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REVELADA / P. 3
REVELADA / P. 3

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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REVELADA / Parte III

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

16
Stark

– Você tem certeza de que ainda estamos seguindo o rastro dele? – Stark perguntou para o imortal alado, entre uma respiração ofegante e outra, depois de correr atrás de Kalona.

– Você não consegue farejar o sangue dele? – Kalona olhou por sobre o ombro e então, percebendo que Stark obviamente estava com dificuldade para acompanhá-lo, diminuiu o ritmo e apontou para um gramado bem cuidado, por onde eles estavam passando. – Ali, veja onde o sangue do vampiro respingou no chão, ou seja, ele ainda está sangrando. O meu filho fez bem em arranhar a cabeça dele com suas garras. Feridas na cabeça sangram com facilidade e são difíceis de estancar.

– Sim, principalmente se a pessoa está se movendo tão rápido quanto ele – Stark enxugou o suor na sua testa enquanto corria ao lado de Kalona. – Quem diria que Dallas podia correr assim? Eu achava que com certeza a essa hora a gente já o teria alcançado. Ele não tinha tanta vantagem sobre nós. O garoto sabe se mexer. Sempre pensei nele como um daqueles garotos que vivem grudados em videogames: bonzinhos e fracos, a menos que eles estejam fingindo ser Zorg do Planeta Org, quando eles podem destruir universos inteiros com os seus dedos gordos.

Kalona franziu a sobrancelha.

– Às vezes o mundo moderno ainda me deixa confuso, mas eu posso explicar por que Dallas está se movendo tão rápido. Ele está fugindo para salvar a sua vida.

– Ei, Thanatos disse claramente que você não deveria matá-lo.

– Isso é uma pena. Seria justo que eu terminasse o que meu filho começou – Kalona afirmou.

– Não posso dizer que eu discordo de você – Stark falou.

Kalona levantou a mão, fazendo Stark parar. Eles estavam seguindo o rastro de Dallas, que ia sempre na direção oeste, e tinha dado diretamente na movimentada Riverside Drive.

– Ali – Kalona apontou do outro lado da avenida, onde a superfície do Arkansas River reluzia à luz da lua. – Ele pensa que usar a água para levar o cheiro do seu sangue rio abaixo vai apagar o seu rastro.

– Pensa? Você quer dizer que isso não vai funcionar?

– Comigo não vai. O sangue ainda está caindo dele. É ele que eu farejo, com tanta certeza quanto farejo o seu rastro.

– Hum. Que ótimo – Stark disse.

Ao atravessar as quatro pistas da Riverside Drive atrás do imortal, Stark ficou feliz por estar frio e tarde da noite, assim não havia ciclistas e corredores por ali. É claro que Kalona estava usando um sobretudo, mas aquelas asas não eram exatamente imperceptíveis.

Kalona fez uma pausa depois que eles atravessaram a ciclovia, abaixando-se para olhar a folhagem mais de perto.

– Foi aqui que ele desceu para o rio.

Stark olhou para as plantas e farejou, tentando sentir o cheiro ou ver o sangue de Dallas. Só o que ele sentiu foi o aroma do rio turvo e cheio de peixes. Mas o imortal parecia seguro de si, então Stark deu de ombros e o seguiu até o rio. Quando eles chegaram à margem, Kalona parou novamente. Desta vez ele se agachou. Ele parecia estar inspirando profundamente o ar, enquanto olhava fixamente para a água que corria vagarosamente. Estava muito seco desde a tempestade de gelo de dezembro, e o rio estava raso, com grandes bancos de areia entre as águas preguiçosas.

– Eu não sabia que você era tão bom em seguir rastros – Stark se agachou ao lado dele.

– Eu passei éons rastreando seres do mal que tinham muito mais capacidade de se esconder do que esse vampirinho. Isso não se esquece facilmente – Kalona contou.

Stark o observou de canto de olho e se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Kalona havia feito para a Deusa antes de Cair. E se ele era tão bom no seu trabalho, tanto que muitos séculos depois ele ainda podia rastrear assustadoramente bem, por que ele tinha Caído afinal?

– Lá! – Kalona apontou. – Você o vê ali, na tora perto da margem mais distante?

Stark sorriu.

– Eu não preciso ver uma coisa para atingi-la. Só me dê um pouco de espaço e se prepare para pegar o idiota depois que eu acertá-lo, porque agora eu preciso fazer algo em que eu sou assustadoramente bom – ele se levantou, encaixou uma flecha em seu arco e puxou a corda para trás. Que a flecha atravesse a coxa do vampiro chamado Dallas. Stark se concentrou em seu pensamento específico, em seu objetivo, e soltou a flecha.

A flecha fez a corda do arco vibrar e foi disparada assobiando pelo ar, invisível mas mortal.

– Aaaaah! – o grito de Dallas atravessou a água facilmente.

Stark deu o seu sorriso metido para Kalona e falou:

– Pode ir buscar.

Zoey

A primeira aula não foi daquelas que parecem que não vão acabar nunca. Eu normalmente gostava da aula especial de Thanatos. Ela não era a professora mais divertida da escola (ahn, esse deveria ser Erik), mas ela era superinteligente e nos deixava fazer perguntas sobre praticamente qualquer coisa – desde que nós fôssemos respeitosos com ela e com os outros. Eu me revirei na minha cadeira e olhei para trás. Dallas, é claro, não estava na sala. Que eu soubesse, Stark e Kalona ainda não tinham voltado para o campus , com ou sem ele. Mas todos os outros novatos vermelhos estavam lá. Os garotos que não faziam parte do grupo de Dallas, como Shaylin, Kramisha, Johnny B., Ant e o resto dos novatos vermelhos de Stevie Rae, estavam sentados na frente da classe, logo atrás da primeira fila, onde o meu círculo, Aphrodite e eu estávamos. Nicole havia chegado junto com Shaylin e estava sentada ao seu lado. Ela tinha ignorado totalmente os seus ex-amigos, que a ficaram encarando como se ela fosse uma aberração quando passou por eles.

Hoje Aurox não estava sentado sozinho no canto mais distante da sala. Na hora em que estava entrando, ele ficou hesitante ao começar a passar por nós. Damien então acenou para ele e disse que os dois assentos ao seu lado estavam livres, já que Rephaim estava na enfermaria com Stevie Rae. Aurox fez uma pausa para olhar para mim. Eu meio que dei de ombros e meio que assenti, então ele agradeceu Damien e sentou ao seu lado. Ou seja, só Aphrodite e Damien ficaram entre nós dois. Eu conseguia vê-lo fazendo anotações depois que Thanatos começou a aula, falando sobre os cinco rituais mais importantes abordados no Manual do Novato.

Hum. Talvez Aurox fosse um bom aluno. Isso não seria nada parecido com Heath. Pensar isso me deu vontade de rir – como um princípio de histeria, não uma risadinha engraçada –, então eu tossi para disfarçar.

– Você está bem? – Shaunee me perguntou em voz baixa. Ela estava sentada do meu lado esquerdo, e percebi que a deixei preocupada.

– Totalmente. Só uma coceira na garganta – eu a tranquilizei rapidamente.

Thanatos havia se virado para a lousa digital interativa e estava mostrando uma foto de uma faca ornamental. Do fundo da sala, uma bola de papel amassado foi atirada na minha mesa. Percebi que havia algo escrito nela. Franzindo a testa, eu a desamassei e li: QUE XATO QUE VCS NAO MORRERAM.

Aphrodite pegou rapidamente o papel e o amassou de novo, guardando-o na sua bolsa.

– Ignore-os – ela sussurrou. – Até eu consigo escrever com menos erros do que eles.

Os novatos vermelhos de Dallas não estavam agindo como babacas tão abertamente quanto faziam quando Dallas estava lá abrindo o caminho. Em vez disso, eles eram como uma pilha de irritação silenciosa cozinhando em fogo brando. Eles não respondiam nenhuma das perguntas de Thanatos e não faziam nenhum comentário durante a exposição dela. Eles só faziam coisas maldosas, como jogar bolas de papel quando ela estava de costas. E eu podia jurar que estava sentindo os olhinhos vermelhos deles me encarando. Eu olhei por sobre o meu ombro.

– Pare de olhar para eles – Aphrodite sussurrou enquanto Thanatos entregava cópias do Manual do Novato para todos nós. – Eles querem atenção. Não dê isso a eles.

– Eu queria saber se Dallas já foi pego – eu sussurrei de volta.

– Ele vai ser pego. Ele não é esperto o bastante para escapar de Kalona – ela disse.

– Eu gostaria de discutir o segundo dos Rituais Maiores abordado nesse capítulo do Manual do Novato, o Ritual de Proteção de Cleópatra – a voz imponente de Thanatos chamou a nossa atenção para a frente da classe. Ela apontou para a lousa digital e para as imagens de adagas ornamentais. – Quem pode me dizer como elas são chamadas quando são usadas apenas para rituais e feitiços?

Damien levantou a mão rapidamente.

– Damien?

– Athame – ele respondeu.

– Eu sabia disso – Aphrodite sussurrou.

– Certo. Obrigada, Damien – Thanatos agradeceu. – Vocês vão perceber que, nas mais puras e antigas formas de Ritual de Proteção, o fogo é tradicionalmente o elemento invocado – ela curvou levemente a cabeça e sorriu para Shaunee, que assentiu entusiasmada para ela. – Como nós temos a sorte de ter nesta escola uma novata com afinidade com o fogo, talvez ela possa nos dizer o que é de suma importância em um Ritual de Proteção tradicional.

– Ah, isso é fácil! O mais importante é a Grande Sacerdotisa que conduz o ritual. Apesar de o fogo ser uma proteção incrível, ele é apenas tão forte quanto a Sacerdotisa que faz o feitiço – Shaunee disse.

Eu fiquei superfeliz por ela ter respondido, porque só o que eu me lembrava do Ritual de Proteção é que Cleópatra o fez e depois se atrapalhou porque ficou toda apaixonada por Marco Antônio, que no final morreu, e o elemento dela se transformou em uma cobra de fogo e a engoliu. Afe.

– Você está absolutamente certa, Shaunee. Obrigada. Então, caros estudantes, a lição que precisamos aprender do Ritual de Proteção não é sobre proteção nenhuma. É sobre foco, integridade e propósito – Thanatos afirmou. – Os últimos acontecimentos nesta escola me fizeram refletir com cuidado sobre a lição do Ritual de Proteção. Enquanto eu meditava sobre essa lição, veio a mim o pensamento de que no mundo antigo os vampiros tendiam a ter mais dons do que os vampiros de hoje – Thanatos fez uma pausa e olhou para mim. – Apesar de recentemente a tendência de menos dons e menos poder em vampiros jovens parecer estar se alterando – ela acrescentou. Eu não sabia onde Thanatos queria chegar, mas definitivamente ela despertou o meu interesse. – Pensem, por um momento, nas implicações de uma alteração dessas. Em tempos antigos, vampiros altamente dotados, como Cleópatra, foram responsabilizados pelas suas escolhas e por suas ações por causa do poder que eles detinham. Como vocês podem ler no Manual do Novato, e como foi relatado pelos nossos historiadores, Cleópatra usou mal o seu dom concedido pela Deusa. Ela parou de ouvir seu povo. Ela considerou a sua afinidade como uma coisa certa. Ela pensou apenas nos seus próprios desejos e necessidades. No fim das contas, o seu elemento fogo a consumiu.

Eu tentei não me preocupar. Será que Thanatos estava tentando me dizer que eu estava me atrapalhando? Tipo, eu sabia que eu andava sendo meio rude com as pessoas nos últimos tempos – e toda a coisa Aurox/Heath era confusa e frustrante –, mas será que ela estava falando que eu precisava ser nocauteada pelos cinco elementos?

Que inferno! Eu esperava que não fosse isso! Eu estava fazendo o melhor que podia. Sim, eu andava frustrada e irritada, mas pelo menos eu não estava choramingando muito. Ultimamente.

Aphrodite levantou a mão, surpreendendo-me e calando a minha tagarelice interior.

– Pois não, Aphrodite, você tem alguma pergunta? – Thanatos falou.

– Sim, eu estava pensando no que você disse, sobre como os dons dos vampiros eram mais fortes e mais frequentes nos tempos antigos e como parece que isso está mudando, e eu gostaria de saber se você tem alguma ideia de por que essa alteração de poder está acontecendo.

– É uma ótima pergunta, Aphrodite. Eu gostaria de ter uma resposta definitiva para você. Posso dizer que acredito que essa alteração tem a ver com uma mudança maior no equilíbrio entre Luz e Trevas.

– Talvez Nyx esteja nos concedendo esses dons para que a gente possa lutar para equilibrar as coisas de novo – Shaunee sugeriu.

– Talvez – Thanatos concordou.

– Isso poderia ter algo a ver com magia antiga? – Aurox perguntou.

Todos nós olhamos embasbacados para ele.

– O que o faz perguntar isso? – Thanatos quis saber.

Ele encolheu os ombros e pareceu desconfortável.

– Os touros. Eles não são uma manifestação de magia antiga?

– Eles são – ela confirmou.

– A pedra da vidência de Zoey também é magia antiga. Não é? – Aphrodite acrescentou.

Eu franzi a sobrancelha para ela.

– Isso também é verdade – Thanatos respondeu.

– Ok, mas algum de nós sabe o que a magia antiga realmente é? – eu perguntei, irritada com todo aquele assunto.

– A magia antiga não tem se manifestado fora da Ilha de Skye há muito tempo, desde antes de eu ser Marcada – Thanatos começou a falar devagar, como se ela estivesse se lembrando e raciocinando em voz alta ao mesmo tempo. – Pelo que sei, a melhor descrição que eu posso dar a vocês é que ela é energia em seu nível mais puro: crua, poderosa e neutra. A magia antiga é criação e destruição simultaneamente.

– Provavelmente é por isso que os feitiços antigos, como o Ritual de Proteção de Cleópatra, dependiam tanto da Sacerdotisa que fazia o feitiço – Damien disse. – Pode ser que todos os cinco Rituais Maiores tenham raízes na magia antiga.

– Parece lógico – Thanatos assentiu.

– Mas isso ainda não explica exatamente o que é a magia antiga ou por que ela se tornou ativa de novo – Aphrodite afirmou. – Mas eu diria que ela definitivamente está ativa de novo. Você não concorda, Z.?

Felizmente, ela foi interrompida pelo barulho da porta da sala sendo aberta impetuosamente e de Kalona entrando a passos largos pelo corredor central.

O imortal alado se curvou respeitosamente para Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, eu voltei com o seu prisioneiro.

– Você cumpriu bem a sua missão – ela se dirigiu a Kalona e então encarou a classe. – Quero que todos vocês se reúnam imediatamente no centro do campus perto do local da pira. A aula acabou.

Enquanto saíamos em fila da classe, observei Thanatos falando algo em voz baixa para Kalona. Eu vi o imortal arregalar os olhos, então ele assentiu e se curvou para ela novamente – desta vez até muito mais embaixo, mantendo a posição por mais tempo do que o normal. Enquanto ele ainda estava curvado, Thanatos foi até a sua mesa, pegou o telefone e apertou um botão. A sua voz ecoou pelo sistema de alto-falantes da escola.

– Todos os estudantes e o corpo docente vão se reunir no centro do campus no local da pira! Os professores que são membros do nosso Conselho devem se apresentar à Câmara do Conselho imediatamente. Todas as aulas estão suspensas até o final da nossa assembleia – então ela desligou e saiu apressada pela porta de trás, com Kalona logo atrás.

Tive uma sensação ruim.

– O que será que está rolando? – eu perguntei.

– Não tenho a menor ideia – Aphrodite respondeu. – Mas, seja o que for, vai acontecer na frente de todo mundo e vai fazer com que a gente perca pelo menos uma aula, então não pode ser tão mau, não é?

Nós fomos direto para o local da pira e formamos um grande círculo em volta da área queimada e escura que definitivamente estava sendo muito usada ultimamente. Eu procurei por Stark, mas não o vi, nem Kalona. Darius nos encontrou, pegou a mão de Aphrodite e disse que também não sabia o que estava rolando. Só quando todo mundo estava começando a ficar impaciente e quase era preciso gritar para ser ouvido, as pessoas do lado oposto ao meu se deslocaram, abrindo caminho.

Thanatos apareceu primeiro no meu campo de visão. Ela tinha trocado de roupa e estava usando um longo vestido negro de veludo, decorado apenas com o emblema em fios prateados de Nyx, com as mãos envolvendo a lua crescente. Thanatos havia soltado o seu cabelo longo e escuro, que caía como um véu espesso até a sua cintura. Lá no meio, eu vi um pouco de cabelos prateados reluzindo, que me lembraram do fio usado para bordar o emblema de Nyx. O seu rosto estava com uma expressão severa. Eu achei que ela parecia assustadora, mas bonita – antiga, mas sem aparentar idade.

Então a minha atenção foi atraída para Kalona e Stark, que entraram no meu campo de visão. Dallas estava mancando entre eles. Ele parecia péssimo. As mãos dele estavam amarradas na sua frente. O seu rosto estava todo arranhado e ensanguentado. As roupas dele estavam molhadas e imundas. Uma das flechas de Stark estava enterrada na sua coxa direita, só com as penas da parte de trás para fora. Kalona e Stark pareciam tão sérios e poderosos quanto Thanatos enquanto levavam Dallas até o centro da nossa assembleia. Eles não pararam até que o vampiro ferido ficou bem no meio da área escurecida pelo fogo da pira.

Dallas não parecia sério nem poderoso. Ele parecia irritado. Eu vi quando os olhos dele encontraram Shaunee. Ele olhou com raiva para ela e então deu um escarro nojento nas cinzas aos seus pés.

– Professores do Conselho da Morada da Noite de Tulsa, venham para a frente! – Thanatos ordenou.

Lenobia, Penthesilea, Garmy e Erik saíram da multidão para ficar ao lado de Thanatos. Eu estava pensando que o Conselho parecia desfalcado sem a presença de Dragon e Anastasia Lankford e da professora Nolan, quando Thanatos continuou:

– Eu também ordeno que as nossas duas Profetisas venham para a frente!

– Ah, que merda – Aphrodite resmungou, mas soltou a mão de Darius e foi se juntar a Thanatos.

Shaylin demorou para conseguir chegar lá na frente. Quando ela se aproximou de Thanatos, a Grande Sacerdotisa assentiu e fez um gesto para que ela ficasse ao lado de Aphrodite.

– A nossa escola foi ricamente agraciada com a presença de duas Grandes Sacerdotisas adicionais. Infelizmente, uma delas, a primeira Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, não pode ocupar o seu lugar ao meu lado hoje porque ela foi gravemente ferida – Thanatos continuou. Eu tinha acabado de perceber que ela havia dito duas quando os seus olhos escuros me encontraram. – Mas eu chamo a nossa segunda Grande Sacerdotisa para se juntar a mim. Zoey Redbird, venha para a frente!

Sentindo-me nervosa e insegura, eu fui ficar ao lado de Aphrodite e Shaylin.

Thanatos encarou Dallas.

– Você é o vampiro vermelho conhecido como Dallas?

Dallas sorriu.

– Todo mundo sabe quem eu sou.

– Dallas, ao amanhecer você atacou a Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, com a intenção de expô-la à luz do sol até que ela morresse. Você nega isso?

– Não, não nego.

– Dallas, ao amanhecer você também planejou matar a novata Shaunee com o poder que Nyx lhe concedeu. Você nega isso?

– Eu não nego nada! – o tom de voz dele era maldoso, e os seus olhos cintilaram com um brilho cor de ferrugem. – Pode me banir! Eu estou mais do que pronto para ir embora desta merda de escola.

Thanatos se virou para encarar a multidão.

– Eu sei que esse vampiro tem seguidores que compartilham os mesmos pontos de vista que ele. Acredito que eles sabiam de tudo e até podem tê-lo ajudado nesses crimes. Eles também devem compartilhar o seu destino. Eu agora chamo para a frente os seguidores de Dallas que desejam ficar ao lado dele!

Eu fiquei muito curiosa em saber o que ia acontecer. Havia uns dez garotos que andavam com Dallas o tempo todo. Bem, nove, agora que Nicole tinha saído do Lado Negro. Eu meio que esperei que uma horda inteira dos seus novatos vermelhos fosse para a frente, andando feito uns metidos babacas e jogando bolas de papel nas pessoas.

Mas na verdade apenas dois se juntaram a Dallas. Um era o grandalhão chamado Kurtis. Eu me lembrava dele na briga nos túneis. Ele era um idiota total. O outro garoto era Elliott, o novato que eu tinha visto morrer meses atrás na aula de Inglês. Eu sabia que Elliott era um inútil (alguém que não faz nada na classe além de respirar) do mal, mas eu imaginava que ele era preguiçoso demais para ficar ao lado de Dallas, principalmente porque parecia que ele ia ser expulso da escola junto com ele.

Ah, espere aí. Isso fazia sentido. O garoto não gostava de escola. Ser expulso com Dallas devia ser como umas férias permanentes para ele.

– Elliott e Kurtis, vocês dois conscientemente ficam ao lado desse vampiro como cúmplices dos seus crimes? – Thanatos perguntou.

– Sim, que inferno! – Kurtis respondeu. Ele tentou soar todo durão e seguro de si, mas olhou nervoso em volta.

– Sim, que seja – Elliott falou.

– Agora eu pergunto ao meu Conselho: vocês reconhecem a culpa desse vampiro e dos seus seguidores novatos?

No mesmo instante em que Thanatos fez a pergunta, a minha pedra da vidência começou a irradiar calor. Coloquei a mão em cima dela, desejando que eu soubesse a que ela estava reagindo e o que eu devia fazer em relação a isso.

Cada um dos membros do Conselho respondeu solenemente, dizendo:

– Sim, eu reconheço.

– Profetisas de Nyx, esses três foram considerados culpados de tramar o assassinato de uma Grande Sacerdotisa. Olhem dentro de vocês. Usem os seus dons. Vocês concordam comigo que, como nos tempos antigos, a punição deles deve ser imediata e pública?

Aphrodite respondeu primeiro:

– Eu concordo.

Shaylin demorou mais. Ela deu alguns passos para mais perto de onde Dallas, Kurtis e Elliott estavam e os analisou. Pela sua expressão, parecia que ela tinha sentido um cheiro ruim, mas não disse nada a eles. Ela voltou para o seu lugar perto de Thanatos e ainda não disse nada. Ficou só olhando para Thanatos por um tempo desconfortavelmente longo. Finalmente, Shaylin respirou fundo e disse:

– Eu acredito que a coisa certa a fazer é concordar com você – então Shaylin abaixou a cabeça. Eu tinha certeza de que ela fechou os olhos e parecia estar rezando, mas eu não tive mais tempo para ficar olhando, pois foi a minha vez de ser chamada.

– Zoey Redbird, como a outra única Grande Sacerdotisa presente, você está de acordo comigo e o meu direito ancestral de condenar esses três pela violência que eles admitem terem planejado e praticado?

Eu me senti como se tivesse recebido a pergunta mais fácil.

– Sim, eu concordo – respondi rapidamente. A pedra da vidência estava queimando a minha mão.

Thanatos levantou os braços. O poder crepitou ao seu redor, arrepiando os pelos do meu pescoço e dos meus braços. A sua voz foi amplificada pelo poder de Nyx, e ela soou como a personificação da Morte.

– Então eu invoco o meu direito como Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Os crimes contra uma Grande Sacerdotisa sob a minha proteção devem ser punidos como nos tempos antigos. Eu ordeno que o meu guerreiro Juramentado execute o vampiro vermelho e depois leve esses dois seguidores para o campo, longe o bastante de qualquer vampiro, para que os seus corpos rejeitem a Transformação e eles também morram!

Eu não tive nem tempo de ofegar. Kalona se moveu como um raio. Ele pegou a espada longa que estava pendurada nas suas costas e, com um único e rápido golpe, cortou a cabeça de Dallas. Stark se desviou quando o corpo dele teve convulsões e o sangue jorrou do coto onde era o seu pescoço. Eu não conseguia parar de olhar para a cabeça de Dallas. Os seus olhos estavam muito arregalados. Ele parecia atordoado. E a sua boca ficava abrindo e fechando sem parar, como um peixe em terra firme.

Kurtis e Elliott berraram e começaram a correr. O imortal alado os apanhou antes que eles saíssem do círculo de pessoas chocadas. Ele os agarrou pela cintura. A multidão se afastou dele, e então Kalona correu para a frente, com passos largos e firmes, batendo as asas enormes uma, duas, três vezes. Então ele e os dois garotos estavam voando no ar. Os garotos esperneavam e gritavam, mas isso não parecia afetar Kalona nem um pouco, e em alguns instantes eles saíram de vista, na direção oeste, dentro da escuridão.

– Silêncio! – a ordem de Thanatos acabou com o barulho como se um interruptor tivesse sido desligado. Foi só então que eu percebi que todo mundo à minha volta, exceto Stark, Shaylin e os membros do Conselho da Escola, estava gritando de horror ou soluçando de choque. – O tempo de fraqueza e brigas internas acabou. A violência contra a nossa Morada da Noite vai ser vingada. A nossa Deusa é misericordiosa, mas ela também é justa, e todos que se voltarem contra ela vão sentir o peso da sua justa ira. Que isto seja um aviso e a minha promessa a vocês: aqueles que ficarem ao lado da Deusa e de mim serão protegidos. Aqueles que se voltarem contra nós serão punidos. Morada da Noite de Tulsa, faça a sua escolha!


17
Zoey

A pedra da vidência ardia na minha mão. Eu sabia por que não havia me dissolvido em lágrimas ou berrado feito uma histérica.

Thanatos estava certa. Estava na hora de todos jurarem lealdade à nossa Morada da Noite e tomarem uma posição definitiva. Nós já estávamos contra muita coisa para ter que ficar lutando uns contra os outros também. Foi isso que ela sempre disse. Era nisso que eu também tinha começado a acreditar.

Dei um passo à frente, tomando cuidado para ficar fora do círculo de sangue de Dallas. Segurando firme a minha pedra da vidência, respirei fundo e orei: Magia antiga, ajude-me... fortaleça-me ! O calor explodiu da pedra da vidência e o poder chiou através do meu corpo. Quando eu falei, o volume da minha voz ecoou as minhas palavras pela multidão:

– O meu círculo e eu escolhemos o caminho de Nyx. Nós estamos unidos a esta Morada da Noite!

Damien e Shaunee foram os primeiros do meu círculo a se juntar a mim. Eles vieram até o meu lado e se curvaram respeitosamente para Thanatos, repetindo as minhas palavras:

– Nós estamos unidos!

Shaylin e Aphrodite deram um passo à frente para ficar ao lado deles. Darius, Stark e Aurox (que eu fiquei surpresa e feliz em ver) juntaram-se a nós. Rodeando-me, os membros do meu círculo colocaram suas mãos em punho sobre o coração e se curvaram respeitosamente, demonstrando a nossa solidariedade.

Isso deu o exemplo. Kramisha, Erik, Johnny B., Ant, Nicole e todos os outros novatos vermelhos de Stevie Rae atravessaram a multidão e vieram para a frente. Percebi que alguns estavam chorando. Outros, como Erik e Kramisha, estavam pálidos de choque, mas todos se curvaram e juraram lealdade à nossa Morada da Noite.

O resto da escola começou a se curvar e a fazer suas promessas de ficar unidos e seguir o caminho da Deusa. Prestei uma atenção especial nos novatos que haviam sobrado do grupo de Dallas. Eles eram fáceis de identificar. Os meninos eram totalmente desleixados e sujos, e as garotas usavam mais delineador do que roupas. Mas agora eles não estavam todos valentões e rebeldes. Eles pareciam assustados. Todos se curvaram para Thanatos. Eu não pude deixar de pensar até que ponto os seus juramentos eram sinceros, porque, afinal de contas, que escolha eles tinham? Imaginei o que eu faria no lugar deles. Eu não ia correr o risco de ser morta de jeito nenhum. Com certeza, eu iria fingir me unir a Thanatos. Mais tarde, porém, a minha escolha poderia ser diferente.

E como se a minha pedra da vidência nunca tivesse se parecido com um forno em miniatura, ela se resfriou, deixando-me tonta e com náuseas, com uma dor de cabeça latejante começando na minha têmpora direita.

Magia antiga era uma coisa assustadora!

– E agora eu ordeno que nós retomemos a nossa vida normal. A escola deve continuar – Thanatos estava dizendo. – Nós vamos ficar vigilantes em relação às forças das Trevas que agem ao nosso redor, mas elas não devem mais agir entre nós. Peço a Zoey e seu círculo que permaneça aqui e se reúna comigo rapidamente. O resto de vocês tem cinco minutos para estar na segunda aula. Professores, cuidem dos seus novatos. Que sejam todos abençoados.

Eu meio que senti como se alguém tivesse acabado de me dar um banho de água fria. Dallas havia sido decapitado. Dois novatos iriam morrer muito em breve, mas não se atrasem para a segunda aula? Como assim? Como poderia ser tão simples continuar o resto do dia como se nada tivesse acontecido?

– Zoey, eu preciso que você trace um círculo – Thanatos veio andando a passos largos na minha direção enquanto a multidão se dispersava silenciosamente.

– Aqui? Agora?

– Sim, aqui. Ao redor do corpo do vampiro. Mas não agora. Espere até que os novatos já tenham voltado para as suas aulas.

– Ok – respondi devagar. – Mas preciso que alguém fique no lugar de Stevie Rae.

– Eu posso substituir Stevie Rae.

Todo mundo se virou para Aurox.

– Por que você? – Stark perguntou antes que eu dissesse qualquer coisa, o que me deixou muito irritada. Era o meu círculo, não o dele!

– Por que não eu? Sei onde fica o norte. Posso segurar uma vela verde e invocar a terra. E quero ajudar Zoey.

– Parece ótimo para mim – respondi sem olhar para Stark. – Damien, Aurox e Shaunee, vocês podem pegar as velas do círculo e os fósforos?

Aurox se curvou respeitosamente para mim antes de os três saírem em direção ao templo de Nyx para pegar o material para o círculo.

– O que está rolando? Por que fazer um círculo agora? Alguém não deveria vir limpar essa bagunça? – Aphrodite perguntou, indicando o corpo de Dallas, sem olhar para ele.

– É exatamente isso o que Zoey e seu círculo vão fazer – Thanatos explicou. – Um vampiro condenado e executado não merece uma pira e as tradições de um funeral. Ele também não deve ser enterrado em lugar nenhum que possa virar um local de adoração para seus seguidores desencaminhados. Os seus restos precisam ser simplesmente destruídos, rápido e em silêncio.

– Oh – eu compreendi. – Você quer que eu trace um círculo e fortaleça Shaunee para que ela possa, bem, ahn... – eu hesitei, sem saber direito como colocar as coisas e me sentindo mal ao pensar no que nós íamos ter que fazer.

– Limpar essa bagunça – Aphrodite concluiu por mim.

– Sim, bem colocado – Thanatos soou como se estivesse falando sobre levar o lixo para fora. – E quanto menos atenção a gente chamar para essa limpeza, melhor. Então, eu agradeço às duas Profetisas por desempenharem os seus papéis com dignidade e sabedoria, mas agora devo insistir para que Aphrodite volte para a aula e que Shaylin se junte a ela logo depois de ter invocado a água no círculo de Zoey.

Aphrodite fechou o cenho. A sala de aula não era o seu lugar favorito no mundo. Eu franzi a sobrancelha para ela – não que ela percebesse –, pensando que eu ficaria feliz de trocar de lugar com ela.

– Venha, minha bela, vamos juntos – Darius pegou a mão dela, e os dois saíram andando na direção do prédio principal da escola.

– Eu vou buscar a minha vela azul e dizer a Damien e aos outros para se apressarem – Shaylin falou. Ela começou a caminhar na direção do Templo de Nyx, então fez uma pausa e se voltou para Thanatos. – Eu li as suas cores. Você estava fazendo o que precisava ser feito. Às vezes, os métodos antigos são os melhores.

– Eu também acredito nisso – Thanatos afirmou.

– Isso não torna o que aconteceu aqui nem um pouco menos horrível – Shaylin continuou.

– Não menos horrível, mas necessário – Thanatos argumentou.

– A escola não está toda do seu lado – Shaylin contou.

– Estou ciente disso.

– Acho que você ficaria surpresa ao saber de todos que estão pensando duas vezes no seu juramento a você e a esta escola – Shaylin disse.

– Mas eu imagino que você possa me revelar isso lendo as cores das pessoas, não é? – Thanatos perguntou.

O meu estômago se revirou.

– Ok, esperem aí – eu intervim. – Sou totalmente a favor de uma frente unida contra as Trevas, mas não sou a favor de que Shaylin seja usada para invadir os pensamentos das pessoas.

– O que você quer dizer, Zoey? – Thanatos pareceu me atravessar com os olhos.

– Que Shaylin não deve ser usada como sua espiã! – eu não sabia exatamente por que essa ideia me incomodava tanto, mas definitivamente me incomodava.

– Se ela estiver trabalhando a serviço de Nyx... – Thanatos começou.

Eu a cortei.

– Nyx concedeu o livre-arbítrio a todos nós. Isso significa que não é contra as regras da própria Deusa que qualquer um de nós questione as escolhas que fizemos e que vamos fazer no futuro. Não há nada de errado nisso. Só um idiota nunca questiona o que dizem para ele fazer.

– Shaylin, as cores de Dallas mostraram a você que ele era perigoso? – Thanatos perguntou a ela, sem desviar os olhos dos meus.

– Eu sabia que ele estava nervoso e era violento. Eu não sabia que ele ia tentar matar Stevie Rae e Shaunee.

– Mas, se Dallas tivesse sido contido por causa do que você viu dentro da aura dele antes desta manhã, Stevie Rae teria sido poupada de muita dor – Thanatos presumiu.

– Contido? Você quer dizer morto, antes que ele realmente fizesse algo? – eu me sentia como se fosse explodir.

– Acho que não foi isso o que Thanatos quis dizer – Stark opinou.

– Eu gostaria de ouvir Thanatos dizer isso – eu falei.

– Nos tempos antigos, só vampiros que de fato cometiam alguma violência contra outros vampiros eram executados – ela afirmou.

– Nós não estamos nos tempos antigos – eu rebati. – E eu acho que não é da conta de ninguém o que as pessoas pensam. Mas você sabe quem achava que era da sua conta escutar o que todos nós pensávamos? Neferet. E eu não gosto do que isso fez a ela.

Thanatos levantou as sobrancelhas.

– O seu ponto de vista foi bem colocado, Sacerdotisa – ela disse.

– Shaylin, vá ver por que Damien e os outros estão demorando tanto – eu ordenei.

Shaylin hesitou só por um instante, então se curvou para mim e saiu apressada.

– Você tem opiniões fortes – Thanatos observou.

– Você também.

– Você vai traçar o círculo e ajudar Shaunee a destruir o vampiro culpado?

– Sim. Eu não quero que ele seja feito de mártir, assim como você – eu respondi.

– Obrigada. Então vou deixá-la com o seu círculo – o olhar dela se voltou para Stark. – Você trabalhou bem hoje, guerreiro. Estou orgulhosa de você. Abençoado seja – ela curvou levemente a cabeça e foi embora.

– Eu juro que ela está agindo a cada dia mais como a Morte – eu falei, observando Thanatos enquanto ela se afastava.

– Z., acho que ela só está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

O meu primeiro impulso foi discutir com Stark, perguntar por que ele não estava ficando do meu lado, mas quando eu realmente olhei para ele vi que as suas roupas estavam rasgadas e enlameadas, e o sangue de Dallas estava respingado por toda a sua blusa e sua calça. O rosto dele estava pálido e tenso, e eu me dei conta de que, apesar de Kalona ter anunciado que havia trazido Dallas de volta para a escola, foi a flecha de Stark que tornou aquela execução possível.

Então Stark havia assistido Kalona decapitar o garoto.

Coloquei meus braços ao redor dele, afundando o meu rosto no seu peito.

– Acho que você está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

– Você está bem, Z.? Eu queria ter contado a você o que Thanatos ia fazer, mas não deu tempo – ele hesitou e então acrescentou: – Eu senti aquela enorme onda de poder que você teve quando levantou a voz. Não foi como você se sente quando o espírito a preenche, então eu imagino que possa ter algo a ver com magia antiga. Estou certo?

Eu fiquei inquieta e desconfortável.

– Bem, a minha pedra da vidência esquentou, e agora eu estou me sentindo acabada. Então, sim, eu acho que isso tem algo a ver com magia antiga.

– Acho que faz sentido, especialmente com Thanatos invocando regras ancestrais e tal.

– Pois é, a gente tinha acabado de falar sobre isso na classe, mas eu queria saber se isso significa que ela está fazendo a coisa certa ou não – eu externei as minhas preocupações em voz alta.

– Ei – ele levantou o meu queixo. – É você que tem a pedra da vidência. Você só tem que se preocupar se você está fazendo a coisa certa. E limpar essa bagunça de Dallas é definitivamente a coisa certa. Ok?

– Ok – eu o beijei. – Como você está?

– Cansado – ele disse. – E toda essa coisa da cabeça de Dallas sendo cortada... bem... Eu sabia o que ia acontecer e achei que estava preparado para isso. Mas... – ele perdeu as palavras e me abraçou com força.

– Stark, eu acho que não há nenhum jeito de se preparar para ver a cabeça de um garoto ser cortada – eu também o abracei forte. – Ei, você deve ir tomar um banho e se trocar. Que tal nos encontrarmos no almoço?

– Que tal nós marcarmos um encontro depois das aulas para não fazer nada além de ficarmos juntinhos e sozinhos, assistindo uma maratona de Big Bang Theory pelo Roku 13 ?

Eu sorri para ele.

– Ninguém além de mim sabe como você é bobo de verdade.

– Eu preciso rir, e Sheldon me faz rir.

– Ok, mas só se você não tirar sarro de mim por eu não entender todas as piadas dele – eu pedi.

– Mas isso é parte do que me faz rir – ele disse.

– Ok. Pode rir da minha cara. Eu vou me sacrificar por você – eu falei brincando.

A expressão dele ficou séria.

– Eu sempre vou me sacrificar por você – ele respirou fundo e então, do nada, afirmou: – Eu não quero que você comece a andar com Aurox.

Eu dei um passo para trás e me afastei dele.

– Do que você está falando?

– Sei que eu disse que dividiria você com Heath, mas eu só falei isso depois que o garoto estava morto, e agora ele está de volta e eu acho que não vou conseguir dividir você com ele, e eu quero que você fique longe dele – ele colocou tudo para fora rapidamente.

– Desculpem pela demora! Alguém colocou os fósforos de ritual na gaveta dos bastões de defumação. Eu pensei que a gente nunca iria encontrá-los. Eu odeio quando as coisas ficam fora do lugar – Damien tagarelou ofegante, com uma aparência exausta, quando ele, Shaylin, Shaunee e Aurox chegaram apressados até nós, com as mãos cheias de velas e fósforos.

– Shaylin me contou o que Thanatos quer, estou pronta – Shaunee disse.

– Há algo errado? – Shaylin perguntou, olhando para mim e Stark com uma concentração desconcertante.

– Não, está tudo bem – respondi. – Stark está de saída para tomar um banho e se trocar. Certo, Stark?

Stark colocou os braços em volta de mim e me puxou para mais perto. Então ele me beijou. Na boca. De um jeito impetuoso e possessivo. Uma das suas mãos desceu pelas minhas costas e parou no meu traseiro, enquanto ele dizia:

– Certo, Z. Eu te vejo mais tarde. Durante o nosso encontro. A sós – ele deu um apertão na minha bunda e então saiu apressado.

Shaylin me entregou a vela roxa do espírito, e eu me controlei para não atirá-la nele. Que diabos eu ia fazer em relação a Stark? Será que ele realmente acreditava que agindo possessivamente e me dizendo o que eu devia fazer ele ia conseguir que eu não tivesse vontade de ficar com outro cara? Caramba, claro que não!

Deixei a minha irritação de lado e forcei um sorriso alegre.

– Então, vamos traçar esse círculo – eu disse. – Todo mundo pronto?

Enquanto íamos para os nossos lugares, eu ignorei o fato de que Shaylin continuava me observando. Então percebi que eu ia ter que assumir a minha posição no centro do círculo, o que significava que eu teria que ficar perto do corpo decapitado de Dallas em meio a cinzas ensopadas de sangue e terra carbonizada. Resolvi que não ia me importar que Shaylin estava me analisando atentamente e que Stark estava agindo feito um babaca. Eu meio que congelei ao chegar perto do sangue, odiando que aquele cheiro fizesse a minha boca salivar, mas aquela visão fez o meu estômago se contrair.

– Não olhe para ele – a voz de Aurox fez com que eu desviasse o olhar daquele corpo sem cabeça horrível. Ele sorriu para mim da extremidade norte do círculo. – Vá até Damien e invoque o ar. Na hora em que você tiver que ir para o centro do círculo, você vai estar fortalecida pelos elementos. Você consegue, Z.

A última parte do que ele disse soou tanto como Heath que os meus olhos se encheram de lágrimas. Pisquei com força para não chorar, assenti e fui na direção de Damien.

E Aurox estava absolutamente certo. Na hora em que fui para o meio do círculo, acendi a minha vela roxa e invoquei o espírito, eu me senti equilibrada e amparada. Não foi difícil liderar Shaunee e forçar uma explosão de chamas no corpo de Dallas. Depois que ele foi reduzido a cinzas, para mim pareceu natural pedir a Shaylin que fizesse a água lavar o local da pira e que Damien fizesse o vento soprar para longe aquele cheiro de queimado. Finalmente, eu usei Aurox como um canal com a terra. Juntos, nós conseguimos que a terra fizesse brotar grama verde onde antes só existia sangue e cinzas.

– Agora está muito melhor – eu disse, parada no meio da grama verde e fofa, inspirando profundamente o cheiro de primavera, depois de fechar o círculo.

Damien pegou o celular na sua bolsa masculina e conferiu a hora.

– Ah, que ótimo! Nós só perdemos metade da terceira aula. Eu amo Literatura e a professora Penthesilea.

– Terceira aula! – Shaunee exclamou. – Para mim é Esgrima. Fui. Vejo vocês no almoço.

Demos tchau acenando para ela.

– Eu queria que já estivesse na sexta aula – suspirei.

– Pensei que você gostasse da aula de Literatura – Damien disse.

– Eu gosto, mas não gosto da aula de Espanhol, que é a quinta. Então, se já estivesse na sexta aula, eu teria perdido o Espanhol – esfreguei a testa, sentindo dor de cabeça e tontura de novo.

– Você está bem? – Shaylin perguntou.

Eu olhei para Shaylin. Ela estava me encarando. De novo. A minha irritação ferveu e o meu estômago roncou. A pedra da vidência começou a esquentar no meio do meu peito, o que só meu deixou mais nervosa.

– Shaylin, pare de ficar me secando! – eu não queria soar tão irritada como as minhas palavras acabaram saindo, e eu não queria de jeito nenhum fazer Shaylin dar um salto como se eu tivesse acabado de dar um tapa nela, mas foi exatamente isso o que aconteceu.

– Desculpe. Eu não tive a intenção – ela falou, quase se encolhendo de medo e se afastando de mim.

Eu suspirei e toquei na pedra da vidência, que estava fria como uma pedra comum.

– Olhe só, eu não quis gritar com você. Eu estou com dor de cabeça e com fome, só isso.

– Bem, Z., você acabou de traçar um círculo. Você precisa se equilibrar. Vá até o refeitório e pegue algo para comer – Damien me aconselhou, acariciando o meu braço. – Eu digo para a professora P. onde você está. Vai ficar tudo bem.

– Você está certo, Damien. Comida com certeza vai fazer bem para a minha cabeça.

– Comida ou refrigerante marrom? – Damien perguntou, sorrindo.

– Refrigerante marrom é comida – eu respondi.

– Zoey, você se importa se eu for até o refeitório com você? – Aurox sugeriu.

– Você não tem que ir para a aula? – eu quis saber.

– Não. Eu só assisto a primeira aula. Depois eu faço a ronda nos jardins da escola.

– Ah, eu, ahn, não sabia disso – eu fiz esse comentário inútil, sem saber se o invejava ou se sentia pena dele.

– De fato, acho que é uma boa ideia Aurox comer algo também. Foi o primeiro círculo dele – Damien fez uma pausa e sorriu para Aurox. – E você foi excelente. Muito bem!

– Ei, obrigado, Damien – Aurox abriu o sorriso, fazendo com que os seus olhos faiscassem de um jeito um pouco familiar demais.

Como olhos da cor da pedra da lua podem me lembrar dos olhos de Heath?

– Zo, você não se importa que eu vá com você, não é?

Eu me dei conta de que eu estava encarando Aurox – enquanto Shaylin, Damien e Aurox me encaravam –, e pisquei.

– Não, tudo bem. Mas você vai ter que se apressar. Vou tentar pegar pelo menos o final da aula de Literatura. Só porque não é Matemática, não quer dizer que eu seja muito boa nessa matéria – eu praticamente saí correndo, com Aurox me seguindo, depois de dar um tchau rápido para Damien e Shaylin.

O refeitório estava deserto, mas eu podia ouvir panelas e frigideiras tinindo lá na cozinha, e um cheiro delicioso tomava conta do ambiente. A minha boca estava salivando loucamente quando Aurox disse:

– Você pode ir pegar as nossas bebidas, que eu vou até a cozinha ver o que está pronto para comer.

Eu concordei sem pensar e fui direto pegar refrigerante marrom. Matei um copo antes de sair de perto da máquina de bebidas. A minha cabeça já estava um pouco mais clara quando eu estava levando dois copos grandes para a mesa em que meu grupo normalmente sentava. Enquanto eu bebia aquela maravilha marrom gelada, eu pensei em como era estranho o fato de alguns lugares mudarem totalmente quando estavam vazios. Tipo, o refeitório normalmente era um lugar barulhento e cheio de estudantes e comida, mas naquele momento, meia hora antes do almoço, parecia maior do que era e quase de outra dimensão, como se fosse possível ouvir os ecos dos espíritos dos garotos que não estavam ali, mas que ainda, de algum modo, estavam me observando.

Isso me deu sérios arrepios.

– Peguei para você queijinho-quente e sopinha de tomate – Aurox sorriu alegremente enquanto sentava no banco ao meu lado, colocando uma bandeja cheia de sopa e sanduíches na nossa frente.

Eu só consegui ficar olhando para ele.

O sorriso de Aurox esvaneceu. Ele olhou para o sanduíche de queijo e a sopa e depois para mim.

– Eu pensei que você fosse gostar. Posso levar isso de volta. Também tem sanduíche de peito de peru com queijo, e a cozinheira me disse que estão quase terminando de preparar a salada Cobb.

– Não é isso. Eu amo queijo-quente. E a sopa.

– Então por que você está assim?

– Queijinho-quente e sopinha de tomate. Por que você falou desse jeito?

Ele enrugou a testa.

– Simplesmente saiu da minha boca. Não é assim que se fala?

– Aurox, é assim que eu falava desde o segundo ano do fundamental. Heath também falava assim. Era o nosso almoço preferido porque a nossa escola fazia um spaghetti muito ruim.

– Psaghetti – ele disse em voz baixa.

A minha mente me disse para falar para ele ficar quieto e comer, mas a minha boca disse:

– Nós só falamos assim quando é bom. A loucura do psaghetti não acontece com spaghetti ruim – eu sabia que estava tagarelando bobagens, mas não conseguia me conter. – Tem também uma música e uma dança sobre a loucura do psaghetti.

– Eu sei.

– O que mais você sabe? – eu me senti quente e fria ao mesmo tempo.

– Que algumas vezes eu quero tanto te tocar que às vezes eu acho que posso morrer se você não deixar – ele afirmou.

Senti um frio na barriga.

– Eu estou com Stark.

– Eu sei, e acho que você tinha que ficar fria quanto a isso.

“Ficar fria”! Quando ele falou isso, soou tão parecido com Heath que eu quase perdi o fôlego.

Nenhum de nós disse nada, então ele levantou a mão devagar na direção da minha, que estava na mesa entre nós. Delicadamente, ele pegou a minha mão e a virou ao contrário. Com um dedo, ele acompanhou suavemente a tatuagem cheia de filigranas que cobria a minha palma.

– Você recebeu essas tatuagens de Nyx – ele disse.

– Sim.

– Você tem mais tatuagens especiais – ele tirou o dedo da palma da minha mão e o colocou sobre o meu rosto, onde ele acariciou o padrão repetido ali.

O dedo dele era quente e deu vida aos meus nervos, de modo que onde ele tocava eu me arrepiava. Ele seguiu a linha do meu pescoço até o decote em V da minha camiseta da BDG, e então começou a seguir o traçado da tatuagem, que se estendia sobre a minha cicatriz, de um ombro a outro.

– Isso quase a matou – ele sussurrou.

– Quase – falei meio ofegante, como se estivesse tentando conversar e correr ao mesmo tempo.

Com os dedos ainda no meu corpo, ele olhou dentro dos meus olhos.

– Você se Carimbou com Heath e ele a salvou. Foi por isso que você não morreu.

– Sim.

– Você bebeu o sangue dele.

Estava muito difícil falar, então eu apenas assenti.

– Zo, eu quero que você beba o meu sangue.

– Heath, ahn, Aurox... – eu gaguejei. – Não posso. Isso iria magoar Stark e...

Perdi as palavras quando ele pegou uma faca e furou a ponta do dedo que tinha tocado meu peito. Uma única gota vermelha brotou. O cheiro do sangue dele me invadiu. Não era humano. Não era de novato nem de vampiro. Era mágico.

Eu lambi a ponta do seu dedo e ele gemeu o meu nome:

– Zo!

Aquele sabor atingiu o meu corpo como uma bomba nuclear. Eu agarrei e segurei com força a mão dele, querendo mais. Fechei os olhos e coloquei o dedo dele na minha boca. Ele se inclinou para a frente, encostando a cabeça na minha.

O sino que indicava o final da terceira aula e o começo do almoço soou. Arregalei os olhos e me dei conta do que estava fazendo.

– Não, isso não está certo! Não. Aurox – balançando a cabeça, eu soltei a mão dele.

Ele estava respirando tão ofegante quanto eu.

– Eu não vou contar a ninguém. Eu nunca vou te trair assim.

Eu queria chorar.

– Se você realmente se importa comigo, vá embora. Por favor.

Ele assentiu, colocou um guardanapo em volta do seu dedo sangrando e saiu rapidamente do refeitório.

Bebi um copo inteiro de refrigerante de uma só vez. Enxuguei a boca. Alisei a minha camiseta. Peguei uma metade de queijo-quente e me forcei a comer. E quando todos os meus amigos se juntaram na mesa, sorri, conversei e deixei Stark colocar o braço no meu ombro possessivamente.

Ninguém sabia que eu estava berrando por dentro. Ninguém.


18
Neferet

Os olhos de Neferet se moveram embaixo de suas pálpebras fechadas enquanto ela revivia o século vinte. Para um período em que ela tinha conseguido tanto poder e o princípio da sua imortalidade, tinha sido realmente um tédio terrível.

Duas coisas foram a exceção: os seus sonhos e a velha mulher. Os primeiros se mostraram mentiras, e a segunda se revelou incrivelmente mais do que a verdade. Era irônico que o seus sonhos fossem a parte que ela mais gostou de revisitar.

Neferet tinha voltado para a Morada da Noite de Tower Grove, onde a escola inteira estava ávida demais por demonstrar preocupação e compaixão com ela. As mortes precoces da sua primeira familiar 14 , a pequena Chloe, e de seu guerreiro haviam sido muito próximas. Todos compreenderam quando Neferet se retirou da vida social e começou a passar uma quantidade de tempo incomum em meditação e oração.

Eles não tinham ideia de que Neferet na verdade passava o seu tempo de oração em um sono profundo e entorpecido, ansiando pelo deus que aparecia para ela apenas quando ela estava inconsciente.

Kalona havia sido esperto. Apesar de ter uma beleza impressionante, ele aparecia nos sonhos dela como o Deus sem Rosto, que pedia apenas que ela revelasse as suas fantasias e permitisse que ele a venerasse.

Não parecia sonho. Mais tarde – depois que era tarde demais –, Neferet percebeu que não andava sonhando, mas sim que Kalona estava entrando no seu subconsciente e a manipulando. Porém, naquele momento, tudo o que Neferet sabia era que o toque imortal dele despertava desejo. Ela continuou a se abrir para ele e, enquanto o seu subconsciente escutava os sussurros dele, Neferet ficava mais forte.

Ela começou a questionar os modos modernos dos vampiros à sua volta. E, basicamente, a acreditar que o seu destino era libertar um deus de sua prisão injusta, para que ela e ele pudessem governar lado a lado, Nyx e Erebus sobre a Terra. Juntos eles iriam anunciar uma nova era, em que vampiros não iriam mais coexistir em uma paz desconfortável e patética com os humanos.

Em silêncio, Neferet começou a tomar providências que iriam mudar a forma das relações entre humanos e vampiros irrevogavelmente. Como o imortal havia dito para ela em seus sonhos: Por que os deuses que caminham sobre a Terra se curvam para aqueles que os deveriam venerar?

Neferet usou a perda do seu guerreiro como uma desculpa para viajar, para não ficar presa ao trabalho enfadonho de ser uma professora. Buscando, sempre buscando o que alimentava os seus sonhos, mas a iludia na vida, Neferet sorriu quando começaram a chamá-la de embaixadora de Nyx, cujas visitas abençoavam cada Morada da Noite de um modo especial.

Neferet pensava em si mesma como uma embaixadora de poder.

Ela usou os seus dons psíquicos para saber o que cada Grande Sacerdotisa queria ou precisava : ser adulada ou desafiada, ameaçada ou elogiada, adorada ou ignorada. E então ela dava exatamente o que elas queriam: informação, um toque de cura, inspiração, excitação... a lista de necessidades e desejos das Grandes Sacerdotisas era interminável. Enquanto Neferet “servia”, ela adquiria reputação na comunidade dos vampiros. Ela se via como um camaleão fascinante e poderoso. Ela aprendeu a fazer com que as pessoas enxergassem nela a característica que cada uma mais respeitava, confiava e venerava em alguém.

E sempre, sempre, Neferet era atraída para o centro da nação – para Oklahoma, para a terra cor de sangue antigo, e para a jovem cidade, Tulsa, onde ela havia enterrado os registros de seu passado humano e para onde os sonhos, os sussurros e o toque de Kalona continuavam a atraindo.

Busque a minha libertação... busque a minha libertação... Os sussurros dele preenchiam os seus sonhos e assombravam a sua vida.

Era o dia 22 de abril de 1927 quando o rico casal humano Waite e Genevieve Phillips fizeram um convite para as Grandes Sacerdotisas comparecerem ao grande baile de gala que eles estavam oferecendo para celebrar o término da construção da mansão que estava sendo chamada de Philbrook.

Neferet se certificou de que estava entre as Sacerdotisas que aceitaram o convite. Ela não tinha interesse por Philbrook, nem pelo casal humano filantrópico e liberal e seus amigos ricos da alta sociedade.

Mas a cidade interessava Neferet. Ela tinha cheiro de petróleo, álcool, dinheiro, sangue e poder – sempre o poder.

Foi o aroma do poder, como a essência dos seus sonhos, que naquela noite a fez sair da festa dos Phillips e começar a vagar pela cidade. Mansões do petróleo recentemente construídas pontuavam a paisagem. Neferet passou por elas sem ser vista. Ela mal olhou para dentro de suas janelas, nem reparou no brilho cintilante dos novos lustres elétricos de cristal. Em vez disso, ela foi atraída para longe das mansões resplandecentes e começou a seguir um pequeno e melódico córrego, que parecia estar sussurrando uma canção para ela.

A mansão apareceu de repente, como se tivesse se materializado especialmente para Neferet. Ela era enorme e ficava no meio de jardins caprichosamente bem cuidados, enfeitados por carvalhos. Neferet se lembrava de ter pensado como era estranho o fato de existir apenas um portão de ferro na entrada da rua, sem muros cercando a propriedade.

Então ela viu a placa e percebeu que, apesar de aparentemente ter sido construído como uma elegante casa de campo europeia, ou talvez até como um castelo, o enorme prédio de pedra era uma escola particular.

Neferet foi atraída para ela antes de ver a velha mulher. Quando ela entrou no campus , o seu interesse definitivamente despertou. Havia dois prédios principais, ambos construídos com uma pedra de textura única. O campus aparentava ser novo, tão novo que parecia escuro e desabitado. Foi quando Neferet perambulava pelo campus inativo que a canção sussurrante que ela estava escutando a noite inteira se tornou realidade e se aglutinou aos seus sonhos.

Primeiro ela ouviu a sonora batida do tambor. Neferet seguiu o som até um lugar no extremo leste dos jardins do campus . Lá o aroma da sálvia e da sweet grass 15 a guiaram até um enorme carvalho, grande o bastante inclusive para esconder a luz de uma fogueira. Ela reparou que vários pássaros enchiam os galhos da árvore. Corvos. Estranho, normalmente corvos não são vistos à noite, ela se lembrava de tê-los identificado e de ter pensado nisso.

Neferet deu a volta na árvore e viu a fogueira.

Então a batida do tambor preencheu a clareira, e toda a atenção de Neferet se concentrou na anciã. Ela estava ajoelhada perto do fogo com um grande tambor na sua frente, no qual batia com um bastão simples enrolado em couro, que ela segurava com sua mão direita. Na sua mão esquerda, ela tinha um machadinho. Depois de algumas batidas, ela cortou um pedaço de uma corda grossa e longa de ervas secas, que estava no chão ao seu lado. O fogo chiou quando consumiu as ervas, soltando uma fumaça com aroma doce.

O vestido da mulher, apesar de amarelado pelo tempo, tinha uma beleza inesperada. As delicadas contas bordadas se refletiam na luz do fogo, e a longa franja ondulava graciosamente a cada batida do tambor. O seu rosto era velho, e o seu cabelo preso em uma trança grossa era completamente branco, mas a sua voz era clara como a de uma garota. Ela começou a cantar, e Neferet foi arrebatada pelas suas palavras.

Ancestral adormecido, esperando para despertar...

Neferet se moveu silenciosamente na direção da velha mulher, enquanto a música pulsava através do seu corpo no mesmo compasso das batidas do seu coração.

Quando o poder da terra sangra em sagrado vermelho

A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar

Ele será levado de seu leito de morte

Neferet deu um passo e entrou na área iluminada pela luz do fogo. A anciã levantou os olhos embaçados, que deviam ser azuis, e parou de cantar.

– Não – Neferet insistiu. – Continue cantando. É uma canção adorável.

A expressão da mulher se endureceu, mas ela continuou:

Pelas mãos dos mortos ele se liberta

Beleza terrível, visão monstruosa

Eles haverão de ser regidos outra vez

As mulheres hão de se curvar à sua misteriosa força

Doce é a canção de Kalona

Enquanto assassinamos com um calor gelado

Kalona! O nome do deus penetrou em Neferet.

– Cante outra vez, velha – ela ordenou.

– Já terminei. Vou embora.

A anciã começou a se levantar, mas Neferet se moveu rapidamente para detê-la. Foi muito fácil pegar o machadinho daquela velha. Foi muito fácil pressioná-lo contra a garganta dela.

– Faça o que eu mando ou vou cortar o seu pescoço e deixar o seu corpo velho aqui para que os pássaros a devorem até os ossos.

A velha mulher fechou os olhos, deu um suspiro profundo e trêmulo e começou a cantar sem parar, até que Neferet teve certeza de que havia memorizado a canção. Só então ela permitiu que a mulher parasse. Só então ela passou a examinar a mente da anciã.

– Você se vê como uma Ghigua. O que é isso? – Neferet perguntou.

A idosa arregalou os olhos. Ela não respondeu, mas a sua mente de repente foi invadida por pânico e palavras estranhas: Ane li sgi, demon, Tsi Sgili, devoradora de almas, assassina de homens. Esse fluxo de palavras foi levado até Neferet em uma onda de medo e horror.

– Você está com muito medo de mim – Neferet sorriu e se sentou mais perto da velha, deixando o machadinho no pequeno espaço entre elas.

– Você escuta o que está na minha mente – a mulher disse.

– Eu consigo escutar mais do que isso – Neferet afirmou. – A sua canção... acho que eu entendo o que ela significa.

– Eu canto essa canção a cada lua nova como um alerta.

– Certamente, para alguns deve ser um alerta. Para mim, é uma promessa – Neferet investigou mais a fundo a mente da velha mulher. – Você não tem medo de mim porque eu sou uma vampira.

– Eu não tenho medo de vampiros.

– Mas ainda assim você tem medo de mim – Neferet falou. – E você canta sobre o meu amante. Deixe-me ver, como é mesmo a canção? A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar. Diga-me, velha, quem e o que é a Rainha Tsi Sgili?

É você, demônio! Tem prazer com a dor! Alimenta-se da morte!

A condenação ecoou da mente da anciã até Neferet, mas ela disse apenas:

– Eu já falei o bastante por uma noite. Agora não vou dizer mais nada – então ela pressionou os seus lábios finos e enrugados, teimosamente.

Neferet sorriu de modo insinuante para ela.

– Ah, mas eu não preciso que você fale com palavras. A sua mente está gritando alto o suficiente. Eu posso capturar tudo o que preciso sem que você diga uma única sílaba, velha.

Mas Neferet não teve tempo para violar a mente da mulher como ela pretendia. Com um grito de guerra estridente, a anciã pegou rapidamente o machadinho e deu um golpe em seu próprio pescoço, abrindo a artéria carótida.

– Não! – Neferet gritou, pressionando a mão contra a carne da idosa, tentando prolongar os seus últimos minutos de vida, enquanto examinava a mente dela, buscando respostas em pensamentos semiformados e em imagens que desvaneciam.

Na sua toca, o corpo de Neferet se contorceu e estremeceu em reação às suas lembranças. A velha mulher havia se sacrificado por nada. A sua mente moribunda ofereceu informação suficiente para que Neferet começasse duas coisas: a busca de um modo para libertar Kalona e a sua transformação de uma Grande Sacerdotisa insatisfeita em uma deusa imortal, a Rainha Tsi Sgili.

Zoey

Eu adorava a sexta aula. Não só porque Lenobia era a professora mais legal de todos os tempos, mas porque era uma aula em que eu montava um cavalo! Eu não conseguia imaginar como isso poderia ser mais perfeito. Hoje parecia que Lenobia sabia que a gente precisava se livrar do estresse. Quando a aula começou, nós entramos na arena e encontramos grandes barris pretos de aço dispostos na forma de um triângulo.

Lenobia veio galopando em Mujaji. A égua negra parou deslizando bem na nossa frente.

– Então, novatos, alguém sabe por que esses barris estão aqui?

Eu levantei a mão.

– Zoey?

– Para uma corrida de barris.

– Exato – ela disse. – Você já participou de uma corrida de barris antes, Zoey?

Eu sorri, um pouco nervosa.

– Bem, mais ou menos. O cavalo de minha avó, Mouse, era um corredor de prova de barris aposentado. Vovó costumava colocar barris para ele treinar. Mesmo quando já estava bem velho, ele se empertigava e corria ao redor dos barris como se fosse um potro novamente. Eu apenas ficava em cima dele e o deixava fazer todo o serviço, mas era divertido.

Lenobia sorriu.

– Essa é uma história adorável e uma lembrança especial, Zoey. Guarde-a com carinho.

– Vou guardar. Eu já guardo.

– E então, alguém mais tem experiência com corrida de barris?

Os outros cinco garotos balançaram as cabeças e se mostraram desconfortáveis.

Lenobia franziu a sobrancelha e resmungou, mais para si mesma do que para nós:

– É tão desanimador estar no meio de Oklahoma cercada de jovens que não sabem nada de cavalos – então ela levantou a voz e continuou: – Não importa. Eu preparei um exemplo bem simples, grande e óbvio para vocês seguirem – ela fez um barulho com a boca para Mujaji, e a égua se moveu para o lado para que Travis, montado em sua égua Percherão, Bonnie, pudesse entrar trotando na arena.

Ele empinou a égua na frente de Lenobia e tocou na aba de seu chapéu para cumprimentá-la.

– Madame, você não acabou de chamar a minha égua de grande e simples, chamou?

Ela acariciou o focinho de Bonnie e deu um beijinho nela antes de responder:

– Eu nunca chamaria essa criatura magnífica de grande e simples. Eu estava falando de você – os olhos dela faiscaram para o cowboy alto e bonitão.

– Bom, então tudo bem, madame – ele disse. – Fico feliz em saber que sou valorizado assim.

A risada de Lenobia pareceu a de uma garotinha, e eu pensei que nunca a tinha visto tão bonita.

– Vá, conduza Bonnie ao redor dos barris para que os garotos vejam – ela bateu de brincadeira na bota de Travis.

Sim, ela definitivamente estava apaixonada.

– Certo, minha garota, vamos mostrar a esses novatos que você não precisa ser um Quarto de Milha para fazer uma prova de barris – ele levou Bonnie até a posição de partida e então a esporeou com força e bateu com o seu chapéu no traseiro enorme dela. A égua Percherão praticamente decolou.

Lenobia explicava o que Bonnie estava fazendo, como ela estava seguindo um padrão de trevo, em um tempo exagerado. Mesmo assim, quando a égua gigante arremeteu pelo centro com Travis a incitando, e o chão da arena pareceu tremer, todos nós a saudamos e aplaudimos.

E isso foi só o começo da diversão. Por quase uma hora, fizemos sem parar a corrida de barris, um de cada vez, com o cavalo escolhido. Persephone era a “minha” égua. Eu adorava cada centímetro de sua bela pelagem ruão. E ela também corria bem! Persephone sabia fazer direitinho o padrão de trevo. Como diria Stevie Rae, eu só precisava ficar feito um carrapato, grudada nela.

Por todo esse tempo – cerca de cinquenta e poucos minutos –, eu esqueci de Neferet, Stark, Aurox, Transformação e magia antiga. Só durante esse pequeno período, eu era uma garota de novo, rindo, montando um cavalo e amando a vida.

Isso acabou rápido demais. Normalmente, tratar de Persephone me ajudava a aquietar a mente. Hoje teve o efeito contrário. Talvez porque eu não tivesse pensado em nada enquanto eu estava montando. Porém, quando eu comecei a pentear a sua crina com a almofaça, os meus problemas rugiram.

Pensar no que Neferet estava armando deveria ser o meu maior problema, seguido por tentar descobrir como a minha pedra da vidência e a magia antiga estavam funcionando – ou não funcionando –, mas o que continuava girando sem parar na minha mente era a situação Heath/Aurox/Stark.

Afe, eu tinha lambido o sangue no dedo do garoto.

Que diabo eu ia fazer agora?

– Bom trabalho hoje, Zoey – a voz de Lenobia me assustou e Persephone levantou a cabeça por causa da minha reação.

Eu acalmei a égua e dei um olhar de desculpas para Lenobia.

– Sinto muito, a minha cabeça não estava aqui.

– Eu entendo totalmente – ela se encostou na portinhola da baia. – Tratar de Mujaji para mim é como tomar um comprimido para dormir. Ela me deixa tão relaxada que até já me aconcheguei na sua baia e dormi ali mesmo algumas vezes.

Eu suspirei.

– É, normalmente eu também me sinto assim quando cuido de Persephone.

– Mas hoje não?

Balancei a cabeça.

– Hoje não.

– Você quer conversar sobre isso?

Eu quase respondi automaticamente algo como “está tudo ok, eu estou bem”. Mas então eu lembrei que ela havia dito que esperou Travis por mais de duzentos anos. Ela devia entender de casos de amor complicados – além disso, Lenobia era mais do que apenas uma professora, ela era minha amiga. Então dei outra resposta:

– Sim, se você tiver tempo, eu realmente gostaria de conversar sobre isso.

Lenobia colocou um fardo de feno dentro da baia e se sentou nele.

– Eu tenho tempo.

Inspirei profundamente, sem saber direito por onde começar.

– Apenas escove a égua e comece a falar. O resto vai vir naturalmente – Lenobia disse.

Segurei a escova macia e comecei a passá-la em Persephone, seguindo o padrão de crescimento do seu pelo lustroso. E comecei a falar.

– Sei que é normal, e até parece ser meio esperado que uma Grande Sacerdotisa escolha mais de um cara, mas eu simplesmente não entendo como elas fazem isso.

Lenobia riu.

– O que foi que eu disse?

– Ah, Zoey, desculpe. Eu não estou rindo de você. É só que eu me esqueci de como você é tão jovem e de como há tantas coisas sobre vampiros que você não entende muito bem.

– Tipo, como fazer para lidar com mais de um cara ao mesmo tempo – eu disse, concordando.

– Bem, talvez. Mas para mim parece que a primeira coisa que você deve entender é que não se espera que Grandes Sacerdotisas tenham mais de um amante ao mesmo tempo. Elas simplesmente têm a opção de escolher mais de um parceiro sem serem julgadas, como uma mulher humana seria na cultura de hoje – Lenobia cruzou as pernas e se encostou na parede da baia, como se estivesse se acomodando para uma longa conversa íntima. – Zoey, pense em como vai ser a sua vida quando você completar a Transformação.

– Se eu completar a Transformação – eu observei.

Lenobia sorriu.

– Eu tenho confiança em você, então vamos dizer quando você completar. Você sabe quantos anos eu tenho?

– Muitos – eu falei sem pensar. – Ahn, desculpe. Não é que você pareça velha nem nada disso.

– Não fiquei ofendida. Eu nasci no ano de 1772.

– Faz muito tempo! – exclamei.

O sorriso dela se ampliou.

– Se o destino for bom comigo, eu provavelmente vivi apenas metade da minha expectativa de vida. Desde 1772, eu só amei um único homem, mas isso foi uma escolha minha, um voto que fiz. A maioria das vampiras encontram diversos amores durante suas vidas. Às vezes, elas já estão envolvidas com um vampiro quando conhecem um novo amor humano. Às vezes, é o contrário.

– Então, não é que se espere que elas tenham vários caras ao mesmo tempo – eu concluí.

– Exato. Trata-se mais de lógica e expectativa de vida. E escolha. Como nós fazemos parte de uma sociedade matriarcal, podemos escolher sem sermos julgadas ou condenadas. Isso a ajuda com o seu problema?

– Bem, sim e não. Obrigada por me explicar essa história de múltiplos parceiros, mas eu ainda não sei o que fazer em relação à coisa Heath barra Aurox – eu respondi, sentindo-me péssima.

– Por que você tem que fazer algo?

– Porque eu já fiz uma coisa. E ignorar isso não é justo com Aurox ou com Stark – suspirei de novo. – Ou, eu imagino, com Heath.

– Então você tomou Aurox como amante, junto com Stark?

– Não! – eu gritei. Então espiei Lenobia por cima de Persephone. Ela estava olhando imperturbável para mim, serena e sem julgamentos. – Mas eu bebi um pouco do sangue dele – eu admiti.

– E como você não é igual a uma novata normal do primeiro ano, isso é muito viciante e excitante para você. Certo?

– Sim, certo – eu reconheci.

– Stark sabe disso?

– Ah, Deusa, não! Ele iria surtar. Ele já está agindo feito um babaca possessivo sempre que Aurox está perto de mim.

– Mas ele sabe que você era companheira de Heath e que a alma de Heath está dentro de Aurox.

– É por isso que ele está agindo feito um babaca possessivo. Aparentemente, Stark não vai aceitar que eu fique com Heath, ahn, Aurox. E Stark pensa que nós mal falamos um com o outro.

– Aurox te atrai.

Ela não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi.

– Sim, atrai. Isso porque Heath está dentro dele. Não é uma coisa consciente. É estranho... e perturbador. Aurox normalmente é apenas um garoto bonitinho, por quem eu não me sinto particularmente atraída nem nada, mas de repente... bang !... eu pisco e ele diz ou faz algo tão igual a Heath que faz o meu coração doer.

– Se você não estivesse ligada a Stark, iria querer ficar com Aurox?

Mordi o lábio.

– Não tenho certeza. Eu amo Heath. Sempre vou amar Heath. Mas Aurox não é realmente o meu Heath.

– Você quer dizer que é como quando Kalona se sentia atraído por você, porque a alma da virgem A-ya está aí dentro, e ele reconhecia a presença dela?

Essa comparação me surpreendeu, mas, quanto mais eu pensava sobre ela, mais aquilo fazia sentido.

– Acho que você está certa. Uau, isso na verdade deixa as coisas mais fáceis para mim. Kalona realmente me queria por causa de A-ya, e eu tenho que admitir que sentia uma atração profunda por ele. Mas não era real. Eu não sou A-ya, e eu escolhi não amá-lo. Aurox não é Heath. Ele não precisa escolher me amar... os resquícios de Heath me amam, só isso.

– Eu vou ter que complicar as coisas para você, mas, para ser justa, você precisa saber que Aurox pode amar você também. Travis é a reencarnação do meu único companheiro, Martin. Ele não tem as memórias de Martin. Na verdade, ele é muito diferente do meu Martin, e ainda assim ele é tão eternamente devotado a mim quanto eu sou a ele – Lenobia sorriu com ternura, e os seus olhos se encheram de lágrimas. – Realmente é possível levar o amor com você, e alguns de nós tem sorte o bastante para encontrar esse amor novamente.

– Lenobia, eu estou superfeliz por você, mas realmente você complicou muito as coisas para mim – eu afirmei.

– Zoey, a sua situação já era complicada. Você quer o meu conselho sobre como eu lidaria com isso?

– Claro que sim – eu respondi.

– Pode ser que isso pareça frio ou até egoísta, mas, se eu estivesse no seu lugar, iria decidir com quem eu realmente queria ficar, sem me preocupar com o que os dois garotos queriam. O único modo de você ficar plenamente satisfeita com a sua escolha é se você fizer a escolha pensando em você, não em ninguém mais.

Abaixei a escova e olhei para ela.

– É mesmo tão simples assim?

– Se você conseguir ser honesta consigo mesma e então seguir em frente até o fim com essa honestidade, sim, é – Lenobia respondeu.

– Você me deu bastante coisa para pensar, mas pelo menos agora eu tenho uma direção – eu falei.

– Você tem que amar e ser verdadeira consigo mesma antes que alguém possa amá-la e ser verdadeiro com você.

O sino que sinalizava o fim das aulas soou. Coloquei a minha mão em punho sobre o coração e me curvei respeitosamente para ela.

– Obrigada, Lenobia.

Lenobia retribuiu com o mesmo gesto tradicional e disse:

– Que você seja sempre abençoada, Zoey Redbird.

– Stark, nós precisamos conversar – eu odiei dizer essas palavras provavelmente tanto quanto Stark odiou escutá-las. Afinal, quem não odiaria? Será que algum pai ou mãe, namorado ou namorada, professor ou chefe já começou uma conversa boa dizendo isso?

– Ok, mas eu pensei que a gente ia assistir Big Bang Theory e, você sabe, passar algum tempo juntos e sozinhos – ele tentou dar aquele seu sorriso metidinho.

– Bem, a gente ainda pode fazer isso. Talvez. Se você ainda quiser, depois que a gente conversar.

– Você está me assustando – ele falou.

Eu estendi a mão para ele. Stark a segurou e se sentou perto de mim na cama.

– Eu preciso dizer algumas coisas que provavelmente vão ser difíceis para você escutar, mas você não precisa se assustar.

– Não preciso me assustar porque, não importa o que seja, eu sempre vou ser o seu guerreiro e Guardião?

Ele parecia muito nervoso. Eu entrelacei os meus dedos aos dele.

– Sim, em parte é por isso, mas em parte também é porque eu te amo.

– Ah, ótimo. Eu gosto dessa parte.

– Eu também – eu afirmei. – Mas eu também preciso gostar de você.

– Mas você acabou de dizer que gosta.

– Não, eu acabei de dizer que amo você. E amo mesmo. Mas você tem feito algumas coisas ultimamente de que eu não gosto muito, e nós temos que conversar sobre isso.

– O que você quer dizer?

Eu tinha decidido que, se ia ser honesta comigo mesma, tinha que ser honesta com Stark. Então eu falei a verdade a ele, diretamente, sem rodeios.

– Eu não gosto como você me trata quando Aurox está por perto. Você age feito um babaca possessivo, e quero que você pare com isso.

Ele tentou tirar a sua mão da minha, mas eu não deixei e continuei:

– O ponto é: eu não acho que você seja um babaca possessivo. Eu gosto de quem você realmente é, e quero que você volte a ser aquele cara, o tempo todo.

– Tudo bem. Que seja.

– Não, Stark. Isso não vai dar certo se você não for honesto comigo e consigo mesmo. Você sempre vai ser o meu guerreiro, mas se você ficar todo na defensiva comigo e a gente não puder conversar sobre os nossos problemas, você vai acabar sendo apenas o meu guerreiro e nada mais.

– É isso o que você quer?

– Sério, Stark, pense um pouco. Se eu quisesse isso, por que a gente estaria tendo esta conversa?

– Então você não está terminando comigo?

– Espero que não – eu falei.

Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse se esvaziando. Os seus ombros desabaram e ele ficou olhando fixamente para o chão sob os seus pés.

– Saber que você ama Aurox está me deixando louco, e eu sinto muito se isso me faz agir feito um idiota. Mas eu não sei o que fazer em relação a isso, porque não suporto pensar em você ficando com ele.

– Ok, em primeiro lugar, eu não amo Aurox. Eu amo Heath. Eu sempre vou amar Heath. Você sabe disso.

– Mas Aurox tem a alma de Heath dentro dele.

– Sim, e eu fico feliz que ele tenha, afinal foi isso que salvou Vovó. Eu sempre vou ser grata a Aurox por isso, mas eu não o amo.

– Você não quer ficar com ele? Mesmo? – Stark levantou os olhos do chão e se virou para mim.

– Eu decidi que não quero ficar com ele. Mesmo – eu afirmei.

– Por que não? – Stark perguntou, mas, antes que eu pudesse responder, ele me cortou. – Não... não importa. Eu não quero saber por quê. Só o que importa é que você não quer ficar com ele. Não quero saber mais nada além disso.

Ok, eu tinha a intenção de contar a Stark que eu havia provado o sangue de Aurox, e que realmente era difícil para mim quando eu vislumbrava Heath dentro dele, e que na verdade eu ainda amava Heath e Stark. Mas, mesmo apesar disso tudo, eu tinha decidido que simplesmente não conseguia lidar com mais de um namorado ao mesmo tempo. Mas eu não consegui dizer nada disso porque Stark me puxou para os seus braços.

– Eu estou tão feliz que você me escolheu! – ele sussurrou.

Senti que ele estava trêmulo, então eu o abracei e sussurrei:

– Eu também.

E então ele de repente estava me beijando com um desejo tão quente que eu nem conseguia pensar no que queria dizer. Eu só conseguia pensar no seu toque e em quanto eu o amava.

Foi só mais tarde, quando o sol havia se levantado e Stark estava roncando ao meu lado, com o braço sobre o meu corpo e a lateral do seu corpo pressionada intimamente contra o meu, que a minha mente começou a funcionar de novo, e eu soube que precisava falar com Aurox.


19
Zoey

Não foi difícil tirar o braço de Stark de cima de mim e sair escondida da cama. Stark estava totalmente apagado. Acho que nem a explosão de uma bomba iria acordá-lo. Mesmo assim, fiquei pensando em como a nova capinha do meu celular era brilhante enquanto eu me vestia e saia do quarto na ponta dos pés. Afinal, uma bomba podia não acordar Stark, mas as minhas emoções em turbilhão provavelmente o acordariam.

Felizmente, não havia ninguém por perto. Apesar de estar no meio da manhã, o céu estava com cor de hematoma e havia um aroma de tempestade de primavera. No caminho para o ginásio, percebi que as glicínias plantadas perto do muro da escola estavam brotando com grandes cachos de flores roxas. Então eu espirrei. Sim, tempestades, flores e alergias. A primavera estava chegando a Oklahoma.

Fui até o ginásio passando pelo estábulo e fiz uma pausa no corredor entre os dois prédios, inspirando profundamente o cheiro de cavalo e feno para tentar manter a calma.

Eu só vou ser honesta. Vou magoá-lo mais se eu ficar prolongando isso e o evitando. Heath entenderia.

Eu bufei e dei risada de mim mesma. Não, Heath não entenderia. Ele iria dizer: “A gente pertence um ao outro, amor!”. E ignorar o fato de que eu estava terminando com ele. De novo.

Kalona estava parado sozinho no corredor ao lado da entrada para o porão.

– Zoey, você está acordada a essa hora – ele colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou rapidamente.

Eu não o tinha visto mais desde que ele cortou a cabeça de Dallas e saiu voando com os dois novatos se debatendo em seus braços. Ele não parecia diferente em nada. Acho que eu não deveria esperar isso dele. Mesmo assim, não pude deixar de ter uma curiosidade mórbida.

– Oi. E então, como foram as coisas com os dois novatos?

– Como deviam ser.

– Eles já estão... você sabe, mortos?

Kalona deu de ombros, fazendo suas asas enormes farfalharem.

– Eu os deixei no meio da Pradaria de Tallgrass. Com essas nuvens cobrindo o sol, pode ser que eles durem um dia. Mas certamente não vão durar mais do que isso.

– Você vai cuidar dos corpos deles?

Ele balançou a cabeça.

– Os coiotes vão fazer o serviço por mim.

– Isso é muito frio – eu comentei.

– A justiça normalmente parece fria. Isso não é uma característica que Thanatos e eu criamos. Julgar, condenar e fazer justiça não é agradável. Não é neste país que o símbolo da Justiça é uma donzela cega segurando uma balança?

– Ahn, acho que isso não quer dizer que ela seja fria. Acho que isso quer dizer que a Justiça não deve se basear na aparência de uma pessoa ou em que ela é, mas sim nos fatos.

– Não entendo a distinção que você está fazendo.

– Não importa – eu desisti. – Eu estou procurando Aurox. Você o viu?

– É o turno dele de patrulhar o perímetro da escola. Se você sair pela porta da frente do ginásio, ele deve passar por lá em breve.

– Ok, ótimo. Ahn, eu agradeço se você não contar a ninguém que eu estava procurando...

Kalona levantou a mão, cortando-me.

– Não vou fazer fofocas para o seu guerreiro.

Eu pensei em corrigi-lo e dizer que não era nada disso, que eu só não queria que os novatos ficassem fofocando sobre mim e Aurox, mas a minha boca não conseguiu formular essa mentira, então eu suspirei e agradeci.

– Sim, obrigada – e então saí apressada.

Também não havia ninguém na parte da frente da escola, e eu encontrei um banco não muito longe da porta do ginásio. Enquanto eu estava sentada esperando Aurox, observei as nuvens carregadas se aproximando e pensei no que Kalona havia dito.

Talvez ele estivesse certo. Julgar os outros não era agradável. Já houve um tempo em que eu teria pensado que julgar os outros era errado, mas eu havia concordado com Thanatos em sua condenação. Acho que eu até concordava com a pena que ela havia determinado. Então, será que isso me tornava uma hipócrita quando, no final de tudo, eu me senti mal e enjoada? Ou será que isso me tornava humana? Ou será que isso me tornava obtusa demais, impedindo que um dia eu possa ser uma Grande Sacerdotisa decente?

– Zoey? Está tudo bem?

Eu não escutei Aurox se aproximando, então foi um choque desviar a minha atenção das nuvens carregadas e ver os seus olhos com o brilho do luar. Eu pisquei surpresa e me chacoalhei mentalmente, tentando me concentrar de novo e pelo menos fazer a coisa certa.

– Sim, tudo bem. Eu só preciso conversar com você. É uma boa hora?

– Claro – ele fez um gesto na direção do banco ao meu lado.

– Ah, sim, sente-se.

Ele se sentou e eu tentei não me inquietar nem arrancar o meu esmalte.

– Parece que vai chover – eu disse. – E acho que acabei de ouvir um trovão ao longe.

– Há um cheiro de raios no ar – ele concordou.

Eu relaxei um pouco. Aquilo era algo que Heath definitivamente não diria.

– Eu nunca tinha pensado que raios pudessem ter cheiro, mas você provavelmente está certo. Raios e trovões andam juntos.

– Zo, o que está rolando?

Os meus olhos encontraram os dele. Heath estava definitivamente lá dentro.

– Eu não posso beber o seu sangue de novo.

– Mas você quer – ele argumentou.

– Aurox, ninguém tem tudo o que quer.

– Mas isso não é tudo, é apenas uma pequena parte do todo.

– Se eu realmente bebesse o seu sangue, a gente ia fazer amor. A gente provavelmente ia se Carimbar. Isso não seria uma coisa pequena para mim, nem para você, nem para Stark.

– Então é Stark. É por causa dele que você não quer ficar comigo – Aurox afirmou.

– Não. É por minha causa. Eu não posso ficar com dois caras ao mesmo tempo.

– E você não vai trocar Stark por mim porque eu não sou Heath.

– Eu não vou trocar Stark por você porque já estou comprometida com ele – eu disse com firmeza.

– É porque eu não sou bom o suficiente para você... por causa do modo como eu fui criado... por causa do que eu posso ser.

Coloquei a minha mão na dele.

– Não, Aurox. Por favor, não pense isso. Você não tem culpa de nada disso, e eu nem penso nisso quando estou com você.

– No que você pensa?

Eu sorri, apesar de estar triste, e continuei a falar a verdade para ele:

– Penso em como estou feliz por você estar aqui. Também penso que você e Heath formam uma boa dupla.

– Você sabe que a gente te ama – ele disse.

– Eu sei – falei baixinho e tirei a minha mão da dele. – Sinto muito.

– E como vai ser agora?

– Vamos ser amigos – eu afirmei.

– Amigos – a palavra soou tão sem emoção quando ele a repetiu.

– Sim, e Stark não vai mais agir feito um louco perto de você – eu garanti.

– Zo, isso porque ele não tem nenhuma razão para agir assim – Aurox se inclinou, deu um beijo na minha bochecha e então, parecendo completamente derrotado, disse: – Você poder avisar Kalona que vou conferir o perímetro da escola de novo?

– Sim, claro... – eu falei enquanto ele saía correndo na direção do muro de pedra da escola.

Eu me levantei, sentindo-me pesada e muito, muito cansada. Bem, eu falei a verdade para ele, mas foi péssimo. Tentei não pensar em nada a não ser em dormir, porque a última coisa que eu queria era que Stark acordasse e perguntasse por onde eu andei e o que tinha feito com que eu me sentisse tão mal. Voltei pelo mesmo caminho até o ginásio e pelo corredor que dava na entrada do porão. Kalona não estava lá. Eu suspirei e olhei dentro do ginásio. Ele também não estava lá. Imaginando que ele estava no porão para dar uma conferida rápida nos garotos adormecidos, eu caminhei sem fazer barulho na direção da escada.

– Sim, andei observando Zoey como eu disse que faria.

Quando eu escutei meu nome, parei porque fiquei surpresa. A voz veio da área do estábulo, da porta meio aberta que separava o corredor entre o ginásio e o celeiro.

– E...? Que merda, será que eu tenho que te perguntar tudo?

Então eu percebi quem estava falando sobre mim e me aproximei lentamente, sem acreditar no que ouvia.

– E as cores dela ficaram muito loucas durante o funeral. Mas eu acho que sei por quê. Não tem nada a ver com ela perder o controle do seu temperamento ou dos seus poderes.

– Shaylin, estou perdendo a paciência. Conte logo o que você viu, só isso.

Houve uma longa pausa. Escutei Shaylin soltar um suspiro, e então gelei por dentro quando a Profetisa falou para Aphrodite:

– Eu vi Zoey olhando para Aurox. Muito. As cores dela estavam loucas. Isso me fez pensar... Então, quando ela e Aurox foram até o refeitório depois do círculo, eu os segui.

– Caraca, Shaylin! Você não é uma Profetisa, você é uma superespiã! – Aphrodite exclamou, rindo. – Diga que Z. e o menino-touro se pegaram.

Mordi o lábio para não gritar.

– Quase. Os dois definitivamente estão atraídos um pelo outro. Ela sugou sangue do dedo dele.

– Para Zoey, isso é praticamente a mesma coisa do que se pegar. Caramba! Isso é muito parecido com o que eu vi. Então, deixe-me adivinhar, as cores dela ficaram loucas? Indicando confusão, frustração e irritação?

– Exato. Principalmente depois que ela...

Eu já tinha ouvido o bastante.

– Calem a boca! – eu gritei. A pedra da vidência no meu peito estava ardendo tanto quanto o meu rosto vermelho. Eu abri a porta com força, fazendo com que ela batesse contra a parede.

– Oh-oh – Aphrodite disse.

– Zoey! Não é o que você está pensando! – Shaylin saiu na defensiva, afastando-se de mim quando eu entrei no aposento.

– Sério? Como isso não é o que estou pensando, se eu acabei de ouvir você contar a Aphrodite que andou me espionando! – eu não pensei. Eu reagi. Segurando a pedra da vidência ardente, levantei a outra mão e pensei como eu queria tanto que Shaylin caísse no chão.

Uma bola de fogo azul saiu da minha mão e derrubou Shaylin. Ela caiu de costas, ofegante e chorando.

Não liguei para o choro dela. Eu me senti bem em fazer com que ela caísse de bunda no chão. Shaylin mereceu.

– Pare! Agora! – Aphrodite entrou na minha frente.

Eu franzi os olhos.

– Você estava falando sobre mim pelas minhas costas!

– E eu vou explicar por que em um segundo. Primeiro, você precisa cair em si. Controle essa merda louca que está rolando com você e acalme-se. Agora – ela olhou sobre o ombro para Shaylin. – Volte já para o porão.

Ainda chorando, Shaylin se levantou com dificuldade e passou correndo por mim.

– E então, o que ela é, a sua pequena Profetisa particular?

Em vez de me responder, Aphrodite observou Shaylin indo embora. Então ela colocou as mãos nos quadris e me encarou.

– Sério? Você quer falar merda para mim depois de usar essa maldita pedra para machucar Shaylin? Você perdeu completamente a cabeça.

– Pedra? – eu pisquei surpresa para ela e então olhei para o meu peito, percebendo que eu estava segurando a pedra da vidência com tanta força que ela estava fazendo a palma da minha mão doer. Assim que eu senti a dor, a pedra se resfriou. Eu a soltei. Sentindo-me confusa, tentei manter o foco no que tinha me irritado: Shaylin espionando a centra entre mim e Aurox. – Eu não estou falando sobre a pedra e não estou falando merda. Quero saber o que você pensa que está fazendo para mandar que eu seja seguida por aí.

– Eu tive uma visão. Era do seu ponto de vista. Você estava fazendo algumas coisas que Shaylin viu você fazer com Aurox.

– Quando você teve essa visão?

– Uns dias atrás. Não importa. O que importa é que...

– Não importa que você tenha escondido de mim uma visão sobre mim por dias?

– Não, o que importa é o motivo. Foi porque eu também vi você perdendo o controle sobre o seu maldito temperamento, sem conseguir controlar essa maldita pedra. E foi exatamente isso o que acabou de acontecer.

– Não, não foi isso o que acabou de acontecer. Eu controlei a maldita pedra. Eu quis derrubar Shaylin, e a pedra fez exatamente o que eu queria.

Aphrodite balançou a cabeça de um lado para o outro.

– Você prestou atenção no que está dizendo? Claro, você deveria ficar irritada com o que acabou de ouvir. Mas a Zoey normal nunca ia querer machucar Shaylin. Aliás, a Zoey normal também nunca falaria “merda” ou “maldita”.

– A Zoey normal nunca ia imaginar que uma das suas melhores amigas ia ficar falando dela pelas costas e mandando espioná-la!

– Eu ia te contar sobre a visão. Eu ia te contar sobre Shaylin. Eu só precisava esperar o momento certo – Aphrodite argumentou.

– Quer saber, Aphrodite? O momento certo não era depois de você falar sobre mim e me espionar. Ah, que se dane. Tô fora – comecei a me afastar dela, mas Aphrodite entrou na minha frente de novo.

– Z., tem mais coisas rolando aqui do que apenas o fato de você estar irritada comigo. Acho que a magia antiga está afetando você, e não de uma forma boa. Nós precisamos conversar sobre isso. Você tem que me deixar contar o resto da minha visão.

– Estou tão cansada de ouvir o que eu tenho que fazer. Saia da frente, Aphrodite – o meu peito estava ardendo quando eu forcei a passagem.

Ela cambaleou para trás, fazendo uma exclamação de choque. Eu não me importei. Já estava cheia dela.

Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que eu tinha que ir. Se eu estivesse com as chaves do meu Fusca, teria dirigido até a casa de Vovó, mas as chaves estavam lá no meu quarto e eu não queria ver Stark naquela hora e contar a ele porque eu estava tão perturbada. Que inferno, se aquilo não tivesse sido durante o dia, eu já teria trombado com Stark, graças à ligação idiota que a gente tinha.

Eu precisava de tempo. Eu precisava de espaço. Eu sentia como se a raiva estivesse fervilhando embaixo da minha pele. Eu não podia fugir disso porque eu não podia fugir de todo mundo me irritando e me dizendo o que fazer. Eu precisava pensar sem ficar sendo incomodada constantemente com chatices!

Mudei de direção, afastando-me dos dormitórios, até chegar ao muro que circundava a escola. O muro que Aurox patrulhava. Que droga! Eu também não queria vê-lo.

Foi então que eu decidi mandar pro inferno os policiais e a sua prisão domiciliar. Eu não tinha matado o prefeito e, se eu precisava dar uma volta fora do campus , eu ia dar uma volta fora do campus ! Comecei a correr para a parte leste do muro, onde havia uma passagem escondida, que eu sabia que não ficava muito longe dali.

Shaylin

Shaylin tentou parar de chorar. Ela não era uma chorona. Ela estava acostumada a não sentir pena de si mesma. Mas desta vez era diferente. Primeiro, aconteceu aquela coisa horrível com Dallas e os dois novatos. Ela sabia o que ia acontecer. Shaylin tinha visto a morte deles nas cores de Thanatos. E ela havia ficado de boca fechada e acreditado que Thanatos estava fazendo a coisa certa.

Depois Shaylin fez exatamente o contrário: ela tinha aberto a boca e fofocado sobre os assuntos pessoais de Zoey porque sentiu que estava fazendo o certo. Bem, Shaylin também tinha sentido que estava se encaixando na Morada da Noite e fazendo um bom trabalho com o seu dom.

Mas isso não podia ser verdade, pois ela se sentiu péssima depois que Dallas foi morto e que a novata mais poderosa do mundo a fez cair de bunda no chão.

Ela tinha se atrapalhado totalmente. Duas vezes.

Shaylin se encolheu no canto escuro do porão onde ela tinha montado a sua cama. Ela se sentou com os joelhos dobrados e o seu travesseiro em cima deles. Ela pressionou o rosto contra a fronha macia para abafar o choro. Mas ela não precisava ter se preocupado. A maioria dos novatos vermelhos dormia durante o dia como se estivessem mortos.

Era isso o que eu devia estar fazendo também, ela repreendeu a si mesma. Eu devia estar dormindo, e não falando com Aphrodite sobre Zoey. Agora elas estão bravas uma com a outra e também comigo! Eu nunca vou entender essa coisa de Profetisa.

Shaylin não pensou no fato de que Aphrodite aparentemente estava certa em relação ao problema do controle da raiva de Zoey. Naquele momento, não importava que Aphrodite estivesse certa. Naquele momento, só o que importava era que parecia que o mundo dela – e os seus amigos – estavam entrando em colapso.

– Ei, Shaylin, o que aconteceu?

Abafando o choro, Shaylin levantou o rosto e viu Nicole em pé ao seu lado, esfregando os olhos, com o cabelo desgrenhado, como se ela fosse uma sonâmbula.

– Na-nada. E-eu estou bem – ela sussurrou e então enxugou o rosto na fronha, forçando-se a parar de chorar.

Nicole sentou ao lado dela.

– Não, você não está bem. Você está se acabando de chorar.

– Shhh – Shaylin pediu silêncio a ela e olhou em volta para conferir se todo mundo ainda continuava dormindo. – E-eu estou bem.

Nicole se aproximou mais dela, de modo que os seus ombros se tocaram, e sussurrou:

– Fique tranquila. Ninguém vai ouvir. Conte o que aconteceu.

Shaylin enxugou os olhos de novo e então falou em voz baixa:

– Eu acho que me atrapalhei usando a minha Visão Verdadeira.

– Ei, você é boa usando a sua Visão. Você viu que eu mudei – Nicole sorriu para ela. – Você devia confiar mais em si mesma.

– Eu devia aprender quando é a hora de abrir a minha boca idiota e quando é a hora de manter a minha boca idiota fechada – Shaylin afirmou. Ela enfiou a mão dentro da sua bolsa, pescou um lenço de papel amassado e assoou o nariz.

– Você não é idiota.

– Se você soubesse que Thanatos ia mandar Kalona cortar a cabeça de Dallas, teria dito alguma coisa?

Nicole fez uma careta.

– Você não pode me perguntar isso. Não consigo ser imparcial em relação a Dallas.

– Você ainda o ama?

Nicole balançou a cabeça rapidamente.

– Não, esse é o ponto. Eu nunca o amei de verdade, e eu sabia como ele era perigoso. Então eu não posso ser imparcial em relação à sua morte.

Enquanto a ouvia, Shaylin deu um pequeno soluço. Nicole colocou o braço ao redor dela.

– Se você está mal por causa do que aconteceu com Dallas, não fique.

– Não foi só isso, apesar de isso ter sido ruim. Eu falei com Aphrodite sobre as cores de outra pessoa, e eu devia ter ficado fora disso.

– Mas Aphrodite também é uma Profetisa. Ela é meio maldosa e louca, mas ainda assim é uma Profetisa. Acho que é normal uma Profetisa conversar com a outra sobre coisas como a sua Visão Verdadeira.

– Eu também pensava isso. Agora não tenho tanta certeza. Eu queria saber exatamente qual é a coisa certa a fazer.

– Acho que várias vezes não há uma única coisa certa a fazer em determinadas situações.

Shaylin levantou os olhos para Nicole.

– Você é muito inteligente.

– Que nada, é só que eu já cometi um monte de erros – Nicole sorriu para ela. – Mas agora eu não errei. Consegui fazer você parar de chorar.

Shaylin tentou sorrir.

– Conseguiu mesmo. Obrigada. E, aproveitando, as suas cores se tornaram muito bonitas.

– Viu só, se você acha que as minhas cores são bonitas, isso prova que você é uma grande Profetisa.

Shaylin estava sorrindo para Nicole quando a novata se inclinou devagar e a beijou nos lábios com delicadeza. Shaylin congelou e arregalou os olhos de choque. Então Nicole se afastou dela e rapidamente tirou o braço do ombro de Shaylin.

– Desculpe – Nicole sussurrou. Mesmo na escuridão do porão, Shaylin percebeu que o rosto de Nicole ficou vermelho. – Não sei por que eu fiz isso. Sinto muito.

Shaylin continuou olhando para ela, observando a beleza suave das suas cores e sentindo ainda o calor macio dos seus lábios.

– Não precisa se desculpar – então ela colocou os braços em volta da cintura fina de Nicole, encostou a cabeça no ombro dela e disse: – Você fica comigo e me abraça?

Nicole colocou o braço de volta nos ombros dela.

– Shaylin, querida, eu fico com você para sempre se você quiser.


20
Kalona

Dez minutos mais cedo

Kalona estava parado perto da entrada do porão esperando Aurox voltar e pensando que o garoto provavelmente ia demorar um pouco, já que Zoey tinha ido procurá-lo, quando sentiu uma coceira quente e familiar sob a pele.

– Erebus – ele resmungou.

– Você disse algo?

Kalona olhou rapidamente para o corredor.

– Aphrodite, o que posso fazer por você? – ele não colocou a mão em punho sobre o coração nem se curvou para ela. Sim, a garota era uma Profetisa de Nyx, mas também era a humana mais irritante que ele já havia conhecido. E Kalona já conhecera muitos humanos.

– Preciso falar com Shaylin. Ela está no porão, certo?

– Todos os novatos vermelhos estão no porão – ele respondeu.

– Menos os dois que você largou no meio do nada para morrerem.

– Você gostaria de fazer alguma consideração a respeito disso?

– Não, só estou afirmando o óbvio. Vou acordar Shaylin. Eu agradeceria se você pudesse nos dar um pouco de privacidade para conversar.

– Como quiser, Profetisa. O seu guerreiro está a uma distância em que pode ouvir os seus gritos, no caso de haver problemas lá embaixo?

– Não preciso de Darius para lidar com os novatos vermelhos. Eu tenho isto aqui – ela deu um tapinha na sua bolsa.

– Você acha que pode apartar uma briga com uma bolsa? – ele quase riu.

– Não, eu acho que posso apartar uma briga com isto aqui – Aphrodite abriu a sua bolsa de couro. Kalona espiou dentro dela e viu um pequeno cilindro preto.

– Você vai jogar esse recipiente de perfume em alguém?

– Ah, por favor, entre neste século. Não é perfume, é um spray de pimenta. Eu estou morando em uns túneis no centro da cidade, embaixo de um porão. Os distritos Brady, Greenwood e outros lá perto estão passando por uma reforma adorável, mas vale a pena andar protegida e estar preparada para tudo.

– Então eu vou lhe dar a privacidade que deseja – ele se curvou para ela nessa hora. Aphrodite era tão irritante que ele quase se esquecia de como ela também podia ser divertida.

Com a sua mão com unhas pintadas de rosa, Aphrodite fez um gesto para que ele fosse embora antes de entrar no porão.

Kalona pensou em chamá-la e contar que Zoey estava ali perto com Aurox, mas então ele pensou melhor. Realmente seria divertido ver o que aconteceria se Aphrodite encontrasse Zoey nos braços de Aurox.

Kalona estava rindo quando saiu do ginásio, passando através do estábulo. Ele parou do lado de fora, recompôs-se e tentou descobrir por qual direção o bastardo do seu irmão iria chegar. Não demorou muito. Receando o encontro, mas resignado por ser inevitável, Kalona se dirigiu ao Templo de Nyx.

Ele não tentou entrar. Na verdade, ele desviou os olhos quando passou pela grande porta de madeira e deu a volta pelo edifício de pedra até a parte de trás do templo. Ele esperava que o seu irmão iria se manifestar, do seu jeito tipicamente espalhafatoso, onde quer que Kalona estivesse. E o prédio iria bloquear a sua luz o suficiente para evitar que todos os professores corressem para lá.

Kalona não teve que esperar muito. A bola de luz do sol que se materializou acima do solo era, de fato, espalhafatosa, mas Kalona não cedeu ao impulso de encobrir os olhos. Erebus saiu dos raios ofuscantes, assentindo e sorrindo ironicamente.

– Parabéns por atender rapidamente ao meu chamado, irmão – Erebus disse.

– Fico perplexo como você finge que eu quero alguma coisa com você. Quem veio até mim foi você. Como diriam no mundo moderno, vivo há séculos sem ligar para você e sem nem pensar em você.

– Sem nem pensar em mim? Mesmo? Pois eu acho que, desde a sua Queda, os seus pensamentos se voltam com frequência para o Mundo do Além.

– Você não é Nyx, irmão. Eu também fico perplexo como você confunde o meu interesse pela Deusa com interesse por você.

Erebus sorriu.

– Pois eu posso acabar com a sua perplexidade facilmente. Nyx e eu somos inseparáveis. Os interesses dela são os meus, assim como os meus são os dela.

– Inseparáveis? Mesmo? – Kalona fez uma cena, fingindo que estava procurando alguém perto do seu irmão. – Será que a Deusa está se escondendo na sua bola de sol? Ah, não. É claro que ela não estaria aí. Pelo que me lembro, a Deusa prefere o toque frio e suave da luz da lua em vez da luz bruta do sol.

– Nyx me enviou aqui!

Kalona sorriu devagar, satisfeito.

– Então seja bem-vindo, irmão, como o moleque de recados da Deusa.

Erebus desfraldou suas asas. Elas se abriram ao redor dele e brilharam como a luz do sol refletida em barras de ouro.

– Eu não vim como um moleque de recados, mas sim como um imortal, Consorte da Deusa da Noite, e eu trago um aviso dela!

– Impressionante – Kalona falou sarcasticamente. – Mas se você não parar de cintilar e de gritar, o seu aviso vai ser testemunhado por todo o centro de Tulsa.

Erebus fechou as asas contra as costas. A sua voz saiu sem aquele volume sobrenatural, mas a sua expressão não perdeu em nada a sua presunção de imortal.

– Você já capturou Neferet?

– Com certeza você me observa o bastante para já saber a resposta a essa pergunta.

– Então você ignorou o édito de Nyx.

– Eu não ignorei nada. Estive ocupado cumprindo os meus deveres como guerreiro Juramentado da Sacerdotisa desta Morada da Noite – Kalona afirmou.

– Você está fora de forma se o fato de executar três crianças pode distraí-lo tanto a ponto de ignorar a ordem de Nyx e de falhar ao perceber que a magia antiga está se manifestando no mundo moderno.

Kalona se recusou a morder a isca de Erebus. Ele não fez nenhum comentário sobre Nyx e apenas disse calmamente:

– Sgiach lida com magia antiga há séculos.

– Sim, Kalona, mas Sgiach é uma Rainha ancestral que vem lidando com magia antiga por todos esses séculos na Ilha de Skye, um lugar dedicado a preservar a magia antiga há muito tempo. Tulsa, em Oklahoma, não é a Ilha de Skye, e não há nenhuma Rainha vampira ancestral aqui com experiência em usar a magia antiga – Erebus falou em um tom professoral, como se estivesse dando uma aula para algum idiota cabeça oca.

– Sei exatamente onde eu estou e quem está comigo. Os meus atos são corretos, ao contrário dos seus. Eu decapitei um vampiro que foi condenado por tentativa de assassinato pela minha Grande Sacerdotisa. Ela não usou magia antiga. Ela simplesmente invocou a lei ancestral. E o vampiro que eu executei não era uma criança – Kalona acrescentou, não gostando do tom de seu irmão, como sempre.

– O garoto mal tinha dezoito anos.

– Se você quer discutir a execução de um assassino confesso, então discuta com Thanatos, o Conselho da Escola, duas Profetisas de Nyx e Zoey Redbird.

– Mas nenhum deles levantou a espada que cortou a cabeça do vampiro, assim como nenhum deles levou dois novatos para a morte certa – Erebus rebateu.

– Eu sou guerreiro Juramentado de Thanatos. Se ela me dá alguma ordem, eu tenho que obedecer.

– É uma pena que você não tenha demonstrado esse tipo de lealdade cega para Nyx quando era guerreiro Juramentado dela – Erebus falou.

Kalona encontrou o olhar âmbar de seu irmão sem se abalar.

– Eu aprendi com os meus erros do passado. E você, aprendeu?

Erebus desviou o olhar.

– Dê logo o aviso que você veio dar e desapareça. Você me cansa – Kalona disse.

– Muito bem, você está avisado de que a magia antiga foi despertada quando leis ancestrais foram invocadas. Nyx adverte que vocês estão lidando com forças que podem não ser capazes de controlar.

– Nyx não deveria dizer isso a Thanatos? Foi a Grande Sacerdotisa dela que começou a lidar com essas forças.

– Ainda é você quem pode ser o fiel da balança em uma batalha entre Luz e Trevas. A Deusa já viu isso acontecer antes perto de você. Os Raven Mockers foram feitos com magia antiga.

Kalona sentiu uma terrível punhalada de culpa, mas disse:

– Os meus filhos foram feitos de estupro e ódio.

Erebus assentiu solenemente.

– Sim. Magia antiga.

– Nyx controla a magia antiga! – Kalona exclamou.

– Você se tornou tão iludido, tão arrogante, que acredita que pode lidar com o mesmo tipo de poder que a Deusa?

– Eu não tenho nenhuma ilusão! Minha mente nunca esteve tão clara desde que eu Caí – Kalona avançou sobre Erebus. – E a minha arrogância não é nada comparada à sua, irmãozinho. Sem mim para dar equilíbrio, é você que acredita que é tão poderoso quanto Nyx.

– Eu estou falando justamente de equilíbrio, irmão. Os touros são magia antiga, e eles deveriam estar eternamente em combate – Erebus afirmou.

– Eu não tenho nada a ver com o touro branco e o touro preto.

– Você acredita mesmo nisso? Você esteve ao lado dela por tempo o bastante para saber que a magia antiga é tão traiçoeira quanto poderosa. Seja sábio! Pense bem! Tome cuidado com os poderes que estão sendo despertados antes que seja tarde demais. Este é o aviso da Deusa!

Kalona franziu os olhos e se virou para outro lado quando a bola de luz do sol engolfou Erebus e desapareceu, deixando uma espécie de purpurina dourada irritante que o imortal teve que limpar das suas próprias asas.

– Nyx! – Kalona falou para o céu. – Ele me chama de arrogante e então desaparece em uma explosão solar de brilho dourado. Eu não entendo como você continua a suportar a presença vaidosa dele!

Uma risada familiar, que sempre fez Kalona se lembrar de uma lua cheia avermelhada, ecoou ao redor de Kalona. Ele fechou os olhos por causa da dor da ausência dela, enquanto a esperança acelerava as batidas do seu coração.

– Você me observa. Eu sei que você me observa – Kalona sussurrou.

A risada esvaneceu. Kalona abriu os olhos. Sentindo-se como se estivesse carregando um grande peso, ele começou a caminhar. Ele precisava voltar para zelar pelos novatos. Isso era uma coisa que ele podia fazer, e fazer bem.

– Nenhum outro novato vai conseguir fazer nada estúpido para depois ser condenado... Não enquanto eu zelar por eles – ele falou seus pensamentos em voz alta.

O que Kalona não disse e não gostou nem de admitir em silêncio para si mesmo foi que ele não conseguia tirar da cabeça os gritos de misericórdia dos dois novatos. Decapitar o vampiro não tinha sido difícil. Dallas tentara assassinar uma vampira e havia sido condenado justamente. Eram os dois novatos que o assombravam. Eram garotos que apenas fizeram uma escolha insensata e seguiram o líder errado, ele pensou.

– Compaixão.

A palavra sussurrada fez Kalona parar.

– Nyx?

– Compaixão.

A palavra foi repetida. Ela foi falada em um tom muito baixo para que Kalona tivesse certeza, mas o afeto, o amor infinito contido nela... Só podia ser Nyx. E então Kalona percebeu onde ele havia parado. Ele estava diante da porta de madeira do Templo de Nyx.

A porta de madeira que havia se transformado em pedra sob o seu toque quando a sua Deusa negou que ele entrasse.

Devagar, como se estivesse atravessando os séculos de espera por ela, Kalona levantou a mão. Ele colocou a palma da mão contra a porta e esperou que ela se transformasse em uma pedra inflexível.

A porta continuou sendo de madeira.

A mão de Kalona tremia quando tocou a maçaneta. Ele a girou e empurrou, e a porta de madeira se abriu, fazendo um som de suspiro de mulher.

Kalona entrou no saguão do Templo de Nyx. Ele ouviu água corrente, mas mal olhou para a fonte de ametistas reluzentes que ficava em um nicho na grossa parede de pedra. Ele passou por baixo de um portal em arco e entrou no coração do templo da Deusa.

O aroma de baunilha e lavanda das velas preenchiam o ambiente com uma fragrância doce e inebriante. Elas estavam em candelabros de ferro suspensos do teto. Mais velas aromáticas estavam em outros candelabros independentes em formato de árvores que ficavam perto das paredes. Candeeiros com o formato de uma graciosa mão de mulher estavam acesos nos cantos do aposento. Uma chama ardia em uma reentrância no chão de pedra. Kalona quase não reparou em nada disso. O seu único foco estava na mesa de madeira antiga no centro do templo. Em cima dela, havia uma primorosa estátua de mármore de Nyx. Kalona avançou de modo hesitante e se ajoelhou diante da estátua. Ele levantou os olhos para a estátua. Ela parecia brilhar. Kalona percebeu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Com uma voz abafada pelas lágrimas, ele falou para ela:

– Obrigado. Eu sei que não mereço me ajoelhar aos seus pés. Pode ser que eu não mereça nunca. Não depois do que eu fiz para nós dois. Mas obrigado por permitir a minha entrada no seu templo – então Kalona abaixou a cabeça e ficou chorando, ajoelhado diante da sua Deusa, por um longo tempo.

Neferet

Neferet se encolheu toda, abraçando os filamentos de Trevas que ainda a cobriam, e então reviveu o final de sua jornada.

Cascia Hall era como os humanos chamavam a escola particular que havia sido construída no meio do centro de Tulsa, naquela terra que dizia tanto a Neferet. A escola humana, apenas para meninos, é claro, havia sido recentemente fundada pelo ramo Agostiniano do Povo da Fé. No ano de 1927, ela não estava à venda. Mas esse fato não preocupou Neferet. O Conselho Supremo não estava pronto para comprar outra escola nos Estados Unidos – pelo menos não na cidade de Tulsa, Oklahoma, que existia em 1927.

Neferet sabia que o tempo estava a seu favor. Nos setenta e cinco anos que levaram para que ela manipulasse, intimidasse, conduzisse e influenciasse o Conselho Supremo a fazer uma oferta para os monges Agostinianos que eles não pudessem recusar, além de indicá-la como a Grande Sacerdotisa da recém-adquirida Morada da Noite de Tulsa, Neferet descobriu a sua verdadeira natureza.

Ela era a Tsi Sgili. Não, ela era mais do que uma simples história de fantasmas dos nativos americanos. Ela era uma poderosa Grande Sacerdotisa cujos dons eram muito maiores do que pareciam. Neferet era a Rainha Tsi Sgili.

Não era de se estranhar que ela tivesse sido tão atraída para Oklahoma. Foi através do povo Cherokee que se fixara lá que Neferet descobriu um aspecto escondido do seu dom intuitivo. Ela não só conseguia ler as mentes das pessoas, como também absorver a sua energia. Mas apenas no momento das suas mortes.

Ela aprendera isso com a velha mulher. Neferet tinha feito mais do que roubar os seus pensamentos enquanto ela morria. Ela havia absorvido o poder da anciã.

A morte se tornou uma droga viciante, e Neferet nunca conseguia ficar satisfeita.

Ela seguira os ecos na mente da idosa e começou a fazer perguntas sobre a Tsi Sgili.

Foi assim que ela aprendeu a própria história. Uma Tsi Sgili vivia afastada da sua tribo. Elas eram poderosas e tinham prazer com a morte. Elas se alimentavam da morte. Elas podiam matar com as suas mentes. Isso era o ane li sgi que a velha mulher havia pensado logo antes de morrer: uma morte causada pela mente de um ser poderoso.

O marido da velha Cherokee tinha inadvertidamente ensinado Neferet a usar melhor o seu dom. Ele foi menos corajoso do que a sua mulher. Pensando em se salvar, ele acabou se abrindo para Neferet. Através das lembranças que ele compartilhou com ela por vontade própria, Neferet aprendeu muito mais sobre a Tsi Sgili. Ela se alimentou das histórias tribais que ele tinha em sua memória e descobriu que era possível entrar em uma mente e fazer as batidas do coração da pessoa pararem enquanto ela se alimentava dos pensamentos, da energia e do poder da vítima, até que ela estivesse completamente seca. Drenar a energia do corpo era muito mais satisfatório do que simplesmente drenar o sangue. E muito mais efetivo.

Como Neferet tinha ganhado mais poder, também começou a sonhar mais com o imortal alado, Kalona. Ele fazia amor com Neferet enquanto ela dormia. Não da forma como os seus amantes inadequados humanos ou vampiros haviam tentado. Kalona possuía o seu corpo e usava a dor como prazer, e o prazer como dor.

Por todo esse tempo os seus sussurros pintaram imagens de um futuro onde eles reinariam como deuses sobre a Terra e anunciariam uma nova era de iluminismo para os vampiros. Onde ela era a sua Deusa e ele era o seu Consorte ardoroso, poderoso e sedutor.

– Mas primeiro você precisa me libertar – ele havia dito enquanto o seu delicioso fogo frio queimava o corpo dela. – Siga a canção até Tulsa, e então você vai completar a profecia e encontrar um meio de me libertar!

Neferet o escutou. Ah, mas ela encontrou muito mais do que um meio de libertá-lo. Ela descobriu como libertar a si mesma!

Ela não tinha compreendido totalmente até tomar posse da sua Morada da Noite em Tulsa. Havia um poder naquela terra que ressoava dentro dela. Estava lá em 1927, e continuou lá depois da virada do século vinte e um.

A terra vermelha a tinha atraído com o seu poder ancestral, mas foi a morte da sua primeira novata que de fato selou o seu destino.

É claro que Neferet já havia testemunhado a morte de muitos novatos antes de se tornar a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Frequentemente ela era chamada para suavizar a passagem de um novato morrendo com o dom do seu toque. Neferet era respeitada pela sua habilidade de acalmar um novato que estava rejeitando a Transformação. Nenhum vampiro nunca imaginou que ela tirava muito mais do que dava. Mas os novatos sabiam disso. Nos seus últimos momentos, enquanto Neferet os segurava em seus braços, eles percebiam que ela se alimentava da sua energia. É claro que nessa hora eles estavam longe de serem capazes de dividir essa informação com qualquer um.

Então, quando a jovem quarta-formanda que havia adotado o nome de Crystal começou a tossir o seu sangue vital, no meio da primeira aula de Equitação de Lenobia na nova Morada da Noite de Tulsa, Neferet foi chamada imediatamente – não apenas porque ela era a Grande Sacerdotisa, mas porque ela era amplamente conhecida por ser capaz de suavizar a dor de quem estava morrendo.

– Afastem-se! Abram espaço! Lenobia, leve os novatos para o ginásio e peça para Dragon Lankford trazer guerreiros e uma maca para a garota – Neferet ordenou quando entrou apressada no estábulo. Então ela voltou sua atenção para Crystal. A novata havia desabado no chão de areia e terra da arena e estava tendo convulsões, sangrando pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.

Neferet não prestou atenção no sangue nem na lama. Ela colocou a novata em seus braços, confortando-a com seu toque mágico, enquanto começou a entrar na mente de Crystal, absorvendo a sua energia vital minguante. Neferet estava preparada para a onda de poder que vinha com a absorção da força vital. Mas ela não estava preparada para o dom puro e delicioso que veio junto com a morte da sua primeira novata.

Na sua toca, o corpo de Neferet estremeceu de prazer ao reviver aquele momento poderoso.

Crystal levantou os seus olhos ensanguentados para ela.

– Não! – ela tossiu, engasgou e conseguiu gritar: – Eu não estou pronta para morrer!

– É claro que está, minha querida. Chegou a sua hora. Eu estou aqui.

– Você não vai me deixar? – a garota suplicou, chorando.

– Você não vai me deixar – Neferet sussurrou quando entrou na mente de Crystal.

A força vital de Crystal inundou Neferet. Tão pura, tão forte, tão doce que era como se a novata não estivesse morrendo, mas sim se transformando em um ser de luz e poder que agora viveria dentro de Neferet.

Neferet se curvou reverentemente sobre o corpo da garota moribunda, aceitando esse novo dom que recebeu junto com a Morada da Noite de Tulsa.

Os guerreiros pensaram que Neferet ficou arrasada com a morte da primeira novata na sua própria Morada da Noite, e que por isso ela havia se curvado sobre o corpo de Crystal, chorando histericamente.

Eles não sabiam que as lágrimas de Neferet eram de alegria, e que ela estava chorando porque finalmente havia reconhecido o seu destino. Rainha Tsi Sgili era um título modesto. Na verdade, ela deveria ser chamada de Deusa Tsi Sgili, pois havia se tornado imortal e um dia iria ocupar o seu lugar entre os deuses e ser venerada como tal!

Mas o seu dom não acabava aí. Mesmo antes de Neferet cumprir a profecia Cherokee e libertar Kalona, os novatos da sua Morada da Noite começaram uma metamorfose junto com ela.

O corpo de Neferet se contorceu. A sua respiração se acelerou enquanto ela prosseguia através dos reinos do tempo e das camadas do seu inconsciente.

Os novatos que morriam na sua Morada da Noite renasciam diferentes, ligados a ela por Trevas e sangue. Neferet acreditava que havia gerado um novo tipo de exército, além de uma nova espécie de vampiros. Essas novas criaturas iriam protegê-la e servi-la quando ela e o seu Consorte governassem a nova era dos vampiros.

Então Zoey Redbird havia sido Marcada, e o que se seguiu foi um passo em falso atrás do outro, uma irritação depois da outra, uma derrota após a outra. Neferet odiava aquela novata e os seus amigos rebeldes com uma paixão que obscurecia todas as suas outras paixões.

Zoey Redbird era a razão pela qual Neferet estava escondida em uma toca, vestida apenas de Trevas e sangue.

Uma deusa não deveria sofrer esse tipo de aborrecimento! Uma deusa não deveria ser impedida de cumprir o seu destino divino!

Como em resposta ao seu turbilhão de emoções, o céu fora da toca rugiu com trovões, e um raio atingiu a terra com uma força que reverberou pela pele de Neferet.

Neferet, a Rainha Tsi Sgili, abriu os seus olhos.

– Eu fui tão idiota! Eu sou uma imortal. Ninguém pode ofuscar a minha majestade a não ser que eu permita. E não vou mais permitir! Mundo, prepare-se para me venerar!

Raios e trovões aplaudiram Neferet e a chuva acariciou o seu corpo, enquanto ela se preparava para sair de seu esconderijo em direção ao futuro, renascida, pronta para abraçar o seu destino.


21
Zoey

No começo, eu não sabia para onde estava indo. Eu só precisava sair dali. Eu me enfiei através da passagem escondida no muro e dei a volta pelo lado sul da escola até chegar rapidamente na Utica Street. Olhei para a minha direita, pensando nas minhas opções. A Utica Square ficava a apenas uma quadra dali. Era domingo de manhã, mas o Starbucks provavelmente estava aberto. Eu podia pedir um daqueles cappuccinos ou frappuccinos com milhões de calorias, sentar lá fora e tentar descobrir o que havia acontecido com a minha vida.

Não. Eu não queria ver ninguém. Eu não queria falar com ninguém. Eu não queria ter que lidar com os olhares que as minhas tatuagens iriam provocar nas pessoas.

Eu não queria lidar com nada nem ninguém.

Um trovão ressoou ao longe, e eu levantei os olhos para o céu, que estava escurecendo.

– Vá em frente. Pode chover em cima de mim. O meu dia não pode piorar muito – eu falei comigo mesma quando atravessei a rua.

Sim, eu estava irritada.

Eu não conseguia acreditar no que Aphrodite e Shaylin tinham feito. Elas deveriam ser minhas amigas! Bem, pelo menos Aphrodite deveria ser minha amiga. Eu pensava que Shaylin e eu estávamos ficando amigas. Quero dizer, a gente havia tido aquela conversa na cozinha dos túneis. Ela se abriu para mim em relação ao uso da Visão Verdadeira. A gente inclusive falou sobre como o seu dom podia ser invasivo. Caramba, a gente tinha feito um trato! E esse trato não tinha nenhuma parte em que ela me espionava e depois fofocava para Aphrodite como uma garotinha do ensino fundamental.

O meu rosto ficou quente só de pensar nela observando a cena entre mim e Aurox no refeitório. Que inferno, o meu corpo inteiro ficou quente! Não era de se espantar que eu a tivesse derrubado no chão. Aphrodite ficou toda chocada com o que eu havia feito, mas foi Aphrodite quem armou toda aquela coisa de espionagem.

Será que Aphrodite era mesmo minha amiga? Ela definitivamente era uma bruxa do inferno quando eu a conheci. Será que ela tinha mudado, ou será que eu esqueci quem ela realmente era e fiquei cega, sem enxergar o que eu não queria ver? Será que eu estava apenas acreditando no que eu queria acreditar em relação a ela?

Que inferno! Será que Aphrodite ainda continuava apenas atrás de poder e popularidade? Será que essa história de espionagem era só uma parte do plano dela para me enfraquecer e depois tomar o meu lugar?

Houve um estrondo no céu, como que ecoando as minhas emoções.

O meu peito queimava quando atravessei outra rua e fiz uma pausa, percebendo que eu havia chegado perto de casas caprichosamente conservadas. Afe, eu havia andado até o Woodward Park. Eu quase me virei e fui embora. Era domingo, quando as pessoas normalmente se aglomeravam lá para tirar fotos com flores, árvores e tal, mas, quando eu olhei para o parque, parecia vazio. Obviamente, a tempestade que se aproximava havia mudado os planos de quem pretendia tirar fotos. Percebi que os narcisos tinham começado a florescer. Eu sempre amava quando os narcisos colocavam as suas cabeças amarelas para fora do gramado. Vovó e eu costumávamos falar sobre como era mágico quando os bulbos da primavera brotavam tão rápido e inesperadamente.

Definitivamente, hoje eu precisava de um pouco de magia da primavera. E seria no Woodward Park!

Sentindo-me aliviada por encontrar um destino, entrei no parque, andando entre os tufos de narcisos por um caminho sinuoso em direção à área ladeada pela Twenty-first Street. Era no alto daquele cume que os arbustos de azaleia eram mais espessos. Eu gostava daquela parte íngreme com caminhos de pedra serpenteando entre os arbustos. Eu podia encontrar um banco entre as azaleias depois de descer o cume e tentar entender todos os meus problemas. E daí se chovesse e eu ficasse encharcada? Pelo menos isso iria manter as pessoas afastadas.

Andei pelo caminho pavimentado, fazendo curvas através de arbustos de azaleia da minha altura. Percebi que os botões de flores já haviam começado a se formar, mas ainda não dava para saber de que cor elas seriam.

Aquela tempestade estúpida provavelmente iria matá-las e elas nunca iriam florescer.

Chutei uma pedra.

Aphrodite tinha mandado me espionar! Eu simplesmente não conseguia esquecer essa traição. Imaginei o que Stevie Rae diria quando eu contasse para ela. Então eu me dei conta de que, se eu contasse isso a ela, também iria ter que contar sobre mim e Aurox no refeitório, e eu não queria de jeito nenhum contar isso para ela nem para ninguém e...

Eu parei.

– Ah, que inferno! Não vou ter escolha sobre contar isso para as pessoas. É claro que Shaylin e Aphrodite não vão ficar de boca fechada.

Eu tinha chegado ao topo das escadas de pedra na parte alta do parque, que davam lá embaixo na área rochosa com espécies de grutas e no lago raso que envolvia o lado oeste do parque.

Eu pensei em me atirar lá de cima, mas constatei que não era muito alto, então provavelmente a queda não iria me matar. E eu realmente não queria me matar. Agora, se Aphrodite estivesse lá, eu podia pensar em atirá-la do cume!

Esse pensamento me satisfez de um modo perturbador.

Desci as escadas até nível da rua. Havia um banco de pedra, não muito longe de onde acabavam os degraus e começava o gramado. Um trovão ressoou novamente. Eu sentei e franzi os olhos para o céu. Sim, definitivamente ia chover em mim. Logo. Suspirei e olhei em volta. De repente essa pequena parte do Woodward Park me lembrou da Ilha de Skye, talvez por causa da chuva iminente. Um inesperado sentimento de saudade de casa me invadiu. Eu deveria voltar para lá. Eu era feliz lá. Ninguém me espionava. Ninguém tentava me matar. E eu poderia perguntar para Sgiach que diabos está rolando com a minha pedra da vidência. Stark podia ir comigo. Eu não teria que ver Aurox todo dia e desejar...

Não! Eu interrompi essa linha de pensamento. Eu não desejava mais nada. Eu já tinha feito a minha escolha. Era só essa droga com Aphrodite e Shaylin que estava bagunçando a minha cabeça e o meu coração.

E eu não poderia fugir para a Escócia. Pelo menos não agora. Eu tinha que ficar aqui, encarar os meus amigos – e ex-amigos – e resolver a confusão que a Morada da Noite tinha virado.

Deusa, isso era deprimente. E irritante. E exaustivo.

Um trovão rugiu, desta vez mais perto. Fugir ou me esconder não estava resolvendo nada. Eu devia voltar para a escola. Talvez eu tivesse sorte e Stark ainda estivesse dormindo, apesar da minha explosão emocional, e eu poderia entrar de fininho na cama e ainda dormir um pouco antes de ter que encarar a tempestade de cocô que estaria me esperando depois do pôr do sol.

Eu tinha me levantado e me virado para subir de volta pela escada de pedra quando vi os dois homens. Eles haviam acabado de sair de trás dos arbustos de azaleia e estavam parados no topo das escadas. Eles pareciam esfarrapados, sujos. As roupas deles não serviam direito. Um deles estava segurando um saco de lixo pendurado no ombro, fazendo-o parecer um Papai Noel anoréxico. Foi ele que me viu primeiro. Ele deu uma cotovelada no amigo e me indicou com o queixo, abrindo um sorriso cheio de dentes podres. O amigo dele assentiu e eles começaram a descer as escadas.

Ah, que inferno.

Eu deveria ter corrido na direção da Twenty-first Street. Essa era a coisa mais inteligente e mais segura a fazer. Eu quase fiz isso, mas então me lembrei de quem eu era e fiquei irritada. Eu não era uma garotinha fraca que as pessoas podiam assustar e humilhar. Eu tinha afinidade com todos os cinco elementos. Eu era uma Grande Sacerdotisa em treinamento. Caramba, eu era quase uma vampira! Será que eu não era capaz de estar no parque em um domingo de manhã sem ser incomodada por ninguém?

Em vez de sair correndo, eu sentei no banco de novo. Talvez ele fossem apenas passar por mim, dizer “bom dia” e só. Talvez.

– Ei, garota, você, ahn, tem algum trocado aí? – o primeiro cara perguntou quando eles terminaram de descer as escadas.

– Sim, a gente podia usar o dinheiro para comer – o segundo cara disse.

Eu estava virada para o outro lado, esperando que eles fossem embora. Então eu empinei o queixo e olhei direto para eles. Eles arregalaram os olhos quando viram minhas tatuagens.

– Sério? Em que planeta vocês acham que é normal dois homens pedirem dinheiro para uma garota que está sozinha em um parque deserto? – enquanto eu falava, senti minha raiva aumentar de novo.

– Ei, qual é a sua? – o cara com o saco de lixo respondeu. – Você é uma vampira. Não é a gente que pode assustar você.

Eu sabia que eles pensavam que eu era uma vampira completa. Eu sabia que isso os deixava com medo de mim.

Fiquei feliz por isso.

– Então, vocês costumam assustar garotas humanas para que elas deem dinheiro a vocês?

Que idiotas!

O segundo cara deu de ombros.

– Se uma garota não quer ser assustada por alguém, não deve ficar sozinha aqui.

– Ah, então é culpa da garota ? – eu fiz a pergunta hipoteticamente, mas o cara do saco de lixo não entendeu.

– Sim, a culpa é da garota!

– Mas não vamos assustar ninguém se a pessoa nos der dinheiro.

– Mas nós não aceitamos cartão de crédito – o cara malvado do saco de lixo riu e deu um tapinha no braço do seu amigo.

– Vocês são uns otários. Quer tal arrumar um emprego em vez de mexer com garotinhas?

– Mexer com garotinhas paga melhor – o cara do saco de lixo respondeu.

– Eu estava sentada aqui, pensando nos meus próprios assuntos. Vocês têm que se lembrar disso. Foram vocês que provocaram isso – eu me levantei. O meu corpo inteiro estava quente. Eu estava realmente irritada. – Sabem de uma coisa? Vocês deveriam ter escolhido outra garotinha para perturbar hoje.

– Ei, a gente não estava perturbando você. A gente só estava passando – o outro cara disse. Ele pegou o braço do seu amigo e começou a puxá-lo para sair dali.

– Relaxe, gatinha. Não aconteceu nada de mais – o cara mau do saco de lixo disse, dando um sorriso sarcástico com seus dentes escuros e quebrados.

Então eles pensavam que iriam sair de fininho e encontrar uma garota normal de verdade para assustar?

Eu sentia como se o meu coração fosse explodir para fora do meu peito.

– Não, hoje vocês não vão! – eu atirei minha raiva neles. Ela era uma bola incandescente de luz azul. Ela se chocou contra os dois homens, levantando-os do chão e arremessando-os contra a parede de pedra do cume.

Eu estava ofegante e me sentindo bem com o que tinha acabado de fazer. Eles iam pensar duas vezes antes de mexer com outra garota! Idiotas!

Um trovão retumbou acima de mim e um raio atingiu o centro do parque, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Foi então que eu percebi que estava segurando a pedra da vidência.

Eu pisquei surpresa e balancei a cabeça. Espere aí, o que tinha acabado de acontecer?

Eu olhei para os dois homens. Eles ainda estavam lá, deitados na sombra do cume rochoso. Eles não estavam gritando comigo nem se recompondo e levantando, nem mesmo saindo correndo porque eu os tinha deixado apavorados.

Eles não estavam se mexendo.

Caramba! Eu tinha usado magia antiga para atacar aqueles homens. Tinha sido a mesma coisa quando derrubei Shaylin. Eu havia feito isso automaticamente, depois que a minha raiva queimando se tornou insuportável. Mas aquela queimação não era a minha raiva, era a pedra da vidência esquentando, penetrando o meu corpo, alimentando-se das minhas emoções e então atacando.

Soltei a pedra e olhei para a palma da minha mão. Uma queimadura com a forma de um círculo perfeito tinha ficado ali.

Confusa, levantei os olhos e vi acima de mim uma fumaça que vinha do meio do parque. O ar estava com cheiro de eletricidade e fogo, e eu me dei conta de que um raio devia ter atingido uma árvore, ou até mesmo um dos edifícios do parque. O Woodward Park estava em chamas.

Os bombeiros chegariam logo. Assim como a polícia.

As minhas pernas estavam bambas e a minha cabeça doía quando eu me aproximei dos homens, olhando para as duas formas caídas na base do cume. Um deles gemeu. O braço do outro se contraiu.

O céu desabou em uma chuva forte, de modo que eu não podia dizer se a umidade era água, sangue ou minhas lágrimas.

Não pensei em nada. Apenas saí correndo.

Não precisei invocar névoa e sombras para me encobrir. A tempestade fez isso por mim. Ninguém reparou em uma garota sozinha, correndo no meio da chuva, fugindo do parque em chamas, principalmente porque vários carros de emergência e a polícia estavam indo para a direção oposta.

Corri em volta do muro da escola e entrei pela passagem escondida. E continuei correndo até chegar dentro do estábulo, ofegante e trêmula. Fui até a selaria e peguei uma toalha limpa. Eu me enrolei na toalha e andei pela longa fileira de baias até encontrar Persephone. Abri a porta e entrei na baia quente e escura. Persephone estava dormindo do jeito que os cavalos dormem: em pé, com uma das patas traseira em repouso, a cabeça baixa e os olhos semicerrados. Ela mal se moveu quando eu coloquei meus braços ao redor do seu pescoço e chorei na sua crina macia e espessa.

O que estava acontecendo comigo?

Aqueles caras no parque tinham sido uns idiotas, mas eles não conseguiriam me machucar. Sim, eles atacavam garotas, assustando-as para que elas lhes dessem dinheiro, mas eles não poderiam me machucar. Eu podia ter ido embora e feito uma ligação anônima para a polícia, dando uma descrição deles e dizendo aos policiais que eles estavam vagando pelo parque ameaçando as garotas. Os policiais iriam afugentá-los.

Em vez disso, eu explodi em cima deles.

Eu nem pensei. Eu não fiz aquilo de propósito. Tinha simplesmente acontecido. A minha raiva havia literalmente explodido neles através da pedra da vidência.

O que Aphrodite estava tentando me dizer mesmo? Alguma coisa sobre a sua visão, magia antiga e eu perdendo o controle sobre a minha raiva. Eu não a havia escutado. Eu a interrompi e acreditei que ela tinha me traído. E deixei que a minha raiva me controlasse.

– Ah, Deusa, isso foi errado... tão errado da minha parte – eu chorei.

Então, entre os meus soluços e o barulho da tempestade que turvava o céu, eu escutei uma sirene. Não era um caminhão dos bombeiros. Não era uma ambulância. Era um carro de polícia. E não estava passando rápido pela escola em direção ao Woodward Park. Aquela sirene estava ficando cada vez mais próxima. O carro devia ter entrado pelo nosso portão e ter estacionado na escola.

Como se estivesse sonhando, eu me desvencilhei do pescoço reconfortante de Persephone. Larguei a toalha. Saí do estábulo e caminhei até a calçada que levava ao saguão de entrada da escola.

A chuva estava me molhando, mas eu não prestei a menor atenção nisso.

– Z.! Aí está você! Que merda, você está ficando ensopada – Stark apareceu correndo atrás de mim, segurando uma grande capa de chuva em cima da sua cabeça.

– Você não deveria estar aqui fora – eu disse sem emoção. – O sol já se levantou. Você vai se queimar.

Ele me deu um olhar estranho.

– Eu estou cansado e não é muito confortável estar aqui, mas as nuvens estão cobrindo o sol o suficiente para que eu não me queime. Bem, pelo menos por um tempo. Z., entre embaixo da minha capa e vamos voltar para o nosso quarto. Sei que tem algo errado com você, mas não sei o que é.

Eu balancei a cabeça.

– Não. Eu tenho que ir até eles – continuei andando na direção da frente da escola. Havia dois carros de polícia, com as luzes ainda piscando, estacionados lá.

– Eles quem? – Stark perguntou, tentando segurar a capa sobre a cabeça dele e a minha.

– Stark, volte para a cama. Você não pode me ajudar nisso.

– Zoey, do que você está falando? O que está rolando?

Coloquei a minha mão na porta da frente.

– Volte – eu repeti. – Você não pode mais me salvar.

Ele pareceu assustado. Muito assustado.

Eu não me permiti sentir nada. Dei as costas a ele e abri a porta.

Thanatos estava lá. Darius também. Assim como Aphrodite. Por um instante, fiquei surpresa ao vê-los, então eu me dei conta de que Aphrodite devia ter ido falar com Thanatos depois que eu saí andando. Essa era a coisa certa para ela fazer. Eu teria feito isso se estivesse no lugar dela. Se eu estivesse pensando como eu mesma, como a Zoey normal.

O detetive Marx estava lá com dois policiais de uniforme.

– Z., você já acabou de fazer a ronda pelo perímetro da escola com Aurox? – Aphrodite falou rapidamente, andando na minha direção. – Eu estava dizendo para Thanatos que estava preocupada com você lá fora nessa tempestade. Há até alertas de tornado na região de Tulsa.

– Não faça isso – eu disse. – Não quero que você minta por mim nunca mais – olhei para Darius. – Não quero que nenhum de vocês minta por mim nunca mais – então encontrei o olhar do detetive Marx. – Por que vocês estão aqui?

– Dois homens acabaram de ser assassinados no Woodward Park. Alguém com poderes sobrenaturais os matou. Com um poder que nenhum humano tem. Foi por isso que eu e os policiais viemos direto para cá – o rosto dele estava com uma aparência severa. A voz dele não tinha nenhuma emoção.

– E eu estava lembrando ao detetive que a nossa escola está em confinamento. Nenhum novato ou vampiro saiu do campus desde a noite em que o prefeito foi assassinado – Thanatos afirmou.

– Eu saí do campus . Eu fui até o Woodward Park. Eu atirei aqueles dois caras contra o paredão de pedra na base do cume. Eu os matei – a minha voz soou tão morta quanto aqueles homens, tão morta quanto eu me sentia.

– Zoey! Por que diabos você diria uma coisa dessas? – Stark segurou nos meus ombros e me sacudiu. – Saia dessa!

Eu o encarei e endureci o meu coração, congelando os meus sentimentos.

– Você precisa ficar aqui. Não quero vê-lo de novo. Não quero ver mais ninguém. Eu fiz isso. Eu mereço isso – eu me soltei dele e me afastei. Enquanto eu ia em direção ao detetive Marx, coloquei a mão na minha pedra da vidência e a puxei, arrebentando a corrente de prata em que ela estava pendurada. Eu a entreguei para Aphrodite. – Não deixe que ninguém, exceto você ou Sgiach, toque essa coisa. Você está certa. Isso despertou, e é do mal – então eu encarei o detetive Marx. – Estou pronta para ir com você.

Ele desviou os olhos de mim e se voltou para Thanatos.

– Eu vou aguardar você entrar em contato com o Conselho Supremo para revogar a sua responsabilidade legal por esta novata, para que eu possa levá-la sob custódia.

– Não – eu falei. – Antes disso acontecer, eu rompi com o Conselho Supremo. Eu não reconheço a autoridade do Conselho Supremo sobre mim. Eu não reconheço a autoridade de Thanatos sobre mim. Trate-me da mesma forma com que trataria qualquer um que confessou ser um assassino.

Ele suspirou profundamente e então pegou as algemas no seu bolso de trás.

– Zoey Redbird, você está presa pelo assassinato de Richard Williams e David Brown – ele fechou as algemas frias nos meus pulsos. – Você tem o direito de permanecer em silêncio. Se renunciar a esse direito, tudo o que disser pode e vai ser usado contra você no tribunal. Você tem o direito de ter um advogado presente ao seu interrogatório. Se não tiver condições de contratar um advogado, um defensor público vai ser designado para atendê-la. Você entendeu os seus direitos?

– Sim. Eu não preciso de um advogado. Eu confesso que matei aqueles dois homens. Eu mereço ir para a cadeia – eu disse, enquanto as palavras “eu mereço... eu mereço...” ecoavam pela minha mente.


22
Neferet

Quando ela finalmente estava pronta para emergir da toca, a chuva banhou Neferet, limpando-a do sangue e da terra que cobriam o seu corpo. Aquela área estava em um completo caos. Apesar da chuva, o fogo estava consumindo o parque acima dela.

Neferet pensou que essa era uma saudação encantadora.

Ela se alimentou da morte e da destruição ao seu redor e usou essa energia para se encobrir.

O seu cabelo ruivo e liso contra o seu corpo parecia um manto vivo. Os filamentos de Trevas fiéis a Neferet, saciados e pulsando de poder, levantaram-na. Como se tivesse ordenado a uma nuvem de tempestade que a obedecesse, Neferet saiu flutuando do parque dentro de um véu de raios, trovões, névoa e loucura.

Ela atirou a cabeça para trás, adorando a carícia que a chuva fazia ao escorrer pela sua pele nua, limpando-a. Ela ergueu os braços, e gavinhas de Trevas se enrolaram neles. Ela riu ao sentir o seu toque frio e perverso.

– Vamos para casa. Nós temos tanto a fazer! – a tempestade que era Neferet passou por sobre a cidade, na direção do centro de Tulsa e da sua cobertura no Mayo. – Ah, mas não tão rápido – ela ronronou para as Trevas que a embalavam. – Nós não vamos jantar? Descobri que estou morrendo de fome!

Os filamentos de Trevas tremeram de excitação, impacientemente aguardando as suas ordens.

Neferet vasculhou a sua própria mente. Buscando... buscando... pervertendo o dom que ela havia recebido tantas décadas atrás.

Ela seguiu a Fifteenth Street no rumo oeste, ainda buscando. Foi na Boston Avenue que ela sentiu uma atração para o norte.

– Para o norte! Em direção àquelas almas deliciosas que fingem ser tão, tão boas! – Neferet estremeceu de prazer. – Todos reunidos tão convenientemente para mim. É como se eles já soubessem me venerar – ela fez um gesto impetuoso indicando um ponto à sua direita. – Levem-me para lá!

Quando chegou à catedral, Neferet ordenou que os filamentos fizessem uma pausa, permitindo que ela absorvesse a perfeição da sua escolha. A construção era realmente magnífica. Ela resplandecia na chuva. As pontas da torre principal pareciam dentes. As pontas das torres mais baixas pareciam mãos levantadas, com garras afiadas e uma superfície de metal lisa e molhada, pronta para ser destruída.

– Soltem-me! Deixem que eu seja vista!

A nuvem de mágica se dissipou. Neferet pousou silenciosamente na calçada.

– Venham comigo, meus queridos! – ela falou para os seus filamentos. – O nosso jejum acabou. Vamos nos fartar como eu mereço!

Neferet subiu os vários degraus de calcário enquanto as Trevas, como a cauda do manto de coroação de uma rainha, seguiam atrás dela. Neferet levantou os olhos. Estátuas projetando-se da parede externa eram deuses dourados montados em cavalos de guerra molhados pela chuva. Eles pareciam lhe dar as boas-vindas.

Abaixo deles, esculpidos em cima das três portas de entrada, havia homens se curvando.

– Para mim – ela falou para as estátuas silenciosas. – Vocês se curvam para mim.

Olhando para cima, Neferet leu as palavras escritas abaixo de cada um dos três grupos de estátuas de devotos: o fruto do espírito é o amor, o júbilo; paz, resignação, gentileza, bondade; sinceridade, humildade, autocontrole.

Neferet deu uma gargalhada.

– Isso vai ser mais fácil do que eu imaginei.

Nua, Neferet entrou na igreja, escolhendo a porta embaixo da palavra resignação 16 . Do lado de dentro, as paredes estavam pintadas em um tom rosa claro, que para Neferet lembrava sangue diluído em uma chuva de lágrimas. Ela pensou que essa era uma cor perfeita. Virando à esquerda, ela seguiu por um corredor curvo até a entrada principal do santuário. As portas estavam fechadas. Neferet sorriu carinhosamente para os seus filamentos de Trevas.

– Sim, por favor, abram as portas.

Os filamentos a obedeceram.

Neferet adentrou no amplo salão oval. Um hino estava em seus acordes finais e, enquanto eles prolongavam o améééém final, Neferet aproveitou a oportunidade para apreciar o cenário antes de ser notada. Era realmente um santuário adorável. Com assentos almofadados violeta claro e vitrais art déco estilizados em cores avermelhadas e em tons de lilás, ela pensou que o local parecia mais um daqueles teatros decorados que proliferaram tanto nos Estados Unidos na virada do último século do que uma igreja. Suas fileiras circulares de assentos afunilando-se até um palco central haviam sido criadas obviamente mais para o drama do que para a adoração.

Neferet sorriu, gostando da ironia.

– Psiu! – um sussurro veio das sombras nos fundos do aposento, enquanto o pastor começava a liderar os fiéis em uma oração repetitiva e entediante. – Com licença. Você precisa de ajuda? – uma mulher gorda e de meia-idade se aproximou de Neferet. Ela estava tão hipnotizada pelo corpo nu de Neferet que nem percebeu as suas tatuagens.

Neferet se virou para ela.

– Sim, eu preciso – Neferet abriu os braços, como se quisesse que a mulher a abraçasse.

Confusa, a mulher deu alguns passos, aproximando-se dela. Neferet atacou com uma velocidade ofuscante, rasgando o pescoço dela com suas unhas feito garras e segurando a mulher quando ela caiu para a frente. Neferet então a abraçou, mas o beijo que ela deu na mulher foi pressionar os lábios na ferida aberta e ensanguentada no seu pescoço. Neferet drenou o seu corpo enquanto se alimentava da sua energia.

Um dos fiéis que estava na parte de trás da igreja gritou.

Neferet levantou os olhos quando as pessoas se viraram na sua direção. Ela soltou a mulher, gostando do barulho surdo que o corpo dela fez ao cair no chão.

Empinando o queixo, Neferet jogou o cabelo para trás e foi para a frente do santuário a passos largos.

– Oh, meus Deus, é uma vampira!

– Ela está nua!

– Ela acabou de matar a Sra. Peterson!

As pessoas começaram a gritar. Algumas até começaram a sair de seus bancos.

Neferet levantou os braços.

– Fechem as portas! E revelem-se para eles!

As sombras ao redor de Neferet ondularam quando as gavinhas grossas feito cobras assumiram formas que os humanos podiam ver. A congregação fez uma pausa, olhando em choque os filamentos de Trevas deslizarem para cada uma das portas e fechando-as como uma teia pelo lado de dentro.

– O que você quer? – um homem de cabelos brancos vestindo um hábito negro enfeitado com veludo escarlate desceu do púlpito e caminhou decidido em direção a ela.

– Eu sou Neferet – ela disse cordialmente. – E quem é você?

– Eu sou o Dr. Andrew Mullins, pastor da Boston Avenue Church. O que significa esta profanação?

– Profanação? – Neferet sorriu. – Ah, eu mal comecei – ela apontou os seus dedos ensanguentados para o corpo da mulher. – Isso ali não pode nem ser considerado um aperitivo.

– Pelo poder a mim concedido pelo nosso Senhor e Salvador, eu exijo que você vá embora deste local sagrado e não machuque mais ninguém!

– Pastor Mullins, apesar de não parecer, eu sou muito mais velha do que você, então deixe-me compartilhar com você algo que aprendi em meus muitos anos de vida: o poder real sempre supera o poder concedido a alguém. Então, eu realmente acredito que vou usar o meu poder real e não vou embora.

– Muito bem. Se você não vai embora, nós vamos! – o pastor disse. Como se estivesse arrebanhando galinhas ao seu redor, o homem gesticulou para que as pessoas fossem até ele, enquanto ele retrocedia, afastando-se de Neferet.

– Sinto muito, mas não posso permitir que vocês vão embora. Nenhum de vocês – Neferet apontou para o pastor. – Tragam-no para mim!

Um filamento grosso como um braço se desvencilhou do tornozelo de Neferet e foi rapidamente na direção do o pastor. Quando o alcançou, a gavinha se enrolou na cintura dele feito um chicote, ferindo-o. As Trevas arrastaram o pastor aos berros até Neferet.

– Ah, acabem com esse barulho ridículo! – Neferet fez um gesto e uma gavinha menor envolveu o rosto do pastor, cobrindo a sua boca, amordaçando-o. – Melhor assim, não? – ela olhou com raiva para a congregação em pânico. – Parem de gritar, a menos que vocês queiram ser amordaçados também!

As pessoas ficaram em silêncio, exceto por soluços abafados.

Neferet se aproximou do pastor.

– Eu gostei do seu hábito. Gosto muito da cor vermelha. Tire-o!

O homem obedeceu com mãos trêmulas, deixando o hábito cair aos seus pés.

Inclinando a cabeça, Neferet o examinou. Ele estava usando por baixo uma camisa branca e uma calça informal.

– Você estava tão grandioso com o seu hábito. Agora você parece um rato pelado – Neferet entrou na mente dele. – Aaaah, não é de se estranhar que você não esteja olhando para o meu corpo. A castidade é tão entediante, não é? Deixe-me livrá-lo desse sofrimento – ela fez um corte no seu pescoço. Ele arregalou os olhos quando ela disse para os dois filamentos: – Sim, vocês podem ficar com esse aí.

As Trevas perfuraram a boca e a cintura do pastor, alimentando-se fartamente, enquanto ele se contorcia em agonia.

– Neferet! Por que você está fazendo isso?

A atenção de Neferet se desviou do pastor moribundo e se voltou para um homem parado na frente do santuário. Reconhecendo-o, ela sorriu.

– Vereador Meyers! Que bom revê-lo – ela falou.

– O-olá, Neferet – ele gaguejou, segurando firme na mão de uma mulher bem-vestida ao seu lado. – Eu estava lá na sua coletiva de imprensa. Você... você disse que era uma aliada dos humanos e contra a violência.

– Eu menti – o sorriso de Neferet se ampliou ao ver a expressão horrorizada do vereador. A mulher ao lado dele soluçou, com a mão sobre a boca para tentar conter os seus gritos. – Você é a Sra. Meyers?

Tremendo e chorando, a mulher assentiu.

– Você está vestida com muito bom gosto. É Armani?

Novamente, a mulher em prantos concordou.

– E o seu tamanho deve ser trinta e seis, certo?

– Si-im! Pegue minhas roupas! Mas nos deixe ir embora, por favor – ela implorou.

– Ah, como você pediu educadamente! Tire o seu vestido e traga-o para mim, e eu posso pensar no seu pedido.

– Neferet, por favor, não machuque... – o marido dela começou.

Neferet entrou na mente dele e ordenou que o seu coração parasse de bater. O vereador Meyers ofegou e desabou no chão.

A sua mulher berrou.

Neferet suspirou.

– Sra. Meyers, eu acho tão desanimador que hoje em dia ninguém mais parece ser capaz de obedecer a ordens simples. Você não acha?

– Você pretende matar todos nós?

Neferet desviou o olhar da histérica Sra. Meyers e se voltou para uma mulher de meia-idade atraente que havia entrado no corredor central. Ela empinou o queixo e encarou Neferet, sem mostrar nenhum sinal aparente de medo.

Neferet ficou intrigada.

– E quem é você?

– Karen Keith, outra representante de Tulsa. Eu também estava lá no dia em que você deu a sua coletiva de imprensa e prometeu se aliar à nossa cidade.

– Aaaaah, outra política. Que delícia!

– Você não respondeu a minha pergunta. Você vai matar todos nós?

– Perdoe-me, Karen. Posso chamá-la de Karen?

– Prefiro que não.

Neferet ergueu a sobrancelha, surpresa.

– Você tem uma energia adorável, Sra. Keith. Você vai ser o meu prato principal.

Gavinhas de Trevas começaram a deslizar na direção dela.

Karen Keith não se retraiu quando elas se enrolaram ao seu redor. Ela encontrou o olhar de Neferet e afirmou:

– Depois disso, todo mundo vai saber o monstro que você é.

– Não, Sra. Keith, todo mundo vai saber a deusa que eu sou.

Karen Keith morreu sem gritar, mas as pessoas em volta dela berraram e começaram a se lançar contra as portas fechadas em pânico.

– Bem, acho que é esperar demais ter uma conversa durante o jantar – Neferet disse. Ela levantou os braços. – Matem todos, mas cuidado com o vestido Armani!

Neferet e os seus servos das Trevas atacaram a congregação de fiéis. Eles se alimentaram sem parar, fartando-se de sangue e energia roubada, até que o santuário virou um cemitério.

Neferet se banhou nas bacias de água benta e usou o hábito com detalhes escarlate do pastor para se secar. Então, vestida de Armani e pulsando com um poder glorioso, ela saiu da Boston Avenue Church.

Tinha parado de chover. O céu estava novamente azul claro. O ar cheirava a primavera. Neferet limpou uma última gota de sangue no canto dos seus lábios carnudos. Sorrindo, radiante, Neferet apontou para o Mayo.

– Levem-me para casa. Estou com tanta saudade da minha cobertura...

Pulsando e completamente saciados, os seus filamentos a levantaram gentilmente. Envolta em Trevas, Neferet flutuou, invisível, através do centro de Tulsa, enquanto a frase “eu mereço... eu mereço...” ecoava na sua mente.

A estátua dourada de calcário no meio da entrada da igreja estremeceu, alterou-se e, em meio a uma rajada de vento fétida, o touro branco se materializou. Quando ele emergiu do revestimento da igreja, os seus cascos faiscaram, fazendo o chão tremer. Ele bufou, olhando para a direção em que Neferet havia desaparecido.

– Agora, minha cara impiedosa, isso me surpreendeu...

 


NOTAS


1 Personagem de O Mágico de Oz. (N.T.)
2 RED Valentino é a marca jovem da grife Valentino. RED é uma sigla para Romantic Eccentric Dress (roupas românticas e excêntricas, em tradução livre). (N.T.)
3 Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)
4 Broken Arrow (flecha quebrada, em inglês) é uma cidade da região metropolitana de Tulsa. (N.T.)
5 Éon é um período de tempo que corresponde a um bilhão de anos. (N.T.)
6 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)
7 Bosque da torre. (N.T.)
8 Merry meet, merry part and merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
9 Aphrodite se refere ao filme Gata em Teto de Zinco Quente (1958), estrelado por Elizabeth Taylor e baseado na peça homônima de Tennessee Williams. (N.T.)
10 Trocadilho com o jogo Angry Birds. (N.T.)
11 Marca do copo vermelho de plástico tradicional nas festas de adolescentes norte-americanos. (N.T.)
12 Ato falho. Por exemplo, quando uma pessoa diz algo que não deveria por causa de um desejo do seu inconsciente. (N.T.)
13 Marca de set-up box , dispositivo que permite assistir na televisão a vídeos da internet por streaming , similar ao Apple TV. (N.T.)
14 No Paganismo, os familiares são animais associados a bruxas ou bruxos. (N.T.)
15 Erva-doce americana, da espécie Hierochloe odorata. (N.T.)
16 Em inglês, long-suffering , cuja tradução literal seria “sofrimento longo”, mas que significa resignação, paciência ou a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar. (N.T.)

16
Stark

– Você tem certeza de que ainda estamos seguindo o rastro dele? – Stark perguntou para o imortal alado, entre uma respiração ofegante e outra, depois de correr atrás de Kalona.

– Você não consegue farejar o sangue dele? – Kalona olhou por sobre o ombro e então, percebendo que Stark obviamente estava com dificuldade para acompanhá-lo, diminuiu o ritmo e apontou para um gramado bem cuidado, por onde eles estavam passando. – Ali, veja onde o sangue do vampiro respingou no chão, ou seja, ele ainda está sangrando. O meu filho fez bem em arranhar a cabeça dele com suas garras. Feridas na cabeça sangram com facilidade e são difíceis de estancar.

– Sim, principalmente se a pessoa está se movendo tão rápido quanto ele – Stark enxugou o suor na sua testa enquanto corria ao lado de Kalona. – Quem diria que Dallas podia correr assim? Eu achava que com certeza a essa hora a gente já o teria alcançado. Ele não tinha tanta vantagem sobre nós. O garoto sabe se mexer. Sempre pensei nele como um daqueles garotos que vivem grudados em videogames: bonzinhos e fracos, a menos que eles estejam fingindo ser Zorg do Planeta Org, quando eles podem destruir universos inteiros com os seus dedos gordos.

Kalona franziu a sobrancelha.

– Às vezes o mundo moderno ainda me deixa confuso, mas eu posso explicar por que Dallas está se movendo tão rápido. Ele está fugindo para salvar a sua vida.

– Ei, Thanatos disse claramente que você não deveria matá-lo.

– Isso é uma pena. Seria justo que eu terminasse o que meu filho começou – Kalona afirmou.

– Não posso dizer que eu discordo de você – Stark falou.

Kalona levantou a mão, fazendo Stark parar. Eles estavam seguindo o rastro de Dallas, que ia sempre na direção oeste, e tinha dado diretamente na movimentada Riverside Drive.

– Ali – Kalona apontou do outro lado da avenida, onde a superfície do Arkansas River reluzia à luz da lua. – Ele pensa que usar a água para levar o cheiro do seu sangue rio abaixo vai apagar o seu rastro.

– Pensa? Você quer dizer que isso não vai funcionar?

– Comigo não vai. O sangue ainda está caindo dele. É ele que eu farejo, com tanta certeza quanto farejo o seu rastro.

– Hum. Que ótimo – Stark disse.

Ao atravessar as quatro pistas da Riverside Drive atrás do imortal, Stark ficou feliz por estar frio e tarde da noite, assim não havia ciclistas e corredores por ali. É claro que Kalona estava usando um sobretudo, mas aquelas asas não eram exatamente imperceptíveis.

Kalona fez uma pausa depois que eles atravessaram a ciclovia, abaixando-se para olhar a folhagem mais de perto.

– Foi aqui que ele desceu para o rio.

Stark olhou para as plantas e farejou, tentando sentir o cheiro ou ver o sangue de Dallas. Só o que ele sentiu foi o aroma do rio turvo e cheio de peixes. Mas o imortal parecia seguro de si, então Stark deu de ombros e o seguiu até o rio. Quando eles chegaram à margem, Kalona parou novamente. Desta vez ele se agachou. Ele parecia estar inspirando profundamente o ar, enquanto olhava fixamente para a água que corria vagarosamente. Estava muito seco desde a tempestade de gelo de dezembro, e o rio estava raso, com grandes bancos de areia entre as águas preguiçosas.

– Eu não sabia que você era tão bom em seguir rastros – Stark se agachou ao lado dele.

– Eu passei éons rastreando seres do mal que tinham muito mais capacidade de se esconder do que esse vampirinho. Isso não se esquece facilmente – Kalona contou.

Stark o observou de canto de olho e se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Kalona havia feito para a Deusa antes de Cair. E se ele era tão bom no seu trabalho, tanto que muitos séculos depois ele ainda podia rastrear assustadoramente bem, por que ele tinha Caído afinal?

– Lá! – Kalona apontou. – Você o vê ali, na tora perto da margem mais distante?

Stark sorriu.

– Eu não preciso ver uma coisa para atingi-la. Só me dê um pouco de espaço e se prepare para pegar o idiota depois que eu acertá-lo, porque agora eu preciso fazer algo em que eu sou assustadoramente bom – ele se levantou, encaixou uma flecha em seu arco e puxou a corda para trás. Que a flecha atravesse a coxa do vampiro chamado Dallas. Stark se concentrou em seu pensamento específico, em seu objetivo, e soltou a flecha.

A flecha fez a corda do arco vibrar e foi disparada assobiando pelo ar, invisível mas mortal.

– Aaaaah! – o grito de Dallas atravessou a água facilmente.

Stark deu o seu sorriso metido para Kalona e falou:

– Pode ir buscar.

Zoey

A primeira aula não foi daquelas que parecem que não vão acabar nunca. Eu normalmente gostava da aula especial de Thanatos. Ela não era a professora mais divertida da escola (ahn, esse deveria ser Erik), mas ela era superinteligente e nos deixava fazer perguntas sobre praticamente qualquer coisa – desde que nós fôssemos respeitosos com ela e com os outros. Eu me revirei na minha cadeira e olhei para trás. Dallas, é claro, não estava na sala. Que eu soubesse, Stark e Kalona ainda não tinham voltado para o campus , com ou sem ele. Mas todos os outros novatos vermelhos estavam lá. Os garotos que não faziam parte do grupo de Dallas, como Shaylin, Kramisha, Johnny B., Ant e o resto dos novatos vermelhos de Stevie Rae, estavam sentados na frente da classe, logo atrás da primeira fila, onde o meu círculo, Aphrodite e eu estávamos. Nicole havia chegado junto com Shaylin e estava sentada ao seu lado. Ela tinha ignorado totalmente os seus ex-amigos, que a ficaram encarando como se ela fosse uma aberração quando passou por eles.

Hoje Aurox não estava sentado sozinho no canto mais distante da sala. Na hora em que estava entrando, ele ficou hesitante ao começar a passar por nós. Damien então acenou para ele e disse que os dois assentos ao seu lado estavam livres, já que Rephaim estava na enfermaria com Stevie Rae. Aurox fez uma pausa para olhar para mim. Eu meio que dei de ombros e meio que assenti, então ele agradeceu Damien e sentou ao seu lado. Ou seja, só Aphrodite e Damien ficaram entre nós dois. Eu conseguia vê-lo fazendo anotações depois que Thanatos começou a aula, falando sobre os cinco rituais mais importantes abordados no Manual do Novato.

Hum. Talvez Aurox fosse um bom aluno. Isso não seria nada parecido com Heath. Pensar isso me deu vontade de rir – como um princípio de histeria, não uma risadinha engraçada –, então eu tossi para disfarçar.

– Você está bem? – Shaunee me perguntou em voz baixa. Ela estava sentada do meu lado esquerdo, e percebi que a deixei preocupada.

– Totalmente. Só uma coceira na garganta – eu a tranquilizei rapidamente.

Thanatos havia se virado para a lousa digital interativa e estava mostrando uma foto de uma faca ornamental. Do fundo da sala, uma bola de papel amassado foi atirada na minha mesa. Percebi que havia algo escrito nela. Franzindo a testa, eu a desamassei e li: QUE XATO QUE VCS NAO MORRERAM.

Aphrodite pegou rapidamente o papel e o amassou de novo, guardando-o na sua bolsa.

– Ignore-os – ela sussurrou. – Até eu consigo escrever com menos erros do que eles.

Os novatos vermelhos de Dallas não estavam agindo como babacas tão abertamente quanto faziam quando Dallas estava lá abrindo o caminho. Em vez disso, eles eram como uma pilha de irritação silenciosa cozinhando em fogo brando. Eles não respondiam nenhuma das perguntas de Thanatos e não faziam nenhum comentário durante a exposição dela. Eles só faziam coisas maldosas, como jogar bolas de papel quando ela estava de costas. E eu podia jurar que estava sentindo os olhinhos vermelhos deles me encarando. Eu olhei por sobre o meu ombro.

– Pare de olhar para eles – Aphrodite sussurrou enquanto Thanatos entregava cópias do Manual do Novato para todos nós. – Eles querem atenção. Não dê isso a eles.

– Eu queria saber se Dallas já foi pego – eu sussurrei de volta.

– Ele vai ser pego. Ele não é esperto o bastante para escapar de Kalona – ela disse.

– Eu gostaria de discutir o segundo dos Rituais Maiores abordado nesse capítulo do Manual do Novato, o Ritual de Proteção de Cleópatra – a voz imponente de Thanatos chamou a nossa atenção para a frente da classe. Ela apontou para a lousa digital e para as imagens de adagas ornamentais. – Quem pode me dizer como elas são chamadas quando são usadas apenas para rituais e feitiços?

Damien levantou a mão rapidamente.

– Damien?

– Athame – ele respondeu.

– Eu sabia disso – Aphrodite sussurrou.

– Certo. Obrigada, Damien – Thanatos agradeceu. – Vocês vão perceber que, nas mais puras e antigas formas de Ritual de Proteção, o fogo é tradicionalmente o elemento invocado – ela curvou levemente a cabeça e sorriu para Shaunee, que assentiu entusiasmada para ela. – Como nós temos a sorte de ter nesta escola uma novata com afinidade com o fogo, talvez ela possa nos dizer o que é de suma importância em um Ritual de Proteção tradicional.

– Ah, isso é fácil! O mais importante é a Grande Sacerdotisa que conduz o ritual. Apesar de o fogo ser uma proteção incrível, ele é apenas tão forte quanto a Sacerdotisa que faz o feitiço – Shaunee disse.

Eu fiquei superfeliz por ela ter respondido, porque só o que eu me lembrava do Ritual de Proteção é que Cleópatra o fez e depois se atrapalhou porque ficou toda apaixonada por Marco Antônio, que no final morreu, e o elemento dela se transformou em uma cobra de fogo e a engoliu. Afe.

– Você está absolutamente certa, Shaunee. Obrigada. Então, caros estudantes, a lição que precisamos aprender do Ritual de Proteção não é sobre proteção nenhuma. É sobre foco, integridade e propósito – Thanatos afirmou. – Os últimos acontecimentos nesta escola me fizeram refletir com cuidado sobre a lição do Ritual de Proteção. Enquanto eu meditava sobre essa lição, veio a mim o pensamento de que no mundo antigo os vampiros tendiam a ter mais dons do que os vampiros de hoje – Thanatos fez uma pausa e olhou para mim. – Apesar de recentemente a tendência de menos dons e menos poder em vampiros jovens parecer estar se alterando – ela acrescentou. Eu não sabia onde Thanatos queria chegar, mas definitivamente ela despertou o meu interesse. – Pensem, por um momento, nas implicações de uma alteração dessas. Em tempos antigos, vampiros altamente dotados, como Cleópatra, foram responsabilizados pelas suas escolhas e por suas ações por causa do poder que eles detinham. Como vocês podem ler no Manual do Novato, e como foi relatado pelos nossos historiadores, Cleópatra usou mal o seu dom concedido pela Deusa. Ela parou de ouvir seu povo. Ela considerou a sua afinidade como uma coisa certa. Ela pensou apenas nos seus próprios desejos e necessidades. No fim das contas, o seu elemento fogo a consumiu.

Eu tentei não me preocupar. Será que Thanatos estava tentando me dizer que eu estava me atrapalhando? Tipo, eu sabia que eu andava sendo meio rude com as pessoas nos últimos tempos – e toda a coisa Aurox/Heath era confusa e frustrante –, mas será que ela estava falando que eu precisava ser nocauteada pelos cinco elementos?

Que inferno! Eu esperava que não fosse isso! Eu estava fazendo o melhor que podia. Sim, eu andava frustrada e irritada, mas pelo menos eu não estava choramingando muito. Ultimamente.

Aphrodite levantou a mão, surpreendendo-me e calando a minha tagarelice interior.

– Pois não, Aphrodite, você tem alguma pergunta? – Thanatos falou.

– Sim, eu estava pensando no que você disse, sobre como os dons dos vampiros eram mais fortes e mais frequentes nos tempos antigos e como parece que isso está mudando, e eu gostaria de saber se você tem alguma ideia de por que essa alteração de poder está acontecendo.

– É uma ótima pergunta, Aphrodite. Eu gostaria de ter uma resposta definitiva para você. Posso dizer que acredito que essa alteração tem a ver com uma mudança maior no equilíbrio entre Luz e Trevas.

– Talvez Nyx esteja nos concedendo esses dons para que a gente possa lutar para equilibrar as coisas de novo – Shaunee sugeriu.

– Talvez – Thanatos concordou.

– Isso poderia ter algo a ver com magia antiga? – Aurox perguntou.

Todos nós olhamos embasbacados para ele.

– O que o faz perguntar isso? – Thanatos quis saber.

Ele encolheu os ombros e pareceu desconfortável.

– Os touros. Eles não são uma manifestação de magia antiga?

– Eles são – ela confirmou.

– A pedra da vidência de Zoey também é magia antiga. Não é? – Aphrodite acrescentou.

Eu franzi a sobrancelha para ela.

– Isso também é verdade – Thanatos respondeu.

– Ok, mas algum de nós sabe o que a magia antiga realmente é? – eu perguntei, irritada com todo aquele assunto.

– A magia antiga não tem se manifestado fora da Ilha de Skye há muito tempo, desde antes de eu ser Marcada – Thanatos começou a falar devagar, como se ela estivesse se lembrando e raciocinando em voz alta ao mesmo tempo. – Pelo que sei, a melhor descrição que eu posso dar a vocês é que ela é energia em seu nível mais puro: crua, poderosa e neutra. A magia antiga é criação e destruição simultaneamente.

– Provavelmente é por isso que os feitiços antigos, como o Ritual de Proteção de Cleópatra, dependiam tanto da Sacerdotisa que fazia o feitiço – Damien disse. – Pode ser que todos os cinco Rituais Maiores tenham raízes na magia antiga.

– Parece lógico – Thanatos assentiu.

– Mas isso ainda não explica exatamente o que é a magia antiga ou por que ela se tornou ativa de novo – Aphrodite afirmou. – Mas eu diria que ela definitivamente está ativa de novo. Você não concorda, Z.?

Felizmente, ela foi interrompida pelo barulho da porta da sala sendo aberta impetuosamente e de Kalona entrando a passos largos pelo corredor central.

O imortal alado se curvou respeitosamente para Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, eu voltei com o seu prisioneiro.

– Você cumpriu bem a sua missão – ela se dirigiu a Kalona e então encarou a classe. – Quero que todos vocês se reúnam imediatamente no centro do campus perto do local da pira. A aula acabou.

Enquanto saíamos em fila da classe, observei Thanatos falando algo em voz baixa para Kalona. Eu vi o imortal arregalar os olhos, então ele assentiu e se curvou para ela novamente – desta vez até muito mais embaixo, mantendo a posição por mais tempo do que o normal. Enquanto ele ainda estava curvado, Thanatos foi até a sua mesa, pegou o telefone e apertou um botão. A sua voz ecoou pelo sistema de alto-falantes da escola.

– Todos os estudantes e o corpo docente vão se reunir no centro do campus no local da pira! Os professores que são membros do nosso Conselho devem se apresentar à Câmara do Conselho imediatamente. Todas as aulas estão suspensas até o final da nossa assembleia – então ela desligou e saiu apressada pela porta de trás, com Kalona logo atrás.

Tive uma sensação ruim.

– O que será que está rolando? – eu perguntei.

– Não tenho a menor ideia – Aphrodite respondeu. – Mas, seja o que for, vai acontecer na frente de todo mundo e vai fazer com que a gente perca pelo menos uma aula, então não pode ser tão mau, não é?

Nós fomos direto para o local da pira e formamos um grande círculo em volta da área queimada e escura que definitivamente estava sendo muito usada ultimamente. Eu procurei por Stark, mas não o vi, nem Kalona. Darius nos encontrou, pegou a mão de Aphrodite e disse que também não sabia o que estava rolando. Só quando todo mundo estava começando a ficar impaciente e quase era preciso gritar para ser ouvido, as pessoas do lado oposto ao meu se deslocaram, abrindo caminho.

Thanatos apareceu primeiro no meu campo de visão. Ela tinha trocado de roupa e estava usando um longo vestido negro de veludo, decorado apenas com o emblema em fios prateados de Nyx, com as mãos envolvendo a lua crescente. Thanatos havia soltado o seu cabelo longo e escuro, que caía como um véu espesso até a sua cintura. Lá no meio, eu vi um pouco de cabelos prateados reluzindo, que me lembraram do fio usado para bordar o emblema de Nyx. O seu rosto estava com uma expressão severa. Eu achei que ela parecia assustadora, mas bonita – antiga, mas sem aparentar idade.

Então a minha atenção foi atraída para Kalona e Stark, que entraram no meu campo de visão. Dallas estava mancando entre eles. Ele parecia péssimo. As mãos dele estavam amarradas na sua frente. O seu rosto estava todo arranhado e ensanguentado. As roupas dele estavam molhadas e imundas. Uma das flechas de Stark estava enterrada na sua coxa direita, só com as penas da parte de trás para fora. Kalona e Stark pareciam tão sérios e poderosos quanto Thanatos enquanto levavam Dallas até o centro da nossa assembleia. Eles não pararam até que o vampiro ferido ficou bem no meio da área escurecida pelo fogo da pira.

Dallas não parecia sério nem poderoso. Ele parecia irritado. Eu vi quando os olhos dele encontraram Shaunee. Ele olhou com raiva para ela e então deu um escarro nojento nas cinzas aos seus pés.

– Professores do Conselho da Morada da Noite de Tulsa, venham para a frente! – Thanatos ordenou.

Lenobia, Penthesilea, Garmy e Erik saíram da multidão para ficar ao lado de Thanatos. Eu estava pensando que o Conselho parecia desfalcado sem a presença de Dragon e Anastasia Lankford e da professora Nolan, quando Thanatos continuou:

– Eu também ordeno que as nossas duas Profetisas venham para a frente!

– Ah, que merda – Aphrodite resmungou, mas soltou a mão de Darius e foi se juntar a Thanatos.

Shaylin demorou para conseguir chegar lá na frente. Quando ela se aproximou de Thanatos, a Grande Sacerdotisa assentiu e fez um gesto para que ela ficasse ao lado de Aphrodite.

– A nossa escola foi ricamente agraciada com a presença de duas Grandes Sacerdotisas adicionais. Infelizmente, uma delas, a primeira Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, não pode ocupar o seu lugar ao meu lado hoje porque ela foi gravemente ferida – Thanatos continuou. Eu tinha acabado de perceber que ela havia dito duas quando os seus olhos escuros me encontraram. – Mas eu chamo a nossa segunda Grande Sacerdotisa para se juntar a mim. Zoey Redbird, venha para a frente!

Sentindo-me nervosa e insegura, eu fui ficar ao lado de Aphrodite e Shaylin.

Thanatos encarou Dallas.

– Você é o vampiro vermelho conhecido como Dallas?

Dallas sorriu.

– Todo mundo sabe quem eu sou.

– Dallas, ao amanhecer você atacou a Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, com a intenção de expô-la à luz do sol até que ela morresse. Você nega isso?

– Não, não nego.

– Dallas, ao amanhecer você também planejou matar a novata Shaunee com o poder que Nyx lhe concedeu. Você nega isso?

– Eu não nego nada! – o tom de voz dele era maldoso, e os seus olhos cintilaram com um brilho cor de ferrugem. – Pode me banir! Eu estou mais do que pronto para ir embora desta merda de escola.

Thanatos se virou para encarar a multidão.

– Eu sei que esse vampiro tem seguidores que compartilham os mesmos pontos de vista que ele. Acredito que eles sabiam de tudo e até podem tê-lo ajudado nesses crimes. Eles também devem compartilhar o seu destino. Eu agora chamo para a frente os seguidores de Dallas que desejam ficar ao lado dele!

Eu fiquei muito curiosa em saber o que ia acontecer. Havia uns dez garotos que andavam com Dallas o tempo todo. Bem, nove, agora que Nicole tinha saído do Lado Negro. Eu meio que esperei que uma horda inteira dos seus novatos vermelhos fosse para a frente, andando feito uns metidos babacas e jogando bolas de papel nas pessoas.

Mas na verdade apenas dois se juntaram a Dallas. Um era o grandalhão chamado Kurtis. Eu me lembrava dele na briga nos túneis. Ele era um idiota total. O outro garoto era Elliott, o novato que eu tinha visto morrer meses atrás na aula de Inglês. Eu sabia que Elliott era um inútil (alguém que não faz nada na classe além de respirar) do mal, mas eu imaginava que ele era preguiçoso demais para ficar ao lado de Dallas, principalmente porque parecia que ele ia ser expulso da escola junto com ele.

Ah, espere aí. Isso fazia sentido. O garoto não gostava de escola. Ser expulso com Dallas devia ser como umas férias permanentes para ele.

– Elliott e Kurtis, vocês dois conscientemente ficam ao lado desse vampiro como cúmplices dos seus crimes? – Thanatos perguntou.

– Sim, que inferno! – Kurtis respondeu. Ele tentou soar todo durão e seguro de si, mas olhou nervoso em volta.

– Sim, que seja – Elliott falou.

– Agora eu pergunto ao meu Conselho: vocês reconhecem a culpa desse vampiro e dos seus seguidores novatos?

No mesmo instante em que Thanatos fez a pergunta, a minha pedra da vidência começou a irradiar calor. Coloquei a mão em cima dela, desejando que eu soubesse a que ela estava reagindo e o que eu devia fazer em relação a isso.

Cada um dos membros do Conselho respondeu solenemente, dizendo:

– Sim, eu reconheço.

– Profetisas de Nyx, esses três foram considerados culpados de tramar o assassinato de uma Grande Sacerdotisa. Olhem dentro de vocês. Usem os seus dons. Vocês concordam comigo que, como nos tempos antigos, a punição deles deve ser imediata e pública?

Aphrodite respondeu primeiro:

– Eu concordo.

Shaylin demorou mais. Ela deu alguns passos para mais perto de onde Dallas, Kurtis e Elliott estavam e os analisou. Pela sua expressão, parecia que ela tinha sentido um cheiro ruim, mas não disse nada a eles. Ela voltou para o seu lugar perto de Thanatos e ainda não disse nada. Ficou só olhando para Thanatos por um tempo desconfortavelmente longo. Finalmente, Shaylin respirou fundo e disse:

– Eu acredito que a coisa certa a fazer é concordar com você – então Shaylin abaixou a cabeça. Eu tinha certeza de que ela fechou os olhos e parecia estar rezando, mas eu não tive mais tempo para ficar olhando, pois foi a minha vez de ser chamada.

– Zoey Redbird, como a outra única Grande Sacerdotisa presente, você está de acordo comigo e o meu direito ancestral de condenar esses três pela violência que eles admitem terem planejado e praticado?

Eu me senti como se tivesse recebido a pergunta mais fácil.

– Sim, eu concordo – respondi rapidamente. A pedra da vidência estava queimando a minha mão.

Thanatos levantou os braços. O poder crepitou ao seu redor, arrepiando os pelos do meu pescoço e dos meus braços. A sua voz foi amplificada pelo poder de Nyx, e ela soou como a personificação da Morte.

– Então eu invoco o meu direito como Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Os crimes contra uma Grande Sacerdotisa sob a minha proteção devem ser punidos como nos tempos antigos. Eu ordeno que o meu guerreiro Juramentado execute o vampiro vermelho e depois leve esses dois seguidores para o campo, longe o bastante de qualquer vampiro, para que os seus corpos rejeitem a Transformação e eles também morram!

Eu não tive nem tempo de ofegar. Kalona se moveu como um raio. Ele pegou a espada longa que estava pendurada nas suas costas e, com um único e rápido golpe, cortou a cabeça de Dallas. Stark se desviou quando o corpo dele teve convulsões e o sangue jorrou do coto onde era o seu pescoço. Eu não conseguia parar de olhar para a cabeça de Dallas. Os seus olhos estavam muito arregalados. Ele parecia atordoado. E a sua boca ficava abrindo e fechando sem parar, como um peixe em terra firme.

Kurtis e Elliott berraram e começaram a correr. O imortal alado os apanhou antes que eles saíssem do círculo de pessoas chocadas. Ele os agarrou pela cintura. A multidão se afastou dele, e então Kalona correu para a frente, com passos largos e firmes, batendo as asas enormes uma, duas, três vezes. Então ele e os dois garotos estavam voando no ar. Os garotos esperneavam e gritavam, mas isso não parecia afetar Kalona nem um pouco, e em alguns instantes eles saíram de vista, na direção oeste, dentro da escuridão.

– Silêncio! – a ordem de Thanatos acabou com o barulho como se um interruptor tivesse sido desligado. Foi só então que eu percebi que todo mundo à minha volta, exceto Stark, Shaylin e os membros do Conselho da Escola, estava gritando de horror ou soluçando de choque. – O tempo de fraqueza e brigas internas acabou. A violência contra a nossa Morada da Noite vai ser vingada. A nossa Deusa é misericordiosa, mas ela também é justa, e todos que se voltarem contra ela vão sentir o peso da sua justa ira. Que isto seja um aviso e a minha promessa a vocês: aqueles que ficarem ao lado da Deusa e de mim serão protegidos. Aqueles que se voltarem contra nós serão punidos. Morada da Noite de Tulsa, faça a sua escolha!


17
Zoey

A pedra da vidência ardia na minha mão. Eu sabia por que não havia me dissolvido em lágrimas ou berrado feito uma histérica.

Thanatos estava certa. Estava na hora de todos jurarem lealdade à nossa Morada da Noite e tomarem uma posição definitiva. Nós já estávamos contra muita coisa para ter que ficar lutando uns contra os outros também. Foi isso que ela sempre disse. Era nisso que eu também tinha começado a acreditar.

Dei um passo à frente, tomando cuidado para ficar fora do círculo de sangue de Dallas. Segurando firme a minha pedra da vidência, respirei fundo e orei: Magia antiga, ajude-me... fortaleça-me ! O calor explodiu da pedra da vidência e o poder chiou através do meu corpo. Quando eu falei, o volume da minha voz ecoou as minhas palavras pela multidão:

– O meu círculo e eu escolhemos o caminho de Nyx. Nós estamos unidos a esta Morada da Noite!

Damien e Shaunee foram os primeiros do meu círculo a se juntar a mim. Eles vieram até o meu lado e se curvaram respeitosamente para Thanatos, repetindo as minhas palavras:

– Nós estamos unidos!

Shaylin e Aphrodite deram um passo à frente para ficar ao lado deles. Darius, Stark e Aurox (que eu fiquei surpresa e feliz em ver) juntaram-se a nós. Rodeando-me, os membros do meu círculo colocaram suas mãos em punho sobre o coração e se curvaram respeitosamente, demonstrando a nossa solidariedade.

Isso deu o exemplo. Kramisha, Erik, Johnny B., Ant, Nicole e todos os outros novatos vermelhos de Stevie Rae atravessaram a multidão e vieram para a frente. Percebi que alguns estavam chorando. Outros, como Erik e Kramisha, estavam pálidos de choque, mas todos se curvaram e juraram lealdade à nossa Morada da Noite.

O resto da escola começou a se curvar e a fazer suas promessas de ficar unidos e seguir o caminho da Deusa. Prestei uma atenção especial nos novatos que haviam sobrado do grupo de Dallas. Eles eram fáceis de identificar. Os meninos eram totalmente desleixados e sujos, e as garotas usavam mais delineador do que roupas. Mas agora eles não estavam todos valentões e rebeldes. Eles pareciam assustados. Todos se curvaram para Thanatos. Eu não pude deixar de pensar até que ponto os seus juramentos eram sinceros, porque, afinal de contas, que escolha eles tinham? Imaginei o que eu faria no lugar deles. Eu não ia correr o risco de ser morta de jeito nenhum. Com certeza, eu iria fingir me unir a Thanatos. Mais tarde, porém, a minha escolha poderia ser diferente.

E como se a minha pedra da vidência nunca tivesse se parecido com um forno em miniatura, ela se resfriou, deixando-me tonta e com náuseas, com uma dor de cabeça latejante começando na minha têmpora direita.

Magia antiga era uma coisa assustadora!

– E agora eu ordeno que nós retomemos a nossa vida normal. A escola deve continuar – Thanatos estava dizendo. – Nós vamos ficar vigilantes em relação às forças das Trevas que agem ao nosso redor, mas elas não devem mais agir entre nós. Peço a Zoey e seu círculo que permaneça aqui e se reúna comigo rapidamente. O resto de vocês tem cinco minutos para estar na segunda aula. Professores, cuidem dos seus novatos. Que sejam todos abençoados.

Eu meio que senti como se alguém tivesse acabado de me dar um banho de água fria. Dallas havia sido decapitado. Dois novatos iriam morrer muito em breve, mas não se atrasem para a segunda aula? Como assim? Como poderia ser tão simples continuar o resto do dia como se nada tivesse acontecido?

– Zoey, eu preciso que você trace um círculo – Thanatos veio andando a passos largos na minha direção enquanto a multidão se dispersava silenciosamente.

– Aqui? Agora?

– Sim, aqui. Ao redor do corpo do vampiro. Mas não agora. Espere até que os novatos já tenham voltado para as suas aulas.

– Ok – respondi devagar. – Mas preciso que alguém fique no lugar de Stevie Rae.

– Eu posso substituir Stevie Rae.

Todo mundo se virou para Aurox.

– Por que você? – Stark perguntou antes que eu dissesse qualquer coisa, o que me deixou muito irritada. Era o meu círculo, não o dele!

– Por que não eu? Sei onde fica o norte. Posso segurar uma vela verde e invocar a terra. E quero ajudar Zoey.

– Parece ótimo para mim – respondi sem olhar para Stark. – Damien, Aurox e Shaunee, vocês podem pegar as velas do círculo e os fósforos?

Aurox se curvou respeitosamente para mim antes de os três saírem em direção ao templo de Nyx para pegar o material para o círculo.

– O que está rolando? Por que fazer um círculo agora? Alguém não deveria vir limpar essa bagunça? – Aphrodite perguntou, indicando o corpo de Dallas, sem olhar para ele.

– É exatamente isso o que Zoey e seu círculo vão fazer – Thanatos explicou. – Um vampiro condenado e executado não merece uma pira e as tradições de um funeral. Ele também não deve ser enterrado em lugar nenhum que possa virar um local de adoração para seus seguidores desencaminhados. Os seus restos precisam ser simplesmente destruídos, rápido e em silêncio.

– Oh – eu compreendi. – Você quer que eu trace um círculo e fortaleça Shaunee para que ela possa, bem, ahn... – eu hesitei, sem saber direito como colocar as coisas e me sentindo mal ao pensar no que nós íamos ter que fazer.

– Limpar essa bagunça – Aphrodite concluiu por mim.

– Sim, bem colocado – Thanatos soou como se estivesse falando sobre levar o lixo para fora. – E quanto menos atenção a gente chamar para essa limpeza, melhor. Então, eu agradeço às duas Profetisas por desempenharem os seus papéis com dignidade e sabedoria, mas agora devo insistir para que Aphrodite volte para a aula e que Shaylin se junte a ela logo depois de ter invocado a água no círculo de Zoey.

Aphrodite fechou o cenho. A sala de aula não era o seu lugar favorito no mundo. Eu franzi a sobrancelha para ela – não que ela percebesse –, pensando que eu ficaria feliz de trocar de lugar com ela.

– Venha, minha bela, vamos juntos – Darius pegou a mão dela, e os dois saíram andando na direção do prédio principal da escola.

– Eu vou buscar a minha vela azul e dizer a Damien e aos outros para se apressarem – Shaylin falou. Ela começou a caminhar na direção do Templo de Nyx, então fez uma pausa e se voltou para Thanatos. – Eu li as suas cores. Você estava fazendo o que precisava ser feito. Às vezes, os métodos antigos são os melhores.

– Eu também acredito nisso – Thanatos afirmou.

– Isso não torna o que aconteceu aqui nem um pouco menos horrível – Shaylin continuou.

– Não menos horrível, mas necessário – Thanatos argumentou.

– A escola não está toda do seu lado – Shaylin contou.

– Estou ciente disso.

– Acho que você ficaria surpresa ao saber de todos que estão pensando duas vezes no seu juramento a você e a esta escola – Shaylin disse.

– Mas eu imagino que você possa me revelar isso lendo as cores das pessoas, não é? – Thanatos perguntou.

O meu estômago se revirou.

– Ok, esperem aí – eu intervim. – Sou totalmente a favor de uma frente unida contra as Trevas, mas não sou a favor de que Shaylin seja usada para invadir os pensamentos das pessoas.

– O que você quer dizer, Zoey? – Thanatos pareceu me atravessar com os olhos.

– Que Shaylin não deve ser usada como sua espiã! – eu não sabia exatamente por que essa ideia me incomodava tanto, mas definitivamente me incomodava.

– Se ela estiver trabalhando a serviço de Nyx... – Thanatos começou.

Eu a cortei.

– Nyx concedeu o livre-arbítrio a todos nós. Isso significa que não é contra as regras da própria Deusa que qualquer um de nós questione as escolhas que fizemos e que vamos fazer no futuro. Não há nada de errado nisso. Só um idiota nunca questiona o que dizem para ele fazer.

– Shaylin, as cores de Dallas mostraram a você que ele era perigoso? – Thanatos perguntou a ela, sem desviar os olhos dos meus.

– Eu sabia que ele estava nervoso e era violento. Eu não sabia que ele ia tentar matar Stevie Rae e Shaunee.

– Mas, se Dallas tivesse sido contido por causa do que você viu dentro da aura dele antes desta manhã, Stevie Rae teria sido poupada de muita dor – Thanatos presumiu.

– Contido? Você quer dizer morto, antes que ele realmente fizesse algo? – eu me sentia como se fosse explodir.

– Acho que não foi isso o que Thanatos quis dizer – Stark opinou.

– Eu gostaria de ouvir Thanatos dizer isso – eu falei.

– Nos tempos antigos, só vampiros que de fato cometiam alguma violência contra outros vampiros eram executados – ela afirmou.

– Nós não estamos nos tempos antigos – eu rebati. – E eu acho que não é da conta de ninguém o que as pessoas pensam. Mas você sabe quem achava que era da sua conta escutar o que todos nós pensávamos? Neferet. E eu não gosto do que isso fez a ela.

Thanatos levantou as sobrancelhas.

– O seu ponto de vista foi bem colocado, Sacerdotisa – ela disse.

– Shaylin, vá ver por que Damien e os outros estão demorando tanto – eu ordenei.

Shaylin hesitou só por um instante, então se curvou para mim e saiu apressada.

– Você tem opiniões fortes – Thanatos observou.

– Você também.

– Você vai traçar o círculo e ajudar Shaunee a destruir o vampiro culpado?

– Sim. Eu não quero que ele seja feito de mártir, assim como você – eu respondi.

– Obrigada. Então vou deixá-la com o seu círculo – o olhar dela se voltou para Stark. – Você trabalhou bem hoje, guerreiro. Estou orgulhosa de você. Abençoado seja – ela curvou levemente a cabeça e foi embora.

– Eu juro que ela está agindo a cada dia mais como a Morte – eu falei, observando Thanatos enquanto ela se afastava.

– Z., acho que ela só está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

O meu primeiro impulso foi discutir com Stark, perguntar por que ele não estava ficando do meu lado, mas quando eu realmente olhei para ele vi que as suas roupas estavam rasgadas e enlameadas, e o sangue de Dallas estava respingado por toda a sua blusa e sua calça. O rosto dele estava pálido e tenso, e eu me dei conta de que, apesar de Kalona ter anunciado que havia trazido Dallas de volta para a escola, foi a flecha de Stark que tornou aquela execução possível.

Então Stark havia assistido Kalona decapitar o garoto.

Coloquei meus braços ao redor dele, afundando o meu rosto no seu peito.

– Acho que você está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

– Você está bem, Z.? Eu queria ter contado a você o que Thanatos ia fazer, mas não deu tempo – ele hesitou e então acrescentou: – Eu senti aquela enorme onda de poder que você teve quando levantou a voz. Não foi como você se sente quando o espírito a preenche, então eu imagino que possa ter algo a ver com magia antiga. Estou certo?

Eu fiquei inquieta e desconfortável.

– Bem, a minha pedra da vidência esquentou, e agora eu estou me sentindo acabada. Então, sim, eu acho que isso tem algo a ver com magia antiga.

– Acho que faz sentido, especialmente com Thanatos invocando regras ancestrais e tal.

– Pois é, a gente tinha acabado de falar sobre isso na classe, mas eu queria saber se isso significa que ela está fazendo a coisa certa ou não – eu externei as minhas preocupações em voz alta.

– Ei – ele levantou o meu queixo. – É você que tem a pedra da vidência. Você só tem que se preocupar se você está fazendo a coisa certa. E limpar essa bagunça de Dallas é definitivamente a coisa certa. Ok?

– Ok – eu o beijei. – Como você está?

– Cansado – ele disse. – E toda essa coisa da cabeça de Dallas sendo cortada... bem... Eu sabia o que ia acontecer e achei que estava preparado para isso. Mas... – ele perdeu as palavras e me abraçou com força.

– Stark, eu acho que não há nenhum jeito de se preparar para ver a cabeça de um garoto ser cortada – eu também o abracei forte. – Ei, você deve ir tomar um banho e se trocar. Que tal nos encontrarmos no almoço?

– Que tal nós marcarmos um encontro depois das aulas para não fazer nada além de ficarmos juntinhos e sozinhos, assistindo uma maratona de Big Bang Theory pelo Roku 13 ?

Eu sorri para ele.

– Ninguém além de mim sabe como você é bobo de verdade.

– Eu preciso rir, e Sheldon me faz rir.

– Ok, mas só se você não tirar sarro de mim por eu não entender todas as piadas dele – eu pedi.

– Mas isso é parte do que me faz rir – ele disse.

– Ok. Pode rir da minha cara. Eu vou me sacrificar por você – eu falei brincando.

A expressão dele ficou séria.

– Eu sempre vou me sacrificar por você – ele respirou fundo e então, do nada, afirmou: – Eu não quero que você comece a andar com Aurox.

Eu dei um passo para trás e me afastei dele.

– Do que você está falando?

– Sei que eu disse que dividiria você com Heath, mas eu só falei isso depois que o garoto estava morto, e agora ele está de volta e eu acho que não vou conseguir dividir você com ele, e eu quero que você fique longe dele – ele colocou tudo para fora rapidamente.

– Desculpem pela demora! Alguém colocou os fósforos de ritual na gaveta dos bastões de defumação. Eu pensei que a gente nunca iria encontrá-los. Eu odeio quando as coisas ficam fora do lugar – Damien tagarelou ofegante, com uma aparência exausta, quando ele, Shaylin, Shaunee e Aurox chegaram apressados até nós, com as mãos cheias de velas e fósforos.

– Shaylin me contou o que Thanatos quer, estou pronta – Shaunee disse.

– Há algo errado? – Shaylin perguntou, olhando para mim e Stark com uma concentração desconcertante.

– Não, está tudo bem – respondi. – Stark está de saída para tomar um banho e se trocar. Certo, Stark?

Stark colocou os braços em volta de mim e me puxou para mais perto. Então ele me beijou. Na boca. De um jeito impetuoso e possessivo. Uma das suas mãos desceu pelas minhas costas e parou no meu traseiro, enquanto ele dizia:

– Certo, Z. Eu te vejo mais tarde. Durante o nosso encontro. A sós – ele deu um apertão na minha bunda e então saiu apressado.

Shaylin me entregou a vela roxa do espírito, e eu me controlei para não atirá-la nele. Que diabos eu ia fazer em relação a Stark? Será que ele realmente acreditava que agindo possessivamente e me dizendo o que eu devia fazer ele ia conseguir que eu não tivesse vontade de ficar com outro cara? Caramba, claro que não!

Deixei a minha irritação de lado e forcei um sorriso alegre.

– Então, vamos traçar esse círculo – eu disse. – Todo mundo pronto?

Enquanto íamos para os nossos lugares, eu ignorei o fato de que Shaylin continuava me observando. Então percebi que eu ia ter que assumir a minha posição no centro do círculo, o que significava que eu teria que ficar perto do corpo decapitado de Dallas em meio a cinzas ensopadas de sangue e terra carbonizada. Resolvi que não ia me importar que Shaylin estava me analisando atentamente e que Stark estava agindo feito um babaca. Eu meio que congelei ao chegar perto do sangue, odiando que aquele cheiro fizesse a minha boca salivar, mas aquela visão fez o meu estômago se contrair.

– Não olhe para ele – a voz de Aurox fez com que eu desviasse o olhar daquele corpo sem cabeça horrível. Ele sorriu para mim da extremidade norte do círculo. – Vá até Damien e invoque o ar. Na hora em que você tiver que ir para o centro do círculo, você vai estar fortalecida pelos elementos. Você consegue, Z.

A última parte do que ele disse soou tanto como Heath que os meus olhos se encheram de lágrimas. Pisquei com força para não chorar, assenti e fui na direção de Damien.

E Aurox estava absolutamente certo. Na hora em que fui para o meio do círculo, acendi a minha vela roxa e invoquei o espírito, eu me senti equilibrada e amparada. Não foi difícil liderar Shaunee e forçar uma explosão de chamas no corpo de Dallas. Depois que ele foi reduzido a cinzas, para mim pareceu natural pedir a Shaylin que fizesse a água lavar o local da pira e que Damien fizesse o vento soprar para longe aquele cheiro de queimado. Finalmente, eu usei Aurox como um canal com a terra. Juntos, nós conseguimos que a terra fizesse brotar grama verde onde antes só existia sangue e cinzas.

– Agora está muito melhor – eu disse, parada no meio da grama verde e fofa, inspirando profundamente o cheiro de primavera, depois de fechar o círculo.

Damien pegou o celular na sua bolsa masculina e conferiu a hora.

– Ah, que ótimo! Nós só perdemos metade da terceira aula. Eu amo Literatura e a professora Penthesilea.

– Terceira aula! – Shaunee exclamou. – Para mim é Esgrima. Fui. Vejo vocês no almoço.

Demos tchau acenando para ela.

– Eu queria que já estivesse na sexta aula – suspirei.

– Pensei que você gostasse da aula de Literatura – Damien disse.

– Eu gosto, mas não gosto da aula de Espanhol, que é a quinta. Então, se já estivesse na sexta aula, eu teria perdido o Espanhol – esfreguei a testa, sentindo dor de cabeça e tontura de novo.

– Você está bem? – Shaylin perguntou.

Eu olhei para Shaylin. Ela estava me encarando. De novo. A minha irritação ferveu e o meu estômago roncou. A pedra da vidência começou a esquentar no meio do meu peito, o que só meu deixou mais nervosa.

– Shaylin, pare de ficar me secando! – eu não queria soar tão irritada como as minhas palavras acabaram saindo, e eu não queria de jeito nenhum fazer Shaylin dar um salto como se eu tivesse acabado de dar um tapa nela, mas foi exatamente isso o que aconteceu.

– Desculpe. Eu não tive a intenção – ela falou, quase se encolhendo de medo e se afastando de mim.

Eu suspirei e toquei na pedra da vidência, que estava fria como uma pedra comum.

– Olhe só, eu não quis gritar com você. Eu estou com dor de cabeça e com fome, só isso.

– Bem, Z., você acabou de traçar um círculo. Você precisa se equilibrar. Vá até o refeitório e pegue algo para comer – Damien me aconselhou, acariciando o meu braço. – Eu digo para a professora P. onde você está. Vai ficar tudo bem.

– Você está certo, Damien. Comida com certeza vai fazer bem para a minha cabeça.

– Comida ou refrigerante marrom? – Damien perguntou, sorrindo.

– Refrigerante marrom é comida – eu respondi.

– Zoey, você se importa se eu for até o refeitório com você? – Aurox sugeriu.

– Você não tem que ir para a aula? – eu quis saber.

– Não. Eu só assisto a primeira aula. Depois eu faço a ronda nos jardins da escola.

– Ah, eu, ahn, não sabia disso – eu fiz esse comentário inútil, sem saber se o invejava ou se sentia pena dele.

– De fato, acho que é uma boa ideia Aurox comer algo também. Foi o primeiro círculo dele – Damien fez uma pausa e sorriu para Aurox. – E você foi excelente. Muito bem!

– Ei, obrigado, Damien – Aurox abriu o sorriso, fazendo com que os seus olhos faiscassem de um jeito um pouco familiar demais.

Como olhos da cor da pedra da lua podem me lembrar dos olhos de Heath?

– Zo, você não se importa que eu vá com você, não é?

Eu me dei conta de que eu estava encarando Aurox – enquanto Shaylin, Damien e Aurox me encaravam –, e pisquei.

– Não, tudo bem. Mas você vai ter que se apressar. Vou tentar pegar pelo menos o final da aula de Literatura. Só porque não é Matemática, não quer dizer que eu seja muito boa nessa matéria – eu praticamente saí correndo, com Aurox me seguindo, depois de dar um tchau rápido para Damien e Shaylin.

O refeitório estava deserto, mas eu podia ouvir panelas e frigideiras tinindo lá na cozinha, e um cheiro delicioso tomava conta do ambiente. A minha boca estava salivando loucamente quando Aurox disse:

– Você pode ir pegar as nossas bebidas, que eu vou até a cozinha ver o que está pronto para comer.

Eu concordei sem pensar e fui direto pegar refrigerante marrom. Matei um copo antes de sair de perto da máquina de bebidas. A minha cabeça já estava um pouco mais clara quando eu estava levando dois copos grandes para a mesa em que meu grupo normalmente sentava. Enquanto eu bebia aquela maravilha marrom gelada, eu pensei em como era estranho o fato de alguns lugares mudarem totalmente quando estavam vazios. Tipo, o refeitório normalmente era um lugar barulhento e cheio de estudantes e comida, mas naquele momento, meia hora antes do almoço, parecia maior do que era e quase de outra dimensão, como se fosse possível ouvir os ecos dos espíritos dos garotos que não estavam ali, mas que ainda, de algum modo, estavam me observando.

Isso me deu sérios arrepios.

– Peguei para você queijinho-quente e sopinha de tomate – Aurox sorriu alegremente enquanto sentava no banco ao meu lado, colocando uma bandeja cheia de sopa e sanduíches na nossa frente.

Eu só consegui ficar olhando para ele.

O sorriso de Aurox esvaneceu. Ele olhou para o sanduíche de queijo e a sopa e depois para mim.

– Eu pensei que você fosse gostar. Posso levar isso de volta. Também tem sanduíche de peito de peru com queijo, e a cozinheira me disse que estão quase terminando de preparar a salada Cobb.

– Não é isso. Eu amo queijo-quente. E a sopa.

– Então por que você está assim?

– Queijinho-quente e sopinha de tomate. Por que você falou desse jeito?

Ele enrugou a testa.

– Simplesmente saiu da minha boca. Não é assim que se fala?

– Aurox, é assim que eu falava desde o segundo ano do fundamental. Heath também falava assim. Era o nosso almoço preferido porque a nossa escola fazia um spaghetti muito ruim.

– Psaghetti – ele disse em voz baixa.

A minha mente me disse para falar para ele ficar quieto e comer, mas a minha boca disse:

– Nós só falamos assim quando é bom. A loucura do psaghetti não acontece com spaghetti ruim – eu sabia que estava tagarelando bobagens, mas não conseguia me conter. – Tem também uma música e uma dança sobre a loucura do psaghetti.

– Eu sei.

– O que mais você sabe? – eu me senti quente e fria ao mesmo tempo.

– Que algumas vezes eu quero tanto te tocar que às vezes eu acho que posso morrer se você não deixar – ele afirmou.

Senti um frio na barriga.

– Eu estou com Stark.

– Eu sei, e acho que você tinha que ficar fria quanto a isso.

“Ficar fria”! Quando ele falou isso, soou tão parecido com Heath que eu quase perdi o fôlego.

Nenhum de nós disse nada, então ele levantou a mão devagar na direção da minha, que estava na mesa entre nós. Delicadamente, ele pegou a minha mão e a virou ao contrário. Com um dedo, ele acompanhou suavemente a tatuagem cheia de filigranas que cobria a minha palma.

– Você recebeu essas tatuagens de Nyx – ele disse.

– Sim.

– Você tem mais tatuagens especiais – ele tirou o dedo da palma da minha mão e o colocou sobre o meu rosto, onde ele acariciou o padrão repetido ali.

O dedo dele era quente e deu vida aos meus nervos, de modo que onde ele tocava eu me arrepiava. Ele seguiu a linha do meu pescoço até o decote em V da minha camiseta da BDG, e então começou a seguir o traçado da tatuagem, que se estendia sobre a minha cicatriz, de um ombro a outro.

– Isso quase a matou – ele sussurrou.

– Quase – falei meio ofegante, como se estivesse tentando conversar e correr ao mesmo tempo.

Com os dedos ainda no meu corpo, ele olhou dentro dos meus olhos.

– Você se Carimbou com Heath e ele a salvou. Foi por isso que você não morreu.

– Sim.

– Você bebeu o sangue dele.

Estava muito difícil falar, então eu apenas assenti.

– Zo, eu quero que você beba o meu sangue.

– Heath, ahn, Aurox... – eu gaguejei. – Não posso. Isso iria magoar Stark e...

Perdi as palavras quando ele pegou uma faca e furou a ponta do dedo que tinha tocado meu peito. Uma única gota vermelha brotou. O cheiro do sangue dele me invadiu. Não era humano. Não era de novato nem de vampiro. Era mágico.

Eu lambi a ponta do seu dedo e ele gemeu o meu nome:

– Zo!

Aquele sabor atingiu o meu corpo como uma bomba nuclear. Eu agarrei e segurei com força a mão dele, querendo mais. Fechei os olhos e coloquei o dedo dele na minha boca. Ele se inclinou para a frente, encostando a cabeça na minha.

O sino que indicava o final da terceira aula e o começo do almoço soou. Arregalei os olhos e me dei conta do que estava fazendo.

– Não, isso não está certo! Não. Aurox – balançando a cabeça, eu soltei a mão dele.

Ele estava respirando tão ofegante quanto eu.

– Eu não vou contar a ninguém. Eu nunca vou te trair assim.

Eu queria chorar.

– Se você realmente se importa comigo, vá embora. Por favor.

Ele assentiu, colocou um guardanapo em volta do seu dedo sangrando e saiu rapidamente do refeitório.

Bebi um copo inteiro de refrigerante de uma só vez. Enxuguei a boca. Alisei a minha camiseta. Peguei uma metade de queijo-quente e me forcei a comer. E quando todos os meus amigos se juntaram na mesa, sorri, conversei e deixei Stark colocar o braço no meu ombro possessivamente.

Ninguém sabia que eu estava berrando por dentro. Ninguém.


18
Neferet

Os olhos de Neferet se moveram embaixo de suas pálpebras fechadas enquanto ela revivia o século vinte. Para um período em que ela tinha conseguido tanto poder e o princípio da sua imortalidade, tinha sido realmente um tédio terrível.

Duas coisas foram a exceção: os seus sonhos e a velha mulher. Os primeiros se mostraram mentiras, e a segunda se revelou incrivelmente mais do que a verdade. Era irônico que o seus sonhos fossem a parte que ela mais gostou de revisitar.

Neferet tinha voltado para a Morada da Noite de Tower Grove, onde a escola inteira estava ávida demais por demonstrar preocupação e compaixão com ela. As mortes precoces da sua primeira familiar 14 , a pequena Chloe, e de seu guerreiro haviam sido muito próximas. Todos compreenderam quando Neferet se retirou da vida social e começou a passar uma quantidade de tempo incomum em meditação e oração.

Eles não tinham ideia de que Neferet na verdade passava o seu tempo de oração em um sono profundo e entorpecido, ansiando pelo deus que aparecia para ela apenas quando ela estava inconsciente.

Kalona havia sido esperto. Apesar de ter uma beleza impressionante, ele aparecia nos sonhos dela como o Deus sem Rosto, que pedia apenas que ela revelasse as suas fantasias e permitisse que ele a venerasse.

Não parecia sonho. Mais tarde – depois que era tarde demais –, Neferet percebeu que não andava sonhando, mas sim que Kalona estava entrando no seu subconsciente e a manipulando. Porém, naquele momento, tudo o que Neferet sabia era que o toque imortal dele despertava desejo. Ela continuou a se abrir para ele e, enquanto o seu subconsciente escutava os sussurros dele, Neferet ficava mais forte.

Ela começou a questionar os modos modernos dos vampiros à sua volta. E, basicamente, a acreditar que o seu destino era libertar um deus de sua prisão injusta, para que ela e ele pudessem governar lado a lado, Nyx e Erebus sobre a Terra. Juntos eles iriam anunciar uma nova era, em que vampiros não iriam mais coexistir em uma paz desconfortável e patética com os humanos.

Em silêncio, Neferet começou a tomar providências que iriam mudar a forma das relações entre humanos e vampiros irrevogavelmente. Como o imortal havia dito para ela em seus sonhos: Por que os deuses que caminham sobre a Terra se curvam para aqueles que os deveriam venerar?

Neferet usou a perda do seu guerreiro como uma desculpa para viajar, para não ficar presa ao trabalho enfadonho de ser uma professora. Buscando, sempre buscando o que alimentava os seus sonhos, mas a iludia na vida, Neferet sorriu quando começaram a chamá-la de embaixadora de Nyx, cujas visitas abençoavam cada Morada da Noite de um modo especial.

Neferet pensava em si mesma como uma embaixadora de poder.

Ela usou os seus dons psíquicos para saber o que cada Grande Sacerdotisa queria ou precisava : ser adulada ou desafiada, ameaçada ou elogiada, adorada ou ignorada. E então ela dava exatamente o que elas queriam: informação, um toque de cura, inspiração, excitação... a lista de necessidades e desejos das Grandes Sacerdotisas era interminável. Enquanto Neferet “servia”, ela adquiria reputação na comunidade dos vampiros. Ela se via como um camaleão fascinante e poderoso. Ela aprendeu a fazer com que as pessoas enxergassem nela a característica que cada uma mais respeitava, confiava e venerava em alguém.

E sempre, sempre, Neferet era atraída para o centro da nação – para Oklahoma, para a terra cor de sangue antigo, e para a jovem cidade, Tulsa, onde ela havia enterrado os registros de seu passado humano e para onde os sonhos, os sussurros e o toque de Kalona continuavam a atraindo.

Busque a minha libertação... busque a minha libertação... Os sussurros dele preenchiam os seus sonhos e assombravam a sua vida.

Era o dia 22 de abril de 1927 quando o rico casal humano Waite e Genevieve Phillips fizeram um convite para as Grandes Sacerdotisas comparecerem ao grande baile de gala que eles estavam oferecendo para celebrar o término da construção da mansão que estava sendo chamada de Philbrook.

Neferet se certificou de que estava entre as Sacerdotisas que aceitaram o convite. Ela não tinha interesse por Philbrook, nem pelo casal humano filantrópico e liberal e seus amigos ricos da alta sociedade.

Mas a cidade interessava Neferet. Ela tinha cheiro de petróleo, álcool, dinheiro, sangue e poder – sempre o poder.

Foi o aroma do poder, como a essência dos seus sonhos, que naquela noite a fez sair da festa dos Phillips e começar a vagar pela cidade. Mansões do petróleo recentemente construídas pontuavam a paisagem. Neferet passou por elas sem ser vista. Ela mal olhou para dentro de suas janelas, nem reparou no brilho cintilante dos novos lustres elétricos de cristal. Em vez disso, ela foi atraída para longe das mansões resplandecentes e começou a seguir um pequeno e melódico córrego, que parecia estar sussurrando uma canção para ela.

A mansão apareceu de repente, como se tivesse se materializado especialmente para Neferet. Ela era enorme e ficava no meio de jardins caprichosamente bem cuidados, enfeitados por carvalhos. Neferet se lembrava de ter pensado como era estranho o fato de existir apenas um portão de ferro na entrada da rua, sem muros cercando a propriedade.

Então ela viu a placa e percebeu que, apesar de aparentemente ter sido construído como uma elegante casa de campo europeia, ou talvez até como um castelo, o enorme prédio de pedra era uma escola particular.

Neferet foi atraída para ela antes de ver a velha mulher. Quando ela entrou no campus , o seu interesse definitivamente despertou. Havia dois prédios principais, ambos construídos com uma pedra de textura única. O campus aparentava ser novo, tão novo que parecia escuro e desabitado. Foi quando Neferet perambulava pelo campus inativo que a canção sussurrante que ela estava escutando a noite inteira se tornou realidade e se aglutinou aos seus sonhos.

Primeiro ela ouviu a sonora batida do tambor. Neferet seguiu o som até um lugar no extremo leste dos jardins do campus . Lá o aroma da sálvia e da sweet grass 15 a guiaram até um enorme carvalho, grande o bastante inclusive para esconder a luz de uma fogueira. Ela reparou que vários pássaros enchiam os galhos da árvore. Corvos. Estranho, normalmente corvos não são vistos à noite, ela se lembrava de tê-los identificado e de ter pensado nisso.

Neferet deu a volta na árvore e viu a fogueira.

Então a batida do tambor preencheu a clareira, e toda a atenção de Neferet se concentrou na anciã. Ela estava ajoelhada perto do fogo com um grande tambor na sua frente, no qual batia com um bastão simples enrolado em couro, que ela segurava com sua mão direita. Na sua mão esquerda, ela tinha um machadinho. Depois de algumas batidas, ela cortou um pedaço de uma corda grossa e longa de ervas secas, que estava no chão ao seu lado. O fogo chiou quando consumiu as ervas, soltando uma fumaça com aroma doce.

O vestido da mulher, apesar de amarelado pelo tempo, tinha uma beleza inesperada. As delicadas contas bordadas se refletiam na luz do fogo, e a longa franja ondulava graciosamente a cada batida do tambor. O seu rosto era velho, e o seu cabelo preso em uma trança grossa era completamente branco, mas a sua voz era clara como a de uma garota. Ela começou a cantar, e Neferet foi arrebatada pelas suas palavras.

Ancestral adormecido, esperando para despertar...

Neferet se moveu silenciosamente na direção da velha mulher, enquanto a música pulsava através do seu corpo no mesmo compasso das batidas do seu coração.

Quando o poder da terra sangra em sagrado vermelho

A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar

Ele será levado de seu leito de morte

Neferet deu um passo e entrou na área iluminada pela luz do fogo. A anciã levantou os olhos embaçados, que deviam ser azuis, e parou de cantar.

– Não – Neferet insistiu. – Continue cantando. É uma canção adorável.

A expressão da mulher se endureceu, mas ela continuou:

Pelas mãos dos mortos ele se liberta

Beleza terrível, visão monstruosa

Eles haverão de ser regidos outra vez

As mulheres hão de se curvar à sua misteriosa força

Doce é a canção de Kalona

Enquanto assassinamos com um calor gelado

Kalona! O nome do deus penetrou em Neferet.

– Cante outra vez, velha – ela ordenou.

– Já terminei. Vou embora.

A anciã começou a se levantar, mas Neferet se moveu rapidamente para detê-la. Foi muito fácil pegar o machadinho daquela velha. Foi muito fácil pressioná-lo contra a garganta dela.

– Faça o que eu mando ou vou cortar o seu pescoço e deixar o seu corpo velho aqui para que os pássaros a devorem até os ossos.

A velha mulher fechou os olhos, deu um suspiro profundo e trêmulo e começou a cantar sem parar, até que Neferet teve certeza de que havia memorizado a canção. Só então ela permitiu que a mulher parasse. Só então ela passou a examinar a mente da anciã.

– Você se vê como uma Ghigua. O que é isso? – Neferet perguntou.

A idosa arregalou os olhos. Ela não respondeu, mas a sua mente de repente foi invadida por pânico e palavras estranhas: Ane li sgi, demon, Tsi Sgili, devoradora de almas, assassina de homens. Esse fluxo de palavras foi levado até Neferet em uma onda de medo e horror.

– Você está com muito medo de mim – Neferet sorriu e se sentou mais perto da velha, deixando o machadinho no pequeno espaço entre elas.

– Você escuta o que está na minha mente – a mulher disse.

– Eu consigo escutar mais do que isso – Neferet afirmou. – A sua canção... acho que eu entendo o que ela significa.

– Eu canto essa canção a cada lua nova como um alerta.

– Certamente, para alguns deve ser um alerta. Para mim, é uma promessa – Neferet investigou mais a fundo a mente da velha mulher. – Você não tem medo de mim porque eu sou uma vampira.

– Eu não tenho medo de vampiros.

– Mas ainda assim você tem medo de mim – Neferet falou. – E você canta sobre o meu amante. Deixe-me ver, como é mesmo a canção? A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar. Diga-me, velha, quem e o que é a Rainha Tsi Sgili?

É você, demônio! Tem prazer com a dor! Alimenta-se da morte!

A condenação ecoou da mente da anciã até Neferet, mas ela disse apenas:

– Eu já falei o bastante por uma noite. Agora não vou dizer mais nada – então ela pressionou os seus lábios finos e enrugados, teimosamente.

Neferet sorriu de modo insinuante para ela.

– Ah, mas eu não preciso que você fale com palavras. A sua mente está gritando alto o suficiente. Eu posso capturar tudo o que preciso sem que você diga uma única sílaba, velha.

Mas Neferet não teve tempo para violar a mente da mulher como ela pretendia. Com um grito de guerra estridente, a anciã pegou rapidamente o machadinho e deu um golpe em seu próprio pescoço, abrindo a artéria carótida.

– Não! – Neferet gritou, pressionando a mão contra a carne da idosa, tentando prolongar os seus últimos minutos de vida, enquanto examinava a mente dela, buscando respostas em pensamentos semiformados e em imagens que desvaneciam.

Na sua toca, o corpo de Neferet se contorceu e estremeceu em reação às suas lembranças. A velha mulher havia se sacrificado por nada. A sua mente moribunda ofereceu informação suficiente para que Neferet começasse duas coisas: a busca de um modo para libertar Kalona e a sua transformação de uma Grande Sacerdotisa insatisfeita em uma deusa imortal, a Rainha Tsi Sgili.

Zoey

Eu adorava a sexta aula. Não só porque Lenobia era a professora mais legal de todos os tempos, mas porque era uma aula em que eu montava um cavalo! Eu não conseguia imaginar como isso poderia ser mais perfeito. Hoje parecia que Lenobia sabia que a gente precisava se livrar do estresse. Quando a aula começou, nós entramos na arena e encontramos grandes barris pretos de aço dispostos na forma de um triângulo.

Lenobia veio galopando em Mujaji. A égua negra parou deslizando bem na nossa frente.

– Então, novatos, alguém sabe por que esses barris estão aqui?

Eu levantei a mão.

– Zoey?

– Para uma corrida de barris.

– Exato – ela disse. – Você já participou de uma corrida de barris antes, Zoey?

Eu sorri, um pouco nervosa.

– Bem, mais ou menos. O cavalo de minha avó, Mouse, era um corredor de prova de barris aposentado. Vovó costumava colocar barris para ele treinar. Mesmo quando já estava bem velho, ele se empertigava e corria ao redor dos barris como se fosse um potro novamente. Eu apenas ficava em cima dele e o deixava fazer todo o serviço, mas era divertido.

Lenobia sorriu.

– Essa é uma história adorável e uma lembrança especial, Zoey. Guarde-a com carinho.

– Vou guardar. Eu já guardo.

– E então, alguém mais tem experiência com corrida de barris?

Os outros cinco garotos balançaram as cabeças e se mostraram desconfortáveis.

Lenobia franziu a sobrancelha e resmungou, mais para si mesma do que para nós:

– É tão desanimador estar no meio de Oklahoma cercada de jovens que não sabem nada de cavalos – então ela levantou a voz e continuou: – Não importa. Eu preparei um exemplo bem simples, grande e óbvio para vocês seguirem – ela fez um barulho com a boca para Mujaji, e a égua se moveu para o lado para que Travis, montado em sua égua Percherão, Bonnie, pudesse entrar trotando na arena.

Ele empinou a égua na frente de Lenobia e tocou na aba de seu chapéu para cumprimentá-la.

– Madame, você não acabou de chamar a minha égua de grande e simples, chamou?

Ela acariciou o focinho de Bonnie e deu um beijinho nela antes de responder:

– Eu nunca chamaria essa criatura magnífica de grande e simples. Eu estava falando de você – os olhos dela faiscaram para o cowboy alto e bonitão.

– Bom, então tudo bem, madame – ele disse. – Fico feliz em saber que sou valorizado assim.

A risada de Lenobia pareceu a de uma garotinha, e eu pensei que nunca a tinha visto tão bonita.

– Vá, conduza Bonnie ao redor dos barris para que os garotos vejam – ela bateu de brincadeira na bota de Travis.

Sim, ela definitivamente estava apaixonada.

– Certo, minha garota, vamos mostrar a esses novatos que você não precisa ser um Quarto de Milha para fazer uma prova de barris – ele levou Bonnie até a posição de partida e então a esporeou com força e bateu com o seu chapéu no traseiro enorme dela. A égua Percherão praticamente decolou.

Lenobia explicava o que Bonnie estava fazendo, como ela estava seguindo um padrão de trevo, em um tempo exagerado. Mesmo assim, quando a égua gigante arremeteu pelo centro com Travis a incitando, e o chão da arena pareceu tremer, todos nós a saudamos e aplaudimos.

E isso foi só o começo da diversão. Por quase uma hora, fizemos sem parar a corrida de barris, um de cada vez, com o cavalo escolhido. Persephone era a “minha” égua. Eu adorava cada centímetro de sua bela pelagem ruão. E ela também corria bem! Persephone sabia fazer direitinho o padrão de trevo. Como diria Stevie Rae, eu só precisava ficar feito um carrapato, grudada nela.

Por todo esse tempo – cerca de cinquenta e poucos minutos –, eu esqueci de Neferet, Stark, Aurox, Transformação e magia antiga. Só durante esse pequeno período, eu era uma garota de novo, rindo, montando um cavalo e amando a vida.

Isso acabou rápido demais. Normalmente, tratar de Persephone me ajudava a aquietar a mente. Hoje teve o efeito contrário. Talvez porque eu não tivesse pensado em nada enquanto eu estava montando. Porém, quando eu comecei a pentear a sua crina com a almofaça, os meus problemas rugiram.

Pensar no que Neferet estava armando deveria ser o meu maior problema, seguido por tentar descobrir como a minha pedra da vidência e a magia antiga estavam funcionando – ou não funcionando –, mas o que continuava girando sem parar na minha mente era a situação Heath/Aurox/Stark.

Afe, eu tinha lambido o sangue no dedo do garoto.

Que diabo eu ia fazer agora?

– Bom trabalho hoje, Zoey – a voz de Lenobia me assustou e Persephone levantou a cabeça por causa da minha reação.

Eu acalmei a égua e dei um olhar de desculpas para Lenobia.

– Sinto muito, a minha cabeça não estava aqui.

– Eu entendo totalmente – ela se encostou na portinhola da baia. – Tratar de Mujaji para mim é como tomar um comprimido para dormir. Ela me deixa tão relaxada que até já me aconcheguei na sua baia e dormi ali mesmo algumas vezes.

Eu suspirei.

– É, normalmente eu também me sinto assim quando cuido de Persephone.

– Mas hoje não?

Balancei a cabeça.

– Hoje não.

– Você quer conversar sobre isso?

Eu quase respondi automaticamente algo como “está tudo ok, eu estou bem”. Mas então eu lembrei que ela havia dito que esperou Travis por mais de duzentos anos. Ela devia entender de casos de amor complicados – além disso, Lenobia era mais do que apenas uma professora, ela era minha amiga. Então dei outra resposta:

– Sim, se você tiver tempo, eu realmente gostaria de conversar sobre isso.

Lenobia colocou um fardo de feno dentro da baia e se sentou nele.

– Eu tenho tempo.

Inspirei profundamente, sem saber direito por onde começar.

– Apenas escove a égua e comece a falar. O resto vai vir naturalmente – Lenobia disse.

Segurei a escova macia e comecei a passá-la em Persephone, seguindo o padrão de crescimento do seu pelo lustroso. E comecei a falar.

– Sei que é normal, e até parece ser meio esperado que uma Grande Sacerdotisa escolha mais de um cara, mas eu simplesmente não entendo como elas fazem isso.

Lenobia riu.

– O que foi que eu disse?

– Ah, Zoey, desculpe. Eu não estou rindo de você. É só que eu me esqueci de como você é tão jovem e de como há tantas coisas sobre vampiros que você não entende muito bem.

– Tipo, como fazer para lidar com mais de um cara ao mesmo tempo – eu disse, concordando.

– Bem, talvez. Mas para mim parece que a primeira coisa que você deve entender é que não se espera que Grandes Sacerdotisas tenham mais de um amante ao mesmo tempo. Elas simplesmente têm a opção de escolher mais de um parceiro sem serem julgadas, como uma mulher humana seria na cultura de hoje – Lenobia cruzou as pernas e se encostou na parede da baia, como se estivesse se acomodando para uma longa conversa íntima. – Zoey, pense em como vai ser a sua vida quando você completar a Transformação.

– Se eu completar a Transformação – eu observei.

Lenobia sorriu.

– Eu tenho confiança em você, então vamos dizer quando você completar. Você sabe quantos anos eu tenho?

– Muitos – eu falei sem pensar. – Ahn, desculpe. Não é que você pareça velha nem nada disso.

– Não fiquei ofendida. Eu nasci no ano de 1772.

– Faz muito tempo! – exclamei.

O sorriso dela se ampliou.

– Se o destino for bom comigo, eu provavelmente vivi apenas metade da minha expectativa de vida. Desde 1772, eu só amei um único homem, mas isso foi uma escolha minha, um voto que fiz. A maioria das vampiras encontram diversos amores durante suas vidas. Às vezes, elas já estão envolvidas com um vampiro quando conhecem um novo amor humano. Às vezes, é o contrário.

– Então, não é que se espere que elas tenham vários caras ao mesmo tempo – eu concluí.

– Exato. Trata-se mais de lógica e expectativa de vida. E escolha. Como nós fazemos parte de uma sociedade matriarcal, podemos escolher sem sermos julgadas ou condenadas. Isso a ajuda com o seu problema?

– Bem, sim e não. Obrigada por me explicar essa história de múltiplos parceiros, mas eu ainda não sei o que fazer em relação à coisa Heath barra Aurox – eu respondi, sentindo-me péssima.

– Por que você tem que fazer algo?

– Porque eu já fiz uma coisa. E ignorar isso não é justo com Aurox ou com Stark – suspirei de novo. – Ou, eu imagino, com Heath.

– Então você tomou Aurox como amante, junto com Stark?

– Não! – eu gritei. Então espiei Lenobia por cima de Persephone. Ela estava olhando imperturbável para mim, serena e sem julgamentos. – Mas eu bebi um pouco do sangue dele – eu admiti.

– E como você não é igual a uma novata normal do primeiro ano, isso é muito viciante e excitante para você. Certo?

– Sim, certo – eu reconheci.

– Stark sabe disso?

– Ah, Deusa, não! Ele iria surtar. Ele já está agindo feito um babaca possessivo sempre que Aurox está perto de mim.

– Mas ele sabe que você era companheira de Heath e que a alma de Heath está dentro de Aurox.

– É por isso que ele está agindo feito um babaca possessivo. Aparentemente, Stark não vai aceitar que eu fique com Heath, ahn, Aurox. E Stark pensa que nós mal falamos um com o outro.

– Aurox te atrai.

Ela não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi.

– Sim, atrai. Isso porque Heath está dentro dele. Não é uma coisa consciente. É estranho... e perturbador. Aurox normalmente é apenas um garoto bonitinho, por quem eu não me sinto particularmente atraída nem nada, mas de repente... bang !... eu pisco e ele diz ou faz algo tão igual a Heath que faz o meu coração doer.

– Se você não estivesse ligada a Stark, iria querer ficar com Aurox?

Mordi o lábio.

– Não tenho certeza. Eu amo Heath. Sempre vou amar Heath. Mas Aurox não é realmente o meu Heath.

– Você quer dizer que é como quando Kalona se sentia atraído por você, porque a alma da virgem A-ya está aí dentro, e ele reconhecia a presença dela?

Essa comparação me surpreendeu, mas, quanto mais eu pensava sobre ela, mais aquilo fazia sentido.

– Acho que você está certa. Uau, isso na verdade deixa as coisas mais fáceis para mim. Kalona realmente me queria por causa de A-ya, e eu tenho que admitir que sentia uma atração profunda por ele. Mas não era real. Eu não sou A-ya, e eu escolhi não amá-lo. Aurox não é Heath. Ele não precisa escolher me amar... os resquícios de Heath me amam, só isso.

– Eu vou ter que complicar as coisas para você, mas, para ser justa, você precisa saber que Aurox pode amar você também. Travis é a reencarnação do meu único companheiro, Martin. Ele não tem as memórias de Martin. Na verdade, ele é muito diferente do meu Martin, e ainda assim ele é tão eternamente devotado a mim quanto eu sou a ele – Lenobia sorriu com ternura, e os seus olhos se encheram de lágrimas. – Realmente é possível levar o amor com você, e alguns de nós tem sorte o bastante para encontrar esse amor novamente.

– Lenobia, eu estou superfeliz por você, mas realmente você complicou muito as coisas para mim – eu afirmei.

– Zoey, a sua situação já era complicada. Você quer o meu conselho sobre como eu lidaria com isso?

– Claro que sim – eu respondi.

– Pode ser que isso pareça frio ou até egoísta, mas, se eu estivesse no seu lugar, iria decidir com quem eu realmente queria ficar, sem me preocupar com o que os dois garotos queriam. O único modo de você ficar plenamente satisfeita com a sua escolha é se você fizer a escolha pensando em você, não em ninguém mais.

Abaixei a escova e olhei para ela.

– É mesmo tão simples assim?

– Se você conseguir ser honesta consigo mesma e então seguir em frente até o fim com essa honestidade, sim, é – Lenobia respondeu.

– Você me deu bastante coisa para pensar, mas pelo menos agora eu tenho uma direção – eu falei.

– Você tem que amar e ser verdadeira consigo mesma antes que alguém possa amá-la e ser verdadeiro com você.

O sino que sinalizava o fim das aulas soou. Coloquei a minha mão em punho sobre o coração e me curvei respeitosamente para ela.

– Obrigada, Lenobia.

Lenobia retribuiu com o mesmo gesto tradicional e disse:

– Que você seja sempre abençoada, Zoey Redbird.

– Stark, nós precisamos conversar – eu odiei dizer essas palavras provavelmente tanto quanto Stark odiou escutá-las. Afinal, quem não odiaria? Será que algum pai ou mãe, namorado ou namorada, professor ou chefe já começou uma conversa boa dizendo isso?

– Ok, mas eu pensei que a gente ia assistir Big Bang Theory e, você sabe, passar algum tempo juntos e sozinhos – ele tentou dar aquele seu sorriso metidinho.

– Bem, a gente ainda pode fazer isso. Talvez. Se você ainda quiser, depois que a gente conversar.

– Você está me assustando – ele falou.

Eu estendi a mão para ele. Stark a segurou e se sentou perto de mim na cama.

– Eu preciso dizer algumas coisas que provavelmente vão ser difíceis para você escutar, mas você não precisa se assustar.

– Não preciso me assustar porque, não importa o que seja, eu sempre vou ser o seu guerreiro e Guardião?

Ele parecia muito nervoso. Eu entrelacei os meus dedos aos dele.

– Sim, em parte é por isso, mas em parte também é porque eu te amo.

– Ah, ótimo. Eu gosto dessa parte.

– Eu também – eu afirmei. – Mas eu também preciso gostar de você.

– Mas você acabou de dizer que gosta.

– Não, eu acabei de dizer que amo você. E amo mesmo. Mas você tem feito algumas coisas ultimamente de que eu não gosto muito, e nós temos que conversar sobre isso.

– O que você quer dizer?

Eu tinha decidido que, se ia ser honesta comigo mesma, tinha que ser honesta com Stark. Então eu falei a verdade a ele, diretamente, sem rodeios.

– Eu não gosto como você me trata quando Aurox está por perto. Você age feito um babaca possessivo, e quero que você pare com isso.

Ele tentou tirar a sua mão da minha, mas eu não deixei e continuei:

– O ponto é: eu não acho que você seja um babaca possessivo. Eu gosto de quem você realmente é, e quero que você volte a ser aquele cara, o tempo todo.

– Tudo bem. Que seja.

– Não, Stark. Isso não vai dar certo se você não for honesto comigo e consigo mesmo. Você sempre vai ser o meu guerreiro, mas se você ficar todo na defensiva comigo e a gente não puder conversar sobre os nossos problemas, você vai acabar sendo apenas o meu guerreiro e nada mais.

– É isso o que você quer?

– Sério, Stark, pense um pouco. Se eu quisesse isso, por que a gente estaria tendo esta conversa?

– Então você não está terminando comigo?

– Espero que não – eu falei.

Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse se esvaziando. Os seus ombros desabaram e ele ficou olhando fixamente para o chão sob os seus pés.

– Saber que você ama Aurox está me deixando louco, e eu sinto muito se isso me faz agir feito um idiota. Mas eu não sei o que fazer em relação a isso, porque não suporto pensar em você ficando com ele.

– Ok, em primeiro lugar, eu não amo Aurox. Eu amo Heath. Eu sempre vou amar Heath. Você sabe disso.

– Mas Aurox tem a alma de Heath dentro dele.

– Sim, e eu fico feliz que ele tenha, afinal foi isso que salvou Vovó. Eu sempre vou ser grata a Aurox por isso, mas eu não o amo.

– Você não quer ficar com ele? Mesmo? – Stark levantou os olhos do chão e se virou para mim.

– Eu decidi que não quero ficar com ele. Mesmo – eu afirmei.

– Por que não? – Stark perguntou, mas, antes que eu pudesse responder, ele me cortou. – Não... não importa. Eu não quero saber por quê. Só o que importa é que você não quer ficar com ele. Não quero saber mais nada além disso.

Ok, eu tinha a intenção de contar a Stark que eu havia provado o sangue de Aurox, e que realmente era difícil para mim quando eu vislumbrava Heath dentro dele, e que na verdade eu ainda amava Heath e Stark. Mas, mesmo apesar disso tudo, eu tinha decidido que simplesmente não conseguia lidar com mais de um namorado ao mesmo tempo. Mas eu não consegui dizer nada disso porque Stark me puxou para os seus braços.

– Eu estou tão feliz que você me escolheu! – ele sussurrou.

Senti que ele estava trêmulo, então eu o abracei e sussurrei:

– Eu também.

E então ele de repente estava me beijando com um desejo tão quente que eu nem conseguia pensar no que queria dizer. Eu só conseguia pensar no seu toque e em quanto eu o amava.

Foi só mais tarde, quando o sol havia se levantado e Stark estava roncando ao meu lado, com o braço sobre o meu corpo e a lateral do seu corpo pressionada intimamente contra o meu, que a minha mente começou a funcionar de novo, e eu soube que precisava falar com Aurox.


19
Zoey

Não foi difícil tirar o braço de Stark de cima de mim e sair escondida da cama. Stark estava totalmente apagado. Acho que nem a explosão de uma bomba iria acordá-lo. Mesmo assim, fiquei pensando em como a nova capinha do meu celular era brilhante enquanto eu me vestia e saia do quarto na ponta dos pés. Afinal, uma bomba podia não acordar Stark, mas as minhas emoções em turbilhão provavelmente o acordariam.

Felizmente, não havia ninguém por perto. Apesar de estar no meio da manhã, o céu estava com cor de hematoma e havia um aroma de tempestade de primavera. No caminho para o ginásio, percebi que as glicínias plantadas perto do muro da escola estavam brotando com grandes cachos de flores roxas. Então eu espirrei. Sim, tempestades, flores e alergias. A primavera estava chegando a Oklahoma.

Fui até o ginásio passando pelo estábulo e fiz uma pausa no corredor entre os dois prédios, inspirando profundamente o cheiro de cavalo e feno para tentar manter a calma.

Eu só vou ser honesta. Vou magoá-lo mais se eu ficar prolongando isso e o evitando. Heath entenderia.

Eu bufei e dei risada de mim mesma. Não, Heath não entenderia. Ele iria dizer: “A gente pertence um ao outro, amor!”. E ignorar o fato de que eu estava terminando com ele. De novo.

Kalona estava parado sozinho no corredor ao lado da entrada para o porão.

– Zoey, você está acordada a essa hora – ele colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou rapidamente.

Eu não o tinha visto mais desde que ele cortou a cabeça de Dallas e saiu voando com os dois novatos se debatendo em seus braços. Ele não parecia diferente em nada. Acho que eu não deveria esperar isso dele. Mesmo assim, não pude deixar de ter uma curiosidade mórbida.

– Oi. E então, como foram as coisas com os dois novatos?

– Como deviam ser.

– Eles já estão... você sabe, mortos?

Kalona deu de ombros, fazendo suas asas enormes farfalharem.

– Eu os deixei no meio da Pradaria de Tallgrass. Com essas nuvens cobrindo o sol, pode ser que eles durem um dia. Mas certamente não vão durar mais do que isso.

– Você vai cuidar dos corpos deles?

Ele balançou a cabeça.

– Os coiotes vão fazer o serviço por mim.

– Isso é muito frio – eu comentei.

– A justiça normalmente parece fria. Isso não é uma característica que Thanatos e eu criamos. Julgar, condenar e fazer justiça não é agradável. Não é neste país que o símbolo da Justiça é uma donzela cega segurando uma balança?

– Ahn, acho que isso não quer dizer que ela seja fria. Acho que isso quer dizer que a Justiça não deve se basear na aparência de uma pessoa ou em que ela é, mas sim nos fatos.

– Não entendo a distinção que você está fazendo.

– Não importa – eu desisti. – Eu estou procurando Aurox. Você o viu?

– É o turno dele de patrulhar o perímetro da escola. Se você sair pela porta da frente do ginásio, ele deve passar por lá em breve.

– Ok, ótimo. Ahn, eu agradeço se você não contar a ninguém que eu estava procurando...

Kalona levantou a mão, cortando-me.

– Não vou fazer fofocas para o seu guerreiro.

Eu pensei em corrigi-lo e dizer que não era nada disso, que eu só não queria que os novatos ficassem fofocando sobre mim e Aurox, mas a minha boca não conseguiu formular essa mentira, então eu suspirei e agradeci.

– Sim, obrigada – e então saí apressada.

Também não havia ninguém na parte da frente da escola, e eu encontrei um banco não muito longe da porta do ginásio. Enquanto eu estava sentada esperando Aurox, observei as nuvens carregadas se aproximando e pensei no que Kalona havia dito.

Talvez ele estivesse certo. Julgar os outros não era agradável. Já houve um tempo em que eu teria pensado que julgar os outros era errado, mas eu havia concordado com Thanatos em sua condenação. Acho que eu até concordava com a pena que ela havia determinado. Então, será que isso me tornava uma hipócrita quando, no final de tudo, eu me senti mal e enjoada? Ou será que isso me tornava humana? Ou será que isso me tornava obtusa demais, impedindo que um dia eu possa ser uma Grande Sacerdotisa decente?

– Zoey? Está tudo bem?

Eu não escutei Aurox se aproximando, então foi um choque desviar a minha atenção das nuvens carregadas e ver os seus olhos com o brilho do luar. Eu pisquei surpresa e me chacoalhei mentalmente, tentando me concentrar de novo e pelo menos fazer a coisa certa.

– Sim, tudo bem. Eu só preciso conversar com você. É uma boa hora?

– Claro – ele fez um gesto na direção do banco ao meu lado.

– Ah, sim, sente-se.

Ele se sentou e eu tentei não me inquietar nem arrancar o meu esmalte.

– Parece que vai chover – eu disse. – E acho que acabei de ouvir um trovão ao longe.

– Há um cheiro de raios no ar – ele concordou.

Eu relaxei um pouco. Aquilo era algo que Heath definitivamente não diria.

– Eu nunca tinha pensado que raios pudessem ter cheiro, mas você provavelmente está certo. Raios e trovões andam juntos.

– Zo, o que está rolando?

Os meus olhos encontraram os dele. Heath estava definitivamente lá dentro.

– Eu não posso beber o seu sangue de novo.

– Mas você quer – ele argumentou.

– Aurox, ninguém tem tudo o que quer.

– Mas isso não é tudo, é apenas uma pequena parte do todo.

– Se eu realmente bebesse o seu sangue, a gente ia fazer amor. A gente provavelmente ia se Carimbar. Isso não seria uma coisa pequena para mim, nem para você, nem para Stark.

– Então é Stark. É por causa dele que você não quer ficar comigo – Aurox afirmou.

– Não. É por minha causa. Eu não posso ficar com dois caras ao mesmo tempo.

– E você não vai trocar Stark por mim porque eu não sou Heath.

– Eu não vou trocar Stark por você porque já estou comprometida com ele – eu disse com firmeza.

– É porque eu não sou bom o suficiente para você... por causa do modo como eu fui criado... por causa do que eu posso ser.

Coloquei a minha mão na dele.

– Não, Aurox. Por favor, não pense isso. Você não tem culpa de nada disso, e eu nem penso nisso quando estou com você.

– No que você pensa?

Eu sorri, apesar de estar triste, e continuei a falar a verdade para ele:

– Penso em como estou feliz por você estar aqui. Também penso que você e Heath formam uma boa dupla.

– Você sabe que a gente te ama – ele disse.

– Eu sei – falei baixinho e tirei a minha mão da dele. – Sinto muito.

– E como vai ser agora?

– Vamos ser amigos – eu afirmei.

– Amigos – a palavra soou tão sem emoção quando ele a repetiu.

– Sim, e Stark não vai mais agir feito um louco perto de você – eu garanti.

– Zo, isso porque ele não tem nenhuma razão para agir assim – Aurox se inclinou, deu um beijo na minha bochecha e então, parecendo completamente derrotado, disse: – Você poder avisar Kalona que vou conferir o perímetro da escola de novo?

– Sim, claro... – eu falei enquanto ele saía correndo na direção do muro de pedra da escola.

Eu me levantei, sentindo-me pesada e muito, muito cansada. Bem, eu falei a verdade para ele, mas foi péssimo. Tentei não pensar em nada a não ser em dormir, porque a última coisa que eu queria era que Stark acordasse e perguntasse por onde eu andei e o que tinha feito com que eu me sentisse tão mal. Voltei pelo mesmo caminho até o ginásio e pelo corredor que dava na entrada do porão. Kalona não estava lá. Eu suspirei e olhei dentro do ginásio. Ele também não estava lá. Imaginando que ele estava no porão para dar uma conferida rápida nos garotos adormecidos, eu caminhei sem fazer barulho na direção da escada.

– Sim, andei observando Zoey como eu disse que faria.

Quando eu escutei meu nome, parei porque fiquei surpresa. A voz veio da área do estábulo, da porta meio aberta que separava o corredor entre o ginásio e o celeiro.

– E...? Que merda, será que eu tenho que te perguntar tudo?

Então eu percebi quem estava falando sobre mim e me aproximei lentamente, sem acreditar no que ouvia.

– E as cores dela ficaram muito loucas durante o funeral. Mas eu acho que sei por quê. Não tem nada a ver com ela perder o controle do seu temperamento ou dos seus poderes.

– Shaylin, estou perdendo a paciência. Conte logo o que você viu, só isso.

Houve uma longa pausa. Escutei Shaylin soltar um suspiro, e então gelei por dentro quando a Profetisa falou para Aphrodite:

– Eu vi Zoey olhando para Aurox. Muito. As cores dela estavam loucas. Isso me fez pensar... Então, quando ela e Aurox foram até o refeitório depois do círculo, eu os segui.

– Caraca, Shaylin! Você não é uma Profetisa, você é uma superespiã! – Aphrodite exclamou, rindo. – Diga que Z. e o menino-touro se pegaram.

Mordi o lábio para não gritar.

– Quase. Os dois definitivamente estão atraídos um pelo outro. Ela sugou sangue do dedo dele.

– Para Zoey, isso é praticamente a mesma coisa do que se pegar. Caramba! Isso é muito parecido com o que eu vi. Então, deixe-me adivinhar, as cores dela ficaram loucas? Indicando confusão, frustração e irritação?

– Exato. Principalmente depois que ela...

Eu já tinha ouvido o bastante.

– Calem a boca! – eu gritei. A pedra da vidência no meu peito estava ardendo tanto quanto o meu rosto vermelho. Eu abri a porta com força, fazendo com que ela batesse contra a parede.

– Oh-oh – Aphrodite disse.

– Zoey! Não é o que você está pensando! – Shaylin saiu na defensiva, afastando-se de mim quando eu entrei no aposento.

– Sério? Como isso não é o que estou pensando, se eu acabei de ouvir você contar a Aphrodite que andou me espionando! – eu não pensei. Eu reagi. Segurando a pedra da vidência ardente, levantei a outra mão e pensei como eu queria tanto que Shaylin caísse no chão.

Uma bola de fogo azul saiu da minha mão e derrubou Shaylin. Ela caiu de costas, ofegante e chorando.

Não liguei para o choro dela. Eu me senti bem em fazer com que ela caísse de bunda no chão. Shaylin mereceu.

– Pare! Agora! – Aphrodite entrou na minha frente.

Eu franzi os olhos.

– Você estava falando sobre mim pelas minhas costas!

– E eu vou explicar por que em um segundo. Primeiro, você precisa cair em si. Controle essa merda louca que está rolando com você e acalme-se. Agora – ela olhou sobre o ombro para Shaylin. – Volte já para o porão.

Ainda chorando, Shaylin se levantou com dificuldade e passou correndo por mim.

– E então, o que ela é, a sua pequena Profetisa particular?

Em vez de me responder, Aphrodite observou Shaylin indo embora. Então ela colocou as mãos nos quadris e me encarou.

– Sério? Você quer falar merda para mim depois de usar essa maldita pedra para machucar Shaylin? Você perdeu completamente a cabeça.

– Pedra? – eu pisquei surpresa para ela e então olhei para o meu peito, percebendo que eu estava segurando a pedra da vidência com tanta força que ela estava fazendo a palma da minha mão doer. Assim que eu senti a dor, a pedra se resfriou. Eu a soltei. Sentindo-me confusa, tentei manter o foco no que tinha me irritado: Shaylin espionando a centra entre mim e Aurox. – Eu não estou falando sobre a pedra e não estou falando merda. Quero saber o que você pensa que está fazendo para mandar que eu seja seguida por aí.

– Eu tive uma visão. Era do seu ponto de vista. Você estava fazendo algumas coisas que Shaylin viu você fazer com Aurox.

– Quando você teve essa visão?

– Uns dias atrás. Não importa. O que importa é que...

– Não importa que você tenha escondido de mim uma visão sobre mim por dias?

– Não, o que importa é o motivo. Foi porque eu também vi você perdendo o controle sobre o seu maldito temperamento, sem conseguir controlar essa maldita pedra. E foi exatamente isso o que acabou de acontecer.

– Não, não foi isso o que acabou de acontecer. Eu controlei a maldita pedra. Eu quis derrubar Shaylin, e a pedra fez exatamente o que eu queria.

Aphrodite balançou a cabeça de um lado para o outro.

– Você prestou atenção no que está dizendo? Claro, você deveria ficar irritada com o que acabou de ouvir. Mas a Zoey normal nunca ia querer machucar Shaylin. Aliás, a Zoey normal também nunca falaria “merda” ou “maldita”.

– A Zoey normal nunca ia imaginar que uma das suas melhores amigas ia ficar falando dela pelas costas e mandando espioná-la!

– Eu ia te contar sobre a visão. Eu ia te contar sobre Shaylin. Eu só precisava esperar o momento certo – Aphrodite argumentou.

– Quer saber, Aphrodite? O momento certo não era depois de você falar sobre mim e me espionar. Ah, que se dane. Tô fora – comecei a me afastar dela, mas Aphrodite entrou na minha frente de novo.

– Z., tem mais coisas rolando aqui do que apenas o fato de você estar irritada comigo. Acho que a magia antiga está afetando você, e não de uma forma boa. Nós precisamos conversar sobre isso. Você tem que me deixar contar o resto da minha visão.

– Estou tão cansada de ouvir o que eu tenho que fazer. Saia da frente, Aphrodite – o meu peito estava ardendo quando eu forcei a passagem.

Ela cambaleou para trás, fazendo uma exclamação de choque. Eu não me importei. Já estava cheia dela.

Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que eu tinha que ir. Se eu estivesse com as chaves do meu Fusca, teria dirigido até a casa de Vovó, mas as chaves estavam lá no meu quarto e eu não queria ver Stark naquela hora e contar a ele porque eu estava tão perturbada. Que inferno, se aquilo não tivesse sido durante o dia, eu já teria trombado com Stark, graças à ligação idiota que a gente tinha.

Eu precisava de tempo. Eu precisava de espaço. Eu sentia como se a raiva estivesse fervilhando embaixo da minha pele. Eu não podia fugir disso porque eu não podia fugir de todo mundo me irritando e me dizendo o que fazer. Eu precisava pensar sem ficar sendo incomodada constantemente com chatices!

Mudei de direção, afastando-me dos dormitórios, até chegar ao muro que circundava a escola. O muro que Aurox patrulhava. Que droga! Eu também não queria vê-lo.

Foi então que eu decidi mandar pro inferno os policiais e a sua prisão domiciliar. Eu não tinha matado o prefeito e, se eu precisava dar uma volta fora do campus , eu ia dar uma volta fora do campus ! Comecei a correr para a parte leste do muro, onde havia uma passagem escondida, que eu sabia que não ficava muito longe dali.

Shaylin

Shaylin tentou parar de chorar. Ela não era uma chorona. Ela estava acostumada a não sentir pena de si mesma. Mas desta vez era diferente. Primeiro, aconteceu aquela coisa horrível com Dallas e os dois novatos. Ela sabia o que ia acontecer. Shaylin tinha visto a morte deles nas cores de Thanatos. E ela havia ficado de boca fechada e acreditado que Thanatos estava fazendo a coisa certa.

Depois Shaylin fez exatamente o contrário: ela tinha aberto a boca e fofocado sobre os assuntos pessoais de Zoey porque sentiu que estava fazendo o certo. Bem, Shaylin também tinha sentido que estava se encaixando na Morada da Noite e fazendo um bom trabalho com o seu dom.

Mas isso não podia ser verdade, pois ela se sentiu péssima depois que Dallas foi morto e que a novata mais poderosa do mundo a fez cair de bunda no chão.

Ela tinha se atrapalhado totalmente. Duas vezes.

Shaylin se encolheu no canto escuro do porão onde ela tinha montado a sua cama. Ela se sentou com os joelhos dobrados e o seu travesseiro em cima deles. Ela pressionou o rosto contra a fronha macia para abafar o choro. Mas ela não precisava ter se preocupado. A maioria dos novatos vermelhos dormia durante o dia como se estivessem mortos.

Era isso o que eu devia estar fazendo também, ela repreendeu a si mesma. Eu devia estar dormindo, e não falando com Aphrodite sobre Zoey. Agora elas estão bravas uma com a outra e também comigo! Eu nunca vou entender essa coisa de Profetisa.

Shaylin não pensou no fato de que Aphrodite aparentemente estava certa em relação ao problema do controle da raiva de Zoey. Naquele momento, não importava que Aphrodite estivesse certa. Naquele momento, só o que importava era que parecia que o mundo dela – e os seus amigos – estavam entrando em colapso.

– Ei, Shaylin, o que aconteceu?

Abafando o choro, Shaylin levantou o rosto e viu Nicole em pé ao seu lado, esfregando os olhos, com o cabelo desgrenhado, como se ela fosse uma sonâmbula.

– Na-nada. E-eu estou bem – ela sussurrou e então enxugou o rosto na fronha, forçando-se a parar de chorar.

Nicole sentou ao lado dela.

– Não, você não está bem. Você está se acabando de chorar.

– Shhh – Shaylin pediu silêncio a ela e olhou em volta para conferir se todo mundo ainda continuava dormindo. – E-eu estou bem.

Nicole se aproximou mais dela, de modo que os seus ombros se tocaram, e sussurrou:

– Fique tranquila. Ninguém vai ouvir. Conte o que aconteceu.

Shaylin enxugou os olhos de novo e então falou em voz baixa:

– Eu acho que me atrapalhei usando a minha Visão Verdadeira.

– Ei, você é boa usando a sua Visão. Você viu que eu mudei – Nicole sorriu para ela. – Você devia confiar mais em si mesma.

– Eu devia aprender quando é a hora de abrir a minha boca idiota e quando é a hora de manter a minha boca idiota fechada – Shaylin afirmou. Ela enfiou a mão dentro da sua bolsa, pescou um lenço de papel amassado e assoou o nariz.

– Você não é idiota.

– Se você soubesse que Thanatos ia mandar Kalona cortar a cabeça de Dallas, teria dito alguma coisa?

Nicole fez uma careta.

– Você não pode me perguntar isso. Não consigo ser imparcial em relação a Dallas.

– Você ainda o ama?

Nicole balançou a cabeça rapidamente.

– Não, esse é o ponto. Eu nunca o amei de verdade, e eu sabia como ele era perigoso. Então eu não posso ser imparcial em relação à sua morte.

Enquanto a ouvia, Shaylin deu um pequeno soluço. Nicole colocou o braço ao redor dela.

– Se você está mal por causa do que aconteceu com Dallas, não fique.

– Não foi só isso, apesar de isso ter sido ruim. Eu falei com Aphrodite sobre as cores de outra pessoa, e eu devia ter ficado fora disso.

– Mas Aphrodite também é uma Profetisa. Ela é meio maldosa e louca, mas ainda assim é uma Profetisa. Acho que é normal uma Profetisa conversar com a outra sobre coisas como a sua Visão Verdadeira.

– Eu também pensava isso. Agora não tenho tanta certeza. Eu queria saber exatamente qual é a coisa certa a fazer.

– Acho que várias vezes não há uma única coisa certa a fazer em determinadas situações.

Shaylin levantou os olhos para Nicole.

– Você é muito inteligente.

– Que nada, é só que eu já cometi um monte de erros – Nicole sorriu para ela. – Mas agora eu não errei. Consegui fazer você parar de chorar.

Shaylin tentou sorrir.

– Conseguiu mesmo. Obrigada. E, aproveitando, as suas cores se tornaram muito bonitas.

– Viu só, se você acha que as minhas cores são bonitas, isso prova que você é uma grande Profetisa.

Shaylin estava sorrindo para Nicole quando a novata se inclinou devagar e a beijou nos lábios com delicadeza. Shaylin congelou e arregalou os olhos de choque. Então Nicole se afastou dela e rapidamente tirou o braço do ombro de Shaylin.

– Desculpe – Nicole sussurrou. Mesmo na escuridão do porão, Shaylin percebeu que o rosto de Nicole ficou vermelho. – Não sei por que eu fiz isso. Sinto muito.

Shaylin continuou olhando para ela, observando a beleza suave das suas cores e sentindo ainda o calor macio dos seus lábios.

– Não precisa se desculpar – então ela colocou os braços em volta da cintura fina de Nicole, encostou a cabeça no ombro dela e disse: – Você fica comigo e me abraça?

Nicole colocou o braço de volta nos ombros dela.

– Shaylin, querida, eu fico com você para sempre se você quiser.


20
Kalona

Dez minutos mais cedo

Kalona estava parado perto da entrada do porão esperando Aurox voltar e pensando que o garoto provavelmente ia demorar um pouco, já que Zoey tinha ido procurá-lo, quando sentiu uma coceira quente e familiar sob a pele.

– Erebus – ele resmungou.

– Você disse algo?

Kalona olhou rapidamente para o corredor.

– Aphrodite, o que posso fazer por você? – ele não colocou a mão em punho sobre o coração nem se curvou para ela. Sim, a garota era uma Profetisa de Nyx, mas também era a humana mais irritante que ele já havia conhecido. E Kalona já conhecera muitos humanos.

– Preciso falar com Shaylin. Ela está no porão, certo?

– Todos os novatos vermelhos estão no porão – ele respondeu.

– Menos os dois que você largou no meio do nada para morrerem.

– Você gostaria de fazer alguma consideração a respeito disso?

– Não, só estou afirmando o óbvio. Vou acordar Shaylin. Eu agradeceria se você pudesse nos dar um pouco de privacidade para conversar.

– Como quiser, Profetisa. O seu guerreiro está a uma distância em que pode ouvir os seus gritos, no caso de haver problemas lá embaixo?

– Não preciso de Darius para lidar com os novatos vermelhos. Eu tenho isto aqui – ela deu um tapinha na sua bolsa.

– Você acha que pode apartar uma briga com uma bolsa? – ele quase riu.

– Não, eu acho que posso apartar uma briga com isto aqui – Aphrodite abriu a sua bolsa de couro. Kalona espiou dentro dela e viu um pequeno cilindro preto.

– Você vai jogar esse recipiente de perfume em alguém?

– Ah, por favor, entre neste século. Não é perfume, é um spray de pimenta. Eu estou morando em uns túneis no centro da cidade, embaixo de um porão. Os distritos Brady, Greenwood e outros lá perto estão passando por uma reforma adorável, mas vale a pena andar protegida e estar preparada para tudo.

– Então eu vou lhe dar a privacidade que deseja – ele se curvou para ela nessa hora. Aphrodite era tão irritante que ele quase se esquecia de como ela também podia ser divertida.

Com a sua mão com unhas pintadas de rosa, Aphrodite fez um gesto para que ele fosse embora antes de entrar no porão.

Kalona pensou em chamá-la e contar que Zoey estava ali perto com Aurox, mas então ele pensou melhor. Realmente seria divertido ver o que aconteceria se Aphrodite encontrasse Zoey nos braços de Aurox.

Kalona estava rindo quando saiu do ginásio, passando através do estábulo. Ele parou do lado de fora, recompôs-se e tentou descobrir por qual direção o bastardo do seu irmão iria chegar. Não demorou muito. Receando o encontro, mas resignado por ser inevitável, Kalona se dirigiu ao Templo de Nyx.

Ele não tentou entrar. Na verdade, ele desviou os olhos quando passou pela grande porta de madeira e deu a volta pelo edifício de pedra até a parte de trás do templo. Ele esperava que o seu irmão iria se manifestar, do seu jeito tipicamente espalhafatoso, onde quer que Kalona estivesse. E o prédio iria bloquear a sua luz o suficiente para evitar que todos os professores corressem para lá.

Kalona não teve que esperar muito. A bola de luz do sol que se materializou acima do solo era, de fato, espalhafatosa, mas Kalona não cedeu ao impulso de encobrir os olhos. Erebus saiu dos raios ofuscantes, assentindo e sorrindo ironicamente.

– Parabéns por atender rapidamente ao meu chamado, irmão – Erebus disse.

– Fico perplexo como você finge que eu quero alguma coisa com você. Quem veio até mim foi você. Como diriam no mundo moderno, vivo há séculos sem ligar para você e sem nem pensar em você.

– Sem nem pensar em mim? Mesmo? Pois eu acho que, desde a sua Queda, os seus pensamentos se voltam com frequência para o Mundo do Além.

– Você não é Nyx, irmão. Eu também fico perplexo como você confunde o meu interesse pela Deusa com interesse por você.

Erebus sorriu.

– Pois eu posso acabar com a sua perplexidade facilmente. Nyx e eu somos inseparáveis. Os interesses dela são os meus, assim como os meus são os dela.

– Inseparáveis? Mesmo? – Kalona fez uma cena, fingindo que estava procurando alguém perto do seu irmão. – Será que a Deusa está se escondendo na sua bola de sol? Ah, não. É claro que ela não estaria aí. Pelo que me lembro, a Deusa prefere o toque frio e suave da luz da lua em vez da luz bruta do sol.

– Nyx me enviou aqui!

Kalona sorriu devagar, satisfeito.

– Então seja bem-vindo, irmão, como o moleque de recados da Deusa.

Erebus desfraldou suas asas. Elas se abriram ao redor dele e brilharam como a luz do sol refletida em barras de ouro.

– Eu não vim como um moleque de recados, mas sim como um imortal, Consorte da Deusa da Noite, e eu trago um aviso dela!

– Impressionante – Kalona falou sarcasticamente. – Mas se você não parar de cintilar e de gritar, o seu aviso vai ser testemunhado por todo o centro de Tulsa.

Erebus fechou as asas contra as costas. A sua voz saiu sem aquele volume sobrenatural, mas a sua expressão não perdeu em nada a sua presunção de imortal.

– Você já capturou Neferet?

– Com certeza você me observa o bastante para já saber a resposta a essa pergunta.

– Então você ignorou o édito de Nyx.

– Eu não ignorei nada. Estive ocupado cumprindo os meus deveres como guerreiro Juramentado da Sacerdotisa desta Morada da Noite – Kalona afirmou.

– Você está fora de forma se o fato de executar três crianças pode distraí-lo tanto a ponto de ignorar a ordem de Nyx e de falhar ao perceber que a magia antiga está se manifestando no mundo moderno.

Kalona se recusou a morder a isca de Erebus. Ele não fez nenhum comentário sobre Nyx e apenas disse calmamente:

– Sgiach lida com magia antiga há séculos.

– Sim, Kalona, mas Sgiach é uma Rainha ancestral que vem lidando com magia antiga por todos esses séculos na Ilha de Skye, um lugar dedicado a preservar a magia antiga há muito tempo. Tulsa, em Oklahoma, não é a Ilha de Skye, e não há nenhuma Rainha vampira ancestral aqui com experiência em usar a magia antiga – Erebus falou em um tom professoral, como se estivesse dando uma aula para algum idiota cabeça oca.

– Sei exatamente onde eu estou e quem está comigo. Os meus atos são corretos, ao contrário dos seus. Eu decapitei um vampiro que foi condenado por tentativa de assassinato pela minha Grande Sacerdotisa. Ela não usou magia antiga. Ela simplesmente invocou a lei ancestral. E o vampiro que eu executei não era uma criança – Kalona acrescentou, não gostando do tom de seu irmão, como sempre.

– O garoto mal tinha dezoito anos.

– Se você quer discutir a execução de um assassino confesso, então discuta com Thanatos, o Conselho da Escola, duas Profetisas de Nyx e Zoey Redbird.

– Mas nenhum deles levantou a espada que cortou a cabeça do vampiro, assim como nenhum deles levou dois novatos para a morte certa – Erebus rebateu.

– Eu sou guerreiro Juramentado de Thanatos. Se ela me dá alguma ordem, eu tenho que obedecer.

– É uma pena que você não tenha demonstrado esse tipo de lealdade cega para Nyx quando era guerreiro Juramentado dela – Erebus falou.

Kalona encontrou o olhar âmbar de seu irmão sem se abalar.

– Eu aprendi com os meus erros do passado. E você, aprendeu?

Erebus desviou o olhar.

– Dê logo o aviso que você veio dar e desapareça. Você me cansa – Kalona disse.

– Muito bem, você está avisado de que a magia antiga foi despertada quando leis ancestrais foram invocadas. Nyx adverte que vocês estão lidando com forças que podem não ser capazes de controlar.

– Nyx não deveria dizer isso a Thanatos? Foi a Grande Sacerdotisa dela que começou a lidar com essas forças.

– Ainda é você quem pode ser o fiel da balança em uma batalha entre Luz e Trevas. A Deusa já viu isso acontecer antes perto de você. Os Raven Mockers foram feitos com magia antiga.

Kalona sentiu uma terrível punhalada de culpa, mas disse:

– Os meus filhos foram feitos de estupro e ódio.

Erebus assentiu solenemente.

– Sim. Magia antiga.

– Nyx controla a magia antiga! – Kalona exclamou.

– Você se tornou tão iludido, tão arrogante, que acredita que pode lidar com o mesmo tipo de poder que a Deusa?

– Eu não tenho nenhuma ilusão! Minha mente nunca esteve tão clara desde que eu Caí – Kalona avançou sobre Erebus. – E a minha arrogância não é nada comparada à sua, irmãozinho. Sem mim para dar equilíbrio, é você que acredita que é tão poderoso quanto Nyx.

– Eu estou falando justamente de equilíbrio, irmão. Os touros são magia antiga, e eles deveriam estar eternamente em combate – Erebus afirmou.

– Eu não tenho nada a ver com o touro branco e o touro preto.

– Você acredita mesmo nisso? Você esteve ao lado dela por tempo o bastante para saber que a magia antiga é tão traiçoeira quanto poderosa. Seja sábio! Pense bem! Tome cuidado com os poderes que estão sendo despertados antes que seja tarde demais. Este é o aviso da Deusa!

Kalona franziu os olhos e se virou para outro lado quando a bola de luz do sol engolfou Erebus e desapareceu, deixando uma espécie de purpurina dourada irritante que o imortal teve que limpar das suas próprias asas.

– Nyx! – Kalona falou para o céu. – Ele me chama de arrogante e então desaparece em uma explosão solar de brilho dourado. Eu não entendo como você continua a suportar a presença vaidosa dele!

Uma risada familiar, que sempre fez Kalona se lembrar de uma lua cheia avermelhada, ecoou ao redor de Kalona. Ele fechou os olhos por causa da dor da ausência dela, enquanto a esperança acelerava as batidas do seu coração.

– Você me observa. Eu sei que você me observa – Kalona sussurrou.

A risada esvaneceu. Kalona abriu os olhos. Sentindo-se como se estivesse carregando um grande peso, ele começou a caminhar. Ele precisava voltar para zelar pelos novatos. Isso era uma coisa que ele podia fazer, e fazer bem.

– Nenhum outro novato vai conseguir fazer nada estúpido para depois ser condenado... Não enquanto eu zelar por eles – ele falou seus pensamentos em voz alta.

O que Kalona não disse e não gostou nem de admitir em silêncio para si mesmo foi que ele não conseguia tirar da cabeça os gritos de misericórdia dos dois novatos. Decapitar o vampiro não tinha sido difícil. Dallas tentara assassinar uma vampira e havia sido condenado justamente. Eram os dois novatos que o assombravam. Eram garotos que apenas fizeram uma escolha insensata e seguiram o líder errado, ele pensou.

– Compaixão.

A palavra sussurrada fez Kalona parar.

– Nyx?

– Compaixão.

A palavra foi repetida. Ela foi falada em um tom muito baixo para que Kalona tivesse certeza, mas o afeto, o amor infinito contido nela... Só podia ser Nyx. E então Kalona percebeu onde ele havia parado. Ele estava diante da porta de madeira do Templo de Nyx.

A porta de madeira que havia se transformado em pedra sob o seu toque quando a sua Deusa negou que ele entrasse.

Devagar, como se estivesse atravessando os séculos de espera por ela, Kalona levantou a mão. Ele colocou a palma da mão contra a porta e esperou que ela se transformasse em uma pedra inflexível.

A porta continuou sendo de madeira.

A mão de Kalona tremia quando tocou a maçaneta. Ele a girou e empurrou, e a porta de madeira se abriu, fazendo um som de suspiro de mulher.

Kalona entrou no saguão do Templo de Nyx. Ele ouviu água corrente, mas mal olhou para a fonte de ametistas reluzentes que ficava em um nicho na grossa parede de pedra. Ele passou por baixo de um portal em arco e entrou no coração do templo da Deusa.

O aroma de baunilha e lavanda das velas preenchiam o ambiente com uma fragrância doce e inebriante. Elas estavam em candelabros de ferro suspensos do teto. Mais velas aromáticas estavam em outros candelabros independentes em formato de árvores que ficavam perto das paredes. Candeeiros com o formato de uma graciosa mão de mulher estavam acesos nos cantos do aposento. Uma chama ardia em uma reentrância no chão de pedra. Kalona quase não reparou em nada disso. O seu único foco estava na mesa de madeira antiga no centro do templo. Em cima dela, havia uma primorosa estátua de mármore de Nyx. Kalona avançou de modo hesitante e se ajoelhou diante da estátua. Ele levantou os olhos para a estátua. Ela parecia brilhar. Kalona percebeu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Com uma voz abafada pelas lágrimas, ele falou para ela:

– Obrigado. Eu sei que não mereço me ajoelhar aos seus pés. Pode ser que eu não mereça nunca. Não depois do que eu fiz para nós dois. Mas obrigado por permitir a minha entrada no seu templo – então Kalona abaixou a cabeça e ficou chorando, ajoelhado diante da sua Deusa, por um longo tempo.

Neferet

Neferet se encolheu toda, abraçando os filamentos de Trevas que ainda a cobriam, e então reviveu o final de sua jornada.

Cascia Hall era como os humanos chamavam a escola particular que havia sido construída no meio do centro de Tulsa, naquela terra que dizia tanto a Neferet. A escola humana, apenas para meninos, é claro, havia sido recentemente fundada pelo ramo Agostiniano do Povo da Fé. No ano de 1927, ela não estava à venda. Mas esse fato não preocupou Neferet. O Conselho Supremo não estava pronto para comprar outra escola nos Estados Unidos – pelo menos não na cidade de Tulsa, Oklahoma, que existia em 1927.

Neferet sabia que o tempo estava a seu favor. Nos setenta e cinco anos que levaram para que ela manipulasse, intimidasse, conduzisse e influenciasse o Conselho Supremo a fazer uma oferta para os monges Agostinianos que eles não pudessem recusar, além de indicá-la como a Grande Sacerdotisa da recém-adquirida Morada da Noite de Tulsa, Neferet descobriu a sua verdadeira natureza.

Ela era a Tsi Sgili. Não, ela era mais do que uma simples história de fantasmas dos nativos americanos. Ela era uma poderosa Grande Sacerdotisa cujos dons eram muito maiores do que pareciam. Neferet era a Rainha Tsi Sgili.

Não era de se estranhar que ela tivesse sido tão atraída para Oklahoma. Foi através do povo Cherokee que se fixara lá que Neferet descobriu um aspecto escondido do seu dom intuitivo. Ela não só conseguia ler as mentes das pessoas, como também absorver a sua energia. Mas apenas no momento das suas mortes.

Ela aprendera isso com a velha mulher. Neferet tinha feito mais do que roubar os seus pensamentos enquanto ela morria. Ela havia absorvido o poder da anciã.

A morte se tornou uma droga viciante, e Neferet nunca conseguia ficar satisfeita.

Ela seguira os ecos na mente da idosa e começou a fazer perguntas sobre a Tsi Sgili.

Foi assim que ela aprendeu a própria história. Uma Tsi Sgili vivia afastada da sua tribo. Elas eram poderosas e tinham prazer com a morte. Elas se alimentavam da morte. Elas podiam matar com as suas mentes. Isso era o ane li sgi que a velha mulher havia pensado logo antes de morrer: uma morte causada pela mente de um ser poderoso.

O marido da velha Cherokee tinha inadvertidamente ensinado Neferet a usar melhor o seu dom. Ele foi menos corajoso do que a sua mulher. Pensando em se salvar, ele acabou se abrindo para Neferet. Através das lembranças que ele compartilhou com ela por vontade própria, Neferet aprendeu muito mais sobre a Tsi Sgili. Ela se alimentou das histórias tribais que ele tinha em sua memória e descobriu que era possível entrar em uma mente e fazer as batidas do coração da pessoa pararem enquanto ela se alimentava dos pensamentos, da energia e do poder da vítima, até que ela estivesse completamente seca. Drenar a energia do corpo era muito mais satisfatório do que simplesmente drenar o sangue. E muito mais efetivo.

Como Neferet tinha ganhado mais poder, também começou a sonhar mais com o imortal alado, Kalona. Ele fazia amor com Neferet enquanto ela dormia. Não da forma como os seus amantes inadequados humanos ou vampiros haviam tentado. Kalona possuía o seu corpo e usava a dor como prazer, e o prazer como dor.

Por todo esse tempo os seus sussurros pintaram imagens de um futuro onde eles reinariam como deuses sobre a Terra e anunciariam uma nova era de iluminismo para os vampiros. Onde ela era a sua Deusa e ele era o seu Consorte ardoroso, poderoso e sedutor.

– Mas primeiro você precisa me libertar – ele havia dito enquanto o seu delicioso fogo frio queimava o corpo dela. – Siga a canção até Tulsa, e então você vai completar a profecia e encontrar um meio de me libertar!

Neferet o escutou. Ah, mas ela encontrou muito mais do que um meio de libertá-lo. Ela descobriu como libertar a si mesma!

Ela não tinha compreendido totalmente até tomar posse da sua Morada da Noite em Tulsa. Havia um poder naquela terra que ressoava dentro dela. Estava lá em 1927, e continuou lá depois da virada do século vinte e um.

A terra vermelha a tinha atraído com o seu poder ancestral, mas foi a morte da sua primeira novata que de fato selou o seu destino.

É claro que Neferet já havia testemunhado a morte de muitos novatos antes de se tornar a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Frequentemente ela era chamada para suavizar a passagem de um novato morrendo com o dom do seu toque. Neferet era respeitada pela sua habilidade de acalmar um novato que estava rejeitando a Transformação. Nenhum vampiro nunca imaginou que ela tirava muito mais do que dava. Mas os novatos sabiam disso. Nos seus últimos momentos, enquanto Neferet os segurava em seus braços, eles percebiam que ela se alimentava da sua energia. É claro que nessa hora eles estavam longe de serem capazes de dividir essa informação com qualquer um.

Então, quando a jovem quarta-formanda que havia adotado o nome de Crystal começou a tossir o seu sangue vital, no meio da primeira aula de Equitação de Lenobia na nova Morada da Noite de Tulsa, Neferet foi chamada imediatamente – não apenas porque ela era a Grande Sacerdotisa, mas porque ela era amplamente conhecida por ser capaz de suavizar a dor de quem estava morrendo.

– Afastem-se! Abram espaço! Lenobia, leve os novatos para o ginásio e peça para Dragon Lankford trazer guerreiros e uma maca para a garota – Neferet ordenou quando entrou apressada no estábulo. Então ela voltou sua atenção para Crystal. A novata havia desabado no chão de areia e terra da arena e estava tendo convulsões, sangrando pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.

Neferet não prestou atenção no sangue nem na lama. Ela colocou a novata em seus braços, confortando-a com seu toque mágico, enquanto começou a entrar na mente de Crystal, absorvendo a sua energia vital minguante. Neferet estava preparada para a onda de poder que vinha com a absorção da força vital. Mas ela não estava preparada para o dom puro e delicioso que veio junto com a morte da sua primeira novata.

Na sua toca, o corpo de Neferet estremeceu de prazer ao reviver aquele momento poderoso.

Crystal levantou os seus olhos ensanguentados para ela.

– Não! – ela tossiu, engasgou e conseguiu gritar: – Eu não estou pronta para morrer!

– É claro que está, minha querida. Chegou a sua hora. Eu estou aqui.

– Você não vai me deixar? – a garota suplicou, chorando.

– Você não vai me deixar – Neferet sussurrou quando entrou na mente de Crystal.

A força vital de Crystal inundou Neferet. Tão pura, tão forte, tão doce que era como se a novata não estivesse morrendo, mas sim se transformando em um ser de luz e poder que agora viveria dentro de Neferet.

Neferet se curvou reverentemente sobre o corpo da garota moribunda, aceitando esse novo dom que recebeu junto com a Morada da Noite de Tulsa.

Os guerreiros pensaram que Neferet ficou arrasada com a morte da primeira novata na sua própria Morada da Noite, e que por isso ela havia se curvado sobre o corpo de Crystal, chorando histericamente.

Eles não sabiam que as lágrimas de Neferet eram de alegria, e que ela estava chorando porque finalmente havia reconhecido o seu destino. Rainha Tsi Sgili era um título modesto. Na verdade, ela deveria ser chamada de Deusa Tsi Sgili, pois havia se tornado imortal e um dia iria ocupar o seu lugar entre os deuses e ser venerada como tal!

Mas o seu dom não acabava aí. Mesmo antes de Neferet cumprir a profecia Cherokee e libertar Kalona, os novatos da sua Morada da Noite começaram uma metamorfose junto com ela.

O corpo de Neferet se contorceu. A sua respiração se acelerou enquanto ela prosseguia através dos reinos do tempo e das camadas do seu inconsciente.

Os novatos que morriam na sua Morada da Noite renasciam diferentes, ligados a ela por Trevas e sangue. Neferet acreditava que havia gerado um novo tipo de exército, além de uma nova espécie de vampiros. Essas novas criaturas iriam protegê-la e servi-la quando ela e o seu Consorte governassem a nova era dos vampiros.

Então Zoey Redbird havia sido Marcada, e o que se seguiu foi um passo em falso atrás do outro, uma irritação depois da outra, uma derrota após a outra. Neferet odiava aquela novata e os seus amigos rebeldes com uma paixão que obscurecia todas as suas outras paixões.

Zoey Redbird era a razão pela qual Neferet estava escondida em uma toca, vestida apenas de Trevas e sangue.

Uma deusa não deveria sofrer esse tipo de aborrecimento! Uma deusa não deveria ser impedida de cumprir o seu destino divino!

Como em resposta ao seu turbilhão de emoções, o céu fora da toca rugiu com trovões, e um raio atingiu a terra com uma força que reverberou pela pele de Neferet.

Neferet, a Rainha Tsi Sgili, abriu os seus olhos.

– Eu fui tão idiota! Eu sou uma imortal. Ninguém pode ofuscar a minha majestade a não ser que eu permita. E não vou mais permitir! Mundo, prepare-se para me venerar!

Raios e trovões aplaudiram Neferet e a chuva acariciou o seu corpo, enquanto ela se preparava para sair de seu esconderijo em direção ao futuro, renascida, pronta para abraçar o seu destino.


21
Zoey

No começo, eu não sabia para onde estava indo. Eu só precisava sair dali. Eu me enfiei através da passagem escondida no muro e dei a volta pelo lado sul da escola até chegar rapidamente na Utica Street. Olhei para a minha direita, pensando nas minhas opções. A Utica Square ficava a apenas uma quadra dali. Era domingo de manhã, mas o Starbucks provavelmente estava aberto. Eu podia pedir um daqueles cappuccinos ou frappuccinos com milhões de calorias, sentar lá fora e tentar descobrir o que havia acontecido com a minha vida.

Não. Eu não queria ver ninguém. Eu não queria falar com ninguém. Eu não queria ter que lidar com os olhares que as minhas tatuagens iriam provocar nas pessoas.

Eu não queria lidar com nada nem ninguém.

Um trovão ressoou ao longe, e eu levantei os olhos para o céu, que estava escurecendo.

– Vá em frente. Pode chover em cima de mim. O meu dia não pode piorar muito – eu falei comigo mesma quando atravessei a rua.

Sim, eu estava irritada.

Eu não conseguia acreditar no que Aphrodite e Shaylin tinham feito. Elas deveriam ser minhas amigas! Bem, pelo menos Aphrodite deveria ser minha amiga. Eu pensava que Shaylin e eu estávamos ficando amigas. Quero dizer, a gente havia tido aquela conversa na cozinha dos túneis. Ela se abriu para mim em relação ao uso da Visão Verdadeira. A gente inclusive falou sobre como o seu dom podia ser invasivo. Caramba, a gente tinha feito um trato! E esse trato não tinha nenhuma parte em que ela me espionava e depois fofocava para Aphrodite como uma garotinha do ensino fundamental.

O meu rosto ficou quente só de pensar nela observando a cena entre mim e Aurox no refeitório. Que inferno, o meu corpo inteiro ficou quente! Não era de se espantar que eu a tivesse derrubado no chão. Aphrodite ficou toda chocada com o que eu havia feito, mas foi Aphrodite quem armou toda aquela coisa de espionagem.

Será que Aphrodite era mesmo minha amiga? Ela definitivamente era uma bruxa do inferno quando eu a conheci. Será que ela tinha mudado, ou será que eu esqueci quem ela realmente era e fiquei cega, sem enxergar o que eu não queria ver? Será que eu estava apenas acreditando no que eu queria acreditar em relação a ela?

Que inferno! Será que Aphrodite ainda continuava apenas atrás de poder e popularidade? Será que essa história de espionagem era só uma parte do plano dela para me enfraquecer e depois tomar o meu lugar?

Houve um estrondo no céu, como que ecoando as minhas emoções.

O meu peito queimava quando atravessei outra rua e fiz uma pausa, percebendo que eu havia chegado perto de casas caprichosamente conservadas. Afe, eu havia andado até o Woodward Park. Eu quase me virei e fui embora. Era domingo, quando as pessoas normalmente se aglomeravam lá para tirar fotos com flores, árvores e tal, mas, quando eu olhei para o parque, parecia vazio. Obviamente, a tempestade que se aproximava havia mudado os planos de quem pretendia tirar fotos. Percebi que os narcisos tinham começado a florescer. Eu sempre amava quando os narcisos colocavam as suas cabeças amarelas para fora do gramado. Vovó e eu costumávamos falar sobre como era mágico quando os bulbos da primavera brotavam tão rápido e inesperadamente.

Definitivamente, hoje eu precisava de um pouco de magia da primavera. E seria no Woodward Park!

Sentindo-me aliviada por encontrar um destino, entrei no parque, andando entre os tufos de narcisos por um caminho sinuoso em direção à área ladeada pela Twenty-first Street. Era no alto daquele cume que os arbustos de azaleia eram mais espessos. Eu gostava daquela parte íngreme com caminhos de pedra serpenteando entre os arbustos. Eu podia encontrar um banco entre as azaleias depois de descer o cume e tentar entender todos os meus problemas. E daí se chovesse e eu ficasse encharcada? Pelo menos isso iria manter as pessoas afastadas.

Andei pelo caminho pavimentado, fazendo curvas através de arbustos de azaleia da minha altura. Percebi que os botões de flores já haviam começado a se formar, mas ainda não dava para saber de que cor elas seriam.

Aquela tempestade estúpida provavelmente iria matá-las e elas nunca iriam florescer.

Chutei uma pedra.

Aphrodite tinha mandado me espionar! Eu simplesmente não conseguia esquecer essa traição. Imaginei o que Stevie Rae diria quando eu contasse para ela. Então eu me dei conta de que, se eu contasse isso a ela, também iria ter que contar sobre mim e Aurox no refeitório, e eu não queria de jeito nenhum contar isso para ela nem para ninguém e...

Eu parei.

– Ah, que inferno! Não vou ter escolha sobre contar isso para as pessoas. É claro que Shaylin e Aphrodite não vão ficar de boca fechada.

Eu tinha chegado ao topo das escadas de pedra na parte alta do parque, que davam lá embaixo na área rochosa com espécies de grutas e no lago raso que envolvia o lado oeste do parque.

Eu pensei em me atirar lá de cima, mas constatei que não era muito alto, então provavelmente a queda não iria me matar. E eu realmente não queria me matar. Agora, se Aphrodite estivesse lá, eu podia pensar em atirá-la do cume!

Esse pensamento me satisfez de um modo perturbador.

Desci as escadas até nível da rua. Havia um banco de pedra, não muito longe de onde acabavam os degraus e começava o gramado. Um trovão ressoou novamente. Eu sentei e franzi os olhos para o céu. Sim, definitivamente ia chover em mim. Logo. Suspirei e olhei em volta. De repente essa pequena parte do Woodward Park me lembrou da Ilha de Skye, talvez por causa da chuva iminente. Um inesperado sentimento de saudade de casa me invadiu. Eu deveria voltar para lá. Eu era feliz lá. Ninguém me espionava. Ninguém tentava me matar. E eu poderia perguntar para Sgiach que diabos está rolando com a minha pedra da vidência. Stark podia ir comigo. Eu não teria que ver Aurox todo dia e desejar...

Não! Eu interrompi essa linha de pensamento. Eu não desejava mais nada. Eu já tinha feito a minha escolha. Era só essa droga com Aphrodite e Shaylin que estava bagunçando a minha cabeça e o meu coração.

E eu não poderia fugir para a Escócia. Pelo menos não agora. Eu tinha que ficar aqui, encarar os meus amigos – e ex-amigos – e resolver a confusão que a Morada da Noite tinha virado.

Deusa, isso era deprimente. E irritante. E exaustivo.

Um trovão rugiu, desta vez mais perto. Fugir ou me esconder não estava resolvendo nada. Eu devia voltar para a escola. Talvez eu tivesse sorte e Stark ainda estivesse dormindo, apesar da minha explosão emocional, e eu poderia entrar de fininho na cama e ainda dormir um pouco antes de ter que encarar a tempestade de cocô que estaria me esperando depois do pôr do sol.

Eu tinha me levantado e me virado para subir de volta pela escada de pedra quando vi os dois homens. Eles haviam acabado de sair de trás dos arbustos de azaleia e estavam parados no topo das escadas. Eles pareciam esfarrapados, sujos. As roupas deles não serviam direito. Um deles estava segurando um saco de lixo pendurado no ombro, fazendo-o parecer um Papai Noel anoréxico. Foi ele que me viu primeiro. Ele deu uma cotovelada no amigo e me indicou com o queixo, abrindo um sorriso cheio de dentes podres. O amigo dele assentiu e eles começaram a descer as escadas.

Ah, que inferno.

Eu deveria ter corrido na direção da Twenty-first Street. Essa era a coisa mais inteligente e mais segura a fazer. Eu quase fiz isso, mas então me lembrei de quem eu era e fiquei irritada. Eu não era uma garotinha fraca que as pessoas podiam assustar e humilhar. Eu tinha afinidade com todos os cinco elementos. Eu era uma Grande Sacerdotisa em treinamento. Caramba, eu era quase uma vampira! Será que eu não era capaz de estar no parque em um domingo de manhã sem ser incomodada por ninguém?

Em vez de sair correndo, eu sentei no banco de novo. Talvez ele fossem apenas passar por mim, dizer “bom dia” e só. Talvez.

– Ei, garota, você, ahn, tem algum trocado aí? – o primeiro cara perguntou quando eles terminaram de descer as escadas.

– Sim, a gente podia usar o dinheiro para comer – o segundo cara disse.

Eu estava virada para o outro lado, esperando que eles fossem embora. Então eu empinei o queixo e olhei direto para eles. Eles arregalaram os olhos quando viram minhas tatuagens.

– Sério? Em que planeta vocês acham que é normal dois homens pedirem dinheiro para uma garota que está sozinha em um parque deserto? – enquanto eu falava, senti minha raiva aumentar de novo.

– Ei, qual é a sua? – o cara com o saco de lixo respondeu. – Você é uma vampira. Não é a gente que pode assustar você.

Eu sabia que eles pensavam que eu era uma vampira completa. Eu sabia que isso os deixava com medo de mim.

Fiquei feliz por isso.

– Então, vocês costumam assustar garotas humanas para que elas deem dinheiro a vocês?

Que idiotas!

O segundo cara deu de ombros.

– Se uma garota não quer ser assustada por alguém, não deve ficar sozinha aqui.

– Ah, então é culpa da garota ? – eu fiz a pergunta hipoteticamente, mas o cara do saco de lixo não entendeu.

– Sim, a culpa é da garota!

– Mas não vamos assustar ninguém se a pessoa nos der dinheiro.

– Mas nós não aceitamos cartão de crédito – o cara malvado do saco de lixo riu e deu um tapinha no braço do seu amigo.

– Vocês são uns otários. Quer tal arrumar um emprego em vez de mexer com garotinhas?

– Mexer com garotinhas paga melhor – o cara do saco de lixo respondeu.

– Eu estava sentada aqui, pensando nos meus próprios assuntos. Vocês têm que se lembrar disso. Foram vocês que provocaram isso – eu me levantei. O meu corpo inteiro estava quente. Eu estava realmente irritada. – Sabem de uma coisa? Vocês deveriam ter escolhido outra garotinha para perturbar hoje.

– Ei, a gente não estava perturbando você. A gente só estava passando – o outro cara disse. Ele pegou o braço do seu amigo e começou a puxá-lo para sair dali.

– Relaxe, gatinha. Não aconteceu nada de mais – o cara mau do saco de lixo disse, dando um sorriso sarcástico com seus dentes escuros e quebrados.

Então eles pensavam que iriam sair de fininho e encontrar uma garota normal de verdade para assustar?

Eu sentia como se o meu coração fosse explodir para fora do meu peito.

– Não, hoje vocês não vão! – eu atirei minha raiva neles. Ela era uma bola incandescente de luz azul. Ela se chocou contra os dois homens, levantando-os do chão e arremessando-os contra a parede de pedra do cume.

Eu estava ofegante e me sentindo bem com o que tinha acabado de fazer. Eles iam pensar duas vezes antes de mexer com outra garota! Idiotas!

Um trovão retumbou acima de mim e um raio atingiu o centro do parque, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Foi então que eu percebi que estava segurando a pedra da vidência.

Eu pisquei surpresa e balancei a cabeça. Espere aí, o que tinha acabado de acontecer?

Eu olhei para os dois homens. Eles ainda estavam lá, deitados na sombra do cume rochoso. Eles não estavam gritando comigo nem se recompondo e levantando, nem mesmo saindo correndo porque eu os tinha deixado apavorados.

Eles não estavam se mexendo.

Caramba! Eu tinha usado magia antiga para atacar aqueles homens. Tinha sido a mesma coisa quando derrubei Shaylin. Eu havia feito isso automaticamente, depois que a minha raiva queimando se tornou insuportável. Mas aquela queimação não era a minha raiva, era a pedra da vidência esquentando, penetrando o meu corpo, alimentando-se das minhas emoções e então atacando.

Soltei a pedra e olhei para a palma da minha mão. Uma queimadura com a forma de um círculo perfeito tinha ficado ali.

Confusa, levantei os olhos e vi acima de mim uma fumaça que vinha do meio do parque. O ar estava com cheiro de eletricidade e fogo, e eu me dei conta de que um raio devia ter atingido uma árvore, ou até mesmo um dos edifícios do parque. O Woodward Park estava em chamas.

Os bombeiros chegariam logo. Assim como a polícia.

As minhas pernas estavam bambas e a minha cabeça doía quando eu me aproximei dos homens, olhando para as duas formas caídas na base do cume. Um deles gemeu. O braço do outro se contraiu.

O céu desabou em uma chuva forte, de modo que eu não podia dizer se a umidade era água, sangue ou minhas lágrimas.

Não pensei em nada. Apenas saí correndo.

Não precisei invocar névoa e sombras para me encobrir. A tempestade fez isso por mim. Ninguém reparou em uma garota sozinha, correndo no meio da chuva, fugindo do parque em chamas, principalmente porque vários carros de emergência e a polícia estavam indo para a direção oposta.

Corri em volta do muro da escola e entrei pela passagem escondida. E continuei correndo até chegar dentro do estábulo, ofegante e trêmula. Fui até a selaria e peguei uma toalha limpa. Eu me enrolei na toalha e andei pela longa fileira de baias até encontrar Persephone. Abri a porta e entrei na baia quente e escura. Persephone estava dormindo do jeito que os cavalos dormem: em pé, com uma das patas traseira em repouso, a cabeça baixa e os olhos semicerrados. Ela mal se moveu quando eu coloquei meus braços ao redor do seu pescoço e chorei na sua crina macia e espessa.

O que estava acontecendo comigo?

Aqueles caras no parque tinham sido uns idiotas, mas eles não conseguiriam me machucar. Sim, eles atacavam garotas, assustando-as para que elas lhes dessem dinheiro, mas eles não poderiam me machucar. Eu podia ter ido embora e feito uma ligação anônima para a polícia, dando uma descrição deles e dizendo aos policiais que eles estavam vagando pelo parque ameaçando as garotas. Os policiais iriam afugentá-los.

Em vez disso, eu explodi em cima deles.

Eu nem pensei. Eu não fiz aquilo de propósito. Tinha simplesmente acontecido. A minha raiva havia literalmente explodido neles através da pedra da vidência.

O que Aphrodite estava tentando me dizer mesmo? Alguma coisa sobre a sua visão, magia antiga e eu perdendo o controle sobre a minha raiva. Eu não a havia escutado. Eu a interrompi e acreditei que ela tinha me traído. E deixei que a minha raiva me controlasse.

– Ah, Deusa, isso foi errado... tão errado da minha parte – eu chorei.

Então, entre os meus soluços e o barulho da tempestade que turvava o céu, eu escutei uma sirene. Não era um caminhão dos bombeiros. Não era uma ambulância. Era um carro de polícia. E não estava passando rápido pela escola em direção ao Woodward Park. Aquela sirene estava ficando cada vez mais próxima. O carro devia ter entrado pelo nosso portão e ter estacionado na escola.

Como se estivesse sonhando, eu me desvencilhei do pescoço reconfortante de Persephone. Larguei a toalha. Saí do estábulo e caminhei até a calçada que levava ao saguão de entrada da escola.

A chuva estava me molhando, mas eu não prestei a menor atenção nisso.

– Z.! Aí está você! Que merda, você está ficando ensopada – Stark apareceu correndo atrás de mim, segurando uma grande capa de chuva em cima da sua cabeça.

– Você não deveria estar aqui fora – eu disse sem emoção. – O sol já se levantou. Você vai se queimar.

Ele me deu um olhar estranho.

– Eu estou cansado e não é muito confortável estar aqui, mas as nuvens estão cobrindo o sol o suficiente para que eu não me queime. Bem, pelo menos por um tempo. Z., entre embaixo da minha capa e vamos voltar para o nosso quarto. Sei que tem algo errado com você, mas não sei o que é.

Eu balancei a cabeça.

– Não. Eu tenho que ir até eles – continuei andando na direção da frente da escola. Havia dois carros de polícia, com as luzes ainda piscando, estacionados lá.

– Eles quem? – Stark perguntou, tentando segurar a capa sobre a cabeça dele e a minha.

– Stark, volte para a cama. Você não pode me ajudar nisso.

– Zoey, do que você está falando? O que está rolando?

Coloquei a minha mão na porta da frente.

– Volte – eu repeti. – Você não pode mais me salvar.

Ele pareceu assustado. Muito assustado.

Eu não me permiti sentir nada. Dei as costas a ele e abri a porta.

Thanatos estava lá. Darius também. Assim como Aphrodite. Por um instante, fiquei surpresa ao vê-los, então eu me dei conta de que Aphrodite devia ter ido falar com Thanatos depois que eu saí andando. Essa era a coisa certa para ela fazer. Eu teria feito isso se estivesse no lugar dela. Se eu estivesse pensando como eu mesma, como a Zoey normal.

O detetive Marx estava lá com dois policiais de uniforme.

– Z., você já acabou de fazer a ronda pelo perímetro da escola com Aurox? – Aphrodite falou rapidamente, andando na minha direção. – Eu estava dizendo para Thanatos que estava preocupada com você lá fora nessa tempestade. Há até alertas de tornado na região de Tulsa.

– Não faça isso – eu disse. – Não quero que você minta por mim nunca mais – olhei para Darius. – Não quero que nenhum de vocês minta por mim nunca mais – então encontrei o olhar do detetive Marx. – Por que vocês estão aqui?

– Dois homens acabaram de ser assassinados no Woodward Park. Alguém com poderes sobrenaturais os matou. Com um poder que nenhum humano tem. Foi por isso que eu e os policiais viemos direto para cá – o rosto dele estava com uma aparência severa. A voz dele não tinha nenhuma emoção.

– E eu estava lembrando ao detetive que a nossa escola está em confinamento. Nenhum novato ou vampiro saiu do campus desde a noite em que o prefeito foi assassinado – Thanatos afirmou.

– Eu saí do campus . Eu fui até o Woodward Park. Eu atirei aqueles dois caras contra o paredão de pedra na base do cume. Eu os matei – a minha voz soou tão morta quanto aqueles homens, tão morta quanto eu me sentia.

– Zoey! Por que diabos você diria uma coisa dessas? – Stark segurou nos meus ombros e me sacudiu. – Saia dessa!

Eu o encarei e endureci o meu coração, congelando os meus sentimentos.

– Você precisa ficar aqui. Não quero vê-lo de novo. Não quero ver mais ninguém. Eu fiz isso. Eu mereço isso – eu me soltei dele e me afastei. Enquanto eu ia em direção ao detetive Marx, coloquei a mão na minha pedra da vidência e a puxei, arrebentando a corrente de prata em que ela estava pendurada. Eu a entreguei para Aphrodite. – Não deixe que ninguém, exceto você ou Sgiach, toque essa coisa. Você está certa. Isso despertou, e é do mal – então eu encarei o detetive Marx. – Estou pronta para ir com você.

Ele desviou os olhos de mim e se voltou para Thanatos.

– Eu vou aguardar você entrar em contato com o Conselho Supremo para revogar a sua responsabilidade legal por esta novata, para que eu possa levá-la sob custódia.

– Não – eu falei. – Antes disso acontecer, eu rompi com o Conselho Supremo. Eu não reconheço a autoridade do Conselho Supremo sobre mim. Eu não reconheço a autoridade de Thanatos sobre mim. Trate-me da mesma forma com que trataria qualquer um que confessou ser um assassino.

Ele suspirou profundamente e então pegou as algemas no seu bolso de trás.

– Zoey Redbird, você está presa pelo assassinato de Richard Williams e David Brown – ele fechou as algemas frias nos meus pulsos. – Você tem o direito de permanecer em silêncio. Se renunciar a esse direito, tudo o que disser pode e vai ser usado contra você no tribunal. Você tem o direito de ter um advogado presente ao seu interrogatório. Se não tiver condições de contratar um advogado, um defensor público vai ser designado para atendê-la. Você entendeu os seus direitos?

– Sim. Eu não preciso de um advogado. Eu confesso que matei aqueles dois homens. Eu mereço ir para a cadeia – eu disse, enquanto as palavras “eu mereço... eu mereço...” ecoavam pela minha mente.


22
Neferet

Quando ela finalmente estava pronta para emergir da toca, a chuva banhou Neferet, limpando-a do sangue e da terra que cobriam o seu corpo. Aquela área estava em um completo caos. Apesar da chuva, o fogo estava consumindo o parque acima dela.

Neferet pensou que essa era uma saudação encantadora.

Ela se alimentou da morte e da destruição ao seu redor e usou essa energia para se encobrir.

O seu cabelo ruivo e liso contra o seu corpo parecia um manto vivo. Os filamentos de Trevas fiéis a Neferet, saciados e pulsando de poder, levantaram-na. Como se tivesse ordenado a uma nuvem de tempestade que a obedecesse, Neferet saiu flutuando do parque dentro de um véu de raios, trovões, névoa e loucura.

Ela atirou a cabeça para trás, adorando a carícia que a chuva fazia ao escorrer pela sua pele nua, limpando-a. Ela ergueu os braços, e gavinhas de Trevas se enrolaram neles. Ela riu ao sentir o seu toque frio e perverso.

– Vamos para casa. Nós temos tanto a fazer! – a tempestade que era Neferet passou por sobre a cidade, na direção do centro de Tulsa e da sua cobertura no Mayo. – Ah, mas não tão rápido – ela ronronou para as Trevas que a embalavam. – Nós não vamos jantar? Descobri que estou morrendo de fome!

Os filamentos de Trevas tremeram de excitação, impacientemente aguardando as suas ordens.

Neferet vasculhou a sua própria mente. Buscando... buscando... pervertendo o dom que ela havia recebido tantas décadas atrás.

Ela seguiu a Fifteenth Street no rumo oeste, ainda buscando. Foi na Boston Avenue que ela sentiu uma atração para o norte.

– Para o norte! Em direção àquelas almas deliciosas que fingem ser tão, tão boas! – Neferet estremeceu de prazer. – Todos reunidos tão convenientemente para mim. É como se eles já soubessem me venerar – ela fez um gesto impetuoso indicando um ponto à sua direita. – Levem-me para lá!

Quando chegou à catedral, Neferet ordenou que os filamentos fizessem uma pausa, permitindo que ela absorvesse a perfeição da sua escolha. A construção era realmente magnífica. Ela resplandecia na chuva. As pontas da torre principal pareciam dentes. As pontas das torres mais baixas pareciam mãos levantadas, com garras afiadas e uma superfície de metal lisa e molhada, pronta para ser destruída.

– Soltem-me! Deixem que eu seja vista!

A nuvem de mágica se dissipou. Neferet pousou silenciosamente na calçada.

– Venham comigo, meus queridos! – ela falou para os seus filamentos. – O nosso jejum acabou. Vamos nos fartar como eu mereço!

Neferet subiu os vários degraus de calcário enquanto as Trevas, como a cauda do manto de coroação de uma rainha, seguiam atrás dela. Neferet levantou os olhos. Estátuas projetando-se da parede externa eram deuses dourados montados em cavalos de guerra molhados pela chuva. Eles pareciam lhe dar as boas-vindas.

Abaixo deles, esculpidos em cima das três portas de entrada, havia homens se curvando.

– Para mim – ela falou para as estátuas silenciosas. – Vocês se curvam para mim.

Olhando para cima, Neferet leu as palavras escritas abaixo de cada um dos três grupos de estátuas de devotos: o fruto do espírito é o amor, o júbilo; paz, resignação, gentileza, bondade; sinceridade, humildade, autocontrole.

Neferet deu uma gargalhada.

– Isso vai ser mais fácil do que eu imaginei.

Nua, Neferet entrou na igreja, escolhendo a porta embaixo da palavra resignação 16 . Do lado de dentro, as paredes estavam pintadas em um tom rosa claro, que para Neferet lembrava sangue diluído em uma chuva de lágrimas. Ela pensou que essa era uma cor perfeita. Virando à esquerda, ela seguiu por um corredor curvo até a entrada principal do santuário. As portas estavam fechadas. Neferet sorriu carinhosamente para os seus filamentos de Trevas.

– Sim, por favor, abram as portas.

Os filamentos a obedeceram.

Neferet adentrou no amplo salão oval. Um hino estava em seus acordes finais e, enquanto eles prolongavam o améééém final, Neferet aproveitou a oportunidade para apreciar o cenário antes de ser notada. Era realmente um santuário adorável. Com assentos almofadados violeta claro e vitrais art déco estilizados em cores avermelhadas e em tons de lilás, ela pensou que o local parecia mais um daqueles teatros decorados que proliferaram tanto nos Estados Unidos na virada do último século do que uma igreja. Suas fileiras circulares de assentos afunilando-se até um palco central haviam sido criadas obviamente mais para o drama do que para a adoração.

Neferet sorriu, gostando da ironia.

– Psiu! – um sussurro veio das sombras nos fundos do aposento, enquanto o pastor começava a liderar os fiéis em uma oração repetitiva e entediante. – Com licença. Você precisa de ajuda? – uma mulher gorda e de meia-idade se aproximou de Neferet. Ela estava tão hipnotizada pelo corpo nu de Neferet que nem percebeu as suas tatuagens.

Neferet se virou para ela.

– Sim, eu preciso – Neferet abriu os braços, como se quisesse que a mulher a abraçasse.

Confusa, a mulher deu alguns passos, aproximando-se dela. Neferet atacou com uma velocidade ofuscante, rasgando o pescoço dela com suas unhas feito garras e segurando a mulher quando ela caiu para a frente. Neferet então a abraçou, mas o beijo que ela deu na mulher foi pressionar os lábios na ferida aberta e ensanguentada no seu pescoço. Neferet drenou o seu corpo enquanto se alimentava da sua energia.

Um dos fiéis que estava na parte de trás da igreja gritou.

Neferet levantou os olhos quando as pessoas se viraram na sua direção. Ela soltou a mulher, gostando do barulho surdo que o corpo dela fez ao cair no chão.

Empinando o queixo, Neferet jogou o cabelo para trás e foi para a frente do santuário a passos largos.

– Oh, meus Deus, é uma vampira!

– Ela está nua!

– Ela acabou de matar a Sra. Peterson!

As pessoas começaram a gritar. Algumas até começaram a sair de seus bancos.

Neferet levantou os braços.

– Fechem as portas! E revelem-se para eles!

As sombras ao redor de Neferet ondularam quando as gavinhas grossas feito cobras assumiram formas que os humanos podiam ver. A congregação fez uma pausa, olhando em choque os filamentos de Trevas deslizarem para cada uma das portas e fechando-as como uma teia pelo lado de dentro.

– O que você quer? – um homem de cabelos brancos vestindo um hábito negro enfeitado com veludo escarlate desceu do púlpito e caminhou decidido em direção a ela.

– Eu sou Neferet – ela disse cordialmente. – E quem é você?

– Eu sou o Dr. Andrew Mullins, pastor da Boston Avenue Church. O que significa esta profanação?

– Profanação? – Neferet sorriu. – Ah, eu mal comecei – ela apontou os seus dedos ensanguentados para o corpo da mulher. – Isso ali não pode nem ser considerado um aperitivo.

– Pelo poder a mim concedido pelo nosso Senhor e Salvador, eu exijo que você vá embora deste local sagrado e não machuque mais ninguém!

– Pastor Mullins, apesar de não parecer, eu sou muito mais velha do que você, então deixe-me compartilhar com você algo que aprendi em meus muitos anos de vida: o poder real sempre supera o poder concedido a alguém. Então, eu realmente acredito que vou usar o meu poder real e não vou embora.

– Muito bem. Se você não vai embora, nós vamos! – o pastor disse. Como se estivesse arrebanhando galinhas ao seu redor, o homem gesticulou para que as pessoas fossem até ele, enquanto ele retrocedia, afastando-se de Neferet.

– Sinto muito, mas não posso permitir que vocês vão embora. Nenhum de vocês – Neferet apontou para o pastor. – Tragam-no para mim!

Um filamento grosso como um braço se desvencilhou do tornozelo de Neferet e foi rapidamente na direção do o pastor. Quando o alcançou, a gavinha se enrolou na cintura dele feito um chicote, ferindo-o. As Trevas arrastaram o pastor aos berros até Neferet.

– Ah, acabem com esse barulho ridículo! – Neferet fez um gesto e uma gavinha menor envolveu o rosto do pastor, cobrindo a sua boca, amordaçando-o. – Melhor assim, não? – ela olhou com raiva para a congregação em pânico. – Parem de gritar, a menos que vocês queiram ser amordaçados também!

As pessoas ficaram em silêncio, exceto por soluços abafados.

Neferet se aproximou do pastor.

– Eu gostei do seu hábito. Gosto muito da cor vermelha. Tire-o!

O homem obedeceu com mãos trêmulas, deixando o hábito cair aos seus pés.

Inclinando a cabeça, Neferet o examinou. Ele estava usando por baixo uma camisa branca e uma calça informal.

– Você estava tão grandioso com o seu hábito. Agora você parece um rato pelado – Neferet entrou na mente dele. – Aaaah, não é de se estranhar que você não esteja olhando para o meu corpo. A castidade é tão entediante, não é? Deixe-me livrá-lo desse sofrimento – ela fez um corte no seu pescoço. Ele arregalou os olhos quando ela disse para os dois filamentos: – Sim, vocês podem ficar com esse aí.

As Trevas perfuraram a boca e a cintura do pastor, alimentando-se fartamente, enquanto ele se contorcia em agonia.

– Neferet! Por que você está fazendo isso?

A atenção de Neferet se desviou do pastor moribundo e se voltou para um homem parado na frente do santuário. Reconhecendo-o, ela sorriu.

– Vereador Meyers! Que bom revê-lo – ela falou.

– O-olá, Neferet – ele gaguejou, segurando firme na mão de uma mulher bem-vestida ao seu lado. – Eu estava lá na sua coletiva de imprensa. Você... você disse que era uma aliada dos humanos e contra a violência.

– Eu menti – o sorriso de Neferet se ampliou ao ver a expressão horrorizada do vereador. A mulher ao lado dele soluçou, com a mão sobre a boca para tentar conter os seus gritos. – Você é a Sra. Meyers?

Tremendo e chorando, a mulher assentiu.

– Você está vestida com muito bom gosto. É Armani?

Novamente, a mulher em prantos concordou.

– E o seu tamanho deve ser trinta e seis, certo?

– Si-im! Pegue minhas roupas! Mas nos deixe ir embora, por favor – ela implorou.

– Ah, como você pediu educadamente! Tire o seu vestido e traga-o para mim, e eu posso pensar no seu pedido.

– Neferet, por favor, não machuque... – o marido dela começou.

Neferet entrou na mente dele e ordenou que o seu coração parasse de bater. O vereador Meyers ofegou e desabou no chão.

A sua mulher berrou.

Neferet suspirou.

– Sra. Meyers, eu acho tão desanimador que hoje em dia ninguém mais parece ser capaz de obedecer a ordens simples. Você não acha?

– Você pretende matar todos nós?

Neferet desviou o olhar da histérica Sra. Meyers e se voltou para uma mulher de meia-idade atraente que havia entrado no corredor central. Ela empinou o queixo e encarou Neferet, sem mostrar nenhum sinal aparente de medo.

Neferet ficou intrigada.

– E quem é você?

– Karen Keith, outra representante de Tulsa. Eu também estava lá no dia em que você deu a sua coletiva de imprensa e prometeu se aliar à nossa cidade.

– Aaaaah, outra política. Que delícia!

– Você não respondeu a minha pergunta. Você vai matar todos nós?

– Perdoe-me, Karen. Posso chamá-la de Karen?

– Prefiro que não.

Neferet ergueu a sobrancelha, surpresa.

– Você tem uma energia adorável, Sra. Keith. Você vai ser o meu prato principal.

Gavinhas de Trevas começaram a deslizar na direção dela.

Karen Keith não se retraiu quando elas se enrolaram ao seu redor. Ela encontrou o olhar de Neferet e afirmou:

– Depois disso, todo mundo vai saber o monstro que você é.

– Não, Sra. Keith, todo mundo vai saber a deusa que eu sou.

Karen Keith morreu sem gritar, mas as pessoas em volta dela berraram e começaram a se lançar contra as portas fechadas em pânico.

– Bem, acho que é esperar demais ter uma conversa durante o jantar – Neferet disse. Ela levantou os braços. – Matem todos, mas cuidado com o vestido Armani!

Neferet e os seus servos das Trevas atacaram a congregação de fiéis. Eles se alimentaram sem parar, fartando-se de sangue e energia roubada, até que o santuário virou um cemitério.

Neferet se banhou nas bacias de água benta e usou o hábito com detalhes escarlate do pastor para se secar. Então, vestida de Armani e pulsando com um poder glorioso, ela saiu da Boston Avenue Church.

Tinha parado de chover. O céu estava novamente azul claro. O ar cheirava a primavera. Neferet limpou uma última gota de sangue no canto dos seus lábios carnudos. Sorrindo, radiante, Neferet apontou para o Mayo.

– Levem-me para casa. Estou com tanta saudade da minha cobertura...

Pulsando e completamente saciados, os seus filamentos a levantaram gentilmente. Envolta em Trevas, Neferet flutuou, invisível, através do centro de Tulsa, enquanto a frase “eu mereço... eu mereço...” ecoava na sua mente.

A estátua dourada de calcário no meio da entrada da igreja estremeceu, alterou-se e, em meio a uma rajada de vento fétida, o touro branco se materializou. Quando ele emergiu do revestimento da igreja, os seus cascos faiscaram, fazendo o chão tremer. Ele bufou, olhando para a direção em que Neferet havia desaparecido.

– Agora, minha cara impiedosa, isso me surpreendeu...

 


NOTAS


1 Personagem de O Mágico de Oz. (N.T.)
2 RED Valentino é a marca jovem da grife Valentino. RED é uma sigla para Romantic Eccentric Dress (roupas românticas e excêntricas, em tradução livre). (N.T.)
3 Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)
4 Broken Arrow (flecha quebrada, em inglês) é uma cidade da região metropolitana de Tulsa. (N.T.)
5 Éon é um período de tempo que corresponde a um bilhão de anos. (N.T.)
6 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)
7 Bosque da torre. (N.T.)
8 Merry meet, merry part and merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
9 Aphrodite se refere ao filme Gata em Teto de Zinco Quente (1958), estrelado por Elizabeth Taylor e baseado na peça homônima de Tennessee Williams. (N.T.)
10 Trocadilho com o jogo Angry Birds. (N.T.)
11 Marca do copo vermelho de plástico tradicional nas festas de adolescentes norte-americanos. (N.T.)
12 Ato falho. Por exemplo, quando uma pessoa diz algo que não deveria por causa de um desejo do seu inconsciente. (N.T.)
13 Marca de set-up box , dispositivo que permite assistir na televisão a vídeos da internet por streaming , similar ao Apple TV. (N.T.)
14 No Paganismo, os familiares são animais associados a bruxas ou bruxos. (N.T.)
15 Erva-doce americana, da espécie Hierochloe odorata. (N.T.)
16 Em inglês, long-suffering , cuja tradução literal seria “sofrimento longo”, mas que significa resignação, paciência ou a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar. (N.T.)

16
Stark

– Você tem certeza de que ainda estamos seguindo o rastro dele? – Stark perguntou para o imortal alado, entre uma respiração ofegante e outra, depois de correr atrás de Kalona.

– Você não consegue farejar o sangue dele? – Kalona olhou por sobre o ombro e então, percebendo que Stark obviamente estava com dificuldade para acompanhá-lo, diminuiu o ritmo e apontou para um gramado bem cuidado, por onde eles estavam passando. – Ali, veja onde o sangue do vampiro respingou no chão, ou seja, ele ainda está sangrando. O meu filho fez bem em arranhar a cabeça dele com suas garras. Feridas na cabeça sangram com facilidade e são difíceis de estancar.

– Sim, principalmente se a pessoa está se movendo tão rápido quanto ele – Stark enxugou o suor na sua testa enquanto corria ao lado de Kalona. – Quem diria que Dallas podia correr assim? Eu achava que com certeza a essa hora a gente já o teria alcançado. Ele não tinha tanta vantagem sobre nós. O garoto sabe se mexer. Sempre pensei nele como um daqueles garotos que vivem grudados em videogames: bonzinhos e fracos, a menos que eles estejam fingindo ser Zorg do Planeta Org, quando eles podem destruir universos inteiros com os seus dedos gordos.

Kalona franziu a sobrancelha.

– Às vezes o mundo moderno ainda me deixa confuso, mas eu posso explicar por que Dallas está se movendo tão rápido. Ele está fugindo para salvar a sua vida.

– Ei, Thanatos disse claramente que você não deveria matá-lo.

– Isso é uma pena. Seria justo que eu terminasse o que meu filho começou – Kalona afirmou.

– Não posso dizer que eu discordo de você – Stark falou.

Kalona levantou a mão, fazendo Stark parar. Eles estavam seguindo o rastro de Dallas, que ia sempre na direção oeste, e tinha dado diretamente na movimentada Riverside Drive.

– Ali – Kalona apontou do outro lado da avenida, onde a superfície do Arkansas River reluzia à luz da lua. – Ele pensa que usar a água para levar o cheiro do seu sangue rio abaixo vai apagar o seu rastro.

– Pensa? Você quer dizer que isso não vai funcionar?

– Comigo não vai. O sangue ainda está caindo dele. É ele que eu farejo, com tanta certeza quanto farejo o seu rastro.

– Hum. Que ótimo – Stark disse.

Ao atravessar as quatro pistas da Riverside Drive atrás do imortal, Stark ficou feliz por estar frio e tarde da noite, assim não havia ciclistas e corredores por ali. É claro que Kalona estava usando um sobretudo, mas aquelas asas não eram exatamente imperceptíveis.

Kalona fez uma pausa depois que eles atravessaram a ciclovia, abaixando-se para olhar a folhagem mais de perto.

– Foi aqui que ele desceu para o rio.

Stark olhou para as plantas e farejou, tentando sentir o cheiro ou ver o sangue de Dallas. Só o que ele sentiu foi o aroma do rio turvo e cheio de peixes. Mas o imortal parecia seguro de si, então Stark deu de ombros e o seguiu até o rio. Quando eles chegaram à margem, Kalona parou novamente. Desta vez ele se agachou. Ele parecia estar inspirando profundamente o ar, enquanto olhava fixamente para a água que corria vagarosamente. Estava muito seco desde a tempestade de gelo de dezembro, e o rio estava raso, com grandes bancos de areia entre as águas preguiçosas.

– Eu não sabia que você era tão bom em seguir rastros – Stark se agachou ao lado dele.

– Eu passei éons rastreando seres do mal que tinham muito mais capacidade de se esconder do que esse vampirinho. Isso não se esquece facilmente – Kalona contou.

Stark o observou de canto de olho e se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Kalona havia feito para a Deusa antes de Cair. E se ele era tão bom no seu trabalho, tanto que muitos séculos depois ele ainda podia rastrear assustadoramente bem, por que ele tinha Caído afinal?

– Lá! – Kalona apontou. – Você o vê ali, na tora perto da margem mais distante?

Stark sorriu.

– Eu não preciso ver uma coisa para atingi-la. Só me dê um pouco de espaço e se prepare para pegar o idiota depois que eu acertá-lo, porque agora eu preciso fazer algo em que eu sou assustadoramente bom – ele se levantou, encaixou uma flecha em seu arco e puxou a corda para trás. Que a flecha atravesse a coxa do vampiro chamado Dallas. Stark se concentrou em seu pensamento específico, em seu objetivo, e soltou a flecha.

A flecha fez a corda do arco vibrar e foi disparada assobiando pelo ar, invisível mas mortal.

– Aaaaah! – o grito de Dallas atravessou a água facilmente.

Stark deu o seu sorriso metido para Kalona e falou:

– Pode ir buscar.

Zoey

A primeira aula não foi daquelas que parecem que não vão acabar nunca. Eu normalmente gostava da aula especial de Thanatos. Ela não era a professora mais divertida da escola (ahn, esse deveria ser Erik), mas ela era superinteligente e nos deixava fazer perguntas sobre praticamente qualquer coisa – desde que nós fôssemos respeitosos com ela e com os outros. Eu me revirei na minha cadeira e olhei para trás. Dallas, é claro, não estava na sala. Que eu soubesse, Stark e Kalona ainda não tinham voltado para o campus , com ou sem ele. Mas todos os outros novatos vermelhos estavam lá. Os garotos que não faziam parte do grupo de Dallas, como Shaylin, Kramisha, Johnny B., Ant e o resto dos novatos vermelhos de Stevie Rae, estavam sentados na frente da classe, logo atrás da primeira fila, onde o meu círculo, Aphrodite e eu estávamos. Nicole havia chegado junto com Shaylin e estava sentada ao seu lado. Ela tinha ignorado totalmente os seus ex-amigos, que a ficaram encarando como se ela fosse uma aberração quando passou por eles.

Hoje Aurox não estava sentado sozinho no canto mais distante da sala. Na hora em que estava entrando, ele ficou hesitante ao começar a passar por nós. Damien então acenou para ele e disse que os dois assentos ao seu lado estavam livres, já que Rephaim estava na enfermaria com Stevie Rae. Aurox fez uma pausa para olhar para mim. Eu meio que dei de ombros e meio que assenti, então ele agradeceu Damien e sentou ao seu lado. Ou seja, só Aphrodite e Damien ficaram entre nós dois. Eu conseguia vê-lo fazendo anotações depois que Thanatos começou a aula, falando sobre os cinco rituais mais importantes abordados no Manual do Novato.

Hum. Talvez Aurox fosse um bom aluno. Isso não seria nada parecido com Heath. Pensar isso me deu vontade de rir – como um princípio de histeria, não uma risadinha engraçada –, então eu tossi para disfarçar.

– Você está bem? – Shaunee me perguntou em voz baixa. Ela estava sentada do meu lado esquerdo, e percebi que a deixei preocupada.

– Totalmente. Só uma coceira na garganta – eu a tranquilizei rapidamente.

Thanatos havia se virado para a lousa digital interativa e estava mostrando uma foto de uma faca ornamental. Do fundo da sala, uma bola de papel amassado foi atirada na minha mesa. Percebi que havia algo escrito nela. Franzindo a testa, eu a desamassei e li: QUE XATO QUE VCS NAO MORRERAM.

Aphrodite pegou rapidamente o papel e o amassou de novo, guardando-o na sua bolsa.

– Ignore-os – ela sussurrou. – Até eu consigo escrever com menos erros do que eles.

Os novatos vermelhos de Dallas não estavam agindo como babacas tão abertamente quanto faziam quando Dallas estava lá abrindo o caminho. Em vez disso, eles eram como uma pilha de irritação silenciosa cozinhando em fogo brando. Eles não respondiam nenhuma das perguntas de Thanatos e não faziam nenhum comentário durante a exposição dela. Eles só faziam coisas maldosas, como jogar bolas de papel quando ela estava de costas. E eu podia jurar que estava sentindo os olhinhos vermelhos deles me encarando. Eu olhei por sobre o meu ombro.

– Pare de olhar para eles – Aphrodite sussurrou enquanto Thanatos entregava cópias do Manual do Novato para todos nós. – Eles querem atenção. Não dê isso a eles.

– Eu queria saber se Dallas já foi pego – eu sussurrei de volta.

– Ele vai ser pego. Ele não é esperto o bastante para escapar de Kalona – ela disse.

– Eu gostaria de discutir o segundo dos Rituais Maiores abordado nesse capítulo do Manual do Novato, o Ritual de Proteção de Cleópatra – a voz imponente de Thanatos chamou a nossa atenção para a frente da classe. Ela apontou para a lousa digital e para as imagens de adagas ornamentais. – Quem pode me dizer como elas são chamadas quando são usadas apenas para rituais e feitiços?

Damien levantou a mão rapidamente.

– Damien?

– Athame – ele respondeu.

– Eu sabia disso – Aphrodite sussurrou.

– Certo. Obrigada, Damien – Thanatos agradeceu. – Vocês vão perceber que, nas mais puras e antigas formas de Ritual de Proteção, o fogo é tradicionalmente o elemento invocado – ela curvou levemente a cabeça e sorriu para Shaunee, que assentiu entusiasmada para ela. – Como nós temos a sorte de ter nesta escola uma novata com afinidade com o fogo, talvez ela possa nos dizer o que é de suma importância em um Ritual de Proteção tradicional.

– Ah, isso é fácil! O mais importante é a Grande Sacerdotisa que conduz o ritual. Apesar de o fogo ser uma proteção incrível, ele é apenas tão forte quanto a Sacerdotisa que faz o feitiço – Shaunee disse.

Eu fiquei superfeliz por ela ter respondido, porque só o que eu me lembrava do Ritual de Proteção é que Cleópatra o fez e depois se atrapalhou porque ficou toda apaixonada por Marco Antônio, que no final morreu, e o elemento dela se transformou em uma cobra de fogo e a engoliu. Afe.

– Você está absolutamente certa, Shaunee. Obrigada. Então, caros estudantes, a lição que precisamos aprender do Ritual de Proteção não é sobre proteção nenhuma. É sobre foco, integridade e propósito – Thanatos afirmou. – Os últimos acontecimentos nesta escola me fizeram refletir com cuidado sobre a lição do Ritual de Proteção. Enquanto eu meditava sobre essa lição, veio a mim o pensamento de que no mundo antigo os vampiros tendiam a ter mais dons do que os vampiros de hoje – Thanatos fez uma pausa e olhou para mim. – Apesar de recentemente a tendência de menos dons e menos poder em vampiros jovens parecer estar se alterando – ela acrescentou. Eu não sabia onde Thanatos queria chegar, mas definitivamente ela despertou o meu interesse. – Pensem, por um momento, nas implicações de uma alteração dessas. Em tempos antigos, vampiros altamente dotados, como Cleópatra, foram responsabilizados pelas suas escolhas e por suas ações por causa do poder que eles detinham. Como vocês podem ler no Manual do Novato, e como foi relatado pelos nossos historiadores, Cleópatra usou mal o seu dom concedido pela Deusa. Ela parou de ouvir seu povo. Ela considerou a sua afinidade como uma coisa certa. Ela pensou apenas nos seus próprios desejos e necessidades. No fim das contas, o seu elemento fogo a consumiu.

Eu tentei não me preocupar. Será que Thanatos estava tentando me dizer que eu estava me atrapalhando? Tipo, eu sabia que eu andava sendo meio rude com as pessoas nos últimos tempos – e toda a coisa Aurox/Heath era confusa e frustrante –, mas será que ela estava falando que eu precisava ser nocauteada pelos cinco elementos?

Que inferno! Eu esperava que não fosse isso! Eu estava fazendo o melhor que podia. Sim, eu andava frustrada e irritada, mas pelo menos eu não estava choramingando muito. Ultimamente.

Aphrodite levantou a mão, surpreendendo-me e calando a minha tagarelice interior.

– Pois não, Aphrodite, você tem alguma pergunta? – Thanatos falou.

– Sim, eu estava pensando no que você disse, sobre como os dons dos vampiros eram mais fortes e mais frequentes nos tempos antigos e como parece que isso está mudando, e eu gostaria de saber se você tem alguma ideia de por que essa alteração de poder está acontecendo.

– É uma ótima pergunta, Aphrodite. Eu gostaria de ter uma resposta definitiva para você. Posso dizer que acredito que essa alteração tem a ver com uma mudança maior no equilíbrio entre Luz e Trevas.

– Talvez Nyx esteja nos concedendo esses dons para que a gente possa lutar para equilibrar as coisas de novo – Shaunee sugeriu.

– Talvez – Thanatos concordou.

– Isso poderia ter algo a ver com magia antiga? – Aurox perguntou.

Todos nós olhamos embasbacados para ele.

– O que o faz perguntar isso? – Thanatos quis saber.

Ele encolheu os ombros e pareceu desconfortável.

– Os touros. Eles não são uma manifestação de magia antiga?

– Eles são – ela confirmou.

– A pedra da vidência de Zoey também é magia antiga. Não é? – Aphrodite acrescentou.

Eu franzi a sobrancelha para ela.

– Isso também é verdade – Thanatos respondeu.

– Ok, mas algum de nós sabe o que a magia antiga realmente é? – eu perguntei, irritada com todo aquele assunto.

– A magia antiga não tem se manifestado fora da Ilha de Skye há muito tempo, desde antes de eu ser Marcada – Thanatos começou a falar devagar, como se ela estivesse se lembrando e raciocinando em voz alta ao mesmo tempo. – Pelo que sei, a melhor descrição que eu posso dar a vocês é que ela é energia em seu nível mais puro: crua, poderosa e neutra. A magia antiga é criação e destruição simultaneamente.

– Provavelmente é por isso que os feitiços antigos, como o Ritual de Proteção de Cleópatra, dependiam tanto da Sacerdotisa que fazia o feitiço – Damien disse. – Pode ser que todos os cinco Rituais Maiores tenham raízes na magia antiga.

– Parece lógico – Thanatos assentiu.

– Mas isso ainda não explica exatamente o que é a magia antiga ou por que ela se tornou ativa de novo – Aphrodite afirmou. – Mas eu diria que ela definitivamente está ativa de novo. Você não concorda, Z.?

Felizmente, ela foi interrompida pelo barulho da porta da sala sendo aberta impetuosamente e de Kalona entrando a passos largos pelo corredor central.

O imortal alado se curvou respeitosamente para Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, eu voltei com o seu prisioneiro.

– Você cumpriu bem a sua missão – ela se dirigiu a Kalona e então encarou a classe. – Quero que todos vocês se reúnam imediatamente no centro do campus perto do local da pira. A aula acabou.

Enquanto saíamos em fila da classe, observei Thanatos falando algo em voz baixa para Kalona. Eu vi o imortal arregalar os olhos, então ele assentiu e se curvou para ela novamente – desta vez até muito mais embaixo, mantendo a posição por mais tempo do que o normal. Enquanto ele ainda estava curvado, Thanatos foi até a sua mesa, pegou o telefone e apertou um botão. A sua voz ecoou pelo sistema de alto-falantes da escola.

– Todos os estudantes e o corpo docente vão se reunir no centro do campus no local da pira! Os professores que são membros do nosso Conselho devem se apresentar à Câmara do Conselho imediatamente. Todas as aulas estão suspensas até o final da nossa assembleia – então ela desligou e saiu apressada pela porta de trás, com Kalona logo atrás.

Tive uma sensação ruim.

– O que será que está rolando? – eu perguntei.

– Não tenho a menor ideia – Aphrodite respondeu. – Mas, seja o que for, vai acontecer na frente de todo mundo e vai fazer com que a gente perca pelo menos uma aula, então não pode ser tão mau, não é?

Nós fomos direto para o local da pira e formamos um grande círculo em volta da área queimada e escura que definitivamente estava sendo muito usada ultimamente. Eu procurei por Stark, mas não o vi, nem Kalona. Darius nos encontrou, pegou a mão de Aphrodite e disse que também não sabia o que estava rolando. Só quando todo mundo estava começando a ficar impaciente e quase era preciso gritar para ser ouvido, as pessoas do lado oposto ao meu se deslocaram, abrindo caminho.

Thanatos apareceu primeiro no meu campo de visão. Ela tinha trocado de roupa e estava usando um longo vestido negro de veludo, decorado apenas com o emblema em fios prateados de Nyx, com as mãos envolvendo a lua crescente. Thanatos havia soltado o seu cabelo longo e escuro, que caía como um véu espesso até a sua cintura. Lá no meio, eu vi um pouco de cabelos prateados reluzindo, que me lembraram do fio usado para bordar o emblema de Nyx. O seu rosto estava com uma expressão severa. Eu achei que ela parecia assustadora, mas bonita – antiga, mas sem aparentar idade.

Então a minha atenção foi atraída para Kalona e Stark, que entraram no meu campo de visão. Dallas estava mancando entre eles. Ele parecia péssimo. As mãos dele estavam amarradas na sua frente. O seu rosto estava todo arranhado e ensanguentado. As roupas dele estavam molhadas e imundas. Uma das flechas de Stark estava enterrada na sua coxa direita, só com as penas da parte de trás para fora. Kalona e Stark pareciam tão sérios e poderosos quanto Thanatos enquanto levavam Dallas até o centro da nossa assembleia. Eles não pararam até que o vampiro ferido ficou bem no meio da área escurecida pelo fogo da pira.

Dallas não parecia sério nem poderoso. Ele parecia irritado. Eu vi quando os olhos dele encontraram Shaunee. Ele olhou com raiva para ela e então deu um escarro nojento nas cinzas aos seus pés.

– Professores do Conselho da Morada da Noite de Tulsa, venham para a frente! – Thanatos ordenou.

Lenobia, Penthesilea, Garmy e Erik saíram da multidão para ficar ao lado de Thanatos. Eu estava pensando que o Conselho parecia desfalcado sem a presença de Dragon e Anastasia Lankford e da professora Nolan, quando Thanatos continuou:

– Eu também ordeno que as nossas duas Profetisas venham para a frente!

– Ah, que merda – Aphrodite resmungou, mas soltou a mão de Darius e foi se juntar a Thanatos.

Shaylin demorou para conseguir chegar lá na frente. Quando ela se aproximou de Thanatos, a Grande Sacerdotisa assentiu e fez um gesto para que ela ficasse ao lado de Aphrodite.

– A nossa escola foi ricamente agraciada com a presença de duas Grandes Sacerdotisas adicionais. Infelizmente, uma delas, a primeira Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, não pode ocupar o seu lugar ao meu lado hoje porque ela foi gravemente ferida – Thanatos continuou. Eu tinha acabado de perceber que ela havia dito duas quando os seus olhos escuros me encontraram. – Mas eu chamo a nossa segunda Grande Sacerdotisa para se juntar a mim. Zoey Redbird, venha para a frente!

Sentindo-me nervosa e insegura, eu fui ficar ao lado de Aphrodite e Shaylin.

Thanatos encarou Dallas.

– Você é o vampiro vermelho conhecido como Dallas?

Dallas sorriu.

– Todo mundo sabe quem eu sou.

– Dallas, ao amanhecer você atacou a Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, com a intenção de expô-la à luz do sol até que ela morresse. Você nega isso?

– Não, não nego.

– Dallas, ao amanhecer você também planejou matar a novata Shaunee com o poder que Nyx lhe concedeu. Você nega isso?

– Eu não nego nada! – o tom de voz dele era maldoso, e os seus olhos cintilaram com um brilho cor de ferrugem. – Pode me banir! Eu estou mais do que pronto para ir embora desta merda de escola.

Thanatos se virou para encarar a multidão.

– Eu sei que esse vampiro tem seguidores que compartilham os mesmos pontos de vista que ele. Acredito que eles sabiam de tudo e até podem tê-lo ajudado nesses crimes. Eles também devem compartilhar o seu destino. Eu agora chamo para a frente os seguidores de Dallas que desejam ficar ao lado dele!

Eu fiquei muito curiosa em saber o que ia acontecer. Havia uns dez garotos que andavam com Dallas o tempo todo. Bem, nove, agora que Nicole tinha saído do Lado Negro. Eu meio que esperei que uma horda inteira dos seus novatos vermelhos fosse para a frente, andando feito uns metidos babacas e jogando bolas de papel nas pessoas.

Mas na verdade apenas dois se juntaram a Dallas. Um era o grandalhão chamado Kurtis. Eu me lembrava dele na briga nos túneis. Ele era um idiota total. O outro garoto era Elliott, o novato que eu tinha visto morrer meses atrás na aula de Inglês. Eu sabia que Elliott era um inútil (alguém que não faz nada na classe além de respirar) do mal, mas eu imaginava que ele era preguiçoso demais para ficar ao lado de Dallas, principalmente porque parecia que ele ia ser expulso da escola junto com ele.

Ah, espere aí. Isso fazia sentido. O garoto não gostava de escola. Ser expulso com Dallas devia ser como umas férias permanentes para ele.

– Elliott e Kurtis, vocês dois conscientemente ficam ao lado desse vampiro como cúmplices dos seus crimes? – Thanatos perguntou.

– Sim, que inferno! – Kurtis respondeu. Ele tentou soar todo durão e seguro de si, mas olhou nervoso em volta.

– Sim, que seja – Elliott falou.

– Agora eu pergunto ao meu Conselho: vocês reconhecem a culpa desse vampiro e dos seus seguidores novatos?

No mesmo instante em que Thanatos fez a pergunta, a minha pedra da vidência começou a irradiar calor. Coloquei a mão em cima dela, desejando que eu soubesse a que ela estava reagindo e o que eu devia fazer em relação a isso.

Cada um dos membros do Conselho respondeu solenemente, dizendo:

– Sim, eu reconheço.

– Profetisas de Nyx, esses três foram considerados culpados de tramar o assassinato de uma Grande Sacerdotisa. Olhem dentro de vocês. Usem os seus dons. Vocês concordam comigo que, como nos tempos antigos, a punição deles deve ser imediata e pública?

Aphrodite respondeu primeiro:

– Eu concordo.

Shaylin demorou mais. Ela deu alguns passos para mais perto de onde Dallas, Kurtis e Elliott estavam e os analisou. Pela sua expressão, parecia que ela tinha sentido um cheiro ruim, mas não disse nada a eles. Ela voltou para o seu lugar perto de Thanatos e ainda não disse nada. Ficou só olhando para Thanatos por um tempo desconfortavelmente longo. Finalmente, Shaylin respirou fundo e disse:

– Eu acredito que a coisa certa a fazer é concordar com você – então Shaylin abaixou a cabeça. Eu tinha certeza de que ela fechou os olhos e parecia estar rezando, mas eu não tive mais tempo para ficar olhando, pois foi a minha vez de ser chamada.

– Zoey Redbird, como a outra única Grande Sacerdotisa presente, você está de acordo comigo e o meu direito ancestral de condenar esses três pela violência que eles admitem terem planejado e praticado?

Eu me senti como se tivesse recebido a pergunta mais fácil.

– Sim, eu concordo – respondi rapidamente. A pedra da vidência estava queimando a minha mão.

Thanatos levantou os braços. O poder crepitou ao seu redor, arrepiando os pelos do meu pescoço e dos meus braços. A sua voz foi amplificada pelo poder de Nyx, e ela soou como a personificação da Morte.

– Então eu invoco o meu direito como Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Os crimes contra uma Grande Sacerdotisa sob a minha proteção devem ser punidos como nos tempos antigos. Eu ordeno que o meu guerreiro Juramentado execute o vampiro vermelho e depois leve esses dois seguidores para o campo, longe o bastante de qualquer vampiro, para que os seus corpos rejeitem a Transformação e eles também morram!

Eu não tive nem tempo de ofegar. Kalona se moveu como um raio. Ele pegou a espada longa que estava pendurada nas suas costas e, com um único e rápido golpe, cortou a cabeça de Dallas. Stark se desviou quando o corpo dele teve convulsões e o sangue jorrou do coto onde era o seu pescoço. Eu não conseguia parar de olhar para a cabeça de Dallas. Os seus olhos estavam muito arregalados. Ele parecia atordoado. E a sua boca ficava abrindo e fechando sem parar, como um peixe em terra firme.

Kurtis e Elliott berraram e começaram a correr. O imortal alado os apanhou antes que eles saíssem do círculo de pessoas chocadas. Ele os agarrou pela cintura. A multidão se afastou dele, e então Kalona correu para a frente, com passos largos e firmes, batendo as asas enormes uma, duas, três vezes. Então ele e os dois garotos estavam voando no ar. Os garotos esperneavam e gritavam, mas isso não parecia afetar Kalona nem um pouco, e em alguns instantes eles saíram de vista, na direção oeste, dentro da escuridão.

– Silêncio! – a ordem de Thanatos acabou com o barulho como se um interruptor tivesse sido desligado. Foi só então que eu percebi que todo mundo à minha volta, exceto Stark, Shaylin e os membros do Conselho da Escola, estava gritando de horror ou soluçando de choque. – O tempo de fraqueza e brigas internas acabou. A violência contra a nossa Morada da Noite vai ser vingada. A nossa Deusa é misericordiosa, mas ela também é justa, e todos que se voltarem contra ela vão sentir o peso da sua justa ira. Que isto seja um aviso e a minha promessa a vocês: aqueles que ficarem ao lado da Deusa e de mim serão protegidos. Aqueles que se voltarem contra nós serão punidos. Morada da Noite de Tulsa, faça a sua escolha!


17
Zoey

A pedra da vidência ardia na minha mão. Eu sabia por que não havia me dissolvido em lágrimas ou berrado feito uma histérica.

Thanatos estava certa. Estava na hora de todos jurarem lealdade à nossa Morada da Noite e tomarem uma posição definitiva. Nós já estávamos contra muita coisa para ter que ficar lutando uns contra os outros também. Foi isso que ela sempre disse. Era nisso que eu também tinha começado a acreditar.

Dei um passo à frente, tomando cuidado para ficar fora do círculo de sangue de Dallas. Segurando firme a minha pedra da vidência, respirei fundo e orei: Magia antiga, ajude-me... fortaleça-me ! O calor explodiu da pedra da vidência e o poder chiou através do meu corpo. Quando eu falei, o volume da minha voz ecoou as minhas palavras pela multidão:

– O meu círculo e eu escolhemos o caminho de Nyx. Nós estamos unidos a esta Morada da Noite!

Damien e Shaunee foram os primeiros do meu círculo a se juntar a mim. Eles vieram até o meu lado e se curvaram respeitosamente para Thanatos, repetindo as minhas palavras:

– Nós estamos unidos!

Shaylin e Aphrodite deram um passo à frente para ficar ao lado deles. Darius, Stark e Aurox (que eu fiquei surpresa e feliz em ver) juntaram-se a nós. Rodeando-me, os membros do meu círculo colocaram suas mãos em punho sobre o coração e se curvaram respeitosamente, demonstrando a nossa solidariedade.

Isso deu o exemplo. Kramisha, Erik, Johnny B., Ant, Nicole e todos os outros novatos vermelhos de Stevie Rae atravessaram a multidão e vieram para a frente. Percebi que alguns estavam chorando. Outros, como Erik e Kramisha, estavam pálidos de choque, mas todos se curvaram e juraram lealdade à nossa Morada da Noite.

O resto da escola começou a se curvar e a fazer suas promessas de ficar unidos e seguir o caminho da Deusa. Prestei uma atenção especial nos novatos que haviam sobrado do grupo de Dallas. Eles eram fáceis de identificar. Os meninos eram totalmente desleixados e sujos, e as garotas usavam mais delineador do que roupas. Mas agora eles não estavam todos valentões e rebeldes. Eles pareciam assustados. Todos se curvaram para Thanatos. Eu não pude deixar de pensar até que ponto os seus juramentos eram sinceros, porque, afinal de contas, que escolha eles tinham? Imaginei o que eu faria no lugar deles. Eu não ia correr o risco de ser morta de jeito nenhum. Com certeza, eu iria fingir me unir a Thanatos. Mais tarde, porém, a minha escolha poderia ser diferente.

E como se a minha pedra da vidência nunca tivesse se parecido com um forno em miniatura, ela se resfriou, deixando-me tonta e com náuseas, com uma dor de cabeça latejante começando na minha têmpora direita.

Magia antiga era uma coisa assustadora!

– E agora eu ordeno que nós retomemos a nossa vida normal. A escola deve continuar – Thanatos estava dizendo. – Nós vamos ficar vigilantes em relação às forças das Trevas que agem ao nosso redor, mas elas não devem mais agir entre nós. Peço a Zoey e seu círculo que permaneça aqui e se reúna comigo rapidamente. O resto de vocês tem cinco minutos para estar na segunda aula. Professores, cuidem dos seus novatos. Que sejam todos abençoados.

Eu meio que senti como se alguém tivesse acabado de me dar um banho de água fria. Dallas havia sido decapitado. Dois novatos iriam morrer muito em breve, mas não se atrasem para a segunda aula? Como assim? Como poderia ser tão simples continuar o resto do dia como se nada tivesse acontecido?

– Zoey, eu preciso que você trace um círculo – Thanatos veio andando a passos largos na minha direção enquanto a multidão se dispersava silenciosamente.

– Aqui? Agora?

– Sim, aqui. Ao redor do corpo do vampiro. Mas não agora. Espere até que os novatos já tenham voltado para as suas aulas.

– Ok – respondi devagar. – Mas preciso que alguém fique no lugar de Stevie Rae.

– Eu posso substituir Stevie Rae.

Todo mundo se virou para Aurox.

– Por que você? – Stark perguntou antes que eu dissesse qualquer coisa, o que me deixou muito irritada. Era o meu círculo, não o dele!

– Por que não eu? Sei onde fica o norte. Posso segurar uma vela verde e invocar a terra. E quero ajudar Zoey.

– Parece ótimo para mim – respondi sem olhar para Stark. – Damien, Aurox e Shaunee, vocês podem pegar as velas do círculo e os fósforos?

Aurox se curvou respeitosamente para mim antes de os três saírem em direção ao templo de Nyx para pegar o material para o círculo.

– O que está rolando? Por que fazer um círculo agora? Alguém não deveria vir limpar essa bagunça? – Aphrodite perguntou, indicando o corpo de Dallas, sem olhar para ele.

– É exatamente isso o que Zoey e seu círculo vão fazer – Thanatos explicou. – Um vampiro condenado e executado não merece uma pira e as tradições de um funeral. Ele também não deve ser enterrado em lugar nenhum que possa virar um local de adoração para seus seguidores desencaminhados. Os seus restos precisam ser simplesmente destruídos, rápido e em silêncio.

– Oh – eu compreendi. – Você quer que eu trace um círculo e fortaleça Shaunee para que ela possa, bem, ahn... – eu hesitei, sem saber direito como colocar as coisas e me sentindo mal ao pensar no que nós íamos ter que fazer.

– Limpar essa bagunça – Aphrodite concluiu por mim.

– Sim, bem colocado – Thanatos soou como se estivesse falando sobre levar o lixo para fora. – E quanto menos atenção a gente chamar para essa limpeza, melhor. Então, eu agradeço às duas Profetisas por desempenharem os seus papéis com dignidade e sabedoria, mas agora devo insistir para que Aphrodite volte para a aula e que Shaylin se junte a ela logo depois de ter invocado a água no círculo de Zoey.

Aphrodite fechou o cenho. A sala de aula não era o seu lugar favorito no mundo. Eu franzi a sobrancelha para ela – não que ela percebesse –, pensando que eu ficaria feliz de trocar de lugar com ela.

– Venha, minha bela, vamos juntos – Darius pegou a mão dela, e os dois saíram andando na direção do prédio principal da escola.

– Eu vou buscar a minha vela azul e dizer a Damien e aos outros para se apressarem – Shaylin falou. Ela começou a caminhar na direção do Templo de Nyx, então fez uma pausa e se voltou para Thanatos. – Eu li as suas cores. Você estava fazendo o que precisava ser feito. Às vezes, os métodos antigos são os melhores.

– Eu também acredito nisso – Thanatos afirmou.

– Isso não torna o que aconteceu aqui nem um pouco menos horrível – Shaylin continuou.

– Não menos horrível, mas necessário – Thanatos argumentou.

– A escola não está toda do seu lado – Shaylin contou.

– Estou ciente disso.

– Acho que você ficaria surpresa ao saber de todos que estão pensando duas vezes no seu juramento a você e a esta escola – Shaylin disse.

– Mas eu imagino que você possa me revelar isso lendo as cores das pessoas, não é? – Thanatos perguntou.

O meu estômago se revirou.

– Ok, esperem aí – eu intervim. – Sou totalmente a favor de uma frente unida contra as Trevas, mas não sou a favor de que Shaylin seja usada para invadir os pensamentos das pessoas.

– O que você quer dizer, Zoey? – Thanatos pareceu me atravessar com os olhos.

– Que Shaylin não deve ser usada como sua espiã! – eu não sabia exatamente por que essa ideia me incomodava tanto, mas definitivamente me incomodava.

– Se ela estiver trabalhando a serviço de Nyx... – Thanatos começou.

Eu a cortei.

– Nyx concedeu o livre-arbítrio a todos nós. Isso significa que não é contra as regras da própria Deusa que qualquer um de nós questione as escolhas que fizemos e que vamos fazer no futuro. Não há nada de errado nisso. Só um idiota nunca questiona o que dizem para ele fazer.

– Shaylin, as cores de Dallas mostraram a você que ele era perigoso? – Thanatos perguntou a ela, sem desviar os olhos dos meus.

– Eu sabia que ele estava nervoso e era violento. Eu não sabia que ele ia tentar matar Stevie Rae e Shaunee.

– Mas, se Dallas tivesse sido contido por causa do que você viu dentro da aura dele antes desta manhã, Stevie Rae teria sido poupada de muita dor – Thanatos presumiu.

– Contido? Você quer dizer morto, antes que ele realmente fizesse algo? – eu me sentia como se fosse explodir.

– Acho que não foi isso o que Thanatos quis dizer – Stark opinou.

– Eu gostaria de ouvir Thanatos dizer isso – eu falei.

– Nos tempos antigos, só vampiros que de fato cometiam alguma violência contra outros vampiros eram executados – ela afirmou.

– Nós não estamos nos tempos antigos – eu rebati. – E eu acho que não é da conta de ninguém o que as pessoas pensam. Mas você sabe quem achava que era da sua conta escutar o que todos nós pensávamos? Neferet. E eu não gosto do que isso fez a ela.

Thanatos levantou as sobrancelhas.

– O seu ponto de vista foi bem colocado, Sacerdotisa – ela disse.

– Shaylin, vá ver por que Damien e os outros estão demorando tanto – eu ordenei.

Shaylin hesitou só por um instante, então se curvou para mim e saiu apressada.

– Você tem opiniões fortes – Thanatos observou.

– Você também.

– Você vai traçar o círculo e ajudar Shaunee a destruir o vampiro culpado?

– Sim. Eu não quero que ele seja feito de mártir, assim como você – eu respondi.

– Obrigada. Então vou deixá-la com o seu círculo – o olhar dela se voltou para Stark. – Você trabalhou bem hoje, guerreiro. Estou orgulhosa de você. Abençoado seja – ela curvou levemente a cabeça e foi embora.

– Eu juro que ela está agindo a cada dia mais como a Morte – eu falei, observando Thanatos enquanto ela se afastava.

– Z., acho que ela só está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

O meu primeiro impulso foi discutir com Stark, perguntar por que ele não estava ficando do meu lado, mas quando eu realmente olhei para ele vi que as suas roupas estavam rasgadas e enlameadas, e o sangue de Dallas estava respingado por toda a sua blusa e sua calça. O rosto dele estava pálido e tenso, e eu me dei conta de que, apesar de Kalona ter anunciado que havia trazido Dallas de volta para a escola, foi a flecha de Stark que tornou aquela execução possível.

Então Stark havia assistido Kalona decapitar o garoto.

Coloquei meus braços ao redor dele, afundando o meu rosto no seu peito.

– Acho que você está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

– Você está bem, Z.? Eu queria ter contado a você o que Thanatos ia fazer, mas não deu tempo – ele hesitou e então acrescentou: – Eu senti aquela enorme onda de poder que você teve quando levantou a voz. Não foi como você se sente quando o espírito a preenche, então eu imagino que possa ter algo a ver com magia antiga. Estou certo?

Eu fiquei inquieta e desconfortável.

– Bem, a minha pedra da vidência esquentou, e agora eu estou me sentindo acabada. Então, sim, eu acho que isso tem algo a ver com magia antiga.

– Acho que faz sentido, especialmente com Thanatos invocando regras ancestrais e tal.

– Pois é, a gente tinha acabado de falar sobre isso na classe, mas eu queria saber se isso significa que ela está fazendo a coisa certa ou não – eu externei as minhas preocupações em voz alta.

– Ei – ele levantou o meu queixo. – É você que tem a pedra da vidência. Você só tem que se preocupar se você está fazendo a coisa certa. E limpar essa bagunça de Dallas é definitivamente a coisa certa. Ok?

– Ok – eu o beijei. – Como você está?

– Cansado – ele disse. – E toda essa coisa da cabeça de Dallas sendo cortada... bem... Eu sabia o que ia acontecer e achei que estava preparado para isso. Mas... – ele perdeu as palavras e me abraçou com força.

– Stark, eu acho que não há nenhum jeito de se preparar para ver a cabeça de um garoto ser cortada – eu também o abracei forte. – Ei, você deve ir tomar um banho e se trocar. Que tal nos encontrarmos no almoço?

– Que tal nós marcarmos um encontro depois das aulas para não fazer nada além de ficarmos juntinhos e sozinhos, assistindo uma maratona de Big Bang Theory pelo Roku 13 ?

Eu sorri para ele.

– Ninguém além de mim sabe como você é bobo de verdade.

– Eu preciso rir, e Sheldon me faz rir.

– Ok, mas só se você não tirar sarro de mim por eu não entender todas as piadas dele – eu pedi.

– Mas isso é parte do que me faz rir – ele disse.

– Ok. Pode rir da minha cara. Eu vou me sacrificar por você – eu falei brincando.

A expressão dele ficou séria.

– Eu sempre vou me sacrificar por você – ele respirou fundo e então, do nada, afirmou: – Eu não quero que você comece a andar com Aurox.

Eu dei um passo para trás e me afastei dele.

– Do que você está falando?

– Sei que eu disse que dividiria você com Heath, mas eu só falei isso depois que o garoto estava morto, e agora ele está de volta e eu acho que não vou conseguir dividir você com ele, e eu quero que você fique longe dele – ele colocou tudo para fora rapidamente.

– Desculpem pela demora! Alguém colocou os fósforos de ritual na gaveta dos bastões de defumação. Eu pensei que a gente nunca iria encontrá-los. Eu odeio quando as coisas ficam fora do lugar – Damien tagarelou ofegante, com uma aparência exausta, quando ele, Shaylin, Shaunee e Aurox chegaram apressados até nós, com as mãos cheias de velas e fósforos.

– Shaylin me contou o que Thanatos quer, estou pronta – Shaunee disse.

– Há algo errado? – Shaylin perguntou, olhando para mim e Stark com uma concentração desconcertante.

– Não, está tudo bem – respondi. – Stark está de saída para tomar um banho e se trocar. Certo, Stark?

Stark colocou os braços em volta de mim e me puxou para mais perto. Então ele me beijou. Na boca. De um jeito impetuoso e possessivo. Uma das suas mãos desceu pelas minhas costas e parou no meu traseiro, enquanto ele dizia:

– Certo, Z. Eu te vejo mais tarde. Durante o nosso encontro. A sós – ele deu um apertão na minha bunda e então saiu apressado.

Shaylin me entregou a vela roxa do espírito, e eu me controlei para não atirá-la nele. Que diabos eu ia fazer em relação a Stark? Será que ele realmente acreditava que agindo possessivamente e me dizendo o que eu devia fazer ele ia conseguir que eu não tivesse vontade de ficar com outro cara? Caramba, claro que não!

Deixei a minha irritação de lado e forcei um sorriso alegre.

– Então, vamos traçar esse círculo – eu disse. – Todo mundo pronto?

Enquanto íamos para os nossos lugares, eu ignorei o fato de que Shaylin continuava me observando. Então percebi que eu ia ter que assumir a minha posição no centro do círculo, o que significava que eu teria que ficar perto do corpo decapitado de Dallas em meio a cinzas ensopadas de sangue e terra carbonizada. Resolvi que não ia me importar que Shaylin estava me analisando atentamente e que Stark estava agindo feito um babaca. Eu meio que congelei ao chegar perto do sangue, odiando que aquele cheiro fizesse a minha boca salivar, mas aquela visão fez o meu estômago se contrair.

– Não olhe para ele – a voz de Aurox fez com que eu desviasse o olhar daquele corpo sem cabeça horrível. Ele sorriu para mim da extremidade norte do círculo. – Vá até Damien e invoque o ar. Na hora em que você tiver que ir para o centro do círculo, você vai estar fortalecida pelos elementos. Você consegue, Z.

A última parte do que ele disse soou tanto como Heath que os meus olhos se encheram de lágrimas. Pisquei com força para não chorar, assenti e fui na direção de Damien.

E Aurox estava absolutamente certo. Na hora em que fui para o meio do círculo, acendi a minha vela roxa e invoquei o espírito, eu me senti equilibrada e amparada. Não foi difícil liderar Shaunee e forçar uma explosão de chamas no corpo de Dallas. Depois que ele foi reduzido a cinzas, para mim pareceu natural pedir a Shaylin que fizesse a água lavar o local da pira e que Damien fizesse o vento soprar para longe aquele cheiro de queimado. Finalmente, eu usei Aurox como um canal com a terra. Juntos, nós conseguimos que a terra fizesse brotar grama verde onde antes só existia sangue e cinzas.

– Agora está muito melhor – eu disse, parada no meio da grama verde e fofa, inspirando profundamente o cheiro de primavera, depois de fechar o círculo.

Damien pegou o celular na sua bolsa masculina e conferiu a hora.

– Ah, que ótimo! Nós só perdemos metade da terceira aula. Eu amo Literatura e a professora Penthesilea.

– Terceira aula! – Shaunee exclamou. – Para mim é Esgrima. Fui. Vejo vocês no almoço.

Demos tchau acenando para ela.

– Eu queria que já estivesse na sexta aula – suspirei.

– Pensei que você gostasse da aula de Literatura – Damien disse.

– Eu gosto, mas não gosto da aula de Espanhol, que é a quinta. Então, se já estivesse na sexta aula, eu teria perdido o Espanhol – esfreguei a testa, sentindo dor de cabeça e tontura de novo.

– Você está bem? – Shaylin perguntou.

Eu olhei para Shaylin. Ela estava me encarando. De novo. A minha irritação ferveu e o meu estômago roncou. A pedra da vidência começou a esquentar no meio do meu peito, o que só meu deixou mais nervosa.

– Shaylin, pare de ficar me secando! – eu não queria soar tão irritada como as minhas palavras acabaram saindo, e eu não queria de jeito nenhum fazer Shaylin dar um salto como se eu tivesse acabado de dar um tapa nela, mas foi exatamente isso o que aconteceu.

– Desculpe. Eu não tive a intenção – ela falou, quase se encolhendo de medo e se afastando de mim.

Eu suspirei e toquei na pedra da vidência, que estava fria como uma pedra comum.

– Olhe só, eu não quis gritar com você. Eu estou com dor de cabeça e com fome, só isso.

– Bem, Z., você acabou de traçar um círculo. Você precisa se equilibrar. Vá até o refeitório e pegue algo para comer – Damien me aconselhou, acariciando o meu braço. – Eu digo para a professora P. onde você está. Vai ficar tudo bem.

– Você está certo, Damien. Comida com certeza vai fazer bem para a minha cabeça.

– Comida ou refrigerante marrom? – Damien perguntou, sorrindo.

– Refrigerante marrom é comida – eu respondi.

– Zoey, você se importa se eu for até o refeitório com você? – Aurox sugeriu.

– Você não tem que ir para a aula? – eu quis saber.

– Não. Eu só assisto a primeira aula. Depois eu faço a ronda nos jardins da escola.

– Ah, eu, ahn, não sabia disso – eu fiz esse comentário inútil, sem saber se o invejava ou se sentia pena dele.

– De fato, acho que é uma boa ideia Aurox comer algo também. Foi o primeiro círculo dele – Damien fez uma pausa e sorriu para Aurox. – E você foi excelente. Muito bem!

– Ei, obrigado, Damien – Aurox abriu o sorriso, fazendo com que os seus olhos faiscassem de um jeito um pouco familiar demais.

Como olhos da cor da pedra da lua podem me lembrar dos olhos de Heath?

– Zo, você não se importa que eu vá com você, não é?

Eu me dei conta de que eu estava encarando Aurox – enquanto Shaylin, Damien e Aurox me encaravam –, e pisquei.

– Não, tudo bem. Mas você vai ter que se apressar. Vou tentar pegar pelo menos o final da aula de Literatura. Só porque não é Matemática, não quer dizer que eu seja muito boa nessa matéria – eu praticamente saí correndo, com Aurox me seguindo, depois de dar um tchau rápido para Damien e Shaylin.

O refeitório estava deserto, mas eu podia ouvir panelas e frigideiras tinindo lá na cozinha, e um cheiro delicioso tomava conta do ambiente. A minha boca estava salivando loucamente quando Aurox disse:

– Você pode ir pegar as nossas bebidas, que eu vou até a cozinha ver o que está pronto para comer.

Eu concordei sem pensar e fui direto pegar refrigerante marrom. Matei um copo antes de sair de perto da máquina de bebidas. A minha cabeça já estava um pouco mais clara quando eu estava levando dois copos grandes para a mesa em que meu grupo normalmente sentava. Enquanto eu bebia aquela maravilha marrom gelada, eu pensei em como era estranho o fato de alguns lugares mudarem totalmente quando estavam vazios. Tipo, o refeitório normalmente era um lugar barulhento e cheio de estudantes e comida, mas naquele momento, meia hora antes do almoço, parecia maior do que era e quase de outra dimensão, como se fosse possível ouvir os ecos dos espíritos dos garotos que não estavam ali, mas que ainda, de algum modo, estavam me observando.

Isso me deu sérios arrepios.

– Peguei para você queijinho-quente e sopinha de tomate – Aurox sorriu alegremente enquanto sentava no banco ao meu lado, colocando uma bandeja cheia de sopa e sanduíches na nossa frente.

Eu só consegui ficar olhando para ele.

O sorriso de Aurox esvaneceu. Ele olhou para o sanduíche de queijo e a sopa e depois para mim.

– Eu pensei que você fosse gostar. Posso levar isso de volta. Também tem sanduíche de peito de peru com queijo, e a cozinheira me disse que estão quase terminando de preparar a salada Cobb.

– Não é isso. Eu amo queijo-quente. E a sopa.

– Então por que você está assim?

– Queijinho-quente e sopinha de tomate. Por que você falou desse jeito?

Ele enrugou a testa.

– Simplesmente saiu da minha boca. Não é assim que se fala?

– Aurox, é assim que eu falava desde o segundo ano do fundamental. Heath também falava assim. Era o nosso almoço preferido porque a nossa escola fazia um spaghetti muito ruim.

– Psaghetti – ele disse em voz baixa.

A minha mente me disse para falar para ele ficar quieto e comer, mas a minha boca disse:

– Nós só falamos assim quando é bom. A loucura do psaghetti não acontece com spaghetti ruim – eu sabia que estava tagarelando bobagens, mas não conseguia me conter. – Tem também uma música e uma dança sobre a loucura do psaghetti.

– Eu sei.

– O que mais você sabe? – eu me senti quente e fria ao mesmo tempo.

– Que algumas vezes eu quero tanto te tocar que às vezes eu acho que posso morrer se você não deixar – ele afirmou.

Senti um frio na barriga.

– Eu estou com Stark.

– Eu sei, e acho que você tinha que ficar fria quanto a isso.

“Ficar fria”! Quando ele falou isso, soou tão parecido com Heath que eu quase perdi o fôlego.

Nenhum de nós disse nada, então ele levantou a mão devagar na direção da minha, que estava na mesa entre nós. Delicadamente, ele pegou a minha mão e a virou ao contrário. Com um dedo, ele acompanhou suavemente a tatuagem cheia de filigranas que cobria a minha palma.

– Você recebeu essas tatuagens de Nyx – ele disse.

– Sim.

– Você tem mais tatuagens especiais – ele tirou o dedo da palma da minha mão e o colocou sobre o meu rosto, onde ele acariciou o padrão repetido ali.

O dedo dele era quente e deu vida aos meus nervos, de modo que onde ele tocava eu me arrepiava. Ele seguiu a linha do meu pescoço até o decote em V da minha camiseta da BDG, e então começou a seguir o traçado da tatuagem, que se estendia sobre a minha cicatriz, de um ombro a outro.

– Isso quase a matou – ele sussurrou.

– Quase – falei meio ofegante, como se estivesse tentando conversar e correr ao mesmo tempo.

Com os dedos ainda no meu corpo, ele olhou dentro dos meus olhos.

– Você se Carimbou com Heath e ele a salvou. Foi por isso que você não morreu.

– Sim.

– Você bebeu o sangue dele.

Estava muito difícil falar, então eu apenas assenti.

– Zo, eu quero que você beba o meu sangue.

– Heath, ahn, Aurox... – eu gaguejei. – Não posso. Isso iria magoar Stark e...

Perdi as palavras quando ele pegou uma faca e furou a ponta do dedo que tinha tocado meu peito. Uma única gota vermelha brotou. O cheiro do sangue dele me invadiu. Não era humano. Não era de novato nem de vampiro. Era mágico.

Eu lambi a ponta do seu dedo e ele gemeu o meu nome:

– Zo!

Aquele sabor atingiu o meu corpo como uma bomba nuclear. Eu agarrei e segurei com força a mão dele, querendo mais. Fechei os olhos e coloquei o dedo dele na minha boca. Ele se inclinou para a frente, encostando a cabeça na minha.

O sino que indicava o final da terceira aula e o começo do almoço soou. Arregalei os olhos e me dei conta do que estava fazendo.

– Não, isso não está certo! Não. Aurox – balançando a cabeça, eu soltei a mão dele.

Ele estava respirando tão ofegante quanto eu.

– Eu não vou contar a ninguém. Eu nunca vou te trair assim.

Eu queria chorar.

– Se você realmente se importa comigo, vá embora. Por favor.

Ele assentiu, colocou um guardanapo em volta do seu dedo sangrando e saiu rapidamente do refeitório.

Bebi um copo inteiro de refrigerante de uma só vez. Enxuguei a boca. Alisei a minha camiseta. Peguei uma metade de queijo-quente e me forcei a comer. E quando todos os meus amigos se juntaram na mesa, sorri, conversei e deixei Stark colocar o braço no meu ombro possessivamente.

Ninguém sabia que eu estava berrando por dentro. Ninguém.


18
Neferet

Os olhos de Neferet se moveram embaixo de suas pálpebras fechadas enquanto ela revivia o século vinte. Para um período em que ela tinha conseguido tanto poder e o princípio da sua imortalidade, tinha sido realmente um tédio terrível.

Duas coisas foram a exceção: os seus sonhos e a velha mulher. Os primeiros se mostraram mentiras, e a segunda se revelou incrivelmente mais do que a verdade. Era irônico que o seus sonhos fossem a parte que ela mais gostou de revisitar.

Neferet tinha voltado para a Morada da Noite de Tower Grove, onde a escola inteira estava ávida demais por demonstrar preocupação e compaixão com ela. As mortes precoces da sua primeira familiar 14 , a pequena Chloe, e de seu guerreiro haviam sido muito próximas. Todos compreenderam quando Neferet se retirou da vida social e começou a passar uma quantidade de tempo incomum em meditação e oração.

Eles não tinham ideia de que Neferet na verdade passava o seu tempo de oração em um sono profundo e entorpecido, ansiando pelo deus que aparecia para ela apenas quando ela estava inconsciente.

Kalona havia sido esperto. Apesar de ter uma beleza impressionante, ele aparecia nos sonhos dela como o Deus sem Rosto, que pedia apenas que ela revelasse as suas fantasias e permitisse que ele a venerasse.

Não parecia sonho. Mais tarde – depois que era tarde demais –, Neferet percebeu que não andava sonhando, mas sim que Kalona estava entrando no seu subconsciente e a manipulando. Porém, naquele momento, tudo o que Neferet sabia era que o toque imortal dele despertava desejo. Ela continuou a se abrir para ele e, enquanto o seu subconsciente escutava os sussurros dele, Neferet ficava mais forte.

Ela começou a questionar os modos modernos dos vampiros à sua volta. E, basicamente, a acreditar que o seu destino era libertar um deus de sua prisão injusta, para que ela e ele pudessem governar lado a lado, Nyx e Erebus sobre a Terra. Juntos eles iriam anunciar uma nova era, em que vampiros não iriam mais coexistir em uma paz desconfortável e patética com os humanos.

Em silêncio, Neferet começou a tomar providências que iriam mudar a forma das relações entre humanos e vampiros irrevogavelmente. Como o imortal havia dito para ela em seus sonhos: Por que os deuses que caminham sobre a Terra se curvam para aqueles que os deveriam venerar?

Neferet usou a perda do seu guerreiro como uma desculpa para viajar, para não ficar presa ao trabalho enfadonho de ser uma professora. Buscando, sempre buscando o que alimentava os seus sonhos, mas a iludia na vida, Neferet sorriu quando começaram a chamá-la de embaixadora de Nyx, cujas visitas abençoavam cada Morada da Noite de um modo especial.

Neferet pensava em si mesma como uma embaixadora de poder.

Ela usou os seus dons psíquicos para saber o que cada Grande Sacerdotisa queria ou precisava : ser adulada ou desafiada, ameaçada ou elogiada, adorada ou ignorada. E então ela dava exatamente o que elas queriam: informação, um toque de cura, inspiração, excitação... a lista de necessidades e desejos das Grandes Sacerdotisas era interminável. Enquanto Neferet “servia”, ela adquiria reputação na comunidade dos vampiros. Ela se via como um camaleão fascinante e poderoso. Ela aprendeu a fazer com que as pessoas enxergassem nela a característica que cada uma mais respeitava, confiava e venerava em alguém.

E sempre, sempre, Neferet era atraída para o centro da nação – para Oklahoma, para a terra cor de sangue antigo, e para a jovem cidade, Tulsa, onde ela havia enterrado os registros de seu passado humano e para onde os sonhos, os sussurros e o toque de Kalona continuavam a atraindo.

Busque a minha libertação... busque a minha libertação... Os sussurros dele preenchiam os seus sonhos e assombravam a sua vida.

Era o dia 22 de abril de 1927 quando o rico casal humano Waite e Genevieve Phillips fizeram um convite para as Grandes Sacerdotisas comparecerem ao grande baile de gala que eles estavam oferecendo para celebrar o término da construção da mansão que estava sendo chamada de Philbrook.

Neferet se certificou de que estava entre as Sacerdotisas que aceitaram o convite. Ela não tinha interesse por Philbrook, nem pelo casal humano filantrópico e liberal e seus amigos ricos da alta sociedade.

Mas a cidade interessava Neferet. Ela tinha cheiro de petróleo, álcool, dinheiro, sangue e poder – sempre o poder.

Foi o aroma do poder, como a essência dos seus sonhos, que naquela noite a fez sair da festa dos Phillips e começar a vagar pela cidade. Mansões do petróleo recentemente construídas pontuavam a paisagem. Neferet passou por elas sem ser vista. Ela mal olhou para dentro de suas janelas, nem reparou no brilho cintilante dos novos lustres elétricos de cristal. Em vez disso, ela foi atraída para longe das mansões resplandecentes e começou a seguir um pequeno e melódico córrego, que parecia estar sussurrando uma canção para ela.

A mansão apareceu de repente, como se tivesse se materializado especialmente para Neferet. Ela era enorme e ficava no meio de jardins caprichosamente bem cuidados, enfeitados por carvalhos. Neferet se lembrava de ter pensado como era estranho o fato de existir apenas um portão de ferro na entrada da rua, sem muros cercando a propriedade.

Então ela viu a placa e percebeu que, apesar de aparentemente ter sido construído como uma elegante casa de campo europeia, ou talvez até como um castelo, o enorme prédio de pedra era uma escola particular.

Neferet foi atraída para ela antes de ver a velha mulher. Quando ela entrou no campus , o seu interesse definitivamente despertou. Havia dois prédios principais, ambos construídos com uma pedra de textura única. O campus aparentava ser novo, tão novo que parecia escuro e desabitado. Foi quando Neferet perambulava pelo campus inativo que a canção sussurrante que ela estava escutando a noite inteira se tornou realidade e se aglutinou aos seus sonhos.

Primeiro ela ouviu a sonora batida do tambor. Neferet seguiu o som até um lugar no extremo leste dos jardins do campus . Lá o aroma da sálvia e da sweet grass 15 a guiaram até um enorme carvalho, grande o bastante inclusive para esconder a luz de uma fogueira. Ela reparou que vários pássaros enchiam os galhos da árvore. Corvos. Estranho, normalmente corvos não são vistos à noite, ela se lembrava de tê-los identificado e de ter pensado nisso.

Neferet deu a volta na árvore e viu a fogueira.

Então a batida do tambor preencheu a clareira, e toda a atenção de Neferet se concentrou na anciã. Ela estava ajoelhada perto do fogo com um grande tambor na sua frente, no qual batia com um bastão simples enrolado em couro, que ela segurava com sua mão direita. Na sua mão esquerda, ela tinha um machadinho. Depois de algumas batidas, ela cortou um pedaço de uma corda grossa e longa de ervas secas, que estava no chão ao seu lado. O fogo chiou quando consumiu as ervas, soltando uma fumaça com aroma doce.

O vestido da mulher, apesar de amarelado pelo tempo, tinha uma beleza inesperada. As delicadas contas bordadas se refletiam na luz do fogo, e a longa franja ondulava graciosamente a cada batida do tambor. O seu rosto era velho, e o seu cabelo preso em uma trança grossa era completamente branco, mas a sua voz era clara como a de uma garota. Ela começou a cantar, e Neferet foi arrebatada pelas suas palavras.

Ancestral adormecido, esperando para despertar...

Neferet se moveu silenciosamente na direção da velha mulher, enquanto a música pulsava através do seu corpo no mesmo compasso das batidas do seu coração.

Quando o poder da terra sangra em sagrado vermelho

A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar

Ele será levado de seu leito de morte

Neferet deu um passo e entrou na área iluminada pela luz do fogo. A anciã levantou os olhos embaçados, que deviam ser azuis, e parou de cantar.

– Não – Neferet insistiu. – Continue cantando. É uma canção adorável.

A expressão da mulher se endureceu, mas ela continuou:

Pelas mãos dos mortos ele se liberta

Beleza terrível, visão monstruosa

Eles haverão de ser regidos outra vez

As mulheres hão de se curvar à sua misteriosa força

Doce é a canção de Kalona

Enquanto assassinamos com um calor gelado

Kalona! O nome do deus penetrou em Neferet.

– Cante outra vez, velha – ela ordenou.

– Já terminei. Vou embora.

A anciã começou a se levantar, mas Neferet se moveu rapidamente para detê-la. Foi muito fácil pegar o machadinho daquela velha. Foi muito fácil pressioná-lo contra a garganta dela.

– Faça o que eu mando ou vou cortar o seu pescoço e deixar o seu corpo velho aqui para que os pássaros a devorem até os ossos.

A velha mulher fechou os olhos, deu um suspiro profundo e trêmulo e começou a cantar sem parar, até que Neferet teve certeza de que havia memorizado a canção. Só então ela permitiu que a mulher parasse. Só então ela passou a examinar a mente da anciã.

– Você se vê como uma Ghigua. O que é isso? – Neferet perguntou.

A idosa arregalou os olhos. Ela não respondeu, mas a sua mente de repente foi invadida por pânico e palavras estranhas: Ane li sgi, demon, Tsi Sgili, devoradora de almas, assassina de homens. Esse fluxo de palavras foi levado até Neferet em uma onda de medo e horror.

– Você está com muito medo de mim – Neferet sorriu e se sentou mais perto da velha, deixando o machadinho no pequeno espaço entre elas.

– Você escuta o que está na minha mente – a mulher disse.

– Eu consigo escutar mais do que isso – Neferet afirmou. – A sua canção... acho que eu entendo o que ela significa.

– Eu canto essa canção a cada lua nova como um alerta.

– Certamente, para alguns deve ser um alerta. Para mim, é uma promessa – Neferet investigou mais a fundo a mente da velha mulher. – Você não tem medo de mim porque eu sou uma vampira.

– Eu não tenho medo de vampiros.

– Mas ainda assim você tem medo de mim – Neferet falou. – E você canta sobre o meu amante. Deixe-me ver, como é mesmo a canção? A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar. Diga-me, velha, quem e o que é a Rainha Tsi Sgili?

É você, demônio! Tem prazer com a dor! Alimenta-se da morte!

A condenação ecoou da mente da anciã até Neferet, mas ela disse apenas:

– Eu já falei o bastante por uma noite. Agora não vou dizer mais nada – então ela pressionou os seus lábios finos e enrugados, teimosamente.

Neferet sorriu de modo insinuante para ela.

– Ah, mas eu não preciso que você fale com palavras. A sua mente está gritando alto o suficiente. Eu posso capturar tudo o que preciso sem que você diga uma única sílaba, velha.

Mas Neferet não teve tempo para violar a mente da mulher como ela pretendia. Com um grito de guerra estridente, a anciã pegou rapidamente o machadinho e deu um golpe em seu próprio pescoço, abrindo a artéria carótida.

– Não! – Neferet gritou, pressionando a mão contra a carne da idosa, tentando prolongar os seus últimos minutos de vida, enquanto examinava a mente dela, buscando respostas em pensamentos semiformados e em imagens que desvaneciam.

Na sua toca, o corpo de Neferet se contorceu e estremeceu em reação às suas lembranças. A velha mulher havia se sacrificado por nada. A sua mente moribunda ofereceu informação suficiente para que Neferet começasse duas coisas: a busca de um modo para libertar Kalona e a sua transformação de uma Grande Sacerdotisa insatisfeita em uma deusa imortal, a Rainha Tsi Sgili.

Zoey

Eu adorava a sexta aula. Não só porque Lenobia era a professora mais legal de todos os tempos, mas porque era uma aula em que eu montava um cavalo! Eu não conseguia imaginar como isso poderia ser mais perfeito. Hoje parecia que Lenobia sabia que a gente precisava se livrar do estresse. Quando a aula começou, nós entramos na arena e encontramos grandes barris pretos de aço dispostos na forma de um triângulo.

Lenobia veio galopando em Mujaji. A égua negra parou deslizando bem na nossa frente.

– Então, novatos, alguém sabe por que esses barris estão aqui?

Eu levantei a mão.

– Zoey?

– Para uma corrida de barris.

– Exato – ela disse. – Você já participou de uma corrida de barris antes, Zoey?

Eu sorri, um pouco nervosa.

– Bem, mais ou menos. O cavalo de minha avó, Mouse, era um corredor de prova de barris aposentado. Vovó costumava colocar barris para ele treinar. Mesmo quando já estava bem velho, ele se empertigava e corria ao redor dos barris como se fosse um potro novamente. Eu apenas ficava em cima dele e o deixava fazer todo o serviço, mas era divertido.

Lenobia sorriu.

– Essa é uma história adorável e uma lembrança especial, Zoey. Guarde-a com carinho.

– Vou guardar. Eu já guardo.

– E então, alguém mais tem experiência com corrida de barris?

Os outros cinco garotos balançaram as cabeças e se mostraram desconfortáveis.

Lenobia franziu a sobrancelha e resmungou, mais para si mesma do que para nós:

– É tão desanimador estar no meio de Oklahoma cercada de jovens que não sabem nada de cavalos – então ela levantou a voz e continuou: – Não importa. Eu preparei um exemplo bem simples, grande e óbvio para vocês seguirem – ela fez um barulho com a boca para Mujaji, e a égua se moveu para o lado para que Travis, montado em sua égua Percherão, Bonnie, pudesse entrar trotando na arena.

Ele empinou a égua na frente de Lenobia e tocou na aba de seu chapéu para cumprimentá-la.

– Madame, você não acabou de chamar a minha égua de grande e simples, chamou?

Ela acariciou o focinho de Bonnie e deu um beijinho nela antes de responder:

– Eu nunca chamaria essa criatura magnífica de grande e simples. Eu estava falando de você – os olhos dela faiscaram para o cowboy alto e bonitão.

– Bom, então tudo bem, madame – ele disse. – Fico feliz em saber que sou valorizado assim.

A risada de Lenobia pareceu a de uma garotinha, e eu pensei que nunca a tinha visto tão bonita.

– Vá, conduza Bonnie ao redor dos barris para que os garotos vejam – ela bateu de brincadeira na bota de Travis.

Sim, ela definitivamente estava apaixonada.

– Certo, minha garota, vamos mostrar a esses novatos que você não precisa ser um Quarto de Milha para fazer uma prova de barris – ele levou Bonnie até a posição de partida e então a esporeou com força e bateu com o seu chapéu no traseiro enorme dela. A égua Percherão praticamente decolou.

Lenobia explicava o que Bonnie estava fazendo, como ela estava seguindo um padrão de trevo, em um tempo exagerado. Mesmo assim, quando a égua gigante arremeteu pelo centro com Travis a incitando, e o chão da arena pareceu tremer, todos nós a saudamos e aplaudimos.

E isso foi só o começo da diversão. Por quase uma hora, fizemos sem parar a corrida de barris, um de cada vez, com o cavalo escolhido. Persephone era a “minha” égua. Eu adorava cada centímetro de sua bela pelagem ruão. E ela também corria bem! Persephone sabia fazer direitinho o padrão de trevo. Como diria Stevie Rae, eu só precisava ficar feito um carrapato, grudada nela.

Por todo esse tempo – cerca de cinquenta e poucos minutos –, eu esqueci de Neferet, Stark, Aurox, Transformação e magia antiga. Só durante esse pequeno período, eu era uma garota de novo, rindo, montando um cavalo e amando a vida.

Isso acabou rápido demais. Normalmente, tratar de Persephone me ajudava a aquietar a mente. Hoje teve o efeito contrário. Talvez porque eu não tivesse pensado em nada enquanto eu estava montando. Porém, quando eu comecei a pentear a sua crina com a almofaça, os meus problemas rugiram.

Pensar no que Neferet estava armando deveria ser o meu maior problema, seguido por tentar descobrir como a minha pedra da vidência e a magia antiga estavam funcionando – ou não funcionando –, mas o que continuava girando sem parar na minha mente era a situação Heath/Aurox/Stark.

Afe, eu tinha lambido o sangue no dedo do garoto.

Que diabo eu ia fazer agora?

– Bom trabalho hoje, Zoey – a voz de Lenobia me assustou e Persephone levantou a cabeça por causa da minha reação.

Eu acalmei a égua e dei um olhar de desculpas para Lenobia.

– Sinto muito, a minha cabeça não estava aqui.

– Eu entendo totalmente – ela se encostou na portinhola da baia. – Tratar de Mujaji para mim é como tomar um comprimido para dormir. Ela me deixa tão relaxada que até já me aconcheguei na sua baia e dormi ali mesmo algumas vezes.

Eu suspirei.

– É, normalmente eu também me sinto assim quando cuido de Persephone.

– Mas hoje não?

Balancei a cabeça.

– Hoje não.

– Você quer conversar sobre isso?

Eu quase respondi automaticamente algo como “está tudo ok, eu estou bem”. Mas então eu lembrei que ela havia dito que esperou Travis por mais de duzentos anos. Ela devia entender de casos de amor complicados – além disso, Lenobia era mais do que apenas uma professora, ela era minha amiga. Então dei outra resposta:

– Sim, se você tiver tempo, eu realmente gostaria de conversar sobre isso.

Lenobia colocou um fardo de feno dentro da baia e se sentou nele.

– Eu tenho tempo.

Inspirei profundamente, sem saber direito por onde começar.

– Apenas escove a égua e comece a falar. O resto vai vir naturalmente – Lenobia disse.

Segurei a escova macia e comecei a passá-la em Persephone, seguindo o padrão de crescimento do seu pelo lustroso. E comecei a falar.

– Sei que é normal, e até parece ser meio esperado que uma Grande Sacerdotisa escolha mais de um cara, mas eu simplesmente não entendo como elas fazem isso.

Lenobia riu.

– O que foi que eu disse?

– Ah, Zoey, desculpe. Eu não estou rindo de você. É só que eu me esqueci de como você é tão jovem e de como há tantas coisas sobre vampiros que você não entende muito bem.

– Tipo, como fazer para lidar com mais de um cara ao mesmo tempo – eu disse, concordando.

– Bem, talvez. Mas para mim parece que a primeira coisa que você deve entender é que não se espera que Grandes Sacerdotisas tenham mais de um amante ao mesmo tempo. Elas simplesmente têm a opção de escolher mais de um parceiro sem serem julgadas, como uma mulher humana seria na cultura de hoje – Lenobia cruzou as pernas e se encostou na parede da baia, como se estivesse se acomodando para uma longa conversa íntima. – Zoey, pense em como vai ser a sua vida quando você completar a Transformação.

– Se eu completar a Transformação – eu observei.

Lenobia sorriu.

– Eu tenho confiança em você, então vamos dizer quando você completar. Você sabe quantos anos eu tenho?

– Muitos – eu falei sem pensar. – Ahn, desculpe. Não é que você pareça velha nem nada disso.

– Não fiquei ofendida. Eu nasci no ano de 1772.

– Faz muito tempo! – exclamei.

O sorriso dela se ampliou.

– Se o destino for bom comigo, eu provavelmente vivi apenas metade da minha expectativa de vida. Desde 1772, eu só amei um único homem, mas isso foi uma escolha minha, um voto que fiz. A maioria das vampiras encontram diversos amores durante suas vidas. Às vezes, elas já estão envolvidas com um vampiro quando conhecem um novo amor humano. Às vezes, é o contrário.

– Então, não é que se espere que elas tenham vários caras ao mesmo tempo – eu concluí.

– Exato. Trata-se mais de lógica e expectativa de vida. E escolha. Como nós fazemos parte de uma sociedade matriarcal, podemos escolher sem sermos julgadas ou condenadas. Isso a ajuda com o seu problema?

– Bem, sim e não. Obrigada por me explicar essa história de múltiplos parceiros, mas eu ainda não sei o que fazer em relação à coisa Heath barra Aurox – eu respondi, sentindo-me péssima.

– Por que você tem que fazer algo?

– Porque eu já fiz uma coisa. E ignorar isso não é justo com Aurox ou com Stark – suspirei de novo. – Ou, eu imagino, com Heath.

– Então você tomou Aurox como amante, junto com Stark?

– Não! – eu gritei. Então espiei Lenobia por cima de Persephone. Ela estava olhando imperturbável para mim, serena e sem julgamentos. – Mas eu bebi um pouco do sangue dele – eu admiti.

– E como você não é igual a uma novata normal do primeiro ano, isso é muito viciante e excitante para você. Certo?

– Sim, certo – eu reconheci.

– Stark sabe disso?

– Ah, Deusa, não! Ele iria surtar. Ele já está agindo feito um babaca possessivo sempre que Aurox está perto de mim.

– Mas ele sabe que você era companheira de Heath e que a alma de Heath está dentro de Aurox.

– É por isso que ele está agindo feito um babaca possessivo. Aparentemente, Stark não vai aceitar que eu fique com Heath, ahn, Aurox. E Stark pensa que nós mal falamos um com o outro.

– Aurox te atrai.

Ela não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi.

– Sim, atrai. Isso porque Heath está dentro dele. Não é uma coisa consciente. É estranho... e perturbador. Aurox normalmente é apenas um garoto bonitinho, por quem eu não me sinto particularmente atraída nem nada, mas de repente... bang !... eu pisco e ele diz ou faz algo tão igual a Heath que faz o meu coração doer.

– Se você não estivesse ligada a Stark, iria querer ficar com Aurox?

Mordi o lábio.

– Não tenho certeza. Eu amo Heath. Sempre vou amar Heath. Mas Aurox não é realmente o meu Heath.

– Você quer dizer que é como quando Kalona se sentia atraído por você, porque a alma da virgem A-ya está aí dentro, e ele reconhecia a presença dela?

Essa comparação me surpreendeu, mas, quanto mais eu pensava sobre ela, mais aquilo fazia sentido.

– Acho que você está certa. Uau, isso na verdade deixa as coisas mais fáceis para mim. Kalona realmente me queria por causa de A-ya, e eu tenho que admitir que sentia uma atração profunda por ele. Mas não era real. Eu não sou A-ya, e eu escolhi não amá-lo. Aurox não é Heath. Ele não precisa escolher me amar... os resquícios de Heath me amam, só isso.

– Eu vou ter que complicar as coisas para você, mas, para ser justa, você precisa saber que Aurox pode amar você também. Travis é a reencarnação do meu único companheiro, Martin. Ele não tem as memórias de Martin. Na verdade, ele é muito diferente do meu Martin, e ainda assim ele é tão eternamente devotado a mim quanto eu sou a ele – Lenobia sorriu com ternura, e os seus olhos se encheram de lágrimas. – Realmente é possível levar o amor com você, e alguns de nós tem sorte o bastante para encontrar esse amor novamente.

– Lenobia, eu estou superfeliz por você, mas realmente você complicou muito as coisas para mim – eu afirmei.

– Zoey, a sua situação já era complicada. Você quer o meu conselho sobre como eu lidaria com isso?

– Claro que sim – eu respondi.

– Pode ser que isso pareça frio ou até egoísta, mas, se eu estivesse no seu lugar, iria decidir com quem eu realmente queria ficar, sem me preocupar com o que os dois garotos queriam. O único modo de você ficar plenamente satisfeita com a sua escolha é se você fizer a escolha pensando em você, não em ninguém mais.

Abaixei a escova e olhei para ela.

– É mesmo tão simples assim?

– Se você conseguir ser honesta consigo mesma e então seguir em frente até o fim com essa honestidade, sim, é – Lenobia respondeu.

– Você me deu bastante coisa para pensar, mas pelo menos agora eu tenho uma direção – eu falei.

– Você tem que amar e ser verdadeira consigo mesma antes que alguém possa amá-la e ser verdadeiro com você.

O sino que sinalizava o fim das aulas soou. Coloquei a minha mão em punho sobre o coração e me curvei respeitosamente para ela.

– Obrigada, Lenobia.

Lenobia retribuiu com o mesmo gesto tradicional e disse:

– Que você seja sempre abençoada, Zoey Redbird.

– Stark, nós precisamos conversar – eu odiei dizer essas palavras provavelmente tanto quanto Stark odiou escutá-las. Afinal, quem não odiaria? Será que algum pai ou mãe, namorado ou namorada, professor ou chefe já começou uma conversa boa dizendo isso?

– Ok, mas eu pensei que a gente ia assistir Big Bang Theory e, você sabe, passar algum tempo juntos e sozinhos – ele tentou dar aquele seu sorriso metidinho.

– Bem, a gente ainda pode fazer isso. Talvez. Se você ainda quiser, depois que a gente conversar.

– Você está me assustando – ele falou.

Eu estendi a mão para ele. Stark a segurou e se sentou perto de mim na cama.

– Eu preciso dizer algumas coisas que provavelmente vão ser difíceis para você escutar, mas você não precisa se assustar.

– Não preciso me assustar porque, não importa o que seja, eu sempre vou ser o seu guerreiro e Guardião?

Ele parecia muito nervoso. Eu entrelacei os meus dedos aos dele.

– Sim, em parte é por isso, mas em parte também é porque eu te amo.

– Ah, ótimo. Eu gosto dessa parte.

– Eu também – eu afirmei. – Mas eu também preciso gostar de você.

– Mas você acabou de dizer que gosta.

– Não, eu acabei de dizer que amo você. E amo mesmo. Mas você tem feito algumas coisas ultimamente de que eu não gosto muito, e nós temos que conversar sobre isso.

– O que você quer dizer?

Eu tinha decidido que, se ia ser honesta comigo mesma, tinha que ser honesta com Stark. Então eu falei a verdade a ele, diretamente, sem rodeios.

– Eu não gosto como você me trata quando Aurox está por perto. Você age feito um babaca possessivo, e quero que você pare com isso.

Ele tentou tirar a sua mão da minha, mas eu não deixei e continuei:

– O ponto é: eu não acho que você seja um babaca possessivo. Eu gosto de quem você realmente é, e quero que você volte a ser aquele cara, o tempo todo.

– Tudo bem. Que seja.

– Não, Stark. Isso não vai dar certo se você não for honesto comigo e consigo mesmo. Você sempre vai ser o meu guerreiro, mas se você ficar todo na defensiva comigo e a gente não puder conversar sobre os nossos problemas, você vai acabar sendo apenas o meu guerreiro e nada mais.

– É isso o que você quer?

– Sério, Stark, pense um pouco. Se eu quisesse isso, por que a gente estaria tendo esta conversa?

– Então você não está terminando comigo?

– Espero que não – eu falei.

Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse se esvaziando. Os seus ombros desabaram e ele ficou olhando fixamente para o chão sob os seus pés.

– Saber que você ama Aurox está me deixando louco, e eu sinto muito se isso me faz agir feito um idiota. Mas eu não sei o que fazer em relação a isso, porque não suporto pensar em você ficando com ele.

– Ok, em primeiro lugar, eu não amo Aurox. Eu amo Heath. Eu sempre vou amar Heath. Você sabe disso.

– Mas Aurox tem a alma de Heath dentro dele.

– Sim, e eu fico feliz que ele tenha, afinal foi isso que salvou Vovó. Eu sempre vou ser grata a Aurox por isso, mas eu não o amo.

– Você não quer ficar com ele? Mesmo? – Stark levantou os olhos do chão e se virou para mim.

– Eu decidi que não quero ficar com ele. Mesmo – eu afirmei.

– Por que não? – Stark perguntou, mas, antes que eu pudesse responder, ele me cortou. – Não... não importa. Eu não quero saber por quê. Só o que importa é que você não quer ficar com ele. Não quero saber mais nada além disso.

Ok, eu tinha a intenção de contar a Stark que eu havia provado o sangue de Aurox, e que realmente era difícil para mim quando eu vislumbrava Heath dentro dele, e que na verdade eu ainda amava Heath e Stark. Mas, mesmo apesar disso tudo, eu tinha decidido que simplesmente não conseguia lidar com mais de um namorado ao mesmo tempo. Mas eu não consegui dizer nada disso porque Stark me puxou para os seus braços.

– Eu estou tão feliz que você me escolheu! – ele sussurrou.

Senti que ele estava trêmulo, então eu o abracei e sussurrei:

– Eu também.

E então ele de repente estava me beijando com um desejo tão quente que eu nem conseguia pensar no que queria dizer. Eu só conseguia pensar no seu toque e em quanto eu o amava.

Foi só mais tarde, quando o sol havia se levantado e Stark estava roncando ao meu lado, com o braço sobre o meu corpo e a lateral do seu corpo pressionada intimamente contra o meu, que a minha mente começou a funcionar de novo, e eu soube que precisava falar com Aurox.


19
Zoey

Não foi difícil tirar o braço de Stark de cima de mim e sair escondida da cama. Stark estava totalmente apagado. Acho que nem a explosão de uma bomba iria acordá-lo. Mesmo assim, fiquei pensando em como a nova capinha do meu celular era brilhante enquanto eu me vestia e saia do quarto na ponta dos pés. Afinal, uma bomba podia não acordar Stark, mas as minhas emoções em turbilhão provavelmente o acordariam.

Felizmente, não havia ninguém por perto. Apesar de estar no meio da manhã, o céu estava com cor de hematoma e havia um aroma de tempestade de primavera. No caminho para o ginásio, percebi que as glicínias plantadas perto do muro da escola estavam brotando com grandes cachos de flores roxas. Então eu espirrei. Sim, tempestades, flores e alergias. A primavera estava chegando a Oklahoma.

Fui até o ginásio passando pelo estábulo e fiz uma pausa no corredor entre os dois prédios, inspirando profundamente o cheiro de cavalo e feno para tentar manter a calma.

Eu só vou ser honesta. Vou magoá-lo mais se eu ficar prolongando isso e o evitando. Heath entenderia.

Eu bufei e dei risada de mim mesma. Não, Heath não entenderia. Ele iria dizer: “A gente pertence um ao outro, amor!”. E ignorar o fato de que eu estava terminando com ele. De novo.

Kalona estava parado sozinho no corredor ao lado da entrada para o porão.

– Zoey, você está acordada a essa hora – ele colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou rapidamente.

Eu não o tinha visto mais desde que ele cortou a cabeça de Dallas e saiu voando com os dois novatos se debatendo em seus braços. Ele não parecia diferente em nada. Acho que eu não deveria esperar isso dele. Mesmo assim, não pude deixar de ter uma curiosidade mórbida.

– Oi. E então, como foram as coisas com os dois novatos?

– Como deviam ser.

– Eles já estão... você sabe, mortos?

Kalona deu de ombros, fazendo suas asas enormes farfalharem.

– Eu os deixei no meio da Pradaria de Tallgrass. Com essas nuvens cobrindo o sol, pode ser que eles durem um dia. Mas certamente não vão durar mais do que isso.

– Você vai cuidar dos corpos deles?

Ele balançou a cabeça.

– Os coiotes vão fazer o serviço por mim.

– Isso é muito frio – eu comentei.

– A justiça normalmente parece fria. Isso não é uma característica que Thanatos e eu criamos. Julgar, condenar e fazer justiça não é agradável. Não é neste país que o símbolo da Justiça é uma donzela cega segurando uma balança?

– Ahn, acho que isso não quer dizer que ela seja fria. Acho que isso quer dizer que a Justiça não deve se basear na aparência de uma pessoa ou em que ela é, mas sim nos fatos.

– Não entendo a distinção que você está fazendo.

– Não importa – eu desisti. – Eu estou procurando Aurox. Você o viu?

– É o turno dele de patrulhar o perímetro da escola. Se você sair pela porta da frente do ginásio, ele deve passar por lá em breve.

– Ok, ótimo. Ahn, eu agradeço se você não contar a ninguém que eu estava procurando...

Kalona levantou a mão, cortando-me.

– Não vou fazer fofocas para o seu guerreiro.

Eu pensei em corrigi-lo e dizer que não era nada disso, que eu só não queria que os novatos ficassem fofocando sobre mim e Aurox, mas a minha boca não conseguiu formular essa mentira, então eu suspirei e agradeci.

– Sim, obrigada – e então saí apressada.

Também não havia ninguém na parte da frente da escola, e eu encontrei um banco não muito longe da porta do ginásio. Enquanto eu estava sentada esperando Aurox, observei as nuvens carregadas se aproximando e pensei no que Kalona havia dito.

Talvez ele estivesse certo. Julgar os outros não era agradável. Já houve um tempo em que eu teria pensado que julgar os outros era errado, mas eu havia concordado com Thanatos em sua condenação. Acho que eu até concordava com a pena que ela havia determinado. Então, será que isso me tornava uma hipócrita quando, no final de tudo, eu me senti mal e enjoada? Ou será que isso me tornava humana? Ou será que isso me tornava obtusa demais, impedindo que um dia eu possa ser uma Grande Sacerdotisa decente?

– Zoey? Está tudo bem?

Eu não escutei Aurox se aproximando, então foi um choque desviar a minha atenção das nuvens carregadas e ver os seus olhos com o brilho do luar. Eu pisquei surpresa e me chacoalhei mentalmente, tentando me concentrar de novo e pelo menos fazer a coisa certa.

– Sim, tudo bem. Eu só preciso conversar com você. É uma boa hora?

– Claro – ele fez um gesto na direção do banco ao meu lado.

– Ah, sim, sente-se.

Ele se sentou e eu tentei não me inquietar nem arrancar o meu esmalte.

– Parece que vai chover – eu disse. – E acho que acabei de ouvir um trovão ao longe.

– Há um cheiro de raios no ar – ele concordou.

Eu relaxei um pouco. Aquilo era algo que Heath definitivamente não diria.

– Eu nunca tinha pensado que raios pudessem ter cheiro, mas você provavelmente está certo. Raios e trovões andam juntos.

– Zo, o que está rolando?

Os meus olhos encontraram os dele. Heath estava definitivamente lá dentro.

– Eu não posso beber o seu sangue de novo.

– Mas você quer – ele argumentou.

– Aurox, ninguém tem tudo o que quer.

– Mas isso não é tudo, é apenas uma pequena parte do todo.

– Se eu realmente bebesse o seu sangue, a gente ia fazer amor. A gente provavelmente ia se Carimbar. Isso não seria uma coisa pequena para mim, nem para você, nem para Stark.

– Então é Stark. É por causa dele que você não quer ficar comigo – Aurox afirmou.

– Não. É por minha causa. Eu não posso ficar com dois caras ao mesmo tempo.

– E você não vai trocar Stark por mim porque eu não sou Heath.

– Eu não vou trocar Stark por você porque já estou comprometida com ele – eu disse com firmeza.

– É porque eu não sou bom o suficiente para você... por causa do modo como eu fui criado... por causa do que eu posso ser.

Coloquei a minha mão na dele.

– Não, Aurox. Por favor, não pense isso. Você não tem culpa de nada disso, e eu nem penso nisso quando estou com você.

– No que você pensa?

Eu sorri, apesar de estar triste, e continuei a falar a verdade para ele:

– Penso em como estou feliz por você estar aqui. Também penso que você e Heath formam uma boa dupla.

– Você sabe que a gente te ama – ele disse.

– Eu sei – falei baixinho e tirei a minha mão da dele. – Sinto muito.

– E como vai ser agora?

– Vamos ser amigos – eu afirmei.

– Amigos – a palavra soou tão sem emoção quando ele a repetiu.

– Sim, e Stark não vai mais agir feito um louco perto de você – eu garanti.

– Zo, isso porque ele não tem nenhuma razão para agir assim – Aurox se inclinou, deu um beijo na minha bochecha e então, parecendo completamente derrotado, disse: – Você poder avisar Kalona que vou conferir o perímetro da escola de novo?

– Sim, claro... – eu falei enquanto ele saía correndo na direção do muro de pedra da escola.

Eu me levantei, sentindo-me pesada e muito, muito cansada. Bem, eu falei a verdade para ele, mas foi péssimo. Tentei não pensar em nada a não ser em dormir, porque a última coisa que eu queria era que Stark acordasse e perguntasse por onde eu andei e o que tinha feito com que eu me sentisse tão mal. Voltei pelo mesmo caminho até o ginásio e pelo corredor que dava na entrada do porão. Kalona não estava lá. Eu suspirei e olhei dentro do ginásio. Ele também não estava lá. Imaginando que ele estava no porão para dar uma conferida rápida nos garotos adormecidos, eu caminhei sem fazer barulho na direção da escada.

– Sim, andei observando Zoey como eu disse que faria.

Quando eu escutei meu nome, parei porque fiquei surpresa. A voz veio da área do estábulo, da porta meio aberta que separava o corredor entre o ginásio e o celeiro.

– E...? Que merda, será que eu tenho que te perguntar tudo?

Então eu percebi quem estava falando sobre mim e me aproximei lentamente, sem acreditar no que ouvia.

– E as cores dela ficaram muito loucas durante o funeral. Mas eu acho que sei por quê. Não tem nada a ver com ela perder o controle do seu temperamento ou dos seus poderes.

– Shaylin, estou perdendo a paciência. Conte logo o que você viu, só isso.

Houve uma longa pausa. Escutei Shaylin soltar um suspiro, e então gelei por dentro quando a Profetisa falou para Aphrodite:

– Eu vi Zoey olhando para Aurox. Muito. As cores dela estavam loucas. Isso me fez pensar... Então, quando ela e Aurox foram até o refeitório depois do círculo, eu os segui.

– Caraca, Shaylin! Você não é uma Profetisa, você é uma superespiã! – Aphrodite exclamou, rindo. – Diga que Z. e o menino-touro se pegaram.

Mordi o lábio para não gritar.

– Quase. Os dois definitivamente estão atraídos um pelo outro. Ela sugou sangue do dedo dele.

– Para Zoey, isso é praticamente a mesma coisa do que se pegar. Caramba! Isso é muito parecido com o que eu vi. Então, deixe-me adivinhar, as cores dela ficaram loucas? Indicando confusão, frustração e irritação?

– Exato. Principalmente depois que ela...

Eu já tinha ouvido o bastante.

– Calem a boca! – eu gritei. A pedra da vidência no meu peito estava ardendo tanto quanto o meu rosto vermelho. Eu abri a porta com força, fazendo com que ela batesse contra a parede.

– Oh-oh – Aphrodite disse.

– Zoey! Não é o que você está pensando! – Shaylin saiu na defensiva, afastando-se de mim quando eu entrei no aposento.

– Sério? Como isso não é o que estou pensando, se eu acabei de ouvir você contar a Aphrodite que andou me espionando! – eu não pensei. Eu reagi. Segurando a pedra da vidência ardente, levantei a outra mão e pensei como eu queria tanto que Shaylin caísse no chão.

Uma bola de fogo azul saiu da minha mão e derrubou Shaylin. Ela caiu de costas, ofegante e chorando.

Não liguei para o choro dela. Eu me senti bem em fazer com que ela caísse de bunda no chão. Shaylin mereceu.

– Pare! Agora! – Aphrodite entrou na minha frente.

Eu franzi os olhos.

– Você estava falando sobre mim pelas minhas costas!

– E eu vou explicar por que em um segundo. Primeiro, você precisa cair em si. Controle essa merda louca que está rolando com você e acalme-se. Agora – ela olhou sobre o ombro para Shaylin. – Volte já para o porão.

Ainda chorando, Shaylin se levantou com dificuldade e passou correndo por mim.

– E então, o que ela é, a sua pequena Profetisa particular?

Em vez de me responder, Aphrodite observou Shaylin indo embora. Então ela colocou as mãos nos quadris e me encarou.

– Sério? Você quer falar merda para mim depois de usar essa maldita pedra para machucar Shaylin? Você perdeu completamente a cabeça.

– Pedra? – eu pisquei surpresa para ela e então olhei para o meu peito, percebendo que eu estava segurando a pedra da vidência com tanta força que ela estava fazendo a palma da minha mão doer. Assim que eu senti a dor, a pedra se resfriou. Eu a soltei. Sentindo-me confusa, tentei manter o foco no que tinha me irritado: Shaylin espionando a centra entre mim e Aurox. – Eu não estou falando sobre a pedra e não estou falando merda. Quero saber o que você pensa que está fazendo para mandar que eu seja seguida por aí.

– Eu tive uma visão. Era do seu ponto de vista. Você estava fazendo algumas coisas que Shaylin viu você fazer com Aurox.

– Quando você teve essa visão?

– Uns dias atrás. Não importa. O que importa é que...

– Não importa que você tenha escondido de mim uma visão sobre mim por dias?

– Não, o que importa é o motivo. Foi porque eu também vi você perdendo o controle sobre o seu maldito temperamento, sem conseguir controlar essa maldita pedra. E foi exatamente isso o que acabou de acontecer.

– Não, não foi isso o que acabou de acontecer. Eu controlei a maldita pedra. Eu quis derrubar Shaylin, e a pedra fez exatamente o que eu queria.

Aphrodite balançou a cabeça de um lado para o outro.

– Você prestou atenção no que está dizendo? Claro, você deveria ficar irritada com o que acabou de ouvir. Mas a Zoey normal nunca ia querer machucar Shaylin. Aliás, a Zoey normal também nunca falaria “merda” ou “maldita”.

– A Zoey normal nunca ia imaginar que uma das suas melhores amigas ia ficar falando dela pelas costas e mandando espioná-la!

– Eu ia te contar sobre a visão. Eu ia te contar sobre Shaylin. Eu só precisava esperar o momento certo – Aphrodite argumentou.

– Quer saber, Aphrodite? O momento certo não era depois de você falar sobre mim e me espionar. Ah, que se dane. Tô fora – comecei a me afastar dela, mas Aphrodite entrou na minha frente de novo.

– Z., tem mais coisas rolando aqui do que apenas o fato de você estar irritada comigo. Acho que a magia antiga está afetando você, e não de uma forma boa. Nós precisamos conversar sobre isso. Você tem que me deixar contar o resto da minha visão.

– Estou tão cansada de ouvir o que eu tenho que fazer. Saia da frente, Aphrodite – o meu peito estava ardendo quando eu forcei a passagem.

Ela cambaleou para trás, fazendo uma exclamação de choque. Eu não me importei. Já estava cheia dela.

Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que eu tinha que ir. Se eu estivesse com as chaves do meu Fusca, teria dirigido até a casa de Vovó, mas as chaves estavam lá no meu quarto e eu não queria ver Stark naquela hora e contar a ele porque eu estava tão perturbada. Que inferno, se aquilo não tivesse sido durante o dia, eu já teria trombado com Stark, graças à ligação idiota que a gente tinha.

Eu precisava de tempo. Eu precisava de espaço. Eu sentia como se a raiva estivesse fervilhando embaixo da minha pele. Eu não podia fugir disso porque eu não podia fugir de todo mundo me irritando e me dizendo o que fazer. Eu precisava pensar sem ficar sendo incomodada constantemente com chatices!

Mudei de direção, afastando-me dos dormitórios, até chegar ao muro que circundava a escola. O muro que Aurox patrulhava. Que droga! Eu também não queria vê-lo.

Foi então que eu decidi mandar pro inferno os policiais e a sua prisão domiciliar. Eu não tinha matado o prefeito e, se eu precisava dar uma volta fora do campus , eu ia dar uma volta fora do campus ! Comecei a correr para a parte leste do muro, onde havia uma passagem escondida, que eu sabia que não ficava muito longe dali.

Shaylin

Shaylin tentou parar de chorar. Ela não era uma chorona. Ela estava acostumada a não sentir pena de si mesma. Mas desta vez era diferente. Primeiro, aconteceu aquela coisa horrível com Dallas e os dois novatos. Ela sabia o que ia acontecer. Shaylin tinha visto a morte deles nas cores de Thanatos. E ela havia ficado de boca fechada e acreditado que Thanatos estava fazendo a coisa certa.

Depois Shaylin fez exatamente o contrário: ela tinha aberto a boca e fofocado sobre os assuntos pessoais de Zoey porque sentiu que estava fazendo o certo. Bem, Shaylin também tinha sentido que estava se encaixando na Morada da Noite e fazendo um bom trabalho com o seu dom.

Mas isso não podia ser verdade, pois ela se sentiu péssima depois que Dallas foi morto e que a novata mais poderosa do mundo a fez cair de bunda no chão.

Ela tinha se atrapalhado totalmente. Duas vezes.

Shaylin se encolheu no canto escuro do porão onde ela tinha montado a sua cama. Ela se sentou com os joelhos dobrados e o seu travesseiro em cima deles. Ela pressionou o rosto contra a fronha macia para abafar o choro. Mas ela não precisava ter se preocupado. A maioria dos novatos vermelhos dormia durante o dia como se estivessem mortos.

Era isso o que eu devia estar fazendo também, ela repreendeu a si mesma. Eu devia estar dormindo, e não falando com Aphrodite sobre Zoey. Agora elas estão bravas uma com a outra e também comigo! Eu nunca vou entender essa coisa de Profetisa.

Shaylin não pensou no fato de que Aphrodite aparentemente estava certa em relação ao problema do controle da raiva de Zoey. Naquele momento, não importava que Aphrodite estivesse certa. Naquele momento, só o que importava era que parecia que o mundo dela – e os seus amigos – estavam entrando em colapso.

– Ei, Shaylin, o que aconteceu?

Abafando o choro, Shaylin levantou o rosto e viu Nicole em pé ao seu lado, esfregando os olhos, com o cabelo desgrenhado, como se ela fosse uma sonâmbula.

– Na-nada. E-eu estou bem – ela sussurrou e então enxugou o rosto na fronha, forçando-se a parar de chorar.

Nicole sentou ao lado dela.

– Não, você não está bem. Você está se acabando de chorar.

– Shhh – Shaylin pediu silêncio a ela e olhou em volta para conferir se todo mundo ainda continuava dormindo. – E-eu estou bem.

Nicole se aproximou mais dela, de modo que os seus ombros se tocaram, e sussurrou:

– Fique tranquila. Ninguém vai ouvir. Conte o que aconteceu.

Shaylin enxugou os olhos de novo e então falou em voz baixa:

– Eu acho que me atrapalhei usando a minha Visão Verdadeira.

– Ei, você é boa usando a sua Visão. Você viu que eu mudei – Nicole sorriu para ela. – Você devia confiar mais em si mesma.

– Eu devia aprender quando é a hora de abrir a minha boca idiota e quando é a hora de manter a minha boca idiota fechada – Shaylin afirmou. Ela enfiou a mão dentro da sua bolsa, pescou um lenço de papel amassado e assoou o nariz.

– Você não é idiota.

– Se você soubesse que Thanatos ia mandar Kalona cortar a cabeça de Dallas, teria dito alguma coisa?

Nicole fez uma careta.

– Você não pode me perguntar isso. Não consigo ser imparcial em relação a Dallas.

– Você ainda o ama?

Nicole balançou a cabeça rapidamente.

– Não, esse é o ponto. Eu nunca o amei de verdade, e eu sabia como ele era perigoso. Então eu não posso ser imparcial em relação à sua morte.

Enquanto a ouvia, Shaylin deu um pequeno soluço. Nicole colocou o braço ao redor dela.

– Se você está mal por causa do que aconteceu com Dallas, não fique.

– Não foi só isso, apesar de isso ter sido ruim. Eu falei com Aphrodite sobre as cores de outra pessoa, e eu devia ter ficado fora disso.

– Mas Aphrodite também é uma Profetisa. Ela é meio maldosa e louca, mas ainda assim é uma Profetisa. Acho que é normal uma Profetisa conversar com a outra sobre coisas como a sua Visão Verdadeira.

– Eu também pensava isso. Agora não tenho tanta certeza. Eu queria saber exatamente qual é a coisa certa a fazer.

– Acho que várias vezes não há uma única coisa certa a fazer em determinadas situações.

Shaylin levantou os olhos para Nicole.

– Você é muito inteligente.

– Que nada, é só que eu já cometi um monte de erros – Nicole sorriu para ela. – Mas agora eu não errei. Consegui fazer você parar de chorar.

Shaylin tentou sorrir.

– Conseguiu mesmo. Obrigada. E, aproveitando, as suas cores se tornaram muito bonitas.

– Viu só, se você acha que as minhas cores são bonitas, isso prova que você é uma grande Profetisa.

Shaylin estava sorrindo para Nicole quando a novata se inclinou devagar e a beijou nos lábios com delicadeza. Shaylin congelou e arregalou os olhos de choque. Então Nicole se afastou dela e rapidamente tirou o braço do ombro de Shaylin.

– Desculpe – Nicole sussurrou. Mesmo na escuridão do porão, Shaylin percebeu que o rosto de Nicole ficou vermelho. – Não sei por que eu fiz isso. Sinto muito.

Shaylin continuou olhando para ela, observando a beleza suave das suas cores e sentindo ainda o calor macio dos seus lábios.

– Não precisa se desculpar – então ela colocou os braços em volta da cintura fina de Nicole, encostou a cabeça no ombro dela e disse: – Você fica comigo e me abraça?

Nicole colocou o braço de volta nos ombros dela.

– Shaylin, querida, eu fico com você para sempre se você quiser.


20
Kalona

Dez minutos mais cedo

Kalona estava parado perto da entrada do porão esperando Aurox voltar e pensando que o garoto provavelmente ia demorar um pouco, já que Zoey tinha ido procurá-lo, quando sentiu uma coceira quente e familiar sob a pele.

– Erebus – ele resmungou.

– Você disse algo?

Kalona olhou rapidamente para o corredor.

– Aphrodite, o que posso fazer por você? – ele não colocou a mão em punho sobre o coração nem se curvou para ela. Sim, a garota era uma Profetisa de Nyx, mas também era a humana mais irritante que ele já havia conhecido. E Kalona já conhecera muitos humanos.

– Preciso falar com Shaylin. Ela está no porão, certo?

– Todos os novatos vermelhos estão no porão – ele respondeu.

– Menos os dois que você largou no meio do nada para morrerem.

– Você gostaria de fazer alguma consideração a respeito disso?

– Não, só estou afirmando o óbvio. Vou acordar Shaylin. Eu agradeceria se você pudesse nos dar um pouco de privacidade para conversar.

– Como quiser, Profetisa. O seu guerreiro está a uma distância em que pode ouvir os seus gritos, no caso de haver problemas lá embaixo?

– Não preciso de Darius para lidar com os novatos vermelhos. Eu tenho isto aqui – ela deu um tapinha na sua bolsa.

– Você acha que pode apartar uma briga com uma bolsa? – ele quase riu.

– Não, eu acho que posso apartar uma briga com isto aqui – Aphrodite abriu a sua bolsa de couro. Kalona espiou dentro dela e viu um pequeno cilindro preto.

– Você vai jogar esse recipiente de perfume em alguém?

– Ah, por favor, entre neste século. Não é perfume, é um spray de pimenta. Eu estou morando em uns túneis no centro da cidade, embaixo de um porão. Os distritos Brady, Greenwood e outros lá perto estão passando por uma reforma adorável, mas vale a pena andar protegida e estar preparada para tudo.

– Então eu vou lhe dar a privacidade que deseja – ele se curvou para ela nessa hora. Aphrodite era tão irritante que ele quase se esquecia de como ela também podia ser divertida.

Com a sua mão com unhas pintadas de rosa, Aphrodite fez um gesto para que ele fosse embora antes de entrar no porão.

Kalona pensou em chamá-la e contar que Zoey estava ali perto com Aurox, mas então ele pensou melhor. Realmente seria divertido ver o que aconteceria se Aphrodite encontrasse Zoey nos braços de Aurox.

Kalona estava rindo quando saiu do ginásio, passando através do estábulo. Ele parou do lado de fora, recompôs-se e tentou descobrir por qual direção o bastardo do seu irmão iria chegar. Não demorou muito. Receando o encontro, mas resignado por ser inevitável, Kalona se dirigiu ao Templo de Nyx.

Ele não tentou entrar. Na verdade, ele desviou os olhos quando passou pela grande porta de madeira e deu a volta pelo edifício de pedra até a parte de trás do templo. Ele esperava que o seu irmão iria se manifestar, do seu jeito tipicamente espalhafatoso, onde quer que Kalona estivesse. E o prédio iria bloquear a sua luz o suficiente para evitar que todos os professores corressem para lá.

Kalona não teve que esperar muito. A bola de luz do sol que se materializou acima do solo era, de fato, espalhafatosa, mas Kalona não cedeu ao impulso de encobrir os olhos. Erebus saiu dos raios ofuscantes, assentindo e sorrindo ironicamente.

– Parabéns por atender rapidamente ao meu chamado, irmão – Erebus disse.

– Fico perplexo como você finge que eu quero alguma coisa com você. Quem veio até mim foi você. Como diriam no mundo moderno, vivo há séculos sem ligar para você e sem nem pensar em você.

– Sem nem pensar em mim? Mesmo? Pois eu acho que, desde a sua Queda, os seus pensamentos se voltam com frequência para o Mundo do Além.

– Você não é Nyx, irmão. Eu também fico perplexo como você confunde o meu interesse pela Deusa com interesse por você.

Erebus sorriu.

– Pois eu posso acabar com a sua perplexidade facilmente. Nyx e eu somos inseparáveis. Os interesses dela são os meus, assim como os meus são os dela.

– Inseparáveis? Mesmo? – Kalona fez uma cena, fingindo que estava procurando alguém perto do seu irmão. – Será que a Deusa está se escondendo na sua bola de sol? Ah, não. É claro que ela não estaria aí. Pelo que me lembro, a Deusa prefere o toque frio e suave da luz da lua em vez da luz bruta do sol.

– Nyx me enviou aqui!

Kalona sorriu devagar, satisfeito.

– Então seja bem-vindo, irmão, como o moleque de recados da Deusa.

Erebus desfraldou suas asas. Elas se abriram ao redor dele e brilharam como a luz do sol refletida em barras de ouro.

– Eu não vim como um moleque de recados, mas sim como um imortal, Consorte da Deusa da Noite, e eu trago um aviso dela!

– Impressionante – Kalona falou sarcasticamente. – Mas se você não parar de cintilar e de gritar, o seu aviso vai ser testemunhado por todo o centro de Tulsa.

Erebus fechou as asas contra as costas. A sua voz saiu sem aquele volume sobrenatural, mas a sua expressão não perdeu em nada a sua presunção de imortal.

– Você já capturou Neferet?

– Com certeza você me observa o bastante para já saber a resposta a essa pergunta.

– Então você ignorou o édito de Nyx.

– Eu não ignorei nada. Estive ocupado cumprindo os meus deveres como guerreiro Juramentado da Sacerdotisa desta Morada da Noite – Kalona afirmou.

– Você está fora de forma se o fato de executar três crianças pode distraí-lo tanto a ponto de ignorar a ordem de Nyx e de falhar ao perceber que a magia antiga está se manifestando no mundo moderno.

Kalona se recusou a morder a isca de Erebus. Ele não fez nenhum comentário sobre Nyx e apenas disse calmamente:

– Sgiach lida com magia antiga há séculos.

– Sim, Kalona, mas Sgiach é uma Rainha ancestral que vem lidando com magia antiga por todos esses séculos na Ilha de Skye, um lugar dedicado a preservar a magia antiga há muito tempo. Tulsa, em Oklahoma, não é a Ilha de Skye, e não há nenhuma Rainha vampira ancestral aqui com experiência em usar a magia antiga – Erebus falou em um tom professoral, como se estivesse dando uma aula para algum idiota cabeça oca.

– Sei exatamente onde eu estou e quem está comigo. Os meus atos são corretos, ao contrário dos seus. Eu decapitei um vampiro que foi condenado por tentativa de assassinato pela minha Grande Sacerdotisa. Ela não usou magia antiga. Ela simplesmente invocou a lei ancestral. E o vampiro que eu executei não era uma criança – Kalona acrescentou, não gostando do tom de seu irmão, como sempre.

– O garoto mal tinha dezoito anos.

– Se você quer discutir a execução de um assassino confesso, então discuta com Thanatos, o Conselho da Escola, duas Profetisas de Nyx e Zoey Redbird.

– Mas nenhum deles levantou a espada que cortou a cabeça do vampiro, assim como nenhum deles levou dois novatos para a morte certa – Erebus rebateu.

– Eu sou guerreiro Juramentado de Thanatos. Se ela me dá alguma ordem, eu tenho que obedecer.

– É uma pena que você não tenha demonstrado esse tipo de lealdade cega para Nyx quando era guerreiro Juramentado dela – Erebus falou.

Kalona encontrou o olhar âmbar de seu irmão sem se abalar.

– Eu aprendi com os meus erros do passado. E você, aprendeu?

Erebus desviou o olhar.

– Dê logo o aviso que você veio dar e desapareça. Você me cansa – Kalona disse.

– Muito bem, você está avisado de que a magia antiga foi despertada quando leis ancestrais foram invocadas. Nyx adverte que vocês estão lidando com forças que podem não ser capazes de controlar.

– Nyx não deveria dizer isso a Thanatos? Foi a Grande Sacerdotisa dela que começou a lidar com essas forças.

– Ainda é você quem pode ser o fiel da balança em uma batalha entre Luz e Trevas. A Deusa já viu isso acontecer antes perto de você. Os Raven Mockers foram feitos com magia antiga.

Kalona sentiu uma terrível punhalada de culpa, mas disse:

– Os meus filhos foram feitos de estupro e ódio.

Erebus assentiu solenemente.

– Sim. Magia antiga.

– Nyx controla a magia antiga! – Kalona exclamou.

– Você se tornou tão iludido, tão arrogante, que acredita que pode lidar com o mesmo tipo de poder que a Deusa?

– Eu não tenho nenhuma ilusão! Minha mente nunca esteve tão clara desde que eu Caí – Kalona avançou sobre Erebus. – E a minha arrogância não é nada comparada à sua, irmãozinho. Sem mim para dar equilíbrio, é você que acredita que é tão poderoso quanto Nyx.

– Eu estou falando justamente de equilíbrio, irmão. Os touros são magia antiga, e eles deveriam estar eternamente em combate – Erebus afirmou.

– Eu não tenho nada a ver com o touro branco e o touro preto.

– Você acredita mesmo nisso? Você esteve ao lado dela por tempo o bastante para saber que a magia antiga é tão traiçoeira quanto poderosa. Seja sábio! Pense bem! Tome cuidado com os poderes que estão sendo despertados antes que seja tarde demais. Este é o aviso da Deusa!

Kalona franziu os olhos e se virou para outro lado quando a bola de luz do sol engolfou Erebus e desapareceu, deixando uma espécie de purpurina dourada irritante que o imortal teve que limpar das suas próprias asas.

– Nyx! – Kalona falou para o céu. – Ele me chama de arrogante e então desaparece em uma explosão solar de brilho dourado. Eu não entendo como você continua a suportar a presença vaidosa dele!

Uma risada familiar, que sempre fez Kalona se lembrar de uma lua cheia avermelhada, ecoou ao redor de Kalona. Ele fechou os olhos por causa da dor da ausência dela, enquanto a esperança acelerava as batidas do seu coração.

– Você me observa. Eu sei que você me observa – Kalona sussurrou.

A risada esvaneceu. Kalona abriu os olhos. Sentindo-se como se estivesse carregando um grande peso, ele começou a caminhar. Ele precisava voltar para zelar pelos novatos. Isso era uma coisa que ele podia fazer, e fazer bem.

– Nenhum outro novato vai conseguir fazer nada estúpido para depois ser condenado... Não enquanto eu zelar por eles – ele falou seus pensamentos em voz alta.

O que Kalona não disse e não gostou nem de admitir em silêncio para si mesmo foi que ele não conseguia tirar da cabeça os gritos de misericórdia dos dois novatos. Decapitar o vampiro não tinha sido difícil. Dallas tentara assassinar uma vampira e havia sido condenado justamente. Eram os dois novatos que o assombravam. Eram garotos que apenas fizeram uma escolha insensata e seguiram o líder errado, ele pensou.

– Compaixão.

A palavra sussurrada fez Kalona parar.

– Nyx?

– Compaixão.

A palavra foi repetida. Ela foi falada em um tom muito baixo para que Kalona tivesse certeza, mas o afeto, o amor infinito contido nela... Só podia ser Nyx. E então Kalona percebeu onde ele havia parado. Ele estava diante da porta de madeira do Templo de Nyx.

A porta de madeira que havia se transformado em pedra sob o seu toque quando a sua Deusa negou que ele entrasse.

Devagar, como se estivesse atravessando os séculos de espera por ela, Kalona levantou a mão. Ele colocou a palma da mão contra a porta e esperou que ela se transformasse em uma pedra inflexível.

A porta continuou sendo de madeira.

A mão de Kalona tremia quando tocou a maçaneta. Ele a girou e empurrou, e a porta de madeira se abriu, fazendo um som de suspiro de mulher.

Kalona entrou no saguão do Templo de Nyx. Ele ouviu água corrente, mas mal olhou para a fonte de ametistas reluzentes que ficava em um nicho na grossa parede de pedra. Ele passou por baixo de um portal em arco e entrou no coração do templo da Deusa.

O aroma de baunilha e lavanda das velas preenchiam o ambiente com uma fragrância doce e inebriante. Elas estavam em candelabros de ferro suspensos do teto. Mais velas aromáticas estavam em outros candelabros independentes em formato de árvores que ficavam perto das paredes. Candeeiros com o formato de uma graciosa mão de mulher estavam acesos nos cantos do aposento. Uma chama ardia em uma reentrância no chão de pedra. Kalona quase não reparou em nada disso. O seu único foco estava na mesa de madeira antiga no centro do templo. Em cima dela, havia uma primorosa estátua de mármore de Nyx. Kalona avançou de modo hesitante e se ajoelhou diante da estátua. Ele levantou os olhos para a estátua. Ela parecia brilhar. Kalona percebeu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Com uma voz abafada pelas lágrimas, ele falou para ela:

– Obrigado. Eu sei que não mereço me ajoelhar aos seus pés. Pode ser que eu não mereça nunca. Não depois do que eu fiz para nós dois. Mas obrigado por permitir a minha entrada no seu templo – então Kalona abaixou a cabeça e ficou chorando, ajoelhado diante da sua Deusa, por um longo tempo.

Neferet

Neferet se encolheu toda, abraçando os filamentos de Trevas que ainda a cobriam, e então reviveu o final de sua jornada.

Cascia Hall era como os humanos chamavam a escola particular que havia sido construída no meio do centro de Tulsa, naquela terra que dizia tanto a Neferet. A escola humana, apenas para meninos, é claro, havia sido recentemente fundada pelo ramo Agostiniano do Povo da Fé. No ano de 1927, ela não estava à venda. Mas esse fato não preocupou Neferet. O Conselho Supremo não estava pronto para comprar outra escola nos Estados Unidos – pelo menos não na cidade de Tulsa, Oklahoma, que existia em 1927.

Neferet sabia que o tempo estava a seu favor. Nos setenta e cinco anos que levaram para que ela manipulasse, intimidasse, conduzisse e influenciasse o Conselho Supremo a fazer uma oferta para os monges Agostinianos que eles não pudessem recusar, além de indicá-la como a Grande Sacerdotisa da recém-adquirida Morada da Noite de Tulsa, Neferet descobriu a sua verdadeira natureza.

Ela era a Tsi Sgili. Não, ela era mais do que uma simples história de fantasmas dos nativos americanos. Ela era uma poderosa Grande Sacerdotisa cujos dons eram muito maiores do que pareciam. Neferet era a Rainha Tsi Sgili.

Não era de se estranhar que ela tivesse sido tão atraída para Oklahoma. Foi através do povo Cherokee que se fixara lá que Neferet descobriu um aspecto escondido do seu dom intuitivo. Ela não só conseguia ler as mentes das pessoas, como também absorver a sua energia. Mas apenas no momento das suas mortes.

Ela aprendera isso com a velha mulher. Neferet tinha feito mais do que roubar os seus pensamentos enquanto ela morria. Ela havia absorvido o poder da anciã.

A morte se tornou uma droga viciante, e Neferet nunca conseguia ficar satisfeita.

Ela seguira os ecos na mente da idosa e começou a fazer perguntas sobre a Tsi Sgili.

Foi assim que ela aprendeu a própria história. Uma Tsi Sgili vivia afastada da sua tribo. Elas eram poderosas e tinham prazer com a morte. Elas se alimentavam da morte. Elas podiam matar com as suas mentes. Isso era o ane li sgi que a velha mulher havia pensado logo antes de morrer: uma morte causada pela mente de um ser poderoso.

O marido da velha Cherokee tinha inadvertidamente ensinado Neferet a usar melhor o seu dom. Ele foi menos corajoso do que a sua mulher. Pensando em se salvar, ele acabou se abrindo para Neferet. Através das lembranças que ele compartilhou com ela por vontade própria, Neferet aprendeu muito mais sobre a Tsi Sgili. Ela se alimentou das histórias tribais que ele tinha em sua memória e descobriu que era possível entrar em uma mente e fazer as batidas do coração da pessoa pararem enquanto ela se alimentava dos pensamentos, da energia e do poder da vítima, até que ela estivesse completamente seca. Drenar a energia do corpo era muito mais satisfatório do que simplesmente drenar o sangue. E muito mais efetivo.

Como Neferet tinha ganhado mais poder, também começou a sonhar mais com o imortal alado, Kalona. Ele fazia amor com Neferet enquanto ela dormia. Não da forma como os seus amantes inadequados humanos ou vampiros haviam tentado. Kalona possuía o seu corpo e usava a dor como prazer, e o prazer como dor.

Por todo esse tempo os seus sussurros pintaram imagens de um futuro onde eles reinariam como deuses sobre a Terra e anunciariam uma nova era de iluminismo para os vampiros. Onde ela era a sua Deusa e ele era o seu Consorte ardoroso, poderoso e sedutor.

– Mas primeiro você precisa me libertar – ele havia dito enquanto o seu delicioso fogo frio queimava o corpo dela. – Siga a canção até Tulsa, e então você vai completar a profecia e encontrar um meio de me libertar!

Neferet o escutou. Ah, mas ela encontrou muito mais do que um meio de libertá-lo. Ela descobriu como libertar a si mesma!

Ela não tinha compreendido totalmente até tomar posse da sua Morada da Noite em Tulsa. Havia um poder naquela terra que ressoava dentro dela. Estava lá em 1927, e continuou lá depois da virada do século vinte e um.

A terra vermelha a tinha atraído com o seu poder ancestral, mas foi a morte da sua primeira novata que de fato selou o seu destino.

É claro que Neferet já havia testemunhado a morte de muitos novatos antes de se tornar a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Frequentemente ela era chamada para suavizar a passagem de um novato morrendo com o dom do seu toque. Neferet era respeitada pela sua habilidade de acalmar um novato que estava rejeitando a Transformação. Nenhum vampiro nunca imaginou que ela tirava muito mais do que dava. Mas os novatos sabiam disso. Nos seus últimos momentos, enquanto Neferet os segurava em seus braços, eles percebiam que ela se alimentava da sua energia. É claro que nessa hora eles estavam longe de serem capazes de dividir essa informação com qualquer um.

Então, quando a jovem quarta-formanda que havia adotado o nome de Crystal começou a tossir o seu sangue vital, no meio da primeira aula de Equitação de Lenobia na nova Morada da Noite de Tulsa, Neferet foi chamada imediatamente – não apenas porque ela era a Grande Sacerdotisa, mas porque ela era amplamente conhecida por ser capaz de suavizar a dor de quem estava morrendo.

– Afastem-se! Abram espaço! Lenobia, leve os novatos para o ginásio e peça para Dragon Lankford trazer guerreiros e uma maca para a garota – Neferet ordenou quando entrou apressada no estábulo. Então ela voltou sua atenção para Crystal. A novata havia desabado no chão de areia e terra da arena e estava tendo convulsões, sangrando pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.

Neferet não prestou atenção no sangue nem na lama. Ela colocou a novata em seus braços, confortando-a com seu toque mágico, enquanto começou a entrar na mente de Crystal, absorvendo a sua energia vital minguante. Neferet estava preparada para a onda de poder que vinha com a absorção da força vital. Mas ela não estava preparada para o dom puro e delicioso que veio junto com a morte da sua primeira novata.

Na sua toca, o corpo de Neferet estremeceu de prazer ao reviver aquele momento poderoso.

Crystal levantou os seus olhos ensanguentados para ela.

– Não! – ela tossiu, engasgou e conseguiu gritar: – Eu não estou pronta para morrer!

– É claro que está, minha querida. Chegou a sua hora. Eu estou aqui.

– Você não vai me deixar? – a garota suplicou, chorando.

– Você não vai me deixar – Neferet sussurrou quando entrou na mente de Crystal.

A força vital de Crystal inundou Neferet. Tão pura, tão forte, tão doce que era como se a novata não estivesse morrendo, mas sim se transformando em um ser de luz e poder que agora viveria dentro de Neferet.

Neferet se curvou reverentemente sobre o corpo da garota moribunda, aceitando esse novo dom que recebeu junto com a Morada da Noite de Tulsa.

Os guerreiros pensaram que Neferet ficou arrasada com a morte da primeira novata na sua própria Morada da Noite, e que por isso ela havia se curvado sobre o corpo de Crystal, chorando histericamente.

Eles não sabiam que as lágrimas de Neferet eram de alegria, e que ela estava chorando porque finalmente havia reconhecido o seu destino. Rainha Tsi Sgili era um título modesto. Na verdade, ela deveria ser chamada de Deusa Tsi Sgili, pois havia se tornado imortal e um dia iria ocupar o seu lugar entre os deuses e ser venerada como tal!

Mas o seu dom não acabava aí. Mesmo antes de Neferet cumprir a profecia Cherokee e libertar Kalona, os novatos da sua Morada da Noite começaram uma metamorfose junto com ela.

O corpo de Neferet se contorceu. A sua respiração se acelerou enquanto ela prosseguia através dos reinos do tempo e das camadas do seu inconsciente.

Os novatos que morriam na sua Morada da Noite renasciam diferentes, ligados a ela por Trevas e sangue. Neferet acreditava que havia gerado um novo tipo de exército, além de uma nova espécie de vampiros. Essas novas criaturas iriam protegê-la e servi-la quando ela e o seu Consorte governassem a nova era dos vampiros.

Então Zoey Redbird havia sido Marcada, e o que se seguiu foi um passo em falso atrás do outro, uma irritação depois da outra, uma derrota após a outra. Neferet odiava aquela novata e os seus amigos rebeldes com uma paixão que obscurecia todas as suas outras paixões.

Zoey Redbird era a razão pela qual Neferet estava escondida em uma toca, vestida apenas de Trevas e sangue.

Uma deusa não deveria sofrer esse tipo de aborrecimento! Uma deusa não deveria ser impedida de cumprir o seu destino divino!

Como em resposta ao seu turbilhão de emoções, o céu fora da toca rugiu com trovões, e um raio atingiu a terra com uma força que reverberou pela pele de Neferet.

Neferet, a Rainha Tsi Sgili, abriu os seus olhos.

– Eu fui tão idiota! Eu sou uma imortal. Ninguém pode ofuscar a minha majestade a não ser que eu permita. E não vou mais permitir! Mundo, prepare-se para me venerar!

Raios e trovões aplaudiram Neferet e a chuva acariciou o seu corpo, enquanto ela se preparava para sair de seu esconderijo em direção ao futuro, renascida, pronta para abraçar o seu destino.


21
Zoey

No começo, eu não sabia para onde estava indo. Eu só precisava sair dali. Eu me enfiei através da passagem escondida no muro e dei a volta pelo lado sul da escola até chegar rapidamente na Utica Street. Olhei para a minha direita, pensando nas minhas opções. A Utica Square ficava a apenas uma quadra dali. Era domingo de manhã, mas o Starbucks provavelmente estava aberto. Eu podia pedir um daqueles cappuccinos ou frappuccinos com milhões de calorias, sentar lá fora e tentar descobrir o que havia acontecido com a minha vida.

Não. Eu não queria ver ninguém. Eu não queria falar com ninguém. Eu não queria ter que lidar com os olhares que as minhas tatuagens iriam provocar nas pessoas.

Eu não queria lidar com nada nem ninguém.

Um trovão ressoou ao longe, e eu levantei os olhos para o céu, que estava escurecendo.

– Vá em frente. Pode chover em cima de mim. O meu dia não pode piorar muito – eu falei comigo mesma quando atravessei a rua.

Sim, eu estava irritada.

Eu não conseguia acreditar no que Aphrodite e Shaylin tinham feito. Elas deveriam ser minhas amigas! Bem, pelo menos Aphrodite deveria ser minha amiga. Eu pensava que Shaylin e eu estávamos ficando amigas. Quero dizer, a gente havia tido aquela conversa na cozinha dos túneis. Ela se abriu para mim em relação ao uso da Visão Verdadeira. A gente inclusive falou sobre como o seu dom podia ser invasivo. Caramba, a gente tinha feito um trato! E esse trato não tinha nenhuma parte em que ela me espionava e depois fofocava para Aphrodite como uma garotinha do ensino fundamental.

O meu rosto ficou quente só de pensar nela observando a cena entre mim e Aurox no refeitório. Que inferno, o meu corpo inteiro ficou quente! Não era de se espantar que eu a tivesse derrubado no chão. Aphrodite ficou toda chocada com o que eu havia feito, mas foi Aphrodite quem armou toda aquela coisa de espionagem.

Será que Aphrodite era mesmo minha amiga? Ela definitivamente era uma bruxa do inferno quando eu a conheci. Será que ela tinha mudado, ou será que eu esqueci quem ela realmente era e fiquei cega, sem enxergar o que eu não queria ver? Será que eu estava apenas acreditando no que eu queria acreditar em relação a ela?

Que inferno! Será que Aphrodite ainda continuava apenas atrás de poder e popularidade? Será que essa história de espionagem era só uma parte do plano dela para me enfraquecer e depois tomar o meu lugar?

Houve um estrondo no céu, como que ecoando as minhas emoções.

O meu peito queimava quando atravessei outra rua e fiz uma pausa, percebendo que eu havia chegado perto de casas caprichosamente conservadas. Afe, eu havia andado até o Woodward Park. Eu quase me virei e fui embora. Era domingo, quando as pessoas normalmente se aglomeravam lá para tirar fotos com flores, árvores e tal, mas, quando eu olhei para o parque, parecia vazio. Obviamente, a tempestade que se aproximava havia mudado os planos de quem pretendia tirar fotos. Percebi que os narcisos tinham começado a florescer. Eu sempre amava quando os narcisos colocavam as suas cabeças amarelas para fora do gramado. Vovó e eu costumávamos falar sobre como era mágico quando os bulbos da primavera brotavam tão rápido e inesperadamente.

Definitivamente, hoje eu precisava de um pouco de magia da primavera. E seria no Woodward Park!

Sentindo-me aliviada por encontrar um destino, entrei no parque, andando entre os tufos de narcisos por um caminho sinuoso em direção à área ladeada pela Twenty-first Street. Era no alto daquele cume que os arbustos de azaleia eram mais espessos. Eu gostava daquela parte íngreme com caminhos de pedra serpenteando entre os arbustos. Eu podia encontrar um banco entre as azaleias depois de descer o cume e tentar entender todos os meus problemas. E daí se chovesse e eu ficasse encharcada? Pelo menos isso iria manter as pessoas afastadas.

Andei pelo caminho pavimentado, fazendo curvas através de arbustos de azaleia da minha altura. Percebi que os botões de flores já haviam começado a se formar, mas ainda não dava para saber de que cor elas seriam.

Aquela tempestade estúpida provavelmente iria matá-las e elas nunca iriam florescer.

Chutei uma pedra.

Aphrodite tinha mandado me espionar! Eu simplesmente não conseguia esquecer essa traição. Imaginei o que Stevie Rae diria quando eu contasse para ela. Então eu me dei conta de que, se eu contasse isso a ela, também iria ter que contar sobre mim e Aurox no refeitório, e eu não queria de jeito nenhum contar isso para ela nem para ninguém e...

Eu parei.

– Ah, que inferno! Não vou ter escolha sobre contar isso para as pessoas. É claro que Shaylin e Aphrodite não vão ficar de boca fechada.

Eu tinha chegado ao topo das escadas de pedra na parte alta do parque, que davam lá embaixo na área rochosa com espécies de grutas e no lago raso que envolvia o lado oeste do parque.

Eu pensei em me atirar lá de cima, mas constatei que não era muito alto, então provavelmente a queda não iria me matar. E eu realmente não queria me matar. Agora, se Aphrodite estivesse lá, eu podia pensar em atirá-la do cume!

Esse pensamento me satisfez de um modo perturbador.

Desci as escadas até nível da rua. Havia um banco de pedra, não muito longe de onde acabavam os degraus e começava o gramado. Um trovão ressoou novamente. Eu sentei e franzi os olhos para o céu. Sim, definitivamente ia chover em mim. Logo. Suspirei e olhei em volta. De repente essa pequena parte do Woodward Park me lembrou da Ilha de Skye, talvez por causa da chuva iminente. Um inesperado sentimento de saudade de casa me invadiu. Eu deveria voltar para lá. Eu era feliz lá. Ninguém me espionava. Ninguém tentava me matar. E eu poderia perguntar para Sgiach que diabos está rolando com a minha pedra da vidência. Stark podia ir comigo. Eu não teria que ver Aurox todo dia e desejar...

Não! Eu interrompi essa linha de pensamento. Eu não desejava mais nada. Eu já tinha feito a minha escolha. Era só essa droga com Aphrodite e Shaylin que estava bagunçando a minha cabeça e o meu coração.

E eu não poderia fugir para a Escócia. Pelo menos não agora. Eu tinha que ficar aqui, encarar os meus amigos – e ex-amigos – e resolver a confusão que a Morada da Noite tinha virado.

Deusa, isso era deprimente. E irritante. E exaustivo.

Um trovão rugiu, desta vez mais perto. Fugir ou me esconder não estava resolvendo nada. Eu devia voltar para a escola. Talvez eu tivesse sorte e Stark ainda estivesse dormindo, apesar da minha explosão emocional, e eu poderia entrar de fininho na cama e ainda dormir um pouco antes de ter que encarar a tempestade de cocô que estaria me esperando depois do pôr do sol.

Eu tinha me levantado e me virado para subir de volta pela escada de pedra quando vi os dois homens. Eles haviam acabado de sair de trás dos arbustos de azaleia e estavam parados no topo das escadas. Eles pareciam esfarrapados, sujos. As roupas deles não serviam direito. Um deles estava segurando um saco de lixo pendurado no ombro, fazendo-o parecer um Papai Noel anoréxico. Foi ele que me viu primeiro. Ele deu uma cotovelada no amigo e me indicou com o queixo, abrindo um sorriso cheio de dentes podres. O amigo dele assentiu e eles começaram a descer as escadas.

Ah, que inferno.

Eu deveria ter corrido na direção da Twenty-first Street. Essa era a coisa mais inteligente e mais segura a fazer. Eu quase fiz isso, mas então me lembrei de quem eu era e fiquei irritada. Eu não era uma garotinha fraca que as pessoas podiam assustar e humilhar. Eu tinha afinidade com todos os cinco elementos. Eu era uma Grande Sacerdotisa em treinamento. Caramba, eu era quase uma vampira! Será que eu não era capaz de estar no parque em um domingo de manhã sem ser incomodada por ninguém?

Em vez de sair correndo, eu sentei no banco de novo. Talvez ele fossem apenas passar por mim, dizer “bom dia” e só. Talvez.

– Ei, garota, você, ahn, tem algum trocado aí? – o primeiro cara perguntou quando eles terminaram de descer as escadas.

– Sim, a gente podia usar o dinheiro para comer – o segundo cara disse.

Eu estava virada para o outro lado, esperando que eles fossem embora. Então eu empinei o queixo e olhei direto para eles. Eles arregalaram os olhos quando viram minhas tatuagens.

– Sério? Em que planeta vocês acham que é normal dois homens pedirem dinheiro para uma garota que está sozinha em um parque deserto? – enquanto eu falava, senti minha raiva aumentar de novo.

– Ei, qual é a sua? – o cara com o saco de lixo respondeu. – Você é uma vampira. Não é a gente que pode assustar você.

Eu sabia que eles pensavam que eu era uma vampira completa. Eu sabia que isso os deixava com medo de mim.

Fiquei feliz por isso.

– Então, vocês costumam assustar garotas humanas para que elas deem dinheiro a vocês?

Que idiotas!

O segundo cara deu de ombros.

– Se uma garota não quer ser assustada por alguém, não deve ficar sozinha aqui.

– Ah, então é culpa da garota ? – eu fiz a pergunta hipoteticamente, mas o cara do saco de lixo não entendeu.

– Sim, a culpa é da garota!

– Mas não vamos assustar ninguém se a pessoa nos der dinheiro.

– Mas nós não aceitamos cartão de crédito – o cara malvado do saco de lixo riu e deu um tapinha no braço do seu amigo.

– Vocês são uns otários. Quer tal arrumar um emprego em vez de mexer com garotinhas?

– Mexer com garotinhas paga melhor – o cara do saco de lixo respondeu.

– Eu estava sentada aqui, pensando nos meus próprios assuntos. Vocês têm que se lembrar disso. Foram vocês que provocaram isso – eu me levantei. O meu corpo inteiro estava quente. Eu estava realmente irritada. – Sabem de uma coisa? Vocês deveriam ter escolhido outra garotinha para perturbar hoje.

– Ei, a gente não estava perturbando você. A gente só estava passando – o outro cara disse. Ele pegou o braço do seu amigo e começou a puxá-lo para sair dali.

– Relaxe, gatinha. Não aconteceu nada de mais – o cara mau do saco de lixo disse, dando um sorriso sarcástico com seus dentes escuros e quebrados.

Então eles pensavam que iriam sair de fininho e encontrar uma garota normal de verdade para assustar?

Eu sentia como se o meu coração fosse explodir para fora do meu peito.

– Não, hoje vocês não vão! – eu atirei minha raiva neles. Ela era uma bola incandescente de luz azul. Ela se chocou contra os dois homens, levantando-os do chão e arremessando-os contra a parede de pedra do cume.

Eu estava ofegante e me sentindo bem com o que tinha acabado de fazer. Eles iam pensar duas vezes antes de mexer com outra garota! Idiotas!

Um trovão retumbou acima de mim e um raio atingiu o centro do parque, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Foi então que eu percebi que estava segurando a pedra da vidência.

Eu pisquei surpresa e balancei a cabeça. Espere aí, o que tinha acabado de acontecer?

Eu olhei para os dois homens. Eles ainda estavam lá, deitados na sombra do cume rochoso. Eles não estavam gritando comigo nem se recompondo e levantando, nem mesmo saindo correndo porque eu os tinha deixado apavorados.

Eles não estavam se mexendo.

Caramba! Eu tinha usado magia antiga para atacar aqueles homens. Tinha sido a mesma coisa quando derrubei Shaylin. Eu havia feito isso automaticamente, depois que a minha raiva queimando se tornou insuportável. Mas aquela queimação não era a minha raiva, era a pedra da vidência esquentando, penetrando o meu corpo, alimentando-se das minhas emoções e então atacando.

Soltei a pedra e olhei para a palma da minha mão. Uma queimadura com a forma de um círculo perfeito tinha ficado ali.

Confusa, levantei os olhos e vi acima de mim uma fumaça que vinha do meio do parque. O ar estava com cheiro de eletricidade e fogo, e eu me dei conta de que um raio devia ter atingido uma árvore, ou até mesmo um dos edifícios do parque. O Woodward Park estava em chamas.

Os bombeiros chegariam logo. Assim como a polícia.

As minhas pernas estavam bambas e a minha cabeça doía quando eu me aproximei dos homens, olhando para as duas formas caídas na base do cume. Um deles gemeu. O braço do outro se contraiu.

O céu desabou em uma chuva forte, de modo que eu não podia dizer se a umidade era água, sangue ou minhas lágrimas.

Não pensei em nada. Apenas saí correndo.

Não precisei invocar névoa e sombras para me encobrir. A tempestade fez isso por mim. Ninguém reparou em uma garota sozinha, correndo no meio da chuva, fugindo do parque em chamas, principalmente porque vários carros de emergência e a polícia estavam indo para a direção oposta.

Corri em volta do muro da escola e entrei pela passagem escondida. E continuei correndo até chegar dentro do estábulo, ofegante e trêmula. Fui até a selaria e peguei uma toalha limpa. Eu me enrolei na toalha e andei pela longa fileira de baias até encontrar Persephone. Abri a porta e entrei na baia quente e escura. Persephone estava dormindo do jeito que os cavalos dormem: em pé, com uma das patas traseira em repouso, a cabeça baixa e os olhos semicerrados. Ela mal se moveu quando eu coloquei meus braços ao redor do seu pescoço e chorei na sua crina macia e espessa.

O que estava acontecendo comigo?

Aqueles caras no parque tinham sido uns idiotas, mas eles não conseguiriam me machucar. Sim, eles atacavam garotas, assustando-as para que elas lhes dessem dinheiro, mas eles não poderiam me machucar. Eu podia ter ido embora e feito uma ligação anônima para a polícia, dando uma descrição deles e dizendo aos policiais que eles estavam vagando pelo parque ameaçando as garotas. Os policiais iriam afugentá-los.

Em vez disso, eu explodi em cima deles.

Eu nem pensei. Eu não fiz aquilo de propósito. Tinha simplesmente acontecido. A minha raiva havia literalmente explodido neles através da pedra da vidência.

O que Aphrodite estava tentando me dizer mesmo? Alguma coisa sobre a sua visão, magia antiga e eu perdendo o controle sobre a minha raiva. Eu não a havia escutado. Eu a interrompi e acreditei que ela tinha me traído. E deixei que a minha raiva me controlasse.

– Ah, Deusa, isso foi errado... tão errado da minha parte – eu chorei.

Então, entre os meus soluços e o barulho da tempestade que turvava o céu, eu escutei uma sirene. Não era um caminhão dos bombeiros. Não era uma ambulância. Era um carro de polícia. E não estava passando rápido pela escola em direção ao Woodward Park. Aquela sirene estava ficando cada vez mais próxima. O carro devia ter entrado pelo nosso portão e ter estacionado na escola.

Como se estivesse sonhando, eu me desvencilhei do pescoço reconfortante de Persephone. Larguei a toalha. Saí do estábulo e caminhei até a calçada que levava ao saguão de entrada da escola.

A chuva estava me molhando, mas eu não prestei a menor atenção nisso.

– Z.! Aí está você! Que merda, você está ficando ensopada – Stark apareceu correndo atrás de mim, segurando uma grande capa de chuva em cima da sua cabeça.

– Você não deveria estar aqui fora – eu disse sem emoção. – O sol já se levantou. Você vai se queimar.

Ele me deu um olhar estranho.

– Eu estou cansado e não é muito confortável estar aqui, mas as nuvens estão cobrindo o sol o suficiente para que eu não me queime. Bem, pelo menos por um tempo. Z., entre embaixo da minha capa e vamos voltar para o nosso quarto. Sei que tem algo errado com você, mas não sei o que é.

Eu balancei a cabeça.

– Não. Eu tenho que ir até eles – continuei andando na direção da frente da escola. Havia dois carros de polícia, com as luzes ainda piscando, estacionados lá.

– Eles quem? – Stark perguntou, tentando segurar a capa sobre a cabeça dele e a minha.

– Stark, volte para a cama. Você não pode me ajudar nisso.

– Zoey, do que você está falando? O que está rolando?

Coloquei a minha mão na porta da frente.

– Volte – eu repeti. – Você não pode mais me salvar.

Ele pareceu assustado. Muito assustado.

Eu não me permiti sentir nada. Dei as costas a ele e abri a porta.

Thanatos estava lá. Darius também. Assim como Aphrodite. Por um instante, fiquei surpresa ao vê-los, então eu me dei conta de que Aphrodite devia ter ido falar com Thanatos depois que eu saí andando. Essa era a coisa certa para ela fazer. Eu teria feito isso se estivesse no lugar dela. Se eu estivesse pensando como eu mesma, como a Zoey normal.

O detetive Marx estava lá com dois policiais de uniforme.

– Z., você já acabou de fazer a ronda pelo perímetro da escola com Aurox? – Aphrodite falou rapidamente, andando na minha direção. – Eu estava dizendo para Thanatos que estava preocupada com você lá fora nessa tempestade. Há até alertas de tornado na região de Tulsa.

– Não faça isso – eu disse. – Não quero que você minta por mim nunca mais – olhei para Darius. – Não quero que nenhum de vocês minta por mim nunca mais – então encontrei o olhar do detetive Marx. – Por que vocês estão aqui?

– Dois homens acabaram de ser assassinados no Woodward Park. Alguém com poderes sobrenaturais os matou. Com um poder que nenhum humano tem. Foi por isso que eu e os policiais viemos direto para cá – o rosto dele estava com uma aparência severa. A voz dele não tinha nenhuma emoção.

– E eu estava lembrando ao detetive que a nossa escola está em confinamento. Nenhum novato ou vampiro saiu do campus desde a noite em que o prefeito foi assassinado – Thanatos afirmou.

– Eu saí do campus . Eu fui até o Woodward Park. Eu atirei aqueles dois caras contra o paredão de pedra na base do cume. Eu os matei – a minha voz soou tão morta quanto aqueles homens, tão morta quanto eu me sentia.

– Zoey! Por que diabos você diria uma coisa dessas? – Stark segurou nos meus ombros e me sacudiu. – Saia dessa!

Eu o encarei e endureci o meu coração, congelando os meus sentimentos.

– Você precisa ficar aqui. Não quero vê-lo de novo. Não quero ver mais ninguém. Eu fiz isso. Eu mereço isso – eu me soltei dele e me afastei. Enquanto eu ia em direção ao detetive Marx, coloquei a mão na minha pedra da vidência e a puxei, arrebentando a corrente de prata em que ela estava pendurada. Eu a entreguei para Aphrodite. – Não deixe que ninguém, exceto você ou Sgiach, toque essa coisa. Você está certa. Isso despertou, e é do mal – então eu encarei o detetive Marx. – Estou pronta para ir com você.

Ele desviou os olhos de mim e se voltou para Thanatos.

– Eu vou aguardar você entrar em contato com o Conselho Supremo para revogar a sua responsabilidade legal por esta novata, para que eu possa levá-la sob custódia.

– Não – eu falei. – Antes disso acontecer, eu rompi com o Conselho Supremo. Eu não reconheço a autoridade do Conselho Supremo sobre mim. Eu não reconheço a autoridade de Thanatos sobre mim. Trate-me da mesma forma com que trataria qualquer um que confessou ser um assassino.

Ele suspirou profundamente e então pegou as algemas no seu bolso de trás.

– Zoey Redbird, você está presa pelo assassinato de Richard Williams e David Brown – ele fechou as algemas frias nos meus pulsos. – Você tem o direito de permanecer em silêncio. Se renunciar a esse direito, tudo o que disser pode e vai ser usado contra você no tribunal. Você tem o direito de ter um advogado presente ao seu interrogatório. Se não tiver condições de contratar um advogado, um defensor público vai ser designado para atendê-la. Você entendeu os seus direitos?

– Sim. Eu não preciso de um advogado. Eu confesso que matei aqueles dois homens. Eu mereço ir para a cadeia – eu disse, enquanto as palavras “eu mereço... eu mereço...” ecoavam pela minha mente.


22
Neferet

Quando ela finalmente estava pronta para emergir da toca, a chuva banhou Neferet, limpando-a do sangue e da terra que cobriam o seu corpo. Aquela área estava em um completo caos. Apesar da chuva, o fogo estava consumindo o parque acima dela.

Neferet pensou que essa era uma saudação encantadora.

Ela se alimentou da morte e da destruição ao seu redor e usou essa energia para se encobrir.

O seu cabelo ruivo e liso contra o seu corpo parecia um manto vivo. Os filamentos de Trevas fiéis a Neferet, saciados e pulsando de poder, levantaram-na. Como se tivesse ordenado a uma nuvem de tempestade que a obedecesse, Neferet saiu flutuando do parque dentro de um véu de raios, trovões, névoa e loucura.

Ela atirou a cabeça para trás, adorando a carícia que a chuva fazia ao escorrer pela sua pele nua, limpando-a. Ela ergueu os braços, e gavinhas de Trevas se enrolaram neles. Ela riu ao sentir o seu toque frio e perverso.

– Vamos para casa. Nós temos tanto a fazer! – a tempestade que era Neferet passou por sobre a cidade, na direção do centro de Tulsa e da sua cobertura no Mayo. – Ah, mas não tão rápido – ela ronronou para as Trevas que a embalavam. – Nós não vamos jantar? Descobri que estou morrendo de fome!

Os filamentos de Trevas tremeram de excitação, impacientemente aguardando as suas ordens.

Neferet vasculhou a sua própria mente. Buscando... buscando... pervertendo o dom que ela havia recebido tantas décadas atrás.

Ela seguiu a Fifteenth Street no rumo oeste, ainda buscando. Foi na Boston Avenue que ela sentiu uma atração para o norte.

– Para o norte! Em direção àquelas almas deliciosas que fingem ser tão, tão boas! – Neferet estremeceu de prazer. – Todos reunidos tão convenientemente para mim. É como se eles já soubessem me venerar – ela fez um gesto impetuoso indicando um ponto à sua direita. – Levem-me para lá!

Quando chegou à catedral, Neferet ordenou que os filamentos fizessem uma pausa, permitindo que ela absorvesse a perfeição da sua escolha. A construção era realmente magnífica. Ela resplandecia na chuva. As pontas da torre principal pareciam dentes. As pontas das torres mais baixas pareciam mãos levantadas, com garras afiadas e uma superfície de metal lisa e molhada, pronta para ser destruída.

– Soltem-me! Deixem que eu seja vista!

A nuvem de mágica se dissipou. Neferet pousou silenciosamente na calçada.

– Venham comigo, meus queridos! – ela falou para os seus filamentos. – O nosso jejum acabou. Vamos nos fartar como eu mereço!

Neferet subiu os vários degraus de calcário enquanto as Trevas, como a cauda do manto de coroação de uma rainha, seguiam atrás dela. Neferet levantou os olhos. Estátuas projetando-se da parede externa eram deuses dourados montados em cavalos de guerra molhados pela chuva. Eles pareciam lhe dar as boas-vindas.

Abaixo deles, esculpidos em cima das três portas de entrada, havia homens se curvando.

– Para mim – ela falou para as estátuas silenciosas. – Vocês se curvam para mim.

Olhando para cima, Neferet leu as palavras escritas abaixo de cada um dos três grupos de estátuas de devotos: o fruto do espírito é o amor, o júbilo; paz, resignação, gentileza, bondade; sinceridade, humildade, autocontrole.

Neferet deu uma gargalhada.

– Isso vai ser mais fácil do que eu imaginei.

Nua, Neferet entrou na igreja, escolhendo a porta embaixo da palavra resignação 16 . Do lado de dentro, as paredes estavam pintadas em um tom rosa claro, que para Neferet lembrava sangue diluído em uma chuva de lágrimas. Ela pensou que essa era uma cor perfeita. Virando à esquerda, ela seguiu por um corredor curvo até a entrada principal do santuário. As portas estavam fechadas. Neferet sorriu carinhosamente para os seus filamentos de Trevas.

– Sim, por favor, abram as portas.

Os filamentos a obedeceram.

Neferet adentrou no amplo salão oval. Um hino estava em seus acordes finais e, enquanto eles prolongavam o améééém final, Neferet aproveitou a oportunidade para apreciar o cenário antes de ser notada. Era realmente um santuário adorável. Com assentos almofadados violeta claro e vitrais art déco estilizados em cores avermelhadas e em tons de lilás, ela pensou que o local parecia mais um daqueles teatros decorados que proliferaram tanto nos Estados Unidos na virada do último século do que uma igreja. Suas fileiras circulares de assentos afunilando-se até um palco central haviam sido criadas obviamente mais para o drama do que para a adoração.

Neferet sorriu, gostando da ironia.

– Psiu! – um sussurro veio das sombras nos fundos do aposento, enquanto o pastor começava a liderar os fiéis em uma oração repetitiva e entediante. – Com licença. Você precisa de ajuda? – uma mulher gorda e de meia-idade se aproximou de Neferet. Ela estava tão hipnotizada pelo corpo nu de Neferet que nem percebeu as suas tatuagens.

Neferet se virou para ela.

– Sim, eu preciso – Neferet abriu os braços, como se quisesse que a mulher a abraçasse.

Confusa, a mulher deu alguns passos, aproximando-se dela. Neferet atacou com uma velocidade ofuscante, rasgando o pescoço dela com suas unhas feito garras e segurando a mulher quando ela caiu para a frente. Neferet então a abraçou, mas o beijo que ela deu na mulher foi pressionar os lábios na ferida aberta e ensanguentada no seu pescoço. Neferet drenou o seu corpo enquanto se alimentava da sua energia.

Um dos fiéis que estava na parte de trás da igreja gritou.

Neferet levantou os olhos quando as pessoas se viraram na sua direção. Ela soltou a mulher, gostando do barulho surdo que o corpo dela fez ao cair no chão.

Empinando o queixo, Neferet jogou o cabelo para trás e foi para a frente do santuário a passos largos.

– Oh, meus Deus, é uma vampira!

– Ela está nua!

– Ela acabou de matar a Sra. Peterson!

As pessoas começaram a gritar. Algumas até começaram a sair de seus bancos.

Neferet levantou os braços.

– Fechem as portas! E revelem-se para eles!

As sombras ao redor de Neferet ondularam quando as gavinhas grossas feito cobras assumiram formas que os humanos podiam ver. A congregação fez uma pausa, olhando em choque os filamentos de Trevas deslizarem para cada uma das portas e fechando-as como uma teia pelo lado de dentro.

– O que você quer? – um homem de cabelos brancos vestindo um hábito negro enfeitado com veludo escarlate desceu do púlpito e caminhou decidido em direção a ela.

– Eu sou Neferet – ela disse cordialmente. – E quem é você?

– Eu sou o Dr. Andrew Mullins, pastor da Boston Avenue Church. O que significa esta profanação?

– Profanação? – Neferet sorriu. – Ah, eu mal comecei – ela apontou os seus dedos ensanguentados para o corpo da mulher. – Isso ali não pode nem ser considerado um aperitivo.

– Pelo poder a mim concedido pelo nosso Senhor e Salvador, eu exijo que você vá embora deste local sagrado e não machuque mais ninguém!

– Pastor Mullins, apesar de não parecer, eu sou muito mais velha do que você, então deixe-me compartilhar com você algo que aprendi em meus muitos anos de vida: o poder real sempre supera o poder concedido a alguém. Então, eu realmente acredito que vou usar o meu poder real e não vou embora.

– Muito bem. Se você não vai embora, nós vamos! – o pastor disse. Como se estivesse arrebanhando galinhas ao seu redor, o homem gesticulou para que as pessoas fossem até ele, enquanto ele retrocedia, afastando-se de Neferet.

– Sinto muito, mas não posso permitir que vocês vão embora. Nenhum de vocês – Neferet apontou para o pastor. – Tragam-no para mim!

Um filamento grosso como um braço se desvencilhou do tornozelo de Neferet e foi rapidamente na direção do o pastor. Quando o alcançou, a gavinha se enrolou na cintura dele feito um chicote, ferindo-o. As Trevas arrastaram o pastor aos berros até Neferet.

– Ah, acabem com esse barulho ridículo! – Neferet fez um gesto e uma gavinha menor envolveu o rosto do pastor, cobrindo a sua boca, amordaçando-o. – Melhor assim, não? – ela olhou com raiva para a congregação em pânico. – Parem de gritar, a menos que vocês queiram ser amordaçados também!

As pessoas ficaram em silêncio, exceto por soluços abafados.

Neferet se aproximou do pastor.

– Eu gostei do seu hábito. Gosto muito da cor vermelha. Tire-o!

O homem obedeceu com mãos trêmulas, deixando o hábito cair aos seus pés.

Inclinando a cabeça, Neferet o examinou. Ele estava usando por baixo uma camisa branca e uma calça informal.

– Você estava tão grandioso com o seu hábito. Agora você parece um rato pelado – Neferet entrou na mente dele. – Aaaah, não é de se estranhar que você não esteja olhando para o meu corpo. A castidade é tão entediante, não é? Deixe-me livrá-lo desse sofrimento – ela fez um corte no seu pescoço. Ele arregalou os olhos quando ela disse para os dois filamentos: – Sim, vocês podem ficar com esse aí.

As Trevas perfuraram a boca e a cintura do pastor, alimentando-se fartamente, enquanto ele se contorcia em agonia.

– Neferet! Por que você está fazendo isso?

A atenção de Neferet se desviou do pastor moribundo e se voltou para um homem parado na frente do santuário. Reconhecendo-o, ela sorriu.

– Vereador Meyers! Que bom revê-lo – ela falou.

– O-olá, Neferet – ele gaguejou, segurando firme na mão de uma mulher bem-vestida ao seu lado. – Eu estava lá na sua coletiva de imprensa. Você... você disse que era uma aliada dos humanos e contra a violência.

– Eu menti – o sorriso de Neferet se ampliou ao ver a expressão horrorizada do vereador. A mulher ao lado dele soluçou, com a mão sobre a boca para tentar conter os seus gritos. – Você é a Sra. Meyers?

Tremendo e chorando, a mulher assentiu.

– Você está vestida com muito bom gosto. É Armani?

Novamente, a mulher em prantos concordou.

– E o seu tamanho deve ser trinta e seis, certo?

– Si-im! Pegue minhas roupas! Mas nos deixe ir embora, por favor – ela implorou.

– Ah, como você pediu educadamente! Tire o seu vestido e traga-o para mim, e eu posso pensar no seu pedido.

– Neferet, por favor, não machuque... – o marido dela começou.

Neferet entrou na mente dele e ordenou que o seu coração parasse de bater. O vereador Meyers ofegou e desabou no chão.

A sua mulher berrou.

Neferet suspirou.

– Sra. Meyers, eu acho tão desanimador que hoje em dia ninguém mais parece ser capaz de obedecer a ordens simples. Você não acha?

– Você pretende matar todos nós?

Neferet desviou o olhar da histérica Sra. Meyers e se voltou para uma mulher de meia-idade atraente que havia entrado no corredor central. Ela empinou o queixo e encarou Neferet, sem mostrar nenhum sinal aparente de medo.

Neferet ficou intrigada.

– E quem é você?

– Karen Keith, outra representante de Tulsa. Eu também estava lá no dia em que você deu a sua coletiva de imprensa e prometeu se aliar à nossa cidade.

– Aaaaah, outra política. Que delícia!

– Você não respondeu a minha pergunta. Você vai matar todos nós?

– Perdoe-me, Karen. Posso chamá-la de Karen?

– Prefiro que não.

Neferet ergueu a sobrancelha, surpresa.

– Você tem uma energia adorável, Sra. Keith. Você vai ser o meu prato principal.

Gavinhas de Trevas começaram a deslizar na direção dela.

Karen Keith não se retraiu quando elas se enrolaram ao seu redor. Ela encontrou o olhar de Neferet e afirmou:

– Depois disso, todo mundo vai saber o monstro que você é.

– Não, Sra. Keith, todo mundo vai saber a deusa que eu sou.

Karen Keith morreu sem gritar, mas as pessoas em volta dela berraram e começaram a se lançar contra as portas fechadas em pânico.

– Bem, acho que é esperar demais ter uma conversa durante o jantar – Neferet disse. Ela levantou os braços. – Matem todos, mas cuidado com o vestido Armani!

Neferet e os seus servos das Trevas atacaram a congregação de fiéis. Eles se alimentaram sem parar, fartando-se de sangue e energia roubada, até que o santuário virou um cemitério.

Neferet se banhou nas bacias de água benta e usou o hábito com detalhes escarlate do pastor para se secar. Então, vestida de Armani e pulsando com um poder glorioso, ela saiu da Boston Avenue Church.

Tinha parado de chover. O céu estava novamente azul claro. O ar cheirava a primavera. Neferet limpou uma última gota de sangue no canto dos seus lábios carnudos. Sorrindo, radiante, Neferet apontou para o Mayo.

– Levem-me para casa. Estou com tanta saudade da minha cobertura...

Pulsando e completamente saciados, os seus filamentos a levantaram gentilmente. Envolta em Trevas, Neferet flutuou, invisível, através do centro de Tulsa, enquanto a frase “eu mereço... eu mereço...” ecoava na sua mente.

A estátua dourada de calcário no meio da entrada da igreja estremeceu, alterou-se e, em meio a uma rajada de vento fétida, o touro branco se materializou. Quando ele emergiu do revestimento da igreja, os seus cascos faiscaram, fazendo o chão tremer. Ele bufou, olhando para a direção em que Neferet havia desaparecido.

– Agora, minha cara impiedosa, isso me surpreendeu...

 


NOTAS


1 Personagem de O Mágico de Oz. (N.T.)
2 RED Valentino é a marca jovem da grife Valentino. RED é uma sigla para Romantic Eccentric Dress (roupas românticas e excêntricas, em tradução livre). (N.T.)
3 Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)
4 Broken Arrow (flecha quebrada, em inglês) é uma cidade da região metropolitana de Tulsa. (N.T.)
5 Éon é um período de tempo que corresponde a um bilhão de anos. (N.T.)
6 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)
7 Bosque da torre. (N.T.)
8 Merry meet, merry part and merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
9 Aphrodite se refere ao filme Gata em Teto de Zinco Quente (1958), estrelado por Elizabeth Taylor e baseado na peça homônima de Tennessee Williams. (N.T.)
10 Trocadilho com o jogo Angry Birds. (N.T.)
11 Marca do copo vermelho de plástico tradicional nas festas de adolescentes norte-americanos. (N.T.)
12 Ato falho. Por exemplo, quando uma pessoa diz algo que não deveria por causa de um desejo do seu inconsciente. (N.T.)
13 Marca de set-up box , dispositivo que permite assistir na televisão a vídeos da internet por streaming , similar ao Apple TV. (N.T.)
14 No Paganismo, os familiares são animais associados a bruxas ou bruxos. (N.T.)
15 Erva-doce americana, da espécie Hierochloe odorata. (N.T.)
16 Em inglês, long-suffering , cuja tradução literal seria “sofrimento longo”, mas que significa resignação, paciência ou a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar. (N.T.)

16
Stark

– Você tem certeza de que ainda estamos seguindo o rastro dele? – Stark perguntou para o imortal alado, entre uma respiração ofegante e outra, depois de correr atrás de Kalona.

– Você não consegue farejar o sangue dele? – Kalona olhou por sobre o ombro e então, percebendo que Stark obviamente estava com dificuldade para acompanhá-lo, diminuiu o ritmo e apontou para um gramado bem cuidado, por onde eles estavam passando. – Ali, veja onde o sangue do vampiro respingou no chão, ou seja, ele ainda está sangrando. O meu filho fez bem em arranhar a cabeça dele com suas garras. Feridas na cabeça sangram com facilidade e são difíceis de estancar.

– Sim, principalmente se a pessoa está se movendo tão rápido quanto ele – Stark enxugou o suor na sua testa enquanto corria ao lado de Kalona. – Quem diria que Dallas podia correr assim? Eu achava que com certeza a essa hora a gente já o teria alcançado. Ele não tinha tanta vantagem sobre nós. O garoto sabe se mexer. Sempre pensei nele como um daqueles garotos que vivem grudados em videogames: bonzinhos e fracos, a menos que eles estejam fingindo ser Zorg do Planeta Org, quando eles podem destruir universos inteiros com os seus dedos gordos.

Kalona franziu a sobrancelha.

– Às vezes o mundo moderno ainda me deixa confuso, mas eu posso explicar por que Dallas está se movendo tão rápido. Ele está fugindo para salvar a sua vida.

– Ei, Thanatos disse claramente que você não deveria matá-lo.

– Isso é uma pena. Seria justo que eu terminasse o que meu filho começou – Kalona afirmou.

– Não posso dizer que eu discordo de você – Stark falou.

Kalona levantou a mão, fazendo Stark parar. Eles estavam seguindo o rastro de Dallas, que ia sempre na direção oeste, e tinha dado diretamente na movimentada Riverside Drive.

– Ali – Kalona apontou do outro lado da avenida, onde a superfície do Arkansas River reluzia à luz da lua. – Ele pensa que usar a água para levar o cheiro do seu sangue rio abaixo vai apagar o seu rastro.

– Pensa? Você quer dizer que isso não vai funcionar?

– Comigo não vai. O sangue ainda está caindo dele. É ele que eu farejo, com tanta certeza quanto farejo o seu rastro.

– Hum. Que ótimo – Stark disse.

Ao atravessar as quatro pistas da Riverside Drive atrás do imortal, Stark ficou feliz por estar frio e tarde da noite, assim não havia ciclistas e corredores por ali. É claro que Kalona estava usando um sobretudo, mas aquelas asas não eram exatamente imperceptíveis.

Kalona fez uma pausa depois que eles atravessaram a ciclovia, abaixando-se para olhar a folhagem mais de perto.

– Foi aqui que ele desceu para o rio.

Stark olhou para as plantas e farejou, tentando sentir o cheiro ou ver o sangue de Dallas. Só o que ele sentiu foi o aroma do rio turvo e cheio de peixes. Mas o imortal parecia seguro de si, então Stark deu de ombros e o seguiu até o rio. Quando eles chegaram à margem, Kalona parou novamente. Desta vez ele se agachou. Ele parecia estar inspirando profundamente o ar, enquanto olhava fixamente para a água que corria vagarosamente. Estava muito seco desde a tempestade de gelo de dezembro, e o rio estava raso, com grandes bancos de areia entre as águas preguiçosas.

– Eu não sabia que você era tão bom em seguir rastros – Stark se agachou ao lado dele.

– Eu passei éons rastreando seres do mal que tinham muito mais capacidade de se esconder do que esse vampirinho. Isso não se esquece facilmente – Kalona contou.

Stark o observou de canto de olho e se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Kalona havia feito para a Deusa antes de Cair. E se ele era tão bom no seu trabalho, tanto que muitos séculos depois ele ainda podia rastrear assustadoramente bem, por que ele tinha Caído afinal?

– Lá! – Kalona apontou. – Você o vê ali, na tora perto da margem mais distante?

Stark sorriu.

– Eu não preciso ver uma coisa para atingi-la. Só me dê um pouco de espaço e se prepare para pegar o idiota depois que eu acertá-lo, porque agora eu preciso fazer algo em que eu sou assustadoramente bom – ele se levantou, encaixou uma flecha em seu arco e puxou a corda para trás. Que a flecha atravesse a coxa do vampiro chamado Dallas. Stark se concentrou em seu pensamento específico, em seu objetivo, e soltou a flecha.

A flecha fez a corda do arco vibrar e foi disparada assobiando pelo ar, invisível mas mortal.

– Aaaaah! – o grito de Dallas atravessou a água facilmente.

Stark deu o seu sorriso metido para Kalona e falou:

– Pode ir buscar.

Zoey

A primeira aula não foi daquelas que parecem que não vão acabar nunca. Eu normalmente gostava da aula especial de Thanatos. Ela não era a professora mais divertida da escola (ahn, esse deveria ser Erik), mas ela era superinteligente e nos deixava fazer perguntas sobre praticamente qualquer coisa – desde que nós fôssemos respeitosos com ela e com os outros. Eu me revirei na minha cadeira e olhei para trás. Dallas, é claro, não estava na sala. Que eu soubesse, Stark e Kalona ainda não tinham voltado para o campus , com ou sem ele. Mas todos os outros novatos vermelhos estavam lá. Os garotos que não faziam parte do grupo de Dallas, como Shaylin, Kramisha, Johnny B., Ant e o resto dos novatos vermelhos de Stevie Rae, estavam sentados na frente da classe, logo atrás da primeira fila, onde o meu círculo, Aphrodite e eu estávamos. Nicole havia chegado junto com Shaylin e estava sentada ao seu lado. Ela tinha ignorado totalmente os seus ex-amigos, que a ficaram encarando como se ela fosse uma aberração quando passou por eles.

Hoje Aurox não estava sentado sozinho no canto mais distante da sala. Na hora em que estava entrando, ele ficou hesitante ao começar a passar por nós. Damien então acenou para ele e disse que os dois assentos ao seu lado estavam livres, já que Rephaim estava na enfermaria com Stevie Rae. Aurox fez uma pausa para olhar para mim. Eu meio que dei de ombros e meio que assenti, então ele agradeceu Damien e sentou ao seu lado. Ou seja, só Aphrodite e Damien ficaram entre nós dois. Eu conseguia vê-lo fazendo anotações depois que Thanatos começou a aula, falando sobre os cinco rituais mais importantes abordados no Manual do Novato.

Hum. Talvez Aurox fosse um bom aluno. Isso não seria nada parecido com Heath. Pensar isso me deu vontade de rir – como um princípio de histeria, não uma risadinha engraçada –, então eu tossi para disfarçar.

– Você está bem? – Shaunee me perguntou em voz baixa. Ela estava sentada do meu lado esquerdo, e percebi que a deixei preocupada.

– Totalmente. Só uma coceira na garganta – eu a tranquilizei rapidamente.

Thanatos havia se virado para a lousa digital interativa e estava mostrando uma foto de uma faca ornamental. Do fundo da sala, uma bola de papel amassado foi atirada na minha mesa. Percebi que havia algo escrito nela. Franzindo a testa, eu a desamassei e li: QUE XATO QUE VCS NAO MORRERAM.

Aphrodite pegou rapidamente o papel e o amassou de novo, guardando-o na sua bolsa.

– Ignore-os – ela sussurrou. – Até eu consigo escrever com menos erros do que eles.

Os novatos vermelhos de Dallas não estavam agindo como babacas tão abertamente quanto faziam quando Dallas estava lá abrindo o caminho. Em vez disso, eles eram como uma pilha de irritação silenciosa cozinhando em fogo brando. Eles não respondiam nenhuma das perguntas de Thanatos e não faziam nenhum comentário durante a exposição dela. Eles só faziam coisas maldosas, como jogar bolas de papel quando ela estava de costas. E eu podia jurar que estava sentindo os olhinhos vermelhos deles me encarando. Eu olhei por sobre o meu ombro.

– Pare de olhar para eles – Aphrodite sussurrou enquanto Thanatos entregava cópias do Manual do Novato para todos nós. – Eles querem atenção. Não dê isso a eles.

– Eu queria saber se Dallas já foi pego – eu sussurrei de volta.

– Ele vai ser pego. Ele não é esperto o bastante para escapar de Kalona – ela disse.

– Eu gostaria de discutir o segundo dos Rituais Maiores abordado nesse capítulo do Manual do Novato, o Ritual de Proteção de Cleópatra – a voz imponente de Thanatos chamou a nossa atenção para a frente da classe. Ela apontou para a lousa digital e para as imagens de adagas ornamentais. – Quem pode me dizer como elas são chamadas quando são usadas apenas para rituais e feitiços?

Damien levantou a mão rapidamente.

– Damien?

– Athame – ele respondeu.

– Eu sabia disso – Aphrodite sussurrou.

– Certo. Obrigada, Damien – Thanatos agradeceu. – Vocês vão perceber que, nas mais puras e antigas formas de Ritual de Proteção, o fogo é tradicionalmente o elemento invocado – ela curvou levemente a cabeça e sorriu para Shaunee, que assentiu entusiasmada para ela. – Como nós temos a sorte de ter nesta escola uma novata com afinidade com o fogo, talvez ela possa nos dizer o que é de suma importância em um Ritual de Proteção tradicional.

– Ah, isso é fácil! O mais importante é a Grande Sacerdotisa que conduz o ritual. Apesar de o fogo ser uma proteção incrível, ele é apenas tão forte quanto a Sacerdotisa que faz o feitiço – Shaunee disse.

Eu fiquei superfeliz por ela ter respondido, porque só o que eu me lembrava do Ritual de Proteção é que Cleópatra o fez e depois se atrapalhou porque ficou toda apaixonada por Marco Antônio, que no final morreu, e o elemento dela se transformou em uma cobra de fogo e a engoliu. Afe.

– Você está absolutamente certa, Shaunee. Obrigada. Então, caros estudantes, a lição que precisamos aprender do Ritual de Proteção não é sobre proteção nenhuma. É sobre foco, integridade e propósito – Thanatos afirmou. – Os últimos acontecimentos nesta escola me fizeram refletir com cuidado sobre a lição do Ritual de Proteção. Enquanto eu meditava sobre essa lição, veio a mim o pensamento de que no mundo antigo os vampiros tendiam a ter mais dons do que os vampiros de hoje – Thanatos fez uma pausa e olhou para mim. – Apesar de recentemente a tendência de menos dons e menos poder em vampiros jovens parecer estar se alterando – ela acrescentou. Eu não sabia onde Thanatos queria chegar, mas definitivamente ela despertou o meu interesse. – Pensem, por um momento, nas implicações de uma alteração dessas. Em tempos antigos, vampiros altamente dotados, como Cleópatra, foram responsabilizados pelas suas escolhas e por suas ações por causa do poder que eles detinham. Como vocês podem ler no Manual do Novato, e como foi relatado pelos nossos historiadores, Cleópatra usou mal o seu dom concedido pela Deusa. Ela parou de ouvir seu povo. Ela considerou a sua afinidade como uma coisa certa. Ela pensou apenas nos seus próprios desejos e necessidades. No fim das contas, o seu elemento fogo a consumiu.

Eu tentei não me preocupar. Será que Thanatos estava tentando me dizer que eu estava me atrapalhando? Tipo, eu sabia que eu andava sendo meio rude com as pessoas nos últimos tempos – e toda a coisa Aurox/Heath era confusa e frustrante –, mas será que ela estava falando que eu precisava ser nocauteada pelos cinco elementos?

Que inferno! Eu esperava que não fosse isso! Eu estava fazendo o melhor que podia. Sim, eu andava frustrada e irritada, mas pelo menos eu não estava choramingando muito. Ultimamente.

Aphrodite levantou a mão, surpreendendo-me e calando a minha tagarelice interior.

– Pois não, Aphrodite, você tem alguma pergunta? – Thanatos falou.

– Sim, eu estava pensando no que você disse, sobre como os dons dos vampiros eram mais fortes e mais frequentes nos tempos antigos e como parece que isso está mudando, e eu gostaria de saber se você tem alguma ideia de por que essa alteração de poder está acontecendo.

– É uma ótima pergunta, Aphrodite. Eu gostaria de ter uma resposta definitiva para você. Posso dizer que acredito que essa alteração tem a ver com uma mudança maior no equilíbrio entre Luz e Trevas.

– Talvez Nyx esteja nos concedendo esses dons para que a gente possa lutar para equilibrar as coisas de novo – Shaunee sugeriu.

– Talvez – Thanatos concordou.

– Isso poderia ter algo a ver com magia antiga? – Aurox perguntou.

Todos nós olhamos embasbacados para ele.

– O que o faz perguntar isso? – Thanatos quis saber.

Ele encolheu os ombros e pareceu desconfortável.

– Os touros. Eles não são uma manifestação de magia antiga?

– Eles são – ela confirmou.

– A pedra da vidência de Zoey também é magia antiga. Não é? – Aphrodite acrescentou.

Eu franzi a sobrancelha para ela.

– Isso também é verdade – Thanatos respondeu.

– Ok, mas algum de nós sabe o que a magia antiga realmente é? – eu perguntei, irritada com todo aquele assunto.

– A magia antiga não tem se manifestado fora da Ilha de Skye há muito tempo, desde antes de eu ser Marcada – Thanatos começou a falar devagar, como se ela estivesse se lembrando e raciocinando em voz alta ao mesmo tempo. – Pelo que sei, a melhor descrição que eu posso dar a vocês é que ela é energia em seu nível mais puro: crua, poderosa e neutra. A magia antiga é criação e destruição simultaneamente.

– Provavelmente é por isso que os feitiços antigos, como o Ritual de Proteção de Cleópatra, dependiam tanto da Sacerdotisa que fazia o feitiço – Damien disse. – Pode ser que todos os cinco Rituais Maiores tenham raízes na magia antiga.

– Parece lógico – Thanatos assentiu.

– Mas isso ainda não explica exatamente o que é a magia antiga ou por que ela se tornou ativa de novo – Aphrodite afirmou. – Mas eu diria que ela definitivamente está ativa de novo. Você não concorda, Z.?

Felizmente, ela foi interrompida pelo barulho da porta da sala sendo aberta impetuosamente e de Kalona entrando a passos largos pelo corredor central.

O imortal alado se curvou respeitosamente para Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, eu voltei com o seu prisioneiro.

– Você cumpriu bem a sua missão – ela se dirigiu a Kalona e então encarou a classe. – Quero que todos vocês se reúnam imediatamente no centro do campus perto do local da pira. A aula acabou.

Enquanto saíamos em fila da classe, observei Thanatos falando algo em voz baixa para Kalona. Eu vi o imortal arregalar os olhos, então ele assentiu e se curvou para ela novamente – desta vez até muito mais embaixo, mantendo a posição por mais tempo do que o normal. Enquanto ele ainda estava curvado, Thanatos foi até a sua mesa, pegou o telefone e apertou um botão. A sua voz ecoou pelo sistema de alto-falantes da escola.

– Todos os estudantes e o corpo docente vão se reunir no centro do campus no local da pira! Os professores que são membros do nosso Conselho devem se apresentar à Câmara do Conselho imediatamente. Todas as aulas estão suspensas até o final da nossa assembleia – então ela desligou e saiu apressada pela porta de trás, com Kalona logo atrás.

Tive uma sensação ruim.

– O que será que está rolando? – eu perguntei.

– Não tenho a menor ideia – Aphrodite respondeu. – Mas, seja o que for, vai acontecer na frente de todo mundo e vai fazer com que a gente perca pelo menos uma aula, então não pode ser tão mau, não é?

Nós fomos direto para o local da pira e formamos um grande círculo em volta da área queimada e escura que definitivamente estava sendo muito usada ultimamente. Eu procurei por Stark, mas não o vi, nem Kalona. Darius nos encontrou, pegou a mão de Aphrodite e disse que também não sabia o que estava rolando. Só quando todo mundo estava começando a ficar impaciente e quase era preciso gritar para ser ouvido, as pessoas do lado oposto ao meu se deslocaram, abrindo caminho.

Thanatos apareceu primeiro no meu campo de visão. Ela tinha trocado de roupa e estava usando um longo vestido negro de veludo, decorado apenas com o emblema em fios prateados de Nyx, com as mãos envolvendo a lua crescente. Thanatos havia soltado o seu cabelo longo e escuro, que caía como um véu espesso até a sua cintura. Lá no meio, eu vi um pouco de cabelos prateados reluzindo, que me lembraram do fio usado para bordar o emblema de Nyx. O seu rosto estava com uma expressão severa. Eu achei que ela parecia assustadora, mas bonita – antiga, mas sem aparentar idade.

Então a minha atenção foi atraída para Kalona e Stark, que entraram no meu campo de visão. Dallas estava mancando entre eles. Ele parecia péssimo. As mãos dele estavam amarradas na sua frente. O seu rosto estava todo arranhado e ensanguentado. As roupas dele estavam molhadas e imundas. Uma das flechas de Stark estava enterrada na sua coxa direita, só com as penas da parte de trás para fora. Kalona e Stark pareciam tão sérios e poderosos quanto Thanatos enquanto levavam Dallas até o centro da nossa assembleia. Eles não pararam até que o vampiro ferido ficou bem no meio da área escurecida pelo fogo da pira.

Dallas não parecia sério nem poderoso. Ele parecia irritado. Eu vi quando os olhos dele encontraram Shaunee. Ele olhou com raiva para ela e então deu um escarro nojento nas cinzas aos seus pés.

– Professores do Conselho da Morada da Noite de Tulsa, venham para a frente! – Thanatos ordenou.

Lenobia, Penthesilea, Garmy e Erik saíram da multidão para ficar ao lado de Thanatos. Eu estava pensando que o Conselho parecia desfalcado sem a presença de Dragon e Anastasia Lankford e da professora Nolan, quando Thanatos continuou:

– Eu também ordeno que as nossas duas Profetisas venham para a frente!

– Ah, que merda – Aphrodite resmungou, mas soltou a mão de Darius e foi se juntar a Thanatos.

Shaylin demorou para conseguir chegar lá na frente. Quando ela se aproximou de Thanatos, a Grande Sacerdotisa assentiu e fez um gesto para que ela ficasse ao lado de Aphrodite.

– A nossa escola foi ricamente agraciada com a presença de duas Grandes Sacerdotisas adicionais. Infelizmente, uma delas, a primeira Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, não pode ocupar o seu lugar ao meu lado hoje porque ela foi gravemente ferida – Thanatos continuou. Eu tinha acabado de perceber que ela havia dito duas quando os seus olhos escuros me encontraram. – Mas eu chamo a nossa segunda Grande Sacerdotisa para se juntar a mim. Zoey Redbird, venha para a frente!

Sentindo-me nervosa e insegura, eu fui ficar ao lado de Aphrodite e Shaylin.

Thanatos encarou Dallas.

– Você é o vampiro vermelho conhecido como Dallas?

Dallas sorriu.

– Todo mundo sabe quem eu sou.

– Dallas, ao amanhecer você atacou a Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, com a intenção de expô-la à luz do sol até que ela morresse. Você nega isso?

– Não, não nego.

– Dallas, ao amanhecer você também planejou matar a novata Shaunee com o poder que Nyx lhe concedeu. Você nega isso?

– Eu não nego nada! – o tom de voz dele era maldoso, e os seus olhos cintilaram com um brilho cor de ferrugem. – Pode me banir! Eu estou mais do que pronto para ir embora desta merda de escola.

Thanatos se virou para encarar a multidão.

– Eu sei que esse vampiro tem seguidores que compartilham os mesmos pontos de vista que ele. Acredito que eles sabiam de tudo e até podem tê-lo ajudado nesses crimes. Eles também devem compartilhar o seu destino. Eu agora chamo para a frente os seguidores de Dallas que desejam ficar ao lado dele!

Eu fiquei muito curiosa em saber o que ia acontecer. Havia uns dez garotos que andavam com Dallas o tempo todo. Bem, nove, agora que Nicole tinha saído do Lado Negro. Eu meio que esperei que uma horda inteira dos seus novatos vermelhos fosse para a frente, andando feito uns metidos babacas e jogando bolas de papel nas pessoas.

Mas na verdade apenas dois se juntaram a Dallas. Um era o grandalhão chamado Kurtis. Eu me lembrava dele na briga nos túneis. Ele era um idiota total. O outro garoto era Elliott, o novato que eu tinha visto morrer meses atrás na aula de Inglês. Eu sabia que Elliott era um inútil (alguém que não faz nada na classe além de respirar) do mal, mas eu imaginava que ele era preguiçoso demais para ficar ao lado de Dallas, principalmente porque parecia que ele ia ser expulso da escola junto com ele.

Ah, espere aí. Isso fazia sentido. O garoto não gostava de escola. Ser expulso com Dallas devia ser como umas férias permanentes para ele.

– Elliott e Kurtis, vocês dois conscientemente ficam ao lado desse vampiro como cúmplices dos seus crimes? – Thanatos perguntou.

– Sim, que inferno! – Kurtis respondeu. Ele tentou soar todo durão e seguro de si, mas olhou nervoso em volta.

– Sim, que seja – Elliott falou.

– Agora eu pergunto ao meu Conselho: vocês reconhecem a culpa desse vampiro e dos seus seguidores novatos?

No mesmo instante em que Thanatos fez a pergunta, a minha pedra da vidência começou a irradiar calor. Coloquei a mão em cima dela, desejando que eu soubesse a que ela estava reagindo e o que eu devia fazer em relação a isso.

Cada um dos membros do Conselho respondeu solenemente, dizendo:

– Sim, eu reconheço.

– Profetisas de Nyx, esses três foram considerados culpados de tramar o assassinato de uma Grande Sacerdotisa. Olhem dentro de vocês. Usem os seus dons. Vocês concordam comigo que, como nos tempos antigos, a punição deles deve ser imediata e pública?

Aphrodite respondeu primeiro:

– Eu concordo.

Shaylin demorou mais. Ela deu alguns passos para mais perto de onde Dallas, Kurtis e Elliott estavam e os analisou. Pela sua expressão, parecia que ela tinha sentido um cheiro ruim, mas não disse nada a eles. Ela voltou para o seu lugar perto de Thanatos e ainda não disse nada. Ficou só olhando para Thanatos por um tempo desconfortavelmente longo. Finalmente, Shaylin respirou fundo e disse:

– Eu acredito que a coisa certa a fazer é concordar com você – então Shaylin abaixou a cabeça. Eu tinha certeza de que ela fechou os olhos e parecia estar rezando, mas eu não tive mais tempo para ficar olhando, pois foi a minha vez de ser chamada.

– Zoey Redbird, como a outra única Grande Sacerdotisa presente, você está de acordo comigo e o meu direito ancestral de condenar esses três pela violência que eles admitem terem planejado e praticado?

Eu me senti como se tivesse recebido a pergunta mais fácil.

– Sim, eu concordo – respondi rapidamente. A pedra da vidência estava queimando a minha mão.

Thanatos levantou os braços. O poder crepitou ao seu redor, arrepiando os pelos do meu pescoço e dos meus braços. A sua voz foi amplificada pelo poder de Nyx, e ela soou como a personificação da Morte.

– Então eu invoco o meu direito como Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Os crimes contra uma Grande Sacerdotisa sob a minha proteção devem ser punidos como nos tempos antigos. Eu ordeno que o meu guerreiro Juramentado execute o vampiro vermelho e depois leve esses dois seguidores para o campo, longe o bastante de qualquer vampiro, para que os seus corpos rejeitem a Transformação e eles também morram!

Eu não tive nem tempo de ofegar. Kalona se moveu como um raio. Ele pegou a espada longa que estava pendurada nas suas costas e, com um único e rápido golpe, cortou a cabeça de Dallas. Stark se desviou quando o corpo dele teve convulsões e o sangue jorrou do coto onde era o seu pescoço. Eu não conseguia parar de olhar para a cabeça de Dallas. Os seus olhos estavam muito arregalados. Ele parecia atordoado. E a sua boca ficava abrindo e fechando sem parar, como um peixe em terra firme.

Kurtis e Elliott berraram e começaram a correr. O imortal alado os apanhou antes que eles saíssem do círculo de pessoas chocadas. Ele os agarrou pela cintura. A multidão se afastou dele, e então Kalona correu para a frente, com passos largos e firmes, batendo as asas enormes uma, duas, três vezes. Então ele e os dois garotos estavam voando no ar. Os garotos esperneavam e gritavam, mas isso não parecia afetar Kalona nem um pouco, e em alguns instantes eles saíram de vista, na direção oeste, dentro da escuridão.

– Silêncio! – a ordem de Thanatos acabou com o barulho como se um interruptor tivesse sido desligado. Foi só então que eu percebi que todo mundo à minha volta, exceto Stark, Shaylin e os membros do Conselho da Escola, estava gritando de horror ou soluçando de choque. – O tempo de fraqueza e brigas internas acabou. A violência contra a nossa Morada da Noite vai ser vingada. A nossa Deusa é misericordiosa, mas ela também é justa, e todos que se voltarem contra ela vão sentir o peso da sua justa ira. Que isto seja um aviso e a minha promessa a vocês: aqueles que ficarem ao lado da Deusa e de mim serão protegidos. Aqueles que se voltarem contra nós serão punidos. Morada da Noite de Tulsa, faça a sua escolha!


17
Zoey

A pedra da vidência ardia na minha mão. Eu sabia por que não havia me dissolvido em lágrimas ou berrado feito uma histérica.

Thanatos estava certa. Estava na hora de todos jurarem lealdade à nossa Morada da Noite e tomarem uma posição definitiva. Nós já estávamos contra muita coisa para ter que ficar lutando uns contra os outros também. Foi isso que ela sempre disse. Era nisso que eu também tinha começado a acreditar.

Dei um passo à frente, tomando cuidado para ficar fora do círculo de sangue de Dallas. Segurando firme a minha pedra da vidência, respirei fundo e orei: Magia antiga, ajude-me... fortaleça-me ! O calor explodiu da pedra da vidência e o poder chiou através do meu corpo. Quando eu falei, o volume da minha voz ecoou as minhas palavras pela multidão:

– O meu círculo e eu escolhemos o caminho de Nyx. Nós estamos unidos a esta Morada da Noite!

Damien e Shaunee foram os primeiros do meu círculo a se juntar a mim. Eles vieram até o meu lado e se curvaram respeitosamente para Thanatos, repetindo as minhas palavras:

– Nós estamos unidos!

Shaylin e Aphrodite deram um passo à frente para ficar ao lado deles. Darius, Stark e Aurox (que eu fiquei surpresa e feliz em ver) juntaram-se a nós. Rodeando-me, os membros do meu círculo colocaram suas mãos em punho sobre o coração e se curvaram respeitosamente, demonstrando a nossa solidariedade.

Isso deu o exemplo. Kramisha, Erik, Johnny B., Ant, Nicole e todos os outros novatos vermelhos de Stevie Rae atravessaram a multidão e vieram para a frente. Percebi que alguns estavam chorando. Outros, como Erik e Kramisha, estavam pálidos de choque, mas todos se curvaram e juraram lealdade à nossa Morada da Noite.

O resto da escola começou a se curvar e a fazer suas promessas de ficar unidos e seguir o caminho da Deusa. Prestei uma atenção especial nos novatos que haviam sobrado do grupo de Dallas. Eles eram fáceis de identificar. Os meninos eram totalmente desleixados e sujos, e as garotas usavam mais delineador do que roupas. Mas agora eles não estavam todos valentões e rebeldes. Eles pareciam assustados. Todos se curvaram para Thanatos. Eu não pude deixar de pensar até que ponto os seus juramentos eram sinceros, porque, afinal de contas, que escolha eles tinham? Imaginei o que eu faria no lugar deles. Eu não ia correr o risco de ser morta de jeito nenhum. Com certeza, eu iria fingir me unir a Thanatos. Mais tarde, porém, a minha escolha poderia ser diferente.

E como se a minha pedra da vidência nunca tivesse se parecido com um forno em miniatura, ela se resfriou, deixando-me tonta e com náuseas, com uma dor de cabeça latejante começando na minha têmpora direita.

Magia antiga era uma coisa assustadora!

– E agora eu ordeno que nós retomemos a nossa vida normal. A escola deve continuar – Thanatos estava dizendo. – Nós vamos ficar vigilantes em relação às forças das Trevas que agem ao nosso redor, mas elas não devem mais agir entre nós. Peço a Zoey e seu círculo que permaneça aqui e se reúna comigo rapidamente. O resto de vocês tem cinco minutos para estar na segunda aula. Professores, cuidem dos seus novatos. Que sejam todos abençoados.

Eu meio que senti como se alguém tivesse acabado de me dar um banho de água fria. Dallas havia sido decapitado. Dois novatos iriam morrer muito em breve, mas não se atrasem para a segunda aula? Como assim? Como poderia ser tão simples continuar o resto do dia como se nada tivesse acontecido?

– Zoey, eu preciso que você trace um círculo – Thanatos veio andando a passos largos na minha direção enquanto a multidão se dispersava silenciosamente.

– Aqui? Agora?

– Sim, aqui. Ao redor do corpo do vampiro. Mas não agora. Espere até que os novatos já tenham voltado para as suas aulas.

– Ok – respondi devagar. – Mas preciso que alguém fique no lugar de Stevie Rae.

– Eu posso substituir Stevie Rae.

Todo mundo se virou para Aurox.

– Por que você? – Stark perguntou antes que eu dissesse qualquer coisa, o que me deixou muito irritada. Era o meu círculo, não o dele!

– Por que não eu? Sei onde fica o norte. Posso segurar uma vela verde e invocar a terra. E quero ajudar Zoey.

– Parece ótimo para mim – respondi sem olhar para Stark. – Damien, Aurox e Shaunee, vocês podem pegar as velas do círculo e os fósforos?

Aurox se curvou respeitosamente para mim antes de os três saírem em direção ao templo de Nyx para pegar o material para o círculo.

– O que está rolando? Por que fazer um círculo agora? Alguém não deveria vir limpar essa bagunça? – Aphrodite perguntou, indicando o corpo de Dallas, sem olhar para ele.

– É exatamente isso o que Zoey e seu círculo vão fazer – Thanatos explicou. – Um vampiro condenado e executado não merece uma pira e as tradições de um funeral. Ele também não deve ser enterrado em lugar nenhum que possa virar um local de adoração para seus seguidores desencaminhados. Os seus restos precisam ser simplesmente destruídos, rápido e em silêncio.

– Oh – eu compreendi. – Você quer que eu trace um círculo e fortaleça Shaunee para que ela possa, bem, ahn... – eu hesitei, sem saber direito como colocar as coisas e me sentindo mal ao pensar no que nós íamos ter que fazer.

– Limpar essa bagunça – Aphrodite concluiu por mim.

– Sim, bem colocado – Thanatos soou como se estivesse falando sobre levar o lixo para fora. – E quanto menos atenção a gente chamar para essa limpeza, melhor. Então, eu agradeço às duas Profetisas por desempenharem os seus papéis com dignidade e sabedoria, mas agora devo insistir para que Aphrodite volte para a aula e que Shaylin se junte a ela logo depois de ter invocado a água no círculo de Zoey.

Aphrodite fechou o cenho. A sala de aula não era o seu lugar favorito no mundo. Eu franzi a sobrancelha para ela – não que ela percebesse –, pensando que eu ficaria feliz de trocar de lugar com ela.

– Venha, minha bela, vamos juntos – Darius pegou a mão dela, e os dois saíram andando na direção do prédio principal da escola.

– Eu vou buscar a minha vela azul e dizer a Damien e aos outros para se apressarem – Shaylin falou. Ela começou a caminhar na direção do Templo de Nyx, então fez uma pausa e se voltou para Thanatos. – Eu li as suas cores. Você estava fazendo o que precisava ser feito. Às vezes, os métodos antigos são os melhores.

– Eu também acredito nisso – Thanatos afirmou.

– Isso não torna o que aconteceu aqui nem um pouco menos horrível – Shaylin continuou.

– Não menos horrível, mas necessário – Thanatos argumentou.

– A escola não está toda do seu lado – Shaylin contou.

– Estou ciente disso.

– Acho que você ficaria surpresa ao saber de todos que estão pensando duas vezes no seu juramento a você e a esta escola – Shaylin disse.

– Mas eu imagino que você possa me revelar isso lendo as cores das pessoas, não é? – Thanatos perguntou.

O meu estômago se revirou.

– Ok, esperem aí – eu intervim. – Sou totalmente a favor de uma frente unida contra as Trevas, mas não sou a favor de que Shaylin seja usada para invadir os pensamentos das pessoas.

– O que você quer dizer, Zoey? – Thanatos pareceu me atravessar com os olhos.

– Que Shaylin não deve ser usada como sua espiã! – eu não sabia exatamente por que essa ideia me incomodava tanto, mas definitivamente me incomodava.

– Se ela estiver trabalhando a serviço de Nyx... – Thanatos começou.

Eu a cortei.

– Nyx concedeu o livre-arbítrio a todos nós. Isso significa que não é contra as regras da própria Deusa que qualquer um de nós questione as escolhas que fizemos e que vamos fazer no futuro. Não há nada de errado nisso. Só um idiota nunca questiona o que dizem para ele fazer.

– Shaylin, as cores de Dallas mostraram a você que ele era perigoso? – Thanatos perguntou a ela, sem desviar os olhos dos meus.

– Eu sabia que ele estava nervoso e era violento. Eu não sabia que ele ia tentar matar Stevie Rae e Shaunee.

– Mas, se Dallas tivesse sido contido por causa do que você viu dentro da aura dele antes desta manhã, Stevie Rae teria sido poupada de muita dor – Thanatos presumiu.

– Contido? Você quer dizer morto, antes que ele realmente fizesse algo? – eu me sentia como se fosse explodir.

– Acho que não foi isso o que Thanatos quis dizer – Stark opinou.

– Eu gostaria de ouvir Thanatos dizer isso – eu falei.

– Nos tempos antigos, só vampiros que de fato cometiam alguma violência contra outros vampiros eram executados – ela afirmou.

– Nós não estamos nos tempos antigos – eu rebati. – E eu acho que não é da conta de ninguém o que as pessoas pensam. Mas você sabe quem achava que era da sua conta escutar o que todos nós pensávamos? Neferet. E eu não gosto do que isso fez a ela.

Thanatos levantou as sobrancelhas.

– O seu ponto de vista foi bem colocado, Sacerdotisa – ela disse.

– Shaylin, vá ver por que Damien e os outros estão demorando tanto – eu ordenei.

Shaylin hesitou só por um instante, então se curvou para mim e saiu apressada.

– Você tem opiniões fortes – Thanatos observou.

– Você também.

– Você vai traçar o círculo e ajudar Shaunee a destruir o vampiro culpado?

– Sim. Eu não quero que ele seja feito de mártir, assim como você – eu respondi.

– Obrigada. Então vou deixá-la com o seu círculo – o olhar dela se voltou para Stark. – Você trabalhou bem hoje, guerreiro. Estou orgulhosa de você. Abençoado seja – ela curvou levemente a cabeça e foi embora.

– Eu juro que ela está agindo a cada dia mais como a Morte – eu falei, observando Thanatos enquanto ela se afastava.

– Z., acho que ela só está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

O meu primeiro impulso foi discutir com Stark, perguntar por que ele não estava ficando do meu lado, mas quando eu realmente olhei para ele vi que as suas roupas estavam rasgadas e enlameadas, e o sangue de Dallas estava respingado por toda a sua blusa e sua calça. O rosto dele estava pálido e tenso, e eu me dei conta de que, apesar de Kalona ter anunciado que havia trazido Dallas de volta para a escola, foi a flecha de Stark que tornou aquela execução possível.

Então Stark havia assistido Kalona decapitar o garoto.

Coloquei meus braços ao redor dele, afundando o meu rosto no seu peito.

– Acho que você está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.

– Você está bem, Z.? Eu queria ter contado a você o que Thanatos ia fazer, mas não deu tempo – ele hesitou e então acrescentou: – Eu senti aquela enorme onda de poder que você teve quando levantou a voz. Não foi como você se sente quando o espírito a preenche, então eu imagino que possa ter algo a ver com magia antiga. Estou certo?

Eu fiquei inquieta e desconfortável.

– Bem, a minha pedra da vidência esquentou, e agora eu estou me sentindo acabada. Então, sim, eu acho que isso tem algo a ver com magia antiga.

– Acho que faz sentido, especialmente com Thanatos invocando regras ancestrais e tal.

– Pois é, a gente tinha acabado de falar sobre isso na classe, mas eu queria saber se isso significa que ela está fazendo a coisa certa ou não – eu externei as minhas preocupações em voz alta.

– Ei – ele levantou o meu queixo. – É você que tem a pedra da vidência. Você só tem que se preocupar se você está fazendo a coisa certa. E limpar essa bagunça de Dallas é definitivamente a coisa certa. Ok?

– Ok – eu o beijei. – Como você está?

– Cansado – ele disse. – E toda essa coisa da cabeça de Dallas sendo cortada... bem... Eu sabia o que ia acontecer e achei que estava preparado para isso. Mas... – ele perdeu as palavras e me abraçou com força.

– Stark, eu acho que não há nenhum jeito de se preparar para ver a cabeça de um garoto ser cortada – eu também o abracei forte. – Ei, você deve ir tomar um banho e se trocar. Que tal nos encontrarmos no almoço?

– Que tal nós marcarmos um encontro depois das aulas para não fazer nada além de ficarmos juntinhos e sozinhos, assistindo uma maratona de Big Bang Theory pelo Roku 13 ?

Eu sorri para ele.

– Ninguém além de mim sabe como você é bobo de verdade.

– Eu preciso rir, e Sheldon me faz rir.

– Ok, mas só se você não tirar sarro de mim por eu não entender todas as piadas dele – eu pedi.

– Mas isso é parte do que me faz rir – ele disse.

– Ok. Pode rir da minha cara. Eu vou me sacrificar por você – eu falei brincando.

A expressão dele ficou séria.

– Eu sempre vou me sacrificar por você – ele respirou fundo e então, do nada, afirmou: – Eu não quero que você comece a andar com Aurox.

Eu dei um passo para trás e me afastei dele.

– Do que você está falando?

– Sei que eu disse que dividiria você com Heath, mas eu só falei isso depois que o garoto estava morto, e agora ele está de volta e eu acho que não vou conseguir dividir você com ele, e eu quero que você fique longe dele – ele colocou tudo para fora rapidamente.

– Desculpem pela demora! Alguém colocou os fósforos de ritual na gaveta dos bastões de defumação. Eu pensei que a gente nunca iria encontrá-los. Eu odeio quando as coisas ficam fora do lugar – Damien tagarelou ofegante, com uma aparência exausta, quando ele, Shaylin, Shaunee e Aurox chegaram apressados até nós, com as mãos cheias de velas e fósforos.

– Shaylin me contou o que Thanatos quer, estou pronta – Shaunee disse.

– Há algo errado? – Shaylin perguntou, olhando para mim e Stark com uma concentração desconcertante.

– Não, está tudo bem – respondi. – Stark está de saída para tomar um banho e se trocar. Certo, Stark?

Stark colocou os braços em volta de mim e me puxou para mais perto. Então ele me beijou. Na boca. De um jeito impetuoso e possessivo. Uma das suas mãos desceu pelas minhas costas e parou no meu traseiro, enquanto ele dizia:

– Certo, Z. Eu te vejo mais tarde. Durante o nosso encontro. A sós – ele deu um apertão na minha bunda e então saiu apressado.

Shaylin me entregou a vela roxa do espírito, e eu me controlei para não atirá-la nele. Que diabos eu ia fazer em relação a Stark? Será que ele realmente acreditava que agindo possessivamente e me dizendo o que eu devia fazer ele ia conseguir que eu não tivesse vontade de ficar com outro cara? Caramba, claro que não!

Deixei a minha irritação de lado e forcei um sorriso alegre.

– Então, vamos traçar esse círculo – eu disse. – Todo mundo pronto?

Enquanto íamos para os nossos lugares, eu ignorei o fato de que Shaylin continuava me observando. Então percebi que eu ia ter que assumir a minha posição no centro do círculo, o que significava que eu teria que ficar perto do corpo decapitado de Dallas em meio a cinzas ensopadas de sangue e terra carbonizada. Resolvi que não ia me importar que Shaylin estava me analisando atentamente e que Stark estava agindo feito um babaca. Eu meio que congelei ao chegar perto do sangue, odiando que aquele cheiro fizesse a minha boca salivar, mas aquela visão fez o meu estômago se contrair.

– Não olhe para ele – a voz de Aurox fez com que eu desviasse o olhar daquele corpo sem cabeça horrível. Ele sorriu para mim da extremidade norte do círculo. – Vá até Damien e invoque o ar. Na hora em que você tiver que ir para o centro do círculo, você vai estar fortalecida pelos elementos. Você consegue, Z.

A última parte do que ele disse soou tanto como Heath que os meus olhos se encheram de lágrimas. Pisquei com força para não chorar, assenti e fui na direção de Damien.

E Aurox estava absolutamente certo. Na hora em que fui para o meio do círculo, acendi a minha vela roxa e invoquei o espírito, eu me senti equilibrada e amparada. Não foi difícil liderar Shaunee e forçar uma explosão de chamas no corpo de Dallas. Depois que ele foi reduzido a cinzas, para mim pareceu natural pedir a Shaylin que fizesse a água lavar o local da pira e que Damien fizesse o vento soprar para longe aquele cheiro de queimado. Finalmente, eu usei Aurox como um canal com a terra. Juntos, nós conseguimos que a terra fizesse brotar grama verde onde antes só existia sangue e cinzas.

– Agora está muito melhor – eu disse, parada no meio da grama verde e fofa, inspirando profundamente o cheiro de primavera, depois de fechar o círculo.

Damien pegou o celular na sua bolsa masculina e conferiu a hora.

– Ah, que ótimo! Nós só perdemos metade da terceira aula. Eu amo Literatura e a professora Penthesilea.

– Terceira aula! – Shaunee exclamou. – Para mim é Esgrima. Fui. Vejo vocês no almoço.

Demos tchau acenando para ela.

– Eu queria que já estivesse na sexta aula – suspirei.

– Pensei que você gostasse da aula de Literatura – Damien disse.

– Eu gosto, mas não gosto da aula de Espanhol, que é a quinta. Então, se já estivesse na sexta aula, eu teria perdido o Espanhol – esfreguei a testa, sentindo dor de cabeça e tontura de novo.

– Você está bem? – Shaylin perguntou.

Eu olhei para Shaylin. Ela estava me encarando. De novo. A minha irritação ferveu e o meu estômago roncou. A pedra da vidência começou a esquentar no meio do meu peito, o que só meu deixou mais nervosa.

– Shaylin, pare de ficar me secando! – eu não queria soar tão irritada como as minhas palavras acabaram saindo, e eu não queria de jeito nenhum fazer Shaylin dar um salto como se eu tivesse acabado de dar um tapa nela, mas foi exatamente isso o que aconteceu.

– Desculpe. Eu não tive a intenção – ela falou, quase se encolhendo de medo e se afastando de mim.

Eu suspirei e toquei na pedra da vidência, que estava fria como uma pedra comum.

– Olhe só, eu não quis gritar com você. Eu estou com dor de cabeça e com fome, só isso.

– Bem, Z., você acabou de traçar um círculo. Você precisa se equilibrar. Vá até o refeitório e pegue algo para comer – Damien me aconselhou, acariciando o meu braço. – Eu digo para a professora P. onde você está. Vai ficar tudo bem.

– Você está certo, Damien. Comida com certeza vai fazer bem para a minha cabeça.

– Comida ou refrigerante marrom? – Damien perguntou, sorrindo.

– Refrigerante marrom é comida – eu respondi.

– Zoey, você se importa se eu for até o refeitório com você? – Aurox sugeriu.

– Você não tem que ir para a aula? – eu quis saber.

– Não. Eu só assisto a primeira aula. Depois eu faço a ronda nos jardins da escola.

– Ah, eu, ahn, não sabia disso – eu fiz esse comentário inútil, sem saber se o invejava ou se sentia pena dele.

– De fato, acho que é uma boa ideia Aurox comer algo também. Foi o primeiro círculo dele – Damien fez uma pausa e sorriu para Aurox. – E você foi excelente. Muito bem!

– Ei, obrigado, Damien – Aurox abriu o sorriso, fazendo com que os seus olhos faiscassem de um jeito um pouco familiar demais.

Como olhos da cor da pedra da lua podem me lembrar dos olhos de Heath?

– Zo, você não se importa que eu vá com você, não é?

Eu me dei conta de que eu estava encarando Aurox – enquanto Shaylin, Damien e Aurox me encaravam –, e pisquei.

– Não, tudo bem. Mas você vai ter que se apressar. Vou tentar pegar pelo menos o final da aula de Literatura. Só porque não é Matemática, não quer dizer que eu seja muito boa nessa matéria – eu praticamente saí correndo, com Aurox me seguindo, depois de dar um tchau rápido para Damien e Shaylin.

O refeitório estava deserto, mas eu podia ouvir panelas e frigideiras tinindo lá na cozinha, e um cheiro delicioso tomava conta do ambiente. A minha boca estava salivando loucamente quando Aurox disse:

– Você pode ir pegar as nossas bebidas, que eu vou até a cozinha ver o que está pronto para comer.

Eu concordei sem pensar e fui direto pegar refrigerante marrom. Matei um copo antes de sair de perto da máquina de bebidas. A minha cabeça já estava um pouco mais clara quando eu estava levando dois copos grandes para a mesa em que meu grupo normalmente sentava. Enquanto eu bebia aquela maravilha marrom gelada, eu pensei em como era estranho o fato de alguns lugares mudarem totalmente quando estavam vazios. Tipo, o refeitório normalmente era um lugar barulhento e cheio de estudantes e comida, mas naquele momento, meia hora antes do almoço, parecia maior do que era e quase de outra dimensão, como se fosse possível ouvir os ecos dos espíritos dos garotos que não estavam ali, mas que ainda, de algum modo, estavam me observando.

Isso me deu sérios arrepios.

– Peguei para você queijinho-quente e sopinha de tomate – Aurox sorriu alegremente enquanto sentava no banco ao meu lado, colocando uma bandeja cheia de sopa e sanduíches na nossa frente.

Eu só consegui ficar olhando para ele.

O sorriso de Aurox esvaneceu. Ele olhou para o sanduíche de queijo e a sopa e depois para mim.

– Eu pensei que você fosse gostar. Posso levar isso de volta. Também tem sanduíche de peito de peru com queijo, e a cozinheira me disse que estão quase terminando de preparar a salada Cobb.

– Não é isso. Eu amo queijo-quente. E a sopa.

– Então por que você está assim?

– Queijinho-quente e sopinha de tomate. Por que você falou desse jeito?

Ele enrugou a testa.

– Simplesmente saiu da minha boca. Não é assim que se fala?

– Aurox, é assim que eu falava desde o segundo ano do fundamental. Heath também falava assim. Era o nosso almoço preferido porque a nossa escola fazia um spaghetti muito ruim.

– Psaghetti – ele disse em voz baixa.

A minha mente me disse para falar para ele ficar quieto e comer, mas a minha boca disse:

– Nós só falamos assim quando é bom. A loucura do psaghetti não acontece com spaghetti ruim – eu sabia que estava tagarelando bobagens, mas não conseguia me conter. – Tem também uma música e uma dança sobre a loucura do psaghetti.

– Eu sei.

– O que mais você sabe? – eu me senti quente e fria ao mesmo tempo.

– Que algumas vezes eu quero tanto te tocar que às vezes eu acho que posso morrer se você não deixar – ele afirmou.

Senti um frio na barriga.

– Eu estou com Stark.

– Eu sei, e acho que você tinha que ficar fria quanto a isso.

“Ficar fria”! Quando ele falou isso, soou tão parecido com Heath que eu quase perdi o fôlego.

Nenhum de nós disse nada, então ele levantou a mão devagar na direção da minha, que estava na mesa entre nós. Delicadamente, ele pegou a minha mão e a virou ao contrário. Com um dedo, ele acompanhou suavemente a tatuagem cheia de filigranas que cobria a minha palma.

– Você recebeu essas tatuagens de Nyx – ele disse.

– Sim.

– Você tem mais tatuagens especiais – ele tirou o dedo da palma da minha mão e o colocou sobre o meu rosto, onde ele acariciou o padrão repetido ali.

O dedo dele era quente e deu vida aos meus nervos, de modo que onde ele tocava eu me arrepiava. Ele seguiu a linha do meu pescoço até o decote em V da minha camiseta da BDG, e então começou a seguir o traçado da tatuagem, que se estendia sobre a minha cicatriz, de um ombro a outro.

– Isso quase a matou – ele sussurrou.

– Quase – falei meio ofegante, como se estivesse tentando conversar e correr ao mesmo tempo.

Com os dedos ainda no meu corpo, ele olhou dentro dos meus olhos.

– Você se Carimbou com Heath e ele a salvou. Foi por isso que você não morreu.

– Sim.

– Você bebeu o sangue dele.

Estava muito difícil falar, então eu apenas assenti.

– Zo, eu quero que você beba o meu sangue.

– Heath, ahn, Aurox... – eu gaguejei. – Não posso. Isso iria magoar Stark e...

Perdi as palavras quando ele pegou uma faca e furou a ponta do dedo que tinha tocado meu peito. Uma única gota vermelha brotou. O cheiro do sangue dele me invadiu. Não era humano. Não era de novato nem de vampiro. Era mágico.

Eu lambi a ponta do seu dedo e ele gemeu o meu nome:

– Zo!

Aquele sabor atingiu o meu corpo como uma bomba nuclear. Eu agarrei e segurei com força a mão dele, querendo mais. Fechei os olhos e coloquei o dedo dele na minha boca. Ele se inclinou para a frente, encostando a cabeça na minha.

O sino que indicava o final da terceira aula e o começo do almoço soou. Arregalei os olhos e me dei conta do que estava fazendo.

– Não, isso não está certo! Não. Aurox – balançando a cabeça, eu soltei a mão dele.

Ele estava respirando tão ofegante quanto eu.

– Eu não vou contar a ninguém. Eu nunca vou te trair assim.

Eu queria chorar.

– Se você realmente se importa comigo, vá embora. Por favor.

Ele assentiu, colocou um guardanapo em volta do seu dedo sangrando e saiu rapidamente do refeitório.

Bebi um copo inteiro de refrigerante de uma só vez. Enxuguei a boca. Alisei a minha camiseta. Peguei uma metade de queijo-quente e me forcei a comer. E quando todos os meus amigos se juntaram na mesa, sorri, conversei e deixei Stark colocar o braço no meu ombro possessivamente.

Ninguém sabia que eu estava berrando por dentro. Ninguém.


18
Neferet

Os olhos de Neferet se moveram embaixo de suas pálpebras fechadas enquanto ela revivia o século vinte. Para um período em que ela tinha conseguido tanto poder e o princípio da sua imortalidade, tinha sido realmente um tédio terrível.

Duas coisas foram a exceção: os seus sonhos e a velha mulher. Os primeiros se mostraram mentiras, e a segunda se revelou incrivelmente mais do que a verdade. Era irônico que o seus sonhos fossem a parte que ela mais gostou de revisitar.

Neferet tinha voltado para a Morada da Noite de Tower Grove, onde a escola inteira estava ávida demais por demonstrar preocupação e compaixão com ela. As mortes precoces da sua primeira familiar 14 , a pequena Chloe, e de seu guerreiro haviam sido muito próximas. Todos compreenderam quando Neferet se retirou da vida social e começou a passar uma quantidade de tempo incomum em meditação e oração.

Eles não tinham ideia de que Neferet na verdade passava o seu tempo de oração em um sono profundo e entorpecido, ansiando pelo deus que aparecia para ela apenas quando ela estava inconsciente.

Kalona havia sido esperto. Apesar de ter uma beleza impressionante, ele aparecia nos sonhos dela como o Deus sem Rosto, que pedia apenas que ela revelasse as suas fantasias e permitisse que ele a venerasse.

Não parecia sonho. Mais tarde – depois que era tarde demais –, Neferet percebeu que não andava sonhando, mas sim que Kalona estava entrando no seu subconsciente e a manipulando. Porém, naquele momento, tudo o que Neferet sabia era que o toque imortal dele despertava desejo. Ela continuou a se abrir para ele e, enquanto o seu subconsciente escutava os sussurros dele, Neferet ficava mais forte.

Ela começou a questionar os modos modernos dos vampiros à sua volta. E, basicamente, a acreditar que o seu destino era libertar um deus de sua prisão injusta, para que ela e ele pudessem governar lado a lado, Nyx e Erebus sobre a Terra. Juntos eles iriam anunciar uma nova era, em que vampiros não iriam mais coexistir em uma paz desconfortável e patética com os humanos.

Em silêncio, Neferet começou a tomar providências que iriam mudar a forma das relações entre humanos e vampiros irrevogavelmente. Como o imortal havia dito para ela em seus sonhos: Por que os deuses que caminham sobre a Terra se curvam para aqueles que os deveriam venerar?

Neferet usou a perda do seu guerreiro como uma desculpa para viajar, para não ficar presa ao trabalho enfadonho de ser uma professora. Buscando, sempre buscando o que alimentava os seus sonhos, mas a iludia na vida, Neferet sorriu quando começaram a chamá-la de embaixadora de Nyx, cujas visitas abençoavam cada Morada da Noite de um modo especial.

Neferet pensava em si mesma como uma embaixadora de poder.

Ela usou os seus dons psíquicos para saber o que cada Grande Sacerdotisa queria ou precisava : ser adulada ou desafiada, ameaçada ou elogiada, adorada ou ignorada. E então ela dava exatamente o que elas queriam: informação, um toque de cura, inspiração, excitação... a lista de necessidades e desejos das Grandes Sacerdotisas era interminável. Enquanto Neferet “servia”, ela adquiria reputação na comunidade dos vampiros. Ela se via como um camaleão fascinante e poderoso. Ela aprendeu a fazer com que as pessoas enxergassem nela a característica que cada uma mais respeitava, confiava e venerava em alguém.

E sempre, sempre, Neferet era atraída para o centro da nação – para Oklahoma, para a terra cor de sangue antigo, e para a jovem cidade, Tulsa, onde ela havia enterrado os registros de seu passado humano e para onde os sonhos, os sussurros e o toque de Kalona continuavam a atraindo.

Busque a minha libertação... busque a minha libertação... Os sussurros dele preenchiam os seus sonhos e assombravam a sua vida.

Era o dia 22 de abril de 1927 quando o rico casal humano Waite e Genevieve Phillips fizeram um convite para as Grandes Sacerdotisas comparecerem ao grande baile de gala que eles estavam oferecendo para celebrar o término da construção da mansão que estava sendo chamada de Philbrook.

Neferet se certificou de que estava entre as Sacerdotisas que aceitaram o convite. Ela não tinha interesse por Philbrook, nem pelo casal humano filantrópico e liberal e seus amigos ricos da alta sociedade.

Mas a cidade interessava Neferet. Ela tinha cheiro de petróleo, álcool, dinheiro, sangue e poder – sempre o poder.

Foi o aroma do poder, como a essência dos seus sonhos, que naquela noite a fez sair da festa dos Phillips e começar a vagar pela cidade. Mansões do petróleo recentemente construídas pontuavam a paisagem. Neferet passou por elas sem ser vista. Ela mal olhou para dentro de suas janelas, nem reparou no brilho cintilante dos novos lustres elétricos de cristal. Em vez disso, ela foi atraída para longe das mansões resplandecentes e começou a seguir um pequeno e melódico córrego, que parecia estar sussurrando uma canção para ela.

A mansão apareceu de repente, como se tivesse se materializado especialmente para Neferet. Ela era enorme e ficava no meio de jardins caprichosamente bem cuidados, enfeitados por carvalhos. Neferet se lembrava de ter pensado como era estranho o fato de existir apenas um portão de ferro na entrada da rua, sem muros cercando a propriedade.

Então ela viu a placa e percebeu que, apesar de aparentemente ter sido construído como uma elegante casa de campo europeia, ou talvez até como um castelo, o enorme prédio de pedra era uma escola particular.

Neferet foi atraída para ela antes de ver a velha mulher. Quando ela entrou no campus , o seu interesse definitivamente despertou. Havia dois prédios principais, ambos construídos com uma pedra de textura única. O campus aparentava ser novo, tão novo que parecia escuro e desabitado. Foi quando Neferet perambulava pelo campus inativo que a canção sussurrante que ela estava escutando a noite inteira se tornou realidade e se aglutinou aos seus sonhos.

Primeiro ela ouviu a sonora batida do tambor. Neferet seguiu o som até um lugar no extremo leste dos jardins do campus . Lá o aroma da sálvia e da sweet grass 15 a guiaram até um enorme carvalho, grande o bastante inclusive para esconder a luz de uma fogueira. Ela reparou que vários pássaros enchiam os galhos da árvore. Corvos. Estranho, normalmente corvos não são vistos à noite, ela se lembrava de tê-los identificado e de ter pensado nisso.

Neferet deu a volta na árvore e viu a fogueira.

Então a batida do tambor preencheu a clareira, e toda a atenção de Neferet se concentrou na anciã. Ela estava ajoelhada perto do fogo com um grande tambor na sua frente, no qual batia com um bastão simples enrolado em couro, que ela segurava com sua mão direita. Na sua mão esquerda, ela tinha um machadinho. Depois de algumas batidas, ela cortou um pedaço de uma corda grossa e longa de ervas secas, que estava no chão ao seu lado. O fogo chiou quando consumiu as ervas, soltando uma fumaça com aroma doce.

O vestido da mulher, apesar de amarelado pelo tempo, tinha uma beleza inesperada. As delicadas contas bordadas se refletiam na luz do fogo, e a longa franja ondulava graciosamente a cada batida do tambor. O seu rosto era velho, e o seu cabelo preso em uma trança grossa era completamente branco, mas a sua voz era clara como a de uma garota. Ela começou a cantar, e Neferet foi arrebatada pelas suas palavras.

Ancestral adormecido, esperando para despertar...

Neferet se moveu silenciosamente na direção da velha mulher, enquanto a música pulsava através do seu corpo no mesmo compasso das batidas do seu coração.

Quando o poder da terra sangra em sagrado vermelho

A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar

Ele será levado de seu leito de morte

Neferet deu um passo e entrou na área iluminada pela luz do fogo. A anciã levantou os olhos embaçados, que deviam ser azuis, e parou de cantar.

– Não – Neferet insistiu. – Continue cantando. É uma canção adorável.

A expressão da mulher se endureceu, mas ela continuou:

Pelas mãos dos mortos ele se liberta

Beleza terrível, visão monstruosa

Eles haverão de ser regidos outra vez

As mulheres hão de se curvar à sua misteriosa força

Doce é a canção de Kalona

Enquanto assassinamos com um calor gelado

Kalona! O nome do deus penetrou em Neferet.

– Cante outra vez, velha – ela ordenou.

– Já terminei. Vou embora.

A anciã começou a se levantar, mas Neferet se moveu rapidamente para detê-la. Foi muito fácil pegar o machadinho daquela velha. Foi muito fácil pressioná-lo contra a garganta dela.

– Faça o que eu mando ou vou cortar o seu pescoço e deixar o seu corpo velho aqui para que os pássaros a devorem até os ossos.

A velha mulher fechou os olhos, deu um suspiro profundo e trêmulo e começou a cantar sem parar, até que Neferet teve certeza de que havia memorizado a canção. Só então ela permitiu que a mulher parasse. Só então ela passou a examinar a mente da anciã.

– Você se vê como uma Ghigua. O que é isso? – Neferet perguntou.

A idosa arregalou os olhos. Ela não respondeu, mas a sua mente de repente foi invadida por pânico e palavras estranhas: Ane li sgi, demon, Tsi Sgili, devoradora de almas, assassina de homens. Esse fluxo de palavras foi levado até Neferet em uma onda de medo e horror.

– Você está com muito medo de mim – Neferet sorriu e se sentou mais perto da velha, deixando o machadinho no pequeno espaço entre elas.

– Você escuta o que está na minha mente – a mulher disse.

– Eu consigo escutar mais do que isso – Neferet afirmou. – A sua canção... acho que eu entendo o que ela significa.

– Eu canto essa canção a cada lua nova como um alerta.

– Certamente, para alguns deve ser um alerta. Para mim, é uma promessa – Neferet investigou mais a fundo a mente da velha mulher. – Você não tem medo de mim porque eu sou uma vampira.

– Eu não tenho medo de vampiros.

– Mas ainda assim você tem medo de mim – Neferet falou. – E você canta sobre o meu amante. Deixe-me ver, como é mesmo a canção? A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar. Diga-me, velha, quem e o que é a Rainha Tsi Sgili?

É você, demônio! Tem prazer com a dor! Alimenta-se da morte!

A condenação ecoou da mente da anciã até Neferet, mas ela disse apenas:

– Eu já falei o bastante por uma noite. Agora não vou dizer mais nada – então ela pressionou os seus lábios finos e enrugados, teimosamente.

Neferet sorriu de modo insinuante para ela.

– Ah, mas eu não preciso que você fale com palavras. A sua mente está gritando alto o suficiente. Eu posso capturar tudo o que preciso sem que você diga uma única sílaba, velha.

Mas Neferet não teve tempo para violar a mente da mulher como ela pretendia. Com um grito de guerra estridente, a anciã pegou rapidamente o machadinho e deu um golpe em seu próprio pescoço, abrindo a artéria carótida.

– Não! – Neferet gritou, pressionando a mão contra a carne da idosa, tentando prolongar os seus últimos minutos de vida, enquanto examinava a mente dela, buscando respostas em pensamentos semiformados e em imagens que desvaneciam.

Na sua toca, o corpo de Neferet se contorceu e estremeceu em reação às suas lembranças. A velha mulher havia se sacrificado por nada. A sua mente moribunda ofereceu informação suficiente para que Neferet começasse duas coisas: a busca de um modo para libertar Kalona e a sua transformação de uma Grande Sacerdotisa insatisfeita em uma deusa imortal, a Rainha Tsi Sgili.

Zoey

Eu adorava a sexta aula. Não só porque Lenobia era a professora mais legal de todos os tempos, mas porque era uma aula em que eu montava um cavalo! Eu não conseguia imaginar como isso poderia ser mais perfeito. Hoje parecia que Lenobia sabia que a gente precisava se livrar do estresse. Quando a aula começou, nós entramos na arena e encontramos grandes barris pretos de aço dispostos na forma de um triângulo.

Lenobia veio galopando em Mujaji. A égua negra parou deslizando bem na nossa frente.

– Então, novatos, alguém sabe por que esses barris estão aqui?

Eu levantei a mão.

– Zoey?

– Para uma corrida de barris.

– Exato – ela disse. – Você já participou de uma corrida de barris antes, Zoey?

Eu sorri, um pouco nervosa.

– Bem, mais ou menos. O cavalo de minha avó, Mouse, era um corredor de prova de barris aposentado. Vovó costumava colocar barris para ele treinar. Mesmo quando já estava bem velho, ele se empertigava e corria ao redor dos barris como se fosse um potro novamente. Eu apenas ficava em cima dele e o deixava fazer todo o serviço, mas era divertido.

Lenobia sorriu.

– Essa é uma história adorável e uma lembrança especial, Zoey. Guarde-a com carinho.

– Vou guardar. Eu já guardo.

– E então, alguém mais tem experiência com corrida de barris?

Os outros cinco garotos balançaram as cabeças e se mostraram desconfortáveis.

Lenobia franziu a sobrancelha e resmungou, mais para si mesma do que para nós:

– É tão desanimador estar no meio de Oklahoma cercada de jovens que não sabem nada de cavalos – então ela levantou a voz e continuou: – Não importa. Eu preparei um exemplo bem simples, grande e óbvio para vocês seguirem – ela fez um barulho com a boca para Mujaji, e a égua se moveu para o lado para que Travis, montado em sua égua Percherão, Bonnie, pudesse entrar trotando na arena.

Ele empinou a égua na frente de Lenobia e tocou na aba de seu chapéu para cumprimentá-la.

– Madame, você não acabou de chamar a minha égua de grande e simples, chamou?

Ela acariciou o focinho de Bonnie e deu um beijinho nela antes de responder:

– Eu nunca chamaria essa criatura magnífica de grande e simples. Eu estava falando de você – os olhos dela faiscaram para o cowboy alto e bonitão.

– Bom, então tudo bem, madame – ele disse. – Fico feliz em saber que sou valorizado assim.

A risada de Lenobia pareceu a de uma garotinha, e eu pensei que nunca a tinha visto tão bonita.

– Vá, conduza Bonnie ao redor dos barris para que os garotos vejam – ela bateu de brincadeira na bota de Travis.

Sim, ela definitivamente estava apaixonada.

– Certo, minha garota, vamos mostrar a esses novatos que você não precisa ser um Quarto de Milha para fazer uma prova de barris – ele levou Bonnie até a posição de partida e então a esporeou com força e bateu com o seu chapéu no traseiro enorme dela. A égua Percherão praticamente decolou.

Lenobia explicava o que Bonnie estava fazendo, como ela estava seguindo um padrão de trevo, em um tempo exagerado. Mesmo assim, quando a égua gigante arremeteu pelo centro com Travis a incitando, e o chão da arena pareceu tremer, todos nós a saudamos e aplaudimos.

E isso foi só o começo da diversão. Por quase uma hora, fizemos sem parar a corrida de barris, um de cada vez, com o cavalo escolhido. Persephone era a “minha” égua. Eu adorava cada centímetro de sua bela pelagem ruão. E ela também corria bem! Persephone sabia fazer direitinho o padrão de trevo. Como diria Stevie Rae, eu só precisava ficar feito um carrapato, grudada nela.

Por todo esse tempo – cerca de cinquenta e poucos minutos –, eu esqueci de Neferet, Stark, Aurox, Transformação e magia antiga. Só durante esse pequeno período, eu era uma garota de novo, rindo, montando um cavalo e amando a vida.

Isso acabou rápido demais. Normalmente, tratar de Persephone me ajudava a aquietar a mente. Hoje teve o efeito contrário. Talvez porque eu não tivesse pensado em nada enquanto eu estava montando. Porém, quando eu comecei a pentear a sua crina com a almofaça, os meus problemas rugiram.

Pensar no que Neferet estava armando deveria ser o meu maior problema, seguido por tentar descobrir como a minha pedra da vidência e a magia antiga estavam funcionando – ou não funcionando –, mas o que continuava girando sem parar na minha mente era a situação Heath/Aurox/Stark.

Afe, eu tinha lambido o sangue no dedo do garoto.

Que diabo eu ia fazer agora?

– Bom trabalho hoje, Zoey – a voz de Lenobia me assustou e Persephone levantou a cabeça por causa da minha reação.

Eu acalmei a égua e dei um olhar de desculpas para Lenobia.

– Sinto muito, a minha cabeça não estava aqui.

– Eu entendo totalmente – ela se encostou na portinhola da baia. – Tratar de Mujaji para mim é como tomar um comprimido para dormir. Ela me deixa tão relaxada que até já me aconcheguei na sua baia e dormi ali mesmo algumas vezes.

Eu suspirei.

– É, normalmente eu também me sinto assim quando cuido de Persephone.

– Mas hoje não?

Balancei a cabeça.

– Hoje não.

– Você quer conversar sobre isso?

Eu quase respondi automaticamente algo como “está tudo ok, eu estou bem”. Mas então eu lembrei que ela havia dito que esperou Travis por mais de duzentos anos. Ela devia entender de casos de amor complicados – além disso, Lenobia era mais do que apenas uma professora, ela era minha amiga. Então dei outra resposta:

– Sim, se você tiver tempo, eu realmente gostaria de conversar sobre isso.

Lenobia colocou um fardo de feno dentro da baia e se sentou nele.

– Eu tenho tempo.

Inspirei profundamente, sem saber direito por onde começar.

– Apenas escove a égua e comece a falar. O resto vai vir naturalmente – Lenobia disse.

Segurei a escova macia e comecei a passá-la em Persephone, seguindo o padrão de crescimento do seu pelo lustroso. E comecei a falar.

– Sei que é normal, e até parece ser meio esperado que uma Grande Sacerdotisa escolha mais de um cara, mas eu simplesmente não entendo como elas fazem isso.

Lenobia riu.

– O que foi que eu disse?

– Ah, Zoey, desculpe. Eu não estou rindo de você. É só que eu me esqueci de como você é tão jovem e de como há tantas coisas sobre vampiros que você não entende muito bem.

– Tipo, como fazer para lidar com mais de um cara ao mesmo tempo – eu disse, concordando.

– Bem, talvez. Mas para mim parece que a primeira coisa que você deve entender é que não se espera que Grandes Sacerdotisas tenham mais de um amante ao mesmo tempo. Elas simplesmente têm a opção de escolher mais de um parceiro sem serem julgadas, como uma mulher humana seria na cultura de hoje – Lenobia cruzou as pernas e se encostou na parede da baia, como se estivesse se acomodando para uma longa conversa íntima. – Zoey, pense em como vai ser a sua vida quando você completar a Transformação.

– Se eu completar a Transformação – eu observei.

Lenobia sorriu.

– Eu tenho confiança em você, então vamos dizer quando você completar. Você sabe quantos anos eu tenho?

– Muitos – eu falei sem pensar. – Ahn, desculpe. Não é que você pareça velha nem nada disso.

– Não fiquei ofendida. Eu nasci no ano de 1772.

– Faz muito tempo! – exclamei.

O sorriso dela se ampliou.

– Se o destino for bom comigo, eu provavelmente vivi apenas metade da minha expectativa de vida. Desde 1772, eu só amei um único homem, mas isso foi uma escolha minha, um voto que fiz. A maioria das vampiras encontram diversos amores durante suas vidas. Às vezes, elas já estão envolvidas com um vampiro quando conhecem um novo amor humano. Às vezes, é o contrário.

– Então, não é que se espere que elas tenham vários caras ao mesmo tempo – eu concluí.

– Exato. Trata-se mais de lógica e expectativa de vida. E escolha. Como nós fazemos parte de uma sociedade matriarcal, podemos escolher sem sermos julgadas ou condenadas. Isso a ajuda com o seu problema?

– Bem, sim e não. Obrigada por me explicar essa história de múltiplos parceiros, mas eu ainda não sei o que fazer em relação à coisa Heath barra Aurox – eu respondi, sentindo-me péssima.

– Por que você tem que fazer algo?

– Porque eu já fiz uma coisa. E ignorar isso não é justo com Aurox ou com Stark – suspirei de novo. – Ou, eu imagino, com Heath.

– Então você tomou Aurox como amante, junto com Stark?

– Não! – eu gritei. Então espiei Lenobia por cima de Persephone. Ela estava olhando imperturbável para mim, serena e sem julgamentos. – Mas eu bebi um pouco do sangue dele – eu admiti.

– E como você não é igual a uma novata normal do primeiro ano, isso é muito viciante e excitante para você. Certo?

– Sim, certo – eu reconheci.

– Stark sabe disso?

– Ah, Deusa, não! Ele iria surtar. Ele já está agindo feito um babaca possessivo sempre que Aurox está perto de mim.

– Mas ele sabe que você era companheira de Heath e que a alma de Heath está dentro de Aurox.

– É por isso que ele está agindo feito um babaca possessivo. Aparentemente, Stark não vai aceitar que eu fique com Heath, ahn, Aurox. E Stark pensa que nós mal falamos um com o outro.

– Aurox te atrai.

Ela não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi.

– Sim, atrai. Isso porque Heath está dentro dele. Não é uma coisa consciente. É estranho... e perturbador. Aurox normalmente é apenas um garoto bonitinho, por quem eu não me sinto particularmente atraída nem nada, mas de repente... bang !... eu pisco e ele diz ou faz algo tão igual a Heath que faz o meu coração doer.

– Se você não estivesse ligada a Stark, iria querer ficar com Aurox?

Mordi o lábio.

– Não tenho certeza. Eu amo Heath. Sempre vou amar Heath. Mas Aurox não é realmente o meu Heath.

– Você quer dizer que é como quando Kalona se sentia atraído por você, porque a alma da virgem A-ya está aí dentro, e ele reconhecia a presença dela?

Essa comparação me surpreendeu, mas, quanto mais eu pensava sobre ela, mais aquilo fazia sentido.

– Acho que você está certa. Uau, isso na verdade deixa as coisas mais fáceis para mim. Kalona realmente me queria por causa de A-ya, e eu tenho que admitir que sentia uma atração profunda por ele. Mas não era real. Eu não sou A-ya, e eu escolhi não amá-lo. Aurox não é Heath. Ele não precisa escolher me amar... os resquícios de Heath me amam, só isso.

– Eu vou ter que complicar as coisas para você, mas, para ser justa, você precisa saber que Aurox pode amar você também. Travis é a reencarnação do meu único companheiro, Martin. Ele não tem as memórias de Martin. Na verdade, ele é muito diferente do meu Martin, e ainda assim ele é tão eternamente devotado a mim quanto eu sou a ele – Lenobia sorriu com ternura, e os seus olhos se encheram de lágrimas. – Realmente é possível levar o amor com você, e alguns de nós tem sorte o bastante para encontrar esse amor novamente.

– Lenobia, eu estou superfeliz por você, mas realmente você complicou muito as coisas para mim – eu afirmei.

– Zoey, a sua situação já era complicada. Você quer o meu conselho sobre como eu lidaria com isso?

– Claro que sim – eu respondi.

– Pode ser que isso pareça frio ou até egoísta, mas, se eu estivesse no seu lugar, iria decidir com quem eu realmente queria ficar, sem me preocupar com o que os dois garotos queriam. O único modo de você ficar plenamente satisfeita com a sua escolha é se você fizer a escolha pensando em você, não em ninguém mais.

Abaixei a escova e olhei para ela.

– É mesmo tão simples assim?

– Se você conseguir ser honesta consigo mesma e então seguir em frente até o fim com essa honestidade, sim, é – Lenobia respondeu.

– Você me deu bastante coisa para pensar, mas pelo menos agora eu tenho uma direção – eu falei.

– Você tem que amar e ser verdadeira consigo mesma antes que alguém possa amá-la e ser verdadeiro com você.

O sino que sinalizava o fim das aulas soou. Coloquei a minha mão em punho sobre o coração e me curvei respeitosamente para ela.

– Obrigada, Lenobia.

Lenobia retribuiu com o mesmo gesto tradicional e disse:

– Que você seja sempre abençoada, Zoey Redbird.

– Stark, nós precisamos conversar – eu odiei dizer essas palavras provavelmente tanto quanto Stark odiou escutá-las. Afinal, quem não odiaria? Será que algum pai ou mãe, namorado ou namorada, professor ou chefe já começou uma conversa boa dizendo isso?

– Ok, mas eu pensei que a gente ia assistir Big Bang Theory e, você sabe, passar algum tempo juntos e sozinhos – ele tentou dar aquele seu sorriso metidinho.

– Bem, a gente ainda pode fazer isso. Talvez. Se você ainda quiser, depois que a gente conversar.

– Você está me assustando – ele falou.

Eu estendi a mão para ele. Stark a segurou e se sentou perto de mim na cama.

– Eu preciso dizer algumas coisas que provavelmente vão ser difíceis para você escutar, mas você não precisa se assustar.

– Não preciso me assustar porque, não importa o que seja, eu sempre vou ser o seu guerreiro e Guardião?

Ele parecia muito nervoso. Eu entrelacei os meus dedos aos dele.

– Sim, em parte é por isso, mas em parte também é porque eu te amo.

– Ah, ótimo. Eu gosto dessa parte.

– Eu também – eu afirmei. – Mas eu também preciso gostar de você.

– Mas você acabou de dizer que gosta.

– Não, eu acabei de dizer que amo você. E amo mesmo. Mas você tem feito algumas coisas ultimamente de que eu não gosto muito, e nós temos que conversar sobre isso.

– O que você quer dizer?

Eu tinha decidido que, se ia ser honesta comigo mesma, tinha que ser honesta com Stark. Então eu falei a verdade a ele, diretamente, sem rodeios.

– Eu não gosto como você me trata quando Aurox está por perto. Você age feito um babaca possessivo, e quero que você pare com isso.

Ele tentou tirar a sua mão da minha, mas eu não deixei e continuei:

– O ponto é: eu não acho que você seja um babaca possessivo. Eu gosto de quem você realmente é, e quero que você volte a ser aquele cara, o tempo todo.

– Tudo bem. Que seja.

– Não, Stark. Isso não vai dar certo se você não for honesto comigo e consigo mesmo. Você sempre vai ser o meu guerreiro, mas se você ficar todo na defensiva comigo e a gente não puder conversar sobre os nossos problemas, você vai acabar sendo apenas o meu guerreiro e nada mais.

– É isso o que você quer?

– Sério, Stark, pense um pouco. Se eu quisesse isso, por que a gente estaria tendo esta conversa?

– Então você não está terminando comigo?

– Espero que não – eu falei.

Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse se esvaziando. Os seus ombros desabaram e ele ficou olhando fixamente para o chão sob os seus pés.

– Saber que você ama Aurox está me deixando louco, e eu sinto muito se isso me faz agir feito um idiota. Mas eu não sei o que fazer em relação a isso, porque não suporto pensar em você ficando com ele.

– Ok, em primeiro lugar, eu não amo Aurox. Eu amo Heath. Eu sempre vou amar Heath. Você sabe disso.

– Mas Aurox tem a alma de Heath dentro dele.

– Sim, e eu fico feliz que ele tenha, afinal foi isso que salvou Vovó. Eu sempre vou ser grata a Aurox por isso, mas eu não o amo.

– Você não quer ficar com ele? Mesmo? – Stark levantou os olhos do chão e se virou para mim.

– Eu decidi que não quero ficar com ele. Mesmo – eu afirmei.

– Por que não? – Stark perguntou, mas, antes que eu pudesse responder, ele me cortou. – Não... não importa. Eu não quero saber por quê. Só o que importa é que você não quer ficar com ele. Não quero saber mais nada além disso.

Ok, eu tinha a intenção de contar a Stark que eu havia provado o sangue de Aurox, e que realmente era difícil para mim quando eu vislumbrava Heath dentro dele, e que na verdade eu ainda amava Heath e Stark. Mas, mesmo apesar disso tudo, eu tinha decidido que simplesmente não conseguia lidar com mais de um namorado ao mesmo tempo. Mas eu não consegui dizer nada disso porque Stark me puxou para os seus braços.

– Eu estou tão feliz que você me escolheu! – ele sussurrou.

Senti que ele estava trêmulo, então eu o abracei e sussurrei:

– Eu também.

E então ele de repente estava me beijando com um desejo tão quente que eu nem conseguia pensar no que queria dizer. Eu só conseguia pensar no seu toque e em quanto eu o amava.

Foi só mais tarde, quando o sol havia se levantado e Stark estava roncando ao meu lado, com o braço sobre o meu corpo e a lateral do seu corpo pressionada intimamente contra o meu, que a minha mente começou a funcionar de novo, e eu soube que precisava falar com Aurox.


19
Zoey

Não foi difícil tirar o braço de Stark de cima de mim e sair escondida da cama. Stark estava totalmente apagado. Acho que nem a explosão de uma bomba iria acordá-lo. Mesmo assim, fiquei pensando em como a nova capinha do meu celular era brilhante enquanto eu me vestia e saia do quarto na ponta dos pés. Afinal, uma bomba podia não acordar Stark, mas as minhas emoções em turbilhão provavelmente o acordariam.

Felizmente, não havia ninguém por perto. Apesar de estar no meio da manhã, o céu estava com cor de hematoma e havia um aroma de tempestade de primavera. No caminho para o ginásio, percebi que as glicínias plantadas perto do muro da escola estavam brotando com grandes cachos de flores roxas. Então eu espirrei. Sim, tempestades, flores e alergias. A primavera estava chegando a Oklahoma.

Fui até o ginásio passando pelo estábulo e fiz uma pausa no corredor entre os dois prédios, inspirando profundamente o cheiro de cavalo e feno para tentar manter a calma.

Eu só vou ser honesta. Vou magoá-lo mais se eu ficar prolongando isso e o evitando. Heath entenderia.

Eu bufei e dei risada de mim mesma. Não, Heath não entenderia. Ele iria dizer: “A gente pertence um ao outro, amor!”. E ignorar o fato de que eu estava terminando com ele. De novo.

Kalona estava parado sozinho no corredor ao lado da entrada para o porão.

– Zoey, você está acordada a essa hora – ele colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou rapidamente.

Eu não o tinha visto mais desde que ele cortou a cabeça de Dallas e saiu voando com os dois novatos se debatendo em seus braços. Ele não parecia diferente em nada. Acho que eu não deveria esperar isso dele. Mesmo assim, não pude deixar de ter uma curiosidade mórbida.

– Oi. E então, como foram as coisas com os dois novatos?

– Como deviam ser.

– Eles já estão... você sabe, mortos?

Kalona deu de ombros, fazendo suas asas enormes farfalharem.

– Eu os deixei no meio da Pradaria de Tallgrass. Com essas nuvens cobrindo o sol, pode ser que eles durem um dia. Mas certamente não vão durar mais do que isso.

– Você vai cuidar dos corpos deles?

Ele balançou a cabeça.

– Os coiotes vão fazer o serviço por mim.

– Isso é muito frio – eu comentei.

– A justiça normalmente parece fria. Isso não é uma característica que Thanatos e eu criamos. Julgar, condenar e fazer justiça não é agradável. Não é neste país que o símbolo da Justiça é uma donzela cega segurando uma balança?

– Ahn, acho que isso não quer dizer que ela seja fria. Acho que isso quer dizer que a Justiça não deve se basear na aparência de uma pessoa ou em que ela é, mas sim nos fatos.

– Não entendo a distinção que você está fazendo.

– Não importa – eu desisti. – Eu estou procurando Aurox. Você o viu?

– É o turno dele de patrulhar o perímetro da escola. Se você sair pela porta da frente do ginásio, ele deve passar por lá em breve.

– Ok, ótimo. Ahn, eu agradeço se você não contar a ninguém que eu estava procurando...

Kalona levantou a mão, cortando-me.

– Não vou fazer fofocas para o seu guerreiro.

Eu pensei em corrigi-lo e dizer que não era nada disso, que eu só não queria que os novatos ficassem fofocando sobre mim e Aurox, mas a minha boca não conseguiu formular essa mentira, então eu suspirei e agradeci.

– Sim, obrigada – e então saí apressada.

Também não havia ninguém na parte da frente da escola, e eu encontrei um banco não muito longe da porta do ginásio. Enquanto eu estava sentada esperando Aurox, observei as nuvens carregadas se aproximando e pensei no que Kalona havia dito.

Talvez ele estivesse certo. Julgar os outros não era agradável. Já houve um tempo em que eu teria pensado que julgar os outros era errado, mas eu havia concordado com Thanatos em sua condenação. Acho que eu até concordava com a pena que ela havia determinado. Então, será que isso me tornava uma hipócrita quando, no final de tudo, eu me senti mal e enjoada? Ou será que isso me tornava humana? Ou será que isso me tornava obtusa demais, impedindo que um dia eu possa ser uma Grande Sacerdotisa decente?

– Zoey? Está tudo bem?

Eu não escutei Aurox se aproximando, então foi um choque desviar a minha atenção das nuvens carregadas e ver os seus olhos com o brilho do luar. Eu pisquei surpresa e me chacoalhei mentalmente, tentando me concentrar de novo e pelo menos fazer a coisa certa.

– Sim, tudo bem. Eu só preciso conversar com você. É uma boa hora?

– Claro – ele fez um gesto na direção do banco ao meu lado.

– Ah, sim, sente-se.

Ele se sentou e eu tentei não me inquietar nem arrancar o meu esmalte.

– Parece que vai chover – eu disse. – E acho que acabei de ouvir um trovão ao longe.

– Há um cheiro de raios no ar – ele concordou.

Eu relaxei um pouco. Aquilo era algo que Heath definitivamente não diria.

– Eu nunca tinha pensado que raios pudessem ter cheiro, mas você provavelmente está certo. Raios e trovões andam juntos.

– Zo, o que está rolando?

Os meus olhos encontraram os dele. Heath estava definitivamente lá dentro.

– Eu não posso beber o seu sangue de novo.

– Mas você quer – ele argumentou.

– Aurox, ninguém tem tudo o que quer.

– Mas isso não é tudo, é apenas uma pequena parte do todo.

– Se eu realmente bebesse o seu sangue, a gente ia fazer amor. A gente provavelmente ia se Carimbar. Isso não seria uma coisa pequena para mim, nem para você, nem para Stark.

– Então é Stark. É por causa dele que você não quer ficar comigo – Aurox afirmou.

– Não. É por minha causa. Eu não posso ficar com dois caras ao mesmo tempo.

– E você não vai trocar Stark por mim porque eu não sou Heath.

– Eu não vou trocar Stark por você porque já estou comprometida com ele – eu disse com firmeza.

– É porque eu não sou bom o suficiente para você... por causa do modo como eu fui criado... por causa do que eu posso ser.

Coloquei a minha mão na dele.

– Não, Aurox. Por favor, não pense isso. Você não tem culpa de nada disso, e eu nem penso nisso quando estou com você.

– No que você pensa?

Eu sorri, apesar de estar triste, e continuei a falar a verdade para ele:

– Penso em como estou feliz por você estar aqui. Também penso que você e Heath formam uma boa dupla.

– Você sabe que a gente te ama – ele disse.

– Eu sei – falei baixinho e tirei a minha mão da dele. – Sinto muito.

– E como vai ser agora?

– Vamos ser amigos – eu afirmei.

– Amigos – a palavra soou tão sem emoção quando ele a repetiu.

– Sim, e Stark não vai mais agir feito um louco perto de você – eu garanti.

– Zo, isso porque ele não tem nenhuma razão para agir assim – Aurox se inclinou, deu um beijo na minha bochecha e então, parecendo completamente derrotado, disse: – Você poder avisar Kalona que vou conferir o perímetro da escola de novo?

– Sim, claro... – eu falei enquanto ele saía correndo na direção do muro de pedra da escola.

Eu me levantei, sentindo-me pesada e muito, muito cansada. Bem, eu falei a verdade para ele, mas foi péssimo. Tentei não pensar em nada a não ser em dormir, porque a última coisa que eu queria era que Stark acordasse e perguntasse por onde eu andei e o que tinha feito com que eu me sentisse tão mal. Voltei pelo mesmo caminho até o ginásio e pelo corredor que dava na entrada do porão. Kalona não estava lá. Eu suspirei e olhei dentro do ginásio. Ele também não estava lá. Imaginando que ele estava no porão para dar uma conferida rápida nos garotos adormecidos, eu caminhei sem fazer barulho na direção da escada.

– Sim, andei observando Zoey como eu disse que faria.

Quando eu escutei meu nome, parei porque fiquei surpresa. A voz veio da área do estábulo, da porta meio aberta que separava o corredor entre o ginásio e o celeiro.

– E...? Que merda, será que eu tenho que te perguntar tudo?

Então eu percebi quem estava falando sobre mim e me aproximei lentamente, sem acreditar no que ouvia.

– E as cores dela ficaram muito loucas durante o funeral. Mas eu acho que sei por quê. Não tem nada a ver com ela perder o controle do seu temperamento ou dos seus poderes.

– Shaylin, estou perdendo a paciência. Conte logo o que você viu, só isso.

Houve uma longa pausa. Escutei Shaylin soltar um suspiro, e então gelei por dentro quando a Profetisa falou para Aphrodite:

– Eu vi Zoey olhando para Aurox. Muito. As cores dela estavam loucas. Isso me fez pensar... Então, quando ela e Aurox foram até o refeitório depois do círculo, eu os segui.

– Caraca, Shaylin! Você não é uma Profetisa, você é uma superespiã! – Aphrodite exclamou, rindo. – Diga que Z. e o menino-touro se pegaram.

Mordi o lábio para não gritar.

– Quase. Os dois definitivamente estão atraídos um pelo outro. Ela sugou sangue do dedo dele.

– Para Zoey, isso é praticamente a mesma coisa do que se pegar. Caramba! Isso é muito parecido com o que eu vi. Então, deixe-me adivinhar, as cores dela ficaram loucas? Indicando confusão, frustração e irritação?

– Exato. Principalmente depois que ela...

Eu já tinha ouvido o bastante.

– Calem a boca! – eu gritei. A pedra da vidência no meu peito estava ardendo tanto quanto o meu rosto vermelho. Eu abri a porta com força, fazendo com que ela batesse contra a parede.

– Oh-oh – Aphrodite disse.

– Zoey! Não é o que você está pensando! – Shaylin saiu na defensiva, afastando-se de mim quando eu entrei no aposento.

– Sério? Como isso não é o que estou pensando, se eu acabei de ouvir você contar a Aphrodite que andou me espionando! – eu não pensei. Eu reagi. Segurando a pedra da vidência ardente, levantei a outra mão e pensei como eu queria tanto que Shaylin caísse no chão.

Uma bola de fogo azul saiu da minha mão e derrubou Shaylin. Ela caiu de costas, ofegante e chorando.

Não liguei para o choro dela. Eu me senti bem em fazer com que ela caísse de bunda no chão. Shaylin mereceu.

– Pare! Agora! – Aphrodite entrou na minha frente.

Eu franzi os olhos.

– Você estava falando sobre mim pelas minhas costas!

– E eu vou explicar por que em um segundo. Primeiro, você precisa cair em si. Controle essa merda louca que está rolando com você e acalme-se. Agora – ela olhou sobre o ombro para Shaylin. – Volte já para o porão.

Ainda chorando, Shaylin se levantou com dificuldade e passou correndo por mim.

– E então, o que ela é, a sua pequena Profetisa particular?

Em vez de me responder, Aphrodite observou Shaylin indo embora. Então ela colocou as mãos nos quadris e me encarou.

– Sério? Você quer falar merda para mim depois de usar essa maldita pedra para machucar Shaylin? Você perdeu completamente a cabeça.

– Pedra? – eu pisquei surpresa para ela e então olhei para o meu peito, percebendo que eu estava segurando a pedra da vidência com tanta força que ela estava fazendo a palma da minha mão doer. Assim que eu senti a dor, a pedra se resfriou. Eu a soltei. Sentindo-me confusa, tentei manter o foco no que tinha me irritado: Shaylin espionando a centra entre mim e Aurox. – Eu não estou falando sobre a pedra e não estou falando merda. Quero saber o que você pensa que está fazendo para mandar que eu seja seguida por aí.

– Eu tive uma visão. Era do seu ponto de vista. Você estava fazendo algumas coisas que Shaylin viu você fazer com Aurox.

– Quando você teve essa visão?

– Uns dias atrás. Não importa. O que importa é que...

– Não importa que você tenha escondido de mim uma visão sobre mim por dias?

– Não, o que importa é o motivo. Foi porque eu também vi você perdendo o controle sobre o seu maldito temperamento, sem conseguir controlar essa maldita pedra. E foi exatamente isso o que acabou de acontecer.

– Não, não foi isso o que acabou de acontecer. Eu controlei a maldita pedra. Eu quis derrubar Shaylin, e a pedra fez exatamente o que eu queria.

Aphrodite balançou a cabeça de um lado para o outro.

– Você prestou atenção no que está dizendo? Claro, você deveria ficar irritada com o que acabou de ouvir. Mas a Zoey normal nunca ia querer machucar Shaylin. Aliás, a Zoey normal também nunca falaria “merda” ou “maldita”.

– A Zoey normal nunca ia imaginar que uma das suas melhores amigas ia ficar falando dela pelas costas e mandando espioná-la!

– Eu ia te contar sobre a visão. Eu ia te contar sobre Shaylin. Eu só precisava esperar o momento certo – Aphrodite argumentou.

– Quer saber, Aphrodite? O momento certo não era depois de você falar sobre mim e me espionar. Ah, que se dane. Tô fora – comecei a me afastar dela, mas Aphrodite entrou na minha frente de novo.

– Z., tem mais coisas rolando aqui do que apenas o fato de você estar irritada comigo. Acho que a magia antiga está afetando você, e não de uma forma boa. Nós precisamos conversar sobre isso. Você tem que me deixar contar o resto da minha visão.

– Estou tão cansada de ouvir o que eu tenho que fazer. Saia da frente, Aphrodite – o meu peito estava ardendo quando eu forcei a passagem.

Ela cambaleou para trás, fazendo uma exclamação de choque. Eu não me importei. Já estava cheia dela.

Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que eu tinha que ir. Se eu estivesse com as chaves do meu Fusca, teria dirigido até a casa de Vovó, mas as chaves estavam lá no meu quarto e eu não queria ver Stark naquela hora e contar a ele porque eu estava tão perturbada. Que inferno, se aquilo não tivesse sido durante o dia, eu já teria trombado com Stark, graças à ligação idiota que a gente tinha.

Eu precisava de tempo. Eu precisava de espaço. Eu sentia como se a raiva estivesse fervilhando embaixo da minha pele. Eu não podia fugir disso porque eu não podia fugir de todo mundo me irritando e me dizendo o que fazer. Eu precisava pensar sem ficar sendo incomodada constantemente com chatices!

Mudei de direção, afastando-me dos dormitórios, até chegar ao muro que circundava a escola. O muro que Aurox patrulhava. Que droga! Eu também não queria vê-lo.

Foi então que eu decidi mandar pro inferno os policiais e a sua prisão domiciliar. Eu não tinha matado o prefeito e, se eu precisava dar uma volta fora do campus , eu ia dar uma volta fora do campus ! Comecei a correr para a parte leste do muro, onde havia uma passagem escondida, que eu sabia que não ficava muito longe dali.

Shaylin

Shaylin tentou parar de chorar. Ela não era uma chorona. Ela estava acostumada a não sentir pena de si mesma. Mas desta vez era diferente. Primeiro, aconteceu aquela coisa horrível com Dallas e os dois novatos. Ela sabia o que ia acontecer. Shaylin tinha visto a morte deles nas cores de Thanatos. E ela havia ficado de boca fechada e acreditado que Thanatos estava fazendo a coisa certa.

Depois Shaylin fez exatamente o contrário: ela tinha aberto a boca e fofocado sobre os assuntos pessoais de Zoey porque sentiu que estava fazendo o certo. Bem, Shaylin também tinha sentido que estava se encaixando na Morada da Noite e fazendo um bom trabalho com o seu dom.

Mas isso não podia ser verdade, pois ela se sentiu péssima depois que Dallas foi morto e que a novata mais poderosa do mundo a fez cair de bunda no chão.

Ela tinha se atrapalhado totalmente. Duas vezes.

Shaylin se encolheu no canto escuro do porão onde ela tinha montado a sua cama. Ela se sentou com os joelhos dobrados e o seu travesseiro em cima deles. Ela pressionou o rosto contra a fronha macia para abafar o choro. Mas ela não precisava ter se preocupado. A maioria dos novatos vermelhos dormia durante o dia como se estivessem mortos.

Era isso o que eu devia estar fazendo também, ela repreendeu a si mesma. Eu devia estar dormindo, e não falando com Aphrodite sobre Zoey. Agora elas estão bravas uma com a outra e também comigo! Eu nunca vou entender essa coisa de Profetisa.

Shaylin não pensou no fato de que Aphrodite aparentemente estava certa em relação ao problema do controle da raiva de Zoey. Naquele momento, não importava que Aphrodite estivesse certa. Naquele momento, só o que importava era que parecia que o mundo dela – e os seus amigos – estavam entrando em colapso.

– Ei, Shaylin, o que aconteceu?

Abafando o choro, Shaylin levantou o rosto e viu Nicole em pé ao seu lado, esfregando os olhos, com o cabelo desgrenhado, como se ela fosse uma sonâmbula.

– Na-nada. E-eu estou bem – ela sussurrou e então enxugou o rosto na fronha, forçando-se a parar de chorar.

Nicole sentou ao lado dela.

– Não, você não está bem. Você está se acabando de chorar.

– Shhh – Shaylin pediu silêncio a ela e olhou em volta para conferir se todo mundo ainda continuava dormindo. – E-eu estou bem.

Nicole se aproximou mais dela, de modo que os seus ombros se tocaram, e sussurrou:

– Fique tranquila. Ninguém vai ouvir. Conte o que aconteceu.

Shaylin enxugou os olhos de novo e então falou em voz baixa:

– Eu acho que me atrapalhei usando a minha Visão Verdadeira.

– Ei, você é boa usando a sua Visão. Você viu que eu mudei – Nicole sorriu para ela. – Você devia confiar mais em si mesma.

– Eu devia aprender quando é a hora de abrir a minha boca idiota e quando é a hora de manter a minha boca idiota fechada – Shaylin afirmou. Ela enfiou a mão dentro da sua bolsa, pescou um lenço de papel amassado e assoou o nariz.

– Você não é idiota.

– Se você soubesse que Thanatos ia mandar Kalona cortar a cabeça de Dallas, teria dito alguma coisa?

Nicole fez uma careta.

– Você não pode me perguntar isso. Não consigo ser imparcial em relação a Dallas.

– Você ainda o ama?

Nicole balançou a cabeça rapidamente.

– Não, esse é o ponto. Eu nunca o amei de verdade, e eu sabia como ele era perigoso. Então eu não posso ser imparcial em relação à sua morte.

Enquanto a ouvia, Shaylin deu um pequeno soluço. Nicole colocou o braço ao redor dela.

– Se você está mal por causa do que aconteceu com Dallas, não fique.

– Não foi só isso, apesar de isso ter sido ruim. Eu falei com Aphrodite sobre as cores de outra pessoa, e eu devia ter ficado fora disso.

– Mas Aphrodite também é uma Profetisa. Ela é meio maldosa e louca, mas ainda assim é uma Profetisa. Acho que é normal uma Profetisa conversar com a outra sobre coisas como a sua Visão Verdadeira.

– Eu também pensava isso. Agora não tenho tanta certeza. Eu queria saber exatamente qual é a coisa certa a fazer.

– Acho que várias vezes não há uma única coisa certa a fazer em determinadas situações.

Shaylin levantou os olhos para Nicole.

– Você é muito inteligente.

– Que nada, é só que eu já cometi um monte de erros – Nicole sorriu para ela. – Mas agora eu não errei. Consegui fazer você parar de chorar.

Shaylin tentou sorrir.

– Conseguiu mesmo. Obrigada. E, aproveitando, as suas cores se tornaram muito bonitas.

– Viu só, se você acha que as minhas cores são bonitas, isso prova que você é uma grande Profetisa.

Shaylin estava sorrindo para Nicole quando a novata se inclinou devagar e a beijou nos lábios com delicadeza. Shaylin congelou e arregalou os olhos de choque. Então Nicole se afastou dela e rapidamente tirou o braço do ombro de Shaylin.

– Desculpe – Nicole sussurrou. Mesmo na escuridão do porão, Shaylin percebeu que o rosto de Nicole ficou vermelho. – Não sei por que eu fiz isso. Sinto muito.

Shaylin continuou olhando para ela, observando a beleza suave das suas cores e sentindo ainda o calor macio dos seus lábios.

– Não precisa se desculpar – então ela colocou os braços em volta da cintura fina de Nicole, encostou a cabeça no ombro dela e disse: – Você fica comigo e me abraça?

Nicole colocou o braço de volta nos ombros dela.

– Shaylin, querida, eu fico com você para sempre se você quiser.


20
Kalona

Dez minutos mais cedo

Kalona estava parado perto da entrada do porão esperando Aurox voltar e pensando que o garoto provavelmente ia demorar um pouco, já que Zoey tinha ido procurá-lo, quando sentiu uma coceira quente e familiar sob a pele.

– Erebus – ele resmungou.

– Você disse algo?

Kalona olhou rapidamente para o corredor.

– Aphrodite, o que posso fazer por você? – ele não colocou a mão em punho sobre o coração nem se curvou para ela. Sim, a garota era uma Profetisa de Nyx, mas também era a humana mais irritante que ele já havia conhecido. E Kalona já conhecera muitos humanos.

– Preciso falar com Shaylin. Ela está no porão, certo?

– Todos os novatos vermelhos estão no porão – ele respondeu.

– Menos os dois que você largou no meio do nada para morrerem.

– Você gostaria de fazer alguma consideração a respeito disso?

– Não, só estou afirmando o óbvio. Vou acordar Shaylin. Eu agradeceria se você pudesse nos dar um pouco de privacidade para conversar.

– Como quiser, Profetisa. O seu guerreiro está a uma distância em que pode ouvir os seus gritos, no caso de haver problemas lá embaixo?

– Não preciso de Darius para lidar com os novatos vermelhos. Eu tenho isto aqui – ela deu um tapinha na sua bolsa.

– Você acha que pode apartar uma briga com uma bolsa? – ele quase riu.

– Não, eu acho que posso apartar uma briga com isto aqui – Aphrodite abriu a sua bolsa de couro. Kalona espiou dentro dela e viu um pequeno cilindro preto.

– Você vai jogar esse recipiente de perfume em alguém?

– Ah, por favor, entre neste século. Não é perfume, é um spray de pimenta. Eu estou morando em uns túneis no centro da cidade, embaixo de um porão. Os distritos Brady, Greenwood e outros lá perto estão passando por uma reforma adorável, mas vale a pena andar protegida e estar preparada para tudo.

– Então eu vou lhe dar a privacidade que deseja – ele se curvou para ela nessa hora. Aphrodite era tão irritante que ele quase se esquecia de como ela também podia ser divertida.

Com a sua mão com unhas pintadas de rosa, Aphrodite fez um gesto para que ele fosse embora antes de entrar no porão.

Kalona pensou em chamá-la e contar que Zoey estava ali perto com Aurox, mas então ele pensou melhor. Realmente seria divertido ver o que aconteceria se Aphrodite encontrasse Zoey nos braços de Aurox.

Kalona estava rindo quando saiu do ginásio, passando através do estábulo. Ele parou do lado de fora, recompôs-se e tentou descobrir por qual direção o bastardo do seu irmão iria chegar. Não demorou muito. Receando o encontro, mas resignado por ser inevitável, Kalona se dirigiu ao Templo de Nyx.

Ele não tentou entrar. Na verdade, ele desviou os olhos quando passou pela grande porta de madeira e deu a volta pelo edifício de pedra até a parte de trás do templo. Ele esperava que o seu irmão iria se manifestar, do seu jeito tipicamente espalhafatoso, onde quer que Kalona estivesse. E o prédio iria bloquear a sua luz o suficiente para evitar que todos os professores corressem para lá.

Kalona não teve que esperar muito. A bola de luz do sol que se materializou acima do solo era, de fato, espalhafatosa, mas Kalona não cedeu ao impulso de encobrir os olhos. Erebus saiu dos raios ofuscantes, assentindo e sorrindo ironicamente.

– Parabéns por atender rapidamente ao meu chamado, irmão – Erebus disse.

– Fico perplexo como você finge que eu quero alguma coisa com você. Quem veio até mim foi você. Como diriam no mundo moderno, vivo há séculos sem ligar para você e sem nem pensar em você.

– Sem nem pensar em mim? Mesmo? Pois eu acho que, desde a sua Queda, os seus pensamentos se voltam com frequência para o Mundo do Além.

– Você não é Nyx, irmão. Eu também fico perplexo como você confunde o meu interesse pela Deusa com interesse por você.

Erebus sorriu.

– Pois eu posso acabar com a sua perplexidade facilmente. Nyx e eu somos inseparáveis. Os interesses dela são os meus, assim como os meus são os dela.

– Inseparáveis? Mesmo? – Kalona fez uma cena, fingindo que estava procurando alguém perto do seu irmão. – Será que a Deusa está se escondendo na sua bola de sol? Ah, não. É claro que ela não estaria aí. Pelo que me lembro, a Deusa prefere o toque frio e suave da luz da lua em vez da luz bruta do sol.

– Nyx me enviou aqui!

Kalona sorriu devagar, satisfeito.

– Então seja bem-vindo, irmão, como o moleque de recados da Deusa.

Erebus desfraldou suas asas. Elas se abriram ao redor dele e brilharam como a luz do sol refletida em barras de ouro.

– Eu não vim como um moleque de recados, mas sim como um imortal, Consorte da Deusa da Noite, e eu trago um aviso dela!

– Impressionante – Kalona falou sarcasticamente. – Mas se você não parar de cintilar e de gritar, o seu aviso vai ser testemunhado por todo o centro de Tulsa.

Erebus fechou as asas contra as costas. A sua voz saiu sem aquele volume sobrenatural, mas a sua expressão não perdeu em nada a sua presunção de imortal.

– Você já capturou Neferet?

– Com certeza você me observa o bastante para já saber a resposta a essa pergunta.

– Então você ignorou o édito de Nyx.

– Eu não ignorei nada. Estive ocupado cumprindo os meus deveres como guerreiro Juramentado da Sacerdotisa desta Morada da Noite – Kalona afirmou.

– Você está fora de forma se o fato de executar três crianças pode distraí-lo tanto a ponto de ignorar a ordem de Nyx e de falhar ao perceber que a magia antiga está se manifestando no mundo moderno.

Kalona se recusou a morder a isca de Erebus. Ele não fez nenhum comentário sobre Nyx e apenas disse calmamente:

– Sgiach lida com magia antiga há séculos.

– Sim, Kalona, mas Sgiach é uma Rainha ancestral que vem lidando com magia antiga por todos esses séculos na Ilha de Skye, um lugar dedicado a preservar a magia antiga há muito tempo. Tulsa, em Oklahoma, não é a Ilha de Skye, e não há nenhuma Rainha vampira ancestral aqui com experiência em usar a magia antiga – Erebus falou em um tom professoral, como se estivesse dando uma aula para algum idiota cabeça oca.

– Sei exatamente onde eu estou e quem está comigo. Os meus atos são corretos, ao contrário dos seus. Eu decapitei um vampiro que foi condenado por tentativa de assassinato pela minha Grande Sacerdotisa. Ela não usou magia antiga. Ela simplesmente invocou a lei ancestral. E o vampiro que eu executei não era uma criança – Kalona acrescentou, não gostando do tom de seu irmão, como sempre.

– O garoto mal tinha dezoito anos.

– Se você quer discutir a execução de um assassino confesso, então discuta com Thanatos, o Conselho da Escola, duas Profetisas de Nyx e Zoey Redbird.

– Mas nenhum deles levantou a espada que cortou a cabeça do vampiro, assim como nenhum deles levou dois novatos para a morte certa – Erebus rebateu.

– Eu sou guerreiro Juramentado de Thanatos. Se ela me dá alguma ordem, eu tenho que obedecer.

– É uma pena que você não tenha demonstrado esse tipo de lealdade cega para Nyx quando era guerreiro Juramentado dela – Erebus falou.

Kalona encontrou o olhar âmbar de seu irmão sem se abalar.

– Eu aprendi com os meus erros do passado. E você, aprendeu?

Erebus desviou o olhar.

– Dê logo o aviso que você veio dar e desapareça. Você me cansa – Kalona disse.

– Muito bem, você está avisado de que a magia antiga foi despertada quando leis ancestrais foram invocadas. Nyx adverte que vocês estão lidando com forças que podem não ser capazes de controlar.

– Nyx não deveria dizer isso a Thanatos? Foi a Grande Sacerdotisa dela que começou a lidar com essas forças.

– Ainda é você quem pode ser o fiel da balança em uma batalha entre Luz e Trevas. A Deusa já viu isso acontecer antes perto de você. Os Raven Mockers foram feitos com magia antiga.

Kalona sentiu uma terrível punhalada de culpa, mas disse:

– Os meus filhos foram feitos de estupro e ódio.

Erebus assentiu solenemente.

– Sim. Magia antiga.

– Nyx controla a magia antiga! – Kalona exclamou.

– Você se tornou tão iludido, tão arrogante, que acredita que pode lidar com o mesmo tipo de poder que a Deusa?

– Eu não tenho nenhuma ilusão! Minha mente nunca esteve tão clara desde que eu Caí – Kalona avançou sobre Erebus. – E a minha arrogância não é nada comparada à sua, irmãozinho. Sem mim para dar equilíbrio, é você que acredita que é tão poderoso quanto Nyx.

– Eu estou falando justamente de equilíbrio, irmão. Os touros são magia antiga, e eles deveriam estar eternamente em combate – Erebus afirmou.

– Eu não tenho nada a ver com o touro branco e o touro preto.

– Você acredita mesmo nisso? Você esteve ao lado dela por tempo o bastante para saber que a magia antiga é tão traiçoeira quanto poderosa. Seja sábio! Pense bem! Tome cuidado com os poderes que estão sendo despertados antes que seja tarde demais. Este é o aviso da Deusa!

Kalona franziu os olhos e se virou para outro lado quando a bola de luz do sol engolfou Erebus e desapareceu, deixando uma espécie de purpurina dourada irritante que o imortal teve que limpar das suas próprias asas.

– Nyx! – Kalona falou para o céu. – Ele me chama de arrogante e então desaparece em uma explosão solar de brilho dourado. Eu não entendo como você continua a suportar a presença vaidosa dele!

Uma risada familiar, que sempre fez Kalona se lembrar de uma lua cheia avermelhada, ecoou ao redor de Kalona. Ele fechou os olhos por causa da dor da ausência dela, enquanto a esperança acelerava as batidas do seu coração.

– Você me observa. Eu sei que você me observa – Kalona sussurrou.

A risada esvaneceu. Kalona abriu os olhos. Sentindo-se como se estivesse carregando um grande peso, ele começou a caminhar. Ele precisava voltar para zelar pelos novatos. Isso era uma coisa que ele podia fazer, e fazer bem.

– Nenhum outro novato vai conseguir fazer nada estúpido para depois ser condenado... Não enquanto eu zelar por eles – ele falou seus pensamentos em voz alta.

O que Kalona não disse e não gostou nem de admitir em silêncio para si mesmo foi que ele não conseguia tirar da cabeça os gritos de misericórdia dos dois novatos. Decapitar o vampiro não tinha sido difícil. Dallas tentara assassinar uma vampira e havia sido condenado justamente. Eram os dois novatos que o assombravam. Eram garotos que apenas fizeram uma escolha insensata e seguiram o líder errado, ele pensou.

– Compaixão.

A palavra sussurrada fez Kalona parar.

– Nyx?

– Compaixão.

A palavra foi repetida. Ela foi falada em um tom muito baixo para que Kalona tivesse certeza, mas o afeto, o amor infinito contido nela... Só podia ser Nyx. E então Kalona percebeu onde ele havia parado. Ele estava diante da porta de madeira do Templo de Nyx.

A porta de madeira que havia se transformado em pedra sob o seu toque quando a sua Deusa negou que ele entrasse.

Devagar, como se estivesse atravessando os séculos de espera por ela, Kalona levantou a mão. Ele colocou a palma da mão contra a porta e esperou que ela se transformasse em uma pedra inflexível.

A porta continuou sendo de madeira.

A mão de Kalona tremia quando tocou a maçaneta. Ele a girou e empurrou, e a porta de madeira se abriu, fazendo um som de suspiro de mulher.

Kalona entrou no saguão do Templo de Nyx. Ele ouviu água corrente, mas mal olhou para a fonte de ametistas reluzentes que ficava em um nicho na grossa parede de pedra. Ele passou por baixo de um portal em arco e entrou no coração do templo da Deusa.

O aroma de baunilha e lavanda das velas preenchiam o ambiente com uma fragrância doce e inebriante. Elas estavam em candelabros de ferro suspensos do teto. Mais velas aromáticas estavam em outros candelabros independentes em formato de árvores que ficavam perto das paredes. Candeeiros com o formato de uma graciosa mão de mulher estavam acesos nos cantos do aposento. Uma chama ardia em uma reentrância no chão de pedra. Kalona quase não reparou em nada disso. O seu único foco estava na mesa de madeira antiga no centro do templo. Em cima dela, havia uma primorosa estátua de mármore de Nyx. Kalona avançou de modo hesitante e se ajoelhou diante da estátua. Ele levantou os olhos para a estátua. Ela parecia brilhar. Kalona percebeu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Com uma voz abafada pelas lágrimas, ele falou para ela:

– Obrigado. Eu sei que não mereço me ajoelhar aos seus pés. Pode ser que eu não mereça nunca. Não depois do que eu fiz para nós dois. Mas obrigado por permitir a minha entrada no seu templo – então Kalona abaixou a cabeça e ficou chorando, ajoelhado diante da sua Deusa, por um longo tempo.

Neferet

Neferet se encolheu toda, abraçando os filamentos de Trevas que ainda a cobriam, e então reviveu o final de sua jornada.

Cascia Hall era como os humanos chamavam a escola particular que havia sido construída no meio do centro de Tulsa, naquela terra que dizia tanto a Neferet. A escola humana, apenas para meninos, é claro, havia sido recentemente fundada pelo ramo Agostiniano do Povo da Fé. No ano de 1927, ela não estava à venda. Mas esse fato não preocupou Neferet. O Conselho Supremo não estava pronto para comprar outra escola nos Estados Unidos – pelo menos não na cidade de Tulsa, Oklahoma, que existia em 1927.

Neferet sabia que o tempo estava a seu favor. Nos setenta e cinco anos que levaram para que ela manipulasse, intimidasse, conduzisse e influenciasse o Conselho Supremo a fazer uma oferta para os monges Agostinianos que eles não pudessem recusar, além de indicá-la como a Grande Sacerdotisa da recém-adquirida Morada da Noite de Tulsa, Neferet descobriu a sua verdadeira natureza.

Ela era a Tsi Sgili. Não, ela era mais do que uma simples história de fantasmas dos nativos americanos. Ela era uma poderosa Grande Sacerdotisa cujos dons eram muito maiores do que pareciam. Neferet era a Rainha Tsi Sgili.

Não era de se estranhar que ela tivesse sido tão atraída para Oklahoma. Foi através do povo Cherokee que se fixara lá que Neferet descobriu um aspecto escondido do seu dom intuitivo. Ela não só conseguia ler as mentes das pessoas, como também absorver a sua energia. Mas apenas no momento das suas mortes.

Ela aprendera isso com a velha mulher. Neferet tinha feito mais do que roubar os seus pensamentos enquanto ela morria. Ela havia absorvido o poder da anciã.

A morte se tornou uma droga viciante, e Neferet nunca conseguia ficar satisfeita.

Ela seguira os ecos na mente da idosa e começou a fazer perguntas sobre a Tsi Sgili.

Foi assim que ela aprendeu a própria história. Uma Tsi Sgili vivia afastada da sua tribo. Elas eram poderosas e tinham prazer com a morte. Elas se alimentavam da morte. Elas podiam matar com as suas mentes. Isso era o ane li sgi que a velha mulher havia pensado logo antes de morrer: uma morte causada pela mente de um ser poderoso.

O marido da velha Cherokee tinha inadvertidamente ensinado Neferet a usar melhor o seu dom. Ele foi menos corajoso do que a sua mulher. Pensando em se salvar, ele acabou se abrindo para Neferet. Através das lembranças que ele compartilhou com ela por vontade própria, Neferet aprendeu muito mais sobre a Tsi Sgili. Ela se alimentou das histórias tribais que ele tinha em sua memória e descobriu que era possível entrar em uma mente e fazer as batidas do coração da pessoa pararem enquanto ela se alimentava dos pensamentos, da energia e do poder da vítima, até que ela estivesse completamente seca. Drenar a energia do corpo era muito mais satisfatório do que simplesmente drenar o sangue. E muito mais efetivo.

Como Neferet tinha ganhado mais poder, também começou a sonhar mais com o imortal alado, Kalona. Ele fazia amor com Neferet enquanto ela dormia. Não da forma como os seus amantes inadequados humanos ou vampiros haviam tentado. Kalona possuía o seu corpo e usava a dor como prazer, e o prazer como dor.

Por todo esse tempo os seus sussurros pintaram imagens de um futuro onde eles reinariam como deuses sobre a Terra e anunciariam uma nova era de iluminismo para os vampiros. Onde ela era a sua Deusa e ele era o seu Consorte ardoroso, poderoso e sedutor.

– Mas primeiro você precisa me libertar – ele havia dito enquanto o seu delicioso fogo frio queimava o corpo dela. – Siga a canção até Tulsa, e então você vai completar a profecia e encontrar um meio de me libertar!

Neferet o escutou. Ah, mas ela encontrou muito mais do que um meio de libertá-lo. Ela descobriu como libertar a si mesma!

Ela não tinha compreendido totalmente até tomar posse da sua Morada da Noite em Tulsa. Havia um poder naquela terra que ressoava dentro dela. Estava lá em 1927, e continuou lá depois da virada do século vinte e um.

A terra vermelha a tinha atraído com o seu poder ancestral, mas foi a morte da sua primeira novata que de fato selou o seu destino.

É claro que Neferet já havia testemunhado a morte de muitos novatos antes de se tornar a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Frequentemente ela era chamada para suavizar a passagem de um novato morrendo com o dom do seu toque. Neferet era respeitada pela sua habilidade de acalmar um novato que estava rejeitando a Transformação. Nenhum vampiro nunca imaginou que ela tirava muito mais do que dava. Mas os novatos sabiam disso. Nos seus últimos momentos, enquanto Neferet os segurava em seus braços, eles percebiam que ela se alimentava da sua energia. É claro que nessa hora eles estavam longe de serem capazes de dividir essa informação com qualquer um.

Então, quando a jovem quarta-formanda que havia adotado o nome de Crystal começou a tossir o seu sangue vital, no meio da primeira aula de Equitação de Lenobia na nova Morada da Noite de Tulsa, Neferet foi chamada imediatamente – não apenas porque ela era a Grande Sacerdotisa, mas porque ela era amplamente conhecida por ser capaz de suavizar a dor de quem estava morrendo.

– Afastem-se! Abram espaço! Lenobia, leve os novatos para o ginásio e peça para Dragon Lankford trazer guerreiros e uma maca para a garota – Neferet ordenou quando entrou apressada no estábulo. Então ela voltou sua atenção para Crystal. A novata havia desabado no chão de areia e terra da arena e estava tendo convulsões, sangrando pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.

Neferet não prestou atenção no sangue nem na lama. Ela colocou a novata em seus braços, confortando-a com seu toque mágico, enquanto começou a entrar na mente de Crystal, absorvendo a sua energia vital minguante. Neferet estava preparada para a onda de poder que vinha com a absorção da força vital. Mas ela não estava preparada para o dom puro e delicioso que veio junto com a morte da sua primeira novata.

Na sua toca, o corpo de Neferet estremeceu de prazer ao reviver aquele momento poderoso.

Crystal levantou os seus olhos ensanguentados para ela.

– Não! – ela tossiu, engasgou e conseguiu gritar: – Eu não estou pronta para morrer!

– É claro que está, minha querida. Chegou a sua hora. Eu estou aqui.

– Você não vai me deixar? – a garota suplicou, chorando.

– Você não vai me deixar – Neferet sussurrou quando entrou na mente de Crystal.

A força vital de Crystal inundou Neferet. Tão pura, tão forte, tão doce que era como se a novata não estivesse morrendo, mas sim se transformando em um ser de luz e poder que agora viveria dentro de Neferet.

Neferet se curvou reverentemente sobre o corpo da garota moribunda, aceitando esse novo dom que recebeu junto com a Morada da Noite de Tulsa.

Os guerreiros pensaram que Neferet ficou arrasada com a morte da primeira novata na sua própria Morada da Noite, e que por isso ela havia se curvado sobre o corpo de Crystal, chorando histericamente.

Eles não sabiam que as lágrimas de Neferet eram de alegria, e que ela estava chorando porque finalmente havia reconhecido o seu destino. Rainha Tsi Sgili era um título modesto. Na verdade, ela deveria ser chamada de Deusa Tsi Sgili, pois havia se tornado imortal e um dia iria ocupar o seu lugar entre os deuses e ser venerada como tal!

Mas o seu dom não acabava aí. Mesmo antes de Neferet cumprir a profecia Cherokee e libertar Kalona, os novatos da sua Morada da Noite começaram uma metamorfose junto com ela.

O corpo de Neferet se contorceu. A sua respiração se acelerou enquanto ela prosseguia através dos reinos do tempo e das camadas do seu inconsciente.

Os novatos que morriam na sua Morada da Noite renasciam diferentes, ligados a ela por Trevas e sangue. Neferet acreditava que havia gerado um novo tipo de exército, além de uma nova espécie de vampiros. Essas novas criaturas iriam protegê-la e servi-la quando ela e o seu Consorte governassem a nova era dos vampiros.

Então Zoey Redbird havia sido Marcada, e o que se seguiu foi um passo em falso atrás do outro, uma irritação depois da outra, uma derrota após a outra. Neferet odiava aquela novata e os seus amigos rebeldes com uma paixão que obscurecia todas as suas outras paixões.

Zoey Redbird era a razão pela qual Neferet estava escondida em uma toca, vestida apenas de Trevas e sangue.

Uma deusa não deveria sofrer esse tipo de aborrecimento! Uma deusa não deveria ser impedida de cumprir o seu destino divino!

Como em resposta ao seu turbilhão de emoções, o céu fora da toca rugiu com trovões, e um raio atingiu a terra com uma força que reverberou pela pele de Neferet.

Neferet, a Rainha Tsi Sgili, abriu os seus olhos.

– Eu fui tão idiota! Eu sou uma imortal. Ninguém pode ofuscar a minha majestade a não ser que eu permita. E não vou mais permitir! Mundo, prepare-se para me venerar!

Raios e trovões aplaudiram Neferet e a chuva acariciou o seu corpo, enquanto ela se preparava para sair de seu esconderijo em direção ao futuro, renascida, pronta para abraçar o seu destino.


21
Zoey

No começo, eu não sabia para onde estava indo. Eu só precisava sair dali. Eu me enfiei através da passagem escondida no muro e dei a volta pelo lado sul da escola até chegar rapidamente na Utica Street. Olhei para a minha direita, pensando nas minhas opções. A Utica Square ficava a apenas uma quadra dali. Era domingo de manhã, mas o Starbucks provavelmente estava aberto. Eu podia pedir um daqueles cappuccinos ou frappuccinos com milhões de calorias, sentar lá fora e tentar descobrir o que havia acontecido com a minha vida.

Não. Eu não queria ver ninguém. Eu não queria falar com ninguém. Eu não queria ter que lidar com os olhares que as minhas tatuagens iriam provocar nas pessoas.

Eu não queria lidar com nada nem ninguém.

Um trovão ressoou ao longe, e eu levantei os olhos para o céu, que estava escurecendo.

– Vá em frente. Pode chover em cima de mim. O meu dia não pode piorar muito – eu falei comigo mesma quando atravessei a rua.

Sim, eu estava irritada.

Eu não conseguia acreditar no que Aphrodite e Shaylin tinham feito. Elas deveriam ser minhas amigas! Bem, pelo menos Aphrodite deveria ser minha amiga. Eu pensava que Shaylin e eu estávamos ficando amigas. Quero dizer, a gente havia tido aquela conversa na cozinha dos túneis. Ela se abriu para mim em relação ao uso da Visão Verdadeira. A gente inclusive falou sobre como o seu dom podia ser invasivo. Caramba, a gente tinha feito um trato! E esse trato não tinha nenhuma parte em que ela me espionava e depois fofocava para Aphrodite como uma garotinha do ensino fundamental.

O meu rosto ficou quente só de pensar nela observando a cena entre mim e Aurox no refeitório. Que inferno, o meu corpo inteiro ficou quente! Não era de se espantar que eu a tivesse derrubado no chão. Aphrodite ficou toda chocada com o que eu havia feito, mas foi Aphrodite quem armou toda aquela coisa de espionagem.

Será que Aphrodite era mesmo minha amiga? Ela definitivamente era uma bruxa do inferno quando eu a conheci. Será que ela tinha mudado, ou será que eu esqueci quem ela realmente era e fiquei cega, sem enxergar o que eu não queria ver? Será que eu estava apenas acreditando no que eu queria acreditar em relação a ela?

Que inferno! Será que Aphrodite ainda continuava apenas atrás de poder e popularidade? Será que essa história de espionagem era só uma parte do plano dela para me enfraquecer e depois tomar o meu lugar?

Houve um estrondo no céu, como que ecoando as minhas emoções.

O meu peito queimava quando atravessei outra rua e fiz uma pausa, percebendo que eu havia chegado perto de casas caprichosamente conservadas. Afe, eu havia andado até o Woodward Park. Eu quase me virei e fui embora. Era domingo, quando as pessoas normalmente se aglomeravam lá para tirar fotos com flores, árvores e tal, mas, quando eu olhei para o parque, parecia vazio. Obviamente, a tempestade que se aproximava havia mudado os planos de quem pretendia tirar fotos. Percebi que os narcisos tinham começado a florescer. Eu sempre amava quando os narcisos colocavam as suas cabeças amarelas para fora do gramado. Vovó e eu costumávamos falar sobre como era mágico quando os bulbos da primavera brotavam tão rápido e inesperadamente.

Definitivamente, hoje eu precisava de um pouco de magia da primavera. E seria no Woodward Park!

Sentindo-me aliviada por encontrar um destino, entrei no parque, andando entre os tufos de narcisos por um caminho sinuoso em direção à área ladeada pela Twenty-first Street. Era no alto daquele cume que os arbustos de azaleia eram mais espessos. Eu gostava daquela parte íngreme com caminhos de pedra serpenteando entre os arbustos. Eu podia encontrar um banco entre as azaleias depois de descer o cume e tentar entender todos os meus problemas. E daí se chovesse e eu ficasse encharcada? Pelo menos isso iria manter as pessoas afastadas.

Andei pelo caminho pavimentado, fazendo curvas através de arbustos de azaleia da minha altura. Percebi que os botões de flores já haviam começado a se formar, mas ainda não dava para saber de que cor elas seriam.

Aquela tempestade estúpida provavelmente iria matá-las e elas nunca iriam florescer.

Chutei uma pedra.

Aphrodite tinha mandado me espionar! Eu simplesmente não conseguia esquecer essa traição. Imaginei o que Stevie Rae diria quando eu contasse para ela. Então eu me dei conta de que, se eu contasse isso a ela, também iria ter que contar sobre mim e Aurox no refeitório, e eu não queria de jeito nenhum contar isso para ela nem para ninguém e...

Eu parei.

– Ah, que inferno! Não vou ter escolha sobre contar isso para as pessoas. É claro que Shaylin e Aphrodite não vão ficar de boca fechada.

Eu tinha chegado ao topo das escadas de pedra na parte alta do parque, que davam lá embaixo na área rochosa com espécies de grutas e no lago raso que envolvia o lado oeste do parque.

Eu pensei em me atirar lá de cima, mas constatei que não era muito alto, então provavelmente a queda não iria me matar. E eu realmente não queria me matar. Agora, se Aphrodite estivesse lá, eu podia pensar em atirá-la do cume!

Esse pensamento me satisfez de um modo perturbador.

Desci as escadas até nível da rua. Havia um banco de pedra, não muito longe de onde acabavam os degraus e começava o gramado. Um trovão ressoou novamente. Eu sentei e franzi os olhos para o céu. Sim, definitivamente ia chover em mim. Logo. Suspirei e olhei em volta. De repente essa pequena parte do Woodward Park me lembrou da Ilha de Skye, talvez por causa da chuva iminente. Um inesperado sentimento de saudade de casa me invadiu. Eu deveria voltar para lá. Eu era feliz lá. Ninguém me espionava. Ninguém tentava me matar. E eu poderia perguntar para Sgiach que diabos está rolando com a minha pedra da vidência. Stark podia ir comigo. Eu não teria que ver Aurox todo dia e desejar...

Não! Eu interrompi essa linha de pensamento. Eu não desejava mais nada. Eu já tinha feito a minha escolha. Era só essa droga com Aphrodite e Shaylin que estava bagunçando a minha cabeça e o meu coração.

E eu não poderia fugir para a Escócia. Pelo menos não agora. Eu tinha que ficar aqui, encarar os meus amigos – e ex-amigos – e resolver a confusão que a Morada da Noite tinha virado.

Deusa, isso era deprimente. E irritante. E exaustivo.

Um trovão rugiu, desta vez mais perto. Fugir ou me esconder não estava resolvendo nada. Eu devia voltar para a escola. Talvez eu tivesse sorte e Stark ainda estivesse dormindo, apesar da minha explosão emocional, e eu poderia entrar de fininho na cama e ainda dormir um pouco antes de ter que encarar a tempestade de cocô que estaria me esperando depois do pôr do sol.

Eu tinha me levantado e me virado para subir de volta pela escada de pedra quando vi os dois homens. Eles haviam acabado de sair de trás dos arbustos de azaleia e estavam parados no topo das escadas. Eles pareciam esfarrapados, sujos. As roupas deles não serviam direito. Um deles estava segurando um saco de lixo pendurado no ombro, fazendo-o parecer um Papai Noel anoréxico. Foi ele que me viu primeiro. Ele deu uma cotovelada no amigo e me indicou com o queixo, abrindo um sorriso cheio de dentes podres. O amigo dele assentiu e eles começaram a descer as escadas.

Ah, que inferno.

Eu deveria ter corrido na direção da Twenty-first Street. Essa era a coisa mais inteligente e mais segura a fazer. Eu quase fiz isso, mas então me lembrei de quem eu era e fiquei irritada. Eu não era uma garotinha fraca que as pessoas podiam assustar e humilhar. Eu tinha afinidade com todos os cinco elementos. Eu era uma Grande Sacerdotisa em treinamento. Caramba, eu era quase uma vampira! Será que eu não era capaz de estar no parque em um domingo de manhã sem ser incomodada por ninguém?

Em vez de sair correndo, eu sentei no banco de novo. Talvez ele fossem apenas passar por mim, dizer “bom dia” e só. Talvez.

– Ei, garota, você, ahn, tem algum trocado aí? – o primeiro cara perguntou quando eles terminaram de descer as escadas.

– Sim, a gente podia usar o dinheiro para comer – o segundo cara disse.

Eu estava virada para o outro lado, esperando que eles fossem embora. Então eu empinei o queixo e olhei direto para eles. Eles arregalaram os olhos quando viram minhas tatuagens.

– Sério? Em que planeta vocês acham que é normal dois homens pedirem dinheiro para uma garota que está sozinha em um parque deserto? – enquanto eu falava, senti minha raiva aumentar de novo.

– Ei, qual é a sua? – o cara com o saco de lixo respondeu. – Você é uma vampira. Não é a gente que pode assustar você.

Eu sabia que eles pensavam que eu era uma vampira completa. Eu sabia que isso os deixava com medo de mim.

Fiquei feliz por isso.

– Então, vocês costumam assustar garotas humanas para que elas deem dinheiro a vocês?

Que idiotas!

O segundo cara deu de ombros.

– Se uma garota não quer ser assustada por alguém, não deve ficar sozinha aqui.

– Ah, então é culpa da garota ? – eu fiz a pergunta hipoteticamente, mas o cara do saco de lixo não entendeu.

– Sim, a culpa é da garota!

– Mas não vamos assustar ninguém se a pessoa nos der dinheiro.

– Mas nós não aceitamos cartão de crédito – o cara malvado do saco de lixo riu e deu um tapinha no braço do seu amigo.

– Vocês são uns otários. Quer tal arrumar um emprego em vez de mexer com garotinhas?

– Mexer com garotinhas paga melhor – o cara do saco de lixo respondeu.

– Eu estava sentada aqui, pensando nos meus próprios assuntos. Vocês têm que se lembrar disso. Foram vocês que provocaram isso – eu me levantei. O meu corpo inteiro estava quente. Eu estava realmente irritada. – Sabem de uma coisa? Vocês deveriam ter escolhido outra garotinha para perturbar hoje.

– Ei, a gente não estava perturbando você. A gente só estava passando – o outro cara disse. Ele pegou o braço do seu amigo e começou a puxá-lo para sair dali.

– Relaxe, gatinha. Não aconteceu nada de mais – o cara mau do saco de lixo disse, dando um sorriso sarcástico com seus dentes escuros e quebrados.

Então eles pensavam que iriam sair de fininho e encontrar uma garota normal de verdade para assustar?

Eu sentia como se o meu coração fosse explodir para fora do meu peito.

– Não, hoje vocês não vão! – eu atirei minha raiva neles. Ela era uma bola incandescente de luz azul. Ela se chocou contra os dois homens, levantando-os do chão e arremessando-os contra a parede de pedra do cume.

Eu estava ofegante e me sentindo bem com o que tinha acabado de fazer. Eles iam pensar duas vezes antes de mexer com outra garota! Idiotas!

Um trovão retumbou acima de mim e um raio atingiu o centro do parque, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Foi então que eu percebi que estava segurando a pedra da vidência.

Eu pisquei surpresa e balancei a cabeça. Espere aí, o que tinha acabado de acontecer?

Eu olhei para os dois homens. Eles ainda estavam lá, deitados na sombra do cume rochoso. Eles não estavam gritando comigo nem se recompondo e levantando, nem mesmo saindo correndo porque eu os tinha deixado apavorados.

Eles não estavam se mexendo.

Caramba! Eu tinha usado magia antiga para atacar aqueles homens. Tinha sido a mesma coisa quando derrubei Shaylin. Eu havia feito isso automaticamente, depois que a minha raiva queimando se tornou insuportável. Mas aquela queimação não era a minha raiva, era a pedra da vidência esquentando, penetrando o meu corpo, alimentando-se das minhas emoções e então atacando.

Soltei a pedra e olhei para a palma da minha mão. Uma queimadura com a forma de um círculo perfeito tinha ficado ali.

Confusa, levantei os olhos e vi acima de mim uma fumaça que vinha do meio do parque. O ar estava com cheiro de eletricidade e fogo, e eu me dei conta de que um raio devia ter atingido uma árvore, ou até mesmo um dos edifícios do parque. O Woodward Park estava em chamas.

Os bombeiros chegariam logo. Assim como a polícia.

As minhas pernas estavam bambas e a minha cabeça doía quando eu me aproximei dos homens, olhando para as duas formas caídas na base do cume. Um deles gemeu. O braço do outro se contraiu.

O céu desabou em uma chuva forte, de modo que eu não podia dizer se a umidade era água, sangue ou minhas lágrimas.

Não pensei em nada. Apenas saí correndo.

Não precisei invocar névoa e sombras para me encobrir. A tempestade fez isso por mim. Ninguém reparou em uma garota sozinha, correndo no meio da chuva, fugindo do parque em chamas, principalmente porque vários carros de emergência e a polícia estavam indo para a direção oposta.

Corri em volta do muro da escola e entrei pela passagem escondida. E continuei correndo até chegar dentro do estábulo, ofegante e trêmula. Fui até a selaria e peguei uma toalha limpa. Eu me enrolei na toalha e andei pela longa fileira de baias até encontrar Persephone. Abri a porta e entrei na baia quente e escura. Persephone estava dormindo do jeito que os cavalos dormem: em pé, com uma das patas traseira em repouso, a cabeça baixa e os olhos semicerrados. Ela mal se moveu quando eu coloquei meus braços ao redor do seu pescoço e chorei na sua crina macia e espessa.

O que estava acontecendo comigo?

Aqueles caras no parque tinham sido uns idiotas, mas eles não conseguiriam me machucar. Sim, eles atacavam garotas, assustando-as para que elas lhes dessem dinheiro, mas eles não poderiam me machucar. Eu podia ter ido embora e feito uma ligação anônima para a polícia, dando uma descrição deles e dizendo aos policiais que eles estavam vagando pelo parque ameaçando as garotas. Os policiais iriam afugentá-los.

Em vez disso, eu explodi em cima deles.

Eu nem pensei. Eu não fiz aquilo de propósito. Tinha simplesmente acontecido. A minha raiva havia literalmente explodido neles através da pedra da vidência.

O que Aphrodite estava tentando me dizer mesmo? Alguma coisa sobre a sua visão, magia antiga e eu perdendo o controle sobre a minha raiva. Eu não a havia escutado. Eu a interrompi e acreditei que ela tinha me traído. E deixei que a minha raiva me controlasse.

– Ah, Deusa, isso foi errado... tão errado da minha parte – eu chorei.

Então, entre os meus soluços e o barulho da tempestade que turvava o céu, eu escutei uma sirene. Não era um caminhão dos bombeiros. Não era uma ambulância. Era um carro de polícia. E não estava passando rápido pela escola em direção ao Woodward Park. Aquela sirene estava ficando cada vez mais próxima. O carro devia ter entrado pelo nosso portão e ter estacionado na escola.

Como se estivesse sonhando, eu me desvencilhei do pescoço reconfortante de Persephone. Larguei a toalha. Saí do estábulo e caminhei até a calçada que levava ao saguão de entrada da escola.

A chuva estava me molhando, mas eu não prestei a menor atenção nisso.

– Z.! Aí está você! Que merda, você está ficando ensopada – Stark apareceu correndo atrás de mim, segurando uma grande capa de chuva em cima da sua cabeça.

– Você não deveria estar aqui fora – eu disse sem emoção. – O sol já se levantou. Você vai se queimar.

Ele me deu um olhar estranho.

– Eu estou cansado e não é muito confortável estar aqui, mas as nuvens estão cobrindo o sol o suficiente para que eu não me queime. Bem, pelo menos por um tempo. Z., entre embaixo da minha capa e vamos voltar para o nosso quarto. Sei que tem algo errado com você, mas não sei o que é.

Eu balancei a cabeça.

– Não. Eu tenho que ir até eles – continuei andando na direção da frente da escola. Havia dois carros de polícia, com as luzes ainda piscando, estacionados lá.

– Eles quem? – Stark perguntou, tentando segurar a capa sobre a cabeça dele e a minha.

– Stark, volte para a cama. Você não pode me ajudar nisso.

– Zoey, do que você está falando? O que está rolando?

Coloquei a minha mão na porta da frente.

– Volte – eu repeti. – Você não pode mais me salvar.

Ele pareceu assustado. Muito assustado.

Eu não me permiti sentir nada. Dei as costas a ele e abri a porta.

Thanatos estava lá. Darius também. Assim como Aphrodite. Por um instante, fiquei surpresa ao vê-los, então eu me dei conta de que Aphrodite devia ter ido falar com Thanatos depois que eu saí andando. Essa era a coisa certa para ela fazer. Eu teria feito isso se estivesse no lugar dela. Se eu estivesse pensando como eu mesma, como a Zoey normal.

O detetive Marx estava lá com dois policiais de uniforme.

– Z., você já acabou de fazer a ronda pelo perímetro da escola com Aurox? – Aphrodite falou rapidamente, andando na minha direção. – Eu estava dizendo para Thanatos que estava preocupada com você lá fora nessa tempestade. Há até alertas de tornado na região de Tulsa.

– Não faça isso – eu disse. – Não quero que você minta por mim nunca mais – olhei para Darius. – Não quero que nenhum de vocês minta por mim nunca mais – então encontrei o olhar do detetive Marx. – Por que vocês estão aqui?

– Dois homens acabaram de ser assassinados no Woodward Park. Alguém com poderes sobrenaturais os matou. Com um poder que nenhum humano tem. Foi por isso que eu e os policiais viemos direto para cá – o rosto dele estava com uma aparência severa. A voz dele não tinha nenhuma emoção.

– E eu estava lembrando ao detetive que a nossa escola está em confinamento. Nenhum novato ou vampiro saiu do campus desde a noite em que o prefeito foi assassinado – Thanatos afirmou.

– Eu saí do campus . Eu fui até o Woodward Park. Eu atirei aqueles dois caras contra o paredão de pedra na base do cume. Eu os matei – a minha voz soou tão morta quanto aqueles homens, tão morta quanto eu me sentia.

– Zoey! Por que diabos você diria uma coisa dessas? – Stark segurou nos meus ombros e me sacudiu. – Saia dessa!

Eu o encarei e endureci o meu coração, congelando os meus sentimentos.

– Você precisa ficar aqui. Não quero vê-lo de novo. Não quero ver mais ninguém. Eu fiz isso. Eu mereço isso – eu me soltei dele e me afastei. Enquanto eu ia em direção ao detetive Marx, coloquei a mão na minha pedra da vidência e a puxei, arrebentando a corrente de prata em que ela estava pendurada. Eu a entreguei para Aphrodite. – Não deixe que ninguém, exceto você ou Sgiach, toque essa coisa. Você está certa. Isso despertou, e é do mal – então eu encarei o detetive Marx. – Estou pronta para ir com você.

Ele desviou os olhos de mim e se voltou para Thanatos.

– Eu vou aguardar você entrar em contato com o Conselho Supremo para revogar a sua responsabilidade legal por esta novata, para que eu possa levá-la sob custódia.

– Não – eu falei. – Antes disso acontecer, eu rompi com o Conselho Supremo. Eu não reconheço a autoridade do Conselho Supremo sobre mim. Eu não reconheço a autoridade de Thanatos sobre mim. Trate-me da mesma forma com que trataria qualquer um que confessou ser um assassino.

Ele suspirou profundamente e então pegou as algemas no seu bolso de trás.

– Zoey Redbird, você está presa pelo assassinato de Richard Williams e David Brown – ele fechou as algemas frias nos meus pulsos. – Você tem o direito de permanecer em silêncio. Se renunciar a esse direito, tudo o que disser pode e vai ser usado contra você no tribunal. Você tem o direito de ter um advogado presente ao seu interrogatório. Se não tiver condições de contratar um advogado, um defensor público vai ser designado para atendê-la. Você entendeu os seus direitos?

– Sim. Eu não preciso de um advogado. Eu confesso que matei aqueles dois homens. Eu mereço ir para a cadeia – eu disse, enquanto as palavras “eu mereço... eu mereço...” ecoavam pela minha mente.


22
Neferet

Quando ela finalmente estava pronta para emergir da toca, a chuva banhou Neferet, limpando-a do sangue e da terra que cobriam o seu corpo. Aquela área estava em um completo caos. Apesar da chuva, o fogo estava consumindo o parque acima dela.

Neferet pensou que essa era uma saudação encantadora.

Ela se alimentou da morte e da destruição ao seu redor e usou essa energia para se encobrir.

O seu cabelo ruivo e liso contra o seu corpo parecia um manto vivo. Os filamentos de Trevas fiéis a Neferet, saciados e pulsando de poder, levantaram-na. Como se tivesse ordenado a uma nuvem de tempestade que a obedecesse, Neferet saiu flutuando do parque dentro de um véu de raios, trovões, névoa e loucura.

Ela atirou a cabeça para trás, adorando a carícia que a chuva fazia ao escorrer pela sua pele nua, limpando-a. Ela ergueu os braços, e gavinhas de Trevas se enrolaram neles. Ela riu ao sentir o seu toque frio e perverso.

– Vamos para casa. Nós temos tanto a fazer! – a tempestade que era Neferet passou por sobre a cidade, na direção do centro de Tulsa e da sua cobertura no Mayo. – Ah, mas não tão rápido – ela ronronou para as Trevas que a embalavam. – Nós não vamos jantar? Descobri que estou morrendo de fome!

Os filamentos de Trevas tremeram de excitação, impacientemente aguardando as suas ordens.

Neferet vasculhou a sua própria mente. Buscando... buscando... pervertendo o dom que ela havia recebido tantas décadas atrás.

Ela seguiu a Fifteenth Street no rumo oeste, ainda buscando. Foi na Boston Avenue que ela sentiu uma atração para o norte.

– Para o norte! Em direção àquelas almas deliciosas que fingem ser tão, tão boas! – Neferet estremeceu de prazer. – Todos reunidos tão convenientemente para mim. É como se eles já soubessem me venerar – ela fez um gesto impetuoso indicando um ponto à sua direita. – Levem-me para lá!

Quando chegou à catedral, Neferet ordenou que os filamentos fizessem uma pausa, permitindo que ela absorvesse a perfeição da sua escolha. A construção era realmente magnífica. Ela resplandecia na chuva. As pontas da torre principal pareciam dentes. As pontas das torres mais baixas pareciam mãos levantadas, com garras afiadas e uma superfície de metal lisa e molhada, pronta para ser destruída.

– Soltem-me! Deixem que eu seja vista!

A nuvem de mágica se dissipou. Neferet pousou silenciosamente na calçada.

– Venham comigo, meus queridos! – ela falou para os seus filamentos. – O nosso jejum acabou. Vamos nos fartar como eu mereço!

Neferet subiu os vários degraus de calcário enquanto as Trevas, como a cauda do manto de coroação de uma rainha, seguiam atrás dela. Neferet levantou os olhos. Estátuas projetando-se da parede externa eram deuses dourados montados em cavalos de guerra molhados pela chuva. Eles pareciam lhe dar as boas-vindas.

Abaixo deles, esculpidos em cima das três portas de entrada, havia homens se curvando.

– Para mim – ela falou para as estátuas silenciosas. – Vocês se curvam para mim.

Olhando para cima, Neferet leu as palavras escritas abaixo de cada um dos três grupos de estátuas de devotos: o fruto do espírito é o amor, o júbilo; paz, resignação, gentileza, bondade; sinceridade, humildade, autocontrole.

Neferet deu uma gargalhada.

– Isso vai ser mais fácil do que eu imaginei.

Nua, Neferet entrou na igreja, escolhendo a porta embaixo da palavra resignação 16 . Do lado de dentro, as paredes estavam pintadas em um tom rosa claro, que para Neferet lembrava sangue diluído em uma chuva de lágrimas. Ela pensou que essa era uma cor perfeita. Virando à esquerda, ela seguiu por um corredor curvo até a entrada principal do santuário. As portas estavam fechadas. Neferet sorriu carinhosamente para os seus filamentos de Trevas.

– Sim, por favor, abram as portas.

Os filamentos a obedeceram.

Neferet adentrou no amplo salão oval. Um hino estava em seus acordes finais e, enquanto eles prolongavam o améééém final, Neferet aproveitou a oportunidade para apreciar o cenário antes de ser notada. Era realmente um santuário adorável. Com assentos almofadados violeta claro e vitrais art déco estilizados em cores avermelhadas e em tons de lilás, ela pensou que o local parecia mais um daqueles teatros decorados que proliferaram tanto nos Estados Unidos na virada do último século do que uma igreja. Suas fileiras circulares de assentos afunilando-se até um palco central haviam sido criadas obviamente mais para o drama do que para a adoração.

Neferet sorriu, gostando da ironia.

– Psiu! – um sussurro veio das sombras nos fundos do aposento, enquanto o pastor começava a liderar os fiéis em uma oração repetitiva e entediante. – Com licença. Você precisa de ajuda? – uma mulher gorda e de meia-idade se aproximou de Neferet. Ela estava tão hipnotizada pelo corpo nu de Neferet que nem percebeu as suas tatuagens.

Neferet se virou para ela.

– Sim, eu preciso – Neferet abriu os braços, como se quisesse que a mulher a abraçasse.

Confusa, a mulher deu alguns passos, aproximando-se dela. Neferet atacou com uma velocidade ofuscante, rasgando o pescoço dela com suas unhas feito garras e segurando a mulher quando ela caiu para a frente. Neferet então a abraçou, mas o beijo que ela deu na mulher foi pressionar os lábios na ferida aberta e ensanguentada no seu pescoço. Neferet drenou o seu corpo enquanto se alimentava da sua energia.

Um dos fiéis que estava na parte de trás da igreja gritou.

Neferet levantou os olhos quando as pessoas se viraram na sua direção. Ela soltou a mulher, gostando do barulho surdo que o corpo dela fez ao cair no chão.

Empinando o queixo, Neferet jogou o cabelo para trás e foi para a frente do santuário a passos largos.

– Oh, meus Deus, é uma vampira!

– Ela está nua!

– Ela acabou de matar a Sra. Peterson!

As pessoas começaram a gritar. Algumas até começaram a sair de seus bancos.

Neferet levantou os braços.

– Fechem as portas! E revelem-se para eles!

As sombras ao redor de Neferet ondularam quando as gavinhas grossas feito cobras assumiram formas que os humanos podiam ver. A congregação fez uma pausa, olhando em choque os filamentos de Trevas deslizarem para cada uma das portas e fechando-as como uma teia pelo lado de dentro.

– O que você quer? – um homem de cabelos brancos vestindo um hábito negro enfeitado com veludo escarlate desceu do púlpito e caminhou decidido em direção a ela.

– Eu sou Neferet – ela disse cordialmente. – E quem é você?

– Eu sou o Dr. Andrew Mullins, pastor da Boston Avenue Church. O que significa esta profanação?

– Profanação? – Neferet sorriu. – Ah, eu mal comecei – ela apontou os seus dedos ensanguentados para o corpo da mulher. – Isso ali não pode nem ser considerado um aperitivo.

– Pelo poder a mim concedido pelo nosso Senhor e Salvador, eu exijo que você vá embora deste local sagrado e não machuque mais ninguém!

– Pastor Mullins, apesar de não parecer, eu sou muito mais velha do que você, então deixe-me compartilhar com você algo que aprendi em meus muitos anos de vida: o poder real sempre supera o poder concedido a alguém. Então, eu realmente acredito que vou usar o meu poder real e não vou embora.

– Muito bem. Se você não vai embora, nós vamos! – o pastor disse. Como se estivesse arrebanhando galinhas ao seu redor, o homem gesticulou para que as pessoas fossem até ele, enquanto ele retrocedia, afastando-se de Neferet.

– Sinto muito, mas não posso permitir que vocês vão embora. Nenhum de vocês – Neferet apontou para o pastor. – Tragam-no para mim!

Um filamento grosso como um braço se desvencilhou do tornozelo de Neferet e foi rapidamente na direção do o pastor. Quando o alcançou, a gavinha se enrolou na cintura dele feito um chicote, ferindo-o. As Trevas arrastaram o pastor aos berros até Neferet.

– Ah, acabem com esse barulho ridículo! – Neferet fez um gesto e uma gavinha menor envolveu o rosto do pastor, cobrindo a sua boca, amordaçando-o. – Melhor assim, não? – ela olhou com raiva para a congregação em pânico. – Parem de gritar, a menos que vocês queiram ser amordaçados também!

As pessoas ficaram em silêncio, exceto por soluços abafados.

Neferet se aproximou do pastor.

– Eu gostei do seu hábito. Gosto muito da cor vermelha. Tire-o!

O homem obedeceu com mãos trêmulas, deixando o hábito cair aos seus pés.

Inclinando a cabeça, Neferet o examinou. Ele estava usando por baixo uma camisa branca e uma calça informal.

– Você estava tão grandioso com o seu hábito. Agora você parece um rato pelado – Neferet entrou na mente dele. – Aaaah, não é de se estranhar que você não esteja olhando para o meu corpo. A castidade é tão entediante, não é? Deixe-me livrá-lo desse sofrimento – ela fez um corte no seu pescoço. Ele arregalou os olhos quando ela disse para os dois filamentos: – Sim, vocês podem ficar com esse aí.

As Trevas perfuraram a boca e a cintura do pastor, alimentando-se fartamente, enquanto ele se contorcia em agonia.

– Neferet! Por que você está fazendo isso?

A atenção de Neferet se desviou do pastor moribundo e se voltou para um homem parado na frente do santuário. Reconhecendo-o, ela sorriu.

– Vereador Meyers! Que bom revê-lo – ela falou.

– O-olá, Neferet – ele gaguejou, segurando firme na mão de uma mulher bem-vestida ao seu lado. – Eu estava lá na sua coletiva de imprensa. Você... você disse que era uma aliada dos humanos e contra a violência.

– Eu menti – o sorriso de Neferet se ampliou ao ver a expressão horrorizada do vereador. A mulher ao lado dele soluçou, com a mão sobre a boca para tentar conter os seus gritos. – Você é a Sra. Meyers?

Tremendo e chorando, a mulher assentiu.

– Você está vestida com muito bom gosto. É Armani?

Novamente, a mulher em prantos concordou.

– E o seu tamanho deve ser trinta e seis, certo?

– Si-im! Pegue minhas roupas! Mas nos deixe ir embora, por favor – ela implorou.

– Ah, como você pediu educadamente! Tire o seu vestido e traga-o para mim, e eu posso pensar no seu pedido.

– Neferet, por favor, não machuque... – o marido dela começou.

Neferet entrou na mente dele e ordenou que o seu coração parasse de bater. O vereador Meyers ofegou e desabou no chão.

A sua mulher berrou.

Neferet suspirou.

– Sra. Meyers, eu acho tão desanimador que hoje em dia ninguém mais parece ser capaz de obedecer a ordens simples. Você não acha?

– Você pretende matar todos nós?

Neferet desviou o olhar da histérica Sra. Meyers e se voltou para uma mulher de meia-idade atraente que havia entrado no corredor central. Ela empinou o queixo e encarou Neferet, sem mostrar nenhum sinal aparente de medo.

Neferet ficou intrigada.

– E quem é você?

– Karen Keith, outra representante de Tulsa. Eu também estava lá no dia em que você deu a sua coletiva de imprensa e prometeu se aliar à nossa cidade.

– Aaaaah, outra política. Que delícia!

– Você não respondeu a minha pergunta. Você vai matar todos nós?

– Perdoe-me, Karen. Posso chamá-la de Karen?

– Prefiro que não.

Neferet ergueu a sobrancelha, surpresa.

– Você tem uma energia adorável, Sra. Keith. Você vai ser o meu prato principal.

Gavinhas de Trevas começaram a deslizar na direção dela.

Karen Keith não se retraiu quando elas se enrolaram ao seu redor. Ela encontrou o olhar de Neferet e afirmou:

– Depois disso, todo mundo vai saber o monstro que você é.

– Não, Sra. Keith, todo mundo vai saber a deusa que eu sou.

Karen Keith morreu sem gritar, mas as pessoas em volta dela berraram e começaram a se lançar contra as portas fechadas em pânico.

– Bem, acho que é esperar demais ter uma conversa durante o jantar – Neferet disse. Ela levantou os braços. – Matem todos, mas cuidado com o vestido Armani!

Neferet e os seus servos das Trevas atacaram a congregação de fiéis. Eles se alimentaram sem parar, fartando-se de sangue e energia roubada, até que o santuário virou um cemitério.

Neferet se banhou nas bacias de água benta e usou o hábito com detalhes escarlate do pastor para se secar. Então, vestida de Armani e pulsando com um poder glorioso, ela saiu da Boston Avenue Church.

Tinha parado de chover. O céu estava novamente azul claro. O ar cheirava a primavera. Neferet limpou uma última gota de sangue no canto dos seus lábios carnudos. Sorrindo, radiante, Neferet apontou para o Mayo.

– Levem-me para casa. Estou com tanta saudade da minha cobertura...

Pulsando e completamente saciados, os seus filamentos a levantaram gentilmente. Envolta em Trevas, Neferet flutuou, invisível, através do centro de Tulsa, enquanto a frase “eu mereço... eu mereço...” ecoava na sua mente.

A estátua dourada de calcário no meio da entrada da igreja estremeceu, alterou-se e, em meio a uma rajada de vento fétida, o touro branco se materializou. Quando ele emergiu do revestimento da igreja, os seus cascos faiscaram, fazendo o chão tremer. Ele bufou, olhando para a direção em que Neferet havia desaparecido.

– Agora, minha cara impiedosa, isso me surpreendeu...

 

 

 


NOTAS


1 Personagem de O Mágico de Oz. (N.T.)
2 RED Valentino é a marca jovem da grife Valentino. RED é uma sigla para Romantic Eccentric Dress (roupas românticas e excêntricas, em tradução livre). (N.T.)
3 Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)
4 Broken Arrow (flecha quebrada, em inglês) é uma cidade da região metropolitana de Tulsa. (N.T.)
5 Éon é um período de tempo que corresponde a um bilhão de anos. (N.T.)
6 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)
7 Bosque da torre. (N.T.)
8 Merry meet, merry part and merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
9 Aphrodite se refere ao filme Gata em Teto de Zinco Quente (1958), estrelado por Elizabeth Taylor e baseado na peça homônima de Tennessee Williams. (N.T.)
10 Trocadilho com o jogo Angry Birds. (N.T.)
11 Marca do copo vermelho de plástico tradicional nas festas de adolescentes norte-americanos. (N.T.)
12 Ato falho. Por exemplo, quando uma pessoa diz algo que não deveria por causa de um desejo do seu inconsciente. (N.T.)
13 Marca de set-up box , dispositivo que permite assistir na televisão a vídeos da internet por streaming , similar ao Apple TV. (N.T.)
14 No Paganismo, os familiares são animais associados a bruxas ou bruxos. (N.T.)
15 Erva-doce americana, da espécie Hierochloe odorata. (N.T.)
16 Em inglês, long-suffering , cuja tradução literal seria “sofrimento longo”, mas que significa resignação, paciência ou a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar. (N.T.)

 

 

                                                   P. C. Cast e Kristin Cast         

 

 

 

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