burnett. Ele quer saber se estamos bem.

Chase franziu a testa.

— Ele sabe?

— Parece que sim... — Ela começou a escrever uma mensagem em resposta. Antes que terminasse, Chase sentiu o cheiro do vampiro. E Della também, porque seus dedos pararam de digitar. Chase sentiu um nó no estômago, preparando-se para enfrentar um furacão.

Burnett ainda não tinha os dois pés no chão quando Della o interpelou:

— Nem comece a me passar sermão. Tudo que eu fiz foi pegar o caminho mais longo para casa. E se eu não tivesse feito isso, uma pobre garota teria...

— Eu não vou te passar um sermão — disse Burnett.

Será porque está guardando o sermão para despejá-lo todo sobre mim depois? Chase ficou quieto, temendo o que estava por vir.

— Você está bem? — Burnett perguntou a Della.

— Tudo bem. — Ela parecia ofendida com a pergunta.

— Sentiu o cheiro deles? — perguntou Burnett. — São os mesmos de antes?

— Eles não são os garotos que eu vi andando por aí. Não consegui localizar um rastro forte o suficiente para saber se eram os mesmos da joalheria. Acho que são mestiços.

— Mas eles são os que eu farejei mais cedo, junto com o sangue animal — intrometeu-se Chase.

Ambos, Della e Burnett, pararam para olhar para ele.

— Você esteve aqui antes? — perguntou Burnett.

Della não pareceu surpresa; ela sabia que Chase tinha estado na região. Mas não tinha contado a Burnett. Estaria tentando protegê-lo do grande e malvado Burnett? Chase gostou desse pensamento.

— Sim, antes que eu fosse para Shadow Falls. Por volta das sete.

— Então, mais ou menos na hora do assassinato — disse Burnett. — Você viu os lobisomens?

— Não, apenas farejei.

Burnett ficou em silêncio, como se estivesse tentando digerir tudo.

— O sangue, era de...

— Eu não fiquei tempo bastante para identificá-lo como o de um felino. — Quando Burnett pareceu surpreso, Chase acrescentou: — Cruzei com Lucas quando ele voltou. Ele me contou sobre o gato. Por isso que eu vim aqui, ver a cena do assassinato... para ver se eu ainda podia sentir o rastro dos lobisomens. — E para ter uma conversinha com uns cretinos... Mas ele não disse isso.

Burnett não parecia irritado. Será que estava se contendo para soltar os cachorros quando estivesse sozinho com Chase? Burnett olhou para o céu como se tentasse bolar um plano.

— Della — disse ele. — Volte para casa. Direto para casa.

Della franziu a testa.

— Mas...

— Não discuta. Se seus pais descobrirem que você não está em casa, isso só vai complicar as coisas.

Chase viu uma centelha de raiva nos olhos de Della, mas ela assentiu com a cabeça. A garota respeitava muito Burnett. Essa era parte da razão por que Chase o respeitava também.

— Você vai me mandar uma mensagem e dizer se conseguiu uma confissão?

— Vou.

Ela decolou sem se despedir de Chase, nem ao menos lhe lançou um olhar oblíquo, como quem diz: “Vai pro inferno”. Ele teria preferido esse olhar do que nada. Isso o magoou um pouco.

Burnett voltou seu olhar sombrio e acusador para Chase.

— Eu não estava planejando ver Della — defendeu-se.

— Eu sei. — Ele começou a caminhar de volta para o parque.

Chase o alcançou.

— Como você sabe?

— Coloquei alguém para seguir vocês.

As palavras de Burnett transpassaram Chase como uma faca.

— Isso é golpe baixo, não acha?

— Não — negou Burnett, sem se preocupar se Chase estava contrariado.

— Então você tem o direito de mandar me seguirem?

— Até que eu confie em você, sim.

E até quando, pelo amor de Deus, isso vai acontecer?! Então Chase usou a lógica.

— Você não mandou me seguir. Eu teria pego o cheiro do cara no ato.

— Não se essa pessoa for Perry — Burnett rebateu.

Perry era um dos melhores matamorfos que Chase conhecia. E os metamorfos bons de verdade podiam alterar o próprio rastro para não serem identificados. Mas Perry devia estar na França... com Steve.

— Perry e... Steve estão de volta?

— Voltaram ontem. — Burnett deu uma olhada rápida em Chase. — E você não vai criar caso por causa disso, entendeu?

Se Steve ficasse longe de Della, Chase não criaria caso nenhum.

— Você é que manda.

— É melhor você entender isso de uma vez por todas — advertiu Burnett. — Ao primeiro sinal de problema, você dança. Steve é meu aluno. Você é um agregado indesejável.

Chase teve que cerrar a mandíbula para não dar uma resposta malcriada.

Depois de mais alguns passos, Burnett acrescentou:

— E como parece que você não tem nenhum interesse em dormir à noite, por que não vem comigo entrevistar os lobisomens?

Chase recordou seu outro compromisso. E percebeu que não seria mais possível cumpri-lo. Talvez no dia seguinte.

— Claro.

— Não! — O grito, o grito de sua mãe, fez Della se sentar na cama de um salto, às sete da manhã. Será que ela tinha sonhado? Só podia ser um sonho, certo? Ela voltou a se deitar.

Às três da manhã tinha recebido uma mensagem de Burnett dizendo que estavam aguardando a autorização para levar os lobisomens para a UPF. Já eram quatro horas quando Della por fim esqueceu a raiva e a lembrança de ter ficado tão perto de Chase e deixou o sono dominá-la. O grito ecoou mais uma vez. Ela voltou a se sentar num salto e então correu para abrir a porta do quarto, descendo as escadas em dois segundos.

Era mesmo a sua mãe.

— O que foi?! — Della gritou, disparando para a cozinha e sentindo a temperatura gelada no cômodo. O frio característico era sinal de que se tratava de... alguém do outro mundo.

A mãe estava na frente da mesa, com as mãos agarradas ao encosto da cadeira de madeira. O olhar fixo em... O coração de Della parou. Sentada à mesa estava a senhora Chi, com a garganta aberta, a ferida expondo os tendões veias e alguma outra coisa desagradável.

Era assim que ela tinha morrido? Alguém tinha cortado a garganta dela? A garganta de Della de repente começou a doer também.

Ela engoliu a náusea e olhou para a mãe. Algo estava muito errado. E não era apenas a garganta da senhora Chi. Era... era... Como a mãe podia estar vendo a senhora Chi?

— O que... é? — Della se forçou a dizer, tentando convencer a si mesma de que se tratava apenas de um mal-entendido. A mãe dela não estava vendo o fantasma. Não poderia estar, poderia?

— A senhora Chi — murmurou a mãe, com terror e lágrimas nos olhos.

Santa Virgem do Pau Oco! A mãe podia ver a senhora Chi. Como isso era possível? Talvez fosse apenas um sonho. Della beliscou a perna. Aquilo doeu. Não era um pesadelo.

— Não olhe pra ela. — Della pegou a mãe pelos ombros e virou-a para que ficasse de frente para ela, de modo que não precisasse encarar a mulher morta.

A mãe piscou para Della como se estivesse confusa.

— Eles não mostraram o corpo. Só disseram que...

Foi então que Della percebeu que, por trás da mesa e do corpo ensanguentado da senhora Chi, havia uma televisão. Na tela, um repórter estava na frente da loja dos Chi, relatando a história de horror que tinha acontecido na noite anterior. O peito de Della queimou outra vez diante da injustiça de tudo aquilo.

Ela desviou os olhos para a senhora Chi. Sinto muito.

Respirando o ar frio, tão frio que seus pulmões corriam o risco de congelar, tentou deter o pânico que se avolumava dentro dela. Isso não era nada fácil, não enquanto a senhora Chi olhava com perplexidade para a própria blusa manchada de sangue. Depois levantou a cabeça, expondo a garganta cortada outra vez, e seus olhos encontraram os de Della. O que aconteceu?

Passos soaram atrás dela.

— O que aconteceu? — soou a voz sobressaltada do pai.

— O noticiário. — A mãe, com os olhos brilhantes de lágrimas, apontou para a televisão. — A senhora e o senhor Chi foram assassinados na loja ontem à noite. Pobre casal... Quem poderia ter feito uma coisa dessas?

Assassinados? A velhinha levantou da cadeira e... uma bola de basquete suja de sangue rolou pelo chão da cozinha, deixando um rastro vermelho nos ladrilhos brancos até quicar nos pés descalços do pai de Della.

Claro que ele não sentiu nada. Nem viu a bola. Ela estava ali apenas para os olhos de Della. Que sorte a dela! Mas que raios a senhora Chi estava fazendo com uma bola de basquete?

A senhora Chi andou até Della. Seus olhos puxados cheios de perplexidade. Onde está meu marido? Para onde ele foi?

Arrepios percorriam os braços de Della.

— Como... como isso pode ter acontecido? — o pai dela murmurou, os olhos fixos na tela da televisão, onde o repórter continuava falando. Então ele se virou e olhou direto nos olhos de Della.

Será que ela ainda estava com hematomas? Della correu a língua pelos lábios, eles não estavam mais machucados. O rosto devia estar recuperado também. Então por que o pai...

— Como isso pode ter acontecido? — ele perguntou novamente, como se... como se a filha tivesse a resposta.

— Eu... eu não sei — Della respondeu, tentando entender a emoção nos olhos do pai. Emoção que parecia muito...

Ele piscou.

— Isso é muito estranho! — Ele saiu a toda da cozinha, quase tão rápido quanto entrou.

Della esfregou o braço para espantar o frio, causado tanto pela presença da senhora Chi quanto pela expressão do pai. Então fitou a mãe.

— O que foi aquilo?

— O quê? — a mãe perguntou, desabando na cadeira.

— Papai... ele está agindo como se...

— Como se o quê?

— Nada — apressou-se a dizer, olhando para onde o pai desaparecera. De repente uma resposta começou a se formar na sua mente, as peças do quebra-cabeça se encaixando e causando uma dor avassaladora em seu peito. Seria por isso?... Ah, Deus, por fim ela estava entendendo o que estava se passando, o que estava se passando havia meses... e a constatação fez com que os alicerces da sua vida começassem a ruir sob os seus pés. E não havia nada que pudesse fazer a respeito.

A não ser desabar também.


Capítulo Dez

Chase se sentou no escritório de Burnett, no quartel-general da UPF. Ele sabia que era a sala de Burnett porque as paredes estavam decoradas com fotos de Holiday e Hannah. Por um segundo, sua mente cansada se perguntou como seria. Ter um filho. Com Della. Não que ele já estivesse pronto para isso. Não, ele ainda tinha que roubar beijos! Não podia nem abraçá-la quando bem quisesse. E isso ele realmente queria.

O corpo dele recordou a sensação de tê-la bem perto dele, durante o voo para longe dos lobisomens. Ele engoliu a frustração, desejando que o remédio para isso não tardasse a chegar.

O computador zumbia, ainda buscando a resposta para a pesquisa de Chase. Ele tinha pedido permissão a Burnett para usar o computador em que estavam instalados os programas da UPF, para fazer uma pesquisa com o nome de Douglas Stone ou Don Williams. Havia seis pessoas na região de Houston com o sobrenome Stone e dez com o nome Don Williams.

Agora Chase esperava que o computador fornecesse o endereço e informações sobre essas pessoas. Melhor ficar ocupado do que apenas sentado ali, tamborilando os dedos na mesa. Mas ficar olhando a tela de um computador não era o mesmo que se ocupar. Ele esticou o pescoço e o fez estalar, para aliviar um pouco a tensão.

O computador continuava dando voltas, assim como a mente de Chase, esgotada pela falta de sono. Ele na verdade só precisava de três ou quatro horas de sono, mas tinha dormindo só duas por noite na última semana e nenhuma na noite anterior, portanto aquilo não tinha ajudado. Nem pensar em Steve de volta a Shadow Falls. Não que ele fosse...

Chase Tallman não estava com ciúme. Não. Mas não podia negar que sentia alguma coisa. Algo que incomodava, como uma cueca muito apertada. E por que diabos ele tinha passado tanto tempo pensando no que Della tinha dito à amiga sobre o metamorfo?

Inclinando-se na cadeira, ele franziu os lábios e levantou os braços sobre a cabeça, desviando os olhos da tela do computador e fitando as persianas. Os primeiros raios de sol derramavam-se através das fendas e ele soltou um gemido. Os lobisomens ainda não tinham chegado à prisão local. Eles só tinham prendido quatro, três haviam fugido, mas um, aquele que tinham tirado de cima de uma árvore, estava hospitalizado. Talvez Chase devesse estar se sentindo mal por causa disso, mas não estava.

Ainda mais quando pensava no que teriam feito a Della se ele não tivesse chegado a tempo. Claro, ele sabia que ela sabia se cuidar muito bem, mas não com aquele monte de lobisomens tão perto da lua cheia — mesmo se tratando de lobisomens mestiços. Então precisava admitir que tinha ficado satisfeito ao ver todos aqueles ferimentos nos lobos.

O que o fazia se sentir mal era não ter sido capaz de dar nenhuma descrição física de qualquer um dos lobisomens foragidos. Ele tinha ficado tão preocupado em proteger Della que nem chegara a olhar o rosto de nenhum deles. E de acordo com Burnett, que tinha feito a Della a mesma pergunta, ela não tinha conseguido oferecer uma descrição muito boa também.

O computador por fim mudou a tela e lhe deu informações sobre os Douglas Stones e Don Williams. Chase se sentou tão rápido que a cadeira rangeu como se reclamasse de que a pessoa errada estava se sentando nela, como se soubesse que não era Burnett.

Ele mandou imprimir tudo. Depois dobrou a folha e enfiou-a no bolso.

A porta do escritório se abriu. Burnett enfiou a cabeça pela fresta, parecendo muito cansado, considerando que não tinha dormido também.

— Os lobisomens estão aqui. Está pronto?

— Mais do que pronto. — Chase se levantou da cadeira num salto e foi até o homem à porta.

— Encontrou alguma coisa? — perguntou Burnett.

— Vários nomes — disse Chase, tirando a lista do bolso e entregando a ele.

— É um tiro no escuro — disse Burnett, enquanto analisava a lista. — Mas acho que vale a pena investigar.

— Espero mesmo que sim — Seus instintos lhe diziam que seu relacionamento com Della dependia da resolução daquele caso. E uma resolução rápida.

— Você quer fazer o interrogatório? — perguntou Burnett. — Me mostre o que sabe.

— Primeiro vamos ver se você acha que o cheiro de um desses caras é o daquele que estava com o sangue animal — Burnett disse a Chase. Burnett levou-o a cada uma das três salinhas com uma parede de espelho e dutos de ar ligando as duas salas.

Os cheiros eram familiares, mas, com base na briga no parque, ele podia dizer que não eram os mesmos que tinha sentido antes.

— Talvez os culpados sejam aqueles que fugiram — disse Chase.

— Vá descobrir. — Burnett fez sinal para o espelho. — Eles estão com as pernas acorrentadas, mas sem algemas, por isso não chegue muito perto. Vou ficar assistindo, para o caso de você se meter em alguma encrenca.

— Eu já esperava isso... — Chase abriu a porta da primeira sala, em seguida fechou-a com força.

O lobisomem, com não mais do que 18 anos, estava de cabeça baixa. Ele se levantou de um salto, com os olhos brilhando num tom amarelo-ouro. Os pesados grilhões de ferro em volta dos seus tornozelos tilintaram no piso de concreto.

Chase deixou seus próprios olhos ficarem mais brilhante, só para mostrar ao lobisomem mestiço que ele estava levando aquilo sério.

Foi até o lado oposto da mesa de metal, onde havia uma caneta e uma folha de papel. Colocou as mãos sobre a mesa. Inclinando-se, sorveu um grande gole de ar. Quando fez isso, avistou uma mancha de sangue nos dedos do sujeito, o sangue de Della. Ele sentiu seu olhar ficar mais ardente e se obrigou a manter as emoções sob controle. Mas sua vontade era agarrar o imbecil pelo pescoço e girá-lo no ar, ao redor da sala.

— Você é o mesmo cara que... — O lobisomem sorriu. — Um pouco novo para ser agente, não acha?

— A minha idade não lhe diz respeito. O que importa é que eu tenho o que eles precisam.

O lobisomem riu.

— Ah, você anda por aqui com esse ar todo durão, mas quantos amiguinhos você tem atrás desse vidro, assistindo tudo? — Ele gesticulou para o espelho, sabendo obviamente que se tratava de uma janela.

— Não o bastante para me impedir de te dar uma porradas se eu quiser — Chase sibilou.

O lobisomem pulou da cadeira, quase derrubando a mesa. Chase, pronto para agir, pegou-o pelo pescoço e apertou apenas o suficiente para que o babaca soubesse que ele estava falando sério. Em seguida, empurrou-o de volta para o assento.

O lobisomem ofegou.

— Agora, fique quieto aí e me ouça. Você pode conseguir se safar dessa, pegando uma pena mais leve.

— Em troca do quê? — o ladino cuspiu.

Chase encarou o lobisomem com os olhos cor de laranja.

— A garota que você e seus amigos pegaram é amiga minha.

— Não saímos atrás da cadela, ela é que veio atrás da gente.

Chase se inclinou para a frente, com o nariz quase tocando o do delinquente, quase desafiando-o a tentar alguma coisa outra vez.

— Se vocês não tivessem perseguido aquela menininha, ela nunca teria ido atrás de vocês!

— A gente não ia fazer nada de ruim com a menina. A gente só queria dar um susto nela. Ela deveria saber que não pode ficar perambulando pelo parque aquela hora da noite.

— Você tem desculpa pra tudo, não é? Que desculpa vai me dar para não escrever neste papel o nome de todos que estavam com você?

Os olhos dele brilharam e um rosnado baixo saiu de seus lábios.

— Porque eu não sou dedo-duro.

A mãe de Della estacionou o carro em frente à placa de Shadow Falls. Algo sobre aquele trajeto de volta à escola parecia diferente para Della. Mais definitivo.

Mais doloroso.

Era a coisa certa a fazer, até mesmo o que ela queria, mas doía saber que não era bem-vinda na casa dos pais, saber que aquelas temporadas em casa poderiam muito bem estar chegando ao fim.

Ela sabia que seu pai não iria perder a chance de mandá-la de volta, mas, pelo amor de Deus!, três minutos após desligar o telefone, depois de falar com Burnett, o pai mandou a mãe dizer a Della que devia fazer as malas.

A insistência do pai tinha provocado uma discussão entre os pais. E confirmado o que Della estava começando a suspeitar.

No final, a mãe cedeu às exigências do pai. Della não a culpava. Não podia.

Sem dúvida, a mãe estava chateada por causa da morte do senhor e da senhora Chi, além de estar devastada pelo fato de o marido estar sendo acusado de assassinato. Ela só não tinha mais energia para lutar contra tudo.

Mas teria sido bom se ela tivesse persistido um pouco. Pelo menos para defender a filha.

Marla, por outro lado, tinha batido o pé. Não com os pais, mas com Della. Vá embora, então. Vá e me largue aqui para enfrentar tudo isso sozinha!

Della tinha ficado com vontade de gritar com a irmã, dizendo que ela estava fazendo tudo o que podia para ajudar. E que voltar para Shadow Falls não era ideia dela, mas do pai. Ele não queria que ela ficasse. Ela queria muito dizer que não era culpa dela. Mas era e ela sabia disso. O pai só estava à espera de um julgamento porque Della, sem querer, tinha feito com que a polícia reabrisse o caso.

Mas não importava mais de quem era a culpa ou a falha. Então ela apenas deixou que Marla pensasse que a ideia era dela.

— Preciso entrar em Shadow Falls? — a mãe perguntou, trazendo Della de volta ao presente, sentada no carro.

— Não. — Della olhou para o portão de ferro, engoliu o nó que teimava em obstruir a sua garganta e estendeu a mão para a maçaneta da porta. — Vejo você em algumas semanas. — Ou pelo menos ela torcia para que isso fosse verdade. Torcia para que o pai não desistisse até daquelas breves visitas.

A mãe dela segurou Della pelo braço.

— Se você concordasse em voltar para sua antiga escola, poderia ficar em casa.

Não, eu não posso. Della engoliu em seco. Ela passara toda a manhã pensando no pai. Tentando descobrir como aquilo era possível. Como ele poderia saber?

— Eu amo isto aqui, mãe — disse Della, esperando que a verdade soasse em sua voz e não a dor. A mãe dela já estava sofrendo o suficiente. Ela não precisava sofrer por Della também.

— E eu te amo — disse a mãe, lágrimas enchendo seus olhos.

— Eu também te amo — respondeu Della, do fundo do coração, onde a dor era ainda pior.

— Eu não entendo. — A voz da mãe estremeceu. — Um ano atrás, a nossa a vida era tão normal! Agora meu marido está sendo acusado de assassinato, minha filha mais velha mora numa escola para jovens problemáticos e meus vizinhos foram assassinados. Como a vida pôde ficar desse jeito?

Della pegou a mão da mãe, esquecendo por um momento a temperatura do próprio corpo. Graças a Deus, a mãe não pareceu notar, mas ela puxou a mão de volta rapidamente.

— Vai ficar tudo bem. Papai não vai ser condenado. Estou com quase 18 anos, então teria que sair logo do ninho de qualquer maneira. Agora este é o melhor lugar para mim, e... as pessoas que mataram o senhor e a senhora Chi vão pagar pelo que fizeram. Vou garantir que isso aconteça.

— Você? — A mãe piscou e algumas lágrimas escorreram pelas suas faces. — Como você vai...

— Quero dizer, a polícia! — ela respondeu, rápido.

A mãe abriu um sorriso triste e secou as lágrimas do rosto. Então estendeu a mão e tocou o rosto de Della.

— Às vezes você parece tão diferente, e outras vezes... Ainda vejo a minha menininha aí dentro.

— Eu ainda estou aqui — disse Della, lutando para não cair no choro, enquanto se perguntava o que o pai via quando olhava para ela. Será que via a antiga Della? Ou via o monstro dentro da filha?

A mãe balançou a cabeça.

— É melhor você ir. E não deixe de estudar. Seu pai me contou que o senhor James disse que você está com notas baixas.

— Pode deixar. — Della pegou a mala de viagem no banco de trás do carro e ficou parada ao lado do portão, o vento frio soprando os cabelos, assistindo enquanto a mãe manobrava seu Malibu dourado e se tornava apenas um pontinho no horizonte.

— Já de volta? — perguntou uma voz, e Della se virou para ver John, um metamorfo, se aproximando a pé.

— Pois é. — Ela mordeu a língua para não dizer que aquilo não era da conta dele, porque isso teria sido rude. Não era culpa dele que ela estivesse de péssimo humor.

Ela disparou para a entrada. Tinha um certo vampiro para interrogar. Se Chase pensava que as perguntas da noite anterior tinham acabado, estava muito enganado. Mas primeiro, o mais importante.

Ela foi até o escritório da escola, depois de ter farejado o cheiro de ambos alguns passos além do portão. Largando a mala no chão, entrou no escritório de Holiday. A fae ruiva estava sentada à escrivaninha, a trança grossa sobre o ombro, um livreto de palavras-cruzadas aberto sobre a mesa.

Burnett estava estirado no sofá, com a adorável Hannah, apenas de fralda, sentada de cavalinho em sua barriga. O vampiro durão parecia estar com o humor despreocupado das manhãs de domingo. Os pés dele estavam cruzados nos tornozelos, os ombros relaxados, o cabelo até um pouco despenteado. Ou talvez aquela fosse uma manhã de domingo em que ele estivesse exausto; ela sabia que ele tinha trabalhado a noite toda.

Ele tinha mandado uma mensagem para ela às cinco da manhã, dizendo que os lobisomens não estavam cooperando.

— Algo errado? — perguntou Holiday, seus dons de fae captando as emoções de Della.

Della respirou fundo e seu peito estremeceu.

— Meu pai sabe.

— Sabe o quê? — Burnett perguntou, sentando-se e puxando a filha na direção do peito.

— Ele sabe que eu sou vampira.


Capítulo Onze

— O quê? — Burnett pôs-se de pé, colocando Hannah nos braços da esposa. — Como? Você contou a ele? — perguntou Burnett.

— Não. — Por que raios ela faria isso?

— Espere aí. Ele a confrontou? — perguntou Holiday.

— Não, mas agora, por fim, tudo faz sentido. Esse tempo todo, eu não estava entendendo. Sabia que ele estava desapontado comigo, mas ele olhava para mim... de um jeito diferente. Eu não sabia o que era e não podia obrigá-lo a falar. Mas esta manhã, quando eles descobriram que o senhor e a senhora Chi foram assassinados, o meu pai... ele olhou para mim como... como se eu tivesse feito aquilo. — Ela engoliu em seco. — Ele está com medo de mim. Ele sabe... — A voz dela falhou. — Ele sabe que eu sou um monstro.

No segundo em que as palavras saíram, Della daria qualquer coisa para trazê-las de volta. Para prendê-las em seu punho fechado e escondê-las no fundo do bolso, tão fundo que pudessem ser esquecidas ali. Porque, com aquelas malditas palavras, ela expressava toda a dor e vergonha que sentia desde que tinha descoberto que havia sido transformada; desde que havia descoberto que, para sobreviver, teria que beber sangue.

— Você não é um monstro. — Holiday contornou a mesa e foi até Della. Provavelmente para tocá-la, para tentar aliviar a dor que estava sentindo. Mas não iria funcionar. Não desta vez. — Della? — Holiday tocou o braço de Della. — Hannah é vampira. Olhe para ela. Você acha que...

— Não é o que eu acho o que importa — ela mentiu. — É o que o meu pai acha... e o que a minha mãe e a minha irmã vão pensar. — É o que a droga do mundo inteiro pensaria se soubesse que os vampiros existem!

— Eu acho que você está imaginando coisas — disse Burnett. — Como ele poderia saber?

— Porque viu o irmão gêmeo vampiro matar a irmã.

Burnett pareceu confuso.

— Mas eu pensei... Ele viu o irmão? Ele testemunhou o assassinato?

— Ele foi obrigado. De acordo com a minha mãe, meu pai diz que não se lembra de nada do que aconteceu naquela noite. Que ele estava inconsciente. Mas o fantasma da minha tia disse que ele não estava inconsciente coisa nenhuma.

— Mas a sua tia pode estar errada — rebateu Holiday. — Já falamos sobre isso. Quando alguém está morrendo...

— Mas faz sentido! — insistiu Della. — Vocês não veem? A minha mãe diz que ele ainda tem pesadelos por causa do que aconteceu. Como alguém pode ter pesadelos sobre uma coisa de que não se lembra? Ela disse que ele foi hospitalizado depois do assassinato, não porque estivesse ferido, mas porque surtou. Ele sabe. E agora está com medo de que eu esteja fazendo o que Feng fez com Bao Yu.

— Eu acho que você está tirando conclusões precipitadas. — Holiday mais uma vez apertou com delicadeza o ombro de Della. Ela sentiu a calma penetrando na sua pele, mas sem chegar ao coração.

— Precipitadas? Pelo contrário, eu não sei como não cheguei a essa conclusão antes!

— Olha, eu acho... — Burnett parou. Então inclinou a cabeça levemente para o lado, como se ouvisse alguma coisa.

Ela fez o mesmo e ouviu passos na frente da cabana. Ergueu o nariz e sentiu dois cheiros diferentes. Um era canino. O outro era... Chase. Um sentimento de expectativa varreu-a de cima a baixo. Ela forçou-se a reprimi-lo.

Reprima.

Reprima.

Reprima.

Della se virou e olhou para a frente do escritório.

— Prepare-se, porque já já você vai me ver! — ela disse, alto o suficiente para que ele ouvisse, e andou até a porta.

Chase se preparou para vê-la, mas a emoção que sentiu foi ofuscada pelo eco das palavras dela. Não a ameaça que elas continham — isso ele já esperava —, mas a confissão anterior: Ele sabe que eu sou um monstro. O peito de Chase ficou apertado e um profundo sentimento de tristeza comprimiu seu plexo solar. Então essa emoção se transformou em raiva. Raiva do pai dela outra vez.

— Não vá vê-lo agora, Della! — A voz de Burnett veio em seguida.

Chase não se mexeu, lutando contra a antipatia crescente que sentia pelo pai de Della e a decepção pelo fato de Della não estar parada na frente dele. Só quando se convenceu de que ela não estava vindo, ele continuou pela trilha. Deu apenas alguns passos antes de perceber que Baxter não o seguia mais.

— Venha cá, garotão! — ele chamou Baxter, que devia ter começado a sentir o cheiro de Della porque já trotava em direção ao escritório. — Não, Baxter!

O cão parou e olhou para trás, como se dissesse: “Mas Della está lá dentro!”

— Você vai vê-la mais tarde — prometeu Chase, quando o cão voltou a contragosto.

— Acredite, estou tão ansioso para vê-la quanto você... — Ele tencionou os ombros de expectativa, mas sua mente ricocheteou, voltando a se concentrar em outra emoção.

Será que Della realmente acreditava que ela era um monstro?

É claro que acreditava! Ele lembrou com clareza quando sentia quase a mesma coisa na época em que tinha sido transformado. Mas ele tinha Eddie para conter todo aquele lixo emocional. Ela não tinha ninguém. Bem, ela tinha o primo Chan, mas considerando que ainda morava com seus pais não vampiros, não devia ter recebido tantas orientações. E se ele estivesse certo, isso tinha sido meses antes de ela chegar a Shadow Falls.

Será que ela sabia quanto era raro um recém-criado sobreviver àqueles primeiros meses sem um vampiro mais experiente para orientá-lo? Ou, pelo menos, sobreviver com alguma dignidade? A maioria deles se tornava um delinquente ou se matava. Ele precisava fazê-la entender quanto era surpreendente ela ter sobrevivido depois de tudo o que passara.

Ele estava fazendo a primeira curva, quando os pelos da sua nuca se eriçaram. Sentindo como se estivesse sendo observado, parou e olhou ao redor. Não viu nem sentiu nada, apenas a natureza.

Nem Baxter, que olhava para ele confuso.

Isso não significava que eles estivessem sozinhos. Um metamorfo ainda poderia estar à espreita. E um, em particular, veio à mente de Chase.

— Eu não quero arranjar encrenca! — gritou ele. — Mas Della e eu pertencemos um ao outro. Você precisa respeitar isso.

No mesmo instante, ele sentiu algo batendo na sua nuca. Então viu um pássaro voando para longe e nem precisou pôr a mão para saber que era titica de passarinho.

Cada célula do seu corpo quis levantar voo para dar uma lição naquele idiota, mas ele ouviu em sua cabeça o aviso do Burnett: Ao primeiro sinal de problema, você dança.

Praguejando baixinho, o olhar ainda fixo no pássaro voando no céu, ele percebeu outro barulho e outro cheiro bem atrás dele. Baxter também. Seu grunhido ecoou no silêncio, e ambos se viraram.

Della olhou para a porta do escritório.

Chase estaria escutando a conversa entre eles? Ela tinha quase certeza. O vampiro não tinha nenhuma vergonha na cara. Mas ela apostava que levar uma surra de uma garota faria com que ele ganhasse uma pequena dose muito necessária de humildade.

— Vocês dois têm que se dar bem ou evitar um ao outro — advertiu Burnett, como se estivesse consciente do que os olhos dela tinham adquirido uma tonalidade amarela. — Sem derramamento de sangue.

Della franziu a testa.

— Você é sempre um estraga-prazer.

Burnett balançou a cabeça como se não estivesse nem um pouco interessado nas observações sarcásticas dela.

— Sente-se. — Ele acenou para a cadeira em frente à mesa de Holiday.

— Já não terminamos aqui? — perguntou ela, pronta para enfrentar Chase no caso de ele lhe oferecer algo que não tinha oferecido a Burnett. Dar uma surra nem sempre significava tirar sangue.

— Não. Eu tenho mais algumas novidades sobre o caso do seu pai e os assassinatos da noite passada. Então, grude essa sua bunda na cadeira e chute a dele dos seus pensamentos.

Notícias do caso do pai dela? Chase instantaneamente assumiu o segundo lugar na lista de prioridades dela. Puxou a cadeira e se sentou.

— O que você conseguiu?

Holiday voltou para sua cadeira. Burnett sentou-se na borda da mesa de Holiday. Hannah deixou escapar um arrulho doce, mas a tensão no cômodo não dava lugar à inocência dela.

— Nós conseguimos designar um novo assistente da promotoria para o caso do seu pai. Jerod Mason, ele é fae, mas trabalha em muitos casos sobrenaturais que se enquadram nos tribunais humanos.

— E daí? Você conseguiu que um dos nossos ajudasse a colocar o meu pai na prisão?

Burnett franziu a testa.

— Às vezes, a melhor defesa é ter um aliado na promotoria. Jerod vai passar informações para o advogado do seu pai.

— E o juiz? Você disse que estava tentando conseguir um juiz sobrenatural que pudesse encontrar uma razão para retirar as acusações. — O estômago dela doía só de pensar em como as coisas poderiam acabar mal.

— Isso ainda não foi possível. — Ele viu Della de cenho franzido e levantou a mão. — Mas ainda pode acontecer. Esse tipo de coisa pode demorar um tempo. Enquanto isso, falei com Jerod esta manhã. Ele planeja pegar todos os arquivos amanhã e, quando fizer isso, vai tirar cópias e nos passar, assim como para o advogado do seu pai, por isso vamos saber o que vamos enfrentar nos tribunais.

Com quem Burnett estava brincando? Ela já sabia o que o pai dela estava enfrentando. Era acusado de assassinato. Uma acusação que poderia colocá-lo atrás das grades a vida toda, ou pior. No Texas não era rara a pena de morte. O coração de Della bateu com medo só de pensar nisso.

— Não temos uma data? Para o julgamento?

— Não, mas Jerod disse que a promotoria está pressionando para que seja em breve. Temos algumas pessoas que trabalham nos tribunais e estamos tentando marcar uma data.

— Por que em breve? — perguntou Della, temendo ver o pai ter de passar por isso.

A expressão de Burnett se suavizou, como se o que ele tivesse a dizer não fosse tão fácil.

— Quanto menos tempo eles tiverem para desencavar as coisas, melhor para nós.

— Isso pode não ser fácil para o seu pai — acrescentou Holiday. Hannah soltou outro arrulho, tão doce que destoou totalmente da conversa.

O peito de Della se apertou por causa da culpa.

— Você tem razão. — Ela engoliu em seco. — Ouvi meu pai dizer à minha mãe que não sabia por quanto tempo conseguiria manter o emprego.

— Nós vamos fazer tudo o que pudermos — disse Holiday. — Você sabe disso.

Della acenou com a cabeça, mas o pensamento que quase tirava a sua sanidade era... e se “tudo” não fosse suficiente?

No instante em que Chase e Baxter se viraram, Steve se aproximava pela trilha do bosque.

Confuso, Chase desviou o olhar para o céu, onde o pássaro ainda estava visível, então olhou para o metamorfo outra vez.

Steve não estava sorrindo, mas seus olhos castanhos tinham uma pitada de humor que incomodou Chase.

— Você pensou que aquele era eu. — Agora, o metamorfo sorria.

— É, pensei — admitiu Chase, certo de que sua expressão não era tão bem-humorada quanto a do outro. — Então foi um amigo seu, hein?

Seus olhares se encontraram. A tensão encheu o ar da manhã de domingo. Chase inspirou e o cheiro do metamorfo preencheu seu nariz. O aroma o fazia se lembrar de Della porque Chase sempre o sentia nela quando a conhecera. Algo em que ele preferia não pensar.

Steve olhou para o céu, onde o pássaro voava em círculos.

— Não. Não que eu saiba. — A frequência cardíaca do cara não indicava que ele estivesse mentindo. — Mas ele é meu amigo agora. — Steve sorriu, não mostrando nenhum medo. Algo que Chase admirava, mesmo que isso o incomodasse.

Desde que ele soubera dos sentimentos de Steve por Della, queria encontrar coisas em Steve que ele desprezasse — coisas que o desacreditassem aos olhos de Della.

No entanto, tirando o flerte com a filha do veterinário, Chase não tinha conseguido encontrar nenhum podre no metamorfo. Aquilo tornava as coisas mais difíceis, mas também dizia muito sobre quem Della deixava entrar na sua vida.

Chase engoliu seu orgulho e decidiu fazer a coisa certa, embora fosse a mais difícil.

— Acho que me enganei. Desculpe.

Steve desviou o olhar por um segundo como se estivesse em conflito. Quando voltou a olhar para Chase, havia determinação em seu rosto.

— Não foi só nisso que você se enganou.


Capítulo Doze

Com receio de saber muito bem como aquela conversa ia terminar, Chase cerrou os dentes com tanta força que foi uma surpresa não terem trincado. Não perca o controle. Não perca o controle.

— Em que mais eu me enganei? — Ele respirou fundo, esperando que o oxigênio ajudasse a acalmá-lo.

— Sobre eu respeitar que você e Della pertencem um ao outro.

Os olhos de Chase ficaram mais brilhantes quando ele deu vazão à sua natureza de vampiro.

— Cuidado! — ele advertiu o outro e deu a si próprio o mesmo aviso. Seus instintos diziam que Burnett não estava fazendo ameaças vazias quando prometeu expulsá-lo de Shadow Falls caso arranjasse encrenca com Steve.

Steve balançou a cabeça, ignorando o aviso, e aquilo deixou Chase ainda mais irritado.

— Olha só, a única pessoa que eu tenho que respeitar é Della. Não você. Nem a ligação que, na sua opinião, vocês dois têm. E eu, pessoalmente, acho que ela é muito capaz e já está bem crescidinha para tomar as próprias decisões. E você, senhor Tallman, precisa colocar isso na sua cabeça de uma vez por todas.

Steve se virou e começou a se afastar.

Chase fechou o punho com tanta força que a sua mão doeu. Não era a sua cabeça que estava com dificuldade para aceitar as palavras do metamorfo. Era o seu coração. Mas, se Steve pensava que ele iria simplesmente aceitar aquilo e abrir mão de Della, estava muito enganado.

* * *

Della continuou sentada na cadeira em frente à mesa de Holiday. Ela não iria deixar — não poderia deixar — que o pai fosse para a cadeia. Mas como faria isso ainda era para ela um mistério.

Burnett falou outra vez.

— Quanto ao caso dos Chi, conseguimos as impressões digitais. Infelizmente, havia um monte de impressões na loja. Até agora, não há ninguém compatível com essas impressões na base de dados da UPF. E temos uma pegada de sapato. Estão tentando identificá-la.

— As autópsias não estão prontas ainda? — perguntou Della.

— Não. Mas estou esperando que os resultados cheguem amanhã.

— E os lobisomens que foram presos?

— Nenhuma das impressões digitais coincide com as deles. Chase disse que não são os mesmos que ele tinha farejado antes com o sangue animal. Ainda assim podem ser do mesmo grupo, só que os culpados pelo assassinato conseguiram fugir.

— Então vamos obrigá-los a nos contar com quem estavam! — Della sugeriu.

Burnett suspirou.

— Nós tentamos. Nenhum deles nos deu qualquer informação.

— Me deixe falar com eles — insistiu Della.

Burnett entrelaçou os dedos.

— Chase já os interrogou. Fez um grande trabalho, devo acrescentar. Ou eles são muito leais ou estão muito assustados. E eu apostaria que estão é com muito medo.

Della balançou a cabeça.

— Então não temos nada?

— Ainda não — disse Burnett. — Mas é cedo.

Holiday equilibrou Hannah em seu quadril.

— Burnett disse que você viu o espírito da senhora Chi? Ela lhe deu alguma pista?

A imagem sangrenta da mulher sentada à mesa da cozinha brilhou na mente de Della.

— Não, ela ainda nem sabe o que aconteceu. Mas... — Della estendeu a mão e tocou o pescoço. — Eu acho que o pescoço dela foi cortado.

— E foi mesmo — confirmou Burnett. — Está no laudo.

Della respirou fundo, tentando absorver a verdade cruel.

— Eu sei que é difícil falar sobre isso — disse Holiday. — Mas às vezes os espíritos tentam nos comunicar alguma coisa de formas estranhas. Eles dizem algo inusitado, ou podem estar vestindo algo que não se encaixa com a sua personalidade. Você não consegue se lembrar de nada fora do comum na visita dela?

— Não — disse Della, querendo tirar a imagem da cabeça. Depois ela se lembrou.

— Espere. Não é verdade. Apareceu uma bola de basquete. Suja de sangue.

— Uma bola de basquete? — perguntou Burnett.

— Sim — disse Della.

Holiday passou Hannah para o outro quadril.

— E aposto que a senhora Chi não jogava basquete.

— Não.

Holiday levantou uma sobrancelha.

— Então, isso é um sinal. Ou o assassino tinha uma bola com ele, ou ela viu o assassino jogando bola. Ou talvez as duas coisas.

— Existe algum parque com uma quadra de basquete perto da sua casa? — Burnett perguntou.

— Sim — Della se agarrou ao seu primeiro fio de esperança e achou que talvez conseguissem encontrar os assassinos.

— Na frente do parque onde pegamos os outros lobisomens. — Ela se levantou. — Devemos ir lá agora?

— Não, eu vou mandar Lucas. — Burnett pegou o telefone. — Se ele cruzar com os lobisomens, eles podem ser mais receptivos.

— Mas...

— Nem comece! — Burnett desviou os olhou do celular e a fitou. — Primeiro, eu já disse que você não está trabalhando neste caso. E segundo, se você for lá, eles vão reconhecê-la ou reconhecer o seu cheiro da noite passada.

— E eu vou reconhecê-los — disse ela. Nesse instante, as luzes da sala piscaram e apagaram. O silêncio de morte de uma queda de energia encheu a sala.

Burnett foi até a parede onde estavam os controles do sistema de alarme. Enquanto apertava alguns botões, continuou falando.

— Assim tão perto da lua cheia, é melhor deixar outro lobisomem lidar com isso.

Um sinal sonoro partiu dos controles.

— Problemas? — perguntou Holiday, olhando para o alarme.

— Provavelmente não.

As luzes voltaram a se acender. Ele olhou para Della.

— Agora vá recuperar seu sono atrasado e descanse. Você está com uma cara de merda.

Holiday puxou a filha mais para perto, pressionou uma mão sobre a orelha dela e fez cara feia para o marido.

Burnett encolheu os ombros como se quisesse se desculpar.

— Desculpa. Quer dizer, você está... um trapo.

Della olhou para Holiday.

— Ele sempre fala palavras tão doces!.. Como você teve tanta sorte?

Holiday riu, em seguida levantou-se e tocou no ombro de Della. Um calor aqueceu o peito da vampira e por um segundo ela desejou que pudesse apenas se render a ele e esquecer todos os seus problemas.

— De vez em quando ele diz a coisa certa. E por pior que seja a escolha de palavras do meu marido, você de fato parece cansada. Vá descansar um pouco. Miranda e Kylie devem estar aqui daqui algumas horas. E eu sei que elas vão vibrar ao saber que você está de volta. E não haverá descanso depois disso.

Della ouviu Burnett contando a Lucas sobre a quadra de basquete. Ela olhou para o vampiro teimoso, então franziu a testa outra vez para Holiday.

— Não é justo. Eu preciso trabalhar neste caso. Conheço as vítimas. Eu me importo, droga! — A voz tremeu, revelando o nó que se formava em sua garganta. — Por que ele não consegue ver isso?

Holiday suspirou.

— Você está trabalhando neste caso. A senhora Chi está procurando você para lhe dar pistas. E quando você está esgotada, suas possibilidades de canalizar um fantasma são menores. Além disso, eu tenho certeza de que Burnett vai inteirá-la dos acontecimentos assim que Lucas voltar.

Della, certa de que não poderia mudar a opinião de Burnett e duvidando de que Holiday fosse ajudá-la desta vez, saiu do escritório pisando duro.

Tinha atravessado a porta da cabana e colocado um pé na varanda quando Holiday chamou-a de volta.

— O que é? — perguntou Della. Seu olhar recaiu sobre Hannah quando o bebê abriu um grande sorriso para ela. Della se sentiu quase culpada por estar com tamanho mau humor.

— Se Chase lhe causar qualquer problema, quero que venha falar comigo. Você entendeu?

— Acho que posso cuidar dele. — Della franziu a testa, insatisfeita com o fato de todo mundo parecer pensar que ela não podia lidar com Chase.

— Sim, mas por que você precisa ficar com toda a diversão? — sorriu Holiday com carinho.

Della se lembrou de Chase dizendo quase a mesma coisa.

— Em que cabana ele está hospedado?

A líder do acampamento hesitou.

— Eu preciso falar com ele. Vou achá-lo de qualquer maneira — disse Della. — Só que vou demorar mais e vai me sobrar menos tempo para descansar.

Holiday franziu a testa.

— Catorze. Mas lembre... sem derramamento de sangue. Só eu posso fazer isso!

— Catorze — Della repetiu, enquanto Holiday fechava a porta. Virando-se para sair, ela notou um pássaro empoleirado na cerca da varanda. Mas com apenas uma coisa em mente, ela continuou andando. Tinha começado a dar o primeiro passo quando sentiu aquele estranho formigamento na espinha. Aquela espécie de formigamento que a gente sente quando alguém está olhando para nós.

Ela olhou para a esquerda. Ninguém.

Olhou para a direita. Nada.

Então se lembrou do maldito pássaro. Deu meia-volta.

Um pássaro preto — tão preto que parecia quase azul — virou a cabeça e olhou direto para ela. Ela se lembrou de ter cruzado com o metamorfo John, ao chegar da casa dos pais.

— John? — ela perguntou, esperando que o pássaro falasse. A criatura emplumada só olhou para ela. — O que foi? — ela perguntou. — O que você quer? — Ele permaneceu em silêncio.

Ela agitou a mão no ar para ver se ele voaria para longe.

Ele não voou.

Um pássaro normal teria se afugentado.

Convencida de que era John, ela deu um passo mais para perto.

— Cai fora daqui ou eu arranco uma pena sua! — ela ameaçou.

O pássaro bateu as asas, mas não deixou seu poleiro. John não costumava ser daquele jeito. O adolescente, apenas metade metamorfo — tinha habilidades limitadas e era tão arisco quanto um camundongo com complexo de inferioridade. Nem conseguiria disfarçar tão bem o cheiro dele. Ela respirou fundo. Nada. Nada além de um pássaro.

— Ok, se você não é John, quem é então? — De repente, a possibilidade de o pássaro ser outro metamorfo, com a habilidade de se disfarçar, encheu sua mente. Mas Steve só deveria estar de volta dali uma semana.

— Steve? — ela sussurrou seu nome, mesmo que aquele fosse um pássaro comum e Steve fosse fascinado por falcões.

Passos de repente ecoaram na trilha que levava às cabanas. Pensando que poderia ser Chase, Della farejou o ar e se virou para ver quem era. Conteve o fôlego quando viu uma figura, com um andar lento e descontraído, surgindo na curva.

Sua mente começou a apreender os detalhes.

Alto.

Ombros largos.

Cabelo escuro, meio encaracolado nas pontas.

Olhos castanhos.

Um olhar penetrante. Um olhar penetrante focado nela. Totalmente focado nela.

Steve.

O coração dela deu um salto. E o mesmo fez o pássaro atrás dela. Ela o ouviu batendo as asas contra o vento e fugir. Parte dela queria se juntar à criatura em voo. Ver Steve a obrigava a sentir emoções das quais queria fugir. Emoções que ainda não estavam muito bem definidas.

Ahh, mas o cheiro de Steve despertava lembranças... Memórias dos dois juntos. Rindo.

Beijando-se.

Conversando.

Então veio a lembrança dele se despedindo dela.

Enquanto Steve continuava andando na direção dela, ela percebeu que, se eles se falassem ali, a conversa estaria ao alcance dos ouvidos de qualquer vampiro nas proximidades.

E visto que um determinado par de orelhas do sexo masculino estava no escritório de Holiday, ela saltou da varanda e se encontrou com o metamorfo na saída da trilha.

Ele parou e sorriu.

Aquilo fez o mundo dela sair um pouco do eixo.

— Olá! — ele disse.

— Oi. — Ela lutou contra a sensação estranha que agitava o seu peito. Della o vira de passagem em Paris, quando tinha ido até lá com Miranda para tentar encontrar o tio. Na ocasião aquilo tinha parecido tão estranho quanto agora. Quando ela partiu, Steve a abraçou e disse que conversariam quando ele voltasse. Chegara a hora de conversarem, mas ela não sabia o que dizer. Os dois ficaram ali parados, olhando um para o outro. O silêncio, mais alto do que os sons da natureza, ecoava em torno deles. Por fim um assunto destravou a língua dela.

— Eu pensei que você só chegaria na próxima semana.

— Sim, mas eles nos deixaram voltar mais cedo. — Ele enfiou a mão no bolso do jeans.

— Então Perry também está aqui? — A mente de Della voou para Miranda.

— Sim.

Por um segundo, ela se perguntou se o pássaro tinha sido Perry. Se era esse o caso, por que ele não tinha dito nada?

Ela sentiu uma mudança no olhar de Steve e se lembrou de Burnett dizendo que ela estava com uma cara de merda. Justamente como uma garota queria parecer quando encontrava seu ex — ou quase ex.

— Você voltou mais cedo também — disse ele. — Tudo certo... em casa?

A sensação estranha multiplicou dez vezes com a pergunta dele. A antiga Della teria contado a ele. Teria aberto seu coração e extravasado toda a dor e angústia. Ele teria passado os braços em torno dela — aninhado a cabeça dela naquele ponto macio entre o ombro e o peito. Seu abraço carinhoso a teria feito se sentir muito bem. Isso poderia ter aliviado um pouco a sua dor.

Mas essa era a antiga Della.

A nova Della não sabia o que fazer. A constatação assustou-a. Ela gostava de se sentir no controle, um passo à frente. Nunca poderia ganhar o jogo se não tivesse uma estratégia. Ou, pelo menos, se não soubesse as regras.

E no que se referia a Steve, ela não tinha pensando numa estratégia e não tinha um livro de regras. Se tivesse, com certeza não estaria tão desorientada. Droga, ela estava totalmente perdida!

— Sim, está tudo bem — ela mentiu.

As palavras mal tinham deixado seus lábios e ela lamentou tê-las dito, porque viu nos olhos de Steve que ele pressentia a mentira.

— Desculpe. — O pedido de desculpas saiu antes que ela pudesse considerar se era uma boa ideia ofertá-lo.

— Está tudo bem — disse ele. — Sério.

Ela não sabia direito o que significava o “sério”, mas a parte do “está tudo bem” era apenas Steve sendo agradável e amável. Steve sendo... Steve.

De repente, ela se lembrou de onde estava indo.

Ela se lembrou de Chase.

Um grande nó de emoção se formou em seu estômago.

— Eu preciso ir. Tenho que... ver alguém.

— Vamos conversar mais tarde? — ele perguntou.

— Sim. Claro. — Talvez até lá, ela já não estivesse com cara de merda e não se sentisse tão constrangida. Talvez tivesse uma droga de plano.

Balançando a cabeça, ela deu o primeiro passo na direção da trilha.

— Della? — ele chamou.

Ela se deteve, mas não olhou para trás. Precisava de um segundo para se preparar, estava quase com medo do que Steve ia dizer.


Capítulo Treze

Chase entrou na cabana, deu a Baxter um pouco de comida e água, e apontou para o cão a sua nova cama. O animal estava ocupado demais, farejando o novo ambiente, para dar atenção. Por fim, após checar todos os cômodos e todos os cantos, ele começou a segui-lo.

Abrindo uma das caixas que havia trazido para a cabana, Chase colocou o porta-retratos da família numa mesinha lateral.

Correu o dedo pelos rostos dos familiares e olhou para eles por alguns minutos, sentindo a falta que lhe faziam. Não doeu tanto quanto costumava doer, mas mesmo assim não havia um dia em que ele não pensasse na família.

Baxter se aproximou e cutucou a perna de Chase com o focinho.

— Não é um hotel cinco estrelas, mas já ficamos em lugar muito pior — disse ao cão.

Baxter olhou para cima com seus olhos cheios de sabedoria. Chase quase podia ler os pensamentos do animal.

— Sim — disse ele. — Ela é a razão para estarmos aqui.

Ainda agitado com a lembrança da conversa com Steve, foi até a mesa da cozinha e tirou o laptop da mochila. Pegou a lista de Stones e Williams que tinha conseguido no computador de Burnett na UPF e começou a procurar mapa, planejando visitar cada um deles.

Alguns, pela segunda vez. Porque, depois de um olhar mais atento, viu que alguns deles estavam no banco de dados do Conselho dos Vampiros também. Chase rastreou vários deles.

Sentindo o seu humor sombrio e as noites maldormidas pesarem sobre os ombros, massageou o pescoço. Olhou para trás, em direção à porta do quarto, e pensou na possibilidade de descansar um pouco, mas esperava que Della viesse procurá-lo.

Voltando a se concentrar na tela, quase pulou da cadeira quando Baxter deu um latido alto. O cão olhou para a janela.

Chase apurou os ouvidos, mas tudo o que ouviu foi um pássaro voejando de árvore em árvore.

— É só um pássaro — disse a Baxter, farejando para se certificar de que estava certo. O ar não lhe trouxe mais nenhuma informação, mas ele no mesmo instante sentiu o cheiro de tinta fresca. E pela aparência do quarto menor, eles ainda não tinham terminado a pintura.

Afastando-se da mesa, levantou a vidraça para deixar entrar um pouco de ar fresco.

Depois abriu a porta da frente e olhou para fora, esperando ver ou ouvir Della chegando. Quanto tempo será que duraria a reunião com Burnett?

Ele se lembrou das palavras dela e da dor em sua voz. Ele sabe que eu sou um monstro.

Mas que inferno, ele não tinha que esperar por ela!

— Vem comigo, amigão. Vamos atrás dela.

— Della? — repetiu Steve, como se não estivesse certo de que ela tinha ouvido.

Ela não deu atenção à ideia de simplesmente ignorá-lo e virou-se para enfrentá-lo outra vez.

— Sim?

— Tem certeza de que está bem? — Steve perguntou.

Desta vez, ela decidiu contar a verdade.

— Não. Mas quem precisa estar bem o tempo todo?

Era para ser engraçado, mas ele não sorriu. Só continuou a estudá-la com aqueles olhos castanhos cheios de preocupação. Olhos que pareciam ver através dela.

— É só que você parece...

— Um trapo? Eu sei. Burnett acabou de me dizer.

Ele sorriu desta vez.

— Eu não ia dizer... isso. Você parece abatida.

— Abatida? Eu? — perguntou ela, ofendida. — Prefiro um trapo.

O sorriso dele se alargou.

— Ok, não abatida, talvez apenas cansada.

Por melhor que fosse vê-lo sorrir, ela não teve vontade nenhuma de retribuir.

— É, estou precisando mesmo ficar entre lençóis. — No mesmo instante se lembrou de quantas vezes ela e Steve tinham ficado entre lençóis juntos. Eles se acariciavam, deixando que as coisas fossem só até certo ponto — quase até o fim —, mas nunca tinham cruzado a linha.

Ela vivia com medo. Com medo de que não fosse durar. E tinha razão.

Ele alegou que não conseguia aceitar que ela trabalhasse com Chase, mas a verdade era que estava planejado o tempo todo ir a Paris, para uma escola de metamorfos.

Steve desviou o olhar por um segundo, e ela pôde jurar que ele tinha lido os pensamentos dela.

— Bem, eu tenho que... — Ela acenou. — Até mais tarde.

Ele se despediu com a cabeça e seus olhos se encontraram mais uma vez. Embora ela não conseguisse decifrar a expressão dele, algo lhe dizia que Steve não se sentia mais confortável do que ela com a conversa. Della se virou e foi embora. Andando. Sem correr.

A cada passo, sentia que ele a observava se afastar. Lembrou que, da última vez que ele estivera em Shadow Falls, ela é que o vira se afastar. E não sabia se isso significava alguma coisa, mas por algum motivo inexplicável sentiu que sim.

Em vez de tomar o caminho da cabana catorze, Della pegou um atalho pela floresta. O dia estava nublado. E sob a copa das árvores, parecia quase noite. A terra úmida perfumava o ar. Gotas da chuva que caíra mais cedo pingavam dos galhos acima e molhavam os braços dela. Uma delas respingou em seu rosto e rolou pela sua bochecha como uma lágrima. Ela ignorou e continuou andando.

Logo percebeu outra coisa que estava tentando ignorar. A sensação de que não estava sozinha. Parando, fez um círculo completo, com os ouvidos atentos, olhando tudo, como que desafiando os problemas a aparecer caso estivessem se escondendo nas sombras.

Nada.

Provavelmente era a falta de sono.

Ou os mortos.

Ela avaliou a temperatura. Fazia frio, mas seria a Mãe Natureza ou um fantasma?

— Senhora Chi? É a senhora?

Ela não viu nada de novo.

— Bao Yu? — sussurrou.

Apenas uma leve brisa e um pássaro distante responderam. Mais algumas gotas de chuva atingiram seu rosto.

Sentindo-se tola, recomeçou a andar. Quanto mais se aproximava da cabana catorze, menos barulho fazia ao caminhar — observando cada passo, sendo mais cuidadosa, para que suas botas pretas não pisassem em nenhum galho.

Ah, de qualquer jeito ele iria ouvi-la e farejá-la antes que chegasse, mas o pensamento de dar a ele menos tempo para tentar inventar uma história lhe parecia uma boa ideia.

Ela viu a cabana e respirou fundo para sentir o cheiro dele, que pairava no ar, mas ainda fraco. Mais fortes eram os pontos onde Baxter tinha levantado a perninha e deixado para o mundo a mensagem de que passara lá.

Ela ficou feliz de não ter que se agachar e fazer pipi para ser notada.

Deu mais alguns passos na direção da estrutura de madeira. Será que Chase estava ali? Quanto mais se aproximava, mais certa ficava de que ele não estava. Quando entrou na varanda, inspirou mais uma vez, verificando se seu amigo canino esperava lá dentro.

Quando estava no escritório, tinha ouvido Chase chamar o cão como se o animal quisesse vê-la. E a verdade era que ela gostaria de ver Baxter, também. Ela deu mais alguns passos.

Nada de Baxter.

Ela quase se virou para ir embora, então parou.

Aquilo que pretendia fazer era errado. Mas mentir para ela também era, e ele tinha feito isso várias vezes.

Ela andou até a porta e girou a maçaneta. Ele não tinha trancado a cabana. Era praticamente um convite.

Ao abrir a porta, ela pôde jurar que ouviu alguma coisa. Parou e apurou os ouvidos. A única coisa que escutou foram os ruídos da mata: pássaros e bichos correndo por ali. Depois notou uma janela aberta.

Olhou em volta. A disposição da cabana era a mesma da que ela dividia com Miranda e Kylie. A sala de estar conjugada com a cozinha, dois pequenos banheiros e três quartos. A mobília era diferente e mais nova. Aquela devia ser uma das cabanas construídas alguns meses antes, quando o acampamento tinha se transformado em escola. Della inspirou e o cheiro de tinta ficou mais intenso.

Ela continuou a inspecionar a cabana e só parou quando viu a fotografia emoldurada de uma família de quatro pessoas. A mãe, o pai, o irmão e a irmã. Chegando mais perto, reconheceu a foto que ele costumava deixar na sala da outra cabana, muito mais confortável.

Ela pegou o porta-retratos. Chase era mais jovem, com 14 ou 15 anos. A fotografia devia ter sido tirada um pouco antes do acidente de avião que matara a família. Quando olhou a foto mais de perto, o cheiro de Chase ficou mais forte. Ela deixou que o odor preenchesse os seus pulmões, chegando até a respirar um pouco mais fundo.

No vidro do porta-retratos, viu uma impressão digital, como se alguém tivesse tocado a imagem. Ela sabia que tinha sido ele. Podia vê-lo fazendo isso em sua mente.

Será que Chase ainda sentia falta da família?

Claro que ele sentia!

Seu coração se condoeu por ele, então ela se lembrou dos seus próprios problemas familiares. Será que as fotos da própria família eram tudo que ela teria deles um dia?

Colocando o porta-retratos de volta no lugar e lutando contra a dor, ela viu um laptop aberto e alguns papéis sobre a mesa da cozinha.

Deixando a dor de lado, recordou a razão que a levara até ali. Para ver se Chase Tallman estava escondendo alguma coisa sobre o tio dela e conseguir, por fim, livrar seu pai da acusação de assassinato.

— O que você anda fazendo, Chase?

Ela pegou os papéis e leu o nome “Douglas Stone”.

No mesmo instante se lembrou das palavras de Burnett: Ele está dizendo que um homem chamado Douglas Stone matou a sua tia.

Continuou a ler. Chase tinha vários endereços e informações sobre vários Douglas Stone diferentes na área de Houston. Também tinha o nome “Don Williams”. Ela não sabia quem era Don Williams, mas apostaria um litro de sangue O negativo que ele tinha algo a ver com o caso do seu pai.

E que ninguém duvidasse de que ela descobriria.

Ela pegou o celular no bolso e tirou fotos dos papéis.

* * *

Della voltou ao escritório para pegar as suas coisas, depois foi para a sua cabana. Devia tentar descansar, mas o pensamento de que Chase estava escondendo algo tornou o sono impossível.

Ela deixaria suas coisas na cabana e depois iria encontrá-lo. Então tiraria um cochilo. Ainda não tinha avistado sua cabana quando seu nariz sentiu o cheiro típico deixado por um cão marcando território. Logo em seguida, foi atingida pelo cheiro do dono.

Ela apressou o passo, com a expectativa de encontrá-lo na varanda, mas não viu nada. Depois notou que a porta estava entreaberta. O imbecil tinha acabado de entrar na sua cabana sem ser convidado. Quem ele pensava que era...

Ok, talvez ela não tivesse o direito de se queixar disso.

Não que não tivesse muitas outras coisas de que tinha todo o direito de se queixar. Ela voou até os degraus, jogou suas coisas na varanda com um baque alto e foi confrontar o merdinha.


Capítulo Catorze

Quando abriu a porta, ele estava em pé entre o sofá e a mesa de centro. Sem dúvida, tinha ouvido ela se aproximar a tempo de se colocar de pé. Mas o sofá não tinha tido tempo para apagar a marca deixada pelo corpo dele no estofamento. Os olhos, ela notou, ainda estavam com o olhar preguiçoso de sono.

— Dormindo no meu sofá, hein? — ela acusou, e sentiu Baxter batendo com o focinho na perna dela, implorando por carinho. Inclinando-se um pouco, ela acariciou o cão, na esperança de que um pouco de gentileza a fizesse parecer menos mal-humorada.

Chase passou a mão no rosto, como se estivesse tentando apagar a prova de que estivera dormindo.

— Eu estava esperando você. — Ele tirou o celular do bolso como se fosse ver quanto tempo tinha dormido.

— O que Burnett tanto queria falar com você?

— Onde está meu tio, Chase?

Ele franziu a testa.

— Eu podia jurar que já conversamos sobre isso.

Ela abriu a boca para jogar na cara dele todos os motivos pelos quais nunca acreditaria numa palavra do que ele dizia, quando Chase falou:

— Mas eu não me importo de responder novamente. — Ele olhou bem nos olhos dela. — Eu não sei onde ele está. Ele não matou sua tia. E eu estou aqui para ajudar a encontrar a pessoa que fez isso.

— Dormindo no meu sofá? Sem ser convidado? — ela deixou escapar, tentando não pensar na própria culpa por bisbilhotar a cabana dele. Baxter ergueu a pata e colocou-a com delicadeza no joelho dela. Ela mais uma vez coçou atrás da orelha dele.

— A porta não estava trancada.

Sim, ela tinha usado essa desculpa também.

— Ainda assim é errado. — Ela tirou a mão do cão e colocou-a no quadril.

Ele se aproximou e sorriu.

— E parece que eu não sou o único que... fez algo errado. Você foi examinar as minhas roupas? Por quê? Estava curiosa para saber se eu uso cuecas boxers ou slips?

Como diabos ele sabe que eu entrei na cabana? Ela apertou os olhos para ele.

— Suas roupas de baixo não me interessam nem um pouco.

— Nem um pouco? — O sorriso dele se alargou. — Não que eu a culpe, quer dizer, eu também tive que examinar as suas no dia em que nos conhecemos...

— Continua sendo o Pervertido da Calcinha, hein? — ela perguntou com os lábios apertados, lembrando o dia em que ele tinha encontrado a mochila dela e mais tarde comentado sobre suas roupas de baixo.

— Só tarado por Della. — Ele riu.

Quando ela lhe lançou seu melhor olhar “vá para o inferno!”, ele parou de rir.

— Ok, então talvez você não estivesse examinando a minha... roupa de baixo, como você diz, mas estava na minha cabana. Eu senti em você o cheiro de tinta fresca.

Chase estendeu a mão para ela.

— Pare! — Della apontou o dedo para ele. — A única razão por que estou tolerando a sua presença aqui é que preciso livrar o meu pai de uma acusação de assassinato. Portanto, ou você me diz alguma coisa a respeito disso ou sai daqui agora.

Ela ficou batendo o pé no chão e esperando para ver se ele diria mais alguma coisa sobre Douglas Stone e aquele tal William. Não que isso significasse que seu tio era inocente. Mas talvez Chase pensasse que era. Talvez o tio o estivesse enganando.

Chase ergueu as mãos em sinal de rendição.

— Estou aqui para ajudar, Della. — O ar de provocação nos olhos dele desapareceu quando olhou para ela. — Burnett já contou que eu me demiti do Conselho e estou trabalhando para a UPF?

— Sim, ele me deu a má notícia.

Ele revirou os olhos como se a resposta dela o irritasse.

— Eu pensei que fosse o que você queria.

— Eu queria. No passado. Você mentiu para mim.

— Estou dizendo a verdade agora. Não estou escondendo nada. Pergunte qualquer coisa, eu vou responder.

— Sim, bem, mas eu não pertenço ao clube dos que acham que passar a dizer a verdade já não faz de você um mentiroso — ela rosnou. — Será que você é tão ingênuo a ponto de pensar que pode vir aqui agora e fazer tudo voltar a ser como antes?

Ele fechou os olhos como se estivesse frustrado.

Ótimo. Ele merecia ficar frustrado.

Depois abriu os olhos verdes e olhou para ela.

— Della, não brigue comigo. Trabalhe comigo. Nós podemos fazer isso. Vamos fazer isso dar certo.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não existe nenhum “nós” aqui, Chase. Existe você e eu. Eu vou trabalhar com você nesse caso, mesmo porque acredito que não saiba onde o meu tio está. A única coisa que quero fazer é livrar o meu pai dessa acusação. Não confio em você. Mas agora você é a única carta que eu tenho.

Ele suspirou.

— Então acho que vou ter de reconquistar a sua confiança.

— A probabilidade de isso acontecer é quase zero. — Ela levantou o queixo. Ninguém podia dizer que ela não tinha avisado.

Ele ficou ali, apenas olhando para ela.

— Por que você ainda está lutando contra o que sente por mim?

— Porque eu é que escolho o meu destino, mais ninguém. — No momento em que Della disse isso, percebeu quanto era verdade.

— Quem mais poderia escolher o seu destino?

— Você. Essa ligação. Você fez isso sabendo o que ia acontecer.

— Você teria mesmo preferido morrer do que gostar de mim? — Ele parecia magoado e, embora merecesse se sentir assim, ela não podia negar que magoá-lo... a magoava também.

— Eu teria preferido ter tido uma chance de escolher! — ela disparou.

— A vida nem sempre nos dá escolhas, Della! Você escolheu ser vampiro?

— Não, e eu odeio isso também! — Ela engoliu as lágrimas que ameaçavam cair.

— Então você odeia gostar de mim?

A pergunta ficou pairando no ar e ela não sabia o que responder, então simplesmente não respondeu.

Por fim, Chase olhou para ela.

— Isso nem sempre acontece assim.

— O quê? — ela perguntou.

— A ligação. Nem todo mundo acaba junto. Você ainda tem uma escolha. — Sinceridade e mágoa deixavam a voz dele mais grave. — Mas eu vou fazer tudo que estiver ao meu alcance para provar que sou a escolha certa para você.

— Mentindo pra mim?

— Eu não estou...

— Você mentiu.

— Olha — disse ele, a voz cheia de frustração. — No dia em que Burnett deu a você as fotografias, eu estava indo te contar.

— Claro que estava.

— Eu estava. Se você se lembrar, eu disse que precisávamos conversar. Liguei para você mais cedo naquela manhã e pedi que me encontrasse antes porque... Eu queria contar tudo.

Sentindo-se vulnerável, ela fechou o punho com força.

— Por que você não vai embora?

Ele balançou a cabeça.

— Eddie nunca tinha me contado sobre a sua tia. Eu o questionei sobre isso e foi aí que ele me disse. Então, quando ouvi sobre o seu pai ser preso, fiquei chocado. Voltei a procurar Eddie e foi quando ele me disse o que de fato aconteceu. E tudo o que eu faço desde então é procurar esse cara para livrar o seu pai da cadeia.

— Muito bem! — Ela levantou um dedo. — Até que enfim você disse algo que eu gostei de ouvir. O que o meu tio disse que aconteceu? Não que eu vá acreditar. — Ela foi até a cadeira e se sentou.

— Por que ele iria mentir sobre isso? — Chase perguntou.

— Porque ele é culpado do assassinato.

— Ele não é.

— Certo, bem, eu confio nele tanto quanto confio em você. — Ela se inclinou para trás e todo o seu corpo se moldou à almofada da cadeira. No mesmo instante, sentiu a falta de sono deixando suas pálpebras pesadas.

Chase foi até o sofá e se sentou.

— Ele estava numa festa uma noite com a namorada. Estavam indo embora e um cara ficou dando em cima dela.

— Eu quero saber do assassinato, não da vida amorosa do meu tio.

— Eu vou chegar lá — disse ele. — Eddie foi tirar satisfação e eles brigaram. O cara era vampiro. Quando Eddie chegou em casa mais tarde, doente, os pais o levaram para o hospital. Uma jovem enfermeira lá era fae. Ela explicou a ele o que estava acontecendo e lhe deu até mesmo um pouco de sangue.

Della ficou sentada ali, lutando contra a compaixão que sentia pelo tio. A história dele era tão parecida com a dela que seu peito doeu. Ela estava tão cansada daquilo tudo...

Então ela sentiu o focinho macio de Baxter na sua perna.

— A fae contou a ele sobre uma casa funerária que iria ajudá-lo a forjar sua morte. Eles também ofereciam uma lista de gangues as quais ele podia se juntar. Ele não queria ir por esse caminho, então resolveu ficar por conta própria, mas não conseguiu. Acabou se juntando a uma gangue.

Chase cruzou as mãos.

— A gangue não era das melhores. A iniciação exigia que ele matasse alguém para conseguir sangue. Ele não conseguiu. Então ofereceram a ele mais uma chance. Disseram que, se ele não conseguisse, iriam matar alguém que ele amava. Ele não achava que soubessem alguma coisa sobre a vida particular dele.

A voz de Chase ficou mais grave e Della podia dizer, só pelo tom de voz, quanto ele se preocupava com Eddie, que era difícil para ele contar a história do homem.

Silêncio e emoção pairavam no ar, então Chase continuou:

— Eddie foi dizer ao líder da gangue que ele não conseguiria matar ninguém e que estava indo embora, mas o cara riu. Disse que o castigo já estava a caminho. A princípio Eddie não ficou preocupado; ele rebateu, dizendo que não havia ninguém que ele amasse. Mas, quando ele saiu, o cara o chamou pelo seu nome verdadeiro. Percebendo que eles sabiam sobre ele, Eddie decolou tão rápido quanto pôde. Quando chegou em casa, Yu Bao já estava morta. Um dos membros da gangue, Douglas Stone, ainda estava na casa.

O coração de Della apertou.

— Meu pai? Será que ele viu?

Chase deu de ombros.

— Eddie disse que, quando chegou lá, seu pai estava desmaiado. Eddie e Douglas lutaram. Mas Douglas era muito mais forte. Ainda estavam brigando quando as viaturas, com as sirenes tocando, pararam em frente à casa. Eddie não estava na sua melhor forma, mas conseguiu sair antes que os policiais chegassem lá em cima. Infelizmente, Douglas Stone também. Ele escapou.

Chase fez uma pausa.

— Assim que Eddie se sentiu capaz, foi à procura de Douglas Stone. Mas a gangue tinha se desfeito. Cada um tinha seguido um rumo diferente. Poucos meses depois, ele descobriu sobre o Conselho dos Vampiros. Foi até lá e implorou para que o ajudassem a pegar o cara. Eles procuraram por ele, mas nunca o encontraram. O sujeito ainda está na lista dos mais procurados do Conselho.

Della apenas olhou para ele, tentando absorver tudo, seu nível de exaustão aumentando a cada segundo.

— Quem chamou a polícia?

Chase deu de ombros.

— Eu não sei.

— Tem que ter sido o meu pai.

— É possível.

As imagens que surgiam em sua cabeça eram quase dolorosas demais para que seu estômago aguentasse. Ela sentiu a língua de Baxter molhar a sua mão. Olhou para o cão, usando seus olhos doces e amorosos como um contraponto para a história se desenrolando em sua cabeça. Será que ela acreditava naquilo? Talvez. Ah, mas que inferno, ela não sabia mais em que acreditar!

Della olhou para Chase. Será que acreditava nele? Ele não tinha provado que ela não podia confiar?

— O meu tio trabalha para o Conselho?

Chase assentiu.

— Em termos. Mas não como agente.

— Então o quê?

Ele deu um sorrisinho.

— Eddie diz que ele tem mais cérebro do que músculos. O Conselho o deixou sob o comando de Baylor. Depois, ele estudou para ser médico sobrenatural ao redor do mundo. Ele não trabalha mais apenas como médico, mas tentando melhorar a saúde dos vampiros. Foi quem descobriu as cinco linhagens portadoras do vírus dos Renascidos e como salvá-los. Ele é um bom homem, Della.

— Se ele é tão bom, por que não está aqui agora? Por que não veio me procurar em vez de enviar você? O que ele está escondendo?

Ela viu o jeito como Chase desviou os olhos por um segundo. Depois se virou de costas.

— É Burnett.

— Ele conhece Burnett?

— Não, porque ele é da UPF.

— Mas... — Ela fez uma pausa enquanto tentava entender a resposta de Chase. — Você está aqui e agora até trabalha para a UPF.

— Algumas pessoas são mais politizadas do que outras.

— Essa me parece uma desculpa muito fraca. — E suas pálpebras pareciam cada vez mais pesadas. Della precisava que ele fosse embora para que pudesse descansar. Mas ela estava finalmente conseguindo respostas que pareciam meias verdades.

— Ele vai evitar você agora?

— Ele não faria isso.

Será que aquilo era dúvida nos olhos dele?

— Então não faz sentido.

Ele passou a mão no rosto.

— Eu não sei por que ele odeia tanto a UPF. — Chase suspirou. — Mas seja qual for a razão, não é que... Ele tem um bom coração.

— Quem é Don Williams?

— Eu acho que é um nome que Douglas Stone usa. Tenho o endereço de alguns aqui na região de Houston. Amanhã vou encontrá-los. Você, é óbvio, viu o que eu imprimi.

Ela não negou. Ficaram sentados ali por mais alguns segundos em silêncio, ela com o corpo afundando cada vez mais na cadeira, os olhos cada vez mais pesados.

— Alguma outra pergunta, Della? Vou responder a todas. Não estou escondendo nada.

Será que ela acreditava nele? Ah, dane-se! Estava cansada demais para acreditar ou não acreditar.

Chase se levantou e passou por ela.

— Eu trouxe uma coisa. — Ele tirou uma garrafa de sangue da geladeira, desatarraxou a tampa e tomou um gole. O aroma picante era de O negativo. Ele andou de volta até onde estava e estendeu a garrafa.

— Tome.

As papilas gustativas na língua dela formigaram. Ela não ia tomá-lo.

— Não preciso. — Seu estômago roncou em protesto. — Tomei um pouco ontem à noite. — Ela olhou para Baxter.

— Quanto tempo você ficou sem sangue? Chegou a se alimentar enquanto esteve com seus pais?

— Claro que sim — disse ela.

— Você sabe que, se não se alimenta com regularidade, fica debilitada. Principalmente, quando é um Renascido.

Ela olhou para ele.

— Eu deveria ter te levado um pouco de sangue enquanto estava lá. Não pensei nisso. Me desculpe.

Ela revirou os olhos.

— Eu não sou responsabilidade sua.

— Você sempre vai ser responsabilidade minha — disse ele em voz baixa. Então colocou o recipiente de plástico na mão dela. O aroma de frutas silvestres atingiu sua boca cheia de saliva. Ah, dane-se! Ela se levantou e tomou um gole. O sabor a fez se sentir no céu.

Ela olhou para Chase. O fato de que estar de pé na frente dela e a olhar de cima lhe deu nos nervos, mas, com energia zero, não tinha condições de ficar de pé.

— Eu não preciso que você cuide de mim — disse ela.

— Todos nós precisamos de alguém, Della. Isso não significa que você não seja forte.

Ela começou a se levantar, mas ele se ajoelhou. Seu olhar verde fixou-se no rosto dela.

— Você é linda, inteligente e divertida. Você se importa mais com as pessoas do que precisaria. Você é a coisa mais distante de um monstro que eu conheço, Della Tsang.

Uma dor aguda encheu o peito dela.

— Você estava escutando a conversa. — Se ela não estivesse tão cansada, daria um empurrão nele e o faria cair de bunda. Droga, se não estivesse tão cansada, faria algum comentário grosseiro, dizendo que os elogios dele não significavam nada.

— Não estava escutando, na verdade. Foi sem querer.

Antes que ela percebesse a intenção dele, Chase afastou uma mecha de cabelo do rosto dela e deixou a mão ficar em sua bochecha. O toque era um tormento e uma delícia ao mesmo tempo.

Ela desviou os olhos para o lado e olhou a mão dele.

— Essa é uma boa maneira de perder um dedo.

Como que para provar que não acreditava, ele passou o dedo indicador sobre o lábio inferior dela.

— Descanse um pouco. Venho ver você mais tarde.

Ela o observou sair. Por que não o mordeu? Droga, devia ter mordido!

Foi só quando ela piscou que percebeu que tinha lágrimas nos olhos. E estava tão cansada que nem sabia por que estava chorando. Não que não tivesse razões de sobra.


Capítulo Quinze

O sono nunca fez tão bem a ela. Della não queria acordar, mas, à certa altura, ouviu vozes. Seriam Miranda e Kylie?

Ela rolou na cama e se forçou a abrir os olhos. Seu olhar pousou sobre a cômoda. Uma cômoda branca grande com dois vasos de flores amarelas de plástico como decoração.

— Caramba! — Ela pulou da cama e afundou os pés no tapete azul-claro. Ficou ali, com os braços tensos, a mente rodopiando, tentando explicar a si mesma que ela não tinha uma cômoda branca. Que as paredes do seu quarto em Shadow Falls não eram pintadas de amarelo-claro.

Seu olhar passeou pelo cômodo. Ela não tinha uma cama branca de dossel, tampouco. Nem uma colcha de retalhos cor-de-rosa. Ou...

Um barulho de algo se quebrando ecoou de algum lugar dentro da casa. Então ela ouviu vozes. Não, não vozes: gritos.

Gritos reais, como os de alguém que estava prestes a morrer.

O olhar de Della saltou para o espelho. Seu coração parou ao ver que a pessoa no reflexo não era... ela. Era Bao Yu, sua tia. Em algum lugar no fundo de sua mente, por trás da parede de pânico que arranhava seu consciente, ela percebeu que se tratava de uma visão.

— Você está bem? — Outra voz soou longe, em algum lugar que não era ali. Em algum lugar que parecia seguro, mas que Della não conseguia alcançar. Ela tinha que ficar ali.

Uma voz chamou seu nome.

— Della?

Uma mão pousou sobre seu ombro. Della se virou, rosnou e mostrou os caninos.

De repente, as paredes amarelas desapareceram. Sua visão rodava, anuviada e depois transformada em visão de túnel. Ela piscou e sentiu como se estivesse se movendo. Fechou os olhos, em seguida os abriu. Por um segundo pensou que estava de volta ao seu quarto, mas então algo mudou, tudo mudou. Ela estava deitada no chão, num chão frio de ladrilhos; acima dela um ventilador de teto girava. Sem parar.

Desviou os olhos para a esquerda e viu uma bola de basquete a cerca de trinta centímetros do seu rosto, numa poça de alguma coisa vermelha. Depois olhou para a direita e viu... viu um gato tigrado amarelo. Della lutou para dar sentido àquilo, e então se deu conta. O gato... Era Chester.

O felino estava deitado ao seu lado, estendendo a pata para ela, a respiração difícil. Logo atrás do gato estava seu marido. Não, o marido da senhora Chi. Mas ela era a senhora Chi. Piscou, esperando ver seu peito subir com a respiração. Mas não subiu. Ele estava imóvel. Completamente imóvel.

O pé de alguém pousou entre ela e o gato. Calçava um tênis vermelho brilhante que parecia de pele de cobra.

Será que eu vou ter que afastar você outra vez?, perguntou uma voz. E, então: Merda, vai atrás dos caras antes que deem com a língua nos dentes. Dá um jeito neles!

Vá buscar quem?, Della se perguntou. Ela tentou olhar para cima e ver o rosto do assassino, mas sua visão escureceu. Uma luz, muito suave, chamava pela senhora Chi. A fúria da mulher com os assassinos fez seu peito inchar e ela se afastou da luz. Agarrou-se ao que conhecia. Ao aqui e agora.

Um barulho de pele se rasgando encheu seus ouvidos, o gosto de sangue impregnou sua boca. Ela sentiu isso, depois mais nada. Nenhum medo. Nenhuma dor.

Ela estava morrendo.

— Não! — gritou. Mas nada saiu da sua boca. Tudo ficou escuro, e só viu que a bela luz se afastava dela, flutuando para longe. O marido estava no meio da luz, gesticulando para ela vir. Se apressar. Mas não era certo. Nada disso deveria ter acontecido. Ela precisava contar a alguém antes que esses sujeitos odiosos ferissem outras pessoas.

— Della? — Seu nome soou de novo, mas ainda estava longe. Suas visões começavam a se desvanecer. Ela percebeu que não estava sozinha. Viu a silhueta do marido flutuando na direção dela em outra luz. Uma luz diferente. Não o senhor Chi, mas outra pessoa. Alguém... familiar. Chase?

Em seguida, ele se foi. Assim como a luz. Uma faca, o sangue escorrendo da ponta, estava estendida bem perto do seu rosto. O medo a envolveu. Ela sentiu uma gota de sangue cair da arma e molhar sua bochecha. Tentou se encolher, mas seus membros estavam dormentes. Outros respingos de sangue escorreram da lâmina da faca.

Uma estranha sensação de déjà-vu inundou sua mente. Ela olhou para cima, na direção da lâmina, para a pessoa que a empunhava. Feng.

Não, não era Feng! Veja a pinta. Lá, ao lado da sobrancelha direita. Ele não é Feng.

De repente, lutando para conseguir se mover, Della levantou a cabeça e soltou outro grunhido.

— Não! Não! Não!

A escuridão voltou e ela a acolheu com agrado. Deixou que a engolisse.

Um.

Dois.

Três.

Ela queria ficar lá. No nada, mas alguma coisa, alguém, a trouxe de volta.

— Estou aqui com você. Acabou — disse uma voz masculina.

O que acabou?

Della se sentiu sendo erguida do chão, embalada nos braços de alguém. Sua bochecha se encostou contra um peito masculino sólido. Um sólido peito nu.

Ela ouviu um coração batendo forte. E, assim que o ouviu, o seu próprio coração mudou de ritmo também.

Ela abriu os olhos e viu o olhar verde de Chase sobre ela. A preocupação estampada em seu rosto. Sentiu os braços em volta dela. A frieza de sua pele contra a parte de trás de suas pernas, suas costas nuas. O músculo do peito dele, onde seu rosto descansava. Outra fração de segundo se passou antes que ela percebesse que ele estava se abaixando. Chase se sentou na cama dela.

De repente Della se lembrou de estar conversando com ele, lembrou-se de Chase partindo. Teve uma ligeira lembrança de estar só de sutiã e calcinha antes de rastejar para debaixo das cobertas. Mas fora isso, tudo mais em sua mente estava em branco. Como ele... Por que ele estava...

Com certeza eles não estavam...

— Você está ok? — ele perguntou.

Ela piscou. Ok? Estava praticamente nua e em seus braços e não tinha ideia de como tinha chegado a isso. Como ela poderia estar ok?

Aos poucos, a confusão começou a se desvanecer, a memória voltar. A lembrança de algo ruim. Algo... Seu coração começou a acelerar.

— Não! Não estou ok. — Sua mente estava clareando, dando-lhe um vislumbre de algo aterrorizante.

Desvencilhou-se dos braços de Chase e, desajeitada, caiu sentada no chão, com um baque duro.

Chase se levantou. Seu olhar se moveu para cima. O tronco nu. Ele usava calça jeans, mas o zíper estava aberto. Um rastro de pelos escuros descia pela barriga, desaparecendo sob o elástico do que parecia uma cueca boxer azul-clara justa, da Calvin Klein.

Ela ouviu as palavras dele de antes. Por quê? Estava curiosa para saber se eu uso cuecas boxers ou slips?

Della sacudiu a cabeça, achando que aquilo poderia ser um sonho maluco. Olhou para o relógio. Eram quase quatro da tarde. Se aquilo não era um sonho, tinha dormido umas boas duas horas. Fechou os olhos e se obrigou a acordar.

Quando os abriu outra vez, ele estava ali olhando para ela, com os lábios franzidos. Então, lembrando-se de sua nudez, ela se levantou num salto, agarrou o travesseiro e segurou-o na frente do corpo.

Só então se lembrou da visão. Ou visões? Todo horror da cena se derramou sobre ela de uma só vez. O ar ficou preso na garganta. Ela tinha visto Chester, gato da senhora Chi, o senhor Chi e ela tinha visto... a tia.

Seus joelhos cederam e ela caiu de volta na cama.

Chase se sentou ao lado dela.

— Está tudo bem. Respire.

Ela olhou para a frente e se lembrou da silhueta que tinha visto na luz. Lembrou-se de alguém chamando seu nome. Será que Chase estivera ali no quarto, enquanto ela estava tendo a visão? Ou... será que ele estivera... lá? Lá na visão?

— Você estava...? Você viu...?

Ele assentiu.

— Foi diferente do que aconteceu na visão de Liam e Natasha. Era como um filme passando na minha cabeça. Mas não era sua tia, ou a senhora idosa, era você. Quando acordei, eu vim para cá o mais rápido que pude.

Lágrimas encheram os olhos dela, enquanto recordava fragmentos e partes da visão. O coração dela se condoeu pela senhora Chi, e então se lembrou... Não, não era Feng! Veja a pinta. Lá, ao lado da sobrancelha direita. Não é Feng.

Ela olhou para Chase. Será que ele tinha ouvido isso também? De repente, soube que ele ouvira.

— Meu pai não fez isso. Ele está apenas confuso. Holiday disse que isso costuma acontecer.

Ela fitou os olhos verdes de Chase. Aquilo que havia nos olhos dele era dúvida?

— Ele não é um homem mau, Chase. Ele era o pai que todas as minhas amigas queriam ter. Sempre que havia uma festa, era meu pai que levava a gente. Ele pegava todas as minhas amigas e nos levava para onde a gente quisesse ir. Algumas noites, depois de um jogo de futebol, ele me levava com as minhas amigas para jantar e tomar sorvete.

Della enxugou as lágrimas do rosto.

— Ele nunca deixou de dançar valsa comigo nas festas de formatura ou em qualquer evento que eu tivesse. Era o meu herói. Eu sempre soube que a minha mãe me amava, mas meu pai... ele me adorava. Se eu tivesse um problema, era sempre a pessoa que eu procurava. E não havia nada que ele não fizesse por mim. Uma vez, quando eu era apenas uma adolescente, minha mãe estava fora da cidade, eu fiquei sem absorvente. Eu estava com vergonha de ir até a farmácia comprá-los. Ele fez isso por mim. E, quando eu tirei as amígdalas, ele ficou no hospital o tempo todo. Ele não é um assassino, Chase. Ele é meu pai. E eu sou a filha que ele adora.

Chase passou os braços em volta dela. Puxou-a contra ele. Ela estava fraca demais para lutar contra ele.

— Douglas Stone fez isso.

Ele pressionou o rosto no cabelo dela e beijou o topo de sua cabeça. A suavidade do beijo fez com que ela ficasse com a respiração presa.

Ela olhou para cima, secando as lágrimas.

— Você acredita nisso ou só está dizendo para eu me sentir melhor?

— Eu acredito. — Ele passou o polegar sob o olho dela como se para pegar uma lágrima que caía.

— Vai acabar tudo bem — disse ele.

Nem todo mundo acaba junto. Você ainda tem uma escolha. As palavras que ele dissera antes vibraram na cabeça e no coração dela.

Em seguida, ele se inclinou — ou será que foi ela? De qualquer forma, seus lábios se tocaram. De alguma forma o travesseiro dela escorregou para o chão. O beijo foi suave e lento, como se ele estivesse com medo de que ela se arrependesse. Della provavelmente se arrependeria, mas, considerando o que tinha acabado de passar, precisava de uma distração. Era disso que se tratava, ela concluiu, nada mais do que uma distração. Um beijo não significava nada. Era só... um beijo.

Ele deslizou a língua pela boca de Della. Ao fundo, ela ouviu passos na cabana. Mas, antes que pudesse voltar seus pensamentos para outra coisa que não fossem os lábios de Chase, a porta do quarto se abriu.

Miranda entrou de repente.

— Você ouviu que Perry está... — A bruxa parou com um sobressalto, os tênis derrapando. Sério, deviam ter até deixado um sulco no assoalho. Os olhos cor de avelã da amiga se arregalaram, a boca entreabriu.

— Ah, me desculpe, eu... vocês dois só... hã, continuem.

Chase saltou rápido da cama, tentando disfarçar, mas algo na maneira como se apressou para fechar o zíper só fez tudo parecer pior.

Miranda deu vários passos para trás e se chocou contra a porta.

Chase olhou para ela.

— Sinto muito — disse ele, parecendo sincero.

Della caiu de costas no colchão, fechando os olhos, e se perguntou como as emoções de uma pessoa poderiam passar, em segundos, de horror, depois para vontade de ser beijada e, em seguida, para a mais profunda humilhação.

— Suma daqui! — ela implorou a ele e escutou para ver se Chase tinha lhe concedido o pedido.

Não se ouviu nenhum som de passos no quarto. Em vez disso, o colchão cedeu quando ele se sentou ao lado dela.

— Você tem certeza de que está bem? Isso foi bem assustador. Eu só... Eu... você... o caso é que...

Quando ele parou de dizer coisa com coisa, ela abriu os olhos e o pegou reparando no que ela estava usando, ou no que não estava usando — aparentemente pela primeira vez.

— Por favor, apenas vá embora.

Os olhos dele subiram até o rosto dela. Devagar. Toda a terna preocupação em seus olhos tinha se transformado em algo diferente. Suas pupilas estavam grandes e o verde dos olhos parecia brilhar com uma espécie diferente de emoção.

— Mas... hã... Você não acha que deveríamos... conversar sobre tudo que vimos?

— Não agora — disse ela, com os lábios apertados e se cobrindo com a almofada de novo. Seu biquíni revelaria mais do que o sutiã e a calcinha, mas, como estes não eram trajes de banho, ela se sentia mais vulnerável.

— Ok. — Ele se virou em direção à porta.

— Não por aí — ela retrucou. — Pela janela.

Ele olhou para trás, apenas o toque de um sorriso nos olhos.

— Se eu me esgueirar daqui desse jeito, aí é que ela vai mesmo acreditar que estávamos fazendo... você sabe o quê.

Della sentou-se e abraçou o travesseiro.

— Você estava sem camisa, suas calças estavam abertas e eu estou de roupa de baixo. E, por alguma razão desconhecida, estávamos nos beijando. Não há nada neste mundo que você possa dizer para convencê-la de que não estávamos fazendo... “você sabe o quê”! Então, por favor saia pela janela.

Ele abriu a vidraça, colocou uma perna para fora e ele olhou para trás, aquele olhar provocante agora mais brilhante.

— Só mais uma coisa.

— O quê? — Ela fez uma careta.

Chase rebateu a expressão dela com um sorriso.

— Na verdade, duas.

— O quê? — ela repetiu com rispidez.

— Primeiro — ele fez uma pausa —, esse... o beijo que acabou de acontecer. Foi escolha sua. Você me beijou.

Ela franziu a testa, porque, caramba, não queria ser lembrada disso.

— Segundo. Você está com o dia errado.

— Hã?

— Você está usando a calcinha da sexta-feira, e hoje é domingo.

Ela jogou o travesseiro nele, então olhou para baixo para confirmar. De fato estava usando uma calcinha do dia da semana.

Ela colocou o braço sobre os olhos e soltou um gemido.


Capítulo Dezesseis

Minutos depois, já vestida, mas ainda sem se sentir preparada para enfrentar o interrogatório da amiga ou o frio mortal que havia retornado, Della ouviu passos na varanda da frente. Ela inspirou o ar gelado e reconheceu o cheiro de Kylie, junto com o de Socks, seu gato.

Ouviu Kylie falar com Miranda. Della não fez questão de ouvir, apenas imaginou o que a bruxa estaria dizendo. Em seguida, um miado alto encheu a cabana. Seria o gato protestando contra a visita anterior de Baxter?

Nesse mesmo instante, a camaleão bateu na porta do quarto de Della.

— Entre — disse Della, como se tivesse escolha.

Kylie entrou primeiro, a expressão séria. Depois se sentou na beira da cama, ao lado de Della.

— Você está bem?

— A gente não estava fazendo nada de mais. Eu tive uma visão, ele viu também e, quando acordou, veio aqui. — Della olhou para Miranda, em pé na porta.

Kylie suspirou.

— Eu não quis dizer que...

— Eu sei que era o que parecia... — Ela franziu a testa para Miranda. — E se eu tivesse visto o que você viu, não acreditaria em mim também, mas...

— Eu não estou perguntando sobre você e Chase, estou perguntando sobre os cinco espíritos.

— Sim, eu tive... — Cinco? Cinco? Ela disse cinco espíritos? — Della prendeu a respiração. — Não!

Kylie confirmou.

Della sacudiu a cabeça.

— Dois sim, mas não cinco. Você deve ter trazido três com você, porque eu só tinha dois.

— Tenho certeza de que eram cinco. E eles não estavam aqui por minha causa. Eu não podia vê-los, só senti-los.

— Bem, eu não os vejo também — disse Della, não querendo admitir que estavam ali por causa dela.

— Eles disseram alguma coisa?

— Não. — Della saiu da cama num salto. — Não. E não! — Ela olhou para o teto. Não tinha certeza de para quem ela estava se dirigindo, mas olhar para cima lhe pareceu apropriado. — Dois já é demais. De jeito nenhum, nada disso, como, pelo amor de Deus, eu vou dar conta de cinco! — Então olhou para Kylie. — Eles ainda estão aqui?

— Não. — Kylie se levantou. — Já foram embora.

— Mas eles estavam aqui. — disse Miranda. — As três Cocas Diet que eu pus sobre a mesa da cozinha para a gente conversar assim que vocês terminassem o que estavam fazendo, explodiram. Eu juro que meu nariz quase congelou! — Ela esfregou a ponta do nariz.

Então um baque alto soou na varanda, seguido por uma batida na porta. Burnett.

Todas as três foram para a sala de estar. Miranda correu para a porta.

— Que bom que você está aqui. Tivemos uma invasão de fantasmas.

Burnett franziu a testa, entrou na cabana e olhou para Della.

— Descansou?

— Sim. — Por que ela tinha a estranha sensação de que ele não estava ali apenas para monitorar seu sono? — Lucas conseguiu descobrir alguma coisa na quadra de basquete?

— Não. — Pela expressão de Burnett, ela sabia que ele tinha mais a dizer.

— Então o quê?

— Eu acabei de ser chamado para ir à cena de um crime. Três jovens lobisomens assassinados. Acho que podem ser os três que você viu e eles talvez estejam ligados ao caso dos Chi.

— Pelo menos sabemos quem eram os outros três espíritos — disse Kylie.

— Eles disseram alguma coisa? — perguntou Burnett.

— Eu nem sequer senti a presença deles! — disse Della, esperando colocar alguma distância entre ela e os novos fantasmas.

— Você ainda não está trabalhando no caso — disse Burnett —, mas vai ajudar se puder confirmar que eram os mesmos lobisomens. Você vem comigo?

Della suspirou.

— Sim, claro. — Mas tudo dentro dela gritava não.

Não para não trabalhar no caso. Ela queria pegar os assassinos dos Chi.

Não para os fantasmas. Eles ainda a deixavam apavorada.

Não para ver mais cadáveres. Isso era simplesmente errado!

Não para beijar Chase. Ela não estava pronta para isso.

Agora tudo o que tinha a fazer era descobrir por que raios continuava dizendo sim.

— Tem certeza de que consegue fazer isso numa boa? — perguntou Burnett, um pouco antes de atravessarem a fita amarela da cena do crime.

— Quer parar de se preocupar comigo? Eu já dormi. Eu já comi.

Ele franziu a testa.

— Eu estava me referindo... Não importa.

Ela se lembrou de repente do último corpo que tinha identificado. Uma jovem e seu namorado, assassinados por um vampiro. Della tinha vomitado as tripas depois.

Ela engoliu em seco e jurou não repetir o vexame.

— Eu aguento. — E para provar isso a ele, e talvez até a si mesma, foi na frente e passou por cima da fita amarela, aproximando-se do galpão localizado no lado mais distante do parque. O mesmo parque onde ela tinha encontrado Lucas e salvado a menina dos lobisomens. O parque perto da sua casa.

Quando deu os últimos passos para chegar ao galpão, agora cercado por vários agentes da UPF, lembrou-se de quantas vezes tinha brincado ali quando criança. Será que havia lobisomens por ali na época? Será que sua irmã já tinha vindo ali à noite? O pensamento fez com que o medo se insinuasse dentro dela. Fez uma anotação mental para avisá-la de que aquele lugar era perigoso.

Della avistou três cadáveres enfileirados e cobertos com um lençol. O cheiro de sangue, sangue das vítimas, penetrou no seu nariz. E veio acompanhado de outro, horrível, que Della reconheceu como o cheiro da morte.

Burnett disse algo para um dos agentes. Ela deveria estar ouvindo também, mas estava preocupada demais tentando controlar a vontade de vomitar.

Um dos agentes mais novos, Shawn, o bruxo, que tinha uma quedinha por Miranda, aproximou-se e acenou para Della. Ela retribuiu a cortesia.

— Você está bem? — ele perguntou.

Franzindo a testa, ela confirmou com a cabeça. Estaria muito melhor se as pessoas parassem de perguntar isso a ela.

Outro agente, de terno preto, um lobisomem mais velho, andou até os três corpos e, um por um, puxou os lençóis do rosto das vítimas para Della ver.

Seu estômago revirou, mas ela fez um esforço para vencer a náusea. Enquanto tentava controlar o estômago, olhou de um rosto azulado para o outro e sentiu o coração oprimido. Lembrou-se de quando viu os três adolescentes saindo para uma divertida noite de sábado. Tinham a vida inteira pela frente. Mais do que nunca, ela queria pegar os cretinos que tinham feito aquilo.

— São eles — disse Della e ouviu passos atrás dela.

Ela olhou para Chase e percebeu que não deveria ficar surpresa ao vê-lo ali. Ele estava trabalhando para Burnett agora. Os olhos de Chase, cheios de preocupação, encontraram os dela e ela viu a pergunta em seus olhos: “Você está bem?”. Percebendo que isso alimentava seu lado vulnerável, a emoção em seu peito duplicou. Lembrou quanto tinha sido bom encostar a cabeça no peito dele aquele dia mais cedo.

Seus olhos arderam. Xingando a si mesma mentalmente, ela desviou o olhar e enrijeceu os ombros. A última coisa que queria era que Chase a mimasse na frente de um grupo de agentes.

Pensando bem, a última coisa que queria era precisar que alguém a mimasse. Que diabos estava acontecendo com ela? Percebendo que não precisava mais olhar os cadáveres, ela se afastou alguns metros.

Burnett a seguiu e, atrás dele, Della ouviu os passos de Chase.

— Não temos provas, mas com certeza este assassinato está ligado ao dos Chi.

— Está mesmo — disse Della, lembrando um pouco a visão. — Tenho quase certeza de que esses três passaram pela loja dos Chi, provavelmente farejaram o sangue e viram a cena do crime.

Os olhos de Burnett se arregalaram.

— Como você sabe?

— Uma visão — disse Della.

— Então você viu os assassinos?

— Não o rosto deles. — Fragmentos da visão encheram sua cabeça. — Mas eu ouvi...

— Eu vi o rosto de um deles! — afirmou Chase.

Burnett franziu a testa.

— Você me disse que não tinha visto.

— Não mais cedo, mas... na visão dela.

Burnett coçou a cabeça.

— Você estava na visão dela?

Chase assentiu.

— É verdade — ela afirmou, mesmo sabendo que parecia loucura.

Já estava escuro quando Della e Burnett voltaram para Shadow Falls. Burnett tinha enviado Chase à sede da UPF para passar uma descrição ao agente que desenharia o retrato falado.

Shadow Falls parecia muito silenciosa enquanto ela caminhava para a sua cabana. Della podia sentir o cheiro da fogueira, o que significava que todos estavam na floresta fazendo cachorros-quentes e derretendo marshmallows. Ela ficou em dúvida se iria ou não. Ter outra coisa em mente além dos próprios problemas podia ser bom, mas a ideia de tentar parecer amigável a todos era demais para ela.

A tranquilidade da sua cabana lhe atraía muito mais. Ela continuou andando.

Num canto da sua mente, fragmentos da visão continuavam surgindo. Alguns detalhezinhos continuavam assombrando-a, como se fossem importantes, mas ela não conseguia se lembrar do que poderia ser. Estava quase na cabana quando um pássaro surgiu no céu e mergulhou na direção dela. Ele não se chocou contra ela, mas chegou perto disso.

Recordando o pássaro na varanda do escritório um pouco mais cedo, Della resmungou:

— É você, Perry? Isso não é engraçado! Não estou com humor para pegadinhas idiotas!

Ela ficou parada em meio à escuridão e esperou que o metamorfo respondesse. Nenhuma resposta. Inclinando a cabeça para o lado, ainda podia ouvir os pássaros, ou talvez um pássaro — não dava para saber se era o mesmo — farfalhando nas árvores.

Esperou, impaciente, os segundos se passarem. Então recomeçou a andar, prometendo a si mesma que falaria algumas poucas e boas a Perry quando o visse. Seu celular apitou, anunciando a chegada de uma nova mensagem.

Ela o tirou do bolso e leu o pedido de Kylie para que fosse se juntar a eles. Tentando pensar numa boa razão para recusar o convite sem parecer antipática, ficou parada ali no escuro. Por fim, desistindo, enfiou o celular no bolso do jeans outra vez.

Estava bem em frente à cabana quando avistou uma figura na varanda. Ela respirou e fez uma careta. O que ele estava fazendo ali? Então, um outro perfume flutuou até ela. O que eles estavam fazendo ali juntos?


Capítulo Dezessete

Ele não a vira. Nem a ouvira. Ela poderia dar meia-volta e ir para a fogueira. Fingir que nem chegara a saber que ele estava ali. Lembrou-se das palavras dele: Vamos conversar mais tarde.

Ela havia concordado. Mas ainda não tinha a menor ideia do que dizer. Será que ele queria algum tipo de resposta? Com tanta coisa acontecendo, ela estava sem respostas.

Mas então Baxter latiu na direção dela e a curiosidade a espicaçou mais uma vez. O que Baxter estaria fazendo com Steve?

Steve virou-se e olhou na direção de Della.

— Olááá! — Seu sotaque do Alabama prolongava o final da palavra, como se ela tivesse mais de três letras.

— Oi — respondeu ela.

Steve continuou de pé na varanda, mas Baxter correu na direção dela. Para um cachorro velho, ele tinha muita energia.

— Você tinha companhia. — Steve fez um sinal para o cachorro, que estava se esfregando contra a perna dela. — Ele estava esperando você chegar.

— Sério? — Della ajoelhou-se e olhou nos olhos do cão, confirmando se ele estava bem. Chase não teria posto o cão para dentro?

Ela sentiu Steve observando-a.

— Ele pertence a Chase — ela esclareceu.

Steve encostou-se na grade da varanda.

— É, eu sei.

— Você sabe?

— Lembra que eu sabia onde era a cabana dele? Ele já tinha esse cão.

Sim, ela se lembrava agora e se repreendeu mentalmente por perguntar. Steve já a tinha visto lá com Chase. Eles não estavam fazendo nada de mais, mas Steve tinha ficado magoado.

E ela se sentira muito mal por causa disso.

— Ouvi dizer que você foi ver a cena de um assassinato — disse Steve.

— É verdade — Della olhou para a lua baixa no céu. O silêncio enchia a noite e a fumaça da fogueira distante flutuava no ar frio.

— Você quer conversar? — ele perguntou.

Ela olhou para ele, e seu pânico deve ter transparecido.

— Não sobre nós — continuou ele. — Quero dizer, sei que precisamos conversar sobre isso mais cedo ou mais tarde, mas, agora, eu quis dizer sobre a cena. — Ele arrastou os pés no chão. — Costumávamos falar sobre coisas desse tipo.

Ela olhou para ele e seu coração pulou uma batida com o pensamento seguinte. Nós costumávamos falar sobre um monte de coisas. E nesse instante outra dolorosa verdade a atingiu. Steve era apenas mais uma coisa em sua vida que tinha mudado. No entanto, ali estava ele, sem tentar pressioná-la, apenas se oferecendo para conversar, para ouvir. Ajudar.

As palavras de Chase ecoaram em sua cabeça. Nem todo mundo acaba junto. Você ainda tem uma escolha.

— Deve ter sido difícil — disse Steve.

Ela se abaixou e se encostou na parede da cabana. Baxter se sentou ao lado dela.

— Foi — Della confirmou.

— Mas essa ainda é a profissão que você quer seguir. — Ele deu um passo mais para perto. — Por que você quer ver esse tipo de coisa?

Ela olhou para ele.

— Eu não quero ver esse tipo de coisa, eu quero evitar.

Steve se sentou ao lado dela, mas não tão perto a ponto de se tocarem. Ela se lembrou das muitas vezes em que havia se sentado ali na varanda com ele. Sentindo-se tão... apavorada com o que estava sentindo.

— Eu não entendo. — Ele pegou um pedaço de palha de pinho do chão da varanda e começou a girá-lo na mão. — Isso dói em você, mas ainda quer fazer isso.

— Mas é bom quando eu encontro a pessoa responsável. Não dói em você ver alguém doente?

Ele quase sorriu.

— Touché! — disse ele. — Acho que eu não tinha olhado por esse ângulo, mas você está certa. — Houve um silêncio. Os ruídos da noite ecoaram em torno deles. — Salvei pela primeira vez a vida de uma pessoa enquanto estava em Paris.

Não, primeiro ele tinha salvado a dela. Tinha feito uma transfusão que lhe salvara a vida, mas lembrar disso agora parecia muito pessoal, então ela deixou para lá.

— Como você fez isso? Como salvou a vida dessa pessoa? — ela perguntou.

— Um lobisomem procurou a clínica em que eu estava estagiando. O médico estava fora, atendendo a um chamado. Ele tinha ferimentos internos, estava sangrando muito. Eu precisei operá-lo para deter a hemorragia. Eu estava com muito medo que ele morresse na minha mão. Mas, quando vi que não ia morrer, isso foi... Eu não sei explicar, mas foi um sentimento poderoso. Nunca tive tanta certeza de que queria ser médico. Foi como uma prova.

— Você vai ser um grande médico. — Della se lembrou do que Chase tinha dito a ela sobre o tio.

— Agora eu só tenho que convencer a minha mãe de que a medicina para sobrenaturais é o caminho certo para mim.

— Tenho certeza de que ela vai ter orgulho de você de qualquer maneira — disse Della.

— Ah, Deus, não vai, não. Ela está fazendo todo o possível para me inscrever na escola de medicina regular. Sei que ela quer o meu bem, mas só não entendo por que não pode me deixar seguir os meus próprios sonhos.

— A maioria dos pais não entende. — Ela pensou em seus próprios pais, no seu pai, e se perguntou o que ele achava que entendia... no que ele acreditava. Em sua mente, Della viu a maneira como o pai costumava olhar para ela naqueles últimos meses. Ele estaria realmente com medo dela?

— Como estão as coisas em casa? — Steve perguntou, como se estivesse lendo a mente dela.

— Uma loucura — disse ela. — Suponho que você tenha ouvido falar do meu pai.

— Sim. Eu lamento. Sei que não deve estar sendo fácil.

Ela concordou com a cabeça.

Depois de um momento, Steve perguntou:

— O que mudou?

— Como assim? Pensei que não íamos falar sobre nós.

— Não, eu não quis dizer... Eu me referi a você voltar para Shadow Falls. Ouvi dizer que você tinha voltado para casa para tentar ajudar.

Ela passou a mão lentamente nas costas de Baxter.

— Minha presença lá não estava ajudando. Só piorou as coisas.

— Não de propósito, tenho certeza — disse ele.

Ela ficou olhando para o cão.

— Não. — Um pássaro gritou no meio da noite. — Acho que meu pai sabe.

— Sabe o quê?

— Que eu sou uma vampira. — Ela olhou para a frente, sem saber por que tinha contado aquilo a Steve. Ela ainda não tinha contado a Kylie ou a Miranda. Chase sabia, mas só porque ele tinha escutado. Mas no segundo em que ela olhou nos olhos do metamorfo, entendeu seus motivos. Era porque ele era Steve. Sempre era fácil conversar com ele. Ele transmitia segurança. Ainda mais do que antes, Della percebeu.

Talvez ele sempre tivesse transmitido essa segurança, mas nem sempre ela se sentira assim. Agora, se sentia.

Não tinha a mesma necessidade de fugir ou de mantê-lo a distância. Ela não sentia nem um pouco de medo. Aquilo, ela percebeu, é que tinha mudado.

E exatamente o que significava?

Chase acabou o retrato falado. Assim que saiu da sede da UPF, pegou o celular e viu que horas eram. Olhando em volta, avistou um pássaro numa árvore. Era apenas uma ave qualquer ou seria Burnett ainda mandando que alguém o seguisse?

Será que ele estava se arriscando?

Lembrou-se do beijo que tinha trocado com Della. Aquele que ela tinha iniciado, não ele. E tinha sido muito bom. Mais cedo ou mais tarde, ela iria entender que eles eram perfeitos um para o outro. Ela tinha que entender, não tinha?

Talvez depois que ela conseguisse livrar o pai da acusação, eles pudessem recomeçar do zero. Um novo começo — em que ela soubesse que era escolha dela, em que os beijos e os momentos de Della quase nua nos braços dele não fossem tão raros.

E a pequena excursão aquela noite poderia tornar isso realidade um pouco mais cedo. Poderia levá-lo a Douglas Stone. Burnett iria ficar chateado, mas, de certa forma, tinha sido sugestão dele mesmo.

Chase digitou o número de Leo.

— Está tudo de pé para mais tarde esta noite? — perguntou, assim que o sujeito atendeu o telefone.

— Está, mas, cara, você tem certeza de que quer vir? Vou dar um jeito de fazer você entrar sem que ninguém veja, mas não posso enviar guardas com você. Vou ser o único cobrindo a entrada dos fundos, o que significa que não posso entrar junto.

— Eu sei — disse Chase. — Vai dar tudo certo.

— Já perdemos três caras este ano. Eles achavam que ia dar tudo certo também. E não estavam lá sozinhos.

— Deixe que eu me preocupo com isso.

— Ok, vou estar aqui às onze, não se atrase.

— Entendi. — Chase desligou e ficou olhando para o celular por um instante. Ele só tinha tempo para voltar para a cabana, dar comida a Baxter e deixá-lo do lado de fora; em seguida, iria para a prisão.

Quando voava sobre Shadow Falls, tinha visto o brilho da fogueira. Será que Della estava lá? Ele a imaginou com Miranda e Kylie. Mas uma imagem menos desejável lhe ocorreu. A imagem dela aninhada nos braços de Steve. O ciúme encheu seu peito.

Por mais tentador que fosse voar mais baixo para ver melhor, ele sabia que isso dispararia o alarme. Assim, voou por sobre o brilho laranja e o cheiro de marshmallows assados e seguiu direto para a entrada.

Ao passar pelo portão, sabendo que a câmera capturaria sua imagem e o deixaria passar, olhou para trás por cima do ombro, para ver se alguém o seguia. Não viu ninguém, mas isso não significava nada. Ele não tinha visto na noite anterior, também.

Pegou a trilha ainda em dúvida se deveria dar uma passadinha na fogueira. Fazendo uma corrida rápida, chegou lá em menos de três minutos. A fogueira era enorme, chamas se estendendo em direção ao céu e os estalos da lenha enchiam o ar da noite. Risos partiam de um grupo de meninas assando salsichas espetadas em varetas. Alguns casais abraçados curtiam a companhia um do outro.

Lucas, saindo detrás de algumas árvores, viu Chase e acenou. Ao lado do lobisomem de olhos azuis estava Kylie. Mas Della não estava com eles. Chase foi até lá.

Kylie sorriu.

— Ei, ouvi dizer que você está de volta.

— É. — Ele observou que o sorriso da garota parecia sincero. Será que isso significava que Della não tinha falado muito mal dele para a amiga? Chase olhou para Lucas e lembrou que Burnett o tinha enviado para seguir uma pista na quadra de basquete.

— Você descobriu alguma coisa lá no parque?

— Não, fiquei lá de tocaia várias horas. Acho que Burnett enviou outro agente para ficar de olho.

Chase assentiu com a cabeça e se concentrou em Kylie.

— Della está por aí?

— Acho que não voltou ainda. — A camaleão tirou o celular do bolso.

— Ela já deveria estar aqui — ele disse.

— Mandei uma mensagem para ela um tempo atrás e disse para vir aqui. — A loira olhou para Chase. — Ela não mandou nenhuma mensagem de volta. Mas pode ter ido pra cama cedo. Acho que teve um dia difícil.

Pela expressão nos olhos azul-claros de Kylie, ela suspeitava de que ele fosse a parte difícil do dia da amiga.

— Obrigado, vou dar uma passadinha na cabana dela.

— Ou apenas deixá-la dormir — disse Kylie.

— Só quero ver como ela está.

— Algo errado? — perguntou Kylie.

Você quer dizer além de eu estar preocupado com a possibilidade de ela estar com Steve?

— Não.

Começando então a se afastar a pé, ele circundou a fogueira e abriu caminho entre os grupos de pessoas, na esperança de localizar Steve sozinho ou, melhor ainda, com outra garota nos braços.

Mas o metamorfo não estava em lugar nenhum. Será que ele e Della estavam juntos?

Chase decolou para a cabana de Della e aterrissou na varanda. Inclinou a cabeça para ver se conseguia ouvir alguém lá dentro. Apenas um gato miando. Então um cheiro o atingiu. Suas narinas inflaram. Sangue.

E não era qualquer sangue.

Era o sangue de Della.

Ele agarrou a maçaneta e se atirou dentro da cabana. A porta bateu na parede com um baque. Seus olhos arderam e os caninos se projetaram quando o cheiro de sangue ficou mais forte. Uma rápida olhada em volta e ele notou que os abajures das mesas laterais estavam caídos, duas cadeiras da cozinha, derrubadas. Uma briga tinha acontecido ali. E ao pensar que era o sangue de Della, seu coração martelou no peito.

Ele correu para o quarto dela. Nada parecia fora do lugar. O que quer que tivesse acontecido devia ter se limitado à sala de estar.

Ele voltou para lá. Um grunhido deixou seus lábios quando viu gotas de sangue no chão perto da porta. Chase saiu e avistou mais respingos nos degraus.

Movido pela fúria e pelo medo, ele decolou, seguindo a trilha de sangue de Della.


Capítulo Dezoito

A trilha de sangue levou Chase para a floresta. O pensamento de que ele deveria avisar Burnett e conseguir ajuda foi contrariado pela certeza de que não tinha mais tempo a perder.

Correu através do bosque, sem se importar que suas roupas se enganchassem em algum arbusto espinhoso. Após cerca de um minuto, ele percebeu que, a menos que a trilha mudasse de direção, ele acabaria na cabana catorze. Sua cabana.

Della teria se ferido e ido procurá-lo? O pensamento de que ela precisara dele e não tinha conseguido encontrá-lo causou mais uma pontada em seu peito.

De repente, a floresta ficou menos densa e ele viu luz na cabana. Ele não tinha deixado nenhuma luz acesa. Alguém tinha passado por lá. Ou ainda estava lá.

Disparando em direção à cabana, ele sentiu o cheiro dela, ainda misturado com sangue. Então ouviu-a dizer:

— Eu vou te matar. Juro.

Quem ela queria matar? Não que tivesse que fazer isso; ele faria por ela. O pânico dele era grande demais para verificar de quem era o outro cheiro. Chase subiu os degraus correndo e abriu a porta, pronto para defendê-la.

Ela se virou. Estava com uma blusa branca e calças de pijama cheias de sangue. Baxter estava sentado em frente a ela.

— O que aconteceu? — ele perguntou, o coração quase saltando pela boca.

— Você aconteceu — ela sibilou.

Chase ficou ali, o pânico que comprimia seus músculos aos poucos diminuindo.

— Eu?

— Sim, você deixou Baxter solto. E ele acabou indo à minha cabana.

Chase não tinha deixado o cão para fora, mas... Ele piscou e mais uma vez notou o sangue na camiseta branca dela. Então olhou para Baxter sentado aos pés de Della, a cauda balançando um pouco, a cabeça baixa. Definitivamente a postura de alguém cheio de culpa.

Ela estava dizendo...?

— Baxter nunca iria machucá-la.

— A mim não, mas a um gato sim.

Chase balançou a cabeça.

— Não, ele nunca machucaria um gato. Ele adora gatos. Eddie tinha um e eles eram superamigos. Ele costumava pegá-lo e carregá-lo por todo lado na boca.

— Bem, eu acho que Socks não gosta de ser carregado na boca por todo lado, mesmo que seja para um alegre passeio.

— Droga. O que aconteceu?

— Baxter apareceu na minha cabana. Esqueci que Socks estava lá e deixei que ele entrasse. Eu fui pegar meu pijama e começou a maior confusão. Baxter encurralou Socks. Socks correu. Baxter o perseguiu. Eles derrubaram tudo na cabana. E antes que eu pegasse o gato, o gato me pegou. Ele me escalou inteira para fugir do seu cão.

Chase franziu a testa.

— Você está bem?

— Se eu estou bem? — Ela apontou para a blusa. — Eu fui usada como um poste de escalada.

— E a culpa é do Baxter — disse Chase.

— Não! — Della gritou.

— Você tem razão — disse Chase. — A culpa foi do gato.

— Não! A culpa é sua! Foi você que não prendeu o seu cachorro.

— Não, eu deixei Baxter preso na cabana! — Chase inspirou e percebeu que o cheiro de tinta estava ainda mais forte.

— Aposto que os pintores vieram aqui e o deixaram sair.

— Ah, sim, agora culpe os pintores! — ela rosnou.

— Eu não estou culpando... — Ele reprimiu o riso. Mesmo coberta de sangue, ela parecia adorável em seu pijama. E a blusa branca, com a palavra “Princesa” escrita em rosa, ficava justa no peito, delineando os seios com perfeição. Ela também era agarrada na cintura. E a bainha branca tinha coroinhas cor-de-rosa impressas nela. A bainha era um pouco larga e baixa, deixando uma faixa da barriga de fora. Nossa, ela estava muito sexy!

Ele se aproximou, afastando os pensamentos tentadores, porque agora não havia tempo, e concentrou-se no sangue.

— Você limpou os machucados?

— Não, tive que tirar o Baxter da cabana. E como eu me importo com ele mais do que o dono, não ia deixá-lo correndo solto por aí. Tem lobos lá fora.

— Desculpe. Deixa que eu te ajudo a limpar os machucados.

— Não. Estou indo pra casa. Vou fazer isso lá.

— Espera — disse Chase. — Me deixe pelo menos te dar uma pomada.

— Eu tenho. — Della passou por ele a caminho da porta.

— A que eu tenho é melhor. É feita para vampiros. — Ele andou rápido até onde estava sua mochila e tirou um tubo de lá. Foi até ela para lhe entregar. Della cheirava tão bem, como se tivesse acabado de tomar banho. Xampu e sabonete feminino. Quando seus dedos roçaram a mão dela, o coração de Della disparou e ele pôde jurar que viu suas pupilas se dilatando. — A pomada quem fez foi seu tio. — Ele teve que se forçar a desviar os olhos dos seios dela, onde ele quase podia ver os mamilos.

Ela franziu a testa, mas pegou o tubo.

— Você conseguiu descrever o rosto da minha visão?

— Sim, o artista fez um bom trabalho. Ele consultou o banco de dados, mas não encontrou nada.

Ele ansiava por passar a mão na bochecha dela. Ela parecia tão... macia.

— Então ainda não temos nada concreto.

— Nós vamos encontrá-los — Chase garantiu. — Ainda precisamos repassar a visão. Veja se consegue se lembrar de alguma coisa diferente que possa nos ajudar.

— Então vamos fazer isso já. — O fato de ela concordar tão rápido provocou uma leve sensação de prazer no peito dele. Chase adoraria ficar ali e desfrutar... do que quase podia ver debaixo da camiseta.

— Não posso. Tenho que sair, mas poderia ir à sua cabana na volta. Pode ser tarde. Ou poderíamos fazer isso amanhã à noite. Tenho certeza de que Burnett vai querer que eu trabalhe amanhã de manhã.

Ela ficou ali olhando para ele como se estivesse tentando desvendar algum segredo.

— Você vai sair?

Ele assentiu.

— É sobre o caso?

Ele fez que sim novamente.

— O caso do meu pai?

— Sim.

— Então só espere eu trocar de roupa que vou com você.

Ele balançou a cabeça.

— Não.

Ela franziu a testa.

— Por quê?

— Porque você não pode.

A dúvida encheu os olhos escuros de Della.

— Burnett vai com você?

— Não. Tenho que fazer isso por conta própria.

— Fazer o que por conta própria? — perguntou ela, inclinando um pouco a cabeça para a esquerda. A mão direita descansou em seu quadril. Chase se perguntou se ela sabia quanto ficava bonita fazendo isso. Como um gatinho tentando parecer durão. Algum dia, quando as garras dela estivessem retraídas e ele não tivesse tanto receio dela, ele lhe diria isso.

— Aonde você está indo? — ela retrucou.

— Burnett me falou uma coisa. Disse que o melhor lugar para conseguir informações sobre marginais como Douglas Stone é com outros marginais. Eu liguei pedindo um favor a um amigo. Um guarda de uma das prisões do Conselho. Ele vai me deixar entrar para fazer algumas perguntas. Eu ia ontem à noite, mas não pude. E não contei a Burnett porque... não há nenhuma chance de eles deixarem que ele entre.

— Então você está escondendo alguma coisa.

Chase franziu a testa.

— De Burnett, não de você. E se eu conseguir alguma coisa, vou contar a ele. Eu apenas... tenho medo de que ele não me deixe ir. Prefiro pedir perdão do que permissão.

— Por que ele não deixaria você ir?

Chase tirou o telefone do bolso e olhou para o relógio. Ele tinha três minutos para sair ou chegaria atrasado.

— Os presos não são os melhores anfitriões. Normalmente, quando alguém entra, é acompanhado de vários guardas. Como eu na verdade não estou trabalhando mais para o Conselho, ele vai me deixar entrar sem que ninguém veja, por isso vou estar sozinho.

— Então me leve junto — disse ela.

Ele balançou a cabeça.

— Ele não deixaria você entrar. — Sem mencionar que Chase não permitiria que ela chegasse perto daquele lugar. Aqueles lobisomens eram a pior escória da sua espécie.

— Então não vá.

A expressão de teimosia dela o fez sorrir.

— Cuidado, senhorita Turrona, quase parece que está preocupada comigo.

Ela fez uma careta.

— Pode baixar a bola. Não é nada disso.

Ele foi até a cozinha e encheu de ração o prato de comida de Baxter. Sentiu o olhar dela e adorou saber que ela estava prestando atenção nele. Ela sempre tinha toda a atenção dele quando estava por perto.

Della deu um passo para mais perto.

— Você sabe se alguém tem informações sobre esse cara? Stone?

— Não. É por isso que estou indo.

Ela se aproximou um pouco mais. Aquilo seria mesmo preocupação nos olhos dela? Sim, era. Chase a beijaria se achasse que sairia impune. O problema era que ele queria muito mais do que um simples beijo. Queria deslizar a mão naquela faixa macia de pele na barriga dela. Queria tirar aquela blusa e...

— Por que você acha que eles vão contar alguma coisa a você? — Della puxou para baixo a blusa como se sentisse que ela o distraía.

Mas era uma distração tão doce...

— Porque não têm nada a perder. Porque podem pensar que isso talvez dê a eles alguma chance de saírem de lá. É uma aposta arriscada, mas eu tenho que tentar. Nós queremos pegar esse cara, lembra?

— Sim, mas...

Baxter roçou na perna dele. Chase se ajoelhou. Depois de coçar atrás das orelhas do cão, ele pressionou a testa contra o focinho. E sentiu um cheiro diferente; a decepção apertou suas entranhas. Ele se levantou. Só conseguia pensar em que parte do doce corpo de Della o metamorfo tinha tocado. Sua cabeça dizia para ignorar o que já sabia e sair da cabana. Seu coração não ouviu.

— Você pode fazer algo por mim?

— Ir com você? Sim. — Ela levantou o queixo.

— Não. Algo muito mais fácil do que isso — disse ele entre os lábios apertados. — Enquanto estou lá fora arriscando a vida para tentar livrar o seu pai da cadeia, você pode não ficar andando por aí com Steve?

Ela abriu a boca para dizer algo, mas ele não ficou para ouvir.

Della irrompeu na cabana com tudo, vestindo seu pijama ensanguentado e mais furiosa do que um guaxinim enjaulado. Já tinha mandado uma mensagem para Chase e pedido que ele mudasse de ideia.

Quando abriu e fechou a porta com força, Miranda soltou um grito alto que poderia ter acordado os mortos. E, considerando que os mortos viviam perambulando por ali, aquilo não era exagero.

— Ela está aqui! — gritou a bruxa no celular. — Mas, ah, Deus! Está cheia de sangue. E eu ainda sinto.

Sente o quê?

— Eu estou bem! — Della falou com rispidez.

Mas era tarde demais. A porta atrás dela se abriu e Kylie correu para dentro da cabana. Sempre que a camaleão estava no modo proteção, parecia um daqueles tubos de neon quando estão enfraquecendo.

— O que aconteceu? — Ela ainda segurava o telefone no ouvido.

— Nada!

Kylie deixou cair o telefone do ouvido, apontou para a blusa cheia de sangue da amiga e acenou para o desastre em que estava a cabana.

— Vou perguntar outra vez...

— Ok. Nada de mais.

Ambas as garotas se aproximaram e ficaram olhando a camiseta ensanguentada de Della.

— Estão vendo? — Ela apontou para os seios. Não estava faltando nenhum pedaço. Os peitos estavam lá e tudo mais. Não que ela tivesse muito a perder...

— Foram apenas alguns arranhões e eles estão todos curados agora. — Ela começou a ir para o quarto, mas Kylie e Miranda a seguiram até a porta.

Miranda levantou um saco de algo que parecia mato, fez um algum tipo de dancinha e espalhou um pouco da coisa verde na cabeça de Della.

— O que é isso? — perguntou Della.

— Ervas para afastar o indesejável. Temos companhia. — Miranda jogou outro punhado de mato seco no ar.

— Quem? — Della perguntou.

— Você conta primeiro, Della. O que aconteceu? — Kylie rebateu. Não estava mais brilhando, mas ainda com aquele olhar de camaleão contrariado sobre ela.

O problema era que Della ainda estava tão irritada com Chase que não sentia a mínima paciência para lidar com a irritação de quem quer que fosse. E ela com certeza não estava gostando nem um pouco daquela coisa verde salpicada sobre ela por uma bruxa que não estava fazendo um pingo de sentido.

Ela deu mais um passo na direção do seu quarto, e suas duas companheiras de alojamento não se moveram.

— Ok, vou contar a versão mais curta. O cachorro de Chase veio aqui e o seu gato não estava a fim de companhia.

— Socks está bem? — Os olhos de Kylie se arregalaram e ela se virou, gritando: — Aqui, gatinho, gatinho.

— Ele está bem. Olha só. — O gato veio rebolando de detrás do sofá. Com todos os olhos sobre o felino saltitante, Della tentou escapulir para o seu quarto.

— Não tão rápido, vampira! — Kylie pegou Della pelo braço e olhou para Miranda. — Pegue as Cocas Diet. É hora de termos uma conversa.


Capítulo Dezenove

Kylie levou Della até a mesa, em seguida apontou para a cadeira. A vampira desabou no assento e deixou o celular à vista.

Della não se importava em participar das discussões à mesa redonda, bebericando Coca-Cola Diet. Ela tinha aprendido que contar as coisas ajudava um pouco. E saber dos problemas das suas duas melhores amigas a fazia se lembrar de que a vida de ninguém era um mar de rosas. O destino não estava tirando uma só com a cara dela. Ele zoava com a vida de todo mundo.

Mas, agora, mais do que a sensação de que estava afundando num poço de problemas, ela estava irritada. E... preocupada com o cara que a irritava. Deveria tê-lo seguido, mas não, aquele pequeno comentário sobre “não ficar andando por aí com Steve” a deixara chocada. Quem ele pensava que era para dizer com quem ela podia andar por aí? Ainda assim, Della se preocupava. Não por escolha própria. Droga de ligação! Ela deu uma olhada rápida no celular.

Estava morta de vontade de ligar para Burnett e contar o que Chase estava fazendo. A única coisa que a impedia era saber que, se fizesse isso, iria deixar Burnet uma fera. Mas, se Chase sobrevivesse a isso, ela teria simplesmente que matá-lo. Aquilo o ensinaria a não assumir riscos idiotas, não é verdade?

— Quem vai falar primeiro? — Kylie abriu a lata de refrigerante, provocando um ruído efervescente na sala.

— Deixa a bruxa falar — disse Della. — Estou doida pra saber por que ela está jogando ervas secas em mim e fazendo suas macumbas.

Miranda revirou os olhos.

— Você deveria estar me agradecendo, não tirando uma da minha cara.

— Eu não estou tirando uma da sua cara, apenas descrevendo do meu jeito o que eu vi.

— Nada de brigas nas conversas de mesa redonda — Kylie insistiu.

Miranda abriu sua bebida.

O som efervescente de fato provocava uma sensação de calma em Della.

Mas, obviamente, não em Miranda, que encarou Della.

— Você está me assustando — a bruxa se queixou. — Desde que voltei esta tarde, tenho sentido um invasor. E então descobri...

— Descobriu o quê? — perguntou Della.

— O invasor.

— Um espírito? — perguntou Della. — Porque, você sabe, onde quer que esteja a senhorita Ghost Whisperer aqui — ela acenou para Kylie — e agora eu — ela franziu a testa —, pode haver alguns rondando. — Ela olhou para o teto. — Só não me fale que são cinco.

— Nada de fantasmas — disse Miranda. — Só uma forte intuição de que alguma coisa ou alguém está nos espionando. Como na época em que eu sentia Mario por aqui, tentando matar Kylie.

— Você já contou a Burnett? — Della deu outra checada rápida no celular.

— Não, eu... quero ter certeza antes de contar a ele, para não preocupá-lo à toa. Você sabe como ele fica quando está... todo preocupado. — Miranda franziu o cenho. — Além disso, posso estar errada.

Della abriu seu próprio refrigerante. O som fez cócegas em seus ouvidos e a deixou um pouco mais calma.

— Você já teve essa sensação antes e descobriu que estava errada?

— Claro! — Miranda pegou o refrigerante e deu um gole.

— Quantas vezes? — perguntou Della, querendo calcular se de fato ela precisava se preocupar com algo ou se Miranda estava apenas um pouco paranoica.

— Não sei muito bem.

— Faça uma estimativa — Della pediu.

— Dez, talvez.

— Duas vezes a cada doze. — Paranoia. — Bom saber. Vamos em frente. — Della olhou para Miranda. — Então, mais alguma coisa?

— É uma sensação real — Miranda insistiu.

— Todos nós vamos ficar de sobreaviso. — Kylie olhou para Miranda, e, em seguida, acrescentou: — Então, como foi seu fim de semana?

— Eu odeio falar primeiro — a bruxa reclamou.

— Tudo bem, eu falo. — Kylie inclinou-se um pouco. — Minha mãe está namorando um outro cara. Ele é cinco anos mais novo que ela. O que significa que é apenas quinze anos mais velho do que eu. É uma sensação estranha. E olha só, ela o conheceu no supermercado. Que tipo de cara vai ao supermercado para paquerar?

— Muitos, pelo que ouvi falar — disse Miranda.

Kylie balançou a cabeça.

— Que tipo de coisa eles falam? “Ei, olha o tamanho destes melões”?

Della olhou para o telefone novamente.

— Se não for nos pepinos que ele estiver interessado, ela está segura.

— E pior! — exclamou Kylie. — Meu pai apareceu, e eu posso jurar que ele está flertando com a minha mãe. Quando é que ele vai desencanar? Não é fácil vê-lo olhando para minha mãe daquele jeito quando sei que ela só tem olhos para o “Senhor me Encontre no Corredor dos Legumes”.

— Você acha que ele ainda ama a sua mãe? — perguntou Miranda.

— Acho. E sei que ele merece ser um pouco infeliz, porque ele é que foi pego cheio de mão boba pra cima da assistente no elevador.

— O quê? Eles se pegaram dentro de um elevador? — perguntou Della.

— Eu não sei. Só estou dizendo isso porque ele trabalha num edifício. Mas não duvido. A questão é que a culpa é dele, mas ele precisa esquecer a minha mãe. Ah, e Lucas veio e nós saímos no sábado. O que me leva à minha grande queixa com relação a vocês duas.

— Nós duas? — perguntou Miranda.

Della puxou o celular para mais perto.

— O que nós fizemos?

— Vocês não perceberam nada.

— Você tem outro chupão no pescoço? — Miranda virou a cabeça para o lado para verificar o pescoço de Kylie.

— Não. — Kylie tirou o cabelo dos olhos.

O que, Della notou, foi pela terceira vez. Foi quando ela percebeu. E aquilo só significou mais mudanças.

— Você está se referindo a esse anel de noivado?

O rosto de Kylie se iluminou e ela mostrou os dedos.

— É apenas um anel de compromisso.

Miranda pegou a mão de Kylie.

— É um compromisso bem grande...

— Eu sei, não é lindo? — O sorriso dela se alargou.

— Sim. É incrível. — Della deu outra olhada no seu celular.

— O que isso quer dizer? — perguntou Kylie.

— Como assim, o que isso quer dizer? — Della olhou para Kylie.

— Seu tom de voz. E não adianta negar. Eu ouvi.

— Não é nada — disse Della, não gostando que a amiga estivesse usando sua capacidade de ler suas emoções. — Estou feliz por você. — E, no fundo, era verdade. Era apenas... uma mudança.

— Mas...? — perguntou Kylie.

Ah, droga, por que não ser sincera?

— Mas me preocupa que você e Lucas acabem se casando antes que nós três cheguemos à faculdade. Os três mosqueteiros vão se tornar dois. E depois, um, porque uma de nós — e ela apontou para Miranda — vai acabar matando a outra.

— Eu acabei de dizer que não é um anel de noivado. E o fato de estar usando um anel de compromisso não significa que o casamento vai acontecer mais rápido.

— Eu aposto que Lucas pensa de outro jeito.

— Não, ele não pensa. Ele sabe que estamos planejando ir para a faculdade juntas.

— E o que Lucas está pensando em fazer? — perguntou Della.

— Ele vai para onde a gente for. Assim como você, ele planeja trabalhar para a UPF e é um candidato com todas as chances de ganhar as eleições do Conselho dos Lobisomens, então a faculdade onde vai se formar não é tão importante.

— Só pensei que...

— Então, pare de pensar — disse Kylie. — Ou devo dizer, cismar. Só porque temos namorados não significa que não vamos estar sempre juntas.

— Tudo bem. — Mesmo com a convicção de Kylie, Della não se convenceu totalmente. Tudo na vida mudava. Na maioria das vezes, a pessoa só tinha que aceitar aquilo. E ela estava cansada de ter de aceitar coisas ruins.

Kylie olhou para Miranda.

— Como foi o seu final de semana?

— Terrível! — respondeu a bruxa. — Papai convidou Tabitha para ir em casa e a mãe dela a levou de carro. Minha mãe teve um acesso de raiva e não queria abrir a porta. Do jeito que a minha mãe agiu parecia que a mãe de Tabitha era a segunda mulher e não ela.

E da forma como Miranda contou, estava claro que a bruxa estava com muita dificuldade para lidar com os problemas familiares. Della supôs que ainda demoraria um pouco para a amiga aceitar o fato de ter uma meia-irmã e seu pai ainda estar casado com a mãe dela.

Miranda deu um grande gole no refrigerante.

— Então, minha mãe e meu pai brigaram. Papai passou a noite transformado em jumento. Ah, mas ficou ainda pior. Eu precisei explicar a Shawn por que tinha um jumento na nossa sala.

— Shawn? — Della e Kylie perguntaram ao mesmo tempo. Shawn era um bruxo, a paixão de infância de Miranda, e agora o novo agente gato da UPF que tinha uma quedinha pela bruxa.

— Está saindo com Shawn? — perguntou Kylie. — Eu pensei que você ia ver como as coisas ficavam com Perry primeiro.

— Eu... bem, eu...

Enquanto Miranda despejava palavras aleatórias e desconexas, Della tomou outro gole de refrigerante e, em seguida, verificou seu celular para ver se havia alguma mensagem de Chase. Não havia. Maldição.

— Ele apareceu na minha casa — disse Miranda. — E ainda disse que sabia que eu estava tentando tomar uma decisão e queria me dar espaço. Mas não tanto espaço a ponto de ser esquecido.

— Ele é gato demais para ser esquecido — disse Kylie.

— Mas Perry também — contrapôs Miranda. — Eu o vi esta noite e ele estava... fofo e disse que vai ter paciência. Mas... se ele soubesse que eu estava com Shawn ontem à noite, teria um ataque.

— Bem, deixe que tenha quantos ataques quiser — disse Della. — Ninguém tem o direito de dizer com quem você pode sair ou não. Quer dizer, quem diabos ele pensa que é? Você não pediu para se afastar dele! E se ele decide sair por aí e deixar que o matem, a culpa é dele!

A confusão se estampou no rosto das amigas e ela percebeu o que havia dito. Então encostou a testa no tampo da mesa.

— Eu acho que a vampira tem algumas explicações a dar — disse Miranda.

— É isso aí — Kylie apoiou. — Comece a falar.

* * *

Chase aterrissou na parte de trás do edifício abandonado na periferia de Houston, onde A Fossa do Inferno estava escondida em algum túnel subterrâneo. Tirando o celular do bolso para ver quem tinha lhe mandado uma mensagem, ele viu o número de Della e quase não a leu.

Então, recusando-se a ser infantil, leu a mensagem. “Me escreve dizendo se você está bem.”

Ele cerrou os dentes, lutando contra o sentimento de traição. Sentia-se um idiota por estar com ciúme. Ele sempre achara que o ciúme era coisa de gente tola. Se alguém queria estar com outra pessoa, isso simplesmente significava que ela não queria estar com você e não merecia que você sofresse por ela.

No entanto, lá estava ele... sofrendo. Sentindo-se inseguro. Outra emoção que ele não estava acostumado a sentir. A última vez que ele se lembrava de ter se sentido assim foi com Tami, quando ele tinha 14 anos.

Será que era assim quando a gente de fato se importava com alguém? Droga, ele gostava de Della. E só o pensamento de Steve colocando as mãos nela o deixava enjoado.

Na verdade, ele sabia que o cara provavelmente não tinha colocado as mãos em Della. Chase não tinha sentido o cheiro de Steve nela. O cheiro do metamorfo estava apenas em Baxter. Mas pelo olhar de Della quando ele mencionou Steve, sabia que os dois tinham se encontrado.

Chase estava começando a responder à mensagem dela quando ouviu alguém a distância. Afastando o telefone, ele ouviu. Será que ainda estava sendo seguido por um agente de Burnett?

Quando um barulho veio do galpão, ele relaxou e tirou a mochila dos ombros.

Andou em direção a um pequeno prédio, que ele sabia que era a entrada dos fundos da prisão. Nesse momento, Leo saiu pela pequena porta.

— Ei! — Chase se aproximou. O homem afro-americano, uns dez anos mais velho do que Chase, era cerca de dez centímetros mais alto e tinha o corpo de um jogador de futebol americano.

Leo balançou a cabeça.

— Eu não sei se acho você um idiota ou se fico impressionado.

Ele abriu a porta do galpão, onde uma escada levava para baixo.

— Vamos ficar com a primeira alternativa. — Chase seguiu o guarda para baixo. O cheiro de corpos suados impregnava o ar. Leo desceu até a metade da escada e se virou, seus olhos mais brilhantes.

— Este cheiro é de sangue O?

Chase assentiu.

— Um litro para você e outro para os subornos.

Leo sorriu e continuou a descer. Seus passos ecoavam nos corredores de concreto à medida que caminhavam até o pequeno escritório. Lá se erguia uma enorme porta de metal com várias trancas de aparência inviolável.

— Você já esteve aqui antes, certo? — perguntou Leo.

— Sim. — Uma vez. Na época, só havia dois prisioneiros.

— Nós fornecemos água e sabão, mas eles não tomam banho. Sabem que o cheiro chega até nós.

— Eu aguento.

— Eles estão trancados nas celas, mas as barras são de metal barato e não resistem à força de alguns deles. Parece que vamos receber barras reforçadas no mês que vem. — Ele olhou para um monitor de vigilância. — Pelo que posso ver, ninguém está solto. Mas cada vez que desço lá, vou com o pensamento de que alguém pode estar solto. Isso salvou a minha vida.

Leo estendeu a mão para a mesa.

— Isso aqui é uma arma de eletrochoque. Você já teve que usar uma?

— Não — disse Chase, tentado a dizer ao outro que não precisava dela. Suas mãos, com a força de um Renascido, poderiam causar muito mais estrago. Mas ele decidiu levá-la. Não estava com medo, mas não era idiota.

Leo puxou a ponta da arma para mostrar como carregá-la.

— Basta puxar o gatilho. — Ele pegou alguns cartuchos extras. — Coloque estes no seu bolso. Aconteça o que acontecer, não deixe que coloquem as mãos nela. Dói pra caramba. Aprendi da maneira mais difícil.

— Entendi. — Chase enfiou os cartuchos extras no bolso.

— Tenha ainda mais cuidado com os lobisomens. Amanhã é a noite deles, estão no auge da força. Se um se soltar, não hesite. Eles estão planejando matar você e é melhor que esteja planejando fazer o mesmo. Eles estão todos no corredor da morte, de qualquer maneira. — Leo balançou a cabeça. — Sério, garoto, perdemos dois guardas e um visitante este ano. Tem certeza de que...

— Eles têm privilégios com relação a visitas? — perguntou Chase.

— Sim. Os visitantes assinam renúncias e pagam pelo próprio enterro antes de descerem. E esse valor não é reembolsável. Sempre levo para a minha esposa algo bonito quando temos alguém idiota a ponto de nos visitar.

Chase sorriu.

— Então tenho certeza de que ela gostaria que houvesse muito mais pessoas idiotas do mundo.

Leo assentiu.

— Você não disse que era Douglas Stone que estava procurando? É o mesmo em que o Conselho está de olho, certo?

— Sim — disse Chase.

— Então está desperdiçando seu tempo, eles já checaram essa pista.

— Que pista? — perguntou Chase, sem saber que havia uma.

— Um dos caras tinha um primo que vinha vê-lo. Ele assinava como Jones, mas eu ouvi o prisioneiro chamá-lo de Stone. Depois que ele foi embora, lembrei de um Stone na lista dos procurados. Liguei para o Conselho e disseram que iriam investigar. Mais tarde, quando o mesmo cara voltou, liguei novamente e disseram que tinham investigado, mas não era o nosso cara.

— Sério? — perguntou Chase. — Com quem você falou no Conselho?

— Eu não sei ao certo, talvez o cara loiro?

— Kirk Curtis? — perguntou Chase.

— Sim, pode ser. Faz um bom tempo.

Chase tentou digerir essa informação. Se Kirk tinha uma pista, ele teria que ter contado a Eddie. Ou talvez não tivesse contado porque não tinha investigado. Ainda assim, algo sobre isso não cheirava bem.

— Quantas vezes esse cara veio visitar o primo?

— Não muitas. Mas veio algumas semanas atrás.

— Qual é o nome do preso?

— Edward Pope — Leo disse. — Ele está na cela número onze. Miserável de uma figa! Gosta de morder.

— Obrigado pelo aviso.

— Você vai ver um corredor principal. Com celas dos dois lados. Fique no meio, alguns desses caras são como polvos e têm longos tentáculos. Eles pegam você e te estrangulam até a morte, isso se não tiverem uma faca improvisada para fazer o serviço.

— Andar no meio — Chase repetiu.

Leo suspirou.

— Não me entenda mal. Ouvi dizer que você é durão, garoto, mas não há nada além de filhos da mãe perversos lá embaixo.

— Já disseram que eu que sou meio perverso também — disse Chase.

Leo colocou a mão na alavanca.

— Você entra. Assim que eu bloquear esta porta, vou abrir o segundo portão. Para sair, tem que bloquear o segundo portão. Eu tenho um olho mágico aqui. — Ele acenou para a aba de metal. — Quando eu confirmar que só você está atrás do portão, abro esta saída.

— Entendi — disse Chase.

Leo franziu a testa.

— Eu tenho câmeras, mas vou ter que desligá-las, caso contrário vão fazer picadinho de mim se descobrirem que deixei você entrar. Então não vou saber se você está com problemas. Você está por conta própria.

— Não se preocupe.

A porta gemeu como se não estivesse acostumada a se abrir. Chase deu um passo para a frente e uma onda de frio tomou conta dele. Um arrepio percorreu a sua espinha. Seria apenas um frio normal ou aquele tipo fantasmagórico de frio?

A porta de ferro se fechou com um ruído alto e metálico de gelar os ossos. Ele supôs que aquele lugar já tinha visto a sua cota de mortes. Mas nem os mortos iriam detê-lo.

O barulho ficou mais alto. O segundo conjunto de barras rangeu quando o último portão se abriu bem devagar. O cheiro de suor e imundície encheu o nariz de Chase e ele teve que se concentrar para ignorar a náusea.

A voz de Leo ecoou do olho mágico.

— Bem-vindo à Fossa do Inferno.


Capítulo Vinte

— Será que ela vai falar ou tirar uma soneca? — perguntou Miranda.

Della levantou a cabeça. Ela não sabia por onde começar, mas então as palavras saíram, quase que por vontade própria.

— Meu pai sabe que eu sou vampira.

— Caramba! — disse Miranda.

— Droga! — exclamou Kylie.

— Eu vou perdê-los. — A emoção apertou a garganta de Della. — Ele vai contar à minha mãe e à minha irmã e então elas nunca mais vão querer me ver de novo.

— Eu não acho que isso vá acontecer — disse Miranda. — Você só precisa provar a elas que ser vampira não faz de você uma pessoa ruim. Todo mundo fica com medo no início. Eu sou bruxa e fiquei com medo, e procurei Kylie. Você costumava fazê-la gritar sempre que estavam no mesmo cômodo.

— Eu não gritava — discordou Kylie.

— Eles nunca vão entender — disse Della.

— Você não sabe com certeza — disse Kylie. — O que ele disse a você?

— Não disse nada. — Della contou a elas sobre o assassinato dos Chi e como seu pai a olhou como se ela tivesse feito aquilo. Então contou o que a mãe tinha dito sobre ele ter sido hospitalizado após o assassinato da irmã. — Por que ele precisaria ser hospitalizado se não viu nada?

Miranda fez uma careta.

— Porque a irmã foi assassinada. Quer dizer, isso por si só já é bem perturbador.

— Talvez — Della admitiu. — Mas se vocês vissem como ele olhou para mim... Tem medo de que eu vá matá-lo ou matar a minha mãe e minha irmã. — Lágrimas ardiam em suas narinas e um nó se formou na parte de trás da garganta.

— Então, você vai confrontá-lo? — perguntou Miranda.

— E dizer o quê? — Della rebateu. — Ei, sabia que eu sou um monstro?

— Você não é um monstro — disse Kylie.

— Conta outra. — Della engoliu a dor. — Mas fui eu que fiz com que desarquivassem o caso e o levassem ao tribunal. E se ele for condenado? Pode pegar pena de morte.

— Não pense no pior — disse Kylie. Depois de um segundo, ela perguntou: — Chase não entregou o seu tio?

— Não, disse que não sabe onde ele está. Mas também falou que meu tio não matou a minha tia. Que foi outro vampiro.

— Você acredita? — perguntou Miranda.

— Eu não sei em que mais acreditar. — Della suspirou. — Amanhã vai chegar da promotoria o arquivo do caso do meu pai.

Kylie virou a lata de refrigerante na mão.

— Talvez você descubra o que seu pai disse à polícia e, então, saberá com certeza se ele viu o assassinato.

— É. — Della olhou outra vez para o celular, e quando levantou os olhos tanto Miranda quanto Kylie a estavam examinando com os olhos.

— De quem é essa mensagem que você tanto espera? — perguntou a bruxa.

— Eu não estou... Eu... Ah, que inferno! — Ela respirou fundo. — Chase está fazendo algo idiota. — Ela contou às amigas sobre a vista de Chase à prisão.

— E você não vai ligar para Burnett? — perguntou Kylie.

— Não, porque se a situação fosse inversa e ele contasse a Burnett sobre mim, eu nunca contaria nada pra ele de novo. Ele está trabalhando no caso do meu pai. Eu preciso que confie em mim.

— Mas, se alguma coisa acontecer a ele, você nunca vai se perdoar — Kylie disse.

— Você vê em que situação ele me colocou? — Della falou com irritação.

— Bem, e se você me contasse e eu então contasse a Burnett? Não seria culpa sua.

— Ele ainda assim ficaria chateado.

— Mas mais comigo do que com você — disse Kylie.

Della olhou para o celular pela centésima vez.

— Vamos dar a ele mais trinta minutos. Se ele não entrar em contato comigo, então você pode ligar para Burnett.

Miranda virou a lata de Coca-Cola nas mãos.

— Você viu Steve?

Della franziu a testa.

— Sim. Ele ouviu dizer que eu tinha ido identificar alguns corpos e veio me ver para saber se eu precisava falar sobre isso.

— Que atencioso... — disse Miranda.

— Sim — disse Della. — Steve é atencioso.

— Mas? — perguntou Kylie.

— Mas ela se preocupa mais com Chase — disse Miranda, colocando as palavras na boca de Della.

— Não. — Della sentiu o coração bater ao som de uma mentira. — Eu ficaria preocupada com Steve também se ele estivesse em perigo.

— Ficaria mesmo? — perguntou Kylie.

— Sim — ela disse, mas a resposta veio com um tremor no coração também. — E se eu não ficasse, seria por causa da ligação. De modo que não contaria. Porque... Porque... Não foi escolha minha me preocupar. — Mas ela ouviu as palavras de Chase: Você ainda tem uma escolha.

Ela tinha?

— Em tudo na minha vida parece que eu não tenho escolha. Tudo está mudando e eu não fui consultada. É a minha droga de vida, e eu sou apenas uma mera espectadora.

— Eu tenho que discordar disso — disse Kylie. — Nunca conheci ninguém que lutasse tanto quanto você contra qualquer coisa.

— Sim, mas só porque eu luto não significa que tenha conseguido mudar alguma coisa. Fui transformada numa vampira e nada que eu tenha feito mudou isso.

— Não mudou, mas você está aqui em Shadow Falls porque teve coragem de ligar para Holiday — disse Kylie. — Nem sempre podemos mudar o que acontece, mas sempre temos controle sobre como enfrentamos as coisas.

— Você está falando como Holiday outra vez e bancando a psicanalista — acusou Della.

— Desculpe — disse Kylie, sorrindo. — Às vezes, a sabedoria dela simplesmente toma conta de mim...

— Ninguém gosta de gente muito espertinha... — Della retrucou, sem falar a sério.

— Você o beijou? — perguntou Miranda.

— Dã, você viu — disse Della.

— Não Chase, Steve. Você beijou Steve?

— Não — disse Della. — Só conversamos.

— Você queria beijá-lo? — perguntou Miranda.

Della apertou a lata.

— Eu... Eu não sei. Não pensei nisso.

— Mas você pensou sobre isso com Chase, certo?

— Não — retrucou Della. — Eu não pensei. Só aconteceu.

— Humm — cismou Miranda.

— Não venha com esse “humm” pra cima de mim — rebateu Della. — As coisas entre mim e Steve são diferentes agora.

— Diferentes como? — perguntou Miranda.

Della tentou definir o que sentia e por fim disse:

— Ele está... Ele parece mais seguro.

— Isso é bom — disse Kylie.

— É? — Della não tinha certeza. Ela não tinha tido muito tempo para pensar sobre isso desde que havia enfrentado a briga de cão e gato depois que ele tinha ido embora.

Falando em “seguro”, ela tinha que checar quanto tempo tinha se passado. Já seria hora de Kylie ligar para Burnett?

Chase entrou no longo corredor, onde apenas duas lâmpadas de baixa voltagem iluminavam o espaço. O som de pés se arrastando ecoou enquanto os prisioneiros vinham espiar por trás das grades. O frio no ambiente ainda era intenso, mas Chase decidiu ficar com os vivos em vez de se preocupar com os mortos.

— Sinto cheiro de carne fresca — um dos prisioneiros disse, os olhos já incandescentes. Com a lua cheia do dia seguinte, ele estaria no ápice da sua força. Ele estendeu a braço para fora, e só faltaram alguns centímetros para que tocasse Chase. Ele sentiu os braços de outro prisioneiro atrás dele. Leo não estava brincando sobre ficar no meio. Um passo para um lado ou para o outro e Chase estaria ao alcance de algum deles.

Ainda assim, Chase não reagiu. Ele sabia que podiam sentir o cheiro de medo.

— Carne nova — disse outro prisioneiro.

— Sinto o cheiro de sangue — disse o ocupante da cela seis, o rosto pressionado contra as barras. Chase estudou a testa dele para ver o seu padrão. Vampiro.

Continuou avançando até chegar à metade do longo corredor, onde avistou a cela onze. O ambiente estava na penumbra. Chase pensou ter visto um homem na cama, mas não tinha certeza.

— Sim, tenho sangue. — Chase tirou a mochila do ombro.

Isso fez com que outros prisioneiros se aproximassem das barras.

— E vou dá-lo a quem puder me contar o que quero saber.

— Por um pouco desse sangue aí, eu entregaria até a minha mãe — disse um homem da cela oito.

— Estou procurando um homem chamado Douglas Stone. Vampiro, com quarenta e poucos anos. — Chase continuou observando a cela onze, esperando o Senhor Pope mostrar sua cara feia e algum interesse. Chase desenroscou a tampa da garrafa.

O cheiro encheu seu nariz, quase se sobrepondo ao fedor do lugar, e ele sabia que os outros podiam sentir o cheiro também.

— Eu conheço esse cara — disse o sujeito da cela oito. — Vou te dizer exatamente onde ele está, logo que me passar essa garrafa.

— De onde você o conhece? — Chase ouvia o batimento cardíaco do homem. E teve de se concentrar também no barulho de um dos lobisomens tentando retorcer uma das barras. Chase só rezava para que elas aguentassem o tempo necessário para que ele conseguisse as informações.

Chase tomou um longo gole do sangue.

— Alguém mais quer experimentar?

— Por que você está procurando esse cara? — A voz veio da cela onze.

— Tenho algumas perguntas para ele. — Chase olhou para dentro da cela.

O homem saiu das sombras. Cabelos pretos e olhos azul-escuros. O nariz parecia que tinha sido quebrado mais vezes do que pôde ser consertado. Uma cicatriz ia de um olho até o lábio.

Devia ter sido uma luta suja. Literalmente suja, porque os vampiros se curavam muito rápido e não costumavam ficar com cicatrizes. Eles eram como gatos, mas, e se a ferida estivesse suja e infeccionasse, tinha que ser reaberta. Pelo que parecia, o rosto de Pope tinha sido reaberto várias vezes.

O vampiro inspirou como se apenas absorver o cheiro de sangue já alimentasse a sua alma. Inclinando-se para a frente, ele passou os punhos pelas barras, dando a Chase uma visão ainda melhor de seu rosto cheio de cicatrizes.

— Você sabe onde eu poderia encontrar Stone? — Chase tomou outro gole de sangue, esperando que Pope se convencesse a responder antes que Chase tomasse a garrafa toda.

— Talvez eu saiba. — O prisioneiro lambeu os lábios e os olhos ficaram verde-claros com o cheiro.

— Você sabe onde ele mora? — Chase ouviu o coração do homem.

— Eu sei por onde ele anda. Nunca fica no mesmo lugar. — Ele colocou a mão através das barras. — Me passa o sangue e eu te digo o que sei.

— Eu te falei que eu sei! — gritou o cara da cela oito. O braço dele saía através das grades. — Me dá essa garrafa!

Chase ignorou o vampiro mais velho. Bebeu quase tudo, só deixando umas poucas gotas preciosas, para só então entregar a garrafa a Pope. — Toma isso só para sentir o gosto. Se sua informação parecer legítima, tenho outra garrafa na mochila.

O homem pegou a garrafa.

Chase podia ouvi-lo engolir, tentando sugar até a última gota.

Ele ouviu um rosnado do lobisomem na cela um, enquanto tentava retorcer as barras. O tempo de Chase estava acabando.

— Ele compra e vende casas em Houston — disse Pope. — Agora me entrega esse maldito sangue!

— Eu preciso de mais do que isso. — Chase olhou de volta para a cela do lobisomem e viu que ele já estava passando o braço e parte do ombro pelas barras retorcidas. Felizmente, o peito não tinha passado ainda.

Rosnando, ele olhou para Chase. Seus olhos brilhavam num tom cruel de laranja e ele se agarrava às barras, voltando a fazer força para retorcer o metal.

— Existe um Douglas Stone em algum lugar na parte antiga dos Heights — disse Pope. — Agora me dá mais sangue.

— Onde nos Heights? — Chase puxou a arma de eletrochoque da cintura do jeans, apenas para o caso de o lobisomem se libertar antes que ele tivesse a informação de que precisava. Então, com a outra mão, tirou da mochila a garrafa de sangue.

— Última garrafa — disse ele, desatarraxando a tampa. — E estou com sede.

— Ele tem uma piranha com quem mora numa casa perto da Main com a Chestnut, no centro de Jamesville.

— Endereço? — Chase começou a beber.

— Eu não sei o maldito endereço! — ele rosnou. — Mas espera. É ao lado de um restaurante mexicano barato. Bem do lado. — Ele enfiou a mão por entre as barras para pegar o sangue.

Chase ouviu a verdade em suas palavras e considerou a possibilidade de entregar a garrafa. Então, decidindo acreditar no homem e achando que ele já tinha sofrido o suficiente na vida, passou a garrafa. Depois olhou por sobre o ombro, para o lobisomem, que ainda pressionava as barras.

Pope engoliu o sangue todo de uma vez. Chase começou a recuar.

— Você não tem chance, garoto — disse Pope, só afastando a garrafa dos lábios o suficiente para falar. — Acha que eu não sei quem você é? — O vampiro com cicatrizes riu.

Chase parou, quase certo de que o homem estava mentindo, mas...

— Quem você acha que eu sou?

— Ele me contou sobre você. Você é filho daquele médico. Não filho de fato, porque ele é asiático. Stone sabe que você está procurando por ele. Sabe que o médico está sempre atrás dele. Mas não vai encontrá-lo, porque o Conselho não vai deixar que o encontrem.

Chocado, Chase fez uma pausa.

— Por que o protegem? — perguntou Chase, sentindo a temperatura da sala cair.

Saia. Saia agora.

Chase ouviu a voz feminina, sabia que ela não pertencia a este mundo, mas não podia lhe dar ouvidos, não agora.

— Por que eles protegem um assassino?

— Não importa — disse Pope. — Ah, mas você não deveria meter o nariz onde não foi chamado. Ele vai acabar com a tua raça.

Nesse exato instante, ouviu-se um ruído metálico, seguido pelo barulho estridente de uma barra se chocando contra o chão de concreto. Chase se virou ou pelo menos tentou se virar. Ele devia ter se esquecido de ficar no meio do corredor e se aproximou um pouco demais das celas. Um braço o agarrou, fechou-se em torno do seu pescoço e algo afiado se cravou em suas costas, transpassando a pele.

A dor nas costas não tinha sido completamente registrada quando ele viu o lobisomem se desvencilhar das barras de metal e investir contra ele.

— Eu vou comer o seu fígado! — disse o lobisomem com o braço em volta do pescoço de Chase.

Vai uma ova!, Chase pensou. Ninguém iria comer o seu fígado.


Capítulo Vinte e Um

— É isso aí, vou ligar para Burnett — Della resolveu, atirando do outro lado da sala a lata vazia de refrigerante que usava como bola antiestresse. Socks, que ainda tinha espírito de filhote, correu atrás dela. Della pegou o celular.

— Pensei que você ia me deixar fazer isso. — Kylie colocou a mão sobre a de Della.

— Não, Chase vai saber que forcei você. Eu posso muito bem fazer isso. — Ela pegou o celular e estava prestes a teclar quando o aparelho apitou.

— É Chase. — Ela sorriu quando o aperto no peito diminuiu.

Mas então leu a mensagem.

Na frente da escola. Preciso de ajuda.

— Merda! — Della pulou da cadeira.

— O que foi? — perguntou Miranda.

— Ele está no portão da frente. Vou até lá. Vejo vocês depois. — Fechou a porta num baque.

Um Corvette vermelho estava estacionado em frente. Ela atravessou o portão, sabendo que o alarme registraria sua saída, mas não se importou.

Um homem saiu pela porta do motorista. Ela o reconheceu como um dos homens do Conselho dos Vampiros. Onde estaria Chase?

Della se aproximou com cautela. Mas o olhar de preocupação no rosto dele e o cheiro de sangue — do sangue de Chase — provocou um nó no seu estômago.

— Olá mais uma vez — cumprimentou o vampiro loiro. — Sou Kirk. Nós nos encontramos quando...

— Eu sei quem você é. — Della lembrou quanto o Conselho a tinha feito se sentir frágil. Seu olhar se desviou para o carro; não viu mais ninguém nele.

— Onde está Chase? — Ela sentiu seus olhos arderem.

— Relaxe. Não estou aqui para criar problema. Chase está deitado no banco de trás.

Della disparou para o carro enquanto as perguntas começavam a se formar. Como Chase tinha acabado nas mãos daquele homem? Ele teria mentido sobre ir à prisão? Será que tinha mesmo deixado o Conselho?

— Eu queria levá-lo a um médico, mas ele se recusou. Disse que você cuidaria dele.

As perguntas dela se interromperam com essas palavras. Cuidar dele? Ela não era nenhuma enfermeira.

— Ele precisa de sangue rápido. Disse que tem o suficiente na cabana dele.

— Como ele está? — ela perguntou, mas não esperou resposta. Em vez disso abriu a porta do carro e levantou o assento da frente para ver por si mesma. O cheiro de sangue a atingiu com tudo. Seu estômago se apertou.

— Parece grave — disse Kirk.

As palavras provocaram uma dor aguda no coração de Della. Chase estava deitado ali, meio morto, a camisa coberta de manchas vermelhas. Seus olhos estavam fechados. Estaria consciente? Ele poderia estar...?

Ela não respirou até que ver o movimento em seu peito.

— O que aconteceu? — Ela olhou para Kirk por cima do ombro.

— Só um probleminha — disse Chase, antes que Kirk respondesse.

Della voltou a cabeça para ele e viu suas pálpebras tremerem até se abrirem.

— E não é tão grave. — Ele se mexeu.

— Você precisa de um médico? — ela perguntou.

— Eu me sentiria melhor se ele me permitisse levá-lo até um — Kirk falou. — Posso levá-lo em menos de cinco minutos.

— Não. — O tom de Chase foi tão inflexível que parecia transmitir algo mais.

Della olhou para o sangue na camisa e se preocupou ao ver quanto o ferimento parecia grave. Claro, vampiros se curavam, mas, se algum órgão fosse atingido, eles podiam morrer.

— Mas se você precisa...

— Não. — Os olhos de Chase encontraram os dela como se ele estivesse tentando lhe dizer alguma coisa, mas — ah, que droga! — ler pensamentos não era sua especialidade.

Chase empurrou as costas contra o assento para se sentar.

— Tudo que eu preciso é um pouco de sangue e da pomada. — Ele caiu de volta no assento. — E talvez um pouco de ajuda para sair do carro.

Ela afastou o banco da frente para que pudesse chegar até Chase.

— Você precisa da minha ajuda? — perguntou Kirk.

Chase olhou para ela e balançou um pouco a cabeça, negando a ajuda.

— Não — disse Della. — Posso cuidar disso sozinha.

Ela tirou Chase do carro. Ele se apoiou nos ombros dela e ela teve que passar o braço ao redor do seu quadril para impedi-lo de cair. Quando fez isso, ele se retraiu de dor. Foi quando Della percebeu que a camisa dele estava mais ensanguentada na parte de trás do que na da frente.

— Vá para casa — disse Chase para o vampiro mais velho. — Eu vou ficar bem.

Enquanto levava Chase até o portão, ela ouviu Kirk se afastando. Quando viu que já tinham se afastado o suficiente para o outro vampiro não ouvir, ela disse:

— Você tem explicações a dar.

— Posso apenas me concentrar em não desmaiar agora e explicar mais tarde? — A dor era evidente em sua voz, e o peito dela se encheu de emoção ao vê-lo daquele jeito.

— Você precisa de um médico — disse Della. O cheiro de sangue era avassalador.

— Me dê quinze minutos depois de beber sangue e passar a pomada e, se eu ainda estiver muito mal, chame o seu bom amigo Steve.

Della franziu a testa diante do tom de voz dele e da ideia de chamar Steve. Não que ela duvidasse que o metamorfo ajudaria Chase. Ele faria isso.

Dois passos depois do portão, seu celular apitou com a chegada de uma mensagem de texto.

— Deve ser Burnett — disse ela.

— Não conte... — Chase não terminou.

Eles continuaram andando, e quando chegaram à entrada da trilha, Chase disse a ela:

— Della?

— Sim.

— Ela me salvou.

— Quem te salvou? — Della sentiu o peso de Chase recair um pouco mais sobre ela, deixando seu corpo um pouco mais pesado.

— Sua tia. Ela... ela apareceu e todo mundo a viu. Eu a vi. Ficou todo mundo apavorado.

— Todo mundo quem? — perguntou ela, mas estava mais preocupada em fazê-lo chegar à cabana do que em ouvir a história.

— Eles estavam me atacando. Os prisioneiros. Acho que pensaram que ela era um anjo da morte. Isso me deu tempo para pegar a arma de eletrochoque. Acho que o lobisomem mijou nas calças de tanto medo. — Chase riu, mas a risada soou fraca.

— Você deveria ter me levado com você — ela retrucou. E depois ficou com raiva de si mesma por não tê-lo seguido.

— Della? — ele murmurou, como se não tivesse ouvido a bronca.

— Que é?

— Eu te amo.

— Você não está morrendo! — ela sibilou.

Ele riu.

— Eu não disse que estava... Mas apenas para o caso de estar. — Os joelhos dele cederam. Ela o segurou e percebeu que ele tinha desmaiado.

Ela sustentou o peso de Chase nos braços e correu o mais rápido que pôde para a cabana catorze.

Della falou com Chase durante todo o trajeto, mas ele não respondeu. Ela irrompeu com tudo cabana adentro e quase tropeçou em Baxter. Tentou outra vez acordar Chase.

— Levanta e abre os olhos, cara. Você está me escutando? Você tem que acordar! — Della foi direto até o quarto maior e colocou Chase na cama. Ele não gemeu, nem mesmo se agitou. Baxter deu um pulo para cima da cama, foi descansar ao lado dele e choramingou. Os olhos escuros do cão encontraram os dela, como se pedissem para que ela fizesse alguma coisa.

— Estou tentando — ela justificou.

Sentada na beirada do colchão, com o pânico se acumulando em suas entranhas, ela tomou o rosto dele nas mãos.

— Chase, abra os olhos, droga!

Ciente de que ele precisava de sangue, ela correu até a geladeira e encontrou quatro garrafas. Sem saber mais o que fazer, sentou-se e encheu a boca de sangue. Depois derramou o sangue da própria boca nos lábios dele, mas ele não engoliu. Então, com medo de que ele fosse sufocar, ela virou a cabeça dele. O sangue gotejava da sua boca, manchando de vermelho o lençol branco. Ela observou outra mancha de sangue aumentar de tamanho em torno do peito do vampiro, empapando a colcha marrom-clara. Ele estava perdendo muito sangue.

— Merda!

Levantando-se e mal conseguindo respirar, ela se lembrou da capacidade de Kylie de curar. Pegou o telefone e ligou para a amiga. O telefone tocou uma vez.

Duas.

Três vezes.

Então ela ouviu o correio de voz. Droga! Até minutos atrás a garota estava na cabana que dividia com Della e Miranda.

— Onde você está? Venha para a cabana catorze. Preciso de você aqui!

Ela andou de um lado para o outro no quarto, de olho em Chase, observando para ter certeza de que ele estava respirando. Baxter tinha se aproximado e agora apoiava o focinho no braço do dono. Mas seus grandes olhos escuros ficavam se desviando para ela como se dissesse para ela fazer algo rápido.

Será que deveria ir atrás de Kylie? E deixá-lo ali sozinho?

Então ela se lembrou das palavras de Chase: Me dê quinze minutos depois de eu beber o sangue e passar a pomada e, se eu ainda estiver muito mal, chame o seu bom amigo Steve.

Por um segundo, ela se preocupou em quanto aquilo iria parecer estranho, mas, antes que o segundo terminasse, já tinha digitado o número de Steve e esperava que ele respondesse.

Ele atendeu no primeiro toque.

— Olá! — Bastou uma palavra para ela perceber quanto ele estava feliz em ouvir a voz dela.

— Preciso que você venha à cabana catorze. Chase está ferido... É grave.

Ela respirou fundo.

— Sinto muito. — Ela percebeu que ele tinha desligado. Estaria vindo? Estaria com raiva porque...? Chase gemeu. Della correu para a cama e pegou a mão dele.

— Chase? Você consegue me ouvir? — Ela levantou a cabeça dele e segurou a garrafa de sangue junto a seus lábios. — Beba um pouco de sangue. Você precisa de sangue.

Ele não bebeu e sua cabeça caiu para o lado.

Ela ouviu alguém subir os degraus correndo. Inspirou e sentiu o cheiro de Steve. Ele não bateu, apenas entrou correndo.

— Aqui.

— O que aconteceu? — Steve largou uma maleta no chão e foi até a beira da cama.

Baxter rosnou.

— Não, Baxter! — pediu Della, e então: — Eu... na verdade não sei. Ele foi a uma prisão para ver se alguém lá tinha informações sobre o assassino da minha tia.

— Pensei que o seu tio...

— Meu tio disse que foi outro vampiro que a matou.

— Há quanto tempo ele está inconsciente? — perguntou Steve.

— Só alguns minutos.

Steve viu a garrafa na mesa de cabeceira.

— Você conseguiu dar sangue a ele?

— Não. Ele desmaiou.

Steve tirou uma cânula intravenosa, agulha e um saquinho como os de soro.

— Tire as roupas dele e veja se os ferimentos são graves enquanto preparo isso. E... tire o cachorro de cima da cama.

Della fez sinal para Baxter descer. Ele não gostou, mas obedeceu. Ficou do outro lado da cama, olhando para Steve, como se dissesse que não iria se afastar mais do que aquilo.

Della começou a despir Chase, e a visão da ferida em seu abdômen a fez prender a respiração.

— É grave. — Sua voz tremeu.

— Ele é um vampiro. — Steve pegou o sangue e o despejou no saquinho. — Se é apenas perda de sangue, ele vai ficar bem. Tire a calça também — Steve disse. — Para ter certeza de que não tem mais nenhum ferimento.

O fato de estar despindo Chase só ficou ainda mais estranho quando ela começou a desabotoar seu jeans. Ela viu a cueca boxer verde justa no corpo e se lembrou do dia em que ele tinha brincado com ela, dizendo que ela estava interessada em saber que tipo de cueca ele usava. Agora, seu único interesse era ter certeza de que ele viveria para provocá-la de novo. Seu peito doeu novamente com o medo de que não sobrevivesse, de que ela nunca mais o ouvisse provocá-la outra vez, ou ver os olhos dele se iluminarem com um sorriso.

— Ele não tem nenhum ferimento nas pernas — disse ela, tirando o jeans e jogando-o sobre a cômoda.

Quando voltou a olhar para Chase, lembrou-se de quando tinha tocado as costas dele e achou melhor verificar se tinha algum ferimento ali também. Ela o virou de lado. Com as mãos em seu peito nu, notou quanto a respiração dele estava superficial.

— Tem outra ferida na parte de trás. Ah, Deus! É grave, também. — Ela cerrou o punho. — Por favor, não deixe ele morrer, Steve.

Os olhos de Steve encontraram os dela por um segundo.

— Vou fazer tudo que posso.

Ele desviou os olhos e pendurou a bolsa de sangue na parte de trás da cama. Depois fez com que Della saísse do caminho.

— Vou colocar a intravenosa e depois examino os ferimentos.

Della ligou para Kylie mais uma vez. Ninguém respondeu.

— Onde está você? Por favor, venha à cabana catorze. — Se a magia de Steve não funcionasse, talvez Kylie desse um jeito. Mas nem mesmo Kylie conseguira curar Della durante seu renascimento, e também não tinha sido capaz de salvar Ellie, a vampira.

Della sentiu lágrimas rolarem pelo seu rosto e as enxugou com o dorso da mão.

— Me diga que ele vai ficar bem — pediu Della para Steve.

— Pegue um pouco de água quente para limpar as feridas — ele pediu com pressa.

— Ah, e vou pegar a pomada. Acho que está na cozinha.

— Que pomada?

— É feita para vampiros. — Ela foi até a sala.

Depois de pegar a pomada, ela estava quase entrando no quarto quando ouviu um rugido de dor ecoando pela cabana.

Ela voou para dentro do quarto. Steve estava limpando o ferimento do abdômen. Ou tinha limpado. Agora, segurava o pano ensanguentado sobre Chase, enquanto Baxter se apoiava na cama com as patas dianteiras, os lábios arreganhados, rosnando.

— Pra baixo, Baxter! — mandou Della. — Estamos tentando cuidar dele também.

Steve olhou para ela.

— Talvez você precise segurar Chase. — Ele franziu a testa. — Mas ele pode te machucar...

— Ele está consciente? — Ela passou a pomada para Steve.

— Não totalmente. Mas está reagindo à dor. Pode ser perigoso.

— Ele não vai me machucar — disse ela, acreditando naquilo com todo o coração.

— Pode não saber que é você.

— Ele vai saber. — Della sentou-se no pequeno espaço ao lado de Chase, na borda do colchão. Quando o tocou pela primeira vez, ele rosnou outra vez.

Steve estendeu o braço para ela como se estivesse pronto para puxá-la se Chase a atacasse.

— Talvez seja preciso amarrá-lo.

Lágrimas vieram aos olhos dela, percebendo quanta dor Chase devia estar sentindo.

— Ele é muito forte. Vai conseguir se soltar.

— Então vamos chamar Burnett — disse Steve.

Ela balançou a cabeça.

— Chase não vai me machucar. Eu sei disso.

Steve franziu a testa.

— Mas você não é a única no quarto — disse Steve. — E considerando o relacionamento que temos... me matar pode ser um dos itens da lista de coisas a fazer antes de ele morrer...

— Ele foi falar com você? — perguntou Della.

— Sim. Hoje mais cedo.

Steve e Chase tinham conversado? Della colocaria aquele pequeno fragmento de informação num recanto da sua mente para refletir mais tarde.

— Ele não faria mal a você, também. — E ela acreditava nisso. — Até sugeriu que eu te chamasse se ele não começasse a melhorar logo.

Steve pareceu ceder.

Ela se inclinou para baixo.

— Chase, sou eu, Della, ok? Steve está aqui. Ele está tentando limpar suas feridas. Eu sei que dói. Mas tem que ser feito. Então vou te segurar, para que Steve possa fazer isso. Por favor, não lute contra nós.

— Ele talvez não possa ouvi-la. — A dúvida soou na voz de Steve.

— Ele está me ouvindo — disse ela.

Bem devagar, ela apoiou as mãos no peito dele.


Capítulo Vinte e Dois

— Temos que fazer isso — Della repetiu para Chase no que ela esperava que fosse uma voz calma, apesar de calma não ser nada do que ela estava sentindo. Culpa, ela sentia. Uma tonelada de culpa. Olhou o rosto dele. Os olhos estavam fechados; a pele, muito pálida; a expressão, vazia. O rosto de Chase nunca estava sem expressão. Por que ela não tinha impedido que ele fosse? Ou, pelo menos, insistido para ir com ele? Por quê, droga?!

Então ela o segurou com mais firmeza. Ele não rosnou. Ela olhou para Steve.

— Tente outra vez.

Steve franziu a testa como se discordasse, mas voltou a limpar a ferida.

Chase gemeu e arqueou o pescoço para trás, empurrando a cabeça contra o travesseiro. Baxter saltou para o outro lado da cama, mas não rosnou nem arreganhou os dentes. Agora parecia entender que estavam tentando ajudar.

— Será que ele não precisa de uma cirurgia? — perguntou Della, com medo de que Steve dissesse sim.

— Acho que não.

— Levar pontos?

— Normalmente não se dá pontos em vampiros. Vocês se curam rápido, caso não...

A pausa que ele fez causou em Della uma certa preocupação.

— Caso não o quê...?

— Caso não tenham sido privados de sangue por muito tempo. E a ferida não infeccione...

— As feridas dele parecem infectadas? — ela perguntou.

— Ainda não. Mas a infecção só aparece depois de algumas horas. É quando a ferida está se curando que os sinais começam a aparecer.

— E se isso acontecer?

— Vamos ter que abrir as feridas e voltar a limpá-las — disse Steve, quando terminou de limpar a grande perfuração no abdômen de Chase. — Agora vire-o.

— Passe a pomada primeiro.

Steve pegou o tubo que tinha deixado na mesa de cabeceira.

— Eu não sei o que é isso.

— Chase diz que funciona.

— Mas poderia...

— Não tem perigo. Meu tio que inventou.

— Seu tio?

— Ele é médico ou cientista de pesquisa médica.

— E talvez um assassino — Steve frisou. — Você confia nele? — Será que ela confiava no tio? Não sabia, mas se deu conta de que confiava em Chase, com relação a isso pelo menos, e ele acreditava em seu tio.

— Eu confio na opinião de Chase. Passe a pomada.

Steve abriu o tubo sem rótulo e passou no ferimento.

Chase soltou outro rosnado baixo. Baxter ergueu a cabeça e choramingou.

— Agora vamos virá-lo. E eu preferia que o cão ficasse fora da cama.

Della virou Chase e fez Baxter descer da cama outra vez. Chase gemeu. Della sentiu um nó no estômago, ao perceber os músculos dele se contraindo e sabendo que ela estava lhe causando dor.

Steve limpou o ferimento e cobriu-o com a pomada. Depois ela colocou Chase de costas novamente e Steve começou a se afastar. Mas então franziu a testa e se inclinou para examinar a ferida.

— O que foi? Alguma coisa errada? Está infectada? — perguntou Della, não gostando do interesse súbito de Steve.

Ele olhou para cima, perplexo.

— Não, a ferida já está se fechando.

— Isso é bom?

— É... estranho. — Ele olhou para a bolsa de sangue. — Quase não há nenhum vestígio de sangue. Geralmente... leva mais tempo. — Ele olhou outra vez para a ferida. — Mas, sim, eu acho que é bom. Ele não vai mais perder sangue. Vamos apenas torcer para que não contraia nenhuma infecção. — Steve pegou o tubo. — O que tem nesta pomada?

— Eu não sei — disse Della. — Se a ferida já está cicatrizando e não parece infectada, isso significa que ele está fora de perigo? — Ela queria ouvir Steve dizer que Chase ficaria bem.

— Não necessariamente — disse ele. — Mas é um bom sinal.

Ela tentou se tranquilizar com a resposta, mas não estava adiantando muito.

— Então quanto tempo falta para ele ficar consciente?

— Isso depende da quantidade de sangue que perdeu. Parece que perdeu muito. Posso ficar aqui com ele, se você quiser ir.

— Não, você pode ir. Vou ficar. Pode deixar que eu assumo agora. Se precisar de você, eu ligo.

Ele fez que sim com a cabeça e, pela sua expressão, ela viu que ele estava deduzindo muitas coisas com base no pedido dela. Todo aquele constrangimento que ela temia que a situação provocasse borbulhou para a superfície.

Olhando para a cama outra vez, ela se aproximou e colocou a coberta sobre o corpo quase nu de Chase. Não porque achasse que ele estava com frio, mas para cobri-lo um pouco. Ela não gostaria que a deixassem seminua se estivesse inconsciente.

Ela fez sinal para Steve segui-la para fora do quarto.

— Eu... Chase foi ferido tentando ajudar a limpar o nome do meu pai. Eu tenho o dever de ficar ao lado dele até ter certeza de que vai ficar bem. — Mas essa não era a única razão, e ela sabia muito bem. A verdade estava lá, bem no fundo, onde ela não tinha tido tempo de sondar.

Quando Steve não respondeu, ela acrescentou:

— Chase e eu não estamos... juntos. — Não era mentira, então por que isso fazia o seu coração dar cambalhotas?

Steve sorriu. Não um sorriso genuíno, mas perto disso.

— Está tudo bem, você não tem que se justificar, Della.

Não? Ela observou-o voltar para o quarto e recolher suas coisas, e uma outra pergunta lhe ocorreu. O Steve de antes não precisaria de uma justificativa?

Quando ele saiu, deu um abraço nela. Ela fechou os olhos e tentou encontrar conforto naquele abraço, mas tudo o que sentia era constrangimento. E então a mesma sensação de antes a envolveu, a que dizia que as coisas tinham mudado.

— Obrigada. — Ela se afastou.

— Eu acho que Chase é quem precisa me agradecer. — Steve correu a mão pelo antebraço dela. — Nós ainda precisamos ter aquela conversa.

— Eu sei.

Ele sorriu, e dessa vez foi um sorriso de verdade. Mas seus olhos ainda pareciam tristes.

— Só deixe que ele se movimente depois que se passarem várias horas. Assim que recuperar a consciência, faça-o beber sangue. Se não tiver acordado quando a intravenosa tiver acabado, me ligue e eu venho aplicar outra. Examine os ferimentos pelo menos a cada hora. Se eles começarem a ficar vermelhos ou inflamados, me ligue imediatamente.

Ela assentiu com a cabeça, então ficou ali parada, observando-o se afastar. Por algum motivo, embora ela não tivesse decidido ainda o que sentia por Steve, ou o que iria ou não acontecer entre eles agora, sentiu que ele tinha decidido. Será que ele tinha fechado a porta à possibilidade de voltarem a ficar juntos?

Della ainda não tinha concluído como se sentia sobre isso quando ouviu um gemido de Chase. Todos os pensamentos sobre Steve foram atirados pela janela e ela correu para verificar como Chase estava.

Quando chegou à porta do quarto, viu-o tentando se sentar.

— Não! — Ela correu para o lado dele. — Não se levante. — Ela o fez se deitar novamente.

Chase olhou para ela. Em seguida, pegou-lhe a mão.

— Fique aqui — ele pediu.

— Eu vou ficar. — Ela apertou a mão dele.

— Bem aqui.

— Eu não vou a lugar nenhum — assegurou ela.

Ele respirou fundo.

— Você estava certa.

— Sobre o quê?

— O Conselho. Eles... eles não são... — Ele se recostou no travesseiro.

— Não são o quê? — ela perguntou. Chase ficou inconsciente outra vez. — Não! Chase, acorde. — Ela tocou o peito dele. — Você precisa beber sangue. Por favor.

Ele não se moveu. Baxter ganiu.

Frustrada, ela baixou o lençol para verificar a ferida. Não parecia inflamada, mas, caramba, agora ela se perguntava se não deveria ter pedido a Steve para ficar.

E se ela deixasse de notar alguma coisa? E se ele piorasse?

Um barulho — um leve baque do lado de fora da janela do quarto a fez levantar a cabeça. Ela viu um pássaro, uma gralha preta, empoleirado no peitoril.

Lembrou-se do pássaro que vira mais cedo. Também era uma gralha. Preta. Ela deu um passo. O pássaro alçou voo e depois de abrir as asas e planar, voou para longe. Será que era o mesmo pássaro? Ou apenas uma coincidência?

Claro que não! Della não acreditava em coincidências. Quem a estaria observando? E observando Chase? Tinha que ser um dos metamorfos dali, não é?

Ela não tinha tempo para ficar ali refletindo. Algo — ou alguém — pisou com força na varanda da cabana e a porta se abriu com uma pancada. Della correu para a sala de estar, os caninos já se projetando.

Kylie, obviamente no modo vampiro, irrompeu cabana adentro.

— O que foi?

Della respirou e desejou que sua disposição para a luta diminuísse.

— É Chase — disse, feliz por ter Kylie ali. — Ele foi ferido.

Ela se virou e correu para o quarto. Kylie a seguiu. Della parou ao lado de Chase e tirou o lençol para mostrar a Kylie a ferida. Para sua surpresa, ele parecia ainda melhor do que alguns minutos atrás.

Baxter ainda estava deitado do outro lado da cama, abanando o rabo com a presença de Kylie.

— Estava bem ruim, mas ele está se curando rápido — disse Della. — Steve disse que ainda existe o risco de ele contrair uma infecção. Nós não sabemos quanto sangue perdeu, que é provavelmente a razão por que ainda está inconsciente. Você acha que poderia ajudar?

Kylie olhou para o ferimento de Chase.

— Eu não sei se minhas habilidades de cura funcionam no caso de perda de sangue. Mas estou disposta a tentar.

Della observou Kylie se sentar na borda do colchão e descansar a mão no ombro de Chase.

Só então o telefone de Della anunciou a chegada de uma mensagem de texto. Com ela soou outro apito, vindo do bolso do jeans de Chase. Ela tirou o celular do bolso.

— É Burnett — disse Kylie, enquanto lia a mensagem.

Problemas. Encontre-me no escritório.

— O que ele disse? — perguntou Kylie.

— Não muito, mas já passa das onze e ele está chamando para uma reunião, por isso não pode ser bom.

— Droga. — Kylie olhou para a calça jeans na cômoda, que continuava apitando. — Pode ser sobre o pressentimento de Miranda de que alguém está nos espionando. É por isso que eu não vim mais cedo: fui com ela e esqueci o celular.

— Ah, que ótimo! — disse Della, com ironia.

Kylie suspirou.

— Acho que você vai ter que contar a ele sobre Chase.

— Eu sei — Della murmurou. — Isso não é formidável? — Ela olhou para o vampiro inconsciente seminu, em seguida voltou a olhar para Kylie. — Você pode ficar aqui enquanto vou ouvir o sermão de Burnett? Não deve demorar muito. Ele é excelente no que faz.

Kylie abriu um meio sorriso.

— Claro, mas talvez seja melhor você tirar essas roupas ensanguentadas.

Della olhou para as manchas no jeans e na camiseta. Ela não tinha nem notado.

Deu instruções sobre como Kylie deveria cuidar das feridas de Chase.

— Vou cuidar bem dele. Prometo. Agora vá, antes que Burnett perca a paciência.

Della voou para fora do quarto, passando na sua cabana para trocar de roupa e, em seguida, se preparando para enfrentar Burnett.


Capítulo Vinte e Três

O grupinho de alunos de Shadow Falls em quem Burnett confiava para ajudar a manter a escola em segurança lotava a sala de espera do escritório principal quando Della entrou.

A voz de Burnett soava, depois fez uma pausa enquanto ele esperava que ela se juntasse ao grupo.

Della entrou e acenou para Lucas, Chris, Fredericka e Derek, enquanto atravessava o cômodo. Miranda, com um grande sorriso no rosto, estava ao lado do líder. O orgulho brilhava nos olhos dela, sem dúvida por dar a Burnett a informação sobre o intruso.

O olhar de Burnett encontrou os dela com toneladas de perguntas cintilando nos olhos escuros. Seu atraso com certeza o preocupara, porque ela sempre chegava primeiro em reuniões como aquelas. A troca de roupa tinha levado mais tempo do que previra. Demorou para encontrar um jeans e uma camiseta mais limpos na pilha de jeans e camisetas sujos. E com o faro de vampiro, sua ideia de sujo nem sempre coincidia com o de outras pessoas.

— Onde está Chase? — perguntou Burnett.

Os ombros de Della enrijeceram. Por que ele estava deduzindo que ela estava com Chase? O fato de estar com ele não significava coisa alguma. Ele ainda assim não deveria deduzir nada.

Ela reprimiu seu desejo de responder com um comentário mal-humorado.

— Vou explicar num minuto. — E esperava que fosse de fato apenas um minuto. Não queria ficar ali por muito tempo.

Burnett hesitou, como se estivesse considerando se a chamava para uma conversinha em particular, mas, em seguida, voltou a se concentrar no grupo.

— Como eu estava dizendo, achamos que o intruso deve ser um metamorfo. A eletricidade oscilou ontem. Estou achando que deve ter sido quando ele se esgueirou para dentro de Shadow Falls.

— Como você sabe que é um metamorfo? — outro lobisomem, amigo de Lucas, perguntou.

— Não sabemos ao certo — disse Burnett. — Mas nosso sistema mede o índice de calor com base no número de residentes e leva em conta as diferentes temperaturas corporais. O sistema pode captar uma perturbação quando um metamorfo muda de forma dentro dos nossos limites. Verifiquei ontem e reparei que houve uma leve alteração, mas não me preocupei, achando que era um caso pontual. Depois que Miranda me procurou para me contar do seu pressentimento, verifiquei outra vez. Houve mais de uma perturbação, e essa é a causa da minha preocupação.

Della franziu a testa.

— É uma gralha preta.

Todos os olhos se voltaram para ela. Burnett pareceu meio confuso, meio irritado.

— Você já sabia?

— Eu vi o pássaro. No começo pensei que era um dos nossos metamorfos, mas, depois, ele apareceu outras vezes.

Nesse momento os passos de duas pessoas soaram do lado de fora. Todos os vampiros viraram-se para a porta. Uma voz familiar se fez ouvir no meio da noite. Uma voz que ela não ouvia fazia um tempo. Perry?

— Acha que eu não ia reconhecer você?

Della inclinou a cabeça para ver se descobria com quem ele estava falando. Os passos se aproximaram, chegando aos degraus da varanda.

— Encontrei o intruso! — anunciou Perry, entrando no escritório com outro metamorfo louro e de olhos brilhantes. Exceto que, ao verificar o padrão, Della percebeu que ele era metade metamorfo e metade humano.

Ela quase podia ouvir os pensamentos de todos na sala, e eles combinavam com os dela. O cara que estava na frente de Perry poderia facilmente ser tomado como seu irmão gêmeo.

— O nome dele é Sam. — Perry segurou o braço do rapaz e olhou-o com desprezo. — Ele é um dos meus primos que perdi de vista há muito tempo.

— Acha mesmo que ele estava aqui para ver você? — perguntou Della, certa de que era isso que Perry estava prestes a dizer e já recusando a explicação. Por que o primo de Perry a estaria seguindo para todo lado ou indo à cabana de Chase? Esse sujeito tinha más intenções, e ela teve a sensação de que de alguma forma isso tinha algo a ver com ela ou Chase.

— Não — disse Perry. — Ele não sabia que eu estava aqui. Já confessou que foi enviado por uns cretinos para espionar alguém aqui. Mas não quer me dizer mais nada.

Acontece que Della já sabia.

— Douglas Stone. — Ela atravessou a multidão para ficar bem na frente do imbecil. — Foi ele que enviou você, não foi?

A forma como o sósia de Perry olhou para Della, desviando os olhos, fez com que ela soubesse que tinha acertado na mosca. O que não sabia era se isso significava que Chase estava certo: seu tio não tinha matado a irmã.

— Bom trabalho! — Burnett disse para Perry. — Saiam todos, exceto Perry e o primo. — Burnett apontou para a porta que dava para o escritório de Holiday.

Della deu graças a Deus, louca para voltar para Chase, e fechou a porta atrás dela.

Ela tinha posto um pé no primeiro degrau da varanda quando ouviu Burnett rosnar.

— E Della!

Ela parou, soltou um suspiro e deu meia-volta, o tempo todo se perguntando como duas palavras poderiam provocar tamanha frustração. Ela voltou a entrar.

— Você disse...

— Eu posso ficar, certo? — interrompeu Miranda. — Foi por minha causa que o encontramos. — A bruxa parou junto da porta do escritório de Holiday e assistiu enquanto Perry empurrava o primo, com uma cara muito infeliz, para dentro do escritório.

Burnett olhou para Miranda. Della quase podia vê-lo tentando controlar o seu temperamento. Seus ombros caíram e suas mandíbulas se abriram. Por que ele nunca tentava controlar o temperamento quando se tratava dela?

— Sim, foi por sua causa — disse ele. — E eu agradeço, mas vamos continuar sem você a partir daqui.

Miranda fez uma cara de frustração e começou a sair da sala, mas parou ao lado de Della.

— Tudo bem? — sussurrou, a pergunta revelando que a bruxa tinha ouvido a mensagem que Della mandara para Kylie.

— Explico mais tarde. — Della desviou os olhos para Burnett, de pé a alguns metros de distância e de cara feia para ela.

Pelo menos o vampiro grande e malvado esperou até que Miranda tivesse saído para começar a falar.

— Na verdade, acho que você vai começar a explicar agora mesmo. E começar me dizendo por que Chase não está aqui. Eu mandei uma mensagem para vocês dois.

Caracas! Tudo tinha acontecido tão rápido que Della não sabia como começar a explicar.

— Sim mas... hã, Chase tipo... Ele...

— Desembucha! — exigiu Burnett.

Della teria despejado tudo desde o início, mas uma barulheira veio do escritório de Holiday. Com o canto do olho, viu uma gralha preta sair voando do escritório.

Como estava mais perto da porta, Della fechou-a sem demora, para evitar a fuga do pássaro. Isso, no entanto, acabou não sendo necessário. Burnett, quase como se esperasse que a gralha fosse tentar fugir, ou por ter caçado e comido aves no jantar durante a maior parte da vida, estendeu a mão e pegou o pássaro do ar.

— Vá dar uma olhada em Perry! — Burnett mandou, enquanto fulminava o emplumado, cativo em sua mão.

Della encontrou Perry um pouco tonto, depois de levar uma pancada com o abajur na cabeça. Mas ele ficou bem. Depois de alguns minutos, Burnett perguntou novamente sobre Chase. Ela confessou tudo. Se o rosto cor de pimentão e os palavrões eram alguma indicação, Burnett não aceitou muito bem as notícias. Della, no entanto, estava muito preocupada com Chase para ficar traumatizada.

A primeira coisa que Burnett fez foi chamar Holiday e pedir que ela desse uma olhada em Chase. Então ligou para Steve, pedindo que ele encontrasse Holiday na cabana, onde ela avaliaria se seria necessário chamar outro médico.

— Posso ir agora? — Ela queria estar lá para ouvir a avaliação de Steve.

Burnett pareceu confuso.

— Você não quer ouvir o que o primo de Perry tem a dizer?

— Você não pode me contar depois?

Ele a examinou com atenção.

— Assim como você me contou que Chase está ferido? — Franzindo a testa, ele acenou com a mão. — Pode ir. Eu te conto depois. Mas vamos conversar sobre isso.

Nada como um sermão adiado. Ela voou dali e chegou apenas a tempo de ouvir Holiday chamando o doutor Whitman. Os ferimentos de Chase agora pareciam infectados.

Chase acordou com o estômago vazio, a ânsia por sangue era quase dolorosa.

Ele abriu as pálpebras e olhou para o teto, sentindo-se desorientado. Uma vaga lembrança de ir para a prisão, de... sentir dor. Muita dor. Fragmentos de memória começaram a se encaixar. Um lobisomem tinha escapado, outro tinha lhe enfiado uma faca na barriga. Em seguida, o fantasma havia aparecido.

Leo, o guarda, tinha chamado o Conselho.

Ele contraiu os músculos, preparando-se para sair da cama e partir em busca de respostas, quando sentiu dois cheiros diferentes. Baxter. E então um muito mais doce do que o do cão.

Della.

Tomando cuidado para não se mover, ele olhou de lado através dos cílios. A necessidade de respostas foi ofuscada pela crescente necessidade de apenas... ficar ali. Naquele momento, com ela, ao lado dele. Adormecida. Na cama.

Um sorriso, aquele que brotava naturalmente quando ela estava por perto, abriu-se em seus lábios. Procurou manter a respiração regular, para não acordá-la.

Ela estava deitada de lado, as duas mãos juntas embaixo do rosto. Seus cílios escuros eram tão longos que tocavam a pele macia sob os olhos.

A pele um pouco mais escura embaixo dos olhos indicava que ela não tinha conseguido descansar muito. Quanto tempo estaria... ali? Quanto tempo tinha se mantido ao alcance da mão dele, compartilhado sua cama e até mesmo seu travesseiro? Ele se ressentia de ter dormido, sentindo o desperdício de tempo, quando poderia ter ficado olhando para ela.

Ela estava deitada tão perto que ele podia sentir sua respiração, uma leve cócega, em seu pescoço. Uma mecha de cabelo escuro cobria sua bochecha. Ele ansiava para estender a mão e afastá-la. Tocar o cabelo dela era uma das coisas que ela não o impedia de fazer. Ou pelo menos não sempre.

Mal sabia ela quanto ele adorava tocá-lo. Não que não houvesse outras partes que ele desejava tocar. Ainda assim, os fios escuros eram macios, muito mais macios do que o seu próprio cabelo, e sempre desprendiam um aroma... o aroma que o cabelo de uma garota deveria ter. Uma mistura de frutas e flores.

Ele lutou contra a necessidade de correr os dedos através dos fios longos e escuros, sabendo que, quando acordasse, aquela proximidade iria acabar. Ela se afastaria.

Della sempre se afastava. Ele continuou dizendo a si mesmo que chegaria o dia em que ela não se afastaria mais. Não seria mais arriscado tocá-la. Pois ela iria tocá-lo também.

Ele observou os lábios tão... rosados! Com um formato perfeito. Queria pressionar sua boca contra a dela. Saboreá-la. Queria... Seu olhar baixou até a parte de cima da blusa, onde as ondas suaves de carne pressionavam o tecido de algodão. Lembrou-se de quando ela estava apenas de calcinha e sutiã, quando ele tinha ido à sua cabana outra noite.

A bem da verdade, ele já a vira nua quando ela estava doente, no início da segunda transformação. Tinha gravado aquela visão em sua mente e a recapitulara muitas vezes.

O que ele não daria para tirar as roupas dela... Cada centímetro de tecido... e depois as suas próprias e senti-la contra ele, pele contra pele.

A perfeição do momento bateu em seu peito e, então, esgueirou-se mais para baixo, onde o seu corpo se enrijeceu de desejo. Fechando os olhos, fitando a escuridão em sua mente, ele se forçou a reprimir os seus instintos mais primitivos. A última coisa que queria era parecer um tarado. Ela não merecia aquilo.

Ele a sentiu se mexendo, ouviu sua respiração ficando mais rápida. Ela estaria... Ele abriu os olhos.

Ela olhou para ele, as pálpebras ainda pesadas, sensuais e cheias de sono. Achou que ela se levantaria na mesma hora, para aumentar o espaço entre eles.

Ela não fez isso.

— Você está acordado! — Ela sorriu. Nossa! Ela era linda quando sorria...

— Você dormiu comigo. — Ele estendeu a mão para tocá-la.

Foi quando aconteceu. Ela se afastou. Mas pelo menos não saiu da cama. Apoiou-se no cotovelo. E franziu ligeiramente a testa.

— Você me implorou para não ir embora.

Ele sorriu.

— Então isso é tudo o que preciso fazer para ter você na minha cama? Implorar? Teria feito isso meses atrás.

Ela se levantou num salto, mas ele notou que a expressão dela não ficou tão distante quanto sempre ficava quando se afastava.

— Você precisa beber sangue.

Ele a observou enquanto se afastava.

— Um beijo de bom-dia até que seria bom! — ele gritou, acariciando Baxter, que se aproximou um pouco mais.

Ela se virou e franziu a testa.

— Não quero arruinar o seu dia, carinha. Mas você quase morreu ontem à noite.

Ele riu, então vasculhou a mente atrás de algo mais de que conseguisse se lembrar. Ele se lembrou de insistir para que Kirk o levasse até ali... até ela. E como ele tinha certeza de que ela faria, Della tinha cuidado dele. Mais uma prova de que ela se importava. Que a muralha que tinha construído entre eles estava aos poucos desmoronando.

— Você me salvou — disse ele.

— Não, eu não gosto de você tanto assim — disse ela. — Steve e o doutor Whitman fizeram isso. — Ela andou para longe da cama.

Ele afastou o lençol para se levantar. Viu que estava apenas de cueca. Será que ela tinha...? Um sorriso chegou aos lábios dele quando pensou em Della despindo-o e na conversa que tiveram sobre sua cueca.

Chase se levantou. Os joelhos fraquejaram, mas ele se manteve de pé.

Ela caminhou de volta, ignorando a nudez dele, e entregou-lhe uma garrafa de sangue. Quando seus dedos se roçaram, um doce formigamento percorreu-o, indo do braço até o coração.

O fato de ela estar ali, acordando ao seu lado, mesmo ele estando apenas de cueca, fez com que o momento parecesse quase perfeito. Só seria perfeito se ela estivesse quase ou completamente nua, mas ele precisava se contentar com o que tinha.

Ele estendeu a mão para ela. Ela deu um passo para trás.

— Volte para a cama e beba o seu sangue. — Ela pegou a garrafa, tirou a tampa e em seguida colocou-a de volta nas mãos dele. — O médico disse que passaria aqui pela manhã para ver como você está.

— Eu estou bem. — Ele virou-se para a cômoda para pegar o jeans.

Ela ficou entre ele e a mobília.

— Cama!

O movimento deixou-a tão perto outra vez que ele pôde sentir o aroma do cabelo dela, ou do xampu, não importava. Tudo o que sabia era que tinha gostado.

— Só se vier comigo. — Ele ergueu as sobrancelhas para ela.

Ela rosnou. Os olhos brilharam, a boca se franziu num belo arco e os ombros se arquearam para trás, valorizando os seios pequenos. Eles podiam ser pequenos, mas eram lindos. A imagem dela de calcinha e sutiã surgiu em sua mente outra vez. Ele sorriu.

— Você nunca ficaria furiosa comigo se soubesse quanto fica sexy quando está com raiva.

Ela fez cara feia.

— Será que você pode parar de fazer de conta que não foi nada? Você quase morreu, Chase. Primeiro por causa da hemorragia e depois por causa da infecção. E para seu governo, se eu nunca mais tiver que ver as suas entranhas novamente, vou agradecer.

— Eu não estou tentando... — Chase fez uma pausa e olhou para ela. — Burnett sabe?

— Tive que contar a ele — disse Della. — Douglas Stone enviou alguém para espioná-lo. E ele conseguiu passar pelo alarme.

— O quê? Espere aí. Eles o pegaram?

— Sim.

— E então? — perguntou Chase.

— O espião é primo de Perry, mas eles não se viam havia muito tempo. E a última notícia que tenho é que ele ainda estava se recusando a falar. Burnett levou o cara para a sede da UPF.

Chase estendeu o braço, desviando-se de Della, e pegou a calça jeans sobre a cômoda.

— Então temos que fazê-lo falar. — Ele suspirou. — Antes de fazerem picadinho de mim ontem à noite na prisão, descobri que Stone sabe que estamos atrás dele, e parece que ele está sendo protegido. Eu preciso descobrir o que o Conselho dos Vampiros sabe.


Capítulo Vinte e Quatro

— É por isso que você não confiou no cara que te trouxe noite passada? — perguntou Della.

Chase franziu a testa.

— Aquele era Kirk.

— Mas você não confiou nele. Deu pra ver pelo jeito como o tratou.

A dor brilhou nos olhos de Chase. O tipo de dor emocional que ela conhecia muito bem.

— Ele era como um tio para mim. Praticamente ajudou Eddie a me criar.

— Ele ainda assim podia estar escondendo alguma coisa — ela insistiu.

— Como eu disse, preciso descobrir o que sabem sobre Stone.

— Você não vai a lugar nenhum agora. — Della puxou a calça jeans das mãos dele e fez uma pausa quando ouviu passos na varanda da frente. Bastou uma respiração profunda para ela descobrir quem era. Holiday entrou na cabana.

— Olhe para mim — Chase pediu. — Eu não pareço bem?

O fato de ele não ter percebido que Holiday estava lá fora era para ela uma prova de que ele não estava bem.

— Volte para a cama.

Holiday entrou no quarto. Algo na expressão dela provocou em Della uma sensação de alarme.

— Eu não me importo que você pareça bem... — Holiday fez uma pausa. Ela arregalou os olhos, sem dúvida ao ver Chase sem roupas. — Obedeça à Della e volte para a cama.

Mais baixa do que Della e pesando menos de 50 quilos, Holiday não tinha um punho de ferro, mas era como se tivesse. Quando a fae ruiva falava, as pessoas ouviam.

Chase começou a recuar até desabar na cama. Então, como se digerisse o que Holiday tinha dito, ele pegou o lençol e jogou-o sobre o corpo. Seu rosto brilhava com um sorriso.

O fato de não parecer constrangido por estar de cueca na frente de Della significava algo. Mas era apenas mais uma coisa que ela não tinha tempo para avaliar agora.

— Isso é ridículo — ele murmurou.

— Ridículo é você quase permitir que o matem. Mas eu vou deixar meu marido tratar disso com você. Estou aqui para ver como está e para dar isto a Della.

Ela levantou um grande envelope pardo.

— O arquivo da promotoria sobre o caso do meu pai — adivinhou Della, com esperança de que estivesse certa.

Holiday assentiu.

— Foi deixado aqui meia hora atrás. Fiz uma cópia para Burnett. Ele vai verificar quando estiver de volta. Eu teria esperado um pouco antes de dar a você, Della, mas ela insistiu para que você visse agora.

— Ela quem? — perguntou Della.

— Sua tia — Holiday franziu a testa. — Obviamente, existe algo nesse relatório que ela quer que você veja. E não está com muita paciência. Derrubou a minha estante quando não fiz, no mesmo instante, o que ela mandou.

Della pegou o envelope.

Holiday continuou:

— Na maioria dos casos, um espírito se liga apenas a uma pessoa, porque a energia dele é limitada. Sua tia é provavelmente o fantasma mais cheio de energia que eu já vi. Além disso, ela está com raiva e confusa, o que me preocupa.

Della ofegou.

— Ela nunca iria me machucar.

— Mesmo assim — continuou Holiday. — Não estou dizendo que ela faria isso de propósito, mas, quando um espírito é muito poderoso, ele não sabe medir essa força ou se está se excedendo. — A fae suspirou. — É uma medida extrema, mas existe um exorcismo que podemos tentar.

— Um exorcismo? — Della se lembrou das suas visões nos últimos meses. As coisas que ela tinha descoberto sobre a tia. Que Bao Yu tinha sido forçada a desistir da filha por ser mãe solteira, que tinha perdido o namorado por causa disso e, aos 19 anos, sido brutalmente assassinada.

Della não fazia ideia do que aconteceria com Bao Yu se fosse exorcizada, mas já não tinham feito o suficiente contra ela? Sua tia podia estar confusa sobre quem era seu assassino, mas a razão que a levara a se apegar a esta vida era o seu desejo de resolver todas as coisas pelas quais tinha sido forçada a passar. Para encontrar as respostas de que precisava. Quem era Della para negar isso a ela?

— Não. — Della pegou o envelope.

— Espere — Chase falou. — Se ela é perigosa, talvez...

— Não. Você mesmo me disse que foi ela quem salvou você na noite passada.

— Sim, mas, como Holiday disse, ela pode não ter intenção de agir mal. Ela poderia...

— Não. — Della olhou para Holiday. — Assunto encerrado!

Holiday foi embora, mas Chase não desistiu de falar sobre a questão da tia.

— Estou preocupado que alguma coisa possa acontecer a você — ele insistiu.

— Então pare. Eu não sou sua namorada para você se preocupar — Della insistiu.

— Assim como eu não sou seu namorado? Certo? — Ele soltou um rosnado baixo. — Então o que você está fazendo aqui, Della? Por que passou a noite aqui?

— Não faça com que isso pareça ter mais importância do que tem — ela disse a Chase, e depois disse a mesma coisa para si mesma.

Franzindo a testa, ele se reclinou nos travesseiros e fechou os olhos. Ela não sabia se Chase estava sonolento por causa do processo de cura ou se estava pensando.

Ela abraçou o arquivo e pensou em ir embora. Precisava analisá-lo. Seu olhar desviou-se para a porta.

A voz de Chase a impediu de sair.

— Esse cara, o primo de Perry, que apareceu. Ele não machucou ninguém, não é?

— Não. E não acho que poderia. Ele é apenas metade metamorfo.

Chase assentiu. Seus olhos se encontraram.

— Vamos ler o arquivo?

“Vamos”? A palavra ficou dando voltas na sua cabeça. Ela apertou o envelope com mais força.

Quase foi embora, mas percebeu que ambos tinham um motivo para querer resolver o assassinato de Bao Yu. Chase queria livrar Eddie da acusação de assassinato, ela desejava o mesmo para o pai. Foi a primeira vez que percebeu que ela de fato acreditava nisso. Acreditava que o tio não tinha assassinado a tia. O fato de o primo de Perry aparecer e sua conexão com Stone é que a convencera ou será que ela só queria acreditar em Chase agora?

Ah, inferno, não importava a razão. E só porque ela acreditava, isso não significava que tivesse perdoado o irmão de seu pai. Se ele fosse outro tipo de homem, teria aparecido para ajudar.

— Sente-se aqui e vamos lê-lo juntos. — Chase apontou para a cadeira. Della sentou-se e começou a ler. Ouviu-o se levantar.

Não disse nada, mas podia sentir os olhos dele sobre ela. As palavras dele se repetindo em sua cabeça. Estava preocupado que algo pudesse ter acontecido a você.

Ela podia sentir a preocupação dele. E não estava pronta para aceitar que Chase tinha o direito de estar preocupado. Ainda assim entendia como ele se sentia, visto que ela tinha quase morrido de preocupação nas últimas doze horas.

Tinha chegado até a deitar na maldita cama com ele, para que pudesse ouvi-lo respirar, com medo de que a respiração parasse.

Mas agora que sabia que ele não estava morrendo, preferia negar esses sentimentos.

O plano dela não era afastá-lo?

Nem todo mundo acaba junto. Você ainda tem uma escolha. As palavras dele ecoaram em sua cabeça, e elas pareceram menos verdadeiras do que na ocasião em que ele as dissera.

— Dá pra parar? — ela por fim murmurou, olhando para Chase.

— O quê? — ele perguntou.

— De ficar me encarando. Eu não consigo ler.

Os olhos verdes dele se estreitaram numa carranca.

— Então eu posso ver o que você já leu até agora? — Ele estendeu a mão.

Ela recomeçou a ler. As primeiras páginas não tinham nada de novo. Horários, datas em que os policiais chegaram ao local. Ela passou a página a Chase assim que terminou de ler. Então se concentrou na transcrição do telefonema para o número de emergência.

Seu coração parou. Ela olhou para ele.

— Foi meu pai quem ligou para o 911! — disse ela. — Ele não ficou inconsciente o tempo todo.

Chase olhou para ela, os olhos arregalados de preocupação e talvez até de medo. Só então ela sentiu a temperatura do quarto.

E percebeu que Chase não estava olhando para ela.

Della olhou por cima do ombro e, atrás dela, com uma faca se projetando do peito, estava Bao Yu.

— Vê agora? — o fantasma disse, com lágrimas escorrendo dos olhos. Levantando o braço, ela puxou a faca. O sangue jorrou da ferida.

Ela usou a faca para apontar para os papéis na mão de Della.

Vê agora? Ele não estava inconsciente. Ele fez isso! Ele me matou!

— Não! — protestou Chase. — Douglas Stone fez isso.

A tia olhou para Chase. Fúria estampada nos olhos. Ela arremessou a faca. A lâmina afundou no colchão, bem entre as pernas de Chase.

Della estava certa de que a faca, uma parte da visão, não era real. Não tinha sido uma ameaça real a Chase ou às suas partes íntimas.

Mas, a julgar pela palidez em seu rosto, Chase não via as coisas dessa forma.


Capítulo Vinte e Cinco

Onde, pelo amor de Deus, andava Burnett? Chase tinha até tentado ligar para ele, mas ninguém atendeu.

Della tinha ido embora depois que Chase tentara convencê-la a deixar Holiday se livrar do fantasma.

Uma hora depois, vestido, entediado e furioso por ter sido impedido de sair do quarto, ele voltou a se deitar na cama e tentou diminuir sua agitação acariciando Baxter. O cão estava deitado ao seu lado na cama, deleitando-se com a atenção.

Quando Baxter adormeceu, Chase levantou-se. Sobre o sofá ainda estavam espalhados os papéis sobre a UPF que Burnett tinha lhe dado. Precisando de algo para passar o tempo, ele abriu e leu o contrato e a lista de regras da UPF. A regra número 26, aquela sobre cada agente ser automotivado e responsável por decidir que riscos assumir era bem interessante, e Chase a guardou na memória para se defender quando Burnett decidisse lhe passar um sermão.

Olhando para o celular pela centésima vez, ele rosnou. Alguém precisava ir procurar Douglas Stone. Alguém precisava descobrir o que o Conselho sabia.

O fato de Douglas Stone tê-lo encontrado primeiro deixava Chase muito contrariado — e por várias razões.

Ele estaria colocando Della e outras pessoas de Shadow Falls em perigo? Chase queria ficar perto dela, mas não para colocá-la em perigo.

Os pensamentos de Chase foram interrompidos por passos na direção da cabana. Passos pesados. Pesados demais para serem de Della.

Achando que era a pessoa que ele mais temia ver — Burnett — e sem querer parecer fraco, ele pulou da cama e começou a se dirigir para a porta.

No momento em que os passos chegaram ao alpendre, Chase detectou o cheiro. Não era Burnett, mas outra pessoa que ele não tinha vontade de ver.

Estar em débito com alguém jamais agradara Chase.

Passou a mão no cabelo e esperou pela batida de Steve.

Steve estava na varanda, parecendo tão feliz em estar ali como Chase parecia estar em vê-lo.

— Vim examinar seus ferimentos.

— Não é necessário. Estou bem.

— Tá, vou fingir que acredito — disse Steve. — Prometo que não vai doer.

Chase apertou a mandíbula.

— Por favor — pediu Steve. — O doutor Whitman me pediu para fazer isso.

Chase puxou a camisa. O metamorfo se inclinou para examinar a pequena marca rosada na pele.

— Parece bom. — Steve endireitou o corpo.

Chase encontrou os olhos de Steve.

— Por que você fez isso?

— Fiz o quê? — perguntou Steve.

— Salvou a minha vida. — De repente Chase se lembrou de algo. — Ou você não limpou a ferida muito bem de propósito, esperando que a infecção me matasse?

Steve franziu a testa.

— Para sua informação, eu limpei a ferida várias vezes. E se não tivesse feito isso, a infecção teria matado você antes de o doutor Whitman chegar aqui. — Então fez uma pausa. — Agora vire-se e me deixe ver as suas costas, para que eu possa me mandar daqui quanto antes.

Chase se virou. Steve levantou sua camisa.

— Você fez isso porque Della pediu? — perguntou, na esperança de chamar a atenção do metamorfo para o fato de Della se importar com ele.

Chase sentiu sua camisa de volta contra a pele. Steve suspirou.

— Eu fiz isso porque sou médico. Se eu deixasse você morrer só porque não vou com a sua cara, não conseguiria viver em paz comigo mesmo.

Percebendo que ele estava agindo como um namorado ciumento, Chase afastou os sentimentos indesejados e encarou Steve.

— Desculpe. Obrigado. — Chase estendeu a mão.

Steve não a pegou.

— Não precisa me agradecer.

Ok, talvez depois de acusar o cara de tentar matá-lo, ele não devesse culpar o metamorfo por não lhe dar a mão.

— Posso te pagar? — Chase perguntou, ainda tentando fazer as pazes. — Diga qual é o seu preço.

— Pode ficar com o seu dinheiro. — Steve se virou para sair, mas, antes que alcançasse a maçaneta da porta, ele se virou. — Na verdade, há uma maneira de você me pagar. Visto que eu salvei a sua vida.

Chase ficou tenso. Agora ele estava arrependido de ter tentado parecer simpático.

— Se esse pagamento envolver de alguma maneira o meu relacionamento com Della, você pode ir para o inferno. E vou ficar feliz em ajudá-lo a chegar lá, se você...

— Dá um tempo! — Steve disse com rispidez. — Não sou ignorante a ponto de acreditar que você conseguiria fazer a cabeça de Della por causa de um acordo entre nós. E eu a respeito o suficiente para nem sequer tentar. Ela vai fazer o que achar melhor. Você não tem controle sobre as decisões dela. E se acha que tem, isso só serve para mostrar que você não a conhece direito.

As palavras e a insinuação de Steve ofenderam Chase.

— Você vai respeitar a decisão dela quando ela me escolher? — perguntou Chase.

— Vou aceitar. Assim como tenho certeza de que você vai respeitar quando ela me escolher.

— Não. — Chase balançou a cabeça. — É aí que eu e você somos diferentes. Eu nunca vou parar de lutar por ela. Você pode acreditar que é porque eu não a respeito, mas acho que é porque eu a amo mais do que você a ama. Porque sei, com cada célula do meu ser, que ela pertence a mim.

Eles olharam um para o outro durante vários segundos, tensos e longos, em seguida Steve se virou para a porta. Foi quando Chase percebeu que o metamorfo não tinha chegado a dizer o que queria em pagamento. E, caramba, ele realmente não gostava de estar em dívida com quem quer que fosse.

— Se o pagamento que você quer não tem nada a ver com Della, então o que é? Não gosto de ficar devendo nada pra ninguém.

Steve deu mais um passo em direção à porta, em seguida virou-se. Resquícios de raiva ainda ardiam nos olhos dele, mostrando a Chase que, independentemente do que o metamorfo queria, ele queria muito, caso contrário já teria ido embora.

— A pomada — disse Steve. — Aquela que o tio de Della inventou. Ele concordaria em revelar a fórmula?

Chase sentiu seus ombros relaxarem.

— Vou perguntar, mas, conhecendo Eddie, se ele achar que vai salvar vidas, vai dizer que sim. Pode demorar um tempo. Pelo menos até esta confusão terminar.

Steve parecia prestes a sair, mas depois falou de novo:

— Você sabe que a sua opinião sobre o tio de Della é bem melhor do que a dela, não é?

— Ela não o conhece — justificou Chase. — Quando isso acontecer, vai concordar comigo.

Steve deu de ombros.

— Pelo bem de Della, espero que você esteja certo.

Quando o metamorfo saiu, Chase murmurou um “obrigado”.

Steve continuou andando, mas Chase ouviu as palavras dele:

— De nada. Mas ainda não vou com a sua cara.

— Perry está se sentindo péssimo — disse Miranda ao se jogar na cama de Della, que tinha voltado da cabana de Chase para ler o arquivo e feito isso várias e várias vezes. Esperava encontrar alguma coisa que ajudasse a livrar o pai da acusação de assassinato. Os passos de Miranda na varanda a tinham acordado de um sono profundo — só para ter de enfrentar os mortos...

Della pôde sentir o frio se aproximando.

— Será que o primo dele contou alguma coisa a Burnett? — perguntou Della, olhando ao redor e esperando que estivesse errada sobre a presença do fantasma.

— Perry disse que Burnett não tinha terminado de falar com ele. Tinha sido chamado para tratar de outro caso.

Della tentou prestar atenção na bruxa, mas era difícil. Ela podia ouvir a senhora Chi na sala de estar. Aqui, gatinho, gatinho.

Socks entrou correndo na sala e pulou na cama.

— O que foi? — Miranda perguntou ao gato, pegando-o no colo.

— Cuidado — advertiu Della —, ele tem garras afiadas.

— Não fale assim dele — disse Miranda. — Só arranhou você porque tinha um cachorro aqui.

— Tem razão — disse Della. — Mas ele com certeza não gosta de fantasmas também.

Os olhos castanhos de Miranda se arregalaram.

— Tem um fantasma... aqui? Agora?

Della queria mentir, para não assustar Miranda, mas ela viu a amiga ficar toda arrepiada, tanto de frio quanto de medo. Então fez que sim com a cabeça.

— Ah, merda... — Miranda colocou o gato no chão.

Gatinho. Gatinho. A voz da senhora Chi ecoou outra vez. O som sobrenatural fez com que o medo causasse um arrepio na espinha de Della.

— É sua tia? — perguntou Miranda, e a respiração da bruxa provocou uma nuvem de vapor.

Um baque soou na sala de estar.

Socks voou do colchão, bateu na parede, deu uma pirueta no ar e correu para debaixo da cama de Della.

Se não fosse morrer de vergonha depois, Della teria seguido o gato.

Outro baque soou e Della voltou a olhar para a porta, bem quando uma bola de basquete cheia de sangue rolou para dentro do quarto.

Então a senhora Chi apareceu, com uma expressão confusa e patética. A culpa afugentou o medo de Della. Ela tinha ficado tão preocupada com Chase e com o arquivo do pai que nem chegara a pensar na vizinha idosa.

O olhar triste da senhora Chi encontrou o de Della. Onde está Chester?

— Este não é Chester.

— Quem é Chester? — perguntou Miranda.

— Um gato — Della respondeu, sem tirar os olhos ou o coração da senhora Chi.

— Seu fantasma é um gato? — Miranda se abraçou para espantar o frio. — Isso está ficando cada vez mais bizarro.

Eles fizeram de novo, disse a senhora Chi.

— Quem fez o que de novo? — perguntou Della.

— Você está falando com um gato morto? — perguntou Miranda.

Machucaram alguém.

— Quem eles machucaram? — Quando o espírito não respondeu, Della formulou outra pergunta. — Você sabe os nomes dos caras que estão fazendo isso? — Della fez sinal para Miranda ficar quieta.

Não. A velha olhou para a bola de basquete. Mas eu mostrei a você.

— O que você me mostrou? — perguntou Della.

Você viu.

— O que eu vi? — Della se levantou. — Não vi o suficiente para poder detê-los.

Você viu, a senhora Chi repetiu e, em seguida, ela e a bola de basquete desapareceram.

Della pegou o celular e ligou para Burnett. A ligação caiu na caixa postal.

— Ligue para mim — Della disse no correio de voz e correu para a porta.

— Onde você está indo? — Miranda perguntou, assustada, pulando da cama.

— Falar com Chase — ela disse, percebendo que não tinham chegado a conversar sobre a visão. Talvez ele tivesse uma ideia do que as palavras da senhora Chi significavam.

— Posso ir junto? — perguntou Miranda. — Não quero ficar aqui com um gato morto. — Então a garota fez uma pausa. — Ou você e Chase pretendem ficar pelados de novo?

— Nós não estávamos pelados — Della rebateu.

— Se eu tivesse chegado alguns minutos depois, vocês estariam.

Della rosnou e quis negar, mas não tinha certeza se a afirmação da amiga era completamente falsa.

— Não havia um gato morto. Apenas uma pessoa... morta... — Então, encolhendo-se com a maneira como isso soou e esperando que a senhora Chi não estivesse ao alcance da sua voz, ela acrescentou: — Uma doce velhinha. — Ela estremeceu mais uma vez. — Talvez não tão velhinha assim.

— Eu ainda assim vou com você. — Miranda se levantou, olhando ao redor do cômodo como se estivesse com medo de que algo pudesse saltar sobre ela. — Por que eu tenho que ficar com duas colegas de alojamento que são ímãs para fantasmas?

— Você apenas tem mais sorte do que o resto — disse Della.

E, pelo jeito, Della era uma sortuda também, porque nesse momento Kylie chegou à cabana e a bruxa decidiu não acompanhá-la.


Capítulo Vinte e Seis

Os passos pesados que golpearam o chão até a porta revelaram a Chase a identidade do seu visitante, antes mesmo que ele captasse seu cheiro.

— Entre — disse Chase, embora duvidasse que Burnett considerasse o convite necessário.

O homem irrompeu na cabana. Chase não perdeu um segundo.

— Você conseguiu arrancar alguma coisa do cara que Stone enviou?

— Que diabos você estava pensando? — Burnett esbravejou.

— Eu não fazia ideia que Stone sabia onde eu estava!

— Não estou falando disso! Estou falando de você ir àquela maldita prisão!

— Estava agindo de acordo com os conselhos que recebi de outro agente.

Burnett se aproximou, os olhos brilhantes de raiva.

— Que agente idiota aconselharia...

— Você! — disse Chase, orgulhoso de si mesmo. — Você me disse que, para encontrar a escória, eu precisava perguntar a outra escória. Os prisioneiros da...

— Eu nunca teria deixado você ir sozinho!

— Sozinho era a única maneira de eu entrar! — Chase tencionou os ombros e recordou a sua única defesa. — De acordo com a regra 26, espera-se que um agente...

— Espera-se que você tenha bom senso para saber quais são os riscos.

— Eu estava consciente dos riscos — defendeu-se Chase.

— Não, você não estava. Você se acha invencível. Na verdade, você é inexperiente e burro!

— Eu só seria burro se não tivesse conseguido nenhuma pista.

— E quem teria nos passado essa pista se você não tivesse saído de lá vivo? — Burnett rosnou.

— Mas saí.

— Acha que eu já não vi isso antes? A primeira agente que me pediu para treiná-la tinha 19 anos. Ela achava que nada poderia atingi-la. Assumiu um risco idiota e foi atrás de um assassino sozinha. Quando cheguei lá, a única coisa que pude fazer foi segurar a mão dela enquanto morria. Ela me deixou com a incumbência de contar à mãe que a filha estava morta. Eu me recuso a ter de contar a outro pai que o filho está morto!

Eu não tenho pais, Chase quase disse, mas se conteve.

— Talvez fosse melhor eu ter contado a você. Tem razão. Foi mal. Mas podemos começar a trabalhar na minha pista agora?

— “Talvez”? — Burnett grunhiu, depois olhou para Chase. — Estamos falando da Fossa do Inferno, não estamos?

Chase assentiu, um pouco surpreso ao ver que Burnett a conhecia.

— Eu pesei os riscos e decidi ir — explicou Chase.

Burnett suspirou.

— Sabe de uma coisa? Eu estava errado. Me desculpe. Quero dizer, saber pesar os riscos é uma habilidade importante, não é?

— Claro — concordou Chase, sentindo que Burnett estava por fim reconhecendo que ele tinha razão.

Burnett assentiu.

— O que você acha de mandarmos Della para lá, confirmar se a pista que você conseguiu é mesmo boa? Vou ligar para ela agora mesmo. — Burnett pegou o celular e começou a digitar um número.

A respiração de Chase ficou presa. Burnett não teria discado o número de Della, disse a si mesmo. Era só encenação.

— Della — disse Burnett. — Estou na cabana de Chase. Você pode nos encontrar aqui em cinco minutos? Precisamos combinar uma coisa.

— Estou a caminho. — A voz de Della soou do outro lado da linha. O sangue de Chase borbulhou de frustração.

Burnett colocou o celular de volta no bolso.

— Eu quero que ela saiba dos riscos que vai correr antes de decidir fazer isso.

Agora Chase já estava trincando os dentes. Em seu coração, sabia que era só o jeito de Burnett mostrar seu ponto de vista. O homem nunca mandaria Della àquela prisão. Chase só queria que a didática de Burnett não fosse tão radical.

Burnett levantou uma sobrancelha.

— O que foi?

Chase engoliu em seco.

— Ok. Foi muito arriscado. Você venceu.

Burnett passou a mão no rosto e depois olhou Chase nos olhos outra vez.

— Eu não quero vencer! Isso não é uma droga de jogo. É vida ou morte. Se neste momento eu achasse que posso ir a UPF e fazer você ser chutado de lá, eu faria isso. Mas, não, é cedo demais, eles só colocariam você sob o comando de outro agente. Então, quando você acabasse morto, eu ficaria remoendo isso, achando que poderia ter salvado seu traseiro se não tivesse te passado adiante.

Burnett se aproximou de Chase, chegando tão perto que ele podia até contar os cílios do agente.

— Mas eu juro por Deus, garoto, que, se você fizer outra burrada dessas, vou encontrar um jeito de fazer você ser expulso da UPF. E não pense nem por um minuto que não estou falando sério. Vou inventar uma merda qualquer sobre você e o Conselho. Vou plantar provas.

Ele colocou o dedo no peito de Chase. Parecia mais um homem expondo seu ponto de vista do que fazendo uma ameaça.

— Porque para mim é muito mais fácil continuar vivendo depois de acabar com a sua carreira do que depois de assistir a sua morte. Está entendendo o que eu estou dizendo?

Chase assentiu.

— Estou. — E por mais assustador que fosse, Chase acreditava que Burnett estava falando sério.

— Ótimo! — Burnett deixou-se cair no sofá. — Agora sente-se aqui e me diga o que você conseguiu com o seu erro idiota.

Chase contou tudo a Burnett. Mesmo o que não queria contar sobre sua suspeita de que alguém do Conselho sabia mais sobre Stone do que estavam dizendo.

— Nunca pensei que Stone pudesse estar de olho em mim. A última coisa que eu queria era trazer problemas para Shadow Falls. Se você acha melhor, posso encontrar outro lugar para ficar.

Burnett pareceu avaliá-lo.

— Não acho que seja necessário neste momento.

— A última coisa que quero é pôr em perigo...

— Se esse garoto, Sam, é tudo que Stone tem na manga, não estou preocupado.

Burnett se inclinou para a frente.

Chase odiava a discordar de Burnett, mas...

— Você pode não estar preocupado, mas o garoto conseguiu entrar. E, por mais que ele não pareça ameaçador, o próximo cara...

— O fato de ele ter conseguido entrar foi erro meu — disse Burnett. — Eu deveria ter verificado assim que as luzes piscaram. Não vou cometer esse erro outra vez. — O homem se inclinou para a frente. — Se eu sentir que sua presença aqui se tornou uma ameaça, vamos voltar a conversar. Até lá, você fica.

O tom de Burnett deixou claro que aquilo era uma ordem. Uma ordem que Chase não achava que o agente tinha o direito de dar.

Della pousou na frente da cabana de Chase. Ela aguçou a audição para ouvir a conversa e entrou. Eles olharam para ela e Burnett fez sinal para que se sentasse.

— De quem, no Conselho, você suspeita? — Burnett perguntou a Chase.

— Eu não tenho certeza, mas talvez possa investigar mais falando com o guarda da prisão. Talvez ele saiba mais do que pensa.

Della não deixou de perceber que Chase relutava em admitir que suspeitava de Kirk.

Burnett franziu a testa.

— Você não volta àquela prisão. Não chega nem perto dela. — Seu tom de voz era mais grave.

— Tudo bem — acatou Chase.

Della não tinha certeza do que estava se passando entre aqueles dois, mas Chase parecia estar jogando limpo.

Bastou um momento de silêncio para a paciência dela se esgotar.

— O que você precisava me falar?

— Vamos começar com uma boa notícia — disse Burnett. — Acabei de falar com o agente que está tentando consertar as coisas para Natasha poder voltar ao mundo humano. Amarramos algumas pontas soltas e agora o desaparecimento dela está associado ao de Liam.

— Então ela vai voltar para casa? — perguntou Della.

— Nós ainda temos algumas coisas para acertar, mas sim. — Ele fez uma pausa. — Agora a má notícia. Houve outro assassinato. Estamos supondo que sejam os mesmos assassinos dos Chi e dos jovens. Um casal, de vinte e poucos anos, foi encontrado num outro parque, a pouco mais de um quilômetro dos outros crimes.

Della assentiu.

— A senhora Chi apareceu para mim há cerca de quinze minutos e me disse que eles tinham ferido outras pessoas. Eu liguei pra você.

— Eu estava a caminho de Shadow Falls. — Ele hesitou. — Ela disse algo que possa nos ajudar a pegá-los?

— Não. Mas ela ainda estava com a bola de basquete. Você mandou um agente investigar na quadra de basquete do parque?

— Mandei. Ninguém apareceu.

— Existe alguma quadra de basquete no outro parque?

— Eu acho que sim — disse Burnett. — Vou colocar alguém lá para checar. E verei a possibilidade de colocar outros agentes em parques próximos que tenham quadras de basquete.

— Eu ficaria feliz em fazer isso — disse Chase.

Burnett fez que não com a cabeça.

— Você resgatou Della, eles podem te reconhecer. Além disso, o médico disse que você precisa ir mais devagar hoje.

Della lembrou-se da razão pela qual tinha ido até ali.

— A senhora Chi disse algo... algo que me levou a acreditar que ela acha que eu não captei alguma coisa na visão. Como Chase estava na visão também, pensei que, se compararmos nossas lembranças, talvez possamos descobrir alguma coisa.

— Vocês deveriam ter feito isso logo depois da visão — disse Burnett.

— Não deu. Aconteceram outras coisas... — disse Chase.

Mudando de assunto, Della perguntou:

— As autópsias ficaram prontas?

— As do senhor e da senhora Chi, sim, mas não as dos jovens lobisomens. — Burnett hesitou. — Sem dúvida um crime praticado por lobisomens. Algumas marcas de mordida, mas nada que os identifique. Portanto, nenhuma prova para ajudar a capturar os assassinos. Eles estão fazendo testes de DNA, mas, a menos que os assassinos já tenham sido presos pela UPF, isso não vai ajudar.

— Então, eles vão se safar da acusação de assassinato? — Della perguntou, a frustração crescendo, não apenas por conhecer os Chi, mas por saber que os assassinos estavam perto da casa dos pais — perto da sua irmã, que provavelmente frequentava os parques onde os assassinatos tinham acontecido.

— Não se eu puder evitar — disse Burnett. — A mesma perita que fez a autópsia dos Chi está fazendo a dos jovens lobisomens. Ela vai me ligar assim que terminar.

Inclinando-se para a frente, Burnett colocou as palmas das mãos nos joelhos.

— Holiday me disse que trouxeram os arquivos da promotoria. Ainda não tive a oportunidade de analisá-los. Vocês encontraram alguma coisa que possa ajudar?

O coração de Della disparou com a pergunta. Ela odiava dizer aquilo em voz alta.

— Ajudar, não. Prejudicar, sim. — Ela respirou fundo. — Foi meu pai que ligou para o serviço de emergência. O promotor anotou que a história dele agora é outra, porque ele está alegando que ficou inconsciente o tempo todo.

Burnett franziu a testa.

— Pelo menos o advogado dele está a par disso agora.

Chase se inclinou.

— Foi uma experiência muito traumática. As pessoas bloqueiam as coisas. Acho que qualquer juiz vai entender que a situação pode ter afetado a memória dele.

As emoções de Della nublavam sua capacidade de ouvir coisas positivas.

— Mas essa não é a imagem que eles estão tentando pintar. Eles vão dizer que ele matou a irmã e depois perdeu a cabeça. — O que tornava tudo mais difícil era no que a própria irmã dele acreditava.

Burnett pareceu ler a mente de Della ou pelo menos o rumo dos seus pensamentos.

— Holiday está preocupada que o fantasma possa...

— Não! — contestou Della. — Eu não vou deixar Holiday mandá-la embora ou afugentá-la. — Ela olhou para Chase, rezando para que ele não se intrometesse na conversa e pusesse mais lenha na fogueira. Ele não abriu a boca, mas seu olhar dizia que era justamente isso que queria fazer.

Ela engoliu a necessidade de ceder às lágrimas e encarou Burnett.

— Você não conseguiu um juiz amigável ainda?

— Ainda não — disse Burnett. — Mas estamos tentando. Desistir de ter esperança não vai ajudar.

— Eu não estou desistindo. Só estou preocupada.

— Conseguimos a pista do Douglas Stone. E agora temos este primo de Perry — disse Chase, para consolá-la.

Della olhou para Burnett.

— Sam contou alguma coisa?

— Eu tive que interromper o interrogatório para ir à cena do crime. Vou deixá-lo cozinhando por um tempo. — Burnett juntou as mãos e olhou para baixo. Ela conhecia aquele olhar. Ele tinha algo mais a dizer e com certeza não era bom.

— Mais alguma coisa? — Os músculos do seu estômago enrijeceram a ponto de doer.


Capítulo Vinte e Sete

— Recebi um telefonema do nosso infiltrado no escritório do promotor — disse Burnett. — Eles marcaram a data do julgamento. É daqui a duas semanas.

— Nós temos duas semanas para provar que meu pai é inocente? — A voz de Della fraquejou. — Nunca vamos conseguir.

— Sim, nós vamos — afirmou Chase.

— Escute o que ele diz — disse Burnett. — Tudo o que precisamos é de uma pista.

Burnett pegou seu celular para verificar a hora.

— Por que vocês dois não repassam a visão? Em cerca de uma hora... — ele olhou para Chase — se quiserem, vocês dois podem vir me ajudar a interrogar Sam.

— Vou estar aqui — afirmou Chase. — Amanhã, além de procurar a namorada de Stone, também gostaria de começar revisitando os Douglas Stone suspeitos, me concentrando naqueles que já visitei.

— Mas eu pensei que você não tinha conseguido nada com eles — disse Burnett.

— Não consegui, mas, como Pope ressaltou, Stone disse que eu estava procurando nos lugares errados.

— Alguma dessas pessoas com quem você falou eram vampiros ou sobrenaturais? — perguntou Burnett.

— Não.

— Então, como Stone ficou sabendo que você estava fazendo perguntas por aí?

— Eu não sei, mas meus instintos me dizem que ele sabia.

Burnett suspirou.

— Então acho melhor você seguir os seus instintos.

Della sentou-se um pouco mais ereta.

— Eu gostaria de ir com ele.

— Você tem aula — disse Burnett.

— Eu poderia perder um dia ou dois. Droga, eu poderia faltar duas semanas.

Burnett franziu a testa.

— Você não pode...

— O que eu vou perder? Aulas sobre política russa, descobrir o que a droga do x é para o y e tentar decifrar o tema de Orgulho e Preconceito? Nós estamos correndo contra o tempo. Isso pode significar a vida do meu pai! — Desta vez, lágrimas encheram seus olhos.

Burnett olhou para Chase, quase como se buscasse o consentimento dele. Mas que inferno? Ela com certeza não precisava da permissão de Chase.

— Eu a protejo — disse Chase.

— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Della. — Me dá licença que eu vou ali arranjar um pênis, para que o gênero “uma linguiça e duas almôndegas” pare de pensar que eu preciso de um homem para me proteger.

Tanto Chase quanto Burnett pareceram surpresos com a reação dela, ou talvez tenha sido a descrição dela dos órgãos genitais masculinos, mas o que eles esperavam?

Burnett pigarreou.

— O que importa é que estejam seguros. Se qualquer um dos dois sentir que estão em perigo, quero que recuem e me liguem.

Chase assentiu.

Burnett se levantou.

— Agora repassem a visão e me encontrem no escritório daqui uma hora. — Burnett saiu e, dali a um minuto, Chase começou a rir.

— Uma salsicha e duas almôndegas?

Eles passaram trinta minutos contando a visão um para o outro. O que não os levou a lugar nenhum. Chase não disse nada de que Della não se lembrasse. Frustrada, e sentindo como se o tempo estivesse se esgotando, ela se levantou e se dirigiu para a porta.

— Della? — chamou Chase, tentando impedi-la.

— Encontro você no escritório.

— Aonde você está indo? — ele perguntou já ao lado dela.

— Preciso pensar — respondeu, abrupta.

Ele colocou os braços ao redor da cintura dela. E ela deixou. Mas, quando sentiu que estava prestes a começar a chorar, afastou-se e disparou para fora.

Ela correu. Uma vez. Duas vezes. Circulou por todo o terreno de Shadow Falls, na esperança de controlar algumas de suas emoções. Não adiantou, mas pelo menos ela já não corria o risco de chorar.

Chegou ao escritório de Burnett alguns minutos mais cedo. Perry esperava do lado de fora.

Como não tinha falado com ele desde que ele voltara, Della ofereceu um rápido “Bom regresso”.

Perry deu de ombros.

— Que belo regresso eu tive! — Ele franziu a testa. Ela teve o palpite de que ele estava se referindo ao primo.

— Você vai conosco falar com ele? — perguntou Della.

Ele assentiu.

— Talvez eu possa colocar algum juízo na cabeça dele desta vez — disse o metamorfo. Fazendo uma pausa, ele olhou para baixo e depois acrescentou: — Sinto muito. Você sabe que eu não o via fazia mais de doze anos. Eu não tinha conhecimento de nada disso.

Della reconheceu a culpa nos olhos de Perry.

— Eu sei. Ninguém está te culpando.

Ele enfiou as mãos nos bolsos do jeans.

— Ainda assim eu me sinto mal. Mas... — Ele fez uma pausa. — Não acho que Sam seja um cara ruim. Acho que ele está com medo, e não apenas de Burnett, mas do tal Stone.

— Talvez ele devesse ter pensado nisso antes de ir trabalhar para o cara. — Ela no mesmo instante lamentou a aspereza em sua voz e recordou como se sentia com relação a Chan, seu primo. Ele era praticamente um delinquente, mas ela ainda assim o amava. A morte dele continuava a assombrá-la.

— Verdade — Perry disse, e ficou quieto.

— Ele ainda é seu primo. Isso não vai mudar.

Perry suspirou.

— Eu sei. E é... esquisito. Vê-lo. Foi muito estranho, como eu o reconheci no mesmo instante. Nunca pensei que fosse alguém da minha família.

Miranda tinha confidenciado a Della que Perry fora abandonado quando pequeno. Sem dúvida aquilo tinha sido uma punhalada. A única coisa pior do que isso era ser abandonada pela família aos 17 anos... Mas aquele não era o momento de pensar nos problemas dela.

— Isso deve ser uma barra — disse Della.

— Pode apostar. — Perry olhou para o bosque. — Ele sabe onde minha mãe e meu pai estão.

Della percebeu as emoções dele, mas não soube o que dizer.

— Você vai atrás deles?

Perry deu de ombros outra vez.

— Não sei. Eles com certeza não me quiseram no passado. Por que iriam querer agora?

Ela sentiu a emoção se agitar dentro dele. Ela não podia dizer que ele tinha lágrimas nos olhos, mas os olhos do metamorfo pareciam mais brilhantes.

— Estou melhor assim — disse Perry, parecendo irritado. — Por que eu iria querer vê-los? Não estou nem aí com eles!

Ela ouviu o coração dele entoar a melodia da mentira. Ela sabia tudo sobre gostar de alguém que não retribuía esse sentimento. Deu nele uma cutucada com o cotovelo.

— Você pode querer vê-los só porque está curioso. Ou talvez porque queira que eles saibam que estavam errados a seu respeito. Que você cresceu e se tornou alguém que teria sido motivo de orgulho. — Ela suspirou. — Ou talvez você só queira dizer uns desaforos, mostrar o dedo para eles e depois virar as costas. Não que você tenha que fazer isso. Mas poderia.

Perry sorriu, mas, quando seu olhar encontrou o dela novamente, Della viu lágrimas cintilando em seus olhos.

— Obrigado — disse ele.

— Pelo quê? — perguntou Della.

— Não sei. Ouvir, talvez. Dizer a coisa certa.

Ela franziu a testa.

— Eu sou bem ruim nisso.

— Que nada! — disse Perry. — Na verdade, não é tão ruim assim.

— Sabe quem é muito boa nisso? — ela disse.

— Quem? Miranda? — ele perguntou.

— Hmm, não, eu ia dizer Kylie. Ela é um pouco como Holiday. Diz toda aquela porcaria que você não quer ouvir, mas você sabe que ela está certa e, apesar de não gostar, precisa ouvir. Mas eu aposto que Miranda é boa nisso também.

Ele balançou a cabeça.

— Bem que eu gostaria de conversar com Miranda. Ela ainda está bancando a durona comigo. — Arrastando os pés, ele olhou para o céu. Quase cinco da tarde, o sol era uma grande bola amarela.

— Você sabe se Miranda está saindo com aquele agente da UPF?

O que ela podia dizer? Sim, ela saiu com ele semana passada e queria beijá-lo.

Merda. Merda. Merda. Della não queria ficar no meio daquilo. Mas de certa maneira ela estava. Bem no meio. Pior, ela era a causa de tudo aquilo.

Pela primeira vez, Della se sentia culpada por incentivar a amiga a dar uma chance ao bruxo. Perry passaria a odiá-la se soubesse.

Mas, na época, o metamorfo tinha praticamente chutado Miranda. E por mais que Perry fosse um bom amigo, Miranda era muito mais.

— Ela está? — Perry perguntou outra vez.

— Eu... — Por ser um metamorfo, Perry não podia saber que ela estava mentindo, mas mentir para alguém de quem ela gostava lhe dava dor de estômago. Mas, droga, era justamente por isso que ela não gostava de ouvir confidências nem ser o ombro amigo de ninguém!

Logo em seguida, Burnett aterrissou na varanda. Salva pelo vampiro. Della respirou aliviada. Era um alívio temporário, mas naquele momento ela agradeceu.

— Onde está Chase? — perguntou Burnett.

— Aqui — disse Chase, chegando.

— Então vamos conseguir algumas respostas.

Todos entraram na sala de observação, com a parede de espelho. Através dele, Della viu Sam sentado à mesa, parecendo perdido e assustado. Antes que qualquer um falasse com Sam, eles iriam esperar a chegada de outra agente, que tinha interrogado Sam rapidamente. Ela não tinha chegado ainda.

Outro agente enfiou a cabeça para dentro da sala.

— Se ele — o homem apontou para Chase — está trabalhando neste caso, você precisa fazê-lo assinar o contrato agora.

— Vamos acabar logo com isso. — Burnett levou Chase para fora da sala, deixando Della com Perry. Antes que a porta se fechasse, Shawn — o Shawn de Miranda — passou pela porta.

Depois de olhar para o primo por alguns segundos, Perry começou a andar em direção à porta.

— Eu já volto — ele disse. Perry já estava com um dos pés do lado de fora da porta quando Della percebeu o que ele poderia estar prestes a fazer.

— Ei! — chamou ela.

Ele olhou para trás.

— O que foi?

— Não vá arranjar problemas.

— Eu não vou — disse Perry. — Só preciso de um pouco de ar.

— Tem muito ar aqui dentro.

— Só um instante. — Ele saiu.

Della ficou sozinha na sala, então olhou para o primo de Perry.

A porta se abriu, levando-a a perceber que a sala era à prova de som. Ela não estava conseguindo ouvir nada que estivesse acontecendo do lado de fora daquelas paredes. Ela olhou para trás, esperando que Chase ou Burnett aparecessem, mas uma mulher, jovem, apenas alguns anos mais velha do que Della, entrou na sala. Seu terninho preto identificava-a como uma agente. Della, por hábito, checou a testa dela e notou que era metade vampira e metade fae.

— Ah, oi, pensei que Burnett estivesse aqui — disse ela.

— Ele foi assinar alguns papéis com Chase Tallman — Della respondeu.

— Sou Trisha.

— Sou Della...

— Eu sei quem você é — disse a garota.

Della a estudou.

— A gente se conhece?

— Não. Acabei de ouvir sobre você. Que está pensando em trabalhar com a gente.

— Foi Burnett quem disse? — Della sentiu uma ponta de orgulho.

Trisha confirmou.

— Não acredite em metade do que ele diz — disse Della.

— Ah, ele só disse coisas boas a seu respeito. Disse o suficiente para que eu ficasse com pena de você.

— Pena de mim? — Della se encolheu. Que diabos Burnett teria dito à moça? Algo sobre os seus pais?

— Quer dizer, eu me expressei mal. Quis dizer que ouvi o suficiente para saber o que você está tendo de enfrentar.

Della ainda não tinha entendido e sua expressão parecia mostrar isso, porque Trisha continuou:

— Quando vim trabalhar aqui, recebia ordens de Burnett. — Ela sorriu. — Tive que pedir transferência.

— Ah, você está se referindo ao fato de Burnett ser um porco-chauvinista?

A garota sorriu.

— Isso pode soar um pouco forte.

— Não, não é — disse Della. — Eu digo isso a ele o tempo todo.

Trisha riu.

— Parece que Burnett encontrou alguém à altura dele. Mas, quando você estiver aqui, se quiser que eu treine você, ficarei honrada.

— Obrigada — agradeceu Della. Ela não tinha pensado ainda no período de treinamento para se tornar agente, e por alguma razão isso lhe causou um arrepio de expectativa. Como se essa parte da sua vida estivesse mais próxima do que ela pensava. Com todos os problemas recentes, ela quase tinha se esquecido de toda empolgação que a expectativa de ser agente lhe causava.

Ela voltou a olhar para Trisha, que parecia estar esperando que Della dissesse alguma coisa.

— Mas eu com certeza vou continuar com Burnett. Ele é um pé no saco, mas eu posso ser também. Então formamos uma bela dupla.

A agente riu.

— Bem, parece que vocês dois se dão bem. Para ser sincera, eu me arrependi da minha decisão de pedir transferência. Ele é um bom agente.

— Então os outros agentes aqui não são tão superprotetores?

— Bem, todos eles têm um pouco de testosterona demais, só não tanto quanto ele. Mas depois de conhecê-la, acho que você tem estrogênio suficiente para colocá-los em seus lugares.

De repente, na outra sala, Sam levantou-se e bateu com força na porta.

— Vocês vão me deixar aqui o dia todo?!

Della e Trisha olharam para o garoto através do espelho bidirecional.

— Ele já parece bem frustrado para começar a falar. Burnett me pediu para dar uma amaciada nele mais cedo, mas o cara não estava respondendo a nenhuma pergunta.

— Ele tem que falar — insistiu Della, pensando no pai e no tempo que escoava rápido. Em duas semanas ele poderia ser enviado para a prisão.

— Eu li o garoto quando estava lá — disse a agente, e Della supôs que ela estava se referindo à sua capacidade fae de ler as emoções. — Ele não é ruim, só está com medo. Mas vivemos todos com medo, não é?

— Sim. — A garota devia ter lido as emoções de Della. Mas será que podia ler o suficiente para saber que a vampira não estava com medo por si mesma, mas apenas pelo pai?

Duas semanas.


Capítulo Vinte e Oito

— Basta entrar e falar com franqueza — Burnett disse a Perry.

Chase ficou ao lado de Burnett, enquanto o agente falava com o metamorfo.

— O que vamos fazer? Usar aquela velha tática de interrogatório? Eu sou simpático, enquanto vocês dois dão porrada nele? — perguntou Perry.

Chase ouviu a preocupação na voz de Perry, e, sem dúvida, Burnett também.

— Não vamos tratá-lo com brutalidade... ainda — disse Burnett. — E se ele falar, vamos facilitar as coisas para ele.

Chase não tinha certeza se concordava com isso, mas não achava que tivesse o direito de discordar.

— Ok — Perry acenou para Chase. Mas o aceno rápido de cabeça não tinha nenhuma pretensão amigável. Na visão de Chase, Perry devia ser amigo de Steve.

— Vá com Trisha. — Burnett fez sinal para a agente, que começou a sair da sala. — Ela vai te mostrar o caminho.

— Parabéns pela contratação! — disse Trisha, encontrando o olhar de Chase.

— Obrigado. — Chase apertou a mão da agente, um verdadeiro sentimento de orgulho enchendo seu peito. Ele tinha assinado os papéis. Agora era oficial. Chase Tallman era um agente da UPF. Até ganharia um crachá e dois ternos pretos. Não que Chase quisesse usá-los. Mas o crachá, sim, ele gostava da ideia de usá-lo. Era bom... pertencer a um lugar.

Claro, ele tinha pertencido ao Conselho, mas havia sido muito mais uma decisão de Eddie do que dele. Agora, sim, tinha sido decisão dele. Aquele era, Chase constatou, seu primeiro emprego de verdade.

Não que precisasse de dinheiro. Seus pais haviam deixado tanto dinheiro que ele nem sabia o que fazer com ele. Mas, pensando bem, aquele não era apenas um trabalho. Era uma carreira. Era algo que provavelmente definiria a sua vida a partir dali até o dia em que estivesse pronto para se aposentar.

Não tinha sido nada parecido com uma cerimônia, mas de certa forma era assim que ele via. Parte dele desejava que Della tivesse estado lá. Porque ela deveria estar presente. Suas vidas estavam ligadas.

Ele se lembrou da conversa com Steve e aquela que tivera com Della um pouco antes. Você ainda tem uma escolha. Ele não tinha mentido para ela, Della tinha uma escolha de fato, mas, caramba, era quase sua missão de vida garantir que ela o escolheria.

— Bem-vindo à equipe! — cumprimentou-o outro agente.

Chase acenou com a cabeça, mas percebeu que a única pessoa que não o tinha felicitado era a que andava ao seu lado agora: Burnett.

Será que ele ainda estava pensando na conversa sobre a sua ida à Fossa do Inferno? A conversa ainda estava na cabeça de Chase, também. Por mais que ele odiasse admitir, Burnett tinha razão. Chase se sentia invencível. Ninguém tinha ficado mais chocado do que ele quando sentiu aquela faca improvisada cravada em suas costas. Se não fosse o fantasma, Chase não tinha certeza se teria conseguido sair dali vivo.

— Estou planejando deixar você orgulhoso — disse Chase a Burnett.

— Faça isso permanecendo vivo — disse Burnett, confirmando que Chase estava certo sobre os pensamentos do homem.

— Pode deixar — respondeu Chase, enquanto caminhavam de volta para a sala onde tinham deixado Della.

Della, com o celular no ouvido, olhou para eles e em seguida para baixo, enquanto levantava um dedo.

— Sim. Não devo chegar muito atrasada. Vou dar uma passadinha aí.

Chase sintonizou o ouvido, esperando ouvir com quem Della tinha feito planos e temendo que fosse com o bom médico, Steve.

— Ótimo! — respondeu uma voz feminina. — Traga Chase com você.

Ele reconheceu a voz da prima de Della. Chase gostava de Natasha e do namorado dela, Liam. E se lembrando do tratamento frio que recebera de Perry, ficou feliz por saber que tinha amigos.

Della olhou para ele. Ele fez que sim com a cabeça, para avisá-la de que ele aceitava o convite, mas ela só disse:

— Vamos ver.

Que diabos?

— Olha, é melhor eu desligar agora — continuou Della. — Vejo vocês daqui a pouco. Ah, e como eu disse, fiquei feliz que as coisas deram certo.

— Eu também — disse Natasha. — Não se esqueça de passar aqui. Mal posso esperar para te ver.

— Até já. — Della desligou.

— Você está pronto para fazer isso? — Della acenou para Sam atrás da janela.

— Perry vai primeiro — disse Burnett. — Depois Chase e eu.

— Eu não?

— Acho que não vai ser preciso — disse Burnett.

Chase viu Della se encolher, mas ela tentou reprimir a frustração. Estava sempre fazendo isso. Exceto com ele. Ela não se controlava quando estava com ele. Pelo menos não quando estava com raiva.

— Perry foi tomar ar — disse Della.

— Acabei de encontrá-lo no corredor. — Burnett fez uma pausa e olhou para trás, na direção de Chase. — Enquanto isso, o senhor Tallman tornava a coisa oficial. Ele é um agente. Conseguiu seu distintivo, ternos e tudo mais.

Della sorriu para Chase e pareceu um sorriso genuíno — o tipo de sorriso que chegava aos olhos e os deixava um pouco mais brilhantes. Ele queria ver aquilo muitas outras vezes. Vê-la feliz, despreocupada.

E ele veria, seus instintos lhe diziam. Assim que os problemas com o pai dela fossem resolvidos.

— Parabéns, senhor Tallman! — disse Della, a voz soando sincera.

— Obrigado. — Se Burnett não estivesse no cômodo, Chase teria se aproximado para lhe dar um beijo, porque ele tinha aprendido que, sempre que ela se permitia sorrir, isso significava que estava de guarda baixa. E só assim ela deixava que ele chegasse perto.

O que ele não daria para que ela vivesse de guarda baixa! Embora soubesse que precisava ser paciente, não podia negar sua crescente frustração.

— É uma sensação agradável — disse ele, estendendo o braço e esperando que um aperto de mão refreasse o seu desejo por um beijo.

Parecia que ela não ia aceitar o cumprimento quando ele viu que a guarda de Della tinha voltado a subir. Mas ela mesmo assim deu a mão a ele. Chase aproveitou o momento e passou o polegar pelos dedos de Della, esperando que ela sentisse aquela mesma fagulha maravilhosa que ele sentia. Tocá-la era como espetar o dedo numa tomada. Nada o fazia se sentir mais vivo.

Rapidamente ela retirou a mão e, pela maneira como seus olhos se arregalaram, ele soube que ela tinha sentido a mesma eletricidade. Então, pelo amor de Deus, por que tinha que lutar contra ele?

Em seguida, através do espelho, Chase viu Perry entrar e se sentar em frente ao primo, Sam. Os dois se pareciam tanto que poderiam se passar por irmãos.

— Enviaram você aqui para me amolecer primeiro? — perguntou Sam.

— Talvez — disse Perry. — Olha, você tem que dizer a eles o que sabe, senão vai comer o pão que o diabo amassou.

— Eu não fiz nada além de invadir aquela escola. Isso vai fazer com que eu seja condenado pelo resto da vida? — O sarcasmo exalava da voz do metamorfo.

— Você não entendeu ainda? — perguntou Perry, os olhos adquirindo um tom dourado. — Você estava ajudando aquele cara, Stone, e isso significa que vai ser cúmplice de tudo o que ele fez. E pelo que eu ouvi dizer, ele é um assassino.

— Espera aí, mas eu não machuquei ninguém. E, eu sei, ele é um cara da pesada. Se eu der com a língua nos dentes, vai vir atrás de mim.

— Então diga a eles o que querem saber e deixe que peguem o cara. Se você for para a cadeia, sabe que esse cara vai pensar que você abriu o bico e o dedurou. Se ele é tão barra-pesada quanto você diz, tem amigos da pior espécie. Ele vai mandar te matar. Você quer morrer?

Graças a Perry, Chase e Burnett levaram apenas alguns minutos para fazer o metamorfo dar a ficha toda de Stone.

— Eu conheci o cara no Get-Along Bar. Um lugar conhecido por ser ponto de encontro de mestiços como eu. Ele era vampiro, mas tinha um padrão meio estranho... era mistura de outra raça também. Disse que seu nome era Michael Higby, mas alguém me disse que ele também usava o nome Stone. Ouvi dizer que ele contratou um monte de clientes do bar que estavam numa pior para fazer trabalho pesado para ele. Foi assim que cheguei aqui. Mas correm boatos de que ele tem uma gangue chamada Bastardos.

— Que tipo de gangue é? — perguntou Burnett.

— Não sei. Como eu disse, ele era... vampiro... Em sua maior parte, pelo menos. Ele se aproximou de mim e disse que precisava de um metamorfo para invadir uma escola. Eu iria espionar um... — Ele olhou para Chase. — Você. Ele queria saber o que você estava fazendo naquela escola. Não parecia nada ilegal. Achei que você fosse como um filho desaparecido ou algo assim. Eu só estava tentando reunir uma família, sabe?

— Mas que história mais tocante... — disse Chase, não parecendo nada tocado.

— Como é a aparência desse cara?

— Ele tem em torno de 40 anos. Mais de 1,80 m. Anda sempre na maior estica. Tem o cabelo castanho e, como eu disse, tem esse padrão que é só um pouco diferente. — O metamorfo suspirou. — Isso é tudo que eu sei, então posso me mandar agora?

— Hmm, ainda não — disse Chase.

Sam franziu a testa.

— Mas eu não fiz nada. Quer dizer, tudo bem, eu invadi a escola, mas foi Higby ou Stone ou seja como for que vocês queiram chamá-lo que tramou tudo. Tudo o que eu fiz foi voar por cima da cerca, quando ele me disse para fazer isso.

— E como é que você desligou a nossa eletricidade? — perguntou Burnett.

— Ele mandou um dos caras que trabalham para ele fazer algo nos postes do lado de fora da escola. Eu... não feri ninguém.

— Que informações você deu a ele? — perguntou Chase.

— Nenhuma — disse o garoto.

Chase e Burnett olharam para ele como se não acreditassem.

— Eu não passei nada. Juro. Podem verificar o meu telefone. Eu ia passar, mas fui desviado por aquela garota. Então vi meu primo que havia muito tempo tinha perdido de vista.

— Que garota? — perguntou Burnett. — Alguém entrou com você?

— Não, a que estava lá. De cabelo preto, vampira. Com uma bela bunda.

Chase soltou um grunhido.

O garoto deu a eles um número de telefone e o endereço do bar.

— E agora? — perguntou Sam. — Posso ir?

— Ainda não — disse Burnett. — Estou enviando um retratista para fazer um esboço. Então acho que vamos mantê-lo aqui por alguns dias.

— Mas eu disse a vocês tudo que eu sabia — protestou Sam.

— Sim — concordou Burnett —, mas podemos precisar de você para nos ajudar a prendê-lo.

— Eu não concordo com isso.

— Você não parece gostar da ideia de ficar na prisão, também — Burnett disse.

Sam franziu a testa.

— Eu poderia muito bem estar na prisão. Por que você não me deixa voltar para aquela escola? Tem uma paisagem melhor. — Ele sorriu. — Principalmente aquela gostosa. O nome dela é Delia ou algo assim?

— Você vai ficar aqui — sentenciou Chase.

Burnett andou até Sam e estendeu a mão.

— O que quer? — disse o garoto.

— Seu celular — disse Burnett.

— Você vai devolver? — perguntou Sam.

Burnett não respondeu, e ele e Chase saíram. O vampiro mais velho parou e digitou algo em seu telefone como se enviasse uma mensagem.

Ele olhou para Chase.

— Você já ouviu falar dessa gangue, os Bastardos?

— Nunca — disse Chase. — E você?

— Não, o que é estranho, porque conhecemos todas as gangues que estão circulando por aí. Mas vou consultar alguns informantes e ver se temos alguma gangue nova na cidade.

Outro agente se encontrou com eles no corredor. Burnett entregou-lhe o celular de Sam.

— Me mande uma mensagem assim que descobrir alguma coisa.

— Talvez seja só um jeito que Stone usou para impressionar o garoto — disse Chase, vendo o agente com o celular se afastando apressado para cumprir sua missão.

— Espero que sim.

— Como eu disse, eu poderia deixar Shadow Falls e diminuir a chance de...

— Ainda não. — O celular de Burnett anunciou a chegada de uma mensagem. Depois de checá-la, ele olhou para Chase. — Preparado?

— Sim. — Chase seguiu Burnett pelo corredor. — Você quer que eu verifique o bar?

— Não — disse Burnett. — Ele conhece você. Já tenho dois agentes a caminho de lá. Nós vamos ao necrotério.

Os passos de Chase vacilaram e uma fina camada de suor se formou em sua testa. Merda! Nem quinze minutos depois de assinar seu contrato, ele já se perguntava se seria cedo demais para pedir demissão.

— Estamos indo ao bar? — perguntou Della quando Burnett voltou para a sala. Pelo que Della sabia, era a melhor pista que eles tinham para chegar a Stone.

— Não, mandei Trisha e Shawn para lá — disse Burnett.

— Mas...

— Não! — repetiu Burnett. — E antes que você pergunte, já tenho dois agentes verificando o número de telefone. Enquanto isso, terminaram a autópsia dos três lobisomens. Perry vai ficar aqui. Acho bom nós três irmos para lá.

— Por que não vou ver se consigo encontrar alguma informação sobre a gangue dos Bastardos? — ofereceu Chase.

— Já mandei um agente fazer isso também — disse Burnett. — E estou pegando leve com você agora. Depois que voltarmos do necrotério, você pode ir com Della ver Natasha.

Della observou a carranca de Chase.

— Ele não tem que vir comigo — contestou Della.

— É lua cheia — disse Burnett. — Ninguém sai sozinho.

Depois de um rápido trajeto, Della entrou no necrotério com Chase e Burnett. Passaram pela recepção e por um corredor branco que tinha a aparência e o cheiro de um ambiente totalmente esterilizado. Ele abriu uma pesada porta e entrou em outra sala. Bem mais fria.

Uma mulher de avental branco estava na sala digitando num computador. Ela olhou para trás e Della viu seu padrão de bruxa. Burnett fez apresentações rápidas e todos se cumprimentaram com a cabeça.

— Diga que tem algo para mim — disse Burnett.

— Eu tenho. — Ela sorriu. — Alguns fios de cabelo. Já mandei analisar. Com certeza são de lobisomem, e algumas marcas de mordida podem servir como prova também. Acabei de enviá-las para análise. — Ela fez sinal para Burnett chegar mais perto.

Della não o seguiu. Em vez disso, ficou onde estava e deu uma olhada mais atenta na sala. Atrás da mulher havia três mesas, onde podia-se deduzir que estavam os três jovens lobisomens. Os corpos estavam cobertos com lençóis brancos.

As formas dos corpos fez Della se lembrar de quando viu o corpo do primo dentro de um saco preto, antes ser baixado na sepultura. Ou seria o cheiro, ela se perguntou, que lhe trazia aquela lembrança? Será que o corpo de Chan e aquele saco preto tinham o mesmo cheiro do necrotério?

Ela inspirou, tentando afastar o frio, o cheiro e a dor. Então, como sempre, o peito se agitou com a culpa por ter superado a maior parte da dor.

Ela ouviu Chase se mover e parar ao seu lado direito. Quando fitou seu rosto, quase engasgou. A pele dele estava da cor dos lençóis. Embora fosse bom saber que ela não era a única a se sentir vulnerável, ficou surpresa. Chase tinha trabalhado com o Conselho por quase dois anos; com certeza já tinha visto a morte de perto antes.

— Nós vamos esperar lá fora — Della falou e pegou o braço de Chase antes de dar a Burnett chance de responder.

Chase resistiu apenas por um segundo, então saiu com ela.

— Novo nesse tipo de trabalho, hein? — Ela ouviu a mulher dizer antes de a porta se fechar.

Della parou no corredor. Chase afastou-se e nem sequer olhou para ela. Ele se encostou na parede branca e fechou os olhos.

— Você está bem? — perguntou ela.

— Tudo bem — ele disse, o tom de voz tão frio quanto o ar da sala em que estavam.

— Tem certeza? — perguntou ela quando ele não abriu os olhos.

— Eu disse que estou bem — Chase respondeu, impaciente.

— Mas você parece...

— Mas que droga! Será que pode só me dar um tempo! — Ele se afastou da parede e começou a andar.

Ela ficou ali por alguns segundos, tentando decidir se ficava irritada com a reação dele ou preocupada. A preocupação ganhou e ela disparou atrás de Chase.

Ela o encontrou encostado no carro de Burnett.

A noite tinha afugentado cada lasca de cor do céu, mas a lua cheia brilhava em toda a sua plenitude, dando ao estacionamento um brilho quase prateado.

Ele a viu e Della o ouviu murmurar um palavrão, deixando claro que ela não era bem-vinda. Ela não deu a mínima e continuou caminhando na direção dele.


Capítulo Vinte e Nove

Ela estava a ponto de xingá-lo também, quando viu sua expressão ao chegar mais perto. Dor, tristeza, culpa. Emoções que ela mesma tinha acabado de tentar afastar também.

Então ela resistiu e não fez nenhum dos seus comentários sarcásticos. Seus passos soavam muito altos. Ela se encostou no carro ao lado dele. Seu braço quase o tocou. A escuridão fria os cercava e a temperatura morna do corpo dele chegou até ela.

Por vários segundos nenhum dos dois falou. Mas, por mais incrível que pudesse ser, ela podia sentir a dor que exalava dele.

— Isso me lembrou Chan — disse Della, achando que, se ela se abrisse, talvez ele fizesse o mesmo.

Ele balançou a cabeça e ela o sentiu transferir o peso para a outra perna.

— Eu sou um idiota — ele disse, deixando transparecer um resquício de raiva na voz.

— Pois é. — Ela esperou que ele explicasse.

Mas Chase não explicou. Não tinha que explicar, ela disse a si mesma. Ela também não gostava de ficar se abrindo com ninguém.

Mas Della queria que ele se abrisse com ela. E ao mesmo tempo que queria, isso a assustava. Porque a lembrava de quanto as coisas entre eles tinham ficado confusas, indefinidas. Ela se importava com ele, mas não queria se importar. Confiava, mas não cem por cento.

Chase se mexeu de novo, como se estivesse desconfortável, e ela olhou para ele, só para encontrá-lo olhando para ela. Mas que droga! Doía vê-lo assim, a dor persistente em seus olhos.

O que o estava fazendo sofrer tanto?

— Sinto muito — disse ele.

— Tudo bem, mas, você sabe que, se está agindo como um idiota com alguém, ajuda se explicar pelo menos o motivo.

Respirando fundo, ele parecia prestes a desabafar quando o barulho de uma porta se abrindo ecoou na escuridão da noite. Passos soaram.

— Vocês dois estão prontos para ir embora? — perguntou Burnett.

— Sim — respondeu Della.

Ela foi no banco da frente e deixou Chase se sentar atrás.

— O que você conseguiu? — perguntou Della, na esperança de disfarçar o estranho silêncio.

— Marcas de mordidas, alguns fios de cabelo e uma confirmação de que eram lobisomens. Nada que vá entregar os assassinos numa bandeja, mas já é um começo. Eu me esqueci de perguntar, vocês descobriram alguma coisa quando compararam as lembranças da visão?

Ela viu Burnett olhar pelo retrovisor, para verificar como Chase estava. Será que Burnett entendia mais do que ela a reação de Chase?

— Nada de novo — disse Della, resistindo ao impulso de se voltar para trás e verificar por si mesma como Chase estava.

Burnett os levou de volta para o escritório da UPF.

— Tomem cuidado e não fiquem fora até tarde — ele disse enquanto se afastavam, sem tirar os olhos de Chase. — Você ainda está se recuperando.

Chase assentiu. Enquanto davam meia-volta antes de levantar voo, ela pensou que ele iria explicar o que tinha acontecido no necrotério. Engano seu.

Ela não comentou nada, mas o silêncio dele a magoou.

Cinco minutos depois, Chase aterrissou a vários metros da sua cabana, em meio a um bosque. Ela aterrissou com ele, sem saber por que Chase tinha optado por andar o resto do caminho.

No momento em que pisou no chão, ele começou a andar.

Ela acertou o passo para caminhar no mesmo ritmo que ele.

Seus passos ecoavam através da noite, acompanhados do barulho ocasional de algum animal silvestre correndo para longe. O ar frio os cercava e a lua derramava seus raios do céu escuro, sussurrando por entre as árvores como renda líquida.

Chase parou de andar. Então respirou fundo.

Ela parou ao lado dele, esperando sem falar nada.

— Eu não gosto de necrotérios — disse Chase.

Ela olhou para ele. Podia ver seu rosto, e a dor ainda persistia nos poços verdes dos seus olhos.

— Acho que ninguém gosta.

Ele expirou outra vez.

— Não consegui nem ir ao funeral deles. Supostamente eu estava morto também. — Ele recomeçou a andar.

E isso foi suficiente para que Della entendesse. A dor encheu seu peito. A imagem do Chase mais novo dizendo adeus à família num frio cômodo branco que cheirava a antisséptico encheu sua mente e ela teve de engolir em seco para evitar que as lágrimas inundassem seus olhos.

— Eddie me perguntou se eu queria vê-los pela última vez. Eu disse que sim. O pensamento de nunca mais vê-los outra vez era... doloroso demais.

Sem nem perceber o que estava fazendo, Della estendeu a mão e pegou a dele.

— Ver seus corpos foi... — Ele soltou um suspiro. — Minha mãe estava... sem um braço. O corpo de meu pai também não estava inteiro. Eu não consegui nem olhar para a minha irmã. Lembro de ter desejado que Eddie não tivesse me salvado. Que o quarto corpo que tinha meu nome na etiqueta presa ao dedo do pé fosse realmente meu. Eu não queria viver sem eles.

Della apertou ainda mais a mão dele.

— Ele nunca deveria ter deixado você vê-los. — A fúria com a atitude do tio encheu o coração de Della. Tudo o que ela precisava: outra razão para não gostar do tio.

— Não, eu tinha que fazer isso. Tinha que dizer adeus. Não foi culpa de Eddie. Ele tentou me preparar.

— Não dá pra preparar ninguém para isso — disse Della.

— Eu apenas... Eu não fui a nenhum outro necrotério desde esse dia.

— Sinto muito — disse ela, e depois de alguns segundos de silêncio, sentiu que ele não ia dizer mais nada. Mas ela não largou a mão dele até chegarem à cabana, e mesmo depois não deixou de se entristecer por Chase.

Natasha saiu da cabana e os recebeu na varanda. A lâmpada lançava um halo ao redor dela. Usando um vestido amarelo sem mangas, ela parecia vestida para a estação errada. Tinha um sorriso no rosto e seus olhos, retratando muito mais sua ascendência chinesa do que Della, brilhavam de felicidade. Sem dúvida, o pensamento de voltar para casa enchia a prima de alegria.

Della esperava que a mãe adotiva da prima recebesse a filha em casa de braços abertos e não notasse as mudanças que acompanhavam sua nova condição de vampiro. Será que a prima já tinha pensado alguma vez naquilo?

— Estou tão feliz que vieram! — disse Natasha. — Liam e eu decidimos fazer alguns testes de sabores. E vocês dois vão ser nossas cobaias.

— Cobaias? — perguntou Della.

— Sim — confirmou a prima. — Depois que fomos transformados, não temos comido comida de verdade. E, nas próximas semanas, vamos morar com nossos pais, por isso decidimos ver quais alimentos ainda são palatáveis. Ficamos cozinhando o dia todo.

Della fez uma careta.

— Eu não sei, não...

— Ela topa. — Chase deu uma cotovelada em Della, ao subir os degraus.

— Vai ser divertido — disse Natasha. — E vocês não têm que comer tudo, só provar. — Ela abriu caminho para dentro da cabana.

Da cabana exalava um aroma de diferentes alimentos. Liam, vestindo jeans e uma camisa polo, estava na cozinha mexendo alguma coisa sobre o fogão.

— Olá! — Liam sorriu. — Minha namorada tem me escravizado na cozinha.

— Não é verdade! — Natasha se aproximou de Liam. — Eu sou novata na cozinha.

A prima parecia bem feliz.

— Temos até bebidas alcoólicas. — Ela olhou para Chase. — Vi que você tinha cerveja na geladeira. Isso significa que ainda bebe, certo?

— Sim — disse ele. — Mas tem que ser muito gelada.

— Ok, a cerveja vai para o freezer. — Ela colocou algumas garrafas no congelador. — E Liam trouxe uma garrafa de vinho da casa da mãe dele.

Della fez uma careta.

— Eu não gostava dessas coisas nem antes de me transformar.

— Bem, talvez isso tenha mudado. — Natasha foi até o armário da cozinha e tirou de lá quatro taças.

Liam riu.

— Juro, ela ficou nessa euforia o dia todo. — Seu olhar voltou-se para Della. — Principalmente desde que soube que vocês viriam. Parece que parou no posto e encheu o tanque de felicidade!

— Bem, eu concordo — disse Natasha. — Em alguns dias vou ter minha vida de volta e, depois... — ela correu e beijou Liam outra vez —, você e eu podemos começar nossa própria vida. — Ela olhou para trás, na direção de Della. — Não há nada errado em ser feliz.

Não, Della pensou, a não ser pelo fato de que isso a fazia perceber que seu tanque de felicidade devia estar furado. Ou talvez saber que era responsável pela acusação de assassinato do pai simplesmente sugasse toda a felicidade da sua vida.

Chase entrou na cozinha.

— Acho que fazia tempo que esta cabana não tinha um cheiro tão bom!

— Sim, mas me disseram que certos alimentos podem ter um cheiro bom, mas um gosto péssimo — disse Liam.

— Verdade — concordou Chase.

Della observou Chase. Aquela tinha sido a casa dele, mas ele não parecia se sentir deslocado ali, agora que Liam e Natasha eram os anfitriões.

O olhar de Chase encontrou o de Della e ele sorriu. A dor em seus olhos tinha desaparecido. Era evidente que ele não tinha nenhum vazamento no seu tanque de felicidade.

Ela desviou o olhar.

Natasha contemplou os alimentos que Liam colocou sobre a mesa.

— Estou curiosa para saber se todos nós vamos apreciar ou não as mesmas coisas. Ou se os nossos gostos vão variar.

Della se aproximou.

— Eu acho que eles variam. Alguns vampiros de Shadow Falls adoram pizza. Eu, nem tanto. — Ela viu um bolo de chocolate sobre um prato de vidro. — Uma vez, Kylie estava na maior fossa, comendo calda de chocolate com uma colher. Derramei um pouco no meu sangue e ele desceu muito bem.

Natasha tirou a rolha do vinho, em seguida encheu as quatro taças.

— Eu gosto de sopa de cebola ao estilo francês — disse Della. — É um dos poucos pratos de que ainda gosto.

Natasha entregou a Chase uma taça de vinho.

— Você primeiro.

Chase ergueu a taça para olhá-la, como se fosse um ótimo conhecedor de vinhos. Sua mente parecia divagar, e Della podia jurar que viu o mesmo indício da dor que inundara seus olhos antes.

— Bolinhos de chuva — disse ele.

— O quê? — perguntou Della.

— Minha mãe costumava fazer. Ela dizia que tinham gosto de amor. Uns seis meses atrás, vi alguns numa padaria. E pedi um. Pensei que teriam um gosto ruim. Mas não. Talvez fosse nostalgia. Comprei uma dúzia.

Ele tomou um gole do vinho.

— E então? Como está o vinho? — Natasha perguntou a Chase, passando à prima uma taça.

— Bem... — Chase estalou os lábios. — Tem gosto... de alguma porcaria azeda. — Ele se virou para a pia e cuspiu tudo.

Todos riram e concordaram. O vinho já estava descartado.

A conversa começou a girar em torno da volta de Natasha para casa.

— Assim que a minha mãe superar o choque, vou apresentar Liam a ela.

— E Deus me ajude. — Liam franziu a testa, pensativo.

Natasha revirou os olhos.

— Ele está preocupado com a possibilidade de a minha família e meus amigos não gostarem dele porque tem ascendência afro-americana. E daí? Eu sou meio chinesa!

— Não é a mesma coisa — disse Liam, mas ele passou os braços em volta dela.

— Nem todo mundo é racista — disse Della.

— Mas são muito poucos os que não são — disse Liam. — Ainda assim, não vou fugir.

Liam puxou o cabelo de Natasha e beijou o pescoço dela. Isso era... de certa forma, quase erótico. Só assistir a cena já provocou um formigamento na espinha de Della.

— Eles vão te adorar. Assim como eu. — Natasha arqueou o pescoço para trás e eles se beijaram. Um desses beijos suaves que duram um pouco demais para ser em público.

Della desviou os olhos e, sem querer, encontrou o olhar de Chase. O olhar que ele lhe enviou era quase tão perturbador quanto assistir Natasha e Liam se beijando.

Nas horas seguintes, sentaram-se na grande mesa de madeira da casa de Chase, experimentando comida e dando risada. Embora fossem quatro vampiros sentados à mesa, Della reparou que, num certo sentido, aquele era o jantar mais normal — humanamente normal — que ela tinha em muito tempo. Parecia que havia algo reconfortante no fato de se sentar em torno de uma mesa cheia de comida.

Ocorreu-lhe que ela não tinha se esforçado muito para se entrosar com os pais. Em vez de temer seus jantares, ela deveria ter encontrado alimentos que poderia comer e prepará-los para sua família. Deveria ter aproveitado a hora do jantar para incentivar a conversa entre eles, em vez de se sentir um monstro e, portanto, se comportar como um.

Se apenas...

Seu peito estava pesado quando ela se perguntou se teria uma segunda chance para fazer as coisas de um jeito mais gentil.

Della por fim olhou para o relógio. Já passava das oito.

— É melhor eu voltar ou Burnett vai ter um ataque.

— Tem razão — concordou Chase. — É melhor a gente ir. Foi divertido. Obrigado.

— Não, eu é que agradeço — disse Natasha. — Por tudo! Salvar as nossas vidas e nos deixar ficar aqui. Era exatamente o que precisávamos.

— Bem, podem voltar quando quiserem. Fiquem com a chave — disse Chase a Natasha, mas estendendo a mão e colocando uma isca de frango entre os lábios de Della.

Della ficou tão surpresa que comeu. Não era de todo ruim. Depois Chase passou o dedo sobre o lábio dela.

Della sentiu um rubor cobrir seu rosto e percebeu que Liam e Natasha estavam assistindo e sorrindo. Chase não sabia que ela podia muito bem comer sozinha?

— Você não vai voltar a morar aqui? — perguntou Natasha.

— Não, por enquanto. Acho que vou ficar em Shadow Falls.

— O quê? — Della balançou a cabeça. Ela pensava que ele tinha ido morar na escola, porque Liam e Natasha estavam na sua cabana. — Este lugar é dez vezes melhor.

— Sim, mas Shadow Falls tem algo que este lugar não tem. — Natasha sorriu.

— Não — disse Della. — Você já viu as cabanas de lá.

— Tem você — respondeu Natasha.

Della olhou para Chase. Ele não negou. Só piscou para ela. Piscou?

Primeiro ele lhe dava comida na boca e agora piscava para ela?

— Você está ficando louco — disse ela.

— Somos todos um pouco loucos — disse Liam, pegando uma taça de sangue para fazer um brinde.

Eles saíram na varanda. Natasha puxou Della para o lado.

— A minha mãe...? Você ainda vê o espírito da minha mãe?

Della assentiu com a cabeça e decidiu não mencionar que Holiday queria realizar um exorcismo para que ela fosse embora.

— Sim.

— Você pode dizer a ela que estou feliz? Muito feliz?

— Vou dizer a ela.

A prima a abraçou.

— Chase é um cara legal — ela sussurrou no ouvido de Della. — Pare de lutar contra o que sente por ele.

Della não respondeu, mas lhe ocorreu que, se ela estava de fato lutando contra o que sentia por ele, estava fazendo um péssimo trabalho. Todos os dias ele chegava mais perto... não só do ponto de vista físico, mas do emocional também. E que ideia era aquela de lhe dar comida na boca?

Ela olhou para os rapazes.

Chase apertou a mão de Liam.

— Ei — disse Chase —, eu reparei nos seus tênis. São daquele modelo novo da Nike?

— Uma imitação, com certeza — disse Liam. — Minha mãe me deu. Ela não pode pagar pelos genuínos.

Della olhou para os tênis azuis brilhantes de Liam, com solas estranhas e... pronto! De repente seu mundo virou de ponta-cabeça. Ela não estava nem mesmo de pé. Mas deitada de costas sobre... um piso frio e ensanguentado de concreto.

— Della? — ela ouviu Chase chamar. — Está tudo bem?

— Sim. — Ela piscou e as coisas aos poucos voltaram a entrar em foco. O rosto dele e, em seguida, a peça do quebra-cabeça que faltava se encaixou no lugar. — Nós temos que ir.

Ela acenou, pulou os degraus da varanda e começou a correr.

Chase foi atrás dela.

— O que foi?

— Eu sei o que esqueci sobre a visão.

— O quê?

— Os tênis. — Della continuou a correr.

— Tênis? — Os passos dele seguiam no mesmo ritmo que os dela na escuridão.

— Um dos assassinos tinha um par de tênis muito estranhos. Vermelhos, e eles pareciam de pele de cobra. Eu posso estar errada, mas por alguma razão não acho que o filho da mãe usaria imitações. Posso apostar que ele os comprou. E se eu estou certa e eles são tão caros como eu acho que são, então devem ser poucos os lugares que os vendem. Se pudermos achar quem vende esse tipo de tênis, poderemos descobrir quem os comprou. E nós vamos ter o nome de pelo menos um assassino.

Ela levantou voo, esquivando-se dos galhos de árvores e tentando se apressar ao máximo para fazer sua pesquisa na internet. Embora não se tratasse do caso do pai, ele ainda se sentia bem em pensar que estava mais perto de capturar os assassinos do senhor e da senhora Chi.


Capítulo Trinta

Della e Chase pousaram no estacionamento e passaram pelo portão de Shadow Falls. Vozes, risos e música ecoavam do refeitório. Pelo cheiro, tratava-se de uma festa da pizza. Como já tinha no estômago mais comida do que tinha ingerido nas últimas semanas, ela foi direto para a trilha. Chase caminhava ao lado dela. De vez em quando, seu braço roçava no ombro de Della.

Será que ele estava fazendo de propósito?

Enquanto sua mente se concentrava na tarefa de identificar o mistério do par de tênis, seu coração parecia preso às coisas que tinha descoberto sobre Chase aquela noite. Ele tinha visto os corpos dos pais num necrotério e isso ainda o entristecia. De vez em quando ainda bebia cerveja gelada. Associava bolinhos de chuva com amor e estava hospedado em Shadow Falls apenas para ficar mais perto dela.

Ela se lembrou de ter segurado a mão dele, oferecendo apoio emocional depois de ele contar por que tinha saído às pressas do necrotério. Lembrou-se de acordar na cama ao lado dele, sentindo-se muito feliz por ele estar vivo. Lembrou-se até de como se sentiu naquele breve segundo, quando ele colocou em sua boca aquela droga de isca de frango.

Então veio a lembrança de como ela tinha ficado feliz quando ele se sentiu envergonhado ao se ver de cueca diante de Holiday, mas não diante dela.

E esse último pensamento a levou a lembrar quanto ele ficava gato só de cueca. Toda aquela pele à mostra. Os músculos ondulando sob a pele.

Ah, mas que inferno!

Lembrar aquilo tudo fez despertar coisas que ela não queria que despertassem.

Pensou em Natasha e Liam. Ela apostava que aqueles dois já estavam só de roupas íntimas ou talvez nus, abraçados um ao outro.

Será que algum dia ela viveria isso... outra vez?

Respirou fundo e repetiu duas palavras em sua cabeça. Agora não.

Talvez.

Era possível.

Ela poderia, pelo menos, pensar na ideia depois que resolvesse o problema do pai.

E encontrasse os assassinos do senhor e da senhora Chi.

Quando confiasse que o que sentia era... real, e não apenas por causa do sangue partilhado.

Ela olhou para Chase. Ele olhou para ela. E sorriu.

Seu coração deu um salto.

Depois acelerou. Ela tinha sentido aquilo antes, antes de saber que ele ainda estava mentindo. Ela tinha até pensado em vestir lingerie preta...

Será que... ela podia confiar... podia confiar nele outra vez?

Então ela afastou o pensamento. Por que raios estava pensando naquilo?

Só duas semanas.

— Você tem um plano para amanhã? — perguntou Della.

— Um plano? — Ele falou como se estivesse perdido em seus próprios pensamentos.

— Para onde estamos indo, afinal? É melhor ver se conseguimos encontrar essa tal namorada dele ou ir verificar os endereços do Douglas Stone?

— Não pensei nisso ainda.

Ela tinha um palpite de que ele não tinha pensado porque, como ela, estava pensando em outras coisas.

Eles chegaram à trilha que levava à cabana dela, e ela começou a descê-la.

— Quer vir à minha casa para fazermos isso? — Chase perguntou. — Meu computador é dez vezes mais rápido do que o que está na sua cabana.

O pensamento de ficar a sós com ele — sem se preocupar com a possibilidade de Miranda ou Kylie aparecerem — parecia perigoso.

— Eu gosto do meu computador.

— Você gosta? — Ele parecia confuso.

— Sim — ela retrucou. — E se você tentar colocar comida na minha boca outra vez, vai se arrepender. — Ela continuou andando pela trilha.

Três minutos depois, Della estava no seu computador, na mesa pequena da cozinha. Fazia uma pesquisa sobre tênis caros de pele de cobra.

— Bingo! — Ela olhou para Chase em pé atrás dela. — São esses.

— Muito bem! — Ele parecia impressionado. — Agora faça uma pesquisa para descobrir onde eles são vendidos em Houston.

Quando ela digitou a pergunta, sentiu-o se inclinar para ver a tela do computador. Sua mão desceu até o encosto da cadeira dela e os nós dos dedos tocaram seu ombro. Um formigamento percorreu lentamente sua espinha, fazendo com que digitasse “Houston” errado três vezes.

Ela teria afastado a mão dele, mas se fizesse isso ele saberia. Saberia que seu toque fazia coisas malucas e maravilhosas na pele dela.

Por fim, ela digitou direito. Depois esperou até que o computador pesquisasse.

— Olha só, seu computador é lento. — As palavras dele agitaram o cabelo dela.

— Qual o problema em esperar mais alguns segundos? — No mesmo instante o computador apitou, anunciando um novo e-mail.

Ela ignorou e esperou que o computador concluísse a pesquisa.

Ele finalmente cuspiu as informações. Della empurrou para longe os pensamentos sobre o toque de Chase.

— Quatro lojas. — Ela olhou para trás com um sorriso. — E olhe! — Ela apontou para a tela. — Esta fica a um pouco mais de um quilômetro do parque onde os assassinatos aconteceram.

— Você quer ligar para Burnett? — perguntou Chase.

— Você faz isso — disse Della. — Eu vou anotar esses endereços para irmos amanhã.

Enquanto ela coletava dados do seu jurássico computador, escutou Chase colocar Burnett a par de tudo. Mais de uma vez, Chase deu a ela o crédito por encontrar a pista. Uma ou duas vezes, o sentiu olhando. Ela se virou para trás e descobriu que estava certa. Ele estava encostado na geladeira, parecendo super à vontade ali, com o celular no ouvido, mas os olhos colados nela.

— Você conseguiu alguma coisa sobre a gangue ou o número que Sam lhe deu? — perguntou Chase.

Della ouviu a resposta de Burnett.

— Ainda não.

Virando-se, ela copiou o resto dos endereços num documento do Word e imprimiu. Enquanto esperava que o computador acionasse a impressora, deu uma olhada no e-mail para ver se era da irmã.

Chase desligou o telefone e ela ouviu seus passos se aproximando. Ele se inclinou por cima do ombro dela.

— Burnett pediu para enviarmos uma lista das lojas por e-mail.

Enquanto ela abria a janela de um novo e-mail e copiava e colava a informação para enviá-la a Burnett, sentiu Chase respirando em seu pescoço outra vez. O suave fluxo de ar da sua respiração fez sua mente rodopiar.

Della apertou a tecla “enviar”. Ou tentou. O computador tinha que pensar sobre isso também. Tentando não reagir à proximidade de Chase, ela olhou para a tela sem ver nada. Então o sentiu chegar mais perto e respirar fundo.

— Você está cheirando o meu cabelo? — ela perguntou, esperando que seu tom parecesse irritado, embora naquele momento a única coisa que a irritava era a sua falta de irritação.

Na sua cabeça, viu Liam afastar o cabelo de Natasha e beijar seu pescoço.

— Sim — respondeu Chase, seu sorriso complementando aquela única palavra.

— Então pare — disse ela.

— Mas ele tem um cheiro tão bom...

Ela o sentiu afastar seu cabelo para um lado, assim como Liam tinha feito com Natasha. O toque de seus dedos parecia plumas.

— E seu cabelo é tão macio.

Ele apertou os lábios contra a parte de trás do pescoço dela.

— Sua pele tem um gosto... doce.

Ela fechou os olhos.

— Acho melhor... você parar.

— Você acha? — perguntou ele. — Mas e se eu fizer isso em vez de parar?

Seus lábios se moveram para beijar a lateral do pescoço dela, enviando todos os tipos de arrepios maravilhosos pelas suas costas, braços, seios e outras partes ainda mais para baixo.

— Pare! — disse ela, um pouco mais firme.

Ele parou, mas não se afastou.

— Por que, Della?

— Eu não estou pronta para isso. Ainda estou... — Eu vesti lingerie preta para você da última vez e veja o que aconteceu.

Ele se afastou. Algo na rapidez com que fez isso, pareceu... errado. Ela olhou por cima do ombro.

— Não está pronta? Por causa dele?

Ela apenas olhou para Chase.

— O quê?

— Ele quer falar com você — disse Chase.

— Do que está falando?

— Do e-mail. Esse maldito e-mail! Olhe para a tela — ele disse com irritação. — Você tem três e-mails de Steve. Todos com a mesma linha de assunto. “Precisamos conversar.” Que raios ele precisa falar com você?

Ela franziu a testa, olhou para o computador e clicou para sair da tela.

— Ah, mas que inferno! — disse ele. — Vejo você depois. — Ele começou a se dirigir para a porta.

Della deixou-o chegar lá para falar.

— Não.

Ele se virou.

Seus olhos verdes brilhantes expressavam raiva.

— Não o quê, Della?

— Não aja assim — disse ela.

— Assim como? — ele perguntou.

— Como... como se eu estivesse fazendo algo errado. Como... se você estivesse com ciúme. — Como se tivesse o direito de estar com ciúme.

— Eu não estou com ciúme — disse ele e ergueu os braços atrás da cabeça, exibindo os músculos dos braços.

Ela ficou tão entretida com os músculos que quase não percebeu o pequeno soluço do coração dele, denunciando a mentira. E ela não queria ouvir. Porque essa era a primeira vez que ela ouvia o coração dele saltar por causa de uma mentira.

Quer dizer então que às vezes Chase não conseguia esconder a verdade. Ela gostou de saber isso.

Chase deve ter sentido ou ouvido o próprio coração saltar, porque sua expressão mudou.

— Ok, estou com ciúme. Mas como você se sentiria se fosse o contrário?

— Ao contrário? — ela perguntou.

— Como você se sentiria se eu lhe dissesse que Cindy está me ligando e pedindo para eu me encontrar com ela?

Ela se levantou e, antes que pudesse evitar, disse:

— Depende. Quem é Cindy?

— Ela não é ninguém. Apenas um nome, apenas o nome de uma garota. Uma garota que me quer pelo meu corpo.

Por alguma razão aquilo lhe pareceu muito engraçado. Ela sentiu os próprios lábios se repuxarem num sorriso.

— Quer dizer que existem garotas que o querem pelo seu corpo? — Não que eu as culpe.

Ele olhou para Della por alguns segundos e ela viu a raiva se desvanecer de seus olhos.

— Claro que sim. Olhe para mim.

Uma risada escapou dos lábios dela.

— Você não acha que tem um ego grande demais?

— Não — ele disse, sorrindo, mas então suspirou. — Só tenho um problema, Della. — Ele se aproximou e parou bem na frente dela. Olhou dentro dos seus olhos. — Eu quero te tocar. Eu quero... o que Natasha e Liam têm. Eu quero te beijar quando tiver vontade de beijar, quero checar e me certificar de que você está usando a calcinha do dia certo da semana, quero fazer amor com você, quero acordar com você na cama, como acordei esta manhã. Você tem alguma ideia de como isso foi bom?

Ela desviou o olhar e, em seu coração, ouviu aquelas duas palavras que já tinha ouvido antes. Agora não.

Ela olhou para ele.

— Agora não.

— Por quê? Por que não agora? Se não é Steve, então é o quê?

— Porque eu não confio...

— Caramba! — Ele ergueu as mãos, cheio de frustração. — Eu fiz tudo que podia para te mostrar que... que você pode confiar em mim. Eu saí do Conselho, respondi a todas as suas perguntas. Não menti. Nem uma vez, Della.

— Não é em você que não confio. — No momento em que ela disse isso, soube que não era cem por cento verdade e seu coração a denunciou. — Talvez seja você um pouco, mas é principalmente nisso que eu não confio. — Seu coração não discordou dessa afirmação.

Ele balançou a cabeça como se estivesse perplexo.

— Nisso. — Ela acenou com a mão entre eles.

— Você está se referindo a quê?

— Nesse... sentimento. Os calafrios. As emoções. E o medo. Tudo isso, Chase. Você me dá o seu sangue e de repente eu fico obcecada por você. Como você sabe que tudo isso é real? E se acordar um dia e não sentir mais nada?

— Você não confia no amor?

Della sacudiu a cabeça.

— Claro que não, eu não confio no amor. O amor me fez tomar muito pontapé na bunda para eu poder confiar nele.

— Você não pode...

— Sim, eu posso — ela retrucou. — Posso fazer o que eu quiser. — Seu peito parecia pesado, dolorido. — Mas nós não estamos falando de amor, Chase. Por que você está jogando mais lenha na fogueira? Estamos falando de um vínculo. Uma reação química. Algo que ninguém pode nem mesmo definir e que acontece quando um Renascido doa sangue para outro Renascido. Isso não acontece há tanto tempo assim para que se possa saber se esse vínculo de fato é duradouro.

— Della, eu sei... — Ele parou de falar e acenou para a porta.

— Não, você não sabe.

Ele colocou a mão nos lábios.

Della ouviu um baque na varanda.

Burnett entrou.

— Eu disse para me enviar os nomes...

Seu olhar oscilou de Chase para Della.

— O que está acontecendo?

— Nada — ambos disseram ao mesmo tempo e, em seguida, o som de dois corações pulando batidas soou no ar.

Burnett apenas levantou uma sobrancelha.

— Ok. Mas podem me dar os nomes das lojas que vendem aqueles tênis caros?

— Eu já enviei. — Della checou o computador. Foi então que ela viu que o e-mail não tinha sido enviado. — Estou enviando agora.

Della ouviu mais alguns passos na trilha lá fora.

Então a voz de Miranda se fez ouvir.

Burnett se virou e saiu.

Kylie e Miranda entraram.

Todo mundo só olhou para todo mundo e tudo ficou ainda mais complicado.

Kylie e Miranda deram de ombros uma para a outra, como se estivessem concordando que algo não estava parecendo muito bem.

Céus! Claro que não estava.

— Ãh, bem, acho que vejo você, então, pela manhã — disse Chase para Della. — Às sete?

— Tchau! — ela retrucou, seu peito tão apertado que sentia como se o coração fosse rachar ao meio.

Esperou até que ele estivesse fora do alcance da voz e, em seguida, virou-se para suas duas melhores amigas, que estavam lá esperando pacientemente por uma explicação. Uma explicação que elas não iriam obter.

— Vou para a cama. Não quero ficar choramingando. Não quero um refrigerante diet. Não quero explicar o que aconteceu ou por que sinto como se uma fada maluca tivesse entrado aqui e deixado tudo de pernas para o ar.

Ela quase tinha chegado à porta quando Miranda falou.

— Mas eu queria perguntar sobre Perry. Você falou com ele hoje à noite? Ainda acha que eu deveria sair com Shawn? Não podemos apenas falar sobre isso?

A voz chorosa da amiga tocou o coração de Della. Ela se virou. Toda a culpa que tinha sentido quando falou com Perry voltou a borbulhar dentro dela.

— Sim, falei com ele, e não!

— Não o quê? — perguntou Miranda.

— Não, eu não vou falar sobre isso. Aliás, me desculpe por eu ter te dado algum conselho sobre Perry ou Shawn. Não me ouça. Nunca me escute! Nunca! Nunca! Nunca! — Ela moveu os braços para cima e para baixo, sentindo como se fosse um pássaro tentando voar, mas não conseguindo se conter.

— Por quê? — perguntou Miranda, olhando para Della como se ela tivesse perdido o juízo. E talvez tivesse mesmo.

— Porque é melhor — Della rebateu.

— Isso não é explicação. Você é uma das minhas melhores amigas. Por que eu não deveria ouvir você?

— Porque eu sou uma idiota — Della despejou. — Se algum conselho sair desta boca — ela apontou para os próprios lábios —, não escute. Basta virar as costas e ir embora. Correndo. A toda velocidade. Porque eu não sei nada sobre amor, ou sobre romance, ou sobre a diferença entre uma ligação e amor. Sou uma sem noção! Sem noção! — ela repetiu.

Della deu dois passos e, em seguida, meia-volta.

— E... estou mudando de xampu, por isso o meu cabelo não cheira assim tão... e... Cindy, se ela quer o corpo dele, que fique com ele!

Ela entrou no quarto pisando duro e bateu a porta.

Infelizmente, bateu com força demais e a porta saiu das dobradiças, desabando no chão de madeira.

Rosnando, ela se virou, encaixou a porta no batente, em seguida se deixou cair na cama, afundando o rosto no travesseiro.

— Quem é Cindy? — ela ouviu Miranda perguntar.

Della gemeu e puxou o travesseiro sobre a cabeça.

— Não faço a menor ideia. — A voz de Kylie ainda conseguiu atravessar a espuma do travesseiro.

— Devemos tentar falar com ela? — perguntou Miranda.

— Não — disse Kylie. — Acho que ela só precisa ficar sozinha e pensar.

E, como Della já estava sozinha no quarto, foi justamente isso que ela fez nas horas seguintes. Pensar.


Capítulo Trinta e Um

Ela ainda não confiava nele. Chase rolou na cama pela quinta vez e tentou arrumar o travesseiro para acomodar melhor a cabeça. Não conseguia dormir. O travesseiro cheirava a Della e ele se lembrou de acordar e vê-la ali, pertinho dele. Ele atirou o travesseiro do outro lado do quarto. Rolou na cama outra vez, apenas para perceber que o maldito colchão cheirava a Della também. Passou a mão sobre ele, no lugar onde ela tinha dormido ao lado dele, enquanto estava inconsciente.

Respirando fundo, ele correu a palma da mão pelo rosto, apenas para perceber que até a mão dele cheirava a ela.

Com nitidez ele se lembrou de que ela sustentara o seu peso durante a caminhada até sua cabana. Embora o apoio emocional que ela havia lhe dado tivesse sido maravilhoso, o fato de ele ter se descontrolado no necrotério fez com que se sentisse um fraco. E ele não queria que ela o visse assim.

Chase podia estar errado, mas queria ser forte por ela, queria estar sempre presente para que ela se apoiasse nele. Não que Della Tsang fosse alguém que costumasse se apoiar nos outros. Mas se isso um dia acontecesse, Chase queria que fosse nele.

Fazia quatro anos desde o... necrotério. Era de se pensar que ele tivesse superado.

Chase fechou os olhos e afastou as imagens da família na sala branca e fria, e evocou as imagens deles esquiando no Colorado. Seu pai beijando sua mãe. A mãe servindo bolinhos de chuva. A irmã rindo.

Tempos felizes.

Tentando manter os bons pensamentos para afugentar os ruins, ele se lembrou de como tinha se sentido ao assinar o contrato com a UPF naquele mesmo dia. Um passo em direção ao seu futuro. Sentando-se, acendeu a luz do abajur e pegou o crachá da UPF que Burnett lhe dera. Ele precisava voltar a se concentrar na investigação.

Pegou o celular. Era meia-noite. Um momento perfeito para falar com Leo. Ele encontrou o número de telefone do guarda.

— Pensei que você já tivesse apanhado o suficiente na Fossa do Inferno — respondeu Leo.

— Mas é um lugar tão encantador! — disse Chase com sarcasmo.

— Garoto, pensei que você já estava no bico do corvo. Não sei como saiu da sala com todos os membros no lugar.

— Gosto dos meus membros — disse Chase.

— É o que parece — disse Leo. — Se está querendo outra chance com Pope, vai ficar desapontado.

— Não estou — disse Chase. — Mas por que eu ficaria desapontado?

— Aquele filho de uma cadela bateu as botas. Outro lobisomem escapou noite passada.

— Ele matou outros prisioneiros também? — perguntou Chase.

— Não. Por alguma razão o tal lobisomem teve uma briga com Pope.

Chase armazenou a informação para examinar mais tarde.

— Olha, eu estava meio grogue quando deixei a prisão aquela noite. Tem certeza de que foi com Kirk que você falou sobre Stone?

— Foi Kirk que veio buscar você, não foi? — perguntou Leo.

— Sim.

— Bem, agora que você falou sobre isso, estou lembrando que não foi ele, foi o velhote.

— Powell? — perguntou Chase.

— É. O cara mais velho.

Chase se sentiu mais aliviado quando soube que não tinha sido Kirk, um bom amigo de Eddie.

A primeira coisa que Della fez na manhã seguinte foi ligar o computador, checar seus e-mails e enviar uma mensagem para Steve.

Simples. Breve. Duas palavras.

Agora não!

Enquanto Della estava tentando colocar a porta do quarto de volta nas dobradiças, Kylie entrou, parecendo sonolenta no seu pijama cor-de-rosa.

— Quer ajuda? — perguntou a camaleão.

— Se não se importa — disse Della, e no mesmo instante se sentiu mal por ter sido ríspida com as amigas.

— Pronto — disse Kylie, pegando a porta. — Vou segurá-la enquanto você coloca o parafuso no lugar.

Em alguns segundos, a porta estava de pé. E como só uma das dobradiças tinha de fato quebrado, embora não fechasse direito, pelo menos a porta não parecia danificada.

— Você está bem? — perguntou Kylie, assim como Della sabia que ela perguntaria.

— Não, mas estou me acostumando a fingir — ela respondeu. — E ouvi Chase se aproximando da cabana, então não tenho tempo para refletir sobre a minha desgraça.

— Vocês vão tomar o café da manhã juntos? — perguntou Kylie. — Você acordou cedo.

— Não, vou faltar nas aulas para ajudar no caso do meu pai. — Ela suspirou. — Eles marcaram o julgamento para daqui duas semanas. Menos de duas semanas agora. — Dizer isso fez com que o ar fugisse dos seus pulmões. E se eles não conseguissem descobrir nada? E se ele realmente fosse condenado?

— Sinto muito — lamentou Kylie. — Talvez à noite a gente possa pegar umas Cocas e ter uma conversa.

— Talvez — respondeu Della, em voz baixa, ouvindo Chase se aproximar. — Ainda estou tentando descobrir o que sinto com relação a tudo isso, e não sei se consigo explicar sem surtar como na noite passada.

Kylie reprimiu um sorriso.

— Bem, foi divertido assistir ao seu surto.

— Nem me lembre. — Della começou a abrir a porta.

Com a maçaneta ainda na mão, viu Chase no primeiro degrau da varanda, as costas largas iluminadas pelo sol da manhã.

Em vez do jeans e da camiseta que ela estava acostumada a vê-lo vestir, ele estava com um terno preto e uma camisa azul-clara de cambraia, tudo caindo muito bem nele. Lembrava até um daqueles modelos sexys dos comerciais de roupa masculina.

Então, por algum motivo inexplicável, o traje impecável de Chase a fez se lembrar de coisas que ela provavelmente iria perder nesta vida. Coisas que tinha perdido para sempre quando deixara o mundo humano para trás. Coisas como bailes de formatura ou aquelas valsas bobinhas. Pôr um vestido longo e posar para aquelas fotos idiotas em frente a alguma parede de flores.

Ela não tinha pensado que queria aquelas coisas, mas ao ver Chase tão elegante em seu terno, desejou que ainda tivesse a opção de tê-las, se quisesse. Desejou que não fosse errado querer passar os dedos sob aquele paletó e sentir os músculos do abdômen de Chase. Desejava que o julgamento de seu pai não a impedisse de encontrar algo próximo à felicidade.

Depois de outra olhada de cima a baixo no homem de terno, ela se sentiu muito malvestida em seu jeans e blusa azul de decote canoa. Ainda parada com a porta aberta, quase voltou correndo e trocou o jeans por calças pretas.

— Você não vai sair sem me dizer quem é Cindy! — Miranda gritou do seu quarto.

Ok, nada de errado com o jeans.

Della fechou a porta com um pouco mais de força do que o necessário. E se o sorriso satisfeito de Chase e a sobrancelha arqueada fossem uma indicação, ele tinha ouvido a bruxa.

Era um belo começo para o seu dia!

Cindy? Então Della tinha mencionado a conversa com a amiga, hein? Pelo pouco que sabia sobre as garotas e suas amigas, ser citado numa conversa era muito melhor do que não ser.

Razão pela qual ele estava chateado com o fato de ela ter mencionado Steve na conversa com a amiga humana.

Ele se esforçou para deixar esse pensamento de lado e decidiu focar o positivo e não o seu ciúme idiota. Iria passar o dia inteiro com Della.

O positivo também era sua conclusão final sobre o que ela dissera na noite passada. Ouviu a voz dela em sua cabeça: Nós não estamos falando de amor, Chase. Ele planejava conversar com ela sobre isso, também.

Ele a observou parada na porta numa espécie de estupor e o jeito como olhava para ele. Estava se sentindo meio ridículo vestindo um terno, mas o olhar apreciativo de Della mudou isso.

— Bom dia! — disse ele, sentindo-se um pouquinho mais confiante.

— Dia — disse ela, sem dúvida deixando propositalmente de fora a palavra “bom”.

— Não vai dizer nada? — ele perguntou.

— Sobre?

— O meu terno?

— Combina com você — disse ela.

Ele quase riu.

— Burnett quer nos ver em seu escritório antes de sairmos. — Ele esperou até que ela chegasse nos degraus.

— Será que tem novidades?

— Disse que não tem nada de muito revelador.

Franzindo a testa, ela fechou a porta e desceu os degraus, o tempo todo se esforçando muito para ignorá-lo — e, sim, ele tinha reparado que ela estava de fato ignorando-o. E enquanto fazia isso, se esforçava muito para analisá-la sem que parecesse óbvio.

Na mesma hora ele notou o tom arroxeado em volta dos olhos dela. Aquelas discretas meias-luas estavam quase escondidas pelos longos cílios inferiores, mas ele havia notado. E ele a conhecia o suficiente para saber que eram um sinal claro de uma noite insone.

Ele com certeza não havia dormido muito melhor, mas não tinha olheiras como ela.

Será que ela tinha pensando nele?

— Eu trouxe o endereço das lojas — disse Della.

— Acho que é sobre isso que Burnett quer falar — disse Chase, temendo um pouco ter de contar a ele sobre Pope e o que tinha descoberto.

Quando chegaram ao escritório, Chase apressou os passos e abriu a porta para Della.

Ela revirou os olhos para o gesto de cavalheirismo.

— Por favor, não comece a fingir que é um cavalheiro só porque está vestindo um terno.

— Quando foi que não me comportei como um cavalheiro?

— A primeira coisa que me vem à mente é aquele dia em que você escalou o cubículo do banheiro feminino quando eu estava sentada no vaso. Mas só me dê uns minutinhos e eu tenho certeza de que vou poder te dar uma lista das dez melhores.

Ele riu.

— Você tem uma memória de elefante. — Ele entrou na cabana.

— E você tem os modos de um babuíno — ela respondeu.

— O zoológico está chegando! — a voz de Burnett vibrou de dentro do escritório de Holiday.

Della franziu a testa. Reprimindo um sorriso, Chase a seguiu até o escritório. Holiday, sentada em sua mesa, cumprimentou-o com a cabeça e Chase sentiu seus músculos se contraírem. Desde que ela o tinha ameaçado, ou melhor, ameaçado suas partes íntimas, ele a tinha evitado. Burnett se sentou na beirada da mesa com a filha nos braços.

O bebê soltou um gritinho quando eles entraram e estendeu os braços.

— Acho que alguém quer você. — Burnett estendeu a criança em direção a Della.

Della pegou o bebê do colo de Burnett.

— Ela tem bom gosto.

Certo, então a criança gritou outra vez e estendeu os braços para Chase.

— Tem razão — disse Chase e riu.

— Retiro o que disse — Della murmurou.

Holiday riu.

— Você parece... sexy, Chase.

— Você disse o quê, Holiday? — protestou Burnett, de brincadeira.

— Obrigado — disse Chase, seu mal-estar diminuindo. — E ele cai bem, também. — Ele lançou a Della uma rápida olhada.

— Tome. — Della estendeu o bebê. Chase deu um passo para trás.

— Eu não saberia segurar isso.

— Isso? — disse Della e Holiday ao mesmo tempo.

— Quero dizer “ela”.

Della fez uma careta para ele e, em seguida, virou-se para Burnett. A criança olhou para o pai e começou a agitar os bracinhos.

— Papa papa.

— Ouviram isso? — Burnett abriu o maior sorriso de que Chase se lembrava. — Ela está dizendo papai.

— Ela só está fazendo sons — disse Holiday.

— Você só está com ciúme, ela disse papai antes de mamãe.

— Não estou — disse Holiday, mas ela de fato parecia estar. — Não parecia “papai”, não é? — Ela olhou para Chase.

— Não... Eu não... Eu acho que não.

— Está vendo? — Holiday riu.

— Não quero tirar os holofotes da nossa princesinha aqui, mas... — Della focou em Burnett e ajeitou a criança nos quadris. Apesar de parecer insegura, a facilidade com que ela lidou com o bebê surpreendeu Chase. Ela continuou: — Você conseguiu alguma coisa no bar?

Chase observou o sorriso nos olhos de Burnett esmorecer.

— O número que Sam nos deu é de um telefone descartável. Ninguém atendeu.

— Será que ele sabe que Sam foi pego? — perguntou Della.

— Não sabemos, mas é uma possibilidade.

— E eu suponho que ele não tenha aparecido no bar também, certo? — perguntou Della, seu tom espelhando as frustrações de Chase.

— Ele não apareceu, mas fizemos algumas perguntas por ali e confirmaram a história de Sam.

— A gangue? — perguntou Chase. — Você tem alguma coisa?

— Ainda estamos confirmando algumas coisas — disse Burnett. — Os boatos que correm nas ruas é os de que a gangue é nova por aqui. Mas tem raízes na França. A maioria dos membros é uma mistura de espécies, o que significa que seus poderes são limitados, por isso não a estamos considerando uma grande ameaça neste momento.

O contato visual direto de Burnett com ele parecia dizer que o líder do acampamento não estava preocupado por Chase estar morando em Shadow Falls. Chase não tinha certeza se concordava.

— Então Sam era um membro? — perguntou Della.

— Não, mas Stone poderia estar tentando recrutá-lo. — O celular de Burnett apitou; ele verificou e, em seguida, olhou para a frente. — Eu preciso resolver algo esta manhã, mas queria ir com vocês às lojas de calçados. Então confiram alguns desses endereços e vejam se conseguem falar com a namorada de Stone. Vamos nos encontrar em algum lugar para verificar as lojas de tênis juntos mais tarde.

— Entendi — disse Chase.

Della entregou o bebê a Burnett.

Burnett pegou a criança, fazendo a tarefa de segurar algo tão pequeno e frágil parecer fácil.

— E lembrem-se, ao menor sinal de perigo, quero vocês dois batendo em retirada e ligando para mim.

— Estamos sabendo — disse Della.

Burnett franziu a testa.

— E não façam nenhuma merda que eu tenha de limpar depois.

— Não se preocupe — disse Chase.

— Certo — disse Burnett. — E no caso de vocês não saberem, quando digo “merda” quero dizer: sem cometer nenhuma invasão, sem transgredir nenhuma lei, sem truculência. — Ele olhou para Chase. — Você está com o seu crachá?

Chase assentiu.

— Tudo que vocês fizerem se reflete depois em nós, sobrenaturais. Para todos os efeitos, vocês devem parecer seres humanos. Nada de pular edifícios altos ou levantar carros. Mantenham as presas fora de vista. Entenderam?

— Sim. — Chase ressentia-se da insinuação de que ele poderia pôr tudo a perder, mas sabia que era melhor não discutir. Então ele se lembrou:

— Falei com Leo na noite passada. O guarda da prisão.

— E então? — perguntou Burnett, e seus olhos se arregalaram de interesse.

— Ele disse que, depois de ver Kirk, quando ele veio me buscar, percebeu que o tinha confundido com um dos outros membros do Conselho. Powell.

— Então alguém está escondendo alguma coisa?

Chase fez que sim com a cabeça, tentando não se sentir como se estivesse traindo o Conselho. E ele não deveria se sentir assim, porque, se algum deles sabia sobre Stone, eles é que haviam traído Eddie.

— Me deixe perguntar uma coisa — disse Burnett. — Já que você ainda tem contatos na prisão e alguns membros do Conselho, quais são as chances de fazê-los transferir Pope para uma das nossas instalações? Assim poderíamos interrogá-lo.

— Impossível — sentenciou Chase. — Leo me disse ontem à noite que Pope foi morto.

— Que conveniente — disse Burnett.

— Eu gostaria de poder discordar — disse Chase.

Burnett assentiu.

— Bem, vocês dois podem ir, mas estou falando sério: não façam nenhuma merda.

Hannah saltitava no colo de Burnett.

— Meda. Meda. Meda! — ela balbuciou.

Holiday olhou para o marido.

— Eu vou lavar a sua boca com sabão todos os dias durante um ano!

— Tchauzinho — disse Della, lançando a Burnett um sorriso de despedida e saindo da cabana. Chase estava bem atrás dela. Eles riram.

Assim que estavam fora do alcance da audição de Burnett, Della perguntou:

— Você acha que eles mataram Pope porque ele falou com você?

— Eu... Eu suspeito que sim — disse Chase.

— Então o que você vai fazer?

— Ainda estou tentando descobrir — disse ele.


Capítulo Trinta e Dois

Quando chegaram ao Camaro de Chase, ele tirou as chaves do bolso.

— Quer dirigir?

Ele se lembrou dela dirigindo seu carro e sendo surpreendida em alta velocidade pelos policiais. A lembrança quase trouxe um sorriso aos seus lábios.

— Não, obrigada — disse Della, saltando para dentro do carro sem abrir a porta. Quase se sentou em cima de uma sacola plástica que estava no banco da frente.

Ela a tirou de debaixo do traseiro e, quando fez isso, uma embalagem com doze salsichas para cachorro-quente caiu no assoalho do carro.

— Para que isso? — perguntou quando ele se ajeitou atrás do volante.

— Ah, para o caso de termos problemas — disse ele.

— Que tipo de problema?

Ele ignorou a pergunta.

— Você se importa se eu baixar a capota? Ou não quer despentear o cabelo? — Quando ela não respondeu, ele acrescentou: — Eu ainda tenho aquelas coisinhas de cabelo no porta-luvas.

Ela fez uma careta e deixou as salsichas no assoalho do carro.

— Eu não me importo com o meu cabelo.

Ele girou a chave na ignição, reclinou-se um pouco no banco, em seguida olhou para ela.

— Fale a verdade.

— Sobre o quê? — ela perguntou.

— Você se importa. E eu não estou me referindo ao seu cabelo. — Chase ergueu a mão e, antes que ela pudesse argumentar, ele continuou: — Eu sei, ouvi tudo o que você disse ontem à noite. Sobre você não pensar que isso é real ou que não é amor. Mas, depois que eu saí, percebi o que mais você disse.

As sobrancelhas dela se juntaram.

— O que mais eu disse?

Ele estendeu a mão entre os assentos e pegou os óculos de sol. Depois de colocá-los, voltou a olhar para ela.

— O que mais você disse? Ah, sim: os calafrios, as emoções. Então falou algo sobre ficar obcecada por mim.

Ele deslizou os óculos para baixo e olhou para ela por cima das lentes.

Os olhos arregalados e a boca entreaberta lhe diziam que ela estava à procura de uma resposta, mas não conseguia encontrar. Incrível! Della sempre tinha uma resposta na ponta da língua. Ele adorava isso nela.

Chase continuou:

— Eu só quero que você saiba que para mim tudo bem. É um bom começo. E sei disso porque sinto a mesma coisa. A diferença entre você e eu é que eu sei que a coisa é real.

Ela ainda não disse nada, então ele continuou:

— Com certeza porque eu não fui muito sincero com você no começo. Você precisa de tempo para confiar nisso, para confiar no amor, e para confiar em mim, e eu entendo. E vou estar aqui quando você finalmente confiar. — Ele empurrou os óculos para cima e ligou o carro.

Quarenta e cinco minutos depois, eles estacionaram na frente da primeira casa da lista de residências de Stones. Della olhou ao redor. Era uma casa não muito bonita num bairro não muito elegante. Um cão, que parecia ser um cruzamento de pit bull com diabo-da-tasmânia, estava acorrentado a um cano cravado no chão.

Chase olhou para ela.

— Eu estava me referindo a este tipo de problema.

Della se lembrou da embalagem de salsichas e não pôde deixar de sorrir. Então olhou em volta. A casa ao lado tinha uma placa com a inscrição CONDENADA no quintal. Ela olhou para os dois lados da rua. O lugar parecia um ótimo local para um laboratório de metanfetamina. Mas será que era um bom lugar para um vampiro foragido? Bem provável. Ela com certeza esperava que sim.

Só faltavam duas semanas.

Quando Chase desligou o motor, o cão se levantou e deixou escapar um rosnado baixo e grave.

— É do tipo amigável — disse Della, percebendo que Chase poderia dizer a mesma coisa sobre ela. Eles não tinham conversado desde a saída do estacionamento. O que ela poderia dizer? Ah, queria muito dizer que ele era tão esperto e inteligente que as suas mentiras saíam da sua boca sem que ele precisasse fazer muito esforço. Queria acusá-lo de pensar que parecia muito sexy naquele terno preto e de óculos escuros. Mas ele de fato parecia sexy, e ela o conhecia bem o suficiente para saber que estava sendo sincero. Só que a resposta era... Agora não. E ela repetiu isso para si mesma.

— Pegue as salsichas — pediu ele.

— Você vai tentar passar dando salsichas a ele? — Della perguntou.

— Isso é melhor do que o que eu dei a ele três semanas atrás.

— O que você deu a ele? — perguntou ela.

— Uma mordida na minha bunda. — Ele riu. — Achei que poderia esfregar a barriga dele e fazer amizade.

— Ele mordeu você? — Della não pode deixar de rir.

— Não a ponto de machucar muito — disse Chase e estendeu a mão atrás para tocar a bunda.

Eles saíram do carro.

— Então esta casa pertence a um dos Stones que você já investigou? — ela perguntou, sentindo o cheiro de lixo e vendo dois latões de metal transbordando na varanda da frente.

— Sim.

— Lembre, Burnett já excluiu esta daqui da lista e acha que deveríamos passar para a nova lista de Stones.

— Ele também disse para eu seguir meus instintos. Sinto que posso ter deixado de notar alguma coisa. Quero dar uma volta por aí, só para ter certeza.

O cachorro latiu, chamando a sua atenção outra vez. O animal raspou o solo como um touro pronto para atacar. Então investiu contra eles.

Os lábios arreganhados, os dentes expostos; o pelo na parte do pescoço arrepiado e a baba escorrendo pelas bochechas. Ele chegou mais perto. Então mais perto ainda.

Merda! Quantos metros tinha aquela corrente?

Della estava prestes a dar um rápido passo para trás quando Chase disse:

— Tudo bem.

Então, infelizmente, ou felizmente, dependendo do lado em que se estava, quando estava a cerca de trinta centímetros o totó chegou ao final da corrente. Quando alcançou o limite, foi puxado com tudo para trás e aterrissou com um baque no chão. Ele não ficou ali por muito tempo.

— Acho que ele deve ser resultado de um cruzamento maluco entre raças — disse Chase.

— Coitado — disse ela com sinceridade. A maioria dos animais agressivos era assim devido à forma como os donos os tratavam.

— Abra a embalagem de salsichas.

— Por que não voamos simplesmente por cima dele até a varanda? Não tem ninguém em casa. — Ela acenou com a mão, indicando os arredores da casa.

— Por duas razões — disse ele. — Uma é que devemos parecer humanos, lembra?

— Eu não acho que Burnett quis dizer...

— A segunda... — ele interrompeu — é que a corrente chega até a porta. Como você acha que ele conseguiu morder a minha bunda? — Ele esfregou o traseiro. — Eis o que vamos fazer. Você vai jogar as salsichas e, enquanto ele estiver mastigando, eu vou arrancar aquele cano do chão e reposicioná-lo para que a corrente não chegue até a varanda.

— E se ele não estiver interessado nas salsichas?

— Então vou tentar fazer um carinho na barriga dele outra vez. — Ele sorriu. — Sei como fazer um carinho. Basta perguntar a Baxter. A qualquer hora que você precisar...

— Minha barriga não precisa do seu carinho. — Ela atirou metade de uma salsicha e, em seguida, olhou para Chase. — Não deixe que ele te morda.

— Vou tentar. — Chase decolou. Em tempo recorde, puxou o cano de metal do chão e chegou mais perto do cão para reposicioná-lo.

O cão, percebendo o movimento da corrente, voltou-se para Chase e rosnou. Della jogou outra salsicha.

O animal estava com tanta fome que esqueceu Chase e foi à caça do seu lanchinho.

Chase cravou o cano de metal no chão.

— Feito. — Ele virou de costas.

Della jogou o resto das salsichas para o animal faminto e em seguida atravessou o quintal até a varanda. Na porta da frente, pendurada num ângulo torto, havia uma placa: SE O MEU CÃO ENCRENCA NÃO FOR CAPAZ DE ASSUSTAR VOCÊ, MINHA ESPINGARDA É.

Ela olhou para Chase.

— Você acha que poderia fazer carinho na barriga dessa espingarda também? Já dei todas as salsichas para o Encrenquinha ali — ela sussurrou.

Ele sorriu.

— Você falou mesmo com alguém da última vez que veio aqui?

— Sim, um humano, com uns 60 anos, quase tão “amigável” quanto o cão. Quando perguntei se ele era Douglas Stone, disse que não e que estava apenas passando uns tempos aqui com um amigo. Ele estava mentindo. Só não sei se mentiu sobre o seu nome ou sobre ficar aqui com um amigo. Ou as duas coisas.

Della respirou fundo para ver se sentia algum rastro de vampiro. Ela não sentiu nada, mas, com o fedor intenso do lixo, o cheiro poderia não ser detectado.

Chase inclinou a cabeça para o lado, apurando os ouvidos para ver se havia alguém dentro da casa. Della fez o mesmo.

— Dá pra ouvir uma TV ligada num cômodo nos fundos — disse Chase.

Della sentiu um frêmito de emoção percorrê-la. Se fosse Douglas Stone, o calvário de seu pai poderia acabar ali.

— Você quer bater na porta enquanto dou a volta até os fundos, para o caso de ele tentar fugir? — ela perguntou.

— Não, se ele tentar fugir por trás, você vai para a esquerda e eu vou para a direita.

Ela olhou para o olho mágico no meio da porta.

— Se for o mesmo cara, talvez não atenda. Por que você não fica longe e me deixa falar com ele? Se eu conseguir fazê-lo dizer que seu nome é Douglas Stone, vamos saber que é o nosso cara, certo?

— Tudo bem. — Chase foi até uma janela perto da porta e espiou lá dentro. Então olhou para ela. — Eu posso ver a porta de entrada daqui. Se ele tiver uma espingarda mesmo, aviso pra você cair fora. E você faz o que eu mandar.

— Acha mesmo que vou obedecer você? — ela perguntou com sarcasmo e, em seguida, fez sinal para ele se mover um pouco para trás. — Não deixe que ele te veja.

Della bateu na porta. E ficou ouvindo.

Quando ninguém respondeu, ela bateu outra vez.

— Que é, droga? — alguém gritou lá de dentro.


Capítulo Trinta e Três

Chase ficou bem perto do parapeito da janela, esperando poder ver o dono da casa, sem que este pudesse vê-lo.

— Ele está vindo — disse Chase quase num sussurro. — Não está armado.

Chase apertou os olhos para enxergar o padrão do sujeito em sua testa.

— Humano. — Chase tinha certeza de que era o mesmo cara com quem tinha falado antes.

— Cai fora daqui! — o homem gritou, mas continuou andando em direção à porta.

— Só preciso de alguns minutos do seu tempo — gritou Della, e Chase notou que ela tinha acrescentado um tom mais sedutor à voz.

— Quem é você? — O homem colou o olho no olho mágico da porta.

— Sou de uma empresa que reforma e vende imóveis, e queria perguntar sobre algumas casas desocupadas desta rua.

Puxa, Della conseguia inventar uma história bem rápido!

— Pode perguntar o que quiser — Chase ouviu o filho da mãe dizer e depois correr a mão pelo cabelo e murchar a barriga de cerveja, que parecia ter levado anos para crescer.

Ele abriu a porta. Chase chegou mais perto, para o caso de o cretino querer encostar um dedo em Della, mas ficou colado à parede, onde não poderia ser visto.

— Olá! — cumprimentou Della, assim que a porta se abriu. — Meu nome é Charlotte Nance. — Ela sorriu e inclinou a cabeça para o lado como um filhotinho fofo. — Estou interessada em alguns imóveis da rua e queria saber se o senhor poderia me dizer quem são os proprietários.

— Você parece muito jovem para já trabalhar no mercado imobiliário — comentou ele.

— Minha mãe diz que é bom começar cedo, porque já vou estar muito bem daqui a alguns anos.

— Sua mãe está certa, querida. Além disso, gosto de gente jovem.

Chase viu um músculo na bochecha de Della começar a se contrair. Algo lhe dizia que aquilo poderia significar problemas.

— Alguma dessas casas está à venda? — ela perguntou, ainda conseguindo manter o tom sedutor na voz.

— Bem, havia um casal de drogados que morava numa delas, mas acho que estavam alugando. Parece que se mudaram há uns dois meses. Ninguém sai nem mesmo para cortar a grama do quintal. A casa ao lado está condenada. Pegou fogo no ano passado e mais ninguém apareceu por lá.

O cachorro latiu e Chase viu o homem esticar a cabeça para fora, com certeza se perguntando por que o animal não estava fazendo seu trabalho.

— Você pode entrar, se quiser. Meu cachorro adora comer carne fresca como você no almoço. Eu, por outro lado, não mordo. Não com muita força, pelo menos.

Chase reprimiu o desejo de mostrar ao cara a força com que ele próprio podia morder. Della hesitou por um segundo. O músculo do rosto dela continuava a se contrair.

Ela colocou um sorriso no rosto, mas não era de verdade.

— O senhor é o dono da propriedade? Senhor... Me desculpe, não perguntei o seu nome.

— Stone — ele disse. — Mas me chame de Doug. Todas as minhas amigas me chamam assim.

Sim, Chase podia apostar que o cara tinha muitas “amigas”.

— Ah, bem, deixa, então. Se o senhor não tem os nomes...

— Aposto que tenho no meu caderno de endereços. — Ele enfiou a cabeça para fora outra vez, mas por sorte não olhou na direção de Chase. — Você está sozinha, docinho?

Algo na pergunta colocou Chase em alerta. Ele quase saiu do seu esconderijo, mas Della lhe lançou um olhar enviesado e fez que não com a cabeça, disfarçadamente.

O homem estendeu a mão, mas Della se moveu mais rápido. Deu um passo para trás e a mão encardida dele não alcançou a dela por centímetros.

— Não se faça de difícil — disse o homem. — Pego umas cervejas na geladeira e poderia fazer negócio com a sua empresa.

— Desculpe. Tenho que encontrar uma casa para comprar. — Ela começou a se afastar, mas não muito rápido. Então lançou a Chase um olhar que dizia que ela tinha o controle da situação.

O idiota estendeu a mão para segurá-la. Della virou-se e, com uma subida rápida do joelho, fez o sujeito desmoronar de quatro no chão.

Sem truculência tinha sido a regra de Burnett. E não tinha sido um golpe truculento, apenas direto. O cara levantou-se, mas com as duas mãos protegendo as partes íntimas e a boca aberta, sem conseguir emitir nenhum som. Sem dúvida, ele ia cantar com voz de soprano por algum tempo.

— Desculpe — disse Della, com sarcasmo. — Acho que sou alérgica a tarados. Tenho contrações involuntárias no joelho sempre que encontro um por aí.

Eles voltaram para o carro, mantendo-se sempre fora do alcance do cão.

— Preciso me lembrar — disse Chase sorrindo — de nunca provocar nenhuma alergia em você.

— Tivemos muita sorte — disse Chase, vinte minutos depois, seguindo atrás de um carro até o interior de um condomínio fechado de apartamentos. Della olhou em volta. Não era nada de alto padrão, mas parecia um lugar decente. Ele estacionou bem atrás de um edifício e apertou um botão para levantar a capota.

— Só me dei conta de uma coisa agora — disse Chase.

— O quê? — perguntou Della, ainda examinando a área.

— Este apartamento é apenas a alguns quilômetros de onde Pope disse que a namorada de Stone morava.

— Portanto, este é outro Stone que você já visitou, certo?

— Sim. Passe esses arquivos que estão embaixo do seu assento. Não me lembro por que não o considerei suspeito. — Inclinando-se para a frente, ele olhou em volta. — Se bem me recordo, uma mulher atendeu à porta.

— E ela era humana? — Della perguntou ao puxar uma pasta de sob o assento.

— Era. — Ele pegou o arquivo e o abriu, começando a ler suas antigas anotações.

— Ok, eu me lembro agora. A mulher disse que o namorado tinha ido a uma loja comprar material para consertar um dos outros apartamentos. Comentou que ele era o faz-tudo do lugar. Não voltei porque não achei que alguém como Stone teria um emprego para se sustentar ou uma namorada humana.

— Então não vamos perder tempo aqui — disse ela.

Ele olhou ao redor outra vez.

— Talvez eu esteja errado. Mas meus instintos me dizem...

— O que os seus instintos lhe dizem?

— Está vendo aquilo? — Ele apontou para o edifício.

— O quê? — perguntou Della.

— Este lugar tem câmeras. — Ele olhou para Della. — Você se lembra do que Burnett disse? Que parecia um tiro no escuro, porque, se eu não senti o cheiro de Stone, como ele poderia saber que eu tinha vindo aqui?

— E é verdade? — ela disse, sem entender.

— Bem, se Stone tem acesso às câmeras, sua namorada não precisaria me reconhecer. Ele poderia apenas olhar a gravação.

— Tudo bem — disse Della. — Mas e a sua teoria de que ele não é do tipo que tem um trabalho de verdade? Isso me pareceu lógico. E quanto à namorada humana?

Ele olhou para Della e seus olhos se arregalaram, como se descobrisse algo.

— Lembra do interrogatório de Sam? Ele disse que ouviu dizer que Stone contratava os clientes para fazer o trabalho pesado por ele.

Ela assentiu com a cabeça.

— Bem, talvez consertar apartamentos seja o trabalho pesado. Olhe as vantagens. Stone consegue morar aqui de graça, tem uma câmera para ver quem entra e sai e amigos em dificuldade para trabalhar para ele por nada. Ou talvez ele os deixe morar aqui de graça.

— É possível — disse ela, e bem nesse instante uma brisa fresca trouxe o cheiro de um lobisomem.

— Você sentiu esse cheiro? — ela perguntou e olhou em volta, sem ver ninguém.

— Sim. Lobisomem, mas não é forte — disse ele. — Talvez um mestiço. E talvez um membro da gangue dos Bastardos.

— Que apartamento é? — Della estendeu a mão para a maçaneta da porta, ansiosa para pegar o cara.

— Calminha aí — disse Chase.

— Por quê? — perguntou Della.

— Acho que a gente precisa avisar Burnett primeiro.

— Por quê? — ela repetiu.

— Se Stone estiver aqui, pode ser perigoso.

— Para ele, não para nós — disse Della.

— Não sabemos quantos amigos dele moram aqui.

— Só estamos sentindo um cheiro fraco.

— Outros lobisomens poderiam estar atrás dessas portas. Principalmente se forem mestiços. O cheiro deles pode ser indistinguível.

Ela franziu a testa.

— Burnett pode estar do outro lado da cidade. Não estou a fim de ficar sentada aqui e deixar esse cara fugir.

— Ele não vai fugir. Vamos esperar. — Chase tirou o celular do bolso.

Della ouviu quando Chase informou Burnett e deu o endereço, um pouco contrariada por ele não achar que podiam lidar com aquilo sozinhos.

— Tudo bem — disse Burnett. — Chego em dez minutos se não pegar trânsito. Vou ligar para mais alguns agentes e mandar que nos encontrem aí. Não fiquem fora do carro. E mantenha Della na coleira. Sei que ela está ansiosa para entrar.

O olhar de Chase deslocou-se para ela.

— Pode deixar. — Ele desligou.

Della olhou para ele.

— Ah, você acha que vai me manter na coleira, é isso?

— O que eu ia dizer a ele? — Chase deu de ombros.

— Talvez que não achasse que eu precisava de uma coleira.

— Ele só quer ter certeza de que você está segura.

— Desde quando você fica do lado de Burnett? Pensei que nem gostasse dele.

Chase suspirou.

— Ele acaba cativando a gente.

Della assentiu.

— É verdade, mas age como se eu não pudesse cuidar de mim mesma.

— Se ele de fato pensasse assim, não teria nem cogitado a ideia de torná-la uma agente.

— Se dependesse dele, eu não me tornaria mesmo.

Por um segundo, Chase desviou o olhar outra vez para os apartamentos.

— Ele perdeu uma agente que estava treinando. Parece que foi difícil para ele. Acho que se lembra dela quando olha pra você.

Della ficou ali parada, olhando para ele.

— Como você...? Ele te disse isso? — ela perguntou.

— Não que se lembra dela ao ver você, mas ele me contou sobre ela. E eu meio que percebi isso.

— Ele simplesmente contou isso a você?

Chase olhou para Della como se ela estivesse com ciúme. E, sim, talvez estivesse um pouco.

— Não é como se estivesse me fazendo confidências. Mas me falou, sim, do temperamento dele. Estava me passando o maior sermão porque eu tinha ido à prisão e me disse que tinha perdido uma agente que estava treinando e não pretendia perder outro.

Eles ficaram sentados ali no carro em silêncio por alguns minutos. Della pegou o celular e verificou seus e-mails para não deixar que o silêncio mexesse com seus nervos.

Mas, quando encontrou um e-mail da irmã, não sentiu mais que checar e-mails fosse algo que trouxesse alívio ao seu estresse. Decidiu não lê-lo. Seu novo lema de duas palavras funcionou bem neste caso também. Agora não.

Della colocou o aparelho no bolso. Então sentiu Chase observando-a.

— Pare — ela disse.

— Pare o quê?

— Não fique me encarando.

— Desculpe, só queria dizer... obrigado.

— Pelo quê?

— Pela noite passada. A coisa toda do necrotério.

O coração dela se apertou ao se lembrar.

— Ainda acho que Eddie deveria levar um tiro por levá-lo lá.

O silêncio encheu o carro.

— Ele não é má pessoa, Della.

— O que a esposa dele disse? Uma mulher saberia que não era a coisa certa a fazer.

— Não havia nenhuma esposa.

— Nunca houve? — ela perguntou. — Por quê? Ele é gay?

O queixo de Chase caiu.

— Não. Ele sai com garotas às vezes.

— Então é mulherengo.

— Não. Ele era casado. Disse que seu coração pertenceu a uma única mulher. E nunca levou nenhum outro relacionamento muito a sério.

— O que aconteceu com a esposa dele? — perguntou Della. — Ela o deixou?

Chase fez que não com a cabeça.

— Ela era pesquisadora da área médica como ele. Aconteceu uma explosão.

Della viu a expressão de Chase ficar mais séria.

— Sinto muito — disse.

— Eddie tinha acabado de sair do prédio. Acho que ele sentiu como se devesse ter morrido com ela.

— Isso é triste — disse Della.

— Sim — concordou ele. — Eles tinham uma ligação de sangue.

Della desviou o olhar, não querendo pensar nisso.

— Ele ainda assim não deveria ter deixado você ir ao necrotério.

— É a mesma coisa que ir a um funeral — disse ele. — Mas eu meio que entendo você. Não gosto do seu pai, também.

Ela olhou para Chase.

— Eu disse que ele nem sempre foi assim. Meu pai era um homem paciente, gentil e achava que eu era a menina dos olhos dele.

— Sinto muito — disse ele. — É só jeito de falar... — Ele soltou um profundo suspiro. — Só estou dizendo que me sinto protetor com relação a você, também. Como você em relação a Eddie.

Ela queria negar, mas não conseguiu. Lembrou que tinha ouvido o coração de Chase dar um salto na noite anterior, por ter mentido quando disse que não estava com ciúme.

— Você de fato não sabe onde Eddie está?

— Não. — Chase olhou para ela sem piscar, como se, deixando-a olhar no fundo dos seus olhos, ela pudesse ver a verdade ali.

— Dói saber que você ainda não acredita em mim.

— Eu não sei em que acreditar. — Por alguns instantes ela não disse nada. — Como você vai descobrir se alguém no Conselho sabe alguma coisa sobre Stone?

— Acho que vou falar com uma pessoa — disse ele e ainda parecia irritado.

Della hesitou.

— Você não acha... que eles podem ferir você, acha?

— Acho que não — disse ele. Mas não pareceu muito convincente aos olhos de Della.

Outro silêncio caiu como uma garoa no carro.

— Ei! — Chase por fim disse. — Sem dar na vista, olhe aquele cara saindo do apartamento dez... à sua direita. Consegue ler o padrão dele? — Chase levantou o nariz e farejou.

Della virou a cabeça devagar.

— Acha que é Stone?


Capítulo Trinta e Quatro

Tomara que seja Stone! Tomara que seja Stone! Della afastou o cabelo do ombro, tentando parecer normal.

— Não, é muito jovem, mas pode ser um dos seus trabalhadores braçais — disse Chase.

Della o localizou. O sujeito tinha cabelo castanho, cerca de 20 anos e vestia jeans e camiseta preta. Mas estava longe demais para que ela pudesse verificar seu padrão.

— Ele está com uma caixa de ferramentas nas mãos.

— Eu sei — disse Chase.

Sem querer que ele a pegasse encarando, ela olhou ao redor por alguns segundos, para disfarçar. Mas, quando os passos dele o levaram para mais perto do carro, Della voltou a encará-lo.

— Mestiço de lobisomem — ela sussurrou e desviou os olhos, porque, se ela podia ler o padrão dele, ele também podia ler o dela. — Acha que ele pode sentir seu cheiro?

— Nem todos os lobisomens mestiços têm a capacidade de farejar rastros — disse Chase, mas, em seguida, murmurou: — Merda. Ele está vindo para cá.

Tudo o que Della viu foi Chase puxando-a para mais perto e colando os lábios nos dela.

— O que está fazendo? — perguntou Della quando a boca de Chase se fundiu com a dela.

— Assim ele não vai poder ler os nossos padrões. — Seus lábios continuaram a massagear os dela. — Além disso, foi você que me ensinou esse truque. No bar, lembra?

Ela preferia não se lembrar. Os passos na direção do carro ficaram mais próximos. Assim como os lábios de Chase.

— Me beije, Della. — Ele passou a língua pelo lábio inferior dela. — Não me obrigue a fazer todo o trabalho.

Ela abriu a boca. A língua dele deslizou por entre os lábios dela. Seu hálito tinha um gostinho de pasta de dentes, um gostinho de... Chase. E de algo muito proibido.

Ele passou a mão esquerda pelo cabelo dela e delicadamente sustentou sua cabeça. Com um puxão suave, ele a trouxe para mais perto. Ela parou de lutar contra ele e se deixou levar — para um lugar onde não havia nada além de doçura e possibilidades.

Um lugar em que aqueles passos quase não eram ouvidos.

Onde o limiar entre fingir um beijo e beijar de verdade ficava meio indefinido.

Chase se inclinou para trás. Della abriu os olhos e olhou para ele.

Seu coração disparou e ela se sentiu perdida no gosto dele, no toque suave da sua mão atrás do seu pescoço. O sorriso nos olhos dele a acalmou. Ela olhou em volta.

— Para onde ele foi? — ela conseguiu perguntar.

— Apartamento dezesseis. — Ele mergulhou de volta para dar outro beijo. E ela deixou. Em seguida, percebendo o que estava fazendo, ela colocou a mão no peito dele e afastou a boca. Não chegou a empurrá-lo, mas pensou nessa possibilidade.

— Tem certeza? — ela perguntou.

— Sim. — Ele roçou os lábios contra os dela outra vez.

— Então é melhor a gente parar. — Ela se afastou apenas alguns centímetros. Com a mão ainda em volta do pescoço dela, ele se aproximou ainda mais e recuperou aquele espaço minúsculo.

— Nós não temos que parar. — Ele sorriu. Seus olhos verdes estavam tão próximos que ela podia ver suas íris, ainda saborear a sua língua, ainda sentir sua respiração no queixo.

— Temos, sim — disse ela, com muito mais firmeza.

— Por quê? — Ele apertou os lábios contra o canto da boca de Della.

— Porque Burnett está parado ao lado da sua janela.

* * *

Chase saiu do carro, certo de que ser pego aos beijos ali seria muito mais humilhante do que ser mordido na bunda por aquele maldito cachorro da semana anterior. Sentiu-se ainda pior quando viu que não estava ali apenas Burnett, mas também a agente Trisha, que conhecera no dia anterior, e Shawn, o agente bruxo que tinha uma queda por Miranda, a companheira de cabana de Della.

— Já viram Stone? — perguntou Burnett. — Ou estavam muito ocupados?

— Não Stone, mas um mestiço de lobisomem e humano acabou de entrar no apartamento dezesseis. E foi por isso que estávamos... escondendo os nossos padrões. — E aquilo soou muito mais convincente quando ele mencionara a Della do que para Burnett.

— Ah, era isso que vocês estavam fazendo? — perguntou a agente, sorrindo.

Burnett franziu a testa.

— Será que ele farejou o cheiro de vocês?

— Parece que não — respondeu Chase.

— Qual é o apartamento de Stone?

— Apartamento dois — disse Chase. — Ao lado do escritório.

— Tudo bem — disse Burnett. — Vocês dois...

Burnett não chegou a terminar. A porta do apartamento se abriu e quatro rapazes saíram de lá.

Quando deram de cara com os agentes, todos os quatro dispararam em direções diferentes.

— Veja se Stone está no apartamento dele ou no escritório — mandou Burnett, decolando.

— Eu verifico o apartamento dois — disse Trisha, correndo.

Chase decolou logo depois, atrás de outro lobisomem, e viu Della e Shawn fazendo o mesmo.

Ao executar um movimento rápido, seus pés bateram contra o pavimento e Chase sentiu uma pontada na lateral do corpo, lembrando-o de que não estava totalmente curado. Ele ignorou e continuou.

O cara era rápido, mas não tão rápido assim. Chase estava a poucos metros dele, o cabelo escuro voando ao vento. O odor do corpo do lobisomem encheu o espaço aéreo de Chase. Suas narinas inflaram, quando o cheiro lhe pareceu familiar.

Um segundo antes de agarrar ao ombro do rapaz, ele se lembrou de onde se deparara com o lobisomem antes.

Aquele era o mesmo cretino que tinha agredido Della.

Ele derrubou o cara no chão. Depois caiu em cima dele. O mestiço de lobisomem tentou se desvencilhar, mas Chase colocou a mão na parte de trás da cabeça do sujeito e empurrou o rosto dele contra o chão com firmeza suficiente para que percebesse a sua força.

— Não se mova — Chase sibilou. — Ou faça isso e vou ganhar meu dia.

Sua fúria aumentou agora que tinha certeza de que aquele cara era um dos que estivera no parque. Ele se lembrou com clareza do instante em que viu um dos punhos do mestiço de lobisomem recuar para atingir Della, e Chase teve que se esforçar para não deixar que os seus olhos ficassem ardentes.

Agarrando o cara pelo braço, arrastou-o através do estacionamento até seu carro.

Burnett o encontrou no meio do caminho, levando de reboque um dos outros fugitivos. Shawn estava colocando outro no banco de trás de um sedã preto. Trisha, do lado de fora do apartamento dois, sacudiu a cabeça, avisando que Stone não estava lá.

Chase se virou para procurar Della. O estacionamento estava vazio.

Onde diabos ela estava?

Della se moveu rápido, farejando o ar. O cara tinha desaparecido entre os prédios de apartamentos. Ela sentira o cheiro de lobisomem ao saltar do carro de Chase, mas tinha deixado isso para trás enquanto farejava o novo odor. O que ela agora tentava fazer era seguir um vampiro e talvez o rastro de um bruxo. Com certeza um mestiço.

Contornou vários carros, achando que o cara poderia estar escondido. Ele não estava ali.

Então ouviu um grito. O grito de uma criança. Vindo de uma construção a distância. Ela decolou, esquecendo, de uma vez por todas, a regra de Burnett que proibia a truculência.

O grito foi silenciado. Della continuou avançando. Viu a porta de um apartamento sendo aberta. E ouviu um grito abafado lá dentro.

Por um segundo ficou em dúvida se entrava ou não. Um gemido soou mais uma vez. Della disparou para a frente.

Parou assim que o viu. O vampiro tinha o braço em torno de uma criança e cobria sua boca com a mão. Na outra, segurava uma faca. A menina, de pele escura, com fitas amarelas no cabelo, tinha lágrimas escorrendo pelo rosto. Parecia apavorada. O que não era nenhuma surpresa.

— Solte a criança! — disse Della, lutando para evitar que os olhos ficassem mais brilhantes. Não por causa da regra de Burnett, mas por medo de assustar a garotinha.

— Afaste-se da porta — ele sibilou, os olhos verdes fosforescentes e suas presas agora visíveis. Ele tirou a mão da boca da menina e puxou-a para mais perto. Em seguida, colocou a faca em sua garganta.

A garota soltou um grito fraco. Della verificou o padrão dele enquanto se afastava da porta. Ela tinha razão. Vampiro. Dominante com um traço de bruxo.

— Estou me afastando — disse Della. — É só largar a garota e eu deixo você ir.

O coração de Della deu um salto. Se ele tentasse fugir com a menina, ela teria que detê-lo. Não havia dúvida de que mataria a garota se fugisse com ela.

A Della não faltavam forças para capturá-lo, mas ela teria coragem de tentar, sabendo da rapidez com que aquela faca poderia cortar a garganta da criança?

O olhar da menina encontrou os dela. O marginal pressionou a faca um pouco mais.

— Se manda — disse Della. — Eu não vou persegui-lo. Basta soltar a menina. Ela é uma criança. Não fez nada.

O vampiro agarrou a criança e arremessou-a através da sala.

Della pulou no ar e pegou a menina antes que ela batesse na parede, aterrissando no meio da sala de estar.

Então puxou a garotinha contra ela.

— Está tudo bem — disse Della, mas ela teve que desviar o olhar do rosto da criança, quando sentiu seus olhos arderam de fúria.

Mas aquilo nem chegou a ser um problema, porque a menina enterrou o rosto no ombro de Della e começou a soluçar.

Segundos mais tarde, Chase entrou correndo. Seus olhos estavam brilhantes, suas presas meio projetadas.

Ela balançou a cabeça. Ele assentiu e correu para fora.

Segundos mais tarde, Shawn entrou. Fez um sinal com a cabeça e ela sabia o que ele queria dizer. Ela devia passar a criança para ele e cair fora.

Antes que fizesse isso, deu um último tapinha nas costas da menina.

— Pronto, acabou.

— Você fez a coisa certa — disse Burnett a Della, trinta minutos mais tarde.

Uma van já tinha chegado e levado os três mestiços embora. A menina tinha sido levada ao hospital apenas para se certificarem de que estava bem. Stone não estava mais lá. A síndica dos apartamentos, uma humana idosa que mantinha um cigarro apagado pendendo dos lábios, deu a eles a má notícia. Douglas Stone tinha juntado seus trapos e dado o fora algumas semanas antes. Só tinham ficado aqueles quatro “amigos” dele, que o haviam ajudado a se mudar do apartamento.

Burnett pediu a Chase para ficar com Della do outro lado da rua, onde eles estacionaram ao lado de um restaurante fast-food e assistiram enquanto Burnett, Trisha e Shawn tratavam com a polícia.

Como Della era menor de idade, Burnett não queria que ela fosse envolvida no caso. Eles tinham mudado a história; Trisha agora era a oficial que tinha salvado a menina. Não que Della se importasse. A garota estava segura, era isso que importava. Mas não era tudo o que importava.

— Ele escapou — disse Della. Para sua surpresa, sua voz soou calma, mas por dentro ela ainda não tinha parado de tremer. Ficava vendo aquela garotinha e a faca em sua garganta.

Chase estava ao seu lado. Muito perto. Ela sentia o ombro dele contra o dela. Mas não tinha forças para empurrá-lo.

— Mas isso poderia ter terminado muito pior — disse Chase.

— Ele está certo — disse Burnett. E então perguntou: — Você está bem?

— Vou ficar — assegurou ela, e seu coração não saltou denunciando uma mentira. Ela ficaria bem, só não estava bem naquele momento.

— Você conseguiu alguma coisa com os lobisomens?

— Ainda não — disse Burnett. — Mas vamos conseguir. — Ele se aproximou e colocou a mão no ombro dela. — Você salvou aquela menina, Della. Fez a coisa certa.

— Eu sei — disse Della. — Mas nós ainda não temos Stone. E em alguns dias meu pai vai a julgamento por assassinato.

— E nenhum de nós está desistindo. — Burnett olhou para Chase. — Por que você não a leva de volta para Shadow Falls?

— Não! — protestou Della. — Você não me ouviu? O tempo está se esgotando.

— Mas...

— Não — ela repetiu. — Ainda não fomos à casa da namorada de Stone.

Por um segundo, Burnett pareceu que iria discutir com ela, em seguida soltou um profundo suspiro.

— Tudo bem, vamos — concordou Burnett. — Eu encontro vocês lá.

— Podemos fazer isso sozinhos se você quiser ir para a UPF fazer os interrogatórios — sugeriu Chase.

— Não — disse Burnett. — Eu vou. Não deve demorar muito.

— Espere! — Chase tocou a testa. — Acabei de me lembrar.

Della olhou para Chase.

— O cara que eu peguei. Eu o conhecia de outro lugar.

— De onde? — perguntou Burnett.

— O mestiço de lobisomem que eu peguei. Reconheci o cheiro dele. Eu ia te dizer, mas então tudo aquilo aconteceu. Ele é um dos caras que atacaram Della aquela noite e aquele que cheirava a sangue de animais mais cedo naquela mesma noite. Ele faz parte do grupo que matou os Chi e os outros lobisomens.

— Tem certeza? — perguntou Burnett.

— Se tenho certeza de que ele matou os Chi? Não. Mas tenho certeza de que é o mesmo cara sujo de sangue e o mesmo que atacou Della no parque.

Della o ouviu, mas teve que se esforçar para entender o que Chase estava dizendo.

— Espere aí. Você está falando que Stone, ou pelo menos sua gangue, está envolvida no assassinato dos Chi também?

— Para que lado eu vou? — Chase perguntou a Della alguns minutos depois, quando entraram no carro para tentar encontrar a namorada de Stone. Ele preferia que Burnett tivesse insistido para que ele levasse Della de volta a Shadow Falls. Dava para ver que ela ainda estava abalada. Era evidente.

Ele teria ficado abalado também. Já tinha resgatado uma mulher das mãos de um pilantra antes, mas quando se tratava de uma criança, as coisas ficavam mais tensas ainda.

— Não importa — disse Della.

Chase estendeu a mão e pegou a dela.

— Vai ficar tudo bem.

Ela balançou a cabeça.

— Não, se não encontrarmos Stone não vai ficar tudo bem.

— Nós vamos pegá-lo. — O peito de Chase ficou apertado quando ele viu o brilho das lágrimas nos olhos de Della.

Ela enxugou o rosto.

— A síndica do condomínio disse que Stone foi embora e a maioria dos seus ajudantes também. Qual é a chance de esses caras saberem onde ele está? Eles com certeza não sabem, já que ele nem se deu ao trabalho de levá-los com ele.

— Eu diria que a chance é muito boa — disse Chase. — Eles sem dúvida eram da gangue.

— Eu gostaria de acreditar nisso — disse Della. Mais algumas lágrimas caíram de seus olhos. E por um segundo ele quis dizer a Della que Eddie não iria deixar o pai dela pagar pelo crime — que ele se sacrificaria, mas Chase tinha prometido não deixar isso acontecer. E ainda pretendia não deixar.

— Ainda não acabou. — Chase começou a seguir em direção ao carro. E ele estava determinado a encontrar Stone e certificar-se de que nem Eddie nem o pai de Della pagariam pelo assassinato.

Della tentou empurrar o sentimento de tristeza e melancolia para o fundo do peito enquanto Chase dirigia. Mas tudo o que sentia era o tempo se escoando. Por causa dela, seu pai poderia ser condenado por assassinato. Por causa dela, poderia pegar pena de morte. Não havia como ignorar aquele sentimento de tristeza.

Chase estacionou no meio-fio.

— Qual é a casa? — ela perguntou, olhando para fora.

— Pope disse que ficava ao lado de um restaurante mexicano vagabundo. Todas essas três casas são adjacentes a este centro comercial.

Della desceu do carro; o cheiro de comida mexicana impregnava o ar. Cebola, carne grelhada. Mesmo que ela pudesse gostar do sabor de cebola, o cheiro era quase insuportável. Mas, pensando bem, poderia ser por causa do cheiro de alho misturado a ele.

Ou seria outra coisa?

Ela farejou um leve aroma de algo realmente repugnante. Viu Chase levantar a cabeça, como se tentasse identificar o cheiro também.

Burnett estacionou ao lado deles.

Os três caminharam até virar a esquina. Ninguém disse nada; por mais ilógico que parecesse, era quase como se tudo o que sentissem fosse algo ruim prestes a acontecer.

As três casas alinhadas na rua estavam pintadas de diferentes tons de azul.

Duas crianças brincavam do lado de fora da primeira. A mente de Della voltou para a menina com a faca na garganta. Ela piscou, afastou o pensamento e lutou contra o desejo de pedir às crianças que entrassem.

A segunda casa tinha uma placa de ALUGA-SE pregada na porta da frente. Burnett se dirigiu à varanda. Della o viu inclinando a cabeça para o lado, ouvindo para saber se havia alguém lá dentro. Então ele levantou o rosto novamente como se tentasse farejar algum cheiro.

Della e Chase continuaram seguindo em frente e subiram os degraus da varanda da casa de número três. Della ainda não tinha colocado os dois pés no último degrau quando o cheiro aumentou dez vezes. Um cheiro muito, muito ruim. Ela deu mais um passo em direção à porta.

— Espere. — Chase segurou o braço de Della e impediu-a de chegar mais perto.

— Por quê? — perguntou Della e colocou a mão sobre o nariz. Ela mal teve tempo para cobri-lo quando o ruído a atingiu. Um zumbido. Ela olhou pela janela da varanda e sua primeira impressão foi de que o vidro tinha virado líquido e se mexido. Mas não, não era vidro em movimento, só moscas. Milhares de insetos, zumbindo para todo lado e cobrindo o lado de dentro da janela.

O fedor chegou até ela, atravessando a palma da mão que cobria o nariz. E Della instintivamente soube que a namorada de Stone tinha entrado num caminho sem volta.

E “sem volta” era a palavra-chave.


Capítulo Trinta e Cinco

Seguindo as ordens de Burnett, Chase deixou Della em Shadow Falls, depois voltou à cena do crime. Chegou lá apenas a tempo de ver pessoas com trajes de segurança retirando um corpo da casa, pedaço por pedaço.

Chase já tinha visto muitos crimes horríveis, mas aquele era de longe o pior.

Ele ficou ao lado de Burnett.

— Não vou ficar em Shadow Falls por mais tempo — disse Chase. Tudo o que ele podia pensar era em Della ou outra pessoa correndo o risco de se deparar com o monstro que fizera aquilo.

Pela primeira vez, Burnett não discutiu.

— No escritório, temos um quarto de casal na parte de trás.

— Não, Natasha está voltando para casa hoje, não está?

— Sim — disse Burnett.

— Então vou ficar na minha cabana.

Burnett franziu a testa.

— Eu preferiria que...

— Eu sei que você preferiria que eu ficasse no escritório, mas prefiro ficar lá. Sou um agente, não um aluno de Shadow Falls.

Burnett concordou.

— Tudo bem. — O homem passou a mão pelo cabelo. — Não conte isto para Della, ela já está com a cabeça cheia, mas acabei de colocar dois agentes para vigiar a casa dos pais dela.

— Por quê? — perguntou Chase.

— Porque não acredito em coincidências — disse Burnett. — Se vocês estão certos e os mestiços de lobisomem de fato fazem parte do grupo que assassinou o senhor e a senhora Chi, então é a gangue dos Bastardos que deve estar fazendo isso. Todos os três assassinatos que estamos investigando foram cometidos a menos de quatro quilômetros da casa de Della. Isso me fez pensar, por que ali? Talvez Stone não esteja tão preocupado em procurar você, mas sim o tio de Della. Ele pode estar vigiando a casa de Della, pensando que um de vocês pode aparecer por lá. Se suspeitamos que o pai de Della viu o assassinato, então Stone pode pensar que o pai dela sabe sobre o irmão e entrou em contato com ele.

— O perito definiu a causa da morte da namorada de Stone como homicídio — Burnett disse a Della no dia seguinte, quando ela entrou no escritório.

No dia anterior, Burnett tinha feito Chase levá-la de volta para Shadow Falls, antes que tivesse que chamar a polícia humana e outros agentes para virem ajudar na investigação do assassinato de Jamie Brown, a namorada de Stone. Della tinha passado a tarde e a noite do dia anterior remoendo tudo e se preocupando. Kylie e Miranda tinham tentado fazê-la falar e Della tinha resistido. Mais uma vez.

Conhecendo Miranda, ela provavelmente estava chateada, mas Kylie... Kylie sempre era mais compreensiva, e devia ter dito à bruxa para dar um tempo a Della. Mas esse tempo não iria durar muito.

Como não havia outras pistas sobre o caso do pai, Della não tinha desculpa para não ir às aulas. Como faltavam quinze minutos para a de inglês, ela já tinha se levantado e saído da cabana.

— Um dos lobisomens mestiços nos deu alguma pista para investigar? Você já comprovou que os dois casos estão ligados? — ela perguntou e, pronto, no mesmo instante, o cheiro da morte se esgueirou até a sua memória sensorial. Ela na verdade já tinha vomitado duas vezes naquele dia.

O olhar de Burnett lhe revelou a resposta antes que ele abrisse a boca.

— Não, mas vou voltar lá daqui a pouco e tentar mais uma vez. Ouvi dizer que você preferia não ir à escola — disse Burnett.

— Mas eu não tenho outra saída — ela respondeu.

Depois que ela deixou a aula de inglês, voltou para a sua cabana e escreveu à irmã outro e-mail, perguntando se as coisas estavam indo bem. O e-mail que ela tinha recebido no dia anterior e só tinha lido no meio da noite, depois de desistir de tentar dormir, era apenas mais uma mensagem ríspida dizendo que ela não perdoaria Della por abandoná-la.

Della tinha respondido ao e-mail, tentando explicar que não tinha sido escolha dela, mas é claro que a irmã não iria acreditar.

Naquela manhã Della também tinha telefonado à mãe, para saber em que pé estavam as coisas. Ninguém tinha atendido.

Será que já estava acontecendo? O pai tinha proibido todo mundo de se comunicar com ela? A possibilidade de que ele soubesse que ela era uma vampira parecia cada vez mais provável.

Della desabou na cadeira em frente à mesa de Burnett.

— Sabemos que a namorada foi assassinada. Como é que isso ajuda?

— A UPF já começou a investigar o caso.

Lágrimas encheram os olhos dela.

— Não estamos chegando a lugar nenhum. Não temos nada para provar que o meu pai é inocente.

— Temos o dr. Timmons, que é um advogado muito bom, e temos um membro da promotoria trabalhando conosco.

— O juiz? Alguma novidade sobre isso? — perguntou Della.

Algo nos olhos de Burnett lhe disse que ele tinha notícias, mas não eram boas.

— Já designaram um juiz para o caso.

— E ele não é um dos nossos? — perguntou ela, sentindo uma lágrima deslizar pelo rosto.

— Não, mas a UPF ainda está tentando mudar isso.

Ela balançou a cabeça.

— Se ele for condenado, Burnett, não vou conseguir conviver com isso. Juro, eu não vou.

Burnett franziu a testa.

— Della, sei que é difícil, mas você está olhando tudo isso da maneira errada. Mesmo que haja um julgamento agora, o dr. Timmons disse que está certo de que temos uma boa chance de ganhar.

O nó de dor se apertou um pouco mais no peito de Della.

— Eles têm o que acham que é o sangue do meu pai na arma do crime.

— Eu sei, mas ele estava lá durante o ataque. Eu falei com o dr. Timmons esta manhã. Ele disse que a polícia se esqueceu de tirar fotografias de seu pai, ou que eles as perderam. Ele vai argumentar que o seu pai tentou defender a irmã e sofreu um pequeno corte que passou despercebido.

Della parou para pensar nisso.

— O arquivo da polícia não disse se ele foi para o hospital — disse Della, lembrando-se.

— Eu sei. O advogado perguntou ao seu pai. No começo, ele alegou que não se lembrava, em seguida disse que todo mundo estava atordoado demais com a morte da irmã.

— Minha mãe disse que ele foi mais tarde, mas para um hospital psiquiátrico. — Ela pensou um pouco naquilo. — E se ele lembrou de algo depois e contou enquanto estava lá? Isso seria ruim. A regra do sigilo entre médico-paciente vai impedir que consigam alguma informação?

Burnett franziu a testa.

— Seu pai não mencionou esse período em que ficou no hospital. Até agora, a promotoria não trouxe isso à baila. Nós não sabemos se estão apenas sendo negligentes e não descobriram que ele ficou lá, ou se o promotor-chefe tem medo de abrir esses registros por receio de que isso possa convencer seu pai a mudar a apelação, alegando insanidade mental.

Della se concentrou naquilo por um segundo.

— Mas o dr. Timmons poderia conseguir esses arquivos. Talvez haja alguma coisa lá que possa ajudar no caso do meu pai.

Burnett recostou-se na cadeira.

— Se ele fizer isso, vai ser obrigado a mostrá-los à promotoria.

Della engoliu em seco.

— Ele não foi atrás deles porque tem medo de que haja algo desfavorável nesses arquivos? Então, o que você está dizendo é que o advogado acha que o meu pai está mentindo. E se for esse o caso, então o meu pai viu o irmão no modo vampiro e ele sabe o que eu sou. Eu estava certa: ele está com medo de mim.

Burnett franziu a testa.

— O dr. Timmons está apenas sendo cauteloso. Sei que é difícil, mas não olhe pelo lado negativo. Que tal se eu lhe der uma boa notícia?

— Sobre o caso do meu pai? — perguntou Della.

Burnett suspirou.

— Sua pista sobre os tênis de pele de cobra nos deu o nome de um lobisomem. E ele tem um registro. Há uma notificação de alerta e eu tenho vários agentes atrás dele agora.

Della tinha se esquecido totalmente disso.

— Então, o cara que Chase capturou e reconheceu não era um deles?

— Não sabemos com certeza. Eles não estão falando ainda. Mas o que nós acreditamos é que o cara dos tênis de cobra e aquele que Chase derrubou estavam ambos envolvidos.

— É nisso que Chase está trabalhando? — perguntou Della. Ele tinha passado na cabana dela na noite anterior, mas ela se recusara a vê-lo. Após a sessãozinha de amassos no carro e de tudo que tinha acontecido depois disso, ela não saberia o que dizer a ele.

Chase não tinha tentado vê-la aquela manhã e parte dela tinha ficado decepcionada.

Burnett hesitou.

— Não, ele deve estar tentando descobrir outra coisa.

— Sobre o caso de meu pai?

Burnett concordou.

— Então por que não estou com ele? — Ela se sentou. — Você disse que eu podia trabalhar neste caso.

Burnett ergueu as mãos.

— Ele tinha que fazer isso sozinho. Ia tentar descobrir o que o Conselho dos Vampiros sabe.

— Sozinho? — perguntou Della.

— Chase confia num dos membros do Conselho, um tal de Kirk Curtis. Ele está esperando que Curtis esclareça alguma coisa sobre por que o senhor Powell estaria tentando proteger Stone.

Della respirou fundo.

— Mas e se esse Kirk estiver envolvido também? Poderia atrapalhar tudo e até colocar Chase em perigo. Você não deveria ter deixado que ele fosse sozinho.

Burnett franziu a testa.

— Chase foi categórico ao dizer que o senhor Curtis não está por trás disso.

— E se ele estiver errado? — perguntou Della.

No caminho de volta para a cabana, Della mandou uma mensagem para Chase. Me liga!

Ela ficou com o celular na mão, à espera de uma mensagem ou de um telefonema dele. Ele não escreveu nem ligou. Era bem o que ela precisava! Outra coisa com que se preocupar.

Ela percorreu todo o caminho até a cabana e o celular não tocou. Della entrou, ficou de pé no meio da sala de estar e se sentiu claustrofóbica, como se as paredes estivessem se fechando sobre ela. O pensamento de sair para correr e gastar energia a tentava, mas por que gastar energia em exercícios físicos quando podia gastá-la em algo mais útil?

Ela foi para o quarto, pegou arquivo do caso do pai e voltou a sair para lê-lo.

Leu algumas linhas, em seguida olhou para o celular.

— Por favor, dê algum sinal de vida! — ela murmurou.

Ela pegou o telefone e estava na metade da mensagem, insistindo para que Chase tivesse cuidado, quando o aparelho tocou. Ela aceitou a chamada no ato e colocou o celular no ouvido.

— Chase?

— Della?

— Mãe. — Della fechou os olhos.

— Quem é Chase?

— Um amigo — disse Della. — Está tudo bem?

— Sim, estou retornando sua chamada desta manhã — a mãe explicou.

— Eu sei, só queria... Queria saber como você está.

O silêncio do outro lado da linha fez os olhos de Della arderem outra vez. Conhecendo a mãe, ou ela estava tentando descobrir uma maneira de amenizar as coisas ou inventando uma mentira.

— A verdade, mãe.

— Estamos resolvendo as coisas. Você não deve se preocupar.

Della ouviu a mentira na voz da mãe. Assim como ouviu a dor em sua voz. A mãe estava prestes a desabar, e Della não estaria lá para apoiá-la. Ninguém estaria. A irmã estava ocupada com os seus próprios problemas. O pai estava no fundo do poço por causa da acusação de assassinato. E tudo era culpa de Della. Tudo. Ela tinha feito isso com eles.

— Como eu posso não me preocupar? E o papai, está bem?

A respiração da mãe estremeceu, um sinal revelador de que ela sucumbia às lágrimas.

— Meu celular está tocando. Preciso atender.

Não havia outra chamada. Della teria ouvido o toque do celular.

— Por favor, mãe — disse Della, mas já era tarde demais. A mãe tinha desligado.

Della ligou de volta, mas a ligação foi parar no correio de voz. Ela abraçou os joelhos e deixou que as lágrimas corressem, chorando junto com a mãe.

Kirk não estava no escritório do Conselho. Não havia ninguém lá. E, quando Chase olhou pela janela, viu que os móveis também não estavam mais no lugar.

Eles tinham se mudado. Tudo dentro da lei, temendo que a UPF pudesse pegá-los. E, sem dúvida, com Chase trabalhando para o lado inimigo, eles provavelmente estavam preocupados com a possibilidade de que pudesse entregá-los.

Embora ele não criticasse a decisão do Conselho, entendia o raciocínio deles, ainda doía saber que eles o consideravam um inimigo.

Ele tinha se sentido aliviado ao saber que a UPF não exigiria que ele lhes passasse informações sobre o Conselho. Mas descobriu, surpreso, que Burnett, ou seja, a UPF, tinha mais informações sobre o Conselho do que imaginava. Eles sabiam até a localização da Fossa do Inferno.

Confio em Kirk, Chase tinha dito a Burnett. E ele confiava. Kirk, amigo de Eddie, sempre estava por perto quando Chase era mais novo. Mas será que Kirk sabia que Powell estava protegendo Douglas Stone?

Chase voltou para o carro e dirigiu para Brown Lake, a casa de Kirk nos últimos dez anos. O lugar onde Chase havia passado muitas férias de verão desde que tinha sido transformado.

A única preocupação de Chase era que a casa do lago fosse o esconderijo de Eddie. Ele esperava que não. Não queria ter que mentir para Della ou Burnett, dizendo que ainda não sabia onde Eddie estava. Nem queria ouvir Eddie dizer que ele iria se entregar.

Chase sabia que Eddie tinha informações sobre o caso do irmão. Mas o tempo ainda não tinha se esgotado. Chase ainda tinha um pouco mais de uma semana para rastrear Stone. E ele não iria fazer corpo mole.

Enquanto seus pneus devoraram o asfalto, seu celular apitou no bolso do terno preto. Ele o pegou e leu a mensagem sucinta de Della.

Se ele ligasse, ela perguntaria onde ele estava indo. Não poderia mentir. Mas não queria falar sobre isso agora.

Ligaria mais tarde, quando tivesse certeza de que Eddie não estava lá. Quando soubesse que não tinha nada sobre o que mentir.

* * *

Sentada na varanda, Della já tinha lido e relido tantas vezes o arquivo que praticamente o decorara. Mas ela fazia isso mais uma vez. E por fim encontrou algo que não tinha notado antes. Na transcrição da chamada para o número de emergência, seu pai tinha dito que ele tinha invadido a casa, mas que eles tinham machucado a irmã. Então era mais de um agressor!

O que o pai realmente tinha visto? Tentou imaginar o que ele devia ter pensado ao rever o irmão gêmeo, que pensava estar morto.

Tentou imaginar o que Bao Yu devia ter pensado, frente a frente com um vampiro. Será que ela tinha visto Feng de fato? Ou será que o choque é que a fez culpar o pai de Della?

Uma peça do quebra-cabeça estava faltando. Uma brisa fria passou por ela.

— É você, Bao Yu?

Della recordou a preocupação de Holiday de que o fantasma pudesse de alguma forma feri-la. Ela não acreditava nessa possibilidade, mas não podia negar o arrepio de medo percorrendo a sua espinha.

Della estava tão absorta no pensamento sobre a tia que não ouviu uma pessoa se aproximando até que uma sombra obscureceu a varanda.


Capítulo Trinta e Seis

Chase estacionou o carro em frente à cabana de dois andares de Kirk, construída sobre palafitas. A varanda, na verdade, pairava sobre a água. O sol do meio-dia estava no meio do céu e a água o refletia em brilhos diamantinos. Nenhum carro estava estacionado na garagem.

Mas Kirk e os amigos nem sempre saíam de carro. Ele desligou o motor e saiu. Ergueu o rosto na brisa, captando o cheiro do lago, bem como um traço fugaz de vampiros. Mais de um.

Relaxou quando não detectou o cheiro de Eddie. Outra corrente de ar e reconheceu os rastros dos membros do Conselho. Outros lhe eram estranhos.

Chase ficou em dúvida se ia embora ou não. Ele na verdade queria conversar com Kirk sozinho.

Claro, se tinha farejado o cheiro deles, um deles com certeza teria farejado o seu.

Ir embora não era mais uma opção.

— Olá! — disse Della e olhou para Steve, tentando reprimir a expressão de preocupação ao vê-lo. Se ele viera “conversar”, bem, tinha chegado na hora errada. Porque ela já estava com a cabeça cheia no momento.

— Posso entrar? — ele perguntou.

— Eu não estou com disposição para...

Ele entrou de qualquer maneira. Ela parou de tentar não demonstrar preocupação e franziu a testa.

— Como você está? — ele perguntou e olhou para ela como Steve sempre olhava, com preocupação e paciência.

— Péssima! — ela admitiu. — Hoje não sou muito boa companhia. Então porque não...

— Eu ouvi alguma coisa sobre o que aconteceu. Não deve ter sido fácil.

— Eu sei, mas...

— Della, você está me evitando. Mais cedo ou mais tarde, precisamos conversar.

— Então, vai ser mais tarde. — Ela fez menção de se afastar.

Ele a segurou.

— Não faça isso.

— Não faça o quê? — Ela se desvencilhou dele e então se sentiu uma megera outra vez, mas não teria que ser uma megera se as pessoas a deixassem em paz! — Olha, sinto muito, mas já tem muita merda acontecendo na minha vida. Não dá pra amontoar mais ainda em cima da pilha.

— Tudo bem! — ele retrucou. — Mas não fuja. Sente-se. Por favor. — Os olhos castanhos e quentes a fitaram com doçura. — Fale comigo.

— Você é surdo? Será que não me ouviu? Eu não...

— Não precisamos falar sobre nós, estou me referindo a essa outra merda. Você não tem que passar por tudo isso sozinha.

Ela não estava passando, lhe ocorreu. Tinha Chase, mas podia não ter quando ele voltasse, porque ela iria matá-lo por não lhe mandar ao menos uma mensagem de texto. E ela tinha Kylie e Miranda — embora, depois das patadas do dia anterior —, elas pudessem não estar mais a fim de ficar ao lado dela. Mas Della não disse nada disso.

Olhando para Steve, ela deixou escapar:

— Desculpe. — Ela relaxou e abraçou os joelhos cobertos com o jeans. — O julgamento do meu pai é daqui a poucos dias. Minha irmã me odeia. Minha mãe está morrendo por dentro. Eu sei que meu pai está pirando. Tenho certeza de que ele sabe que eu sou uma vampira. E a culpa é minha. Eu causei isso a todos eles.

Ela poderia continuar falando e contar a ele que quase tinha visto uma garotinha sendo degolada com uma faca e sobre o cheiro da morte que continuava em suas narinas, mas não falou nada. Mesmo que não estivesse conseguindo lidar com tudo isso.

Ela pressionou a testa contra os joelhos e engoliu em seco, tentando lutar contra a vontade de chorar.

— O que Burnett diz de tudo isso? — perguntou Steve.

— Ele apenas continua me dizendo que a coisa não é tão ruim quanto parece. Mas a polícia tem uma arma com o DNA do meu pai nela. Ou melhor, com o DNA do meu tio, mas eles não sabem que ele está vivo.

Steve franziu a testa.

— Dá pra ver como isso está sendo difícil para você. O que é isto? — ele perguntou, apontando para os papéis.

— É um arquivo da promotoria sobre o caso.

— Uau! Você pegou?

— Burnett é que conseguiu. Venho tentando encontrar algo que possa ajudar.

Steve pegou o arquivo.

— Posso ver? Talvez você precise de um novo par de olhos.

Chase clicou no botão para erguer a capota do carro. Trancou as portas e, em seguida, começou a andar em direção à porta. Sem dúvida, estavam esperando por ele agora.

Ele inclinou a cabeça para o lado e tentou ouvir se estavam conversando. Ouviu um pato grasnando no lago, chamando um companheiro, um peixe espirrando água e o motor de um barco em movimento no lago.

Mas nem uma palavra veio da casa.

Ele cruzou a entrada de automóveis. Os pelos da nuca se eriçaram. Sentindo que alguém o observava, olhou para cima e no mesmo instante as cortinas na janela da frente se agitaram, voltando ao lugar.

Passou a mão na nuca, lutando contra a sensação de que problemas o aguardavam. Mas tratava-se de Kirk, ele disse a si mesmo. Ele confiava nele.

Não confiava? Neste exato momento Chase viu dois guardas na parte de trás da propriedade.

— Cheguei num momento ruim? — perguntou Chase, sabendo que os membros do Conselho, lá dentro, estavam ouvindo.

— Sim, mas já que você está aqui — foi a resposta de Kirk no interfone —, entre.

— Eles não chegaram a prender seu pai naquela época, certo? — perguntou Steve a Della quando terminou de ler.

— Não — disse Della. — Mas, segundo o detetive amigo de Derek, que leu o antigo arquivo do caso, ele era o único suspeito. Só não foi preso porque não tinham provas suficientes para levá-lo ao tribunal.

Steve voltou a olhar para o arquivo.

— Então, sabemos que ele ligou para o 911, mas depois disse que não se lembrava de nada. Verificaram se ele levou alguma pancada na cabeça?

— O arquivo não diz nem mesmo se foi levado para o hospital. Meu pai não ajudou muito. Ele diz que não se lembra, e meu tio disse a Chase que, quando chegou, meu pai estava inconsciente.

— E você não acredita nele? Ou acredita? — perguntou Steve.

— Eu não sei — disse Della. — Quer dizer, esse cara, Douglas Stone, ele de fato existe. Não é flor que se cheire e estava atrás de Chase para impedir que ele tentasse provar isso. Então talvez eu acredite que meu tio de fato seja inocente. Ah! — Ela pegou o arquivo, virou as páginas e apontou para uma linha. — E eu acabei de encontrar nas transcrições da chamada para o número de emergência que meu pai disse ao operador que “ele” invadiu a casa, mas que “eles” estavam machucando sua irmã. Isso não quer dizer que havia duas pessoas lá naquela noite? E praticamente comprova a versão do meu tio, porque ele disse que Douglas Stone chegou lá antes dele.

Steve ficou ali em silêncio, pensando.

— Mas por que ele pensaria que seu tio estava agredindo a própria irmã?

— Eu não sei. Talvez estivesse inconsciente quando Feng chegou lá e apenas a ouviu gritar ou algo assim. Mas o principal é que minha mãe disse que, pouco depois de tudo isso acontecer, eles tiveram que internar meu pai no hospital St. Mary, aquele hospital para loucos. Essa é mais uma prova de que ele viu alguma coisa. Mas o advogado do meu pai tem medo de requisitar os arquivos porque acha que podem conter alguma informação que prejudique meu pai.

— Ou poderia provar que ele foi atacado e por isso há o sangue dele na faca. Esses arquivos podem na verdade ajudar no caso.

Um sentimento de frustração brotou dentro dela e começou a extravasar. Della gemeu. Bem alto.

Percebendo quanto ela devia parecer louca, disse:

— Sinto muito.

— Pelo quê? — perguntou Steve.

— Por ser uma chata. Eu avisei que não seria boa companhia.

Steve hesitou.

— Você tem certeza de que era a Instituição Psiquiátrica St. Mary?

— Isso é o que minha mãe disse, por quê?

— Bem, e se você conseguisse pôr as mãos naqueles arquivos e descobrir se iriam ajudar ou prejudicar o caso do seu pai? E se ajudarem, você pode dizer ao advogado para conseguir que eles sejam reabertos e utilizados como provas.

— Como? — perguntou Della.

Steve deu de ombros e pareceu hesitar um pouco antes de dizer.

— Minha mãe vai lá um dia por semana. Ela é voluntária e visita os pacientes que não recebem visitas. Não sei se guardam os arquivos antigos lá, mas é possível.

— Sua mãe entregaria esses arquivos para mim? — perguntou Della, sem acreditar.

— Ah, claro que não! — admitiu Steve. — Só estou pensando que, se eu descobrisse onde eles guardam esses arquivos, poderia ir lá e deixar uma janela aberta e você poderia dar uma olhada neles.

— Ah, meu Deus, eu te amo! — disse Della, abraçando-o.

Levou apenas um segundo para Della perceber o que tinha dito e se dar conta do quanto aquilo deveria ter parecido estranho. Seus braços em torno de Steve. Os braços de Steve ao redor dela.

Certamente Steve não tinha achado que ela estava falando sério ao dizer que o amava... de verdade.

Ou tinha?

Ah, mas que inferno!

Chase tratou de se apressar ao subir os degraus. Viu os dois guardas começando a vir na direção dele, quando atravessou a porta da frente.

Kirk esperava na entrada, junto com os outros membros do Conselho.

Chase observou o rosto de Kirk, tentando decifrar sua expressão.

— O que está havendo?

Chase ouviu os passos do guarda na varanda.

— Parem! — Kirk rosnou. — Não vai haver derramamento de sangue!

Os passos se detiveram.

Chase olhou para o homem que ele tinha aprendido a amar e confiar, e foi então que percebeu que havia algo errado. Kirk sabia de Stone. Todo o Conselho estava envolvido no assunto.

— Por que vocês estão protegendo Douglas Stone?

Powell deu de ombros, como se admitisse sua derrota.

— O sujeito que você chama de Douglas Stone é meu filho.

Chase olhou de Powell para Kirk.

— E você sabia que ele matou a irmã de Eddie e mentiu para ele durante todos esses anos?

— Eu não sabia a princípio — disse Kirk.

— Nenhum de nós sabia — retrucou Powell.

Chase sentiu seus olhos ficando incandescentes e encarou Powell.

— Seu filho é um monstro! Ele não só matou a irmã de Eddie, mas matou também uma mulher, pouco tempo atrás. Eu vi quando levaram o corpo dela para fora de uma casa ontem. Pedaço por pedaço. E alguém da gangue que ele lidera quase matou uma criança.

— Eu não estou surpreso — disse Powell. — Há anos parei de tentar desculpar o comportamento dele. Eu sei o que ele é. Sei que precisa ser detido.

Chase olhou para Kirk.

— Então qual é o problema? Diga onde ele está e eu vou atrás dele.

— Esse é o problema — disse Kirk.

A fúria de Chase aumentou.

— Você está protegendo Stone, mesmo sabendo o que ele é?

— Não o estamos protegendo — disse Kirk. — Mas tentando detê-lo. Matá-lo não é um problema. Mas você não pode levá-lo para a UPF.

— Por que não? — perguntou Chase.

Assim que Steve foi embora, Della entrou. Três minutos depois, quando Miranda e Kylie chegaram, após a última aula, Della sentou-se à mesa da cozinha. Ela tinha três Cocas Diet esperando na geladeira e um pedido de desculpas na ponta da língua.

— Parece que a vampira por fim decidiu falar — disse Miranda.

Kylie deu uma cotovelada na bruxa.

— Sim, e como somos suas amigas, estamos prontas para escutar.

— Sinto muito. — Della levantou-se e pegou as três Cocas Diet. — Eu estava insuportável, não estava?

— Estava mesmo. — Miranda concordou, jogando os braços ao redor de Della num daqueles abraços de urso que quase a sufocavam. — Mas, como Kylie disse: nós te perdoamos. Sempre vamos te perdoar. Mas odeio quando vejo que você está sofrendo e você não quer falar com a gente! — O abraço dela estava realmente apertado. — Então, será que você pode não fazer mais isso, por favor?

— Vou tentar, de verdade — Della conseguiu dizer. — Mas, falando em sofrer, você pode parar de me abraçar agora?

Miranda a soltou.

Todas se sentaram nos lugares designados.

— Quem vai falar primeiro? — perguntou Kylie.

— Acho que Della deveria falar — anunciou Miranda. — Ela é a que está pior.

Della não gostava de falar primeiro, mas não se opôs.

— Minha vida está uma droga.

— Vamos precisar que seja mais específica — disse Miranda.

— Toda vez que pensamos que temos uma pista sobre Douglas Stone, o cara que provavelmente matou a minha tia, ele escapa. Agora, ele não só é responsável por matar minha tia, mas a gangue dele matou o senhor e a senhora Chi. Minha mãe está surtando. Minha irmã me odeia. Eu sou com certeza o que meu pai pensa que eu sou, um monstro. É claro que eu já disse isso a vocês, certo?

Kylie confirmou com a cabeça.

Della suspirou e continuou:

— Chase acha que o Conselho dos Vampiros sabe algo sobre Stone e ele foi até lá esta manhã para descobrir e não tivemos mais notícias dele. Estou morta de preocupação, achando que algo pode ter acontecido. E vocês podem achar que as coisas não poderiam ficar piores, mas podem! Eu disse a Steve que o amo.


Capítulo Trinta e Sete

— Por que Stone não pode ser entregue à UPF? — perguntou Chase, sua paciência diminuindo, e muito rápido. — É melhor alguém começar a explicar.

— Eddie já estava conosco havia quase um mês — Powell começou a falar. — Nós o estávamos ajudando a procurar um homem chamado Douglas Stone. Foi quando eu vi o esboço do retratista que fiquei preocupado, mas ainda em dúvida, porque no desenho a semelhança com meu filho não era tão grande assim. Eu o confrontei. Ele jurou que não era ele. Acreditei. A mãe dele mora na França. Ele foi morar com ela. Mas quatro anos depois, voltou para os Estados Unidos. Alguns velhos amigos dele apareceram. Um deles mencionou uma gangue à qual pertencia. É a gangue a que Eddie se juntou. Foi quando eu soube com certeza.

O velho teve de parar para recuperar o fôlego. Se Chase não tivesse visto com os próprios olhos o monstro que o filho dele era, poderia ter sentido pena do pai.

— Eu disse que ele precisava se entregar. Que eu iria falar com Eddie e talvez ele concordasse em pedir ao resto do Conselho para pegar mais leve com ele.

O velho fechou os olhos.

— Ele me chamou de idiota. Disse que eu nunca iria entregá-lo. Falou para eu verificar os arquivos e ver o que havia lá.

— Que arquivos? — perguntou Chase.

Kirk deu um passo à frente.

— Todos eles, Chase. Todo o trabalho que o Conselho fez ao longo de mais de cinquenta anos estava catalogado nesses arquivos. O filho de Powell jurou que, se alguma coisa acontecesse a ele, iria vazar as informações para a UPF.

— Mas você nunca contou a Eddie? — perguntou Chase.

— Não. Stone deixou o país. Nós, na verdade, pensamos que ele tinha sido assassinado. Mas há alguns meses, ele voltou. Pegamos os arquivos, mas o filho de Powell fugiu.

— Ele sabe coisas, Chase — disse Powell. — Se for pego pela UPF, poderia arruinar a todos nós.

— Se vocês são culpados de coisas como as que ele fez, então talvez precisem mesmo ir à ruína — Chase disse com rispidez.

Kirk sacudiu a cabeça.

— Não é o que pensa, Chase. As coisas erradas que fizemos eram justificadas. Era uma guerra. Estávamos protegendo aquilo em que acreditávamos.

— Então por que vocês estão tão preocupados? — perguntou.

— Porque não seria assim que a UPF ou o governo veriam as coisas — Kirk insistiu.

— Conte tudo a ele — disse Powell.

— O quê? — Chase insistiu, olhando para o mais velho dos membros do Conselho.

Powell olhou para Kirk, que assentiu com a cabeça, em seguida o velho começou a falar.

— Não fomos só nós. Foi Eddie, também.

Chase fechou a mão em um punho.

— Ele não era um agente. Por que participaria?

— Kirsha — disse Kirk. — A esposa de Eddie. Ela foi morta por um agente da UPF.

Chase recordou as histórias que Eddie lhe contara.

— Não, ela morreu numa explosão no laboratório médico. Eddie me contou.

— Sim — disse Kirk. — Mas a explosão foi provocada pela UPF. Eddie tinha acabado de descobrir o tratamento para a Aids. Estava prestes a divulgar a descoberta. A UPF não queria que o Conselho ficasse com o crédito, de modo que roubaram a pesquisa dele e, em seguida, com receio de que tirássemos a patente, colocaram uma bomba no laboratório.

— Eddie e Kirsha não deviam estar lá, mas Kirsha esqueceu a bolsa. Quando entraram no prédio, ouviram alguém sair correndo. Eddie mandou Kirsha esperar lá dentro enquanto corria atrás do intruso. Ele tinha acabado de pegar o homem quando... o edifício explodiu. Eddie perdeu a cabeça. E matou o agente da UPF.

Chase mal podia respirar. Ele não queria acreditar, mas a antipatia que Eddie tinha pela UPF fazia todo o sentido agora.

Chase se virou e contemplou o lago através da janela, o coração em Eddie. Pensava em quanto ele odiava a UPF por terem lhe tirado a sua parceira de sangue. E agora Chase tinha se juntado a eles para conseguir ficar com a sua própria parceira de sangue.

Havia justiça em algum lugar deste mundo?

— Mas, veja bem — Kirk disse —, tudo isso vai ficar para trás se você puder fazer com que Stone seja liquidado antes de a UPF pôr as mãos nele.

Chase se virou e olhou para Kirk.

— Você não está me pedindo para fazer justiça. Você está me pedindo para matar um homem.

— Ele merece morrer — disse Kirk. — Você estaria poupando o que a UPF gastaria para encarcerá-lo e fazer um julgamento.

— Uau! — exclamou Miranda. — Você ama Steve! Eu estava pensando que Chase é que ouviria isso. Achei que Steve estava fora do páreo.

— Eu não quis dizer isso — disse Della. — Quer dizer, eu gosto dele, mas eu não... o amo pra valer... Vocês entendem?

Se as expressões das duas melhores amigas eram uma indicação, elas não entendiam. E talvez Della não devesse se surpreender. Com certeza o que estava dizendo não fazia o menor sentido.

Ou fazia? Ela ouviu outra vez as palavras de Chase.

Você precisa de tempo para confiar nisso, para confiar no amor e para confiar em mim, e eu entendo.

— Claro que vocês não entendem. — Della deixou cair a cabeça sobre a mesa com um baque alto.

— Espere! — disse Kylie. — Não entre em pânico, estou tentando entender. Você gosta de Steve, mas não o ama, como... não é amor de verdade, certo?

Della levantou a cabeça.

— Sim, mais ou menos.

Kylie falou outra vez.

— Antes você disse que Steve a fazia se sentir segura. Será que ele ainda faz você se sentir assim?

Della analisou a questão e lembrou-se de quando estava sentada com ele na varanda.

— Sim, ainda me sinto segura com ele. — Ela se lembrou de quando o abraçou. Tinha sido estranho, mas não inseguro.

Miranda saltitou da cadeira.

— E seguro é bom, certo?

— Sim — disse Della. — Mas o amor não é seguro. Não para mim. Entenderam?

— Não. — Miranda olhou para Kylie. — Você entende alguma coisa do que ela está dizendo?

Kylie olhou para Della com aquela expressão de quem pede desculpas.

— Acho que não.

— Tudo bem — disse Della, tentando pensar em como explicar. — Steve costumava ser assustador. Quero dizer, eu estava sempre com medo, porque sentia alguma coisa por ele. Era como uma sombra me seguindo e isso me fazia querer correr e não parar mais.

— E agora Steve não a assusta mais — disse Kylie, ainda parecendo incerta.

— Exato. — Della inspirou.

— Eu ainda estou perdida — disse Miranda.

Kylie estendeu a mão para Miranda.

— Acho que estou começando a entender.

Chase saiu da casa. Ele viu dois guardas vampiros em pé ao lado da varanda e passou por eles. Parte dele gostaria que tentassem algo; uma boa luta cairia muito bem agora.

Só uma luta. Ele não queria matá-los. Não era um assassino. Chase começou a descer as escadas.

— Chase? — Kirk disparou na frente dele. — Eu sei que é difícil.

Chase olhou para ele.

— Difícil é saber que você enganou Eddie durante todos esses anos. O que significa que você me enganou.

— Eu estava protegendo Eddie, Chase. — Os olhos de Kirk ficaram mais brilhantes com a raiva provocada pela acusação. — O que você acha que aconteceria a ele se a UPF descobrisse que ele matou um dos seus agentes? Você tem pregado sua apologia de justiça há anos, Chase. Mas onde está a justiça em Eddie ser condenado à morte? E isso é o que eles vão fazer. Você sabe disso. — Kirk balançou a cabeça. — Eddie matou o homem que assassinou a mulher que ele amava. Você pode culpá-lo por isso?

Chase olhou para a superfície do lago. Seu peito estava apertado.

— Talvez não haja justiça neste mundo.

— Não faça isso pelo Conselho. Faça por Eddie. O caso é que a UPF está atrás de Stone. Nós não podemos deixar que qualquer um dos nossos rapazes saia atrás dele e corra o risco de ser pego. Você poderia fazer isso.

Ele entregou a Chase uma folha de papel.

— Essa é uma lista de lugares que o filho de Powell frequenta. Uma lista de todos os amigos dele. Cuide disso.

Chase pegou o papel e olhou para o homem que ele não respeitava mais.

— Se eu matar Stone sem entregá-lo para a UPF, o pai de Della vai se julgado por assassinato. E...

— E você trairia Eddie por causa dela? — Kirk rebateu.

O amor e a devoção que Chase tinha por Eddie cresceu em seu peito a ponto de doer.

Chase encarou Kirk com a expressão contrariada.

— Você não entendeu? Eddie me contou sobre seus planos. Se ele souber que o irmão gêmeo vai ser condenado por esse assassinato, vai se apresentar e confessar um assassinato que ele não cometeu. De qualquer maneira, eu perco Eddie!

— Não, você não vai perdê-lo — disse Kirk. — Vou falar com Eddie. Posso falar com ele para que desista disso. Além do mais, você nem sabe se eles vão condenar o pai dela. Os advogados podem tirá-lo dessa. Sabemos que a UPF está cuidando disso. Você cuida de Stone. Eu cuido de Eddie.

Chase ficou ali se perguntando como o homem que um dia ele tinha respeitado tanto poderia lhe pedir uma coisa daquela.

— Prometa, Chase — pediu Kirk. — Prometa que vai cuidar disso.

Sem dizer uma palavra, Chase entrou no carro e se afastou dali.

Por que Della tinha tentado explicar? Ela não conseguiria.

— Sim, acho que entendi — disse Kylie e olhou para Della.

— Steve não a assusta, mas Chase, sim, certo?

Della respirou fundo. Ela não queria admitir, não porque não fosse verdade, mas porque admitir aquilo era o mesmo que admitir outra coisa. Mas ela não podia mentir para as amigas.

— Certo. — Della voltou a deixar a cabeça cair na mesa.

— Eu imaginava — disse Kylie.

— Imaginava o quê? — perguntou Miranda.

— Della tem medo de se apaixonar. E Steve não a assusta, porque ela não está mais apaixonada por ele. Está se apaixonando, ou já está apaixonada, por Chase. Portanto, ela ama...

— Não diga isso! — pediu Della. — Por favor. Só não diga.

No mesmo instante o celular de Della tocou. Ela quase pulou da cadeira. Pegou o celular no bolso.

— É Chase? — perguntou Miranda. — Então diga a ele que você o ama.

Della olhou para o número.

— Não. — Della se levantou. Ela não faria isso. Não poderia dizer a Chase que o amava. Porque ainda não confiava no amor. — Não é Chase. É Steve. Eu preciso falar com ele... em particular. — Ela começou a andar em direção ao quarto, mas, ao lembrar que a porta não estava se fechando direito, saiu da cabana.

— Eu não entendo — Della ouviu Miranda dizer. — Ela acha que está apaixonada por Chase, mas Steve liga e ela dispara para fora, porque precisa de privacidade. Essa garota está com uns parafusos soltos, isso é o que eu acho.

Preocupada que Miranda escutasse a conversa, Della se embrenhou na floresta para falar com Steve. Ele tinha conversado com a mãe. Ela estaria no escritório do sanatório na manhã seguinte. Steve iria cabular as aulas da manhã e iria visitá-la. Antes de sair, ele planejava transformar-se em algo bem pequeno, para que pudesse se esgueirar pra fora de Shadow Falls e descobrir onde os arquivos antigos eram guardados. Se ele os encontrasse, deixaria uma janela aberta para Della poder entrar e ler os arquivos ela mesma.

De início, Della pensou em contar o plano a Burnett, mas e se ele se recusasse a deixá-la colocá-lo em prática? Não podia deixar que ele a impedisse.

Mas tinha certeza de que Chase entenderia. Então uma constatação a atingiu. E a atingiu em cheio. Ela confiava nele. Ele iria ajudá-la.

Quer dizer, isso se ainda estivesse vivo! Por que diabos ele não tinha mandado uma mensagem ou telefonado?

Enviou outra mensagem para ele. Onde você está?

Então colocou o celular no bolso e começou a voltar para a cabana. Saiu do bosque e tinha acabado de entrar na trilha quando ouviu alguém andando. Deu meia-volta. Ouviu os passos. Ergueu o nariz. E em seguida decolou.

— Onde você estava? — perguntou a ele.

— Estava acabando de mandar uma mensagem de texto para você — disse Chase.

— Mas eu te mandei umas cinco mensagens!

— Sinto muito — disse ele, mas não parecia estar se desculpando de fato. — Foi um dia maluco.

Ela olhou para Chase, notando algo diferente.

— O que aconteceu?

— O que você quer dizer? — perguntou Chase.

— Eu quero dizer, o que aconteceu? Burnett disse que você estava indo confrontar Kirk. Você fez isso?

— Sim — disse ele.

— E então? — perguntou ela, impaciente.

Ele passou a mão no cabelo.

— Então que Douglas Stone é filho de Powell.

— Caramba! — exclamou Della. — Será que meu tio sabe disso? Ele estava protegendo...

— Não! — Chase quase gritou. — Ele não sabe. O Conselho o enganou.

— Então eles estavam protegendo Stone durante todos esses anos?

— Ele deixou o país. Não conseguiram encontrá-lo.

— Mas ele está aqui agora. Eles o estão escondendo?

— Não. Até o pai dele sabe que ele não vale nada. Quer detê-lo também.

Della tentou entender.

— Mas então por que Powell não seguiu a pista de Stone na prisão? Tem certeza de que o pai dele não sabe onde ele está?

— Eu não acho que Powell esteja mentindo — disse Chase. — Concordaram em nos ajudar a encontrá-lo. Querem pegá-lo também.

— Você contou a Burnett?

— Sim. Acabei de sair do escritório dele e, se não acredita em mim, pode perguntar a ele.

— Eu não quis dizer... — Della ficou olhando para Chase. Algo não parecia normal. Então ela percebeu o que era. Ele não estava sorrindo. Ele quase sempre sorria.

— Algo mais aconteceu? — perguntou ela.

— Não — disse Chase.

Ela se aproximou e olhou bem no rosto dele.

— Não minta para mim.

Ele franziu a testa. Então, de repente, levantou o rosto e o verde de seus olhos ficou de um tom néon brilhante.

— Que tal você não mentir pra mim? — Chase rosnou.

— Eu não estou mentindo — disse ela, sem saber de que diabos ele estava falando.

— Ok, me diga, Della. Por que o cheiro de um certo metamorfo está impregnado em você toda? — Ele se inclinou. — No seu cabelo. — Ele se inclinou mais para baixo. — No seu peito? — Ele se virou e correu o nariz sobre os ombros dela. — Nas suas costas. Você estava nos braços dele, não estava?

Ela se virou e ficou ali, sem ter certeza do que podia ou deveria dizer a ele. Mas não gostava que Chase ficasse farejando-a como se ela fosse uma cadela suja.

— Quer saber? — sibilou. — Eu tive um dia miserável e pra mim chega. Dane-se. Vou dar o fora daqui. — Ele decolou.

Della começou a voar atrás dele, mas depois parou. Ela não tinha feito nada errado. Tudo bem, tinha abraçado Steve, mas não tinha sido um abraço de verdade. Ah, ela tinha dito a ele que o amava, mas, como por fim admitiu para Miranda e Kylie, não amava Steve de fato. Ela estava... muito perto de admitir que amava Chase.

E se Chase tivesse perguntado de uma forma razoável sobre a razão de estar com o cheiro de Steve, ela teria contado. Droga, estava pensando em contar a Chase sobre o plano de Steve e pedir que fosse com ela.

Mas, se ele ia ficar todo ofendido por causa de Steve, com certeza encontraria uma razão para dissuadi-la de ir buscar os arquivos do pai.

Ela se virou e voltou para sua cabana pisando duro.

Miranda e Della ainda estavam à mesa da cozinha.

— Esqueçam o que eu disse — ela falou com rispidez. — Chase não me assusta mais. Ele apenas me tira do sério!

Ela disparou para o quarto e bateu a porta, esquecendo que ela não fechava. O último barulho que ouviu antes de aterrissar de cara na cama foi a porta caindo e se estatelando no chão.


Capítulo Trinta e Oito

Por mais irritada que Della estivesse, deixou o celular na mesa de cabeceira para que pudesse ouvi-lo quando Chase mandasse uma mensagem ou ligasse para pedir desculpas.

Eram quase três da manhã quando caiu no sono. Não que tivesse pensado nele o tempo todo. Ele não estava nem na lista dos cinco assuntos em que ela mais pensava. Ou talvez estivesse.

O celular não chegou a tocar nem anunciar a chegada de uma mensagem de texto. Mas, ainda assim, essa foi a primeira coisa que ela verificou quando acordou pela manhã.

Nada.

Aquilo doía, droga. Quando é que ele tinha começado a ser tão cretino?!

Ela se aprontou para a escola bem cedo, achando que ele poderia aparecer antes de ir trabalhar. Errado de novo.

Cretino!

No almoço, Steve mandou uma mensagem e disse que seu plano havia funcionado. Ele tinha encontrado uma sala no décimo andar, onde todos os arquivos antigos estavam encaixotados. E tinha até deixado uma janela aberta para ela.

Della mandou uma mensagem de volta e perguntou se ele iria com ela aquela noite.

E, como ela esperava, Steve disse sim.

Depois da última aula, ela foi andando até a cabana de Chase, mas ele não estava lá. Então, foi até o estacionamento da escola, para ver se o carro de Chase estava lá. Não estava. Mas o de Burnett estava.

— Estou aqui atrás! — gritou Burnett, quando ela chegou ao escritório.

Della entrou no escritório de Holiday, sem ter muita certeza do que pretendia dizer. Então se lembrou de que precisava avisá-lo de que ela e Steve iriam sair.

— Já de volta do trabalho? — ela perguntou, sem querer tocar, logo de cara, no assunto que a trouxera ali.

— Sim — ele confirmou, olhando por cima do laptop. — Está tudo bem?

— Não, na verdade — disse ela. — Diga que temos um novo juiz para o caso do meu pai e eu vou ficar melhor.

Ele franziu a testa.

— Não tive nenhuma notícia ainda.

— Portanto, não tivemos a sorte de encontrar Stone?

— Não. Chase conseguiu mais alguns endereços com alguém do Conselho, para verificarmos. Mas...

— Foi isso que ele foi verificar agora? — perguntou ela.

— Não, ele fez isso esta manhã. E não encontrou nada.

Burnett voltou a olhar para o computador.

— Então ele está trabalhando no caso dos Chi agora?

Burnett olhou para cima como se estivesse quase confuso.

— Não, fizemos isso mais cedo também.

Ela não queria perguntar, mas as palavras simplesmente saíram da sua boca sem querer.

— Então, onde está Chase agora?

Burnett hesitou.

— Suponho que na cabana dele.

— Não, passei lá e o carro não estava.

Burnett franziu a testa.

— Eu não quis dizer aqui, eu quis dizer na cabana dele. — Burnett se sentou mais ereto. — Ele não contou que estava se mudando para lá de novo?

Ela se lembrou das palavras de Chase: Dane-se. Vou dar o fora daqui.

— Sim, ele meio que contou — disse ela, magoada.

— Aconteceu alguma coisa entre vocês dois? — perguntou Burnett.

— Eu não tenho ideia do que está havendo com ele — disse ela, para não ter que mentir. E era verdade. Ela não sabia o que tinha acontecido a Chase. Claro, ele já tinha demonstrado ciúme de Steve antes, mas nunca assim... surtando daquele jeito.

— Ele estava meio estranho hoje — disse Burnett.

Della quase contou que ela e Steve estavam pensando em sair, mas isso parecia muito estranho depois de falar sobre Chase.

— Bem, tenho dever de casa.

Não que planejasse fazê-lo.

Ela decolou, e quase como se quisesse — esperasse — provar que Burnett estava errado, foi até a cabana catorze.

Entrou. Olhou em volta. Foi até o quarto. Estava vazio.

Ela olhou para a cama onde tinha ficado com ele quando não sabia se ele iria viver ou morrer. Quando voltou a inspirar o ar, sentiu o perfume dele. Chase não estava ali, mas seu cheiro ainda pairava no ar.

O coração dela quase se partiu então.

Ele tinha feito aquilo com ela outra vez. Invadido sua vida, feito com que ela acreditasse na sua conversa sobre amá-la e depois desaparecido.

Seu peito encheu-se de uma dor profunda e depois se enrodilhou lá no fundo, juntando-se a todas as outras dores e arrependimentos que ela tinha.

Será que nunca iria aprender e parar de abrir seu coração para os garotos?

— Onde você está indo? — Miranda perguntou a Della aquela noite, quando ela saiu do banheiro com seu jeans e uma camisa preta.

— Sair. — Ela estava com o celular na mão. Pretendia mandar uma mensagem de texto para Holiday antes de atravessar o portão, dizendo que estava saindo para tomar um café com Steve. Preferia pedir perdão do que permissão. E quem tinha dito isso a ela? Um certo vampiro que tinha se esgueirado para longe dela!

— Você vai sair com Chase? — perguntou Miranda, e Kylie olhou por cima do computador.

— Ele pediu desculpas? — perguntou Kylie.

Della tinha contado a elas na noite anterior sobre o pequeno surto de ciúme de Chase. Mas não havia mencionado que ele tinha se mudado de Shadow Falls. Quem gosta de admitir que está fazendo papel de idiota? E isso é o que ela tinha feito. Acreditar em Chase. Acreditar que ele realmente a amava.

— Não. — Ele não tinha se desculpado. Della se sentia mal, ou pelo menos um pouquinho mal, por ocultar a excursão que faria à noite, mas ela sabia que Kylie era uma daquelas pessoas que não infringe regras e tentaria convencê-la a não ir. Ou, pelo menos, a contar a Burnett.

Della não queria correr o risco de que ele colocasse algum empecilho. Não. Ela sabia que aquilo seria algo fora da lei. Mas era para ajudar o pai.

— Vou sair para tomar um café com Steve. — E não era mentira, porque ela pedira que Steve a acompanhasse justamente para que não precisasse mentir.

Della ouviu as duas amigas ofegarem de surpresa.

— Com Steve? — estranhou Miranda.

— Tchau, a gente se vê depois — disse Della, já se despedindo.

— Ei, espere aí! — chamou Kylie, disparando pela sala e bloqueando a porta da frente. — Pode dizer o que está acontecendo?

— Nós vamos tomar um café, é isso que está acontecendo.

— Ela está mentindo? — perguntou Miranda a Kylie. — Acione o seu lado vampiro e descubra.

Franzindo a testa para a bruxa, Della se despediu outra vez:

— Tchau, garotas. Não vou chegar tarde. — Ela segurou Kylie com delicadeza pelos ombros e tirou-a de frente da porta.

Então, sentindo-se estranhamente sentimental, ficou tentada a deixar escapar um eu amo vocês ou obrigada por estarem aqui. Mas não conseguiu encontrar as palavras. Então saiu sem dizer nada.

Della seguiu Steve até o interior da cafeteria, na esquina do Hospital St. Mary. Foi no mesmo instante envolvida pelo cheiro de grãos de café moídos. Como algo poderia ter um cheiro tão bom, mas um gosto tão ruim? Ela foi com Steve até o balcão vazio e tentou decidir se queria “fingir que bebia” alguma coisa ou se tinha mesmo que beber algo com Steve. Ele sabia que ela odiava café.

Steve fez o pedido à atendente.

— E você? — perguntou a Della.

— Nada — respondeu Della, mas em seguida baixou os olhos para os bolinhos sob o balcão de vidro. Seu coração se contraiu. Eles têm gosto de amor, Chase dissera.

— Espere — disse ela quando a garota começou a se afastar. — Vou querer um bolinho de chuva.

— Nunca vi você comer doces — comentou Steve.

— É contra a lei que eu queira um agora? — ela retrucou e em seguida quis morrer por ser tão grossa.

Plim. Plim. Plim. Sininhos estranhos começaram a tocar na sua cabeça, alertando-a de que a conversa entre eles estava começando a entrar num terreno movediço. Ela teria que parar aqueles malditos sinos. Mas a única maneira era ter, de uma vez por todas, aquela conversa que Steve tanto queria.

Agora não.

De fato aquela era uma péssima hora. Como se virar para alguém que está com a maior boa vontade para ajudar você e dizer: Ah, aliás, sabe quando eu disse que te amo? Então, na verdade não te amo tanto assim.

E, sim, isso era o que ela precisava dizer a ele. Não importava o que sentia por Chase. O fato era que não amava Steve de verdade e ele merecia alguém que o amasse. Ele era um cara incrível.

A atendente colocou o bolinho num saco sobre o balcão e Della pegou o dinheiro.

— Eu pago — disse Steve.

— Não, eu pago, e estou pagando o seu também.

— Não, eu posso...

— Você está me ajudando. — Della colocou uma nota de vinte dólares sobre o balcão. — Fique com o troco — disse à garota. Então se afastou do balcão e achou uma mesa vazia num canto.

Steve se sentou ali alguns minutos depois, com uma xícara fumegante de algo com um cheiro bom e gosto amargo, e uma fatia de bolo.

— Obrigado — disse ele.

Ela assentiu com a cabeça e pegou um guardanapo, desejando de repente que tivesse pedido um café também, apenas para ter algo com que manter as mãos ocupadas. Mas, pensando bem, ela tinha o bolinho de chuva. Olhou para a guloseima, ainda dentro do saco.

Depois olhou para Steve e os suaves olhos castanhos do metamorfo encontraram os dela. Agora não. Ela desviou o olhar.

Então Steve estendeu o braço para pegar o bolinho. O braço dele estava a meio caminho quando ela colocou a mão sobre a dele e o deteve.

— O que vai fazer? — ela perguntou.

— Nada, só queria uma mordida.

— Não.

Ele olhou para ela com uma expressão confusa.

— Ok.

Plim. Plim. Plim.

Ela puxou o bolinho para mais perto.

E olhou para ele.

— Eu não te amo — ela deixou escapar. Ah, caramba, por que tinha dito aquilo?

Steve estava tomando um gole de café. Devia ter ficado chocado com as palavras dela, porque aparentemente a bebida desceu errado. Ele engasgou e cuspiu o café pela boca, e... talvez até pelo nariz. Não foi algo bonito de se ver.

Então, parou de cuspir e passou a tossir.

— Merda! — ela murmurou e entregou a ele um guardanapo.

Steve o pegou e cobriu os lábios.

— Desculpe — ela disse, quando ele virou o rosto para o lado e usou o guardanapo para limpar o rosto.

Quando ele voltou a olhar para a frente, tinha lágrimas nos olhos. Com certeza era por causa da tosse e não... Que fosse a tosse, por favor!

Ele encontrou o olhar dela e então... caiu na risada. Riu pra valer, gargalhou na verdade.

Ela só ficou olhando.

— O que é tão engraçado?

— Você — ele disse. — Nós.

— Eu não vejo nada engraçado. — Ela correu o dedo pela borda da mesa e fitou o bolinho outra vez.

— Ei — ele disse, sua voz fazendo-a erguer os olhos. — Eu entendi o que você quis dizer na noite passada. E também percebi que você se sentiu desconfortável ao dizer.

— Sério?

— Sério.

Ela assentiu com a cabeça. E foi então que pensou no comportamento de Steve desde que ele tinha voltado.

— Você também não me ama, não é?

Isso dissipou o humor dos olhos dele.

— Bem, eu... gosto de você, mas... — Ele virou a xícara nas mãos. — Estamos finalmente tendo a nossa conversa?

— Contanto que não fique chateado comigo e não desista de me ajudar esta noite... — Mal tinha dito isso e desejou não ter dito.

Ele franziu a testa.

— Você me conhece e sabe que eu não faria isso.

— Desculpe. Eu sei. Estou apenas... — Morrendo por dentro. — Confusa no momento.

— Você quer começar?— ele perguntou.

— Eu odeio ser a primeira a falar. — Ela olhou para o bolinho sobre o saco, estendeu a mão e partiu um pedaço. — Foi mal. Você pode ficar com um pedaço se quiser.

— Tudo bem. — Ele sorriu.

Ela deu uma mordida. O açúcar e a canela agradaram suas papilas gustativas, mas as outras coisas, a massa pastosa, pareciam mais pasta de dente.

Ela se forçou a engolir, no entanto.

— Ok, vou falar primeiro. — Ele respirou fundo. — A questão é: eu gosto de você. Muito. E se... algumas coisas não tivessem acontecido, tudo poderia ser diferente agora.

— Coisas? — ela perguntou.

Ele soltou um longo suspiro.

— Desculpe, não é isso que eu quero dizer. — Ele franziu a testa e olhou para a xícara. — Estou meio confuso também. Um pouco. Mas não tanto a ponto de não dividir meu bolinho com você. — Ele sorriu e ela sabia que era uma piada.

Ela também sabia que, às vezes, Steve brincava quando estava nervoso.

Eles se encararam por alguns minutos.

— Vou falar a verdade — disse ele. — Há uma parte de mim que ainda fica incomodado com Chase. Mas algo que você me disse antes de eu ir embora me fez pensar.

Ela mordeu o lábio.

— Eu disse um monte de coisas. — Ela não sabia e nem se lembrava o quê. Estava mesmo chateada com ele.

Ele sorriu, um sorriso triste.

— Você me perguntou por que eu tinha feito você gostar de mim se eu sabia que estava indo embora.

Ela assentiu com a cabeça e a mesma dor de antes sussurrou no seu coração.

— Você estava certa. Eu estava planejando partir. Não sabia com certeza se iria conseguir a vaga em Paris, mas estava esperando que sim. E acho que apenas presumi que você ia entender porque era pelo bem da minha carreira. Eu quero ser médico. Quero isso mais do que qualquer coisa.

— Se você tivesse me dito...

Ele ergueu a mão.

— Só me deixe terminar, por favor. Acho que não falei porque isso teria me feito perceber quanto a minha fantasia com relação ao futuro — o que eu sonhava realizar — na verdade não coincidia com o meu... com o meu futuro com Della. Aquele que eu tinha esperança de ter também. Eu sabia que, se fosse para Paris, havia uma pequena chance de eu ser escolhido para a Academia Internacional de Medicina... e fui. — Os olhos dele brilharam com orgulho.

— Parabéns! — disse Della.

Ele agradeceu com um aceno de cabeça.

— Depois de me formar em Shadow Falls, vou morar na França por um ano para me formar em Medicina, então pelos próximos quatro anos vou morar na Alemanha, no Japão e depois na Suíça.

Ele pegou o café.

— Então, embora eu não goste de saber que você escolheu Chase em vez de mim...

— Mas...

Ele ergueu a mão e a silenciou.

— Por fim percebi que também escolhi a minha carreira em vez de escolher você. Ou estaria fazendo isso caso a Academia me aceitasse.

Balançando a cabeça, mas ainda precisando de algo para ocupar suas mãos, ela puxou o celular do bolso e correu dedo pelas bordas.

— Isso não significa que eu não goste de você — continuou Steve. — Por mais louco que pareça, ainda gosto pra caramba. E ainda estou meio chateado com Chase, mas...

— Eu entendo. — Ela olhou para ele, tentando pensar em algo para dizer que o fizesse se sentir melhor. — Você simplesmente gosta mais da sua carreira.

Ele franziu a testa de novo e ela percebeu que poderia não ter sido a coisa certa a dizer.

— E você gosta mais de Chase. E talvez até mesmo da sua carreira.

Ela olhou para o bolinho.

— Eu não sei... Chase e eu... Não sei se é amor. — Ele já me deixou. — Quero dizer, a ligação de sangue...

— Pare — disse Steve. — E olhe para mim — ele insistiu.

Quando ela levantou o olhar, ele continuou:

— Eu não sei como a transfusão afetou vocês dois. Mas, Della, você sentiu algo por Chase desde que ele apareceu pela primeira vez. Você já estava meio apaixonada antes de receber o sangue dele.

Ela não negou.

— Ainda assim é complicado. Ele me enganou e agora...

— E agora ele está trabalhando para a UPF, ajudando você a conseguir livrar o seu pai da acusação e... e ele te ama. Ele me disse, Della. E não vai desistir de você.

Ele já desistiu.

— Mas isso não significa que tenha que ser tão durona com ele. Eu sei como você é. Quando alguém chega perto demais, você começar a empurrar a pessoa para longe. Pare com isso. Eu sei que alguém te magoou, mas as outras pessoas, pessoas que gostam de você, não deveriam ter de pagar pelos erros que alguns idiotas cometeram no passado.

A emoção apertou a garganta de Della. Será que ela tinha afugentado Chase? Ela se lembrou de quando disse a ele que não o amava, mas ele também não tinha dito que a esperaria?

Talvez esperar não incluísse pensar que ela estava se encontrando com Steve. Talvez ela devesse tentar explicar isso já. Mas, se Chase era capaz de se afastar após um pequeno mal-entendido, será que ela era tão importante assim para ele?

— Obrigada pelo conselho — disse ela, e sem saber por quê, estendeu a mão e deu outra mordida no bolinho. Em seguida, mais uma. Não estava com um gosto melhor, mas ela não conseguiu resistir.

Ela queria gostar do bolinho.

E também queria saber que gosto tinha o amor.


Capítulo Trinta e Nove

Chase estacionou na frente de sua cabana, saiu do carro e ficou ao lado da porta aberta, à espera de Baxter.

— Vamos lá! — disse Chase quando o cão voltou a se acomodar no banco, como se dissesse que planejava dormir no carro. — Vamos dormir dentro de casa esta noite. Eu prometo. — Baxter não tinha achado a varanda muito confortável. Nem Chase, mas o que importava? Ele mal tinha dormido nas noites anteriores. Passara as últimas oito horas de trabalho com Burnett, em seguida tinha decolado e trabalhado outras doze horas vasculhando Houston em busca de Stone. E ainda não tinha a menor ideia do que faria quando encontrasse o filho da mãe.

Matar o homem antes que ele fugisse, sabendo que isso poderia impedir o pai de Della de se livrar da cadeia, ou entregá-lo e deixar que Stone enfrentasse o Conselho e Eddie?

— Vamos, saia do carro — Chase mandou. Baxter tinha ficado deprimido desde que Chase o levara para a cabana. Devia estar chateado com as longas horas de trabalho do amigo ou talvez sentindo falta de Della.

Chase também sentia.

Ele mesmo já estava se sentindo muito infeliz, mas muito infeliz mesmo, para ter de lidar com a depressão do cão.

Droga, Chase sentia falta dela. Mas tinha prometido que não mentiria mais. E se ela o questionasse sobre o que tinha conversado com Kirk, ele teria que mentir.

— Anda, Baxter. Vamos entrar.

O cão obedeceu.

Chase deu a volta até o banco traseiro e pegou as suas compras em dois sacos separados.

Ele tinha ido comprar um aromatizador de ambientes para conseguir dormir dentro da casa. Mas, quando passou pela lanchonete no interior do supermercado, viu uma placa anunciando a sopa de cebola da casa. Então pegou uma porção de sopa também.

Della tinha dito que gostava. Talvez ele aprovasse o sabor também.

Ele entrou, com Baxter em seus calcanhares. Tirou o spray do saco de supermercado.

— Talvez você queira voltar lá pra fora — disse ao cão. Aquele spray para tirar odores desagradáveis do ambiente fedia, mas ele preferia sentir aquele cheiro do que a outra opção.

O cão saiu, então Chase começou a pulverizar a casa. De cômodo em cômodo. E praticamente esvaziou a lata no quarto.

Só esperava que o produto de fato cumprisse o prometido.

O lugar cheirava a feromônios. Feromônios muito, muito felizes.

Liam e Natasha deviam ter feito sexo como coelhos. Tudo bem, eles tinham lavado os lençóis e até acendido uma vela perfumada, mas Chase ainda podia sentir o cheiro.

O cheiro de feromônios não costumava incomodá-lo. Chase gostava de sexo. Principalmente quando ele mesmo o fazia. Mas o problema era que aquele cheiro só aumentava a saudade que sentia de Della. Só o fazia desejá-la ainda mais. Querer transar com ela ainda mais.

Não que ele fosse pressioná-la. Nunca. Imaginava que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. E tinha esperança de que fosse mais cedo, porque ele sempre fora otimista.

Ele a amava. E estava pretendendo manter aquela droga de promessa — não mentir para ela —, mesmo se isso significasse que não poderia vê-la até que tudo tivesse acabado.

Aquele cheiro, no entanto, também o fizera se lembrar de que tinha sentido o cheiro de Steve por todo o corpo dela. Eles não tinham feito sexo — ele teria percebido pelo cheiro dos feromônios —, mas pensar nela nos braços de Steve o irritou profundamente.

E se havia uma coisa em que Chase era muito bom quando estava chateado era agir como um idiota. E ele tinha agido assim. Tinha batido todos os recordes de idiotice!

Devia ter dado a ela uma chance de se explicar. Ele devia ter se desculpado. Mas não tinha feito isso, porque sair pisando duro tinha sido mais fácil. Desde o momento em que ela o vira, tinha começado a perguntar sobre a visita dele a Kirk. Se ele tivesse ficado lá, nem que fosse alguns minutos a mais, ela teria feito uma pergunta que ele não poderia responder e teria que mentir. E não queria mentir. Não estava mais fazendo isso.

Ele tinha prometido a ela.

E Chase de vez em quando podia ser um idiota, mas não quebrava promessas. Motivo pelo qual não as fazia com muita frequência. E se recusara a dar a Kirk a sua palavra.

Entrando na cozinha, jogou a lata de spray no cesto de lixo. Então pegou uma colher e a mochila onde estava a sopa e se sentou na cadeira. A cadeira em que Della tinha se sentado na outra noite.

As palavras de Kirk ecoaram na sua cabeça. Além do mais, você nem sabe se eles vão condenar o pai dela. Os advogados podem tirá-lo dessa. Sabemos que a UPF está cuidando disso.

Ele podia correr esse risco? Estava planejando matar o homem? Conseguiria cometer um assassinato? E não importava o jeito como Chase olhava para isso, era isso que era.

Assassinato.

Ele deixou a colher de lado, em seguida tirou do bolso do seu casaco preto a folha de papel que Kirk tinha lhe dado. Seis dos dez endereços que Stone frequentava já estavam riscados. Depois de algumas horas de sono, ele voltaria à sua busca.

Pegou a embalagem de sopa e destampou-a.

Ainda estava quente, o vapor espiralando. Mas o queijo ralado que ele tinha visto a mulher colocar por cima estava preso à tampa.

Tentou raspá-lo, mas o queijo não saiu. Ele desistiu e pegou a colher.

Chase tomou a primeira colherada. E olhou para a tampa. Talvez com o queijo ficasse bom, porque, sem ele, o gosto era bem ruim. Ruim mesmo.

Tomou outra colherada. Lógico, sabia que só porque amava Della isso não significava que tinha que gostar das mesmas coisas que ela.

Ele ainda assim não parou de comer. Porque... Porque... Droga, não sabia por quê. Só estava tomando a sopa porque Della gostava.

Não, ele não ia parar de tomar. Mandou tudo pra dentro. Cada colherada daquela gororoba nojenta.

* * *

Steve e Della saíram da cafeteria. O céu estava escuro. A lua, ainda grande no céu. Só uma lasquinha dela faltando. Mas aquela sem dúvida era a noite mais segura para se sair na rua, porque os lobisomens estavam todos de ressaca depois da transformação mensal.

O vento estava frio, mas não frio demais. Isso a lembrou de que não via um fantasma havia muito tempo.

Quando chegaram à parte de trás do hospital, a escuridão ficou mais densa. Apenas seus passos ecoavam na noite.

— É bem ali — disse Steve, apontando para cima. — Décimo andar. Segunda janela da esquerda para a direita. — Ele olhou ao redor como se para ter certeza de que ninguém estava olhando. — Encontro você lá em cima?

Della fez que sim e voou para cima.

Havia um parapeito de cerca de trinta centímetros de largura, com espaço suficiente apenas para apoiar seu bumbum. Ela tinha acabado de se empoleirar ali quando percebeu que estava sentada sobre um monte de titica de pombo.

Ah, e aquilo cheirava mal...

Era nojento.

Assim como Steve prometera, a janela estava entreaberta.

Della levantou a vidraça mais uns vinte centímetros. O cheiro de papel velho, parecido com o de uma biblioteca antiga, encheu seu nariz. Ela girou o tronco e entrou. Seus pés mal haviam atingido o chão quando Steve aterrissou no parapeito da janela, com a aparência tão régia quanto um autêntico falcão peregrino. O coração dela deu um salto. Ela quase o amava.

Mas ainda não era amor pra valer...

Ele voou para dentro.

Batendo as grandes asas, as centelhas mágicas apareceram em torno dele enquanto voltava a assumir a forma humana.

— Encontrei uma lanterna quando estava aqui — ele sussurrou, virando-se para olhar ao redor. — Eu acho que deixei bem...

— Ali... — disse Della, localizando a lanterna no chão, embaixo da janela.

Ele a pegou e ligou. Colocou a mão sobre o foco, como se o achasse muito brilhante. O nervosismo dele a deixou inquieta. Ela inclinou a cabeça para escutar se havia alguém nas proximidades. Não ouviu barulho nenhum.

— Corremos o risco de encontrar mais alguém aqui? — perguntou ela.

— Há uma lavanderia ao lado. Pelo que sei, as pessoas trabalham lá noite e dia. E o lugar tem uns três seguranças. Portanto, precisamos ter cuidado.

Ela inclinou a cabeça para o lado.

— Mas não estou ouvindo ninguém. Então, pode relaxar.

Ele franziu a testa.

— Estamos invadindo o lugar. Não podemos relaxar.

— Vamos encontrar o arquivo. — E, quando ela se virou, percebeu que aquilo daria trabalho. Fileiras de prateleiras de metal enchiam o cômodo. E cada fileira continha caixas e mais caixas empilhadas, pilhas que chegavam quase até o teto, numa sala de quase dez metros de altura.

O olhar dela passou de um canto a outro do cômodo.

— As caixas estão identificadas? — perguntou Della.

— Algumas têm datas — Steve sussurrou.

Eles foram até a parte da frente da sala, parando na primeira fileira de arquivos. Ela pegou a lanterna de Steve e iluminou as caixas empilhadas.

Mal se conseguia distinguir a inscrição. Ela teve que se aproximar da caixa para ver o ano, 1960, escrito a lápis.

— Que ano estamos procurando? — perguntou.

— O ano de 1995 — disse Della.

Levaram quinze minutos para encontrar o ano certo. Infelizmente, parecia que tinha sido um ano bem movimentado. Eram mais de quarenta caixas.

Uma agulha no palheiro...

Ela escalou a prateleira de metal e jogou dali uma caixa. Steve a pegou. Franzindo a testa, ela se deu conta de que, se não tivessem sorte, aquilo poderia demorar uma eternidade.

O pior é que quem quer que tivesse organizado os arquivos não tivera o cuidado de colocá-los em ordem. Alguns estavam em ordem alfabética, outros não.

Eles estavam nos últimos seis quando Della começou a se preocupar com a possibilidade de não encontrarem o que queriam. De ter arrastado Steve até ali e o obrigado a ajudá-la a violar a lei inutilmente.

Foi então, quando pegou uma das últimas caixas que não tinham aberto ainda, que ela sentiu. Um calafrio.

— Eu acho que está aqui — disse ela. Tirou a tampa da caixa. Um dos arquivos estava mais alto que os outros.

Havia um nome na etiqueta: CHAO TSANG.

Chase só conseguiu manter o andar compassado enquanto levava Baxter para dar um passeio. Depois disso, não se conteve mais e saiu em disparada.

Ele queria vê-la. Apenas dizer a ela que sentia muito por ter agido como um babaca. Se ela começasse a fazer perguntas de novo, ele iria embora.

Correndo para dentro de casa, ele encheu a tigela de Baxter.

— Eu já volto — disse ao cão.

Poucos minutos depois, já atravessava o portão de Shadow Falls. Burnett olhou pela janela do escritório quando ele entrou. Chase apenas acenou.

Ao se aproximar da cabana de Della, ouviu vozes. Subiu os degraus e bateu na porta antes de inspirar e farejar o ar. Então sentiu um cheiro estranho — provavelmente o da camaleão — e de bruxa. Miranda.

O que ele não farejou foi Della.

A porta se abriu e Miranda é que estava lá. Ela sorriu. Depois seu sorriso diminuiu. Não, não diminuiu; desapareceu. No mesmo instante! Num segundo ele estava em seu rosto e no seguinte não estava mais!

— Chase? — O pânico encheu os olhos dela. Então a bruxa olhou para trás. — Kylie, olha quem está aqui! Chase. Venha falar com Chase.

Kylie apareceu ao lado da bruxa.

— Oi, Chase — disse Kylie, mas, como a outra, parecia... sem jeito.

— Você sabe onde Della está?

— Não. Não tenho a menor ideia — a bruxa deixou escapar. E seu coração deu um salto.

O olhar dele fitou os olhos castanhos arregalados dela.

Kylie limpou a garganta, sem dúvida tentando avisar à bruxa para ela não mentir. Mas era tarde demais.

— Ela está bem? — ele perguntou a Miranda.

A garota fez que sim com a cabeça.

— Está aqui em Shadow Falls ou saiu?

A cabeça dela não se moveu. Mas seus olhos se desviaram para a direita, na direção de Kylie.

— É a sua vez. — Então a bruxa fugiu, desaparecendo dentro de um dos quartos.

Chase olhou para Kylie.

— O que está acontecendo? — perguntou.

— Ah, Miranda se comporta de um jeito estranho às vezes — disse ela.

Ele a analisou.

— Onde está Della?

— Eu não sei exatamente onde ela está.

Seu coração não saltou.

— Ela está com alguém? — perguntou.

Ela piscou.

— Ela estava sozinha quando saiu.

Garota inteligente, mas ele sabia muito bem quando alguém estava dando uma resposta evasiva.

— Obrigado. — Ele saiu e foi direto para cabana nove. Para a cabana de Perry, Steve e um novo lobisomem chamado Caleb.

Ele bateu na porta. Caleb abriu.

— Steve está aí?

— Não — disse ele, num tom sincero e despreocupado.

— Sabe onde ele está?

— Saiu com uma garota, eu acho.

Della olhou para o nome do pai no arquivo. O leve friozinho se tornou um frio de enregelar os ossos.

Ela se abaixou e tirou o arquivo da caixa, mas a pasta estava vazia. Completamente vazia.

Você continua procurando uma prova. Ela não existe. Por que não acredita em mim?

Della olhou para cima, o ar gelado preso nos pulmões ao avistar a tia morta estendida no chão, uma faca no peito. O sangue vazava devagar, manchando de vermelho a camisola branca.

Ele fez isso. Eu o vi mais de uma vez. Eu sinto a dor, a traição, e eu o vejo puxando a faca do meu peito. Eu o vejo parado lá com a lâmina gotejando sangue.

— Ele não faria isso! — disparou Della.

— Della? — perguntou Steve.

Bao Yu deu um salto do chão. Vá em frente, olhe. Olhe cada caixa. Você não vai encontrar nada, porque não existe prova nenhuma.

A tia subiu na prateleira de metal e começou a jogar as caixas lá de cima. O barulho ecoava pela enorme sala.

— O que... o que está acontecendo? — perguntou Steve.

— Merda! — murmurou Della, percebendo que não era uma visão, que as caixas de fato estavam se movendo. Ela subiu na prateleira. — Pare! — gritou, enquanto a tia pegava e jogava outra caixa. A caixa caiu no chão com estrondo.

Della se pôs na frente da morta e tentou pegar a caixa, mas não conseguiu.

Steve gritou alguma coisa de baixo, mas Della estava muito ocupada tentando controlar o espírito irritado para ouvir.

Então, de repente, seis ou sete caixas flutuaram no ar. E começaram a voar pela sala. Bateram nas paredes com baques altos e provocaram uma chuva de papel.

Steve gritou algo para ela outra vez. Della saltou da prateleira. Seu coração disparou ao ver a tia atirar mais caixas no ar.

— Nós temos que sair daqui! — disse Steve com pressa.

Mas era tarde demais. Ela tinha ficado tão distraída, tentando deter a tia, que não notou que tinham companhia agora. Viu o guarda em pé na porta, uma arma e uma lanterna apontadas para ela.

— Não se mova! — gritou o guarda. — Ou juro que vou atirar.


Capítulo Quarenta

O coração de Della martelou dentro do peito. O guarda estava a uns bons quinze metros dela. Ela pensou na possibilidade de pular pela janela e sair voando, mas como explicar isso depois? E, embora fosse rápida, não sabia se conseguiria escapar de uma bala.

Ela desviou os olhos para a janela onde Steve estava, acenando para ela vir.

As prateleiras altas atrapalhavam a linha de visão do guarda, impedindo-o de ver Steve.

— Vá você! — ela sussurrou.

— O quê? — perguntou o guarda.

— Não — Steve respondeu num sussurro.

— Cai fora. Traga ajuda! — disse ela, enquanto mais papéis caíam do teto.

— Não se mova! Eu vou atirar. Juro que vou — o guarda gritou.

— Burnett? — perguntou Steve.

— Chase — ela disse sem pensar. E pelo canto dos olhos, viu Steve se transformar de novo em pássaro e voar para longe.

— Tem mais alguém com você? — perguntou o guarda.

— Não — respondeu Della ao guarda, levantando as mãos. — Apenas eu. Mais ninguém. — O fantasma jogou outra caixa do alto de uma prateleira e ela caiu aos pés do homem.

— Quem mais está aqui? — perguntou o guarda, olhando para o topo da prateleira.

— Só eu! — disse Della novamente e olhou para o fantasma. Por favor, pare. Por favor.

A caixa atirada em seguida bateu com tudo na cabeça do guarda. Della o viu perder o equilíbrio, como se escorregasse numa casca de banana. Os pés dele saíram do chão e o sujeito se estatelou no chão com os braços estendidos.

E, nesse instante, a arma disparou.

Chase desabou na cama. Não que pensasse em dormir; só estava esperando que a vontade de vomitar passasse. As três cervejas geladas e a garrafa de vinho de gosto amargo não tinham caído nada bem. Ou será que tinha sido a maldita sopa?

Ele fechou os olhos para que o quarto parasse de rodar, em seguida ouviu uma batida na janela. Ele olhou para cima e viu o pássaro. Então viu as faíscas estalando contra a vidraça.

Dois segundos depois, farejou o cheiro do metamorfo. Que diabos Steve queria ali?

Já não bastava que tivesse acabado de ter um encontro com a parceira de sangue de Chase? Será que o cara queria se gabar por causa disso? Será que ele era um idiota?

Chase pegou a calça jeans e a camiseta e foi até a porta.

Steve estava lá. Sem fôlego.

Chase só ficou parado ali. Com a respiração pesada também e tentando não vomitar.

— O que é? — perguntou Chase. Mas no mesmo instante ele sentiu. O cheiro de Della.

Apertou o punho e lutou contra o desejo de acertar o sujeito na cara.

— Della... — disse Steve, tentando recuperar o fôlego.

— O que tem Della? — perguntou Chase, com um mau pressentimento.

— Ela... ela precisa de você.

No mesmo instante Chase correu para a varanda e vomitou todo o álcool que tinha passado a noite consumindo.

Então se virou para trás, limpou a boca com as costas da mão e perguntou:

— Onde ela está?

* * *

Della estava sentada em frente a uma escrivaninha, no escritório principal do hospital, tentando ao máximo parecer educada e perfeitamente equilibrada. Não era fácil, porque nenhuma das duas coisas era muito natural para ela.

Ainda mais depois de constatar que sua pequena aventura não tinha dado em nada.

E agora tudo o que ela queria era saber quem já tinha roubado os arquivos do pai.

Será que tinha sido o promotor? Será que agora eles tinham nas mãos provas para incriminá-lo?

Della havia se recusado a dizer seu nome, esperando que isso bastasse para impedi-los de chamar a polícia.

Não que tivesse ficado em silêncio o tempo todo. Pediu mil desculpas e explicou que estava andando pelo hospital mais cedo aquele dia, antes da hora de fechar, e sem querer acabou trancada na sala do andar de cima.

A mulher responsável, a senhora Applebee, se o nome no crachá estava correto, perguntou várias vezes se Della era uma foragida. Ela disse que não. A mulher não acreditou, mas, considerando a história do guarda, a dela até que não era tão ruim.

— Ela consegue mover coisas — o guarda começou outra vez. — Estou dizendo, a garota estava jogando caixas em cima de mim com a força da mente. Olhava para cima e lá vinha uma caixa. E foi então que minha arma disparou.

Della não sabia se era isso mesmo que tinha acontecido, mas tinha visto a caixa cair sobre ele. O que ela tinha certeza era que a bala do revólver tinha passado a centímetros do seu corpo.

Nesse momento, ela notou que o guarda moveu sua cadeira alguns centímetros para mais longe dela. Com certeza faria xixi nas calças se Della rosnasse para ele.

Ela poderia ter sentido pena dele se não tivesse farejado uísque em seu hálito. E pela expressão da senhora Applebee, ela também tinha recebido uma baforada de uísque na cara. Poderia até ser esse o motivo por que tinha hesitado em chamar a polícia. Isso e o fato de que ele tinha usado sua arma embriagado e atirado numa adolescente indefesa.

Quem sabe Della pudesse usar isso a seu favor?!

Até agora não tinha tentado explicar a confusão das caixas derrubadas e dos arquivos espalhados pelo chão. Mas, se o guarda continuasse falando daquele jeito, como se tivesse fugido de um manicômio, Della talvez nem tivesse que explicar nada.

Ela olhou para o relógio na parede. Quanto tempo Chase ia demorar ainda? A qualquer momento a mulher podia chamar a polícia.

Ela havia escondido sua habilitação, o cartão de crédito e o telefone no sutiã, mas se eles a revistassem e, que Deus não permitisse!, tentassem ligar para a sua mãe... De jeito nenhum Della poderia deixar que isso acontecesse. A mãe dela já tinha problemas demais.

Ela olhou para a porta, imaginando se valeria a pena correr. E ela poderia fazer isso: a senhora Applebee tinha confiscado a arma do guarda e a colocado sobre a escrivaninha.

Justo quando a ideia de correr lhe pareceu uma boa saída, ela se lembrou das câmeras do lado de fora do escritório. Eles tinham uma gravação com o rosto dela.

Onde estaria seu salvador?

Nesse exato momento seu peito esquerdo começou a vibrar. Quer dizer, seu celular começou a vibrar. Felizmente, ela conseguiu silenciá-lo antes que notassem.

Della olhou de novo para a porta. Por que estavam demorando tanto? Droga. De repente, se lembrou de que Steve devia pensar que Chase ainda estava em Shadow Falls. O que significava que Steve procuraria ajuda em outro lugar. Seu peito se apertou e ela esperou ver Burnett entrando por aquela porta a qualquer momento, bufando como um touro furioso.

Mas, a essa altura, até isso seria melhor.

— Estou dizendo, ela estava jogando caixas em cima de mim com a força da mente. Ela tem poderes. Eu já vi pessoas com poderes assim na televisão.

A senhora Applebee franziu a testa.

— Senhor Kelley, quanto o senhor bebeu esta noite? — Então o olhar da mulher se deslocou para Della. — E você, mocinha, diga-me o seu nome ou vou chamar a polícia!

* * *

Depois de Steve ter por fim recuperado o fôlego e conseguido falar, Chase entrou na cabana e em menos de trinta segundos vestiu seu terno preto oficial. Sentindo que estava com um bafo horrível, enfiou a mão na lata de lixo e pegou o spray de aromatizador de ambientes. Só ar saiu da lata.

Ou talvez não. Ele lutou contra a vontade de vomitar outra vez.

Entregando as chaves do carro a Steve, Chase disse ao metamorfo para encontrá-lo no St. Mary. Convenhamos, no céu escuro não havia limites de velocidade nem multas para quem dirigisse embriagado.

Em tempo recorde, ele aterrissou ao lado do hospital. Correu a mão pelo cabelo e deu uns tapinhas para espanar o terno. Era incrível como voar a quase duzentos por hora podia deixar uma pessoa sóbria.

Não que ele soubesse muito sobre ficar sóbrio ou embriagado. Tudo bem, ele bebia um copo de uísque quando Eddie oferecia, mas aquela tinha sido a segunda vez que bebia tanto a ponto de ver tudo girando à sua volta. E, como da primeira vez, não gostou nem um pouco.

Ele caminhou até a frente do hospital, aliviado ao não ver nenhuma viatura. Como ele rezou para não chegar depois que já tivessem levado Della embora!

Della precisa de você. As palavras de Steve ecoaram na sua cabeça. Ele nunca tinha ouvido palavras mais doces. E ouvi-las da boca de Steve fez com que ficassem mais doces ainda.

Foi até as portas de vidro, pegou o interfone e apertou um botão.

— Posso ajudá-lo? — perguntou uma voz masculina.

— Sim, estou aqui por causa da denúncia. A invasão. Veja — ele disse, olhando para uma câmera —, estou segurando meu distintivo.

Chase ouviu um zumbido e entrou.

Ele imaginou que não tinha a menor chance de resolver aquilo sem que alguém ligasse para o escritório da UPF e Burnett ficasse sabendo de tudo, mas Steve dissera que ela tinha pedido a ajuda dele, não de Burnett. Desde que a vida dela não corresse perigo e não houvesse nenhum risco, não havia nenhum meio de ele decepcioná-la.

Não importava que ela o desapontasse confiando em Steve para colocar em prática todo aquele plano, sem contar nada a ele. Chase só esperava que aquela coisa toda do encontro fosse parte do disfarce.

* * *

Alguém bateu na porta do escritório e Della prendeu a respiração, na expectativa de que fosse o seu resgate. Ela não seria exigente. Aceitaria qualquer um. Qualquer pessoa que não fosse um policial de verdade pretendendo ligar para os pais dela.

— Pois não? — perguntou a senhora Applebee.

Uma enfermeira enfiou a cabeça pela porta.

— Tem alguém aqui para falar sobre a garota.

Della respirou fundo. Sentiu um grande alívio quando captou o cheiro de Chase — junto com um cheiro de aromatizador de ambientes...

— Quem chamou a polícia? — a senhora Applebee perguntou e, em seguida, olhou para o guarda.

— Ela deve ter feito isso com a mente — disse o guarda.

— Eu não sei — respondeu a enfermeira.

— Deixe-o entrar — disse a senhora Applebee.

Chase entrou. O coração de Della deu algumas cambalhotas. O olhar do vampiro pousou em Della por apenas um segundo, então se concentrou na senhora Applebee.

— Senhora — ele disse, respeitoso, estendendo o distintivo.

A mulher olhou para o distintivo e depois para ele, como se estivesse satisfeita, ou talvez um pouco contrafeita. Nervosa.

Chase usava seu terno preto — estava um pouco amassado, mas o visual desleixado combinava com o de um policial cansado. O cabelo estava penteado para trás, um pouco desalinhado, como se tivesse enfrentado uma situação difícil. Ele parecia um policial. Sua altura e a largura dos ombros, acompanhados da barba por fazer, disfarçavam bem a sua verdadeira idade. Ele parecia... maravilhoso. Como seu cavaleiro da armadura reluzente.

Então caiu a ficha. Definitivamente. Ela o amava. Um nó apareceu em sua garganta e ela engoliu. Agora não! Agora não!

— Disseram que alguém invadiu o hospital — disse Chase. A senhora Applebee acenou com a mão na direção Della.

— Sim, não sabia que tinham chamado a polícia.

Chase olhou para Della.

— Parece uma foragida.

Chase devia ter ouvido o diálogo entre eles na sala, antes de entrar.

— Ela jura que não, mas... não está cooperando.

— Eles nunca cooperam — disse Chase. — Mas uma noite numa cela de verdade costuma soltar a língua deles.

— Qual é seu nome? — perguntou Chase.

— Eu não sou uma foragida! — disse Della, repetindo a história inventada de que tinha entrado na sala e ficado trancada lá. Depois, sentindo que Chase poderia precisar de munição, ela disse: — O guarda atirou em mim. Com uma arma de verdade. Balas de verdade. E está embriagado.

Os olhos de Chase arderam. Ela os viu percorrer seu corpo à procura de sangue. Então ele se virou para o guarda.

— Você atirou nela?

— Não! Ela jogou uma caixa em cima de mim e a arma disparou.

— Eu não joguei uma caixa em cima de você. Ela deve ter caído — defendeu-se Della.

— Eu... Eu sei o que isso parece — disse a senhora Applebee. — Peço desculpas.

Chase voltou-se para a mulher e Della podia quase ver sua mente maquinando uma forma de tirar vantagem daquilo.

— Ela causou algum prejuízo ao hospital? — perguntou Chase.

— Fez uma bagunça nos nossos arquivos antigos — disse a mulher.

— E fez isso com a força da mente — repetiu o guarda.

Chase olhou para o homem e, em seguida, para a senhora Applebee.

— A senhora tem consciência de que vocês dois poderiam estar numa situação bem delicada? Esta garota poderia ter sido morta.

O rosto da senhora Applebee ficou branco, enquanto o do guarda ficou vermelho, ou mais vermelho ainda.

— Tudo bem, eu bebi um pouco, mas sei o que vi. Ela estava atirando caixas em mim e ela estava no chão e as caixas estavam vindo de cima.

— Peço desculpas por ele — disse a senhora Applebee. — Contratamos uma empresa de segurança terceirizada. Não estávamos cientes de que...

— Ela é telepata ou bruxa. — O guarda arriscou dizer, enquanto andava em direção à saída.

Chase olhou para a senhora Applebee.

— Sem dúvida, isso poderia ser um problema. Para a senhora e para a nossa... foragida. A senhora vai prestar queixa?

— Bem, eu... — Seu olhar se desviou para Della. — Tentei resolver isso sem a intervenção da polícia. Mas ela não quer me dar nenhuma informação.

— Se eu fizer essa jovem cooperar, nos dando informações, e depois levá-la para casa, a senhora estaria disposta a não prestar queixa? — perguntou Chase.

A mulher pareceu surpresa, mas aliviada.

— Bem... sim, quero dizer, nada de ruim aconteceu, certo? — Ela olhou para Della e sorriu.

— Você vai cooperar? — Chase perguntou a Della num tom oficial.

— Eu só quero ir para casa. — disse Della, tentando parecer desesperada. Pensando bem, não era tão difícil. Ela estava desesperada.

Tinha invadido um hospital e não havia descoberto nada com isso.


Capítulo Quarenta e Um

Eles deixaram o escritório. Della teve que se conter para não sair dali correndo. No momento em que ficaram sozinhos, Chase perguntou:

— Você está bem?

— Sim. — Seu coração batia forte. Enquanto andavam na direção da saída, o ombro dele roçou no dela e o toque provocou uma dor aguda em seu peito.

Chase acenou para o guarda e as portas se abriram.

Saíram do hospital. O ar frio atingiu o rosto de Della e ela sentiu e saboreou o gosto da liberdade. Chase continuou andando até chegar ao fim da calçada. Depois parou e olhou para o estacionamento do outro lado da rua.

— O guarda realmente atirou em você? — Ele continuou a olhar em volta.

— Sim, mas a caixa caiu em cheio em cima dele. Pode ter sido um acidente.

— Você jogou a caixa nele? — Chase olhou para os dois lados da rua como se estivesse procurando alguma coisa, ou alguém.

— Não — disse Della. — O fantasma jogou.

Ele parecia prestes a dizer alguma coisa, mas Della estava ansiosa para deixar logo aquele lugar antes que a senhora Applebee mudasse de ideia, então não esperou para perguntar:

— O que você está procurando? Podemos sair daqui e conversar mais tarde?

— Steve está com o meu carro. Ele deveria...

O ronco de um motor soou no meio da noite e alguém estacionou o carro de Chase numa vaga do outro lado da rua.

— Merda! — disseram Della e Chase, ao mesmo tempo. Porque o cheiro que chegou até eles não era o de Steve.

— Que diabos você estava pensando? — Burnett perguntou, enquanto dirigia para fora do estacionamento. Chase logo explicou que eles tinham liberado Della sem chamar a polícia. Então Burnett disse a Chase para voltar sozinho e encontrá-lo em Shadow Falls.

No momento em que Della entrou no carro, começou a explicar que a culpa era dela, não de Chase, mas então percebeu que, se Steve era quem devia estar dirigindo o carro de Chase, Burnett provavelmente sabia o que tinha acontecido.

— Eu estava achando que meu pai podia ser condenado à pena de morte. — Ela desviou o olhar, com medo de que ele visse as lágrimas em seus olhos. E não era porque tinha sido pega em flagrante. Ela não estava nem aí com o fato de ter sido pega. O que a chateava era o fato de ainda não ter conseguido nada. Nada que ajudasse o pai.

Depois de piscar para afastar as lágrimas, ela olhou para Burnett.

— O arquivo não estava lá. Alguém o levou. E se foi a promotoria? E se...

— Não foram eles... — disse Burnett.

— Como você sabe? — ela perguntou.

As mãos do vampiro apertaram o volante.

— Porque eu já estou com ele.

O coração dela deu um salto.

— Você está com o arquivo?

Ele assentiu.

— Quando... Mas... por que não me contou? Eu não teria feito isso se... — Ela viu a expressão dele endurecer. Seu silêncio dizia tudo.

— Tem algo ruim nesse arquivo, não tem?

Burnett suspirou.

— O que importa é que, se a promotoria de fato procurá-lo, não vão encontrá-lo. Eu o destruí.

— O que estava escrito ali? Será que o meu pai viu o assassinato? Ele sabe sobre... a existência de vampiros?

Ela viu o pomo de adão de Burnett subir e descer.

— Droga! Me diga.

— Ele falou que foi atacado pelo que ele se referiu como um monstro, mas depois... disse que matou a irmã.

— O quê? — ela ofegou. — Ele não fez isso. — Fechou as mãos em punhos, com vontade de bater em alguma coisa. Arrancou o cinto de segurança e ele se partiu em sua mão.

— Della, não estou dizendo que ele tenha feito isso. Eu... Estou dizendo que ele disse ao médico que fez isso. Mas isso nunca vai vazar. Eu destruí o arquivo.

— Você fez isso mesmo?

— Sim — confirmou ele.

— Ele disse por que pensou que fez isso?

— Não. Apenas disse que fez. Isso foi tudo que ele disse.

Ela ficou ali sentada, sofrendo.

— Ele não fez isso. Sabemos que aquele outro cara é que fez. Stone fez isso.

— Eu sei. Foi por isso que eu não disse nada a você.

Ela inspirou o ar com um tremor e eles seguiram em silêncio durante os quinze minutos seguintes. A mente dela continuava dando voltas. Tentava compreender. E não conseguia.

— Por que ele disse isso? — ela murmurou.

— Porque estava confuso — disse Burnett. — Talvez, na cabeça dele, não proteger a irmã foi o mesmo que matá-la.

Era como se Burnett já tivesse tentado encontrar um motivo para a confissão do pai. Mas será que ele acreditava mesmo nisso? Será que ele não achava que o pai dela tinha matado a irmã? Della se lembrou de Bao Yu e das visões. As acusações.

Nada disso poderia fazê-la acreditar que seu pai era um assassino.

Poucos minutos depois, outra preocupação a atingiu.

— E se o médico testemunhar?

— Ele faleceu no ano passado. A menos que consigam encontrar uma enfermeira — e isso vai ser difícil porque eu mesmo já procurei e não encontrei —, isso não vai acontecer. Como eu disse, já destruí o arquivo. Ele não servirá como prova.

Della puxou os joelhos para cima do banco e os abraçou. Nesse mesmo instante, soube que Burnett tinha feito aquilo por ela. E ela apostava que ele não tinha dito nada à UPF.

— Obrigada. — Ela apoiou a cabeça nos joelhos e se entregou às lágrimas. Em silêncio.

— O que aconteceu lá? — perguntou Burnett. — Você disse a eles o seu nome? Eles ligaram para a UPF?

Della contou a ele sobre o fantasma, sobre o tiro que o guarda disparou contra ela e como tudo aconteceu.

Burnett rangeu os dentes. Ela de fato o ouviu rangendo os dentes. Ele não podia repreendê-la pelo que tinha feito. Porque ele tinha feito o mesmo. Só que tinha sido bem-sucedido.

— Você tem sorte de não ter levado um tiro daquele guarda — disse ele com os lábios apertados.

— Eu sei. — Ela olhou pela janela e tentou não pensar.

— Vamos ter que tomar alguma providência com aquele fantasma.

— Ela não fez mal a ninguém. Não estava jogando as caixas nele, estava apenas atirando-as da prateleira. Vá em frente, olhe. Olhe cada caixa. Você não vai encontrar nada porque não existe prova nenhuma.

— Mas Della...

— Não vem com essa, Burnett. Por favor. Ela só quer respostas. — Nós todos queremos, Della pensou. Por que o pai dela achava que tinha matado a irmã? Não fazia sentido. Porque ela sabia, sabia com cada fibra do seu ser, que o pai não mataria ninguém. Ele tinha até comprado uma arapuca para pegar um rato que morava no sótão. Depois, levou o bicho para o bosque e soltou-o. A mãe tinha até feito piada com isso, e ele brincava também, dizendo que o rato o fazia se lembrar da mãe dele.

Eles passaram o resto do trajeto em silêncio. Quando Burnett estacionou o carro, Della procurou por Chase. Não o viu. Farejou o ar. O cheiro dele pairava no ambiente. Devia estar esperando no escritório.

— Vá descansar um pouco. — Burnett saiu do carro.

Ela começou a se afastar e, então, virou-se.

— Você acredita em mim agora, Burnett? Meu pai disse que viu um monstro. Ele viu Feng aquela noite e você lembra que eu contei que ele disse à minha mãe que o irmão era frio como eu. Ele sabe que sou uma vampira?

Burnett inspirou.

— Nós não sabemos.

Mas Della sabia. Ela sabia disso assim como sabia o próprio nome. Seu pai achava que ela era um monstro. E era por isso que não a amava mais.

Della estava quase na cabana quando Chase aterrissou bem na frente dela.

Ela não teve tempo de secar as lágrimas.

— Sinto muito — disse ele, puxando-a contra si.

Ela não resistiu.

Seu aroma penetrou nas narinas dela, e ela desistiu de fingir e chorou um pouco mais.

Ficou ali durante vários segundos. Os braços dele em volta dela. A cabeça em seu peito. O coração partido.

A mente de Della dava voltas, pensando no que queria dizer.

Ela o amava.

E não tinha feito nada errado com Steve.

Seu pai sabia que ela era um monstro.

— Vai ficar tudo bem — ele sussurrou, perto de sua orelha.

Ela se afastou.

— Não, não vai. Ele sabe, Chase. Meu pai sabe. E, no arquivo, está escrito que o meu pai disse que matou a irmã. Por que ele diria isso?

— Eu não sei. — Chase secou as lágrimas do rosto dela. — Della, me ouça. Eu prometo que vou dar um jeito nisso. Ok?

Ela olhou nos olhos dele.

— Como?

— O que importa é que eu vou — garantiu ele.

Ela piscou e havia algo escondido nos olhos dele, no seu tom de voz.

— O que você vai fazer?

— Apenas confie em mim. Você pode fazer isso? — perguntou.

E de todas as coisas que ele poderia ter dito, essa foi a que a fez demorar mais para responder.

— Se você tem um plano, eu preciso saber...

Ele ficou parado ali, com as mãos firmes nos ombros dela.

— Eu não tenho tudo planejado ainda, mas estou trabalhando nisso.

— Trabalhando em quê?

Ele tirou as mãos dos ombros dela.

— Eu preciso falar com Burnett. — Chase começou a se afastar.

— Não. — Ela agarrou o braço dele. — Você sabe alguma coisa. O que não está me contando? — Ele desviou os olhos. — Não minta para mim, Chase. O que está acontecendo?

— Eu não menti. Prometi que não iria mentir. E cumpri minha promessa.

— Mas você não está me dizendo alguma coisa.

— Della, eu estou tentando resolver isso. Pode me dar um tempo? Vou fazer a coisa certa.

— Qual é a coisa certa? — ela perguntou, agora certa de que ele estava escondendo algo. — O que pretende fazer?

— Pretendo fazer tudo que for humanamente possível para livrar o seu pai da cadeia. Eu acredito que ele é inocente.

— Eu sei que ele é inocente — Della insistiu. Mas ainda havia algo que Chase não estava dizendo. A mente dela disparou. — Kirk lhe disse algo? Ele sabe onde Stone está?

Quando Chase não respondeu, ela perguntou:

— Você já falou com Burnett sobre isso?

— Não. — Ele suspirou.

— Você sabe onde meu tio está agora, não sabe?

— Não. Della, por favor, apenas...

— Apenas o quê? Confiar em você? Está me pedindo para confiar no cara que não está fazendo outra coisa exceto mentir para mim? Que fugiu de mim duas vezes? Não, três vezes, porque você me deixou outra vez.

— Burnett achou muito perigoso eu ficar aqui.

— Por que você não me contou? Por que não me ligou nem mandou uma mensagem? Por que não me escreveu quando foi ver Kirk?

Quando Chase não disse nada, ela apenas continuou olhando para ele.

— Eu tenho que ir — disse ele. — Burnett está esperando.

— Que diabos você não está me dizendo, Chase?

Ele se inclinou e beijou-a.

— Que eu te amo.

Em seguida, ele voou para longe.

Della ficou ali, imersa num mundo de dor. Era possível amar alguém em quem não se confia?

Chase aterrissou na varanda do escritório. Ele ouviu Burnett andando de um lado para o outro na sala de Holiday. Chase passou a mão no cabelo, depois olhou por cima do ombro, para se certificar de que Della não o seguira.

Então fitou a porta do escritório. Certo ou errado, ele tinha que fazer aquilo.

Entrou e ouviu a cadeira do escritório de Holiday ranger, como se protestasse sob o peso de uma pessoa.

— Estou aqui — disse Burnett, em seu tom mal-humorado normal.

Chase entrou. O homem estava sentado ali, os ombros eretos, os braços cruzados e os olhos fixos em Chase com a mesma expressão que seu tom de voz denunciava.

— Você deveria ter me ligado. Essa coisa toda poderia ter acabado muito mal.

— É. Eu provavelmente deveria.

Chase se sentou. A cadeira também gemeu em protesto. Assim como o coração de Chase. Eddie o salvara. Ensinara. Protegera.

Ele olhou para Burnett.

— Algo errado?

Chase sentiu o nó na garganta apertar.

— Eu preciso de ajuda — disse Chase.

— Com o quê? — Burnett descruzou os braços e se inclinou para a frente, agora mais curioso do que irritado.

— Estou numa baita encrenca. — Chase passou a mão no rosto.

— Que encrenca?

Chase desviou o olhar, sem saber por onde começar. Seu olhar pousou numa foto de Holiday com Hannah no colo.

— O que... o que você faria se alguém matasse Holiday?


Capítulo Quarenta e Dois

Della estava sonhando. Ela era Bao Yu. Então acordou e se recusou a dormir outra vez. Depois a viu quando não estava mais dormindo.

Viu a faca sendo arrancada do seu peito. O sangue escorrendo da lâmina. O rosto do seu pai olhando para ela. Ela se esforçando para levar aos pulmões seu último suspiro.

Em seguida, morreu. Ou sua tia morreu. Várias e várias vezes.

E cada vez que ela passava por aquilo, um pouco antes de perder a vida, Della sentia a tia lamentar e chorar por algo diferente.

As pessoas que ela iria perder. O amor que nunca seria capaz de dar. Uma criança da qual ela tinha desistido e para a qual nunca poderia dizer “eu te amo”. A chance de consertar todas as coisas que tinha feito errado.

Della foi para a aula, esperando esquecer tudo aquilo. Saiu depois da aula de Ciências, quando viu que isso não aconteceu.

Exausta, mental, física e emocionalmente, ela se dirigiu ao escritório. Nessa caminhada, um passo após o outro, tudo que Della podia ouvir eram as palavras de Burnett. Ele disse que foi atacado por um monstro. Será que o pai suspeitava mesmo que ela era uma vampira?

Holiday levantou os olhos quando Della entrou, então ofegou.

Devia ter sentido o tumulto interior de Della.

— Eu não posso mais. Simplesmente não posso.

Holiday correu para ela e envolveu-a em seus braços.

— Eu sei. Eu sei.

Della inclinou-se contra ela e soluçou. Ela não se importava de parecer fraca. Não se importava de estar encharcando de lágrimas e sabe-se lá mais o que o lindo suéter verde de Holiday. Simplesmente não se importava.

Ou será que se importava demais?

Ela se importava com Bao Yu. Ela se importava com o pai. Ela se importava... que ele a considerasse um monstro. Ela precisava corrigir isso. Tudo isso. Mas como?

— Está tudo bem. — Holiday passou a mão nas costas de Della.

Um pouco da dor a deixou com o toque de Holiday, mas nem de perto o suficiente. Principalmente quando viu a cena outra vez. A visão. Ela era sua tia e a faca estava sendo puxada do seu próprio peito.

Della se afastou dos braços de Holiday e apertou os olhos com as palmas das mãos, desejando que a visão fosse embora.

— Eu já vi isso, pelo menos, cinquenta vezes hoje. E estou vendo isso agora. O que ela quer de mim? Será que quer que eu diga que ele é culpado? Eu não posso. Ele nunca encostou um dedo em nós. Não faria isso. E não faz sentido. Por que a teria matado? Se outra pessoa tinha ido lá para isso? O que ela quer?

— Eu não sei. — Holiday se aproximou e acariciou as costas de Della.

Della abriu os olhos.

— Ela está me punindo porque eu ainda amo meu pai?

— Não. Ela não punindo você — disse Holiday. — Ela quer entender também e acha que você pode ajudá-la.

— Mas como? O que eu posso fazer? — E nesse exato instante Della descobriu a resposta. Ela sentiu um arrepio de pavor, mas era a coisa certa a fazer. Aquilo iria acontecer mais cedo ou mais tarde.

— Eu sei o que posso fazer — disse Della. — Falar com o meu pai. Ele tem que saber que não fez isso. Se ela o ouvir dizer isso, vai acreditar.

Holiday franziu a testa.

— Ok... Eu entendo por que você acha que isso vai funcionar, mas... — Ela fez uma pausa. — Como é que você vai explicar isso sem contar a ele...

— ... a verdade? — Della terminou por ela. — Talvez seja a hora de contar.

Holiday sacudiu a cabeça.

— Com o julgamento se aproximando e um fantasma irritado, não sei se esse é o momento mais apropriado para esse tipo de conversa.

— Será que existe um momento apropriado para esse tipo de conversa?

— Pode haver um momento melhor. Eu vou dizer o que fazer. Por que, em vez disso, você não deixa que eu tente fazê-la ir embora? Estive lendo sobre isso. Não iria fazer mal a ela. Apenas impedi-la de agir.

— E você acha que isso não faria mal a ela?

Holiday fez uma careta, mas não pôde negar.

— Não — disse Della. A ideia dela era melhor.

Olhando por cima do ombro, ela notou o sol entrando pelas janelas de Holiday. Os raios luminosos incidiam nos cristais pendurados por todo o escritório e projetavam espirais de cores rodopiantes nas paredes.

Não era hora de tentar um voo à luz do dia.

Ela poderia esperar até a noite, mas, caramba, havia chance de ter um ataque de nervos até lá. Além disso, queria falar com o pai sozinha, não na presença da mãe. Ele devia estar no trabalho. Era o lugar perfeito. Ele não iria surtar demais. Não com os colegas de trabalho por perto.

— Que tal uma xícara de chá de camomila? — sugeriu Holiday.

Della não queria chá, mas, ao olhar a escrivaninha de Holiday, ela mudou de ideia.

— Um chá seria ótimo — mentiu, sem nem se sentir culpada por isso.

Claro, mentir era errado e roubar carros era crime. Mas isso não a impediu de surrupiar as chaves do Corolla prateado e sair dali de fininho antes que Holiday a chamasse para perguntar se queria açúcar no chá.

O celular de Della tocou. O número de Holiday apareceu na tela.

Della não aceitou a ligação, e por uma boa razão. Era perigoso falar no celular e dirigir ao mesmo tempo. Oh, sim, ela usaria essa desculpa.

Tentando lutar contra o sentimento de urgência que fluía em suas veias, dirigiu sem nunca ultrapassar o limite de velocidade. Já era ruim o bastante dirigir um carro roubado. Ela não precisava ainda tomar uma multa por excesso de velocidade. Não, Chase não estava ali para tomar a multa por ela.

Agora não. Agora não! Ela não queria pensar nele. Seu coração só ficaria mais apertado. Chase estava escondendo alguma coisa dela. E se estava pensando nela, não poderia enviar uma mensagem de texto? Telefonar? Sim, poderia. Mas não tinha feito isso.

Uma hora mais tarde, Della estacionou o carro em frente ao local de trabalho do pai.

Inclinou-se e olhou para o prédio alto no nordeste de Houston. Sentiu uma leve brisa fria. Foi quando percebeu que, desde que engendrara aquele plano, as visões de morte tinham se interrompido. Parecia que a tia estava feliz com a decisão da sobrinha.

Ela saiu do carro, entrou e apertou o botão do elevador, rumo ao nono andar. O ar frio roçou na sua pele enquanto os números dos andares cintilavam.

Lembrou-se do alerta de Holiday sobre o fantasma irritado e o aviso de que talvez não fosse o momento mais apropriado para conversar.

— Nada de jogar caixas! Nada de jogar nada! — ela advertiu o fantasma.

As portas do elevador se abriram.

Della saiu e seguiu em direção à sala onde o pai trabalhava.

A recepcionista, uma senhora de ascendência chinesa que atendia pelo nome de Lucy, olhou para ela e cumprimentou-a com um sorriso falso. Mas o sorriso se tornou real quando reconheceu Della.

— Ora se não é a senhorita Tsang! Como você cresceu! Olhe só! É quase uma adulta agora.

Sim, havia algo sobre o roubo de um carro que provavelmente a faria ser julgada como uma adulta. Claro que a invasão que ela cometera na noite anterior tinha sido um crime adulto também. Ela era apenas uma criminosa comum agora.

— Pois é. — Della forçou um sorriso. — Eu queria falar com o meu pai. Posso entrar na sala dele? — E já foi andando em direção à porta. Mas, ao girar a maçaneta, não ouviu o clique indicando que estava destrancada.

Della deu três passos para trás e olhou para Lucy.

A mulher balançou a cabeça com uma expressão triste.

— Bem, eu... eu...

Será que o pai tinha dito para não a deixarem entrar? Ele estaria com medo dela?

— Seu pai não está.

— Foi almoçar mais tarde? — perguntou Della.

— Não. Ele... não vem há duas semanas. Disse que precisava se concentrar no...

— ... julgamento — disse Della. Mas havia um problema. E dos grandes. Ela tinha ficado em casa na semana anterior e ele tinha saído para trabalhar todos os dias. Será que ele não tinha contado à mãe? Envergonhado por não estar conseguindo lidar bem com a situação?

Era provável.

Della forjou outro sorriso e correu para a rua, sentando-se no seu carro roubado. Seu peito doía por seu pai. Por toda a sua família.

Ela quase mudou de ideia. Confrontá-lo sobre isso iria magoá-lo. Mas era tão errado assim precisar da verdade?

E foi então que ela se deu conta. Bao Yu precisava da verdade. Della não. Ela sabia a verdade. Seu pai não tinha matado a irmã.

Mas ela não tinha ido até ali só por causa disso. Ele falou que foi atacado por um monstro. Era para fazê-lo olhar para ela. Fazê-lo saber que ela não era o monstro que ele achava que era.

Della respirou fundo.

— Onde está você, pai? Onde está se escondendo?

Só para ter certeza de que o pai não tinha sido sincero sobre as faltas no trabalho, Della ligou para a mãe.

Ela atendeu.

— Por que não está na escola?

— Estou no intervalo. — Um longo intervalo. — Papai está aí?

— Não, está no trabalho. Algo errado?

Oh, sim.

— Não. Eu só senti falta dele. — Seu coração se apertou quando ela percebeu quanto aquilo era verdade. Ela sentia falta dele havia meses. — Até mais tarde.

Ela ouviu a mãe dizer o nome dela.

— Até mais tarde — Della prometeu.

Ela descansou a cabeça no volante e tentou pensar. Onde é que o pai iria passar o dia se não estava no trabalho?

Chase e Burnett andavam pela casa vazia, em frente à qual havia um aviso de despejo. Eles tinham ido no carro de Chase, mas Burnett insistira em dirigir. Chase não sabia se Burnett não confiava nele ao volante ou se só gostava de dirigir seu carro. Esperava que fosse este o caso.

Aquele era o terceiro lugar da lista de Kirk a que eles tinham ido naquele dia, e pelo visto era mais um endereço que eles simplesmente riscariam da lista. Chase não poderia deixar de se preocupar com a possibilidade de que aquela se revelasse uma busca inútil.

— Eu não entendo por que ele estaria em qualquer um desses lugares se morava e trabalhava no apartamento.

— Eu verifiquei, e todos os endereços foram comprados há pouco tempo em nome de várias pessoas diferentes, mas um deles era Don Williams, o nome falso que ele usava na França. Ou ele alojava os membros da gangue nesses imóveis ou queria ter vários esconderijos.

Burnett não tinha prometido ignorar qualquer informação sobre Eddie que Stone pudesse dar, mas prometera que ele mesmo interrogaria Stone e não divulgaria nada até que tivesse investigado tudo pessoalmente.

E como Burnett tinha ligado para Chase às cinco horas aquela manhã e dito para encontrá-lo no escritório da UPF, Chase suspeitava que Burnett já tinha feito algumas investigações.

Subiram até a varanda, ambos com o rosto erguido para sentir qualquer cheiro e ouvir qualquer sinal de alguém escondido ali dentro.

Chase não tinha percebido nada.

— Qual o próximo endereço? — perguntou Burnett, enquanto voltavam para o carro.

Antes que Chase pudesse falar, o celular de Burnett tocou.

— Oi, querida — ele respondeu.

Chase se afastou para dar a Burnett privacidade. Mas parou de andar quando ouviu a palavra que Burnett sempre usava quando havia um problema.

— Merda!

Della estacionou em frente ao restaurante. O cheiro de arroz frito impregnava o ar. Era o mesmo restaurante que pertencera aos avós. O piso superior era agora utilizado como depósito, mas tinha sido a residência do pai durante os primeiros sete anos de vida.

O casal chinês que tinha comprado a casa de seus avós ainda eram os donos. E o pai sempre a levava ali. Enquanto tomavam sopa picante e comiam arroz frito, ele costumava contar a ela sobre a mãe, o pai e a irmã dele. Mal sabia Della que, durante todas aquelas conversas, ele não estava falando a verdade sobre os outros dois irmãos.

Sim, o fato de ele ter um irmão gêmeo e outra irmã que nunca mencionava.

Afastando a raiva, ela se inclinou para a frente, tentando ver através da janela de vidro e verificar se havia clientes sentados às mesas.

Numa mesa de trás, sentado sozinho, ela o viu. Segurava um jornal nas mãos, mas ela podia ver a lateral de seu rosto e sua postura. E a maneira como seu cabelo estava arrepiado na parte de trás o denunciava.

Lágrimas encheram seus olhos. O pai tinha se escondido durante todos aqueles dias para não ter que dizer à mãe que não conseguia suportar a suspeita no olhar dos colegas de trabalho. Aprumando os ombros, ela afastou o sentimento de pena, porque estava prestes a aborrecê-lo muito mais.

Mas já era hora.

Por Bao Yu e por ela mesma.

— O que foi? — Chase perguntou quando Burnett desligou o celular e começou a andar mais rápido em direção ao carro.

— Sua namorada — disse Burnett.

— Minha o quê?... Della? — Ninguém nunca a tinha chamado assim e Chase gostou.

— Sim. Ou você fica aos amassos com alguma outra garota enquanto trabalha num caso?

— Não. — Chase sorriu. — Só com ela. — Então notou a expressão de Burnett. — Algo errado?

— Sim. Ela pegou o carro da escola e foi confrontar o pai.

— A respeito do assassinato?

— Provavelmente a respeito de tudo.

— Isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Della tem certeza de que o pai sabe sobre ela ser um vampiro — disse Chase.

Burnett balançou a cabeça.

— Sim, e seu maior medo é que ele pense que ela é um monstro. Ela não precisa saber se está certa ou não.

Burnett discou um número.

— Della está na rua, tentando ir ver o pai. Você a tem na mira?

— Sim — disse Shawn, do outro lado da linha.

— Della está num Corolla prata 2013. Não deixe que ela fale com ele. Estou a caminho só por precaução.

Burnett desligou.

— Vamos ver se a cabecinha quente vai me responder.

Cabecinha quente, Chase pensou. Sim, era uma boa descrição.

Chase ouviu Burnett gravar uma mensagem de voz.

— Della, eu preciso falar com você. Agora! — Burnett rosnou. Ele olhou para Chase. — Você acha que ela atenderia a um telefonema seu?

Considerando as últimas conversas entre eles, Chase duvidava muito, mas pegou o celular assim mesmo. E deixou quase a mesma mensagem.

Ele encontrou o olhar de Burnett.

— O que você sabe?

Burnett recomeçou a andar na direção do carro de Chase.

— Eu sei que o pai de Della é um idiota. E sei que ela tem um fantasma bem contrariado andando atrás dela.

— O que mais? — perguntou Chase, sabendo que havia mais alguma coisa.

Burnett franziu a testa.

— Quando eu liguei para contar ao pai que Della precisava voltar à escola, ele me disse que não queria que ela voltasse para casa outra vez. Nunca mais.

Burnett passou uma mão no rosto com frustração.

— Então, ontem, ele enviou um e-mail anônimo à polícia dizendo que Della era suspeita do assassinato dos Chi. E deu à polícia o nome de Shadow Falls.

— Mas que filho da mãe! — Chase sibilou, os olhos ficando incandes-
centes.

— Até agora, não entraram em contato conosco — disse Burnett —, mas se o caso dos Chi não for solucionado quanto antes, eles vão fazer isso.

— Alguém precisa dar uma lição nesse homem! — disse Chase. — E eu me candidato! Vamos já. — Chase parou ao lado do carro. — Talvez aquele desgraçado tenha de fato matado a irmã!

Burnett negou com a cabeça e destrancou o carro, mas não entrou.

— Ele não matou. Mas algo aconteceu naquela noite que o fez pensar que matou. — Burnett soltou um profundo suspiro e piscou, como se estivesse tentando controlar a própria raiva. — Pode acreditar, eu olhei embaixo de cada pedra, de cada folha que o homem pisou. Procurei em todos os lugares, na esperança de encontrar o menor motivo que fosse para dar um cacete naquele sujeito!

— O modo como ele trata Della não é motivo suficiente? — perguntou Chase, de mau humor.

— Sim, mas a droga é que ele é um homem decente. É um bom marido e, até Della se transformar, era praticamente candidato ao troféu Pai do Ano. Por que você acha que ela o ama tanto?

— Mas veja como ele a trata agora!

— Eu sei. E também gostaria de socá-lo para ver se enfio algum juízo na cabeça daquele idiota. Mas a única coisa que faz sentido é que a transformação dela tenha trazido de volta todas essas lembranças terríveis. Acho que até então ele estava conseguindo esquecer ou acreditar que tudo não passava de um sonho. Agora ele está com medo. E não teme por si, mas pela família.

— Então não vamos dar uma surra nele, vamos apenas falar com ele.

— Não agora — disse Burnett. — Precisamos dar um fim nesse julgamento. Se ele não aparecer, pode prejudicar o caso. E ambos sabemos que, se for considerado culpado, Della não vai suportar.

Della andou até a porta. Colocou a mão na maçaneta. Eu te amo, pai. Só preciso entender, e você tem que entender isso.

Ela tinha ensaiado o que iria dizer no trajeto até ali. Respirou fundo e, segurando o ar nos pulmões, entrou no restaurante. Passou pela mesa onde, o pai tinha contado a ela, ele fazia a lição de casa todas as noites. Passou pela enorme escultura de leão que seu pai costumava escalar quando criança. Passou pela foto de seus avós, que ainda estava pendurada na parede.

Por fim, sentou-se em frente ao pai.

Ela viu o jornal enrijecer na mão dele. E só então ela respirou.

Só então percebeu seu erro.

O cheiro do vampiro encheu seu nariz.

— Olá, Della — disse o tio.


Capítulo Quarenta e Três

Della ficou ali sentada, o corpo paralisado, enquanto o tio baixava o jornal. Seus olhos, seu rosto, todas as feições eram uma cópia das do pai. Todas as razões pelas quais ela não gostava daquele homem passaram pela mente de Della, mas seu coração lembrou que no início ela ansiava por conhecê-lo. Desejava ter um membro da família que pudesse entendê-la, que não iria olhar para ela como se ela fosse um monstro.

Della não conseguia falar.

Ele a analisou.

— Você pensou que eu era o seu pai, não é?

Incapaz de mentir — ele saberia —, ela apenas assentiu.

— Desculpe desapontá-la. — Ele sorriu. — Gostaria de tomar um chá?

Ela fez que não com a cabeça, ainda tentando descobrir o que dizer. Droga, o que sentir.

— O seu pai costuma vir aqui? — ele perguntou.

Ela assentiu novamente.

— Este lugar me traz lembranças. — Ele olhou ao redor. — Não mudou muito. Aquela mesa ali era onde fazíamos a nossa lição de casa. Seu pai e eu gostávamos de escalar aquele leão. Mamãe costumava ralhar com a gente e nos dizer que o leão ia pegar um de nós um dia. — Seu olhar pousou na foto. — Você sabe que aqueles são os seus avós?

A voz dele também era parecida com a do pai. O peito de Della se apertou ainda mais.

— Por quê? — Ela forçou as palavras a saírem da boca. — Por que você não me procurou antes? Por que enviou Chase em vez de vir você mesmo? Por que não salvou Chan? — As lágrimas encheram seus olhos. — Por que não procurou a UPF quando meu pai foi preso por assassinato? E por que... por que você deixou Chase ir ver os pais no necrotério?

Ele olhou para sua xícara.

— Você tem um bocado de perguntas.

Ela secou uma lágrima com a mão.

— Eu mereço respostas.

Ele suspirou.

— Por onde eu começo? — Ele fez uma pausa. — Eu não a procurei porque você estava ligada à UPF. Tenho minhas razões para não confiar neles. — O tio olhou para baixo outra vez. — Eu queria salvar Chan.

— Então por que você não fez isso? — Della sentiu a temperatura da sala baixar. Ela ignorou; só queria ouvir o que ele tinha a dizer.

— A última vez que tentei estabelecer uma ligação de sangue com alguém, a pessoa morreu. Meu sangue não é mais útil. Entenda, teria sido injusto pedir a Chase para se ligar com qualquer um de vocês. E eu não pedi. Só se deve estabelecer uma ligação com alguém quando se tem afeto por essa pessoa. Porque é preciso abrir mão dos próprios poderes. Dar a ela uma parte da sua alma.

Della se lembrou de Chase contando sobre a esposa de Eddie, mas ela não quis dizer que sentia muito e só esperou que ele continuasse.

O tio acrescentou um saquinho de açúcar à sua xícara. Pedaços de folhas de chá espiralaram até a borda. A colher tilintou contra a porcelana.

— Eu pedi a Chase para preparar você e Chan para enfrentar o Renascimento sozinhos. Chase disse que Chan era muito fraco para sobreviver, mesmo que alguém se ligasse a ele. Isso doeu em Chase. Mas ele descobriu que você era forte. Sentiu que você poderia sobreviver ao processo. Mas você intrigou aquele garoto. — O tio sorriu. — Ele me contou algumas das suas peripécias. Eu percebia na voz dele. Sabia que Chase iria fazer a ligação, mesmo antes que ele soubesse. — Ele ergueu a xícara. — Chase me disse que, se fizesse isso, você iria lutar contra ele. Ele sabia muito bem como você era.

O tio dela fez outra pausa.

— Qual era mesmo a outra pergunta? Ah, sim. O necrotério? Essa é uma pergunta que eu não esperava. Mas gosto dela, porque indica que você parou de lutar contra a ligação.

— Isso eu ainda não sei — disse ela, lembrando que Chase tinha se afastado outra vez.

— Ok, como eu posso explicar o necrotério? — Ele olhou para cima. — Não foi a minha ideia mais brilhante. Mas como sou alguém que foi obrigado a se afastar da família, eu não tive a oportunidade de me despedir. Então ofereci a ele essa opção.

Feng pegou seu chá e tomou um gole.

— Agora está satisfeita? Eu gostaria de ouvir...

— Você esqueceu uma.

Ele arqueou uma sobrancelha.

Com o canto do olho, ela viu Bao Yu sentada a uma mesa, olhando para eles. A mesma em que os irmãos costumavam fazer a lição de casa. Ela se limitava a olhar. Tinha uma aparência jovem e alguns livros com ela. Será que tinha reconhecido Feng?

Afastando a tia da mente para se concentrar no tio, Della inclinou-se para a frente.

— Mesmo não gostando da UPF, quando meu pai foi preso por assassinato, por que você não deu as caras? Tudo isso teria sido muito mais fácil. Em vez de desperdiçar nosso tempo procurando você, poderíamos estar procurando Stone.

— Eu disse a Chase que, se meu irmão corresse um sério risco de ser condenado, eu me apresentaria e confessaria o crime. Para a polícia, não para a UPF. Já sabia como fazer com que acreditassem em mim.

Della ficou sentada ali, com o coração dolorido.

— Teria sido bom se Chase tivesse me contado isso.

— Ele não deve ter contado porque jurou que isso nunca aconteceria.

Della balançou a cabeça. Não importava por quê. Era apenas mais um segredo que ele tinha guardado dela. Outra mentira.

Ela encontrou o olhar do tio.

— O que Chase está escondendo de mim agora sobre o encontro dele com Kirk?

O tio reclinou-se na cadeira.

— Que encontro com Kirk?

Della fitou o tio.

— Ele não contou nem a você? Você não está sabendo? — Pelo menos ele não tinha mentido sobre isso.

— O quê?

— Douglas Stone é filho de Powell. Todo o Conselho sabia disso há anos.

— Não... — Feng murmurou. — Eles não o fariam isso... Kirk não faria.

Della viu o sentimento de ser traído nos olhos dele, que ficaram mais brilhantes.

— Por que eu mentiria sobre isso? E pior. Acho que Kirk está obrigando Chase a fazer alguma coisa contra a vontade dele. E eu não gosto disso.

Seu tio colocou uma nota de cinco dólares sobre a mesa e se levantou de repente. Deu um passo e se virou para olhar para ela.

— Você vem?

— Para onde?

— Quer respostas ou não?

Depois de quase uma hora no carro, Della quebrou o aparente código de silêncio e perguntou:

— Para onde estamos indo?

O tio dirigia um Malibu dourado. Nada muito chamativo, mas ainda assim tinha cheiro de novo. Ele tinha ficado quieto e, por alguma razão, isso a perturbava. Assim como Bao Yu no banco de trás.

Della desviou os olhos para a tia. Ainda jovem, ainda silenciosa.

As palmas de Della começaram a coçar. A mãe dela não lhe dizia sempre para não entrar em carros com estranhos?

Aquele homem ao volante podia ser seu tio, mas ainda era um estranho. Mas como Chase lhe dissera que o tio tinha perdido a maior parte dos seus poderes de Renascido, ela poderia subjugá-lo se preciso.

Agredir um homem que se parecia tanto com seu pai não seria fácil. Mas não era isso que mais a assustava. Era o que ele planejava fazer.

— Eu já disse. Conseguir respostas — ele explicou quando ela o interpelou outra vez. Depois colocou as duas mãos no volante e simplesmente olhou para a frente.

Della notou a janela começando a embaçar.

— Você pode explicar melhor?

Ele por fim olhou para ela, e a dor em seus olhos lhe dizia que ele estava pensando na traição do amigo.

— Primeiro vamos ter que bater um papinho com Powell. Então acho que vamos ver meu amigo Kirk.

Era com isso que ela estava preocupada: falar com Kirk.

— Por que você não liga para Chase simplesmente? Ele vai contar tudo.

— Ele me pediu para não ligar, nem entrar em contato com ele. Não quer ter de mentir para você.

E como aquilo fazia ela se sentir? Chase tinha cortado de propósito o contato com alguém que poderia ter ajudado no caso do pai dela. Ela deixou aquilo de lado por ora.

— Que tal se eu lhe der permissão para ligar para ele? Você pode dizer que estamos aqui, frente a frente, então ele não teria que mentir.

— Eu prefiro ouvir a história inteira. Espero que eles me digam mais do que disseram a Chase. — Ele se inclinou e ligou o desembaçador.

— Você acha que vão contar tudo a você? — Ela viu vapor sair dos lábios dela e tentou não deixá-lo perceber que estava tremendo.

— Com algum incentivo, talvez — disse ele.

— Tudo bem — disse Della. — Vou ser sincera com você. — Ela encaixou as mãos entre as coxas para mantê-las aquecidas. — Quero saber a verdade, mas nas últimas vinte e quatro horas eu quase fui denunciada por invasão à propriedade privada e roubei um carro. E pode incluir agressão nessa lista, embora não fosse culpa minha. Não que alguém vá acreditar. De qualquer forma, já cometi crimes demais. Se cometer mais um, vou estar de fato encrencada. É como na Lei de Murphy.

Ele olhou para ela. Seus olhos estavam brilhantes e sérios. Depois ele riu.

E, por Deus, era a primeira vez que ela ouvia uma risada como a de seu de pai depois de muito tempo, então riu com ele.

— Você não cometeu realmente todos esses crimes, não é? — ele perguntou, quando acabou a graça.

— Sim, acho que cometi, sim. — Ela deu uma rápida olhada na tia e em seguida voltou a olhar para Feng.

Ele franziu a testa.

— Tudo bem, não se preocupe. Acho que consigo fazer você escapar dessa sem ser presa. E, se eu não conseguir, vou dizer que forcei você a vir comigo.

Ela não tinha certeza se ele estava brincando, mas concordou:

— Tudo bem.

— Agora, eu posso fazer uma pergunta? — Ele passou a mão no para-brisa para desembaçar o vidro. — Pode me dizer quem está no banco de trás com a gente?

— Venha, vamos terminar o que começamos — disse Burnett para Chase.

Chase desviou os olhos da casa e encarou Burnett. Já passava das cinco horas da tarde. O pai de Della já tinha voltado para casa. Pasta na mão, como se tivesse trabalhado o dia todo, em vez de ficar na Starbucks.

— E se Della voltar?

— O meu agente vai detê-la. E eu tenho alguém vigiando as ruas. Nosso tempo vai ser mais bem aproveitado se encontrarmos Stone. E precisamos ir até o outro endereço do nosso fã de tênis caros. Se o pegarmos, a polícia não vai poder suspeitar que Della cometeu o assassinato.

— Como esse cara estava na gangue, ele pode estar na companhia de Stone — Chase presumiu.

— Os outros que com certeza participaram do assassinato, ele deixou para trás. Algo me diz que ele ficou para trás também. Acho que Stone colocou pessoas vigiando a casa de Della e alguns de seus rapazes perderam a cabeça e cometeram os assassinatos. Pode ser até por isso que foram deixados para trás. Stone não quer chamar atenção agora.

— Tudo bem — disse Chase, vendo a lógica. — Mas por que não podemos nos separar? Ganharíamos tempo.

— É muito perigoso. — Burnett começou a voltar para o carro de Chase.

— Eu não sou mais um de seus alunos. Sou um agente. — Ele puxou a etiqueta do paletó. — No caso de você não ter notado o terno.

— Você acha que eu ia enviar um agente iniciante para cuidar de um caso sozinho?

— Eu não sou iniciante. Trabalhei dois anos para o Conselho.

— Sim, muito estranho eles não terem enviado a sua ficha. — Burnett parou ao lado do carro.

Chase franziu a testa.

— Posso pelo menos dirigir o meu próprio carro?

— Não — disse Burnett. — Você não está pensando em vendê-lo, está?

— Não. — Chase se acomodou no banco do passageiro e ligou para Della. A ligação caiu no correio de voz. Mais uma vez. Onde diabos ela estava?

Della sentiu o telefone em seu bolso vibrar novamente. Quem seria dessa vez? Não que ela fosse verificar. Se não soubesse quem era, não se sentiria culpada. Ou muito culpada.

Holiday iria odiá-la. Burnett iria bater nela. Kylie e Miranda não iriam mais falar com ela. Chase iria...

Agora não.

O olhar de Della deslocou-se para o céu tingido de vermelho, roxo e cinza. Apenas uma pequena parte do grande sol alaranjado pairava sobre o horizonte ocidental. Ela se lembrou das pescarias que tinha feito com o pai. Ela odiava pescar, mas estar com ele durante todo o dia, apenas sentada à beira d’ água e conversando sobre tudo, desde peixes até futuros noivos, era uma de suas melhores lembranças da infância.

— Você vai me dizer? Quem está ali, no banco de trás? — o tio perguntou outra vez.

Della respirou fundo.

— Você está segurando firme o volante?

— Sim. Por quê? — Ela viu as mãos dele apertarem mais o volante do carro.

— Porque... Eu já a vi fazer coisas malucas com carros. — Della engoliu seco e deu outra olhada rápida na garota do banco de trás.

Ela parecia tão jovem e inocente, mascando chiclete e apreciando o passeio! Não era o mesmo espírito que tinha destruído a sala de arquivo do St. Mary. Teria sido Feng ou o fato de ver a casa da infância que mudara a aparência e a atitude dela?

Ela olhou para o tio.

— Então você pode sentir fantasmas também?

— Senti-los, nem tanto. Mas posso sentir a temperatura, e está parecendo o polo Norte aqui dentro. Além disso, você fica olhando para alguém aí atrás o tempo todo.

— É Bao Yu — disse Della.

Della viu os ombros do tio afundarem alguns centímetros, como se o peso do mundo tivesse desabado sobre eles.

— Pensei que ela tinha ido embora depois que você e Chase encontraram a filha dela.

— Ela precisa de respostas também. — Della de repente percebeu que o tio poderia ser capaz de dar respostas a ela.

— Diga a ela que eu sinto muito. Eu sou o responsável. Fizeram aquilo por minha causa. Eu não faria o que eles mandaram. Fui para ajudar, mas cheguei lá tarde demais.

Della lançou outro olhar à tia. Ela estava mais velha agora, mas não vestia o vestido branco ensanguentado. Parecia que só usava o vestido quando perdia o controle.

Ele estava morto. Como pode estar vivo?, perguntou Bao Yu.

— Ele não estava morto. Eu disse a você. Ele é um vampiro, como eu. Como Natasha.

O tio olhou para Della, então olhou pelo espelho retrovisor.

— Você a vê?

— Sim — respondeu Della e hesitou antes de falar, mas decidiu que aquilo tinha que ser feito. — Ela acha que meu pai a matou.

Ele me matou! Ele mesmo admitiu isso! Quando eu o encontrei no hospital. Ele disse ao médico.

Della respirou fundo.

— No prontuário do hospital... Quando meu pai foi hospitalizado, ele admitiu isso também.

O tio negou com a cabeça.

— Não. Douglas Stone fez isso.

— Você viu? — Della olhou por cima do ombro e, como era de se esperar, o vestido sangrento estava de volta.

— Não... não exatamente. Mas, quando cheguei lá, Chao estava inconsciente no chão, ao lado do telefone. Eu ouvi alguém no meu antigo quarto. Encontrei... Stone estava de pé sobre ela. Ela estava com a faca cravada no peito. Era a minha faca. — A dor ecoou em sua voz. — Eu o persegui para fora do quarto.

— Meu pai viu você? — perguntou Della.

Seu tio assentiu.

— Estávamos lutando no corredor. Eu o vi correr para o quarto onde Bao Yu estava.

Ele fez isso. Eu mostrei a você!

Della viu outra vez a cena em sua cabeça. A tia no chão. Uma faca projetando-se do seu peito. Quando ela estendeu o braço, encontrou outra mão na faca. A faca foi puxada. A dor a atingiu. A dormência começou. A última coisa que viu foi o irmão, segurando a faca. O sangue gotejando da lâmina.

Nesse instante, Della percebeu uma coisa. Em toda visão que ela tinha lhe mostrado, o pai nunca... a esfaqueava.

— Eu sei o que aconteceu. — Lágrimas encheram os olhos de Della e ela olhou primeiro para o tio e depois para a tia. — Você, tia, estava tentando arrancar a faca. Meu pai viu e achou que estava ajudando. Mas você morreu em seguida. Você pensou que ele a matou. Ele pensou que tinha matado você.

O carro saiu de controle — Della viu Feng lutando para recuperar o controle, então Della só viu uma árvore vindo na direção deles antes de tudo ficar branco. Totalmente branco.


Capítulo Quarenta e Quatro

Chase observou enquanto Burnett desligava o motor. Cerca de uma dezena de trailers enchiam o pequeno parque. Uma luz dourada irradiava das janelas. Ele e Burnett farejaram o ar ao mesmo tempo, testando-o para ver se sentiam o cheiro de lobisomens.

O olhar de Burnett se desviou para Chase.

Chase assentiu.

— É ele.

— Você farejou alguma coisa além de lobisomens?

— Humanos. E pode haver mais de um lobisomem. — Chase olhou para o papel que Burnett lhe entregara. — O endereço diz número oito. Deve ser mais nos fundos.

Quando Burnett estendeu a mão para a maçaneta da porta, o celular tocou e ele verificou o número.

— Fale rápido — disse Burnett ao telefone, enquanto saía do carro.

— Encontramos o Corolla, mas não Della. — A voz de Shawn chegou aos ouvidos de Chase.

— Onde você encontrou o carro?

— Verificamos todos os lugares em que o pai esteve nestes últimos dias, achando que Della poderia ter ido procurá-lo. O carro está estacionado em frente a um antigo restaurante chinês em Chinatown.

— Você verificou na região? — Burnett franziu a testa para Chase.

— Sim. Ela não está aqui. Quer que a gente pegue o carro?

— Não — disse Burnett. — Ela vai voltar para buscá-lo. Deixe alguém aí... e continuem procurando. Encontre-a. — Burnett desligou.

Chase ouviu a preocupação na voz de Burnett e sentiu dez vezes mais. Ele também sabia que o que mais assustava Burnett era que Stone pusesse as mãos em Della. E pode apostar que isso também aterrorizava Chase.

Ele tinha visto o que aquele homem tinha sido capaz de fazer à própria namorada. Ele só podia imaginar o que ele faria a um estranho.

Passaram os primeiros cinco trailers. Chase ouviu pessoas dentro deles.

— Você vai para a porta da frente e bate — disse Burnett. — Eu vou para a parte de trás e os detenho quando tentarem fugir.

— Eu poderia ir para a parte de trás — Chase ofereceu.

Burnett franziu a testa.

— Eu cuido disso. — Então ele olhou ao redor. — Temos que fazer isso sem alarde. Sem muitas testemunhas. Entendeu?

Chase fez que sim e começou a ir para a varanda da frente do trailer número oito, enquanto Burnett o contornava.

Ele entrou na varanda e, logo antes de bater, ouviu o som revelador de uma espingarda sendo engatilhada.

Chase se moveu. Só que não rápido o suficiente.

Della empurrou o airbag do rosto e olhou para o tio.

Ele estava fazendo a mesma coisa.

Ela sentiu o cheiro de sangue antes de vê-lo escorrer da testa.

— Você está ok?

— Sim. O volante enlouqueceu. — Ele tocou a testa. — Só um galo. E você?

— Tudo bem. — Só depois de dizer que estava tudo bem Della moveu os braços e as pernas. Nada machucado.

O motor do carro engasgava e chiava. Ela olhou para o banco de trás, preocupada — só para se sentir uma idiota, porque a tia já estava morta, não podia se machucar. Mas ela não estava mais lá.

O tio saiu do carro. Della tentou fazer o mesmo. Teria saído se a porta do carro abrisse. Ela deu um empurrão e o barulho do metal rangendo encheu a noite. Ficaram em pé fora do carro.

Feng olhou para o veículo.

— Eu avisei — disse ela.

Ele assentiu.

— Nunca gostei desse carro de qualquer maneira. — Então ele olhou para o céu. — Fica ainda a alguns quilômetros daqui. — Ele a olhou de cima a baixo. — Tem certeza de que você não está ferida?

— Claro — disse ela.

— Então consegue voar?

Ela garantiu que sim.

Chase saltou para trás, caindo no chão.

A dor atingiu seu ombro quando a bala passou de raspão. Mas se não tivesse recuado, poderia não estar mais vivo. Soltou um rosnado e sentiu o cheiro do próprio sangue.

Irritado, pulou de volta na varanda. Empurrou o que restava da porta, esperando que a espingarda não fosse de cano duplo, pronta para derrubar quem estivesse pela frente.

Mas alguém já tinha feito isso. Burnett tinha dominado os dois sujeitos, as algemas da UPF em seus pulsos. Chase viu a porta dos fundos do trailer no chão.

O alívio encheu os olhos de Burnett quando Chase apareceu. Depois ele fez uma careta.

— Eles te acertaram!

— Só de raspão. — Ele se aproximou e pegou a espingarda. A adrenalina ainda corria através de seu corpo, seu ombro ardia e ele lutava contra a vontade de cobrir de porrada os dois lobisomens mestiços, agora estendidos de bruços no tapete manchado.

Então ele percebeu o que havia nos pés de um dos sujeitos.

— Belos tênis! — disse Chase.

— Bonitos mesmo. — Burnett se levantou e pegou o celular do bolso do paletó e fez uma chamada. — Precisamos de uma van para levar os dois.

Eles aterrissaram num terreno arborizado, perto de uma cerca. O tio deu um passo, depois parou. Della não tinha certeza de onde estava, mas o bairro parecia elegante. Tinham passado por várias casas imponentes. Grandes como edifícios de apartamentos.

— Está vendo aquela casa? — perguntou o tio.

Della olhou por entre as ripas de metal da cerca. Podia vê-la a meio quarteirão de distância.

— Sim.

— Com que rapidez consegue correr até lá e derrubar a porta?

Della olhou para ele.

— Vou invadir outra propriedade particular?

— Eu não acho que ele vá chamar a polícia.

Ela hesitou.

— Por que eu não bato na porta simplesmente e pergunto se posso entrar? Posso ser convincente.

Ele franziu a testa.

— Porque no segundo em que nos aproximarmos mais da casa, um dispositivo de segurança vai ser acionado e uma placa de metal eletrificada vai descer sobre todas as janelas e a porta da frente.

— Nossa. — Ela fez uma careta e olhou para a casa.

Feng continuou:

— Vai demorar trinta segundos para o metal baixar e eletrificar. Tempos atrás, eu conseguiria cruzar essa distância em quinze segundos. Você acha que consegue?

Della suspirou.

— Talvez. De quem é a casa? — Ela respirou fundo, mas não estava perto o suficiente para conseguir captar qualquer cheiro.

— Powell.

Ela mordeu o lábio.

— Você acha que Stone está lá?

— Eu não sei. Mas aposto meus caninos que Powell sabe onde o filho está.

O pensamento de prender Stone e evitar o julgamento fez Della afastar a sensação de que estava infringindo regras demais.

— Ele é o cara mais velho, certo? — perguntou Della.

— Sim.

Della olhou para Feng e inclinou a cabeça para ouvir seu coração.

— Você não vai matá-lo, vai?

— Não. Eu prometo.

Della assentiu.

— Então, estou pronta.

* * *

— Você podia muito bem confessar — Chase rosnou para o lobisomem descalço na sala de interrogatórios. — Agora você está na nossa mão. Vai se dar mal.

— Não vão conseguir arrancar uma palavra da minha boca — disse o lobisomem.

— Sério? — Chase, sentindo os caninos inferiores se projetarem, tirou a foto do arquivo que segurava. — Você sabe o que é isso? É uma imagem de uma pegada de tênis, seu idiota! E adivinha? Até amanhã, o nosso pessoal vai ter provas de que o tênis é seu, e você vai estar encrencado.

— Eu não sou o único que usa esses tênis! — rebateu o lobisomem mestiço.

A porta da sala se abriu. Burnett acenou para Chase sair e vir falar com ele.

Chase bateu a porta ao deixar a sala.

— O que foi? — A frustração e a preocupação com Della deixavam todo o seu corpo tenso. — Você a encontrou?

— Não, mas você vai perder tempo com esse interrogatório. Ele não vai falar. E, como você disse, amanhã eles vão identificar o tênis e vamos tê-lo na nossa mão. Não perca mais energia com ele.

Chase não detestava Burnett por estar certo, ele só detestava a ideia de estar errado.

— Ok, vamos voltar para nossos últimos dois endereços e encontrar Stone.

Burnett balançou a cabeça.

— Eu não durmo há 38 horas e estou apostando que você não dorme há 48.

— E não vou dormir até que a gente saiba onde Della está.

— Nem eu — disse Burnett. — Mas nós dois precisamos beber um pouco de sangue e, pelo menos, tentar relaxar; do contrário, só vamos atrapalhar. Eu já enviei alguns agentes para os outros dois lugares da lista. Neste momento, ambas as casas estão vazias. Falei para vigiarem o local e, se alguém aparecer, vão me ligar na mesma hora.

— Mas...

— Não discuta — disse Burnett. — Fizemos progressos esta noite. Amanhã, quando tivermos a prova, vou considerar o caso dos Chi resolvido. Della nunca precisará ficar sabendo que o pai a denunciou à polícia.

* * *

Della começou a tomar impulso.

— Espere! — disse o tio. — Se a placa de metal começar a descer, pare. Você entendeu?

Della assentiu.

— Com certeza isso não vai matá-la, mas vai doer pra caramba. E se eu devolver você para Chase com um arranhão, ele vai arrancar a minha cabeça.

— Você não vai me devolver a ninguém! — disse Della.

— Eu não quis dizer... Desculpe — disse ele.

— Vamos fazer isso de uma vez — disse ela.

Ela deu vários passos para trás para pegar impulso. Ouviu os alarmes tão logo atravessou o portão. O vento jogou fios do seu cabelo nos olhos. Ao se aproximar da varanda, ouviu um clique, como se as placas estivessem prestes a descer.

Ela acelerou e tentou arrombar a porta com o ombro, batendo com força total.

Doeu demais, mas valeu a pena: a porta rachou ao meio. Della caiu de lado no assoalho da casa.

Os ruídos de clique pararam. Ela ouviu o tio aterrissar na varanda e correr para dentro.

Ela disparou para dentro e o cheiro a atingiu.

Não era tão ruim quanto o cheiro na casa da namorada de Stone, mas perto disso. Ela pôs a mão sobre o nariz.

— Bem, você não precisa se preocupar que eu o mate — disse o tio.

Della se virou e lá, no chão do corredor, estava o homem idoso do qual ela se lembrava da sua primeira e única reunião do Conselho. Considerando-se a idade dele, Della poderia suspeitar que tinha sido morte natural. Mas não havia nada de natural na faca cravada em suas costas.

— Qual é o endereço daqui? — perguntou Della, desviando o olhar.

— Por quê? — perguntou o tio.

Ela pegou o celular.

— Porque estou ligando para Burnett.


Capítulo Quarenta e Cinco

A contragosto, Chase disparou para fora do escritório. Ele tinha acabado de se sentar no banco atrás do volante. Não tinha sequer fechado a porta quando Burnett apareceu ao lado do seu carro.

— Vamos voar — disse ele.

— Para onde? — Chase saiu do carro.

— Della — disse Burnett. — Ela está na cena de um assassinato.

— Stone? — perguntou Chase, batendo a porta do carro e guardando as chaves.

— Não, Logan Powell. — Ele pegou o celular e gritou uma ordem para alguém.

— O quê? Como Della encontrou Powell? — perguntou Chase.

— Não sei. Ela não deu muitos detalhes. — Burnett decolou.

Chase decolou atrás dele.

Dez minutos depois, Chase e Burnett aterrissaram em frente a um grande sobrado.

— Será que pertence a Powell? — perguntou Burnett.

— Não sei — disse Chase. — Nunca estive aqui. — Ele com certeza não entendia como Della tinha chegado ali.

Ao se aproximar, avistou Della sentada na varanda. O músculo no seu peito — seu coração — relaxou pela primeira vez desde que soubera que ela estava desaparecida.

O cheiro da morte o atingiu. Quando ele se aproximou, o cheiro de Della chegou até ele. Mas, em seguida, sentiu outro cheiro, um fraco rastro de vampiro, o que significava que ele não estava mais no local. Isso certamente decifrava o mistério de como Della tinha chegado ali.

Eddie.

— O que aconteceu? — perguntou Burnett quando se aproximaram.

Della se levantou.

— Eu não sei, já o encontrei morto.

Chase se aproximou, querendo abraçá-la, mas o olhar irritado dela o deteve. Ele esperou que ela mencionasse Eddie. Della não fez isso.

— Quem estava com você? — Burnett levantou o rosto outra vez para farejar o ar.

O olhar de Della encontrou o de Chase. Ele assentiu.

— Meu tio.

Burnett balançou a cabeça e olhou para Chase.

— Você sabia que ela estava com ele?

— Não! — disse Chase, ao mesmo tempo que Della.

— Eu encontrei Feng quando fui à procura do meu pai.

— E por que ele trouxe você aqui? — perguntou Burnett.

— Eu disse a ele que Stone é filho de Powell. Ele pensou que talvez Powell pudesse nos revelar o paradeiro do filho.

Burnett olhou para a porta.

— A porta estava quebrada quando você chegou aqui?

— Não, eu fiz isso.

Burnett balançou a cabeça outra vez e suspirou alto.

— Você tocou em algo mais?

Ela fez que não.

— Ok. Volte para Shadow Falls.

— Mas...

— Nem pense em discutir comigo! — ameaçou Burnett. — Você tem ideia de como estávamos preocupados com você? Volte para Shadow Falls. Agora!

— O carro — disse ela.

— Eu disse para Shadow Falls!

— Ele está na Peach Street e...

— Eu sei onde ele está! — Burnett passou a mão pelo cabelo. — Outros agentes vão aparecer aqui a qualquer minuto. Se quiser uma carreira na UPF, é melhor dar o fora daqui agora.

Chase viu Della acenar com a cabeça. Ele também viu as lágrimas em seus olhos. Deu um passo na direção dela. Mas ela decolou.

— Você tem que ser tão duro com Della? — Chase rosnou.

Burnett o ignorou e disparou em direção à casa. Chase o seguiu.

Parou quando viu o corpo de Powell no corredor. Chase nunca tinha convivido com o homem, mas vê-lo morto o tocou.

Burnett olhou para ele.

— Precisamos mascarar o cheiro de Della. Vá à cozinha, encontre alguns temperos, qualquer coisa com um odor forte, coloque numa panela com água e ferva. Depois limpe suas impressões e jogue tudo fora. Rápido.

Quarenta minutos depois, Della pousou no estacionamento da escola. Por melhor que fosse estar em casa, no momento ela preferia estar em qualquer outro lugar que não fosse ali. Sabia o que, ou melhor, quem, esperava por ela.

Della já tinha se acostumado a discutir com Burnett. Holiday era outra história. Burnett ficava furioso. O tipo de raiva com que Della sabia lidar. Holiday em geral ficava decepcionada. Isso era bem mais difícil.

A brisa da noite roçou no rosto de Della e ela hesitou, fechando os olhos. Seu coração doía, sua mente dava voltas. Então, sabendo que não podia mais adiar, andou até o portão. O ligeiro clique do alarme anunciou sua entrada.

Ela ouviu o rangido de uma das cadeiras de balanço brancas da varanda da frente. Através da escuridão, podia ver a silhueta de uma mulher miúda.

Della não sabia o que dizer. Não estava arrependida do que tinha feito. Mesmo considerando tudo o que havia acontecido, o encontro com o tio tinha sido... bom.

Holiday levantou-se.

Della subiu até a varanda. A fae de cabelos ruivos franziu a testa. Holiday não era de franzir muito a testa.

— Desculpe aborrecer você... — disse Della. — Sei que estava preocupada. Mas eu tinha que ir. E... o carro está intacto.

— Não é o maldito carro que me interessa! — Holiday disse, colocando os braços ao redor de Della. — Nunca mais faça isso com pessoas que te amam!

Della descansou a cabeça no ombro de Holiday por alguns segundos antes de se afastar.

— Agora sei o que aconteceu — disse Della.

— Quando?

— Na noite em que Bao Yu morreu. Meu pai não a matou. Bem, não... de verdade. Ele queria ajudá-la. Encontrou-a e ela estava tentando puxar a faca do peito. Ele fez isso por ela. E essa é a última coisa de que ela se lembra.

Holiday suspirou.

— Ela sabe?

— Eu acho que sim. Mas não sei se acredita ainda.

— Se foi isso mesmo aconteceu, ela vai perceber agora.

Holiday recuou e olhou para ela.

— Você está exausta. Já se alimentou hoje?

Della fez que não com a cabeça.

— Tem um pouco de sangue na geladeira da sua cabana?

Della assentiu.

— Então vá se alimentar e dormir um pouco. Kylie e Miranda estão mortas de preocupação, mas não deixe que a mantenham acordada até muito tarde. Burnett disse que vai falar com você pela manhã.

Della mal tinha descido os degraus da varanda, quando dois carros entraram no estacionamento. Um deles era uma viatura da polícia com as luzes piscando.

Eram quase dez horas da manhã quando pelo menos seis agentes entraram na casa. Chase manteve a boca fechada e deixou Burnett explicar tudo. Quando um agente perguntou como tinham encontrado a cena do crime, Burnett disse que isso constaria no seu relatório mais tarde. O que precisavam fazer era coletar e encontrar provas.

Felizmente a ordem de Burnett não foi questionada. Chase ainda não sabia como Burnett iria explicar aquilo.

Até o momento, não havia nada na casa de Powell que provasse que ele era do Conselho. Mas visto que Burnett conhecia o nome completo de Powell, alguém na UPF iria deduzir.

Calçando luvas, Chase ajudou dois agentes a revistar uma escrivaninha na parte de trás da cozinha. Encontrou um caderno de endereços. Quando o folheou, encontrou endereços antigos de Eddie. Fazendo o possível para agir disfarçadamente, quase tentou arrancar a página, então, em vez disso, decidiu guardar o caderno todo para servir de prova. Mesmo que investigassem os endereços, não encontrariam nada.

O agente responsável pela remoção do corpo estimava que o assassinato se dera cerca de 72 horas antes. Isso significava que Powell devia ter morrido no mesmo dia em que Chase o vira.

O fato de Powell provavelmente ter sido morto pelo próprio filho fez Chase sentir um pouco mais de pena do velho. Será que Stone sabia que o pai tinha se voltado contra ele?

— Chase? — Burnett o chamou do outro cômodo.

Chase foi até lá e, quando viu a expressão no rosto do homem, soube que alguma coisa estava errada.

Burnett estava terminando uma ligação telefônica. O agente se virou para Trisha.

— Temos algo que precisamos resolver em outro lugar. Você pode assumir aqui?

— Deixa comigo.

Quando saíram da casa, Burnett murmurou:

— Os policiais estão em Shadow Falls, interrogando Della.

O peito de Chase se encheu de uma raiva ardente. Se ela descobrisse que o pai a tinha delatado à polícia, ficaria arrasada. E, se isso acontecesse, Chase teria que quebrar algum osso do pai dela. De preferência o pescoço.

Holiday tinha mandado Della esperar numa das salas de reunião do escritório principal, com ordens estritas para ficar ali quietinha. Depois ela ouviu Holiday sair até o estacionamento para conversar com a polícia.

Não estavam perto o suficiente para que Della pudesse ouvir o que diziam. Ela quase foi até lá fora, mas, considerando que já tinha desobedecido a fae uma vez aquele dia, decidiu não sair.

Pouco tempo depois, ouviu passos entrando na cabana. Um pensamento insano lhe ocorreu. Será que estavam ali por causa dela?

Dois policiais entraram e sentaram-se em frente a ela na mesa. Holiday sentou-se ao lado dela. Um deles devia ser detetive, porque vestia um terno; o outro usava uniforme.

— Senhorita Tsang. — O detetive se apresentou e apresentou o outro oficial.

— Sim — Della respondeu, o coração martelando no peito. Ela se perguntou se aquilo seria por causa da invasão no hospital. Então outro pensamento lhe ocorreu. Será que Holiday tinha chamado a polícia quando ela furtou seu carro? Não, ela não faria isso.

— Estamos aqui por causa do senhor e da senhora Chi. Você está ciente do que aconteceu a eles? — perguntou o sujeito de terno.

A palma de Holiday pousou sobre a mão de Della, oferecendo-lhe um toque de calma. Calma que Della não queria. O que ela queria era entender. Puxou a mão e colocou-a sob a perna.

— Sim, estou ciente. — Ela olhou para Holiday e depois de volta para a polícia. — Por que está me perguntando isso? — Della se inclinou para a frente.

O sujeito gorducho de cabelos castanhos e uniforme fez cara de zombaria. Não tinha um rosto bonito, e com aquela expressão de zombaria ficava ainda pior.

— Eu acho que você está confundindo as coisas — disse ele. — Não viemos aqui para que você possa fazer perguntas. Viemos para fazer as perguntas. E você pode cooperar e respondê-las ou podemos levá-la. Nunca esteve na cadeia, senhorita Tsang? Não é um local agradável.

A respiração de Della ficou presa na garganta.

— Basta responder às perguntas — disse Holiday com a voz calma. Mas Della viu a fúria no brilho dos olhos da amiga. Desta vez, não havia preocupação ou amor misturados a ela. Era fúria simplesmente. E Della não era o alvo.

Della se lembrou de ouvir Holiday ligar para Burnett antes que os policiais deixassem as viaturas. O diálogo tinha sido rápido.

— A polícia está aqui. — Era quase como se ela já estivesse esperando por isso.

— Você conhecia o senhor e a senhora Chi, certo? — perguntou o outro policial.

— Sim — disse Della. — Eram meus vizinhos e eu cuidava do gato de estimação deles.

— E onde você estava na sexta à noite?

Todo o ar dos pulmões de Della saiu.

— Vocês pensam... vocês acham que...?

— Basta responder às nossas perguntas, senhorita Tsang — o oficial feio advertiu.

— Eu estava fora... com um amigo. Vi a senhora Chi num restaurante.

— Que restaurante?

Della estava prestes a responder quando ouviu um baque na varanda do escritório. A porta se abriu e ela sentiu o cheiro de Burnett.

Ele invadiu a sala, já mostrando o distintivo.

— Boa noite. Sou James Burnett, um dos proprietários de Shadow Falls, e sou da Unidade de Pesquisa Federal. Fui encarregado recentemente do caso dos Chi e acabei de capturar os assassinos esta noite.

O policial uniformizado gozador se levantou.

— Você é de onde?

— Da UPF — respondeu o detetive. — Um departamento do FBI. — Ele olhou para Burnett. — Eu não sabia que o caso tinha sido transferido.

— Não foi. — Burnett olhou para Della, quase como se estivesse conferindo como ela estava. — Nós pedimos para ajudar. Uma das minhas alunas — ele acenou para Della — tinha amizade com as vítimas.

— Não disseram nada sobre o assassino ter sido pego — justificou o policial uniformizado.

— Nós o pegamos esta noite, não preenchemos a papelada ainda. Se quiserem, vou ter a maior satisfação em deixá-los fora dessa. — Pelo tom de voz dele aquela não era uma sugestão. Burnett acenou para a porta.

— Espere! — disse Della.

Todo mundo olhou para ela.

— Por que vocês acham que eu...

— É melhor deixarmos os policiais irem. — Holiday colocou a outra mão no ombro de Della.

— Não! — disse Della. — Quem... quem disse que eu estava envolvida?

— Alguém apontou você como suspeita — disse o detetive.

As coisas de repente ficaram claras. E Deus do céu! Como doeu!

— Meu pai? — ela perguntou num fio de voz. — Ele disse que eu fiz aquilo, não foi?

As lágrimas encheram os seus olhos. A lembrança de como ele a olhara antes de ela sair atravessou seu coração.

— Por que seu pai disse que você fez aquilo? — perguntou o policial gorducho.

— Porque ele pensa que eu sou um monstro. — Della olhou para Holiday e lembrou-se da ligação que ela tinha feito para Burnett.

— Você sabia, não é? Sabia que ele tinha dito aos policiais que eu era uma assassina!

Della saiu da sala antes que todo mundo a visse chorando. Antes que testemunhassem seu coração se partindo.

Enquanto corria, seus pés batendo no chão duro e frio, o absurdo da situação lhe ocorreu. Ela estava tentando livrar o pai do assassinato enquanto o pai estava tentando fazê-la ser condenada. Talvez aquilo fosse justo. Era por culpa dela que ele estava sendo acusado.

Ela teve que parar para recuperar o fôlego quando percebeu que o pai de fato pensava que ela tinha matado alguém. Mesmo com todas as evidências apontando para ele, ela nunca acreditou que o pai pudesse ter assassinado a irmã. O que ela tinha feito para que ele passasse a odiá-la tanto?

E a resposta veio com clareza. Ela era um monstro.

Della estava quase em sua varanda quando viu Kylie na janela, com o celular no ouvido. Holiday devia ter ligado para ela.

Della não queria ninguém tentando fazê-la se sentir melhor. Elas não conseguiriam.

— Della! — alguém chamou seu nome.

Reconhecendo a voz dele, ela se virou e olhou para Chase.

— Vá embora. Some daqui! Eu não quero ver você. Eu não quero ver ninguém!

— Você está magoada — disse Chase. — Eu sei. Só quero ficar com você. Abraçá-la.

— Eu não quero que você fique comigo. Nunca mais quero que você me abrace! Meu tio me disse, Chase. Você sabia que ele se entregaria e não deixaria meu pai ir para a cadeia. Por que não me contou?

Ele passou a mão na nuca e a culpa encheu seus olhos.

— Porque eu não ia deixar isso acontecer. Ele não matou a irmã.

— Nem meu pai! — Admitir isso em voz alta tornou toda aquela mágoa muito pior.

Ela balançou a cabeça.

— E você o proibiu de entrar em contato com você. Porque sabia que, se ele ligasse, você teria que mentir. Mentir para mim, assim como sempre mente! E o que Kirk lhe disse, você está escondendo de mim também.

Ele sacudiu a cabeça.

— Della...

— Não! — ela gritou e empurrou-o, fazendo-o cair sentado. — Afaste-se de mim! Você já fez isso tantas vezes, não custa fazer mais uma vez. E dessa vez, não volte.

— Você não está falando sério — ele disse, mas não se levantou do chão. — Está apenas chateada.

Ela fez que não com a cabeça e avançou até ficar quase em cima dele.

— Ouça o meu coração, Chase. Ouça a verdade. — Ela enxugou as lágrimas. — Você disse que seria escolha minha deixar essa ligação continuar ou não. Eu estou escolhendo, Chase. Acabou. Faça o favor de me deixar em paz!

Ela subiu as escadas da varanda, passando por Kylie, que estava na porta, e foi para seu quarto.


Capítulo Quarenta e Seis

Chase se levantou. As palavras de Della o cortaram como uma faca afiada. Mas era o sofrimento dela que ele sentia mais.

Ele começou a subir a varanda, mas Kylie bloqueou a sua passagem.

— Acho que talvez seja melhor você deixá-la sozinha por um tempo.

Chase passou a mão no rosto.

— Ela só está chateada — Kylie disse a ele, tocando seu braço. Ela tinha se tornado fae. Podia senti-la tentando acalmá-lo.

Ele balançou a cabeça e teve que engolir para não deixar a emoção se transformar em lágrimas.

— Ela não estava mentindo quando disse... — Droga, aquilo doía.

Kylie se aproximou.

— Às vezes, quando o coração se parte, ele não sabe o que quer e não reconhece a diferença entre a verdade e a mentira. Dê um tempo a ela.

— Vou dar. — Ele se virou e foi embora.

Holiday chegou, apressada.

— Ela está bem?

— Não — disse Chase. — Não está. Alguém precisa ficar com ela, mas ela com certeza não quer que seja eu.

Chase parou no escritório para falar com Burnett.

— Posso matar o pai dela agora?

Burnett franziu a testa.

— Vá para casa dormir. Eu ligo se alguém aparecer nas duas casas onde você acha que Stone pode estar. Se eu não ligar, vou buscá-lo às seis da manhã.

Chase não tinha sequer se lembrado de que tinha deixado o carro em algum lugar. Droga, ele não se importava.

— Eu sinto que deveria estar fazendo alguma coisa.

— Vá descansar para que possa fazer algo mais tarde.

Chase começou a se afastar, mas Burnett o interrompeu:

— Espere.

Ele olhou para trás.

— Você tem como entrar em contato com Eddie?

— Eu poderia ligar para Kirk. Por quê? Você quer prender Eddie? — Não seria o final perfeito para aquele dia infernal?, Chase pensou.

Burnett balançou a cabeça.

— Não. Não vou deixar que nada que Stone diga prejudique Eddie. Mas eu gostaria de falar com ele. Não vou pedir que me dê o número do telefone dele, mas você poderia pedir que ele ligasse para mim?

Chase passou a mão no rosto.

— Eu não acho que ele vá fazer isso.

Burnett suspirou.

— Olha, eu não posso culpar Eddie pelo que ele fez. E se tivesse sido eu, teria matado aquele agente também. Mas eu gostaria de, pelo menos, saber que Eddie não planeja se vingar da UPF mais tarde.

— Você não acha que ele já não teria feito isso, se esse fosse o seu plano?

— Eu ainda assim gostaria de falar com ele.

Chase foi para sua cabana. Ele deu comida a Baxter e foi passear com o cão. Bebeu um copo de sangue. Em seguida, foi para a cama e ficou olhando o ventilador de teto girar.

Você disse que era minha escolha deixar essa ligação continuar ou não. Eu estou escolhendo, Chase. Acabou. Faça o favor de me deixar em paz!

Baxter pulou na cama e apoiou a cabeça no braço de Chase. Era como se o cachorro soubesse que o dono estava morrendo por dentro.

Pegou o celular, e pensou em ligar para ela, mas para quê? Della só lhe diria para deixá-la em paz.

Então, como percebeu que não poderia ficar mais magoado do que já estava, ele ligou para Kirk e deixou uma mensagem dizendo que precisava falar com Eddie. Droga, se ele conhecia Eddie, sabia que ele não iria falar com Kirk.

Mas dez minutos depois, o telefone tocou.

— Alô? — atendeu Chase.

— Filho? — disse uma voz do outro lado da linha. E era a voz do homem que tinha ficado ao seu lado desde a queda do avião. O homem que o tinha abraçado quando ele chorou a morte dos pais.

Chase começou a dizer algo, mas sua voz fraquejou.

— O que aconteceu, Chase? — disse Eddie.

— Tudo — disse Chase, sem saber como explicar. Será que Eddie pensaria que Chase o tinha sacrificado para salvar o pai de Della? O homem não merecia ser salvo.

Como Eddie não se sentiria traído por Chase? Ainda mais depois de já se sentir traído por Kirk.

— O que foi? Fale comigo.

Depois de alguns minutos, Chase perguntou:

— Você falou com Kirk?

— Pela primeira vez, agora mesmo. Só para me avisar que você ligou. Ele não atenderia aos meus telefonemas e não estava em sua casa no lago. Mas disse que eu poderia ligar depois de conversarmos. Como um amigo pode agir dessa maneira? — Eddie perguntou.

Chase empurrou a cabeça no travesseiro.

— Eu não sei.

— O que Kirk pediu para você fazer, Chase?

— Matar Stone e não entregá-lo à UPF. Kirk prometeu convencer você a confessar ter matado a sua irmã.

— Eu não entendo — disse Eddie.

— Ele pegou os arquivos, Eddie. Stone estava chantageando o Conselho para que não o entregassem.

— Isso não é desculpa. Kirk deveria ter me dito. Pensei que ele fosse meu amigo.

Chase engoliu em seco.

— Kirk me contou sobre Kirsha. E sobre o agente que plantou a bomba.

Houve um silêncio.

— Ele não deveria ter contado.

— Olha, eu posso entender por que você fez aquilo. E eu falei com Burnett. Ele vai tentar dar um jeito.

Ele ouviu o homem que tinha sido seu pai durante os últimos quatro anos soltar um rosnado baixo.

— Eu não preciso que um agente da UPF tente “dar um jeito”, Chase — Eddie sibilou. — Eu matei o sujeito que matou Kirsha e faria isso outra vez se ele aparecesse hoje. E outra vez amanhã.

— Eu sei. E não culpo você. É por isso que contei a Burnett. Ele não o culpa também. Se eu pegar Stone, não vou matá-lo.

— Kirk nunca deveria ter pedido isso a você — disse Eddie.

— Eu sei. — Ele respirou fundo. — Olha, Burnett concordou em não deixar que nada que Stone disser prejudique você, mas...

— O quê? — perguntou Eddie.

— Ele quer falar com você. Estou passando uma mensagem com o número dele. Ligue pra ele.

— Não prometo — disse Eddie.

— Tente.

Eddie desligou.

Chase mandou uma mensagem com o número de Burnett, em seguida voltou a olhar para o ventilador de teto.

Só em torno das três da manhã por fim adormeceu. Eram cinco e meia quando o despertador tocou. Ele se sentou, esperando que o grande nó de dor em seu peito tivesse desaparecido.

Não tinha.

Seu celular anunciou a chegada de uma mensagem. Seu coração pulou, achando que podia ser Della.

Era Burnett. Esteja lá em 30 minutos.

Chase mandou uma mensagem de uma palavra. Della?

Ele recebeu uma mensagem de duas palavras. Sem conversa.

Baixando o telefone, foi para o chuveiro. Sentia-se impotente.

Em torno das oito horas, recebeu a comprovação de que a marca de tênis combinava com a pegada do lobisomem mestiço. Chase tinha que dar a notícia a Burnett. Isso era bom e ele desejava que pudesse estar lá quando o pai de Della recebesse a notícia de que tinham capturado os assassinos.

Às nove, Burnett pediu a Chase para arquivar algumas fichas. Arquivar fichas? Ele estava falando sério? Depois disso, pediu para que ele fosse buscar o café da manhã de Sam, o primo de Perry, que ainda estava em prisão temporária. Chase estava começando a se sentir como se fosse a secretária de Burnett.

Quando Chase voltou, Burnett encontrou-o na entrada. Entregou o saco com o café da manhã para a recepcionista — distribuindo ordens — e fez sinal para Chase segui-lo.

— Conseguimos alguma coisa?

— Uma faxineira acabou de entrar na casa da Vermont Street — Burnett disse. — Quando ela sair vamos abordá-la e ver o que ela sabe.

Burnett parou perto de uma van branca estacionada em frente.

— Tome. — Ele entregou a Chase um copo que estava segurando. — É para você. A mistura que costumo tomar no café da manhã. O negativo com um pouco de B positivo.

Chase pegou o copo.

— Não estou com fome.

— Beba. — Burnett desviou os olhos para Chase. — Eddie disse que você fica insuportável quando não se alimenta pela manhã.

Chase olhou para ele.

— Eddie ligou?

— Sim.

— E então?

— Eu tenho um plano. — Burnett deu a partida.

— E você não vai me contar? — ele respondeu.

— Primeiro, precisamos pegar Stone.

Frustrado, Chase olhou pela janela. Então percebeu que estava sendo um idiota. Burnett o estava ajudando.

— Obrigado.

— Não é um favor. É o que é certo.

O silêncio tomou conta da van e então Burnett falou.

— A UPF faz muita coisa boa, mas eu nem sempre concordo com suas políticas.

Era a coisa que ele mais respeitava em Burnett. O homem valorizava as regras, mas as infringia quando necessário.

— Como você sabe quando fazer isso? — perguntou Chase

— Quando fazer o quê?

— Quando contrariar a política deles? Quero dizer, o que você se pergunta: “O que Jesus faria nessa situação”?

— Todo mundo tem uma bússola moral — disse Burnett.

— Mas nem toda bússola aponta na mesma direção.

— Você só tem que se preocupar com a direção da sua. — Ele expirou. — Eu pergunto a mim mesmo: se eu for pego, vai ter valido a pena? Se a resposta for sim, eu faço. — Ele olhou para Chase. — E não pense nem por um minuto que eles não vão demiti-lo.

Chase olhou pela janela a paisagem desfocada: árvores, edifícios, carros, pessoas. O mundo não tinha parado, então por que ele sentia como se o mundo dele tivesse? A visão de uma cabeça-dura de cabelos castanho-escuros encheu sua mente.

Ele odiava ter que perguntar, mas sua preocupação superou o orgulho.

— Alguma notícia de Della?

Burnett não olhou para ele, mas cerrou a mandíbula.

— Holiday disse que ela ainda não saiu do quarto. Miranda e Kylie estão planejando intervir, se ela não aparecer em breve. Ela não está respondendo às suas ligações ou mensagens?

Chase engoliu em seco.

— Ela... me pediu para ficar longe.

— Às vezes as mulheres dizem coisas que não querem dizer — disse Burnett.

— Sim — disse Chase, mas ela parecia estar falando sério.

O sol entrava pela janela de Della, prova de que, embora ela se sentisse morta por dentro, a vida continuava seguindo em frente.

Era tarde. Ela tinha mesmo dormido. Bem, ao menos um pouco. Pelo menos visões de facas ensanguentadas não a mantiveram acordada. Não que não tivesse pensado na morte. Só não tinha pensado na de Bao Yu.

Será que sua tia tinha aceitado a verdade de que o pai de Della não a tinha matado? Della não sabia, mas ela mesma já tinha aceitado.

E sabia o que tinha de fazer.

Saindo da cama, inclinou a cabeça para se certificar de que Kylie ou Miranda não estavam lá fora esperando para dar o bote. Por mais que as amasse e soubesse que só queriam ajudar, ela não precisava do tipo de ajuda que incluía abraços e lágrimas.

Havia apenas um tipo de ajuda de que precisava.

Nenhum barulho se ouvia na cabana, então Della foi tomar banho. Abriu uma gaveta e tirou dali uma calcinha limpa. Escrita na frente estava a palavra: “terça-feira”.

Ela se lembrou de quando Chase a viu com a calcinha da segunda-feira e riu porque tinha colocado a do dia da semana errado.

Lembrou-se de ter dito a ele que estava tudo acabado.

Agora não. Agora não.

Ela terminou de se vestir e foi até o escritório para começar a colocar sua decisão em prática.

— Eu não faço nada errado. Só limpo casas — disse a jovem latino-americana, olhando para Chase e Burnett sentados em frente a ela, na lanchonete até onde a tinham seguido.

Chase viu medo nos olhos arregalados dela. Uma das mãos acariciava as costas da criança inquieta que ela tinha amarrada à cintura.

— Nós não estamos dizendo que você fez algo errado — disse Burnett. — Só precisamos fazer algumas perguntas.

— Eu já pedi a cidadania. Estou esperando a papelada. Mas tenho que trabalhar agora, minha nenê precisa de fraldas e ir ao médico. O pai dela não ajuda.

— Senhora Galvez, não somos da imigração — disse Chase. — Não estamos interessados na sua papelada. Estamos investigando o homem que é dono da casa que a senhora acabou de limpar. Precisamos saber sobre ele. Entende?

Ela assentiu com a cabeça.

— Eu não o conheço bem. Trabalho para ele há apenas dois meses. Consegui o emprego porque limpava a casa da señora que morava lá antes. Fui limpar a casa no dia em que ela se mudou e ele me viu e me pediu para continuar a limpar para ele. Ele e os amigos só entram e saem.

— Ele tem muitos amigos que se hospedam lá? — perguntou Burnett.

— Muitos.

— Quantos aproximadamente? — perguntou Chase.

— Às vezes uns doze, às vezes oito. A casa só tem quatro camas. Dormem em sofás e no chão. — Ela se inclinou. — Fazem uma grande bagunça. Não são gente muito limpa.

Burnett se inclinou para a frente.

— Com que frequência a senhora limpa a casa?

— A cada quinze dias.

— Ninguém estava em casa hoje, certo? — perguntou Chase, apenas se certificando.

— Certo.

— Isso é comum? — perguntou Burnett. — Ele costuma desaparecer? Como faz para pagar a senhora?

— Ele às vezes está em casa, às vezes não. Gosto mais quando ele não está. Deixa o dinheiro na mesa da cozinha.

— O seu dinheiro estava lá hoje?

Ela confirmou com a cabeça.

— Eu digo a ele: sem o dinheiro, nada de faxina.

Chase olhou para Burnett e sabia que o parceiro estava pensando a mesma coisa. Stone não deixaria o dinheiro para a empregada se tivesse fugido da cidade.

Burnett olhou para a jovem mãe.

— A senhora sabe onde ele trabalha ou onde fica quando não está em casa?

Ela negou com a cabeça.

— Eu não faço muita amizade com os meus clientes.

— Mas viu algo na casa que poderia nos dar uma pista?

Ela balançou a cabeça outra vez.

— Sinto muito, não sei.

— Obrigado — disse Burnett.

— Posso ir agora? — perguntou ela.

— Sim — disse Chase. — E se eu fosse a senhora, parava de faxina na casa dele.

Ela se deteve.

— Ele é um homem ruim?

Burnett confirmou com a cabeça.

Ela ofegou e Chase viu nos olhos da mulher que ela precisava do dinheiro da faxina. Saiu carregando o bebê, que quase parecia pesado demais para ela. A mãe não parecia muito mais velha do que a criança.

— Espere! — Chase puxou a carteira. — Obrigado por falar conosco. — Ele entregou todo o dinheiro que tinha na carteira para ela. Deviam ser apenas uns duzentos dólares, mas podiam sustentá-la até que encontrasse outra casa para limpar.

Ela pareceu hesitar.

— Por favor, pegue. É uma gratificação por falar conosco.

— Obrigada. — Balançando a cabeça, ela pegou as notas da mão dele e foi até o balcão da lanchonete, fazer o seu pedido.

— Eu vou reembolsá-lo — disse Burnett.

— Não precisa — disse Chase.

Eles saíram da lanchonete.

— Señor, señor! — A senhora Galvez veio correndo até eles. — Acabei de me lembrar. No mês passado, levei a minha irmã para me ajudar a limpar. Ela viu o señor Stone e alguns amigos dele em casa. Ela me disse que ele pediu que limpasse outra casa que ele tem ali perto. Na semana seguinte, perguntei se ele queria que eu limpasse a outra casa, também. Ele me disse que não tinha outra casa. Acho que a minha irmã presta atenção nas coisas. Talvez ele tenha um amigo que seja dono da casa.

— Qual é o endereço? — perguntou Burnett.


Capítulo Quarenta e Sete

— Eu preciso da sua ajuda. — Della desabou na cadeira em frente à escrivaninha de Holiday.

Compaixão, empatia e toda uma série de emoções se estamparam no rosto da amiga. Della tinha certeza de que a fae estava morrendo de vontade de tocá-la para tentar aliviar a sua dor. Mas às vezes a dor era uma coisa boa. Forçava a pessoa a se concentrar no problema. Talvez até mesmo encontrar uma solução.

— Tudo bem — disse Holiday. — Qualquer coisa. O que você precisa?

Della pegou uma caneta na escrivaninha de Holiday. As palavras estavam na ponta da língua. Tudo o que tinha que fazer era despejá-las. Ela fez um clique com a caneta. O leve ruído encheu o pequeno escritório. Clique. Clique. Clique.

— Eu... Eu preciso que você me ajude a planejar a minha morte.

Os olhos de Holiday se arregalaram.

— Qualquer coisa, menos isso.

— Isso não é aceitável. — Della franziu a testa. Clique. Clique. Clique.

— Mas Della...

— Você me deu sua palavra de que, se eu tentasse do seu jeito... que se eu tentasse ficar em contato com a minha família e não funcionasse, você ia me ajudar a forjar a minha própria morte. — Ela colocou o dedo de volta na ponta da caneta. — Você até já ajudou Jonathon a fazer isso.

Clique!

— A vida de Jonathon em família era problemática.

— E a minha não é? Meu pai acha que eu poderia fazer picadinho de uma doce vizinha e do marido dela. — Ela apertou a caneta tão forte que achou ter ouvido o plástico fino rachar.

— E a sua mãe, Della? E a sua irmã? Você as ama.

Della sentiu um nó na garganta.

— Por que diabos você pensa que estou fazendo isso? — Clique. Clique. Clique. — Elas vão viver melhor sem mim. Se eu tivesse feito isso quando cheguei aqui, nada disso teria acontecido. Meu pai não seria julgado por assassinato.

— Mas agora...

— Eu não quero que seja agora, neste exato momento. Só depois do julgamento. Mas logo depois. — Ela jogou a caneta de volta na mesa de carvalho. A caneta saltou uma vez, caiu da mesa e se quebrou em cerca de quatro pedaços diferentes.

Della se levantou e saiu.

Della foi correr e estava quase de volta à cabana quando o celular tocou. Seu coração doía, sua cabeça doía. Não havia ninguém com quem ela quisesse falar. Eles só iam tentar convencê-la a desistir da ideia de morrer. E a verdade era que ela sentia como se já estivesse morrendo por dentro.

Deixou o telefone tocar. Ele parou. Ela esperou para ouvir se iam deixar uma mensagem. Ele não apitou.

Por alguma razão que nem sequer entendia, verificou para ver quem ela tinha ignorado. Seu coração esperava que fosse Chase. Não era Chase. Sua respiração parou.

E sua mãe, Della? E sua irmã? Você as ama. As palavras de Holiday ecoaram em sua cabeça.

Ela não esperava que fosse a mãe.

Será que havia algo errado?

Ah, inferno, ligou para a mãe. Ela atendeu.

— Della — a voz da mãe fraquejou, lágrimas soaram em sua voz.

— Algo errado? — A mão de Della apertou o celular tão forte quanto o seu coração estava apertado no peito.

— Você precisa vir me ajudar a pôr algum juízo na cabeça do seu pai.

Della pôr juízo na cabeça do pai? Ele não falava com ela havia meses!

— O que aconteceu?

— Ele simplesmente... ele dispensou o advogado e disse que vai para a delegacia de polícia confessar o assassinato.

— O quê? — perguntou Della.

— Você me ouviu.

— Ele não fez isso, mãe. Só puxou a faca do peito dela.

— O quê? — A mãe dela parecia confusa. Ah, e agora?

— Estou a caminho. Não deixe que ele vá à delegacia. Não importa que você tenha de bater na cabeça dele ou se sentar em cima dele. Não deixe que ele vá!

Della começou a levantar voo, mas o dia estava claro ainda. Merda! Merda! Merda! Ela voou de volta ao escritório e correu para dentro.

— Holiday, eu preciso...

Ela não estava lá. Della tirou o celular do bolso e discou o número da fae. Um telefone tocou na escrivaninha dela. Holiday devia ter esquecido o aparelho lá.

O olhar de Della recaiu sobre as chaves do carro, numa caixa de madeira sobre a mesa.

Sua hesitação só durou um segundo. Ela pegou as chaves e escreveu um bilhete rápido. Problemas em casa. Saiu.

A adrenalina fluía pelas veias de Chase enquanto Burnett dirigia devagar pela frente do sobrado. A estrutura parecia um exaurido elefante branco. Os tijolos tinham sido pintados de branco e o telhado na garagem havia cedido. O quintal estava coberto de mato.

Três carros estavam estacionados na frente da casa e um rock pesado pulsava no ar. A distância, um trovão pareceu ecoar na mesma toada.

— Tem gente em casa — disse Chase.

— Sim. — Burnett estacionou do outro lado da rua.

— Vamos pela frente ou por trás? — perguntou Chase.

— Calminha aí. — Burnett baixou a cabeça e olhou para a casa. — Pode haver mais de dez lá dentro.

— Me deixe dar uma volta por aí e te digo o que eu ouvir e farejar.

— Você chega mais perto e se Stone, ou um lobisomem puro-sangue, estiver lá dentro, vão farejar o seu cheiro.

— Então vamos invadir o lugar. Acho que podemos dar conta deles.

Burnett franziu a testa.

— Eu acho que você poderia ter morrido na noite passada se não tivesse ouvido a espingarda sendo engatilhada. Se tiverem armas, esses caras podem estar fazendo o mesmo agora.

— E daí? Você chamou reforço? — perguntou Chase.

A carranca de Burnett se aprofundou e ele olhou outra vez para a casa, como se a analisasse.

— Se Stone estiver aí, será mais fácil se estivermos só você e eu.

Ele apontou para a parte de trás da van.

— Tenho uma maleta no porta-malas. Traga-a aqui e pegue os dois coletes que estão sobre o banco.

Chase colocou a maleta e um dos coletes ao lado Burnett.

— Esse colete pesa uma tonelada! Vai me atrasar.

— Vai atrasar a sua morte, também.

Burnett colocou o colete por cima do terno. Chase tentou, mas a coisa era muito apertada.

— É muito pequeno — disse Chase.

— Tire o casaco e a camisa — disse Burnett.

Frustrado, Chase fez isso. Então voltou a vestir o colete preto.

Burnett olhou em volta.

— Sorte que parece que os vizinhos não estão em casa.

Ele abriu a maleta. Nela havia duas armas de aparência estranha, que pareciam saídas de um filme de ficção científica.

— Tranquilizantes? — perguntou Chase.

Burnett fez que sim.

— Dispara seis tiros. Tudo que você tem a fazer é mirar e puxar o gatilho.

— Fácil.

Burnett concordou.

— O importante é lembrar de...

— Atirar neles antes que atirem em você — disse Chase.

— Eu ia dizer “acertar a parte superior do tronco”, pois assim vai agir mais rápido, mas o que você disse é importante também.

Eles saíram e começaram a atravessar a rua.

Burnett falou outra vez enquanto atravessavam o gramado da frente. Caía uma garoa fina.

— O tranquilizante demora cerca de cinco segundos para fazer efeito. E leva apenas um segundo para eles puxarem o gatilho. Portanto, não vai ser uma disputa de igual pra igual se tiverem armas de verdade.

Chase assentiu.

— Você vai pelos fundos desta vez. — Chase começou a contornar a casa. — Tome cuidado! — Burnett sussurrou.

— Esse é o meu lema.

Della estacionou na rampa da garagem. Será que tinha chegado a tempo? Assim que saltou do carro, sentiu o cheiro de sangue. Ela olhou por cima do ombro, quase certa de que o cheiro vinha do outro lado da rua. Mas aquilo a assustou, de qualquer maneira.

Ela correu para dentro.

— Mãe? — gritou.

O barulho de uma porta batendo encheu o silêncio estranho e perturbador. Foi até a cozinha, achando que poderia encontrar a mãe lá. Mas nem conseguiu passar da porta de entrada.

— Ah, mas que maravilha! — disse uma voz masculina, vinda da sala de jantar.

Della respirou fundo para farejar o ar e saber quem ela estava enfrentando. Mas a mãe devia ter feito molho de tomate, porque tudo o que sentia era o odor nauseante de alho. Ela se virou. Uma checada rápida na testa do intruso revelou que era mestiço de lobisomem.

Ela poderia dar conta dele.

Ainda assim, o coração batendo forte, o medo fazendo seu vampiro interior vir à tona para servir e proteger, ela inclinou a cabeça para a direita, na esperança de detectar se havia mais alguém ali.

O som de uma respiração pesada veio do pequeno escritório atrás da casa.

— Estamos com a família toda aqui agora! — o lobisomem gritou.

Numa das mãos, ele segurava um taco de beisebol; na outra, uma foto emoldurada — um retrato de família, tirado no parque um pouco antes de Della ter sido transformada.

A fúria cresceu em seu peito. Ela adorava aquela foto.

— Largue isso!

— O quê? Isto? — Ele levantou o porta-retratos. — Ou isso? — Ele ergueu o taco.

— Na verdade, as duas coisas — ela sibilou.

Ele desferiu um golpe. Della agarrou o taco com as duas mãos e viu um brilho de medo nos olhos do lobisomem. Por uma boa razão. Mas o mais estranho era que ele não pensou em verificar o padrão dela. Seu maior erro.

Ao sentir outra vez o cheiro de sangue, ela no mesmo instante reparou na espessura do taco de beisebol. Seu coração se apertou.

Quem aquele cafajeste miserável já tinha atingido com ele?


Capítulo Quarenta e Oito

Chase contornou a lateral da casa, se agarrando para passar pelas janelas e chegar à parte de trás. A garoa engrossava. A música tocava tão alto que ele podia sentir o chão vibrar embaixo dos seus pés. Esperava conseguir ouvir quando Burnett batesse na porta da frente.

Respirando fundo, Chase sentiu o cheiro de lobisomens, fraco, como o dos lobisomens mestiços — cinco ou seis talvez. Mas nenhum cheiro de vampiro chegou ao seu nariz. Ele só esperava que Stone estivesse em algum lugar lá em cima e seu cheiro estivesse fora de alcance.

Ele ouviu vozes abafadas pela música. O som da guitarra em volume alto o impedia de decifrar o que diziam, mas percebeu que um deles era do sexo feminino. Será que a mulher fazia parte da gangue?

Chase se encolheu por dentro. Ele odiava ter de agredir garotas.

Continuou seguindo na direção dos fundos da casa e pulou o portão, chegando ao quintal dos fundos. A distância, ouviu mais um trovão. Uma tempestade se aproximava. Ele olhou para cima e viu nuvens escuras se aproximando. O cheiro de tempestade impregnava o ar.

Nesse exato instante, avistou a porta de trás e ouviu Burnett bater na da frente. Escondeu-se atrás de um arbusto e preparou a arma tranquilizante.

Passos vieram apressados na direção dele.

— Isso mesmo — murmurou baixinho. — Venha aqui para fora.

A porta se abriu. Três figuras apareceram. Dois caras. Uma mulher. Um sujeito segurava uma pistola. Chase acertou-o com o tranquilizante primeiro.

O homem parou e olhou para baixo, como se não pudesse acreditar que algo o tivesse atingido.

A garota diminuiu o passo; o outro sujeito correu em direção à cerca.

Chase disparou atrás dele. Agarrou o sujeito pelos tornozelos e puxou-o para trás. Ele desabou no chão. Com tudo.

Mas, óbvio, não com força suficiente.

O lobisomem conseguiu se safar e desferiu um soco. Chase se antecipou e desceu o braço... literalmente.

O cara caiu.

Ao ouvir gritos de dentro da casa, Chase deu um giro, voltando-se para trás, com a intenção de capturar a garota e verificar como Burnett estava se saindo.

Ela estava agachada ao lado do lobisomem atingido pelo tranquilizante.

— Pare aí! — Chase avisou. — Não gosto de machucar garotas, mas...

— Por favor, não me machuque! — ela implorou em voz baixa.

— Eu não vou machucar você. Mas não se mova — ele ordenou.

Ela não obedeceu.

Disparou contra ele. A reação de Chase veio uma fração de segundo atrasada. Ele viu a arma na mão dela. Quase em câmera lenta, viu seu dedo acionando o gatilho e a arma disparar.

Della, pronta para bater no lobisomem com o taco, parou quando ouviu a voz de um estranho nos fundos.

— Traga ela pra cá!

O grito de Marla e os suspiros da mãe e do pai encheram os ouvidos de Della e atingiram seu coração.

Engolindo em seco, ela baixou o taco, limpou o sangue dele no jeans e se virou.

O lobisomem usou o taco para empurrá-la para a frente, fazendo-a andar.

A mãe e o pai estavam no sofá e o outro lobisomem mestiço estava parado ao lado deles, segurando uma arma apontada em sua direção. A mãe estava pálida. Seus olhos azuis, arregalados, e Della viu uma marca de soco em seu rosto. Alguém tinha batido nela. O estômago de Della revirou.

O pai tinha sangue escorrendo do lábio e seu olho estava inchado, provas de que tinha tentado resistir. Será que o sangue que ela tinha limpado no jeans era dele?

O vampiro de cabelos loiros, ou pelo menos em sua maior parte vampiro, estava em pé junto à janela. Stone.

O assassino sem escrúpulos segurava o braço de Marla. Sem dúvida, seu aperto firme iria deixar hematomas. A irmã estava com o rosto molhado de lágrimas e mantinha a cabeça afastada de Stone.

Só então Della notou que os olhos do homem brilhavam e ele tinha deixado os caninos à mostra. Era evidente que gostava de assustar as pessoas. E estava conseguindo.

— Solta minha irmã! — disse Della para Stone.

Marla soltou outro grito.

— Vai ficar tudo bem — ela disse para a irmã, sem tirar os olhos de Stone, o tempo todo lutando para manter as presas dentro da boca e os olhos sem brilho.

— Claro que vai. A irmã mais velha vai salvar o dia. — Stone riu, o som pesado. Cruel. O coração de Della martelou contra o peito.

— Eu adoro garotas corajosas! — disse Stone.

— Mas você só pegou uma delas. Pego a outra? — perguntou o lobisomem que apontava a arma para os pais.

O pai fez menção de se levantar.

— Quieto! — O lobisomem colocou a arma na cabeça da mãe de Della. — Ou vou espalhar os miolos dela pela casa toda.

O pai voltou a desabar no sofá e Della viu o desespero nos olhos dele.

Ele tinha visto o que havia acontecido com a irmã. Agora estava acontecendo com sua própria família.

A mente de Della dava voltas. Ela olhou rapidamente ao redor e decidiu que pegar a arma agora era o mais importante.

Mas então viu o dedo do lobisomem no gatilho. Será que seria rápida o suficiente para arrancar a arma das mãos dele antes...

O impacto da bala atingiu Chase e o fez cair de costas no chão. Todo ar que estava em seus pulmões foi expulso de uma vez só.

Será que o colete tinha detido a bala? Com certeza, mas ainda assim ele não conseguia respirar.

— Isso é o que você ganha sendo mole com as garotas. — A mulher correu para a cerca, achando que ele estava morto, ou perto disso.

Agora que ela o tinha irritado, ele se sentia mais vivo ainda. Chase se virou e apontou para ela a arma com tranquilizantes. Ela tinha acabado de escalar o muro. O dardo a atingiu bem no traseiro.

Ela parou, as pernas fraquejaram, então deslizou para trás. Continuou de pé, com o lado bom do traseiro encostado na cerca, oscilando de um lado para o outro como se lutasse contra a droga.

Com uma mão no peito, Chase ficou de pé e puxou a arma da mão dela.

— Eu não sou mole!

Ela caiu para trás, inconsciente.

Pancadas e baques soaram dentro da casa. Ainda lutando para respirar, Chase disparou para dentro.

Burnett virou-se; seus olhos brilhavam e suas presas estavam à mostra. Sangue escorria do seu braço e Chase viu uma faca sangrenta ao lado do rapaz inconsciente, com um dardo tranquilizante na garganta.

Dois outros sujeitos estavam desmaiados no assoalho de madeira.

— Você está bem? — perguntou Burnett, o brilho em seus olhos desaparecendo.

— E você? — disse Chase.

— Só um corte.

— Vou dar uma olhada lá em cima. — Chase subiu os degraus de três em três. Seu nariz lhe dizia que não havia ninguém lá. Mas, caramba, ele queria muito encontrar Stone.

Checou todos os cômodos.

Quando voltou a descer, os três caras dentro da casa estavam algemados e Burnett estava do lado de fora imobilizando os outros três.

— Nada de Stone — Chase lamentou ao sair.

— Me ajude a levar esses caras lá pra dentro — Burnett pediu. — Temos outro problema.

— O que agora?

— Della deixou Shadow Falls há quarenta minutos. Liguei para avisar Shawn que ela talvez aparecesse. Ele não está respondendo. Mandei os agentes virem pegar esses caras.

Um calafrio percorreu o corpo de Chase.

— É onde Stone está.

Chase não esperou para ouvir Burnett dizer que ele não poderia voar. Com sorte haveria nuvens suficientes para mantê-lo fora da vista. Menos de dois minutos depois, Burnett estava voando ao lado dele.

* * *

Della sorveu o ar por entre os dentes, concentrando-se em não perder o controle e deixar o vampiro assumir. Era preciso admitir, sua família já estava bem traumatizada, não precisava ficar ainda mais.

Atrás dela, ouviu Stone respirar fundo, como se apenas agora ele estivesse começando a sentir o cheiro dela.

— Olha pra mim!

Della se virou. Ele olhou na testa dela e arregalou os olhos. Deveria saber que ela era um vampiro, Della pensou, mas não tinha a menor ideia de que era uma Renascida. Ela planejava certificar-se de que ele saberia na primeira chance que tivesse.

— Ora, ora! — exclamou Stone. — Isso é de família. Agora você pode me dizer onde o seu tio está? Porque se disser, posso pensar em deixar um ou dois de vocês vivos.

A mãe deixou escapar um soluço.

— Eu já disse que o irmão dele morreu anos atrás.

Della ouviu o pai deixar escapar um pouco de ar dos pulmões. Ele sabia, Della pensou. Ou pelo menos uma parte dele sabia que Feng nunca tinha morrido.

Stone olhou para os dois lobisomens.

— Por que só estou descobrindo isso agora? — Ele fez um gesto para Della, obviamente se referindo ao fato de ela ser um vampiro. — Vocês não estavam vigiando a casa? — perguntou aos comparsas. — Sei que não podem sentir cheiro de porcaria nenhuma, mas será que não conseguem nem ler um padrão?

— Joey e os outros caras estavam fazendo isso — disse o lobisomem com a arma em punho.

— Não — Stone disse com rispidez. — O que eles estavam fazendo era causar problemas. E eu disse para vocês vigiarem.

Della achou que aquele seria o momento mais apropriado para atacar e pegar a arma. Mas Stone moveu a mão e agarrou o pescoço de Marla.

— Eu tenho que conseguir ajuda de mais alguém — disse Stone, olhando para Della. Em seguida, ele se concentrou nos pais. — Espera aí! Por que a mocinha não está se mostrando como é?

Um sorriso se espalhou pela sua boca.

— Eles não sabem, não é?

Della olhou para ele. A fúria encheu seu peito.

— Bem, você não acha que é hora de saberem? — Ele empurrou Marla para uma cadeira e pegou Della pelos cabelos, virando-a para os pais e Marla, de modo que pudessem vê-la.

— Faça seus olhos ficarem bonitos para eles!


Capítulo Quarenta e Nove

A dor se espalhou pela sua nuca. Stone puxou o cabelo de Della com mais força. Podia sentir o cabelo sendo arrancado do couro cabeludo.

Ela observou o lobisomem com a arma; ele ainda a apontava para a mãe dela.

Será que ela conseguiria ser rápida o suficiente?

— Vamos lá, mostre a eles! — Stone gritou em seu ouvido.

Lágrimas encheram os olhos dela. A fúria tomou conta de seu peito e ela não conseguiu impedir. Seus olhos ficaram ardentes. Seus caninos se projetaram e ela ouviu a mãe ofegar.

Stone soltou uma risada.

— Pare de machucá-la — o pai dela gritou.

Della viu o lobisomem começar a puxar o gatilho. Ela estendeu o braço para trás, agarrou Stone pelo pescoço e jogou-o em cima do cara com a arma.

A arma explodiu. O lobisomem caiu, mas no mesmo instante virou de costas, a arma ainda na mão. Della pulou sobre o sofá, passou sobre os pais, agarrou ambos, Stone e o lobisomem, pelo pescoço e voou para o outro lado do cômodo, batendo seus corpos contra a parede de tijolos.

Ainda pairando no ar, ela ouviu a porta da frente sendo aberta com um estrondo. Pensando que pudessem ser mais membros da gangue, olhou por cima do ombro. Chase invadia o cômodo. Seu olhar encontrou o dela. Alívio encheu seu peito. Ela não estava mais sozinha.

Em seguida, ouviu a mãe gritar. Della olhou para trás, achando que a mãe estava com medo de Chase, mas foi então que ela viu a irmã cair na frente na cadeira. O cheiro de sangue novo encheu o nariz de Della.

— Não! — Della gritou e soltou os dois criminosos, voando na direção da irmã. Os pais dela já estavam sobre a menina. Della viu Marla respirar, mas o sangue escorria do seu ombro. Muito sangue.

— Deixem Marla comigo — disse Della. — Posso levá-la a um hospital rápido.

Os pais hesitaram.

— Eu não sou um monstro! Eles são os monstros! — gritou Della e, pela primeira vez, ela mesma acreditou naquilo.

A mãe tocou o braço do pai.

— Deixe Della levá-la.

Chase estava parado ao lado de Stone e dos outros lobisomens enquanto olhava pela janela e via Della levar a irmã até a porta dos fundos e voar para fora.

A mãe e o pai de Della se levantaram como se também quisessem ir para o hospital. A porta da frente se abriu e mais dois agentes entraram.

Um deles era um agente do sexo feminino, uma fae, e ela foi direto até os pais de Della.

Colocou as mãos sobre as costas deles. As posturas tanto do senhor quanto da senhora Tsang mudaram de imediato.

— Venham — ela disse. — Vamos conversar. — Ela os conduziu até a cozinha.

Burnett se aproximou. Seus olhos estavam vermelhos brilhantes. Ele se agachou e olhou para os três bandidos.

— Qual de vocês vai me dizer onde está o meu agente que estava sentado no carro aqui em frente? Vou contar até três, então vou começar a atirar. — Ele puxou a arma.

— Um.

— Dois.

Ele atirou em Stone.

— Ops, esqueci de dizer três.

Os dois outros lobisomens ofegaram.

Stone tentou se levantar, mas voltou a cair. Os dois lobisomens pareciam aterrorizados, sem perceber que era apenas uma arma tranquilizante.

— Devo começar a contar de novo? — Ele olhou para os outros dois, e Chase adivinhou que ele os estava avaliando para descobrir qual deles estava mais disposto a falar.

— Um. — Ele atirou num dos lobisomens mestiços.

— Ele está no galpão do outro lado da rua — o outro lobisomem deixou escapar.

Burnett olhou por cima do ombro.

— Você cuida disso? — Mas o outro agente já estava saindo.

Então Burnett olhou para trás e atirou no segundo lobisomem. Depois se inclinou para a frente.

— Você conhece bem aquele guarda da Fossa do Inferno?

— Muito bem — disse Chase.

— Acha que consegue lembrar como chegar lá? Eddie disse que ele e Kirk iriam encontrar você no local. Ligue para ele.

Della andava de um lado para o outro no pequeno quarto. Toda uma equipe de médicos e enfermeiros estava atendendo à irmã. Ela tinha ficado lá com eles na sala de emergências até que um dos médicos notou sua presença.

— Tire-a daqui.

No início, ela tinha se oposto, mas então um deles disse:

— Você não quer o melhor atendimento para sua irmã?

Della assentiu com a cabeça e outros dois enfermeiros a levaram para a sala de espera. Ah, eles fingiram que estavam apenas tentando confortá-la. Não sabiam que ela tinha ouvido o médico dizer para detê-la e chamar a polícia.

— Você quer algo para beber? — perguntou a enfermeira.

— Não. — Della continuou piscando e olhando para o chão na esperança de esconder os olhos brilhantes. Sangue — o sangue da irmã — manchava a sua blusa. Cada vez que ela andava de lá para cá, repetia a mesma oração. Não deixe que ela morra. Por favor, Deus, não deixe que ela morra.

Ela ouviu vozes do outro lado da porta. Devia ser a polícia. Della não se importava. Só arranjariam problema se tentassem levá-la para fora do hospital. Ela teria que ferir alguém. E não hesitaria em fazer isso.

De repente a porta da salinha de espera se abriu e Burnett entrou. Ele mostrou o distintivo aos dois enfermeiros.

Della desatou a chorar e ele a puxou contra ele.

— Eles me disseram que ela está prestes a ir para a cirurgia — disse Burnett. — Kylie já está a caminho.

Della o afastou. Então ofegou.

— E os meus pais?

Burnett olhou para os dois enfermeiros.

— Podemos ficar a sós um minuto?

Eles saíram.

— Deixei um agente com eles. Vou trazê-los aqui assim... que for mais seguro.

— Mais seguro? — perguntou Della, e seu primeiro pensamento foi que algo mais tivesse acontecido, mas depois ela percebeu o que ele queria dizer. Ele não iria — não poderia — deixá-los chegar ali gritando e dizendo que tinham visto vampiros.

— Não é culpa deles — disse Della. — Você não pode impedi-los de vir. Sei que estão mortos de preocupação. Se Marla não resistir... — A garganta de Della apertou.

— Acho que vão estar aqui em breve. Estou apenas me certificando.

Della notou o sangue em Burnett.

— O que aconteceu?

Ele franziu a testa.

— Shawn. Um agente. Estava vigiando a casa. Eles o pegaram. Acabei de trazê-lo.

— Shawn, o Shawn de Miranda?

Burnett confirmou.

— Ele não...

— Não. Está indo para a cirurgia também.

Cinco minutos depois, Kylie apareceu.

Mal a amiga tinha entrado e o médico enfiou a cabeça pela porta.

— Ela está sendo preparada para a cirurgia. Vou mandar uma enfermeira vir aqui dar notícias.

— Podemos vê-la? — perguntou Della.

— Não temos tempo a perder.

Burnett voltou-se para Della e Kylie e deu uma olhada na porta que ainda estava entreaberta.

— Doutor, posso por favor ter uma palavrinha com o senhor? — Ele gesticulou para o médico.

Della e Kylie correram para fora da sala. Della levou Kylie ao pronto-socorro, para onde tinham levado Marla.

Duas enfermeiras estavam de pé em volta dela, monitorando-a e limpando algo em seu peito.

— Vocês não podem ficar aqui agora — avisou uma das enfermeiras.

— Só precisamos vê-la por um segundo. Por favor — disse Kylie. Ela é irmã dela.

Quando a enfermeira pegou um telefone para ligar para alguém — para expulsá-las de lá, com certeza —, Kylie se aproximou e colocou as mãos nos pés de Marla.

— Precisamos de alguém aqui, agora — disse a enfermeira ao telefone.

Della ficou entre a enfermeira e Kylie, preparando-se para lutar se fosse preciso.

Depois de apenas alguns segundos, Kylie disse:

— Podemos sair agora.

Della olhou para trás e Kylie estava brilhando.

As duas enfermeiras ofegaram.

— Será que isso funciona? — perguntou Della, mordendo o lábio enquanto saíam.

Kylie sorriu.

— Tenho certeza que sim. Acho que tudo que precisam fazer agora é extrair a bala.

Della, percebendo que Kylie ainda estava brilhando, tirou sua blusa de capuz e entregou a ela.

Duas horas depois, Della se sentou ao lado da irmã, na sala de recuperação. Ela não tinha acordado, mas o cirurgião — que estava surpreso por constatar que a bala quase não causara dano algum — tinha lhe assegurado que Marla ficaria bem.

Burnett apareceu por um instante e avisou que Shawn também ficaria bom.

— E meus pais? — perguntou Della.

— Devem estar aqui em breve. Vai ficar tudo bem — disse ele. Mas Della tinha medo de acreditar. Não parecia que tudo ficaria bem.

Burnett saiu. Della olhou para a irmã, preocupada com o que iria dizer a ela. Em apenas alguns minutos a cortina se abriu de novo. Della esperava ver uma enfermeira, mas a mãe dela entrou.

Estava com uma aparência horrível. Seu rosto estava pálido, o nariz vermelho e os olhos inchados de tanto chorar.

Della esperou para ver o medo e a repulsa transparecerem nos olhos da mãe, mas isso não aconteceu. Ou Della não suportou vê-los. A mãe se aproximou, embora um pouco mais devagar agora. Ela olhou para Marla e não desviou o olhar até o peito da filha se erguer um pouco, para o ar entrar nos pulmões.

A mãe soltou um suspiro profundo e triste.

— Eles disseram que ela vai ficar bem — disse Della.

A mãe encontrou seu olhar outra vez.

— Eu sinto muito — disse Della.

A mãe puxou Della para os seus braços.

— Por quê? Você não fez nada errado. Se não tivesse aparecido, estaríamos todos mortos.

Della estreitou o abraço e, pela primeira vez desde que tinha sido transformada, não se preocupou que a mãe a tocasse ou que se assustasse ao perceber a temperatura baixa do seu corpo.

A mãe se afastou e secou as lágrimas do rosto da filha.

— Sou eu quem tem de se desculpar. Eu... nós... Eu gostaria que você tivesse nos contado. Esses últimos nove meses poderiam ter sido muito diferentes.

— Não é uma coisa fácil de dizer — justificou Della.

A mãe balançou a cabeça e disse:

— Nem fácil de ouvir, também. Mas as coisas vão mudar agora.

Será? Della se perguntou. O pai não estava ali. E ela tinha quase certeza de que sabia por quê.

A mãe dela soltou um suspiro.

— Seu pai está na capela. Ele fez algo terrível, Della. Estou furiosa com ele, mas quer se desculpar com você.

Della tinha imaginado que ele estava prestes a dizer à polícia que ela poderia ter matado os Chi.

— Por que você não vai lá enquanto eu fico com Marla — disse a mãe.

Della concordou com a cabeça, mas, ao sair, parou e se apoiou contra a parede. Mais lágrimas caíram de seus olhos. O que iria dizer ao pai? Será que ele nunca olharia para ela sem ver um monstro?

Miranda e Kylie se aproximaram. Miranda a abraçou. Della a abraçou de volta e sustentou o abraço.

— Você está bem? — perguntou Miranda, e foi quem pôs fim ao abraço.

— Meu pai quer falar comigo — disse ela.

— Então vá — disse Kylie.

— Se ele disser algo cruel, vou jogar um feitiço de coceira nele — disse Miranda, sacudindo o dedo mindinho.

Della, com lágrimas ainda escorrendo pelo rosto, não conseguiu reprimir um sorriso. Então se lembrou.

— Como está Shawn?

— Ele já saiu da cirurgia e está passando bem — disse Miranda. — Os pais disseram que eu vou poder visitá-lo daqui a pouco.

— Ótimo!

— Vá ver o seu pai — disse Kylie.

Della assentiu com a cabeça e saiu, mas, quando chegou à sala de espera, ouviu vozes. Ela parou e empurrou a porta apenas alguns centímetros. Seu olhar percorreu a sala, passando de rosto em rosto, todos muito preocupados.

Levou um segundo para perceber quem é que ela estava procurando.

Ele não estava ali. Não havia nenhum vampiro na sala.

Ela se lembrou de algumas coisas que tinha dito a ele. E supôs que não merecesse vê-lo ali. Então se lembrou daquele segundo em que ela o vira entrar na casa de seus pais. Ela tinha sentido... Bem, não tinha mais se sentido sozinha.

Depois se lembrou do que tinha descoberto com Eddie. Chase ainda escondia coisas dela. Será que ela não tinha direito de ficar chateada?

Enrijecendo as costas e afastando os problemas relacionados a Chase para se preocupar com os problemas relacionados ao pai, ela seguiu as placas indicando a localização da capela.


Capítulo Cinquenta

Kirk e Eddie encontraram Chase na Fossa do Inferno. Ele assinou os papéis para que Douglas Stone, ou Connor Powell, passasse a ser o mais novo residente.

Com Kirk por perto, Chase não tinha dito nada a Eddie sobre a conversa que tivera com Burnett. Mas, pela breve conversa, Eddie não parecia guardar nenhum rancor de Chase.

Chase tinha percebido uma certa tensão entre os dois homens. Eddie disse a Chase que o encontraria lá fora, e Kirk entrou com ele pelas portas dos fundos da prisão para apresentar a Stone sua nova residência. A papelada foi feita e o guarda levou Stone para sua cela.

Quando Chase ia sair, Kirk o chamou de volta.

— Eu estava errado por lhe pedir para cuidar disso do jeito que fiz.

— Sim, você estava — disse Chase.

Kirk olhou para a saída e franziu a testa.

— Nunca quis enganar Eddie. Era sempre para protegê-lo.

Chase sentiu sinceridade na voz do homem, mas Eddie é quem deveria decidir isso.

— É tarde — disse Chase.

Kirk estendeu a mão.

— Agora que você trabalha com a UPF, posso ter esperanças de que haja algumas mudanças para melhor?

Chase recordou as vezes em que Kirk tinha ficado ao lado dele e de Eddie, apoiando-os, e não pôde deixar de apertar a mão do homem.

— Obrigado.

Uma vez lá fora, Eddie foi ao encontro dele.

— Você está bem? — o pai substituto perguntou.

Chase assentiu.

— E você?

— Tudo bem. — Eddie colocou a mão no ombro de Chase. — Estou orgulhoso de você, filho.

— Mesmo que eu trabalhe agora para a UPF? — perguntou Chase.

— Mesmo assim — disse ele. — Como está a irmã de Della?

— Burnett me mandou uma mensagem dizendo que ela vai fazer ficar bem.

— Ótimo.

— Obrigado por ligar para Burnett — disse Chase.

Eddie assentiu.

— Se ele não fosse um agente da UPF, eu poderia até gostar dele.

— Eu já disse. Ele é um bom sujeito.

Eddie sorriu.

— Ele me faz lembrar do seu pai.

— Qual deles? — perguntou Chase. — Eu tenho dois. — Ele encontrou os olhos de Eddie, deixando claro o que ele queria dizer.

— Eu te amo, meu filho! — disse Eddie, e os dois se abraçaram.

Della entrou na capela. O pai estava sentado na primeira fileira. As luzes estavam apagadas, exceto por algumas velas tremeluzentes. Ela secou as lágrimas dos olhos.

Viu o pai olhar por cima do ombro. O peito dela se encheu de emoção, mas ela se forçou a se sentar ao lado dele.

Ele tinha a cabeça baixa, as mãos cruzadas.

— Eu sou uma pessoa detestável — ele disse.

Mais lágrimas umedeceram os olhos dela.

— Não, você não é. Você viu coisas terríveis muito tempo atrás e eu o fiz se lembrar de tudo outra vez.

Ele ainda assim não olhou para ela.

— Fui eu quem disse à polícia que você poderia ter matado o senhor e a senhora Chi.

— Eu sei — disse Della.

Ele olhou para ela.

— Você sabia?

— Sim — disse ela. — E é por minha causa que você foi preso por assassinato. Foi por minha causa que eles reabriram o caso, para que eu pudesse descobrir sobre... Feng e Yu Bao.

— Sim, mas o senhor James me disse que você nunca achou que eu fosse o assassino. Nem quando recebeu o arquivo com a minha confissão. Você acreditou em mim, e eu a entreguei à polícia.

Ela sentiu outra onda de emoção percorrê-la.

— É diferente — disse. — Eu não testemunhei algo terrível que me fez duvidar de você.

— Sim, você testemunhou. — As lágrimas encheram os olhos dele. — Você me testemunhou nestes últimos nove meses. Eu tratei você tão mal! Como pode me perdoar?

Ela se aproximou e pegou a mão dele.

— Porque foram nove meses, e você me tratou maravilhosamente bem por mais de dezessete anos.

Ele passou os braços em volta dela e ali, na pequena capela do hospital, Della conseguiu ter seu pai de volta.

Depois de alguns minutos, ela sentiu a temperatura baixar na sala escura. Olhou ao redor, quase com medo do que a tia pudesse fazer se ainda não acreditasse na inocência do pai.

— Você não matou a sua irmã — ela disse, esperando que Bao Yu ouvisse também.

— Eu puxei a faca — disse ele, e sua voz tremeu um pouco. — Posso ter matado minha irmã. Ela estava tentando fazer isso e eu apenas... me pareceu que a faca a estava machucando. — Ele colocou a mão sobre os olhos e os soluços tristes do pai encheram a pequena sala na penumbra.

Eu já estava morrendo, disse Bao Yu. Já tinha visto a luz. Ele estava tentando me ajudar. Eu queria tirar a faca. Não é culpa dele. O olhar encontrou o de Della. Por fim eu me lembrei. Graças a você.

Della olhou para o altar e a cruz, e para onde a tia estava. Ela sorriu para Della. Com lágrimas nos olhos, disse “obrigada” sem emitir nenhum som.

— Ela já estava morrendo — disse Della. — Tenho certeza de que você fez isso por ela... porque pensou que só ajudaria. — Ela apertou a mão dele. — O homem que entrou na sua casa, o homem de fato ruim, foi ele quem a matou.

O pai concordou com a cabeça.

— O senhor James me disse isso também.

Della olhou para a tia.

Bao Yu se virou e olhou por cima do ombro, e Della quase engasgou quando a parede dos fundos da capela pareceu se abrir. Onde antes estava a parede agora havia o que parecia o mais bonito pôr do sol que ela já vira. Cores tão brilhantes, tão... diferentes de qualquer coisa que já tivesse divisado. Bao Yu se virou e de repente a senhora Chi apareceu. Ambas acenaram para Della, em seguida afastaram-se, as cores aos poucos se desvanecendo.

Mas a sensação de calor, o suave inchaço no peito de Della não desapareceu.

— Você viu isso? — perguntou o pai.

— Viu o quê? — perguntou Della, chocada.

— Essas cores, como um arco-íris aparecendo na parede.

— Sim — disse Della. — Eu vi.

— Talvez seja um sinal de que coisas boas vão acontecer a partir de agora.

— Sim — Della sorriu. — Acho que foi um sinal.

Eles ficaram ali sentados, no silêncio pacífico. Ambos olhando para a parede, como se esperando que mais cores surgissem.

O pai falou outra vez.

— O senhor James também me disse que você viu Feng.

— Eu vi — disse ela. — Ele é um homem muito agradável. Parecido com alguém que eu conheço — ela disse e sorriu.

— Eu gostaria de vê-lo — disse ele.

— Aposto que ele gostaria de ver você também.

Quatro dias depois, Chase ofereceu a Eddie um copo de sangue e eles se sentaram em sua grande mesa de jantar. Baxter descansava aos pés do visitante. O cão adorava Eddie quase tanto quanto amava Chase.

— Della me ligou hoje — disse Eddie.

A notícia o magoou. Ela não tinha encontrado tempo para ligar para Chase. Ele pegou o copo e tomou um gole lento para esconder suas emoções.

— Os tribunais arquivaram o caso contra Chao. O advogado de defesa solicitou um novo teste de DNA do sangue encontrado no vestido de Bao Yu e, quando foram colher o material, viram que o vestido tinha desaparecido. Temendo que fossem acusados, a promotoria decidiu abandonar o caso.

— Sério? — disse Chase, tomando outro gole. — Engraçado como essas coisas acontecem.

Eddie olhou para ele.

— Vejo que você acendeu a sua lareira há pouco tempo...

— Esfriou muito nesses últimos dias.

— Tem razão — disse Eddie. — Você poderia ter arranjado um monte de problema queimando aquele vestido, sabe?

— É verdade — disse Chase. — Mas se eu fosse pego, teria valido a pena? Teria. Além disso, eu não fiz isso sozinho.

— Teve a ajuda de quem?

— Della tem um monte de amigos em Shadow Falls.

Eddie assentiu.

— Ela disse que meu irmão quer me ver.

— Isso é bom! — disse Chase. Há muitos anos ele ouvia Eddie dizer que sentia falta do irmão gêmeo.

Burnett também contara a ele que o pai de Della tinha admitido quanto fora idiota e estava realmente tentando fazer as pazes com a filha. Talvez o homem não fosse tão idiota assim, afinal.

— Você ligou ou mandou uma mensagem pra ela? — perguntou Eddie.

Chase tomou outro gole lento.

— Ela me mandou não fazer isso.

— E desde quando você faz o que as pessoas mandam? Você nunca me ouviu.

— Ela sabe onde estou. Já disse a ela o que eu sinto muitas vezes. — E ela nunca me disse que sentia o mesmo. Isso dói.

Eddie se inclinou para acariciar Baxter. Quando se endireitou, deixou a coleira de Baxter sobre a mesa.

— “Nunca vire as costas para um desafio” — disse ele. — Não é isso que está escrito nesta coleira? Houve um tempo em que você dizia que esse era seu lema. Não pare de fazer isso agora, meu filho.

— Xeque-mate — anunciou Della, sorrindo para o pai.

— Ok, preciso praticar mais — disse ele.

Della apenas sorriu. Sabia que ele a deixara ganhar de propósito, e ela o amava por isso. Deus, ela o amava! Amava toda a sua família.

— Mais uma partida? — ele perguntou.

— Eu tenho que parar. — Della franziu a testa. — Prometi à mamãe que iria ajudá-la a fazer frango empanado para o jantar e prometi a Marla que assistiria Crepúsculo com ela. — Della fez uma careta.

Marla tinha voltado para casa no dia anterior. Os médicos ainda estavam atordoados com sua recuperação.

O pai sorriu.

— Sua irmã está tentando mostrar que aceita você.

— Sim, bem, ela poderia apenas dizer isso. Assistimos a esse filme anos atrás. Quem já ouviu falar de um vampiro que brilha no sol?

Ele se inclinou.

— Marla é como sua mãe. Ela tem dificuldade para dizer as coisas às vezes. Não é como você e eu.

Era verdade, Della percebeu. Quando se expressavam, ela e o pai não adoçavam as coisas como a mãe e a irmã.

Ele se inclinou para trás em sua cadeira.

— Você tem certeza de que não quer ficar em casa e terminar o ano em sua antiga escola?

Della fez uma careta.

— Eu gosto de Shadow Falls. Lá estão minhas duas melhores amigas. — E Chase mora ali perto. Mas por que isso importava ela não sabia. Pelo menos uma centena de vezes, ela tinha lhe escrito uma mensagem, apenas para deletá-la em seguida.

Ele escondia coisas dela. Isso não era o mesmo que mentir?

— Ok, não vou tentar convencê-la. Mas ia comprar um carro novo para você, se reconsiderasse.

— Isso é suborno! — disse Della. — Um golpe baixo.

Ele suspirou.

— Ok, não posso suportar a ideia de você ir embora.

— Estou com quase 18 anos.

Ele suspirou e ergueu as mãos.

— Você sabe que ainda vou lhe comprar um carro. Eu ia fazer isso de qualquer jeito quando você se formasse no colegial.

Ela se levantou e abraçou-o.

— Pode ser com câmbio manual?

— Você não sabe trocar marchas com um câmbio manual! — disse ele.

— Aprendi. — Ela se lembrou de suas aulas de volante com Chase. O coração dela deu outra cambalhota. Será que nunca pararia de sentir falta dele?

— Vou deixar você ajudar a escolher seu carro.

— Obrigada. — Ela o abraçou outra vez.

Engraçado como ultimamente ela tinha se tornado quase tão viciada em abraços quanto Miranda.

Domingo, quase oito da noite, toda a família dela foi de carro para Shadow Falls. Eles se abraçaram, se beijaram e Marla até chorou.

— Vou estar de volta em duas semanas. — Della ficou parada no portão, vendo-os ir embora. Então, chorou. Pela primeira vez, sabia que eles iam sentir falta dela. Sabia que ainda tinha um lar. Sempre teria.

Ela se virou e olhou para a placa de Shadow Falls. Ali era sua casa também.

Ficou surpresa ao ver que Kylie e Miranda não estavam no portão esperando por ela. Elas já tinham ligado cinco vezes naquele dia, perguntando que horas ela chegaria.

Della atravessou o portão.

— Ei! — Miranda ligou do refeitório. — Estou pegando algumas Cocas, você pode ajudar?

— Claro. — Antes que entrasse no refeitório, os cheiros a atingiram. Vampiros, metamorfos, faes, bruxas, lobisomens, mais metamorfos... Todo o grupo deles. Ela ainda estava surpresa quando gritaram, “Bem-vinda ao lar!”.

Ela quase não segurou as lágrimas. Todos foram tão gentis! Durante mais de uma hora, ela ficou rindo com todos da sua família de Shadow Falls, Holiday e Burnett, e a pequena Hannah, Jenny e Derek, Perry e Miranda. Lucas e Kylie. Jonathon e Helen. Até Fredericka e Chris tinham vido lhe dar as boas-vindas.

Quando Della estava pronta para voltar para a sua cabana, Burnett perguntou se podia vê-la no escritório.

— Algum problema? — perguntou, ao entrar no escritório de Holiday.

— Não — disse Burnett. — Bem, um pequeno.

— O quê? — Certo, então algo se esfregou na sua perna.

Ela olhou para baixo.

— Chester? O que ele está fazendo aqui?

— Lembra que você me pediu para descobrir em que veterinário o gato dos Chi estava?

— Sim — disse Della.

— Bem, não sei por que acabei me tornando a pessoa responsável, mas a filha dos Chi ligou para o veterinário e disse que não poderia ficar com o gato. Então tive que ficar com Chester. Holiday não confia em Hannah com um animal de estimação ainda. Você acha que ele pode ficar com você?

— Mas que ótima ideia! — Della pegou o gato no colo.

— Ele tem um transportador.

Ela começou a sair acompanhada do gato.

— Della? — chamou Burnett.

— Sim?

— Você falou com Chase?

Um nó se formou em seu peito.

— Não.

— Ok.

Ela começou a andar outra vez e parou quando ele falou.

— É estranho.

— Por quê? — ela perguntou.

— Ele trabalhou com muita dedicação no caso do seu pai.

— E escondeu coisas de mim. Eddie tinha dito a ele que se entregaria à polícia e confessaria. Ele não me contou.

— Sim, mas você sabe outra coisa que é estranha?

— O quê?

— Vocês dois estavam fazendo a mesma coisa. Tentando salvar seus pais. Mas apenas um de vocês parecia apoiar o outro.

Ela ficou ali, sentindo as emoções se agitarem. Visto daquela maneira, ela de fato parecia uma megera.

— Stone estava chantageando o Conselho. Ele tinha arquivos que colocavam todos em risco, até mesmo o seu tio. O Conselho prometeu a Chase que, se ele matasse Stone, eles protegeriam Eddie. Ele não fez isso, porque sabia que, se Stone morresse, seu pai ainda poderia ser condenado. Arriscou mandar Eddie para a cadeia para salvar seu pai da mesma acusação.

— Ele fez isso? — perguntou ela e percebeu que não só parecia uma megera como era de fato uma. Uma megera da pior espécie.

— Sim.

Ela olhou para a mesa de Holiday. Um plano começou a se formar.

— Você acha que eu poderia pegar o seu carro emprestado mais tarde? Eu poderia... sair e comprar ração e outras coisas para Chester.

Ele sorriu.

— Desta vez você vai pedir? Pensei que só ia pegar as chaves e sair daqui a toda. — Ele pegou as chaves e as jogou para Della.

Sorrindo, ela começou a andar, então se virou.

— Burnett?

— Sim.

Ela procurou as palavras certas.

— Por um tempo, nestes últimos meses, senti como se tivesse perdido meu pai. Mas você foi uma espécie de backup. E ainda é. Obrigada.

Ele sorriu.

— Eu sinto o mesmo.


Capítulo Cinquenta e Um

Della foi para sua cabana e ela e as amigas fizeram uma sessão Coca Diet na mesa redonda da cozinha.

Riram ao ouvir Miranda se lamentar de sua vida amorosa. Ela estava passando algum tempo com Shawn desde que ele tinha sido ferido. Como amigos. Apenas amigos. Mas agora Perry tinha anunciado que iria ficar fora mais um mês para tentar encontrar os pais.

— Ele disse que foi você quem sugeriu que ele devia procurá-los. — Miranda franziu a testa para Della. — Não é que eu ache errado, eu só... estou confusa.

Elas conversaram por mais alguns minutos. Della colocou a lata de refrigerante na mesa.

— Estou confusa também. Estou prestes a fazer algo que pode ser uma idiotice.

— O quê? — perguntou Kylie.

— Estou indo ver Chase.

— Isso não é idiotice — disse Kylie.

— Também não acho que seja — disse Miranda.

Elas concordaram em tomar conta de Chester, enquanto Della voltava para seu quarto.

— Eu pensei que você fosse ver Chase.

— Eu vou, mas vou tomar uma ducha primeiro.

O queixo de Miranda caiu.

— Você não está indo só falar com ele, está?

— Cale a boca! — disse Della.

— Que tipo de lingerie vai vestir? — Miranda brincou. — Apenas para o caso de não saber, hoje é domingo.

— Eu nunca deveria ter contado a vocês — disse ela.

— Você tem que contar. Isso está no livro de regras das melhores amigas! — disse Miranda quando Della começou a se afastar.

Della dirigiu até o supermercado. Não o mais próximo, mas outro, a mais de trinta quilômetros de distância. O que ficava mais perto não tinha o que ela precisava. Tudo comprado, ela voltou para o carro. O telefone anunciou uma mensagem de texto.

Achou que era Marla ou Kylie e Miranda.

Não era.

Era Chase. A mensagem era curta, doce e ia direto ao ponto.

Ainda estou aqui.

Ainda sinto sua falta.

Ainda amo você.

Ela começou a digitar de volta, então decidiu apenas surpreendê-lo. Vinte minutos depois, estacionou na frente da cabana dele.

Chase saiu na varanda. Não estava usando camisa. Não que ela se importasse. Ele ficava muito bem sem camisa.

Ele ficou ali parado, olhando-a, como se não pudesse acreditar que ela estava lá. Então ele e Baxter por fim desceram correndo os degraus da varanda.

— Você está aqui! — Ele não tentou beijá-la. Então ela ficou na ponta dos pés e o beijou.

Ele a puxou contra si.

— Nossa, eu senti tanto a sua falta!

— Eu também.

Dentro da cabana, ele a abraçou outra vez. Ela inclinou a cabeça e encostou no peito dele. Sua pele nua causava uma sensação tão boa...

— Ah, eu esqueci. — Ela correu para fora, pegou o saco do supermercado no carro e se apressou a voltar, entregando a ele.

Mal o saco deixou a ponta dos dedos e ela se lembrou do que mais tinha comprado.

— Espere! — Ela pegou o saco de volta. Infelizmente, ele ainda o segurava e o papel se rasgou ao meio. O pacote com doze preservativos e a embalagem da padaria caíram no assoalho de madeira.

Chase olhou para baixo. Num segundo, Della pegou os preservativos. Mas não a tempo de Chase não vê-los.

— Não se atreva a dizer uma palavra ou vou mudar de ideia.

— Nem uma palavra — disse ele, mas tinha um sorriso bobo na cara. — Você sabe, eu já tinha alguns.

— Ah, você achou que ia precisar, é?

— Eu esperava precisar deles. Então, por que comprou? Você coleciona ou algo assim?

— Eu... Esqueça. — Ela sorriu.

Ele riu, em seguida, pegou a embalagem da padaria que Baxter tinha começado a farejar. Quando a abriu, seu sorriso desapareceu. Ele olhou para cima, e pareceu... não triste, mas sério.

— Bolinhos de chuva?

Segurando os preservativos atrás das costas, ela confirmou com a cabeça.

— Você... você disse que tinham gosto de amor.

Ele colocou os bolinhos em cima da mesa e a beijou. Um beijo suave e quente.

— Eles têm. — Ele pegou um bolinho.

— Prove um — disse. E estendeu um para ela.

Ela fez que não com a cabeça.

— Desculpe, provei um semana passada e tem um gosto horrível.

Ele soltou uma risada.

— Ah, tudo bem. Provei sua sopa de cebola e botei tudo pra fora. Mas pode ter sido o vinho, é verdade.

Ela riu e se inclinou, colocando o queixo no peito dele.

— Nós não temos que gostar dos mesmos tipos de comida. Apenas um do outro.

— Eu gosto — disse ele. — Eu te amo.

— Eu também te amo. — Ela colocou uma mão no peito dele. A que não estava escondendo os preservativos atrás das costas.

— Desculpe, fui uma completa megera. Estava com medo, confusa.

— Você não é uma megera — disse ele e colocou a mão em cima da dela.

— Não, deixe eu terminar. Preciso dizer isso. — Ela engoliu em seco. — Eu só conseguia pensar que, se meu pai fosse condenado, seria tudo culpa minha. E embora eu soubesse que Eddie é como um pai pra você, nunca levei em consideração que você estava tão assustado quanto eu com a possibilidade de ele ser preso. Quero dizer, eu meio que sabia, mas estava sendo egoísta.

— Pare — disse Chase, levando a mão aos lábios dela. — Você é a pessoa menos egoísta que eu conheço.

— Eu afastei você — ela deixou escapar. — Não queria admitir quanto gosto de você. E não é apenas a ligação, Chase. Steve definiu isso muito bem. Ele me disse que eu era louca por você antes mesmo de receber o seu sangue. E ele está certo. Eu já era... louca por você.

Ele sorriu.

— Eu sou louco por você, também.

Inclinando-se, ele pressionou os lábios contra os dela. O beijo foi suave, doce, mas logo se tornou ardente. E Della foi ficando mais e mais consciente de que estava segurando um pacote de preservativos atrás das costas.

Em algum lugar na cabana, ouviu-se o ponteiro de um relógio se movendo, contando os segundos.

Ela se afastou.

— Que horas são?

Ele olhou por cima do ombro.

— Onze e cinquenta e oito, por quê?

— Precisamos começar, então.

— O quê? — perguntou.

— Posso tirar a roupa? — Ela jogou os preservativos no sofá.

Os olhos dele se arregalaram.

— Bem, eu... Certo.

Ela olhou para ele e deu uma risadinha.

— Eu acho que você está corando.

— Eu não estou — disse ele.

Sim, ele estava. Mas ela gostava disso. Saber que tudo aquilo era meio novo para ele também. Pelo menos um pouco.

Ela puxou a camiseta, então gingou os quadris para tirar a calça jeans. E ficou diante dele apenas com a roupa de baixo.

O olhar de Chase percorreu-a de cima a baixo, e ela teve certeza de que ele gostou do que viu.

Ele se aproximou. Sua mão envolveu delicadamente a cintura dela.

Seu toque suave provocou arrepios em sua pele e a expectativa a percorreu, mas ela afastou a mão dele.

— Ei, Pervertido da Calcinha, você está deixando de notar uma coisa. — Ela recuou e acenou com a mão para cima e para baixo ao longo do seu corpo seminu.

Ele franziu a testa.

— Deixando de notar... o quê? Eu já notei que... você é maravilhosa.

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu estou com o dia certo. — Ela apontou para a calcinha.

Ele jogou a cabeça para trás e gargalhou. O som soou como música aos ouvidos dela. E estar ali com ele soou como mágica. Então ele a puxou contra ele. Os dois riram e ficaram abraçados a noite toda.

Della não se lembrava de nada parecer tão certo. Estar com ele, ao lado dele. Sentindo sua pele nua contra a dele. Ela o amava. Adorava como ele a fazia se sentir sexy e bonita. Adorava como respeitava seu ritmo e a tocava como se ela fosse uma obra de arte.

Nove meses antes, o mundo de Della estava de cabeça para baixo. Ela odiava que tudo tivesse mudado. Odiava quem ela era. O que ela era. E agora, no entanto, percebia que aquelas mudanças a tinham levado até ali. Até Chase. Até a carreira que queria. Até as suas duas melhores amigas e a todos em Shadow Falls.

Às vezes, pensou, as mudanças não eram tão ruins assim.

 

 

                                                                  C. C. Hunter

 

 

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