10
Aphrodite
– Que merda. Thanatos, você tem colhões. Bem grandes, aliás – Aphrodite a cumprimentou.
Thanatos ergueu as sobrancelhas.
– Eu vou ignorar a vulgaridade e agradecer o elogio, Profetisa – Thanatos disse.
– Só para você saber, isso foi um elogio enorme – Aphrodite curvou a cabeça respeitosamente para Thanatos.
– Você realmente nos defendeu. Obrigada, Grande Sacerdotisa – Stevie Rae agradeceu.
Kalona e Zoey se olharam.
– Então sobrou para nós lidar sozinhos com Neferet e com as autoridades locais – ele afirmou.
– De novo – Zoey acrescentou. – Não é a primeira vez que o Conselho Supremo nos deixa na pior.
– Elas têm boas intenções – Thanatos soou algo entre triste e cínica. – Elas acham que estão fazendo o melhor para a comunidade dos vampiros como um todo, e foi para isso que o Conselho foi criado éons atrás.
– Elas estão paradas na Idade Média! – Zoey explodiu.
Aphrodite a observou atentamente. Sim, as vampiras do Conselho Supremo tinham sido umas idiotas, mas eles ainda tinham Thanatos, o poder do círculo, duas Profetisas
(apesar de Shaylin ser um pé no saco), um menino-touro e um imortal do lado deles.
– Já vão tarde! Elas são um monte de velhas; sem ofensas, Thanatos – Aphrodite disse. – Z., a única coisa que elas poderiam fazer por nós seria talvez tirar a polícia
de Tulsa dos nossos calcanhares. Nós não precisamos da permissão delas para criar o nosso próprio lugar no mundo. O mundo também é nosso, e nós vamos fazer o nosso próprio lugar.
– É, eu também estou pensando a mesma coisa – Stevie Rae concordou.
Zoey cruzou os braços e falou:
– Então, nós estamos todos presos aqui, sem fazer nada.
– Até nós pegarmos Neferet, temo que precise ser assim – Thanatos afirmou.
– Pegar Neferet? Para quê? – Zoey perguntou.
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Aphrodite percebeu que ela não era a única pessoa observando Zoey atentamente. Thanatos levantou a sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.
– Sacerdotisa, todos nós concordamos que Neferet é responsável pelas mortes da noite passada, não é?
– Sim, Neferet fez isso – Zoey respondeu.
– Então Neferet precisa ser encontrada e entregue às autoridades. Até lá, a verdade é que as autoridades humanas não vão encontrar nenhuma prova que jogue culpa
em nenhum de nós, já que somos inocentes.
– Espere aí. Isso significa que você vai deixar que os nossos professores comecem a fazer testes de DNA? – Zoey quis saber.
– Não. Isso significa que nós vamos encontrar Neferet e conseguir o DNA dela, que vai coincidir com as provas das autoridades humanas.
– Neferet é uma imortal poderosa. Ela não vai deixar que a gente a pegue, muito menos que a entregue aos policiais.
– Zoey, você diz isso, mas você e o seu círculo conseguiram derrotá-la e resgatar a sua avó que estava em poder dela.
– Nós já a derrotamos antes. Vamos derrotá-la de novo – Stevie Rae soou muito mais positiva do que Z.
– Na verdade, a gente só tem que encontrar Neferet. E depois levá-la para um lugar público e começar a constrangê-la com perguntas difíceis. Ela vai perder a calma e fazer alguma loucura, principalmente se um detetive pedir a ela uma amostra de DNA – Aphrodite disse. – Sim, vai ser um saco para nós quando ela explodir em aranhas
ou destruir alguns humanos ou algo assim, e os humanos começarem a entender que há mais coisas rolando aqui do que apenas uma guerrinha entre vampiros e humanos,
mas isso não vai ser tão péssimo quanto ficarmos nesta prisão domiciliar e sermos culpados por merdas que ninguém aqui fez.
– Acho que já está na hora de os humanos entenderem que há mais forças agindo além dos humanos e vampiros – Kalona surpreendeu Aphrodite ao concordar com ela. –
O mal é sempre mais forte quando ele é subestimado.
– Você vai deixar que os humanos o vejam? – Zoey perguntou a Kalona.
– Eu vou levar Neferet à Justiça e proteger esta escola. Se isso significa que eu devo me mostrar aos humanos, que assim seja.
– Eu tenho uma pergunta – Stevie Rae levantou um pouco a mão.
– Sim? – Thanatos quis saber.
– Como nós vamos encontrar Neferet?
– Essa é a parte fácil. Nós vamos ficar aqui, permanecer no caminho da Deusa e esperar que Neferet se revele – Thanatos respondeu.
– Isso é péssimo! – Z. parecia que ia explodir. – Quando Neferet sequestrou Vovó, eu estava sentada na cozinha dos túneis. Eu só estava esperando e choramingando
para Nyx me ajudar a salvar Vovó. E adivinha o que aconteceu? A Deusa apareceu para mim e basicamente me disse que uma criança fica sentada chorando. E que uma Grande
Sacerdotisa faz algo de fato. Então, agora você está me dizendo que a sua grande decisão é ficar esperando sentada?
– Não, o que eu estou dizendo é que nós vamos demonstrar sabedoria e agir com paciência. Nós temos uma das nossas para sepultar, e depois nós vamos retomar as aulas
e as nossas vidas, e não vamos permitir que a nossa escola seja destruída por humanos nervosos nem vamos nos afogar nas Trevas de Neferet. Eu espero que você e Stevie
Rae mostrem as suas capacidades de liderança e ajudem a mim e o resto do corpo docente a manter tudo calmo e funcionando normalmente. E agora, se você já acabou
de tentar me dar um sermão sobre uma Deusa a quem eu sirvo fielmente há séculos, eu preciso comandar um funeral – o tom de voz de Thanatos deixou claro que ela já
tinha ouvido o bastante de todo mundo, principalmente de Zoey. Então ela se levantou e saiu da sala, com Kalona seguindo a sua sombra.
Aphrodite se colocou entre Zoey e a porta.
– Correndo o risco de soar mais parecida com você do que eu gostaria, eu vou te falar que você precisa melhorar a sua atitude.
Z. franziu os olhos para ela.
– Essa situação não te deixa irritada? – Z. perguntou.
– É claro que sim, mas ser estúpida com a única Grande Sacerdotisa adulta que está realmente do nosso lado é burrice.
– Z., você foi meio estúpida mesmo – Stevie Rae pareceu desconfortável, mas isso não a impediu de falar.
Zoey respirou fundo e soltou o ar devagar, manuseando a pedra da vidência parecida com uma pastilha Life Savers, que estava pendurada em uma corrente de prata no
seu pescoço.
– É que é tão frustrante ver a maldita da Neferet fazendo todo esse inferno de novo, e a gente só parado aqui, esperando pelo próximo passo dela.
– Ok, você disse “maldita” e “inferno” na mesma frase, então tenho esperanças de que talvez a perturbação mental que você obviamente está tendo possa dar uma melhorada
no vocabulário entediante que você usa para praguejar educadamente – Aphrodite disse. – Além disso, eu ainda acho que você que você precisa melhorar a sua atitude.
Não é a mesma coisa de sempre com Neferet. Ela foi banida pelo Conselho Supremo.
– Verdade, mesmo que as vampiras do Conselho Supremo sejam tão covardes para irem atrás dela sozinhas, já é um grande passo que elas tenham banido Neferet – Stevie
Rae acrescentou.
– Eu as chamaria de algo mais preciso do que covardes, mas você tem razão. E a gente tem uma escola inteira contra ela. Neferet não pode se esconder para sempre.
Como todos nós já dissemos, ela é louca demais para passar despercebida por muito tempo.
– Não – Z. disse. – Isto é uma parte do problema: a escola inteira não está contra ela. Dallas e seus amigos com certeza estão do lado dela, e definitivamente não
estão com a gente.
– Mas, Z., o fato de Neferet ter matado o pai de Aphrodite muda tudo – Stevie Rae olhou de relance para Aphrodite. – Desculpe de novo – Stevie Rae continuou depois
que Aphrodite deu de ombros. – O que ela fez dessa vez foi público. Ela se alimentou do prefeito. Os policiais já estão envolvidos. Thanatos vai cuidar para que
eles consigam provas do que ela fez, e Dallas não vai querer sofrer uma acusação de assassinato, nem mesmo ajudar uma acusada de assassinato – Stevie Rae argumentou.
– Dallas e os seus amigos nojentos não iam se dar bem na cadeia. Eles vão ficar quietos e de boca fechada. É claro que vai ser um saco ter eles por perto, mas isso
não é diferente do que rola numa escola normal – Aphrodite falou.
– É verdade, eu acho que vocês estão certas – Z. concordou. – Desculpem pelo pessimismo. Eu só queria fazer algo que consertasse tudo. Vocês sabem, fazer todo mundo
ser legal e parar de chamar as Trevas e tal.
– Isso não é ser pessimista. É se enganar. As pessoas são péssimas. Elas fazem coisas idiotas e não são legais. Ponto final – Aphrodite respondeu. – Para provar
que eu tenho razão, vamos para o funeral de Erin. Ela não agiu bem, e eu tenho certeza de que o funeral dela vai ser foda.
Aphrodite estava cansada de ir a funerais. Não só era ruim quando uma pessoa decente morria, como Dragon Lankford ou o coitadinho do gay Jack, esses eventos eram
tristes, chatos e não podiam ficar melhores nem usando roupas incríveis. Só preto. Entediante. Depressivo.
E para colocar a cereja em cima do bolo de merda do funeral, Zoey definitivamente estava tendo dificuldades em controlar a sua raiva. Ela tinha sido estúpida com
Thanatos. Esse não era o comportamento típico de Zoey. E ela falhou ao não mencionar para a própria filha do homem assassinado o pequeno detalhe de que os policiais
tinham uma prova com o DNA de quem matou o seu pai. Aphrodite olhou de relance para Z. Ela estava andando do lado de Stevie Rae e assentindo para algo que a caipira
estava falando sem parar, mas ela não estava com a cara normal do tipo eu estou sorrindo para minha melhor amiga. Ela estava franzindo a testa. Ela parecia cansada.
Não, na verdade, ela não parecia cansada. Ela parecia perturbada. Ou irritada. Sim, ela estava definitivamente irritada.
Aphrodite não sabia que merda fazer.
Talvez Zoey precisasse escutar sobre a sua última visão, aquela estrelada pela Angry Z. Descontrolada10, que acabava com ela na cadeia e um monte de gente destruída.
Mas o instinto de Aphrodite continuava dizendo a ela que aquela não era uma Zoey que dava para convencer pela lógica, pelo menos não por enquanto.
Talvez depois do funeral. Talvez Z. só estivesse supertensa porque funerais são horríveis.
As três haviam chegado ao meio do campus, à já familiar área para as piras funerárias entre os carvalhos gigantes que cercavam a escola. Thanatos e Kalona estavam
na frente da pira, ao lado de Dallas, que estava sem expressão nenhuma, mas concordando com alguma coisa que Thanatos estava falando para ele. Os seus amigos tinham
formado um semicírculo de breguice atrás dele.
O aceno de Darius chamou a sua atenção.
– Lá estão os nossos garotos – Aphrodite disse, e elas mudaram de direção para encontrar os seus guerreiros, o resto do círculo e os novatos vermelhos de Stevie
Rae, que estavam fazendo outro semicírculo no lado oposto da pira.
Darius a abraçou e Aphrodite se aconchegou junto a ele, desejando que os dois estivessem sozinhos.
– Thanatos e Kalona estão com uma fisionomia soturna. A reunião com o Conselho Supremo não correu bem? – ele sussurrou no ouvido dela.
– Foi um desastre total. Mais tarde eu te conto – ela sussurrou de volta.
Então os professores chegaram e preencheram as lacunas nos semicírculos, fazendo um círculo completo e dando a impressão de que a escola era formada por um só grupo
unido. O que era totalmente mentira.
Thanatos foi a primeira a falar. A sua voz soou forte e clara. Ela era de fato uma boa oradora, mas quando ela começou uma oração com rimas a atenção de Aphrodite
se desviou.
Ela começou a observar Dallas. Ela sempre achou Dallas muito baixinho e com olhos pequenos, mesmo antes de ele perder a cabeça e se tornar um dos vermelhos. Naquela
noite, ele estava olhando fixamente para a pira e para o corpo de Erin envolvido pela mortalha, enxugando os olhos com a manga de vez em quando. Tecnicamente, ele
estava chorando, mas ele mais parecia estar bravo. O olhar de Aphrodite se desviou para os novatos vermelhos atrás de Dallas. Nenhum deles estava chorando. A maioria
estava olhando para a pira ou para Thanatos. Bem, alguns estavam olhando embasbacados para Kalona, mas todo mundo sempre olhava assim para Kalona.
O olhar de Aphrodite percorreu o círculo e ela percebeu que Nicole não havia se juntado ao grupo de Dallas. Ela estava perto de Lenobia e Travis, no meio de um grupo
de professores. Como se tivesse sentido o olhar de Aphrodite, Nicole olhou para ela. Não foi um olhar maldoso, mas também não foi amigável. Aphrodite pensou que,
se um olhar pudesse falar, diria: “O que é?”.
Aphrodite sustentou o olhar dela um pouco mais e então continuou a observar o resto do círculo. Os seus olhos fizeram outra pausa quando chegaram em Shaylin. Ela
estava ao lado do bundão do Erik. O fato de Shaylin sempre acabar ficando perto de Erik fez Aphrodite pensar na capacidade de julgamento da garota. Erik era inegavelmente
gostoso. Se ele não fosse gostoso, Aphrodite não o teria pegado. Mas ela pegou Erik e seguiu em frente. É claro que ela nunca tinha visto Shaylin e Erik dando uns
malhos. Ele nunca tinha nem pegado na mão dela em público. Talvez não fosse Shaylin que estivesse perseguindo Erik. Talvez Erik ficasse atrás dela porque ela tinha
sido a primeira novata que ele Rastreara. Era uma possibilidade.
Shaylin supostamente era capaz de ler as auras das pessoas, ou as cores, ou sabe-se lá como ela chamava isso, e dizer como alguém era realmente por dentro. Portanto,
era possível que Erik estivesse ficando menos idiota e Shaylin conseguisse ver isso, mas isso era menos provável.
Aphrodite jogou o seu cabelo para trás. Shaylin já tinha lido as suas cores. Ela havia irritado Aphrodite e sido uma vaca no começo, mas depois ela pediu desculpas.
E a verdade é que Shaylin estava certa quando disse para Aphrodite: Você realmente tem uma luz amarela trêmula por dentro da sua luz da lua... É parte do seu jeito
único... do seu lado afetivo. Essa luz é pequena e escondida porque você mantém o seu verdadeiro lado bom e afetuoso escondido na maior parte do tempo. Mas isso
não muda o fato de que essa luz ainda está aí. Ao lembrar disso, Aphrodite jogou o seu cabelo para trás de novo. Por mais irritante que fosse, o seu instinto dizia
que Shaylin não era uma farsa e que ela realmente tinha a Visão Verdadeira e um dom concedido pela Deusa de interpretá-la.
Aphrodite olhou para onde Zoey estava, perto de Stevie Rae e Rephaim, entre Stark e Shaunee. Naturalmente, Stevie Rae e Shaunee estavam se acabando de chorar. Mas
Z. não estava, e isso era estranho. Z. normalmente chorava tanto em funerais que ficava cheia de catarro e, por mais problemática que Erin tivesse ficado antes de
morrer, ela havia sido parte do círculo original de Zoey.
Quando Aphrodite se virou de novo para Shaylin, a garota não estava mais olhando para Thanatos. Ela estava observando Zoey, e a sua expressão dizia que ela não estava
gostando do que via.
Foi então que Aphrodite tomou a sua decisão.
Então a sua atenção foi atraída de novo para o funeral, quando Dallas ergueu a tocha e Thanatos levantou os braços e a voz, ordenando:
– Dallas, foi confiada a você a missão de acender a pira de Erin, e eu determino que Shaunee use o seu dom concedido pela Deusa para ajudar o corpo da nossa filha
caída a virar cinzas e a voltar para a terra – Thanatos fez um gesto para Shaunee se aproximar dela ao lado da pira.
O rosto de Shaunee estava encharcado de lágrimas, mas ela não hesitou. Ela caminhou até a pira e, quando Dallas encostou a tocha nos galhos secos, ela gritou para
a noite:
– Fogo, venha para mim! – o seu cabelo longo e escuro se levantou com a onda de calor que a envolveu. – Liberte o corpo da minha gêmea! Assim eu peço, e que assim
seja!
Houve um barulho alto e crepitante e a pira explodiu em fogo. Todo mundo exceto Shaunee foi forçado a dar vários passos para trás para se afastar das labaredas.
Aphrodite protegeu a vista com as mãos, sem conseguir desviar os olhos de Shaunee. Ela ainda estava chorando, mas também estava sorrindo enquanto o seu elemento
a obedecia.
Aphrodite achou que ela parecia uma deusa do fogo. Não que ela fosse dizer isso para Shaunee algum dia, mas enfim...
Quando Thanatos fechou o círculo, pedindo que todos fossem abençoados, Aphrodite sussurrou para Darius:
– Tenho que fazer uma coisa agora. Encontro com você no nosso quarto – ela o beijou e então atravessou o grupo de pessoas, tentando encontrar Shaylin e pensando
que seria melhor se a garota não fosse tão baixinha.
Distraída, ela quase trombou com uma maldita árvore. Ainda bem que isso não aconteceu, pois do outro lado da árvore Rephaim estava abraçando Stevie Rae, que ainda
estava se acabando de chorar, ensopando a camiseta dele.
– Sei que é duro, mas Erin está com Nyx – Rephaim estava consolando Stevie Rae. Ele viu Aphrodite quando ela deu a volta no grande carvalho.
Ela colocou o dedo na boca, fazendo um gesto para que ele ficasse em silêncio. Era só o que faltava: Stevie Rae querendo incluir Aphrodite em seu festival de lágrimas.
Por sorte, Rephaim não prestou a menor atenção nela e voltou a consolar Stevie Rae, enquanto Aphrodite saía de fininho.
Ela sentiu um calafrio, como se algo não estivesse certo, e congelou. Ela se virou para Dallas imediatamente. Mas ele não podia ver Aphrodite. A árvore estava no
caminho e, mesmo assim, Aphrodite achou que ele não teria reparado nela nem se ela saísse batendo os pés feito uma gorda feia. Ele estava muito ocupado encarando
Rephaim e Stevie Rae. O ódio no seu olhar era assustador. Silenciosamente, Aphrodite se aproximou mais de Dallas. Ele estava dizendo algo, resmungando para si mesmo.
Aphrodite se concentrou, observando os seus lábios finos demais e escutando com toda atenção.
– Não tá certo. A minha garota tá morta e o cara dela não é nem humano. Não tá certo...
Era só isso o que Dallas estava murmurando. Aphrodite esperou, observou, pronta para alertar Rephaim e chamar Darius se Dallas realmente tentasse algo, mas o garoto
apenas ficou repetindo a mesma coisa sem parar, inclusive quando ele se afastou.
Aphrodite balançou a cabeça. Realmente, Dallas não estava batendo bem. Z. podia estar tendo uma perturbação mental, mas ela estava certa em não querer ficar presa
na Morada da Noite com ele.
– Ok, eu te vejo amanhã, Erik!
Ao ouvir a voz de Shaylin, Aphrodite suspirou de alívio e correu para alcançá-la, enquanto ela acenava para Erik e começava a ir na direção do dormitório das garotas.
– Pshiu! – Aphrodite a chamou.
Shaylin olhou para trás, com cara de interrogação.
– Lá. Agora – Aphrodite apontou para as sombras fora do alcance da luz trêmula dos lampiões a gás que iluminavam aquela parte da calçada.
Elas chegaram juntas à parte escura do caminho. Shaylin cruzou os braços.
– Você não pode ficar me dando ordens.
– E mesmo assim você acabou de fazer o que eu mandei.
Sem dizer nada, Shaylin deu as costas para Aphrodite e começou a sair andando.
– Espere aí! Eu só estava brincando. Volte – Aphrodite falou, mas, como Shaylin não parou de andar, ela suspirou e acrescentou: – Por favor.
Shaylin voltou imediatamente.
– “Por favor” era só o que você precisava dizer. Da próxima vez, tente falar isso primeiro.
– Tudo bem. Que seja.
Aphrodite olhou para Shaylin. Shaylin a encarou de volta. Aphrodite jogou o cabelo para trás. Shaylin arregalou os olhos e perguntou:
– Você está nervosa?
– Eu nunca fico nervosa.
– Você está mexendo no seu cabelo com impaciência.
– Eu só joguei o meu cabelo para trás.
– Você quer alguma coisa de mim – Shaylin sorriu.
– Não. Eu não quero nada de você. Aphrodite, Profetisa de Nyx, quer.
– Se você começar a falar de si mesma na terceira pessoa, vou ficar assustada.
– Fique quieta e escute: eu tive uma visão, que tinha a ver com Zoey perdendo o controle do seu temperamento, e coisas ruins acontecendo por causa disso.
O sorriso de Shaylin desapareceu.
– Você contou para ela?
– Eu acho que não devo contar. Pelo menos por enquanto.
– Você fez uma oração para Nyx e realmente escutou uma resposta?
– É claro, retardada. Por causa da resposta que eu tive, estou aqui falando com você e não com Zoey.
– Não me chame de retardada – Shaylin disse.
– Então não pareça uma. Você já sabe que está rolando algo com Z.
Shaylin mordeu o lábio.
– E então? – Aphrodite a pressionou.
– Eu não me sinto confortável de falar sobre isso com você.
– Esqueça que está falando comigo. Finja que você é uma Profetisa falando com outra Profetisa sobre a nossa Grande Sacerdotisa, porque é isso que nós somos de fato
– Aphrodite encontrou o olhar dela. – Isto aqui não é fofocar. Não é nada maldoso. Só estamos fazendo o nosso trabalho.
– As cores dela estão ficando cada vez mais estranhas – Shaylin falou em voz baixa.
– Cada vez mais estranhas? Então isso já está acontecendo há algum tempo?
– Sim, eu falei com ela sobre isso nos túneis. Eu reparei que as cores dela estavam ficando mais escuras e misturadas, e eu disse a ela que parecia que ela estava
confusa em relação a alguma coisa.
– E então?
– Ela disse que eu estava certa, e basicamente que eu não deveria sair falando dos assuntos dela por aí.
– É, eu posso entender por que ela disse isso – Aphrodite comentou.
– Só que agora eu te contei e me sinto péssima por isso.
– Eu não vou falar nada para ninguém, nem para Zoey. Shaylin, as cores de Zoey ainda estão turvas?
– Muito, e elas estão rodopiando, quase como o começo de um redemoinho ou a ponta de um tornado.
– Que diabo isso significa?
– Raiva. Confusão. Frustração. Basicamente, nenhuma coisa boa. Ok, aí vai um exemplo: as cores de Dallas estão sempre rodopiando.
– Merda! As de Zoey também estão sempre rodopiando?
– Não, elas começam e param. Elas estavam assim quando Zoey chegou no círculo hoje, mas, enquanto Thanatos falava e orava, elas foram clareando e ficando mais estáveis.
Na hora em que Shaunee acendeu a pira, a cor dela já tinha voltado ao normal, um roxo salpicado de prateado. Sinto muito, eu sei que isso é superconfuso – Shaylin
balançou a cabeça.
– Na verdade, acho que você está fazendo um bom trabalho ao descrever isso – Aphrodite falou e Shaylin olhou para ela, surpresa. Então Aphrodite acrescentou: – Eu
avisei que quem está aqui agora é Aphrodite, Profetisa de Nyx.
– Terceira pessoa... assustador.
– Pode se acostumar. O que a Profetisa quer é que você continue observando Zoey e me avise sempre que as cores dela começarem a girar.
– Tipo, na hora?
– Sim, retardada. Na hora.
– Agora você está soando muito mais como Aphrodite do que como a Profetisa – Shaylin disse.
– Isso é porque a mente dela e a minha se fundiram. Então faça o que nós duas estamos dizendo e ninguém vai se machucar – Aphrodite respondeu.
– Você é tão estranha – Shaylin falou.
– O normal é supervalorizado injustamente. A gente tem um trato?
– Você promete não contar a ninguém, exceto a Zoey e Nyx, o que eu contei a você?
Aphrodite hesitou e então assentiu.
– Prometo. Você tem a minha palavra. Eu não iria fofocar sobre Zoey.
Shaylin a observou.
– Eu acredito em você. Em vocês duas.
11
Aurox
Aurox se perguntou se funerais podiam ser mais fáceis. Será que seria menos triste se ele tivesse vivido por algumas décadas antes? Se ele tivesse amigos com quem
pudesse conversar depois de tudo?
Ele se afastou do grupo principal, indo para nenhuma direção específica. Ninguém falou com ele. Ninguém reparou nele. Mas Aurox reparou em todos e em cada um.
Shaunee permaneceu ao lado da pira em chamas, chorando baixinho, embora o calor do fogo secasse as suas lágrimas quase que instantaneamente. Thanatos ficou o mais
perto de Shaunee que ela conseguia suportar. O imortal alado também ficou ali, parado feito uma estátua nas sombras, com os seus olhos perscrutando a área ao redor
da pira, como se ele esperasse que um inimigo surgisse das cinzas da novata.
Aurox se moveu rapidamente e em silêncio, saindo do campo de visão de Kalona. Ele não sabia o que pensar do imortal. Será que ele era um amigo, um inimigo ou simplesmente
um deus cujo propósito era observá-los e rir deles?
Aurox continuou a andar entre as sombras. Rephaim estava confortando Stevie Rae. Aurox invejava a proximidade dos dois, principalmente pelo fato de Stevie Rae ser
capaz de aceitar Rephaim completamente, sem preconceito nem hesitação.
Ele também reparou em Dallas. O jovem vampiro vermelho parecia muito infeliz, cheio de raiva e inveja. Aurox não gostou do modo como ele ficou encarando Stevie Rae
e murmurando para si mesmo. Talvez ele devesse falar com Thanatos sobre Dallas, apesar de a Grande Sacerdotisa parecer estar bem ciente da violência em potencial
de Dallas, assim como o resto da Morada da Noite.
Aphrodite passou rapidamente. Aurox a viu chamando Shaylin. Parecia normal que duas Profetisas buscassem uma à outra, especialmente durante esses tempos de provação.
Ele deveria ter continuado a andar, desaparecendo na noite e esperando até que os novatos vermelhos de Stevie Rae estivessem acomodados para as horas do dia em sua
nova toca no porão. Então ele poderia reaparecer para ficar de guarda. Para proteger. Para ficar em silêncio e vigilante, sem querer mais nada além de servir à Morada
da Noite, e através dela, à Deusa Nyx.
Mas, como sempre, Zoey atraiu o seu olhar. Aurox fez uma pausa nas sombras e se permitiu observá-la por um momento. Stark estava segurando a mão dela, enquanto ela
falava com Damien e Darius. Mas ela continuava dando olhares de relance para Shaunee. Zoey estava participando da conversa, mas Aurox podia dizer que a maior parte
da sua atenção estava voltada para a sua amiga que estava bem perto da pira, chorando.
Provavelmente, Zoey vai ficar até que Shaunee esteja pronta para dar o seu último adeus, Aurox pensou. Por um momento, ele pensou em ficar ali também, esperando
com Zoey. Talvez ele pudesse dizer ou fazer algo para ajudar.
Não. Stark iria ficar com Zoey, e Stark só conseguia tolerar a presença de Aurox se Zoey não estava por perto.
E mesmo assim Aurox se sentia atraído por Stark, assim como pela sua jovem Sacerdotisa. Ele gostava honestamente do guerreiro. Até houve alguns momentos mais cedo,
quando ele estava ajudando Stark e Darius a prepararem o porão, em que eles haviam trabalhado bem juntos, amistosamente. Aurox quase sentiu que fazia parte do grupo.
Então Stark e Darius tinham enviado Aurox em uma missão e Thanatos o havia chamado, pedindo para ele buscar Zoey, que estava atrasada para uma reunião.
Aurox encontrou Zoey facilmente. Ele pensou que sempre poderia encontrar Zo.
Mas Stark estava com ela e de repente o guerreiro se tornou estranho, frio, ignorando-o e fazendo com que Zoey o repreendesse na frente dos outros.
Ele tem ciúmes de mim, Aurox pensou, embora ele soubesse que não havia motivo para Stark sentir nem uma pontinha de ciúme.
Zoey não prestava a menor atenção em Aurox. Ela mal olhava na sua direção. Mais cedo, parecia que ela mal suportava dividir a mesa com ele no refeitório.
Aurox sabia que dentro dele devia haver a alma de um garoto humano chamado Heath. Esse garoto tinha sido o amor de Zoey, o seu futuro Consorte, apesar de ela estar
ligada por Juramento a um guerreiro.
Aurox havia perguntado a Damien sobre isso, e ele lhe explicou a situação com paciência e gentileza, apesar de essa explicação não tê-lo ajudado muito a entender
tudo aquilo.
Não que Aurox não compreendesse que era aceitável para uma novata ou vampira ter um Consorte humano, além de um guerreiro ou mesmo um companheiro vampiro. Aquilo
fazia sentido para Aurox. O amor era uma emoção muito complexa para ser restringida dentro de limites estabelecidos.
O que Aurox não compreendia era como ele podia hospedar a alma de um garoto humano.
Onde estava esse Heath?
Aurox havia tentado alcançá-lo. Ele já tinha tentado falar com ele, mas nunca recebeu nenhuma resposta. Sim, de vez em quando ele tinha sonhos estranhos, em que
ele estava pescando ou praticando esportes. Ou beijando Zoey.
Mas, não, esses sonhos não vinham de algo dentro dele. Aurox sonhava em beijar Zoey porque ele queria beijar Zoey. Ela era bonita. Ela era poderosa. Ela tinha acreditado
que Aurox era mais do que um Receptáculo do mal antes que ele mesmo acreditasse nisso.
Aurox se sacudiu mentalmente. Pouco importava o que Zoey era, afinal ela não estava interessada nele. A terrível verdade era que o fato de ele compartilhar a alma
com o amor humano de Zoey não era suficiente para que ela esquecesse como ele tinha sido criado. Ele havia começado a sua existência através da morte da mãe dela.
Ele não conseguia se perdoar por isso. Como Zoey conseguiria?
Mas eu não matei a mãe dela! A mente de Aurox berrou.
Se a mãe dela não tivesse morrido, eu não existiria! A sua consciência o lembrou.
Não foi uma escolha minha! Não foi minha culpa!
Mesmo assim, eu sou considerado responsável pela morte!
Porque eu sou um produto dessa morte!
Mentalmente exausto por aquele debate interno que nunca mudava, que nunca poderia ser vencido, Aurox fez a única coisa que ele sabia que iria silenciar aquela batalha
dentro dele. Sem ser notado por ninguém, Aurox seguiu até o muro de pedra que envolvia os jardins da Morada da Noite. O muro tinha quase quatro metros de altura
e sessenta centímetros de espessura. Com uma força sobrenatural, Aurox saltou para o topo do muro, caindo em silêncio do lado de fora. O muro tinha exatamente 2,079
km de extensão. Aurox sabia disso não porque tinha visto essa informação nos arquivos da escola. Ele sabia porque havia percorrido cada centímetro das sombras do
grande muro, correndo, correndo, correndo em volta dos jardins da escola na escuridão do lado de fora, até que ele só pensasse em respirar, só escutasse o barulho
do seu coração batendo e só sentisse a queimação no seu corpo, e a guerra dentro de sua mente tivesse finalmente cessado.
Então Aurox correu.
Havia luzes penduradas no alto de suportes de ferro que se projetavam a intervalos regulares no muro. Essas eram as únicas luzes elétricas da Morada da Noite, e
elas eram viradas para fora, efetivamente cegando qualquer humano que quisesse tentar espiar os jardins cheios de sombras e iluminados por lampiões a gás da escola.
Essas luzes elétricas também criavam a sombra na base do muro na qual Aurox corria sem ser visto, mais rápido do que qualquer humano ou vampiro poderia correr.
Na noite anterior, depois que a novata e o humano morreram, Aurox havia dado dez voltas ao redor da escola até a sua mente se aquietar. Ele pensou que naquela noite
seria preciso muito mais.
Ele corria respirando fundo, de modo estável, balançando os braços e impelindo o seu corpo impiedosamente.
O ombro esquerdo de Aurox esbarrou na pedra quando ele passou pela primeira curva na parte noroeste da escola.
Ele não viu o barril de metal. Ele não viu os humanos. Ele trombou com os humanos e o barril e caiu, rolando vários metros antes de parar.
– Merda! Um vampiro! – uma voz masculina gritou.
– Nós não vimos nada! – outra voz de homem berrou.
Tonto, Aurox levantou, virou-se e encarou o perigo. Ele já estava alcançando o medo que estava emanando dos dois homens, preparando-se para capturar essa emoção,
para alimentar a transformação em uma criatura que ia combatê-los e proteger a Morada da Noite.
Os dois adolescentes haviam tropeçado, esquivando-se de Aurox. Eles estavam segurando copos de plástico vermelhos que estavam cheios de líquido antes de Aurox trombar
com eles. Eles tinham pegado juntos o pequeno barril de metal e estavam tentando arrastá-lo enquanto se afastavam de Aurox.
– Ei, não é um maldito vampiro – um dos garotos disse.
O outro franziu os olhos na direção de Aurox, examinando a sua testa sem Marcas.
– Caramba, você está certo, Zack.
Eles pararam de arrastar o barril.
– Que merda, cara, você nos fez derramar a nossa cerveja. Você quase nos fez sair correndo e deixar o barril para trás.
– Pois é, isso não foi legal – o outro garoto disse, balançando a cabeça e esfregando a mão no líquido que havia caído na sua camisa. Então ele fez uma pausa. –
Espere aí... ele estava correndo. Tem algum vampiro perseguindo você?
– Um vampiro me perseguindo? Não – Aurox respondeu.
– Então por que diabo você estava correndo daquele jeito?
– Porque eu queria correr – Aurox falou sinceramente.
– Cara, da próxima vez olhe por onde anda.
Totalmente confuso, Aurox perguntou:
– O que vocês estão fazendo aqui?
– Caramba, cara, a mesma coisa que você. Tentando ver algumas vampiras tesudas.
– Vampiras tesudas?
O primeiro garoto suspirou.
– Olha só, a gente só vai mostrar o lance se você ficar de boca fechada.
– Vampiras tesudas – Aurox repetiu, sem saber direito se esmagava os crânios deles ou ria.
– Mostre a ele, Jason. Ele não é um deles. E se ele contar a alguém, também vai se foder.
Jason deu de ombros.
– Ok, mas não fale merda nenhuma para ninguém.
– Eu não vou falar merda nenhuma para ninguém – Aurox concordou.
– Certo. Olhe só – Jason fez um gesto para que Aurox o seguisse até o muro. Ele parou e apontou para o barril de metal. – Traga o barril. É muito alto para ver sem
ele.
Aurox levantou o barril de metal e o levou até perto de Jason no muro.
– Caramba, cara, você é forte. Essa merda de barril pesa uma tonelada – Jason o elogiou, rolando o barril para posicioná-lo contra o muro de pedra. Então, cuidadosamente,
ele subiu em cima do barril, segurando-se nas pedras para se equilibrar. – Bem aqui. Você pode ver lá dentro – o garoto encostou o rosto no muro, espiando por um
buraco. – É muito escuro lá dentro, mas às vezes, normalmente a essa hora, dá para ver as vampiras. E não importa o quanto esteja frio, elas não usam muita roupa.
Eu já vi muitas pernas e peitos de vampiras – ele pulou para o chão. – Dê uma olhada.
Sentindo-se surreal, Aurox seguiu as instruções de Jason. Ele se equilibrou facilmente no barril de metal e viu um buraco no muro da escola do tamanho de uma mão
em punho. Através dele, Aurox podia ver a calçada que se estendia entre os dormitórios das garotas e dos garotos. Enquanto ele observava, duas novatas apareceram
no seu campo de visão. As vozes delas chegaram até ele, mas as suas palavras se perderam na noite. Ele podia vê-las, mas não reconheceu as duas garotas. Com um pequeno
sobressalto de surpresa, ele percebeu que elas estavam usando saias que mostravam as suas pernas e pequenos tops justos sobre os seios.
Aurox desceu do barril e encarou os dois rapazes.
– Você viu alguma vampira? – os olhos de Zack brilhavam de excitação.
– Não – Aurox disse.
– Que merda. Parece que teve um monte de coisa rolando lá dentro hoje, mas a gente não conseguiu ver nada – Jason falou. – Então, quer uma cerveja? A gente tem outro
copo.
Sem saber o que fazer, Aurox concordou.
– Eu sou Jason e este é o meu primo Zack – Jason abriu a torneirinha do barril e entregou o copo cheio para Aurox.
– Às gostosas! – Zack brindou, levantando o copo junto com Jason. Os dois garotos olharam para Aurox, esperando que ele também brindasse.
– Sim! – Aurox tentou soar normal e animado. Os dois garotos levantaram os copos e mataram o conteúdo de uma vez, então Aurox os imitou, bebendo demoradamente no
copo de plástico. A cerveja era gelada e um pouco amarga, mas ele gostou. Ele gostou bastante.
– Pode beber – Jason disse. – Nós temos um monte de cerveja. Os outros caras que iam encontrar a gente aqui são uns cuzões e não apareceram.
– Ei, a nós! – Zack brindou novamente.
Aurox bebeu com eles, achando muito relaxante estar ali com os dois garotos, sem que eles ficassem olhando como se ele fosse uma aberração.
Aurox deu outro bom gole, matando o conteúdo do copo. Ele enxugou a espuma na sua boca com as costas da mão e então se ouviu falando sem pensar:
– Eu sou Heath. Vocês vêm sempre aqui?
Jason encheu todos os copos e então os dois garotos sentaram na grama, com as costas contra o muro. Aurox sentou na frente deles.
– Não, a gente achou este lugar só algumas noites atrás.
– Como? – Aurox perguntou e bebeu.
– Bem, a gente estava andando de carro por aí, cuidando da nossa vida, quando Zack disse para parar. Ele tinha visto luzes através do muro – Jason contou. – Eu achei
que ele estava louco.
– Você achou que eu estava bêbado – Zack o corrigiu.
– Você estava as duas coisas, cara – Jason riu.
– É, mas eu estava certo. Quando nós saímos do carro e eu o levantei, Jason encontrou o buraco.
– Antes era mais fácil de ver lá dentro. Tinha um monte de luzes de Natal penduradas nas árvores em todo o campus. Eu dei uma boa olhada numas vampiras tesudas.
Cara, elas são gostosas.
– Novatas – Aurox o corrigiu automaticamente.
– O que é isso?
– Provavelmente você não viu vampiras. Você deve ter visto novatas.
– Que diferença faz? Eu vi pernas e tetas, e isso foi excitante – Jason falou. – E então, você também encontrou um buraco?
– Não – Aurox respondeu.
– Merda! Eu esperava que você tivesse encontrado um lugar em que desse para ver melhor – Jason disse.
– Ei, seu cuzão, você devia ficar feliz com o que eu encontrei. Foi o lugar onde a gente conseguiu ver melhor vampiras de verdade – Zack falou para o seu primo.
– Novatas – Aurox o corrigiu novamente, estendendo o copo para ser cheio mais uma vez.
Jason abriu a torneirinha do barril de novo e encheu o copo dele, mas Zack estava observando Aurox com atenção.
– Como você sabe tanto sobre eles? – Zack perguntou.
– Ei, você é um dos doadores das vampiras? Tipo, você deixa que elas suguem o seu sangue? – Jason endireitou as costas.
– E elas trepam com você? – Zack acrescentou.
– Não. Não – Aurox balançou a cabeça, percebendo que ele estava se sentindo estranho, meio tonto, e que o chão parecia estar balançando um pouco embaixo dele.
– Olha só, a gente não vai falar merda nenhuma para ninguém se você nos contar como entrar nessa parada – Zack disse.
– É verdade, para ninguém. Nenhuma pessoa vai saber – Jason prometeu.
– Eu não sssou o companheiro de ninguém – Aurox falou e arrotou. Então ele deu uma gargalhada. Estava difícil falar, mas ele estava se sentindo bem. Muito bem mesmo.
– Cara, por que você está rindo?
– Não é nem um pouco engraçado você guardar essa merda de segredo só para você.
Aurox terminou o terceiro copo de cerveja em um longo trago.
– Eu estava rindo das bolhas na minha cabeça.
Zack franziu a testa.
– Você é fraco para bebida. É melhor que você não tenha que dirigir muito para chegar em casa.
– Eu não tenho que dirigir – Aurox disse alegremente.
– Então você realmente fica aqui! – Zack concluiu.
Aurox piscou várias vezes, esforçando-se para focalizar o garoto.
– Àsss vezesss eu fico – ele admitiu com voz mole.
– Ok, olha só, a gente não estava brincando. A gente pode entrar nessa de deixar sugarem o nosso sangue. Elas nem precisam nos pagar – Jason propôs.
– Mas não quero fazer isso com caras. Eu não chego até aí – Zack lembrou.
– Ah, é claro. Caras não – Jason concordou. – Mas garotas sim. Totalmente sim.
– E aí, o que a gente tem que fazer? – Zack quis saber.
A cabeça de Aurox estava cheia de pequenas bolhas de ar incríveis, e ele estava com uma sensação estranha nas pernas, como se elas estivessem muito pesadas. Mas
a mente dele parecia estar funcionando direito. Ele sabia que aqueles garotos não deviam estar ali, e ele sabia, com toda a certeza, que não deveria ter trombado
com eles. Mas tudo o que saiu da sua boca foi:
– Espeeere aí. Pensando.
Jason suspirou e deu outro gole de cerveja.
– Talvez essa história de terem sugado muito sangue dele tenha ferrado o nível de tolerância ao álcool dele.
– Eu não estou nem aí, desde que suguem outra coisa além do meu sangue – Zack falou.
– Saquei – Jason disse.
Eles encararam Aurox.
Aurox estava cogitando algumas opções sobre o que fazer ou não. Enquanto pensava, estendeu o seu copo para ser cheio.
– Você tem certeza? Você está ficando muito bêbado – Jason perguntou.
– Pensando – Aurox balbuciou.
Zack deu de ombros.
– Encha o copo. Ele disse que não está dirigindo.
Aurox pensou no que fazer enquanto bebia. Ele podia começar a se transformar em touro e afugentar os dois garotos. Ou ele podia apenas pegar os dois, arremessá-los
na estrada e rosnar. Dos dois jeitos eles iam sair correndo de medo.
Mas ele ia ficar com a cerveja deles.
Só que, quanto mais Aurox pensava em afugentar os garotos, mais ele percebia que isso não era uma boa ideia. A Morada da Noite já estava em confinamento. Não seria
nada bom para a escola se os dois garotos ficassem com tanto medo que fossem procurar as autoridades humanas.
O que Aurox precisava era voltar no tempo e não ter trombado com eles. Mas ele ainda iria querer ficar com a cerveja. Ele tinha gostado muito da cerveja.
Todo o resto precisava ser varrido para fora da noite. Desaparecer. Ser esquecido. Nunca ter acontecido. Exceto a cerveja.
Zack se inclinou para mais perto de Aurox.
– Ei, você está ok?
– Você quer que a gente ligue para alguém, ou algo assim? Como nós dissemos, não vamos contar para ninguém.
Foi então que Aurox teve uma ideia. Era uma boa ideia. Iria resolver o problema com os garotos que tinham encontrado o buraco e mostrar a Stark que ele não era seu
inimigo – e que na verdade ele queria ser seu amigo. Além disso, ele iria conseguir ficar com a cerveja. Aurox sorriu para os garotos.
– Não precisam ligar. Esperem aqui. Eu vou buscar alguém para vocês.
– Fala sério! – Zack exclamou.
– Vampiras? – Jason pareceu acreditar menos ainda.
– Vampiras não. Eu vou trazer o vampiro especialisssta em doadores de sangue – Aurox tropeçou com as palavras.
– Ahn, a gente disse que não estava interessado em homens – Jason falou.
– Não, meu, cala a boca! Ele vai trazer um cara que vai nos levar até as garotas – Zack explicou. – Não dá para simplesmente entrar lá e fazer essa parada. É preciso
seguir algumas regras. Certo, Heath?
– Sim – Aurox respondeu. – Nós vamos seguir as regras – ele se levantou e estendeu o seu copo para que ele fosse cheio de novo. Então ele apontou para Jason e Zack.
– Você. E você. Fiquem aqui. Eu vou voltar com o vampiro e com as regras.
Segurando o seu copo com cuidado, Aurox se agachou e então deu um salto do chão para o topo do muro de quase quatro metros de altura.
– Isso foi demais! – Jason disse.
– Não é de estranhar que não divulguem isso. Se todo mundo soubesse que você ganha, tipo, superpoderes quando um vampiro suga o seu sangue, formaria uma fila em
volta dessa escola inteira de gente querendo entrar – Zack concluiu.
– Fiquem aí – Aurox saltou para os jardins da escola, segurando com cuidado o copo vermelho.
Ele tinha a intenção de correr rapidamente até o ginásio. Era lá que ficava a entrada para o porão e era onde ele acreditava que Stark provavelmente estaria, ajudando
os novatos a se instalarem. Mas a corrida de Aurox foi mais um andar arrastado. E ele não conseguiu entrar discretamente no ginásio, pois a maçaneta da porta não
estava girando certo e, quando ele finalmente conseguiu abri-la, o ímpeto de Aurox fez com que ele tropeçasse para dentro, cambaleando pela areia até o corredor
que levava à porta do porão, e de algum modo trombasse com Kramisha.
– Caramba, Aurox! Peça desculpas! – ela foi ríspida com ele.
– Eu não queria... eu não conseguia abrir... bem, desculpe – ele finalmente conseguiu falar. Ele percebeu que ela e o grupo de novatos ao seu redor estavam olhando
para a sua cerveja. Ele seguiu os olhares deles e viu que o copo estava quase cheio. Então ele levantou os olhos, sorriu para ela e balbuciou: – Eu nnnão derramei
nnnada!
– Você tá chapado! – Kramisha disse. Então ela se virou para a porta aberta do porão e gritou: – Z.! O seu garoto está aqui dando vexame!
– Nããão! Zo, não, eu preciso... – Aurox tentou sussurrar para ela, mas Kramisha abanou o ar na frente do seu rosto, franziu o nariz para aquele cheiro de álcool
e se afastou dele.
– Eca!
– Kramisha? – Zoey estava subindo as escadas do porão. Aurox ficou aliviado de ver que Aurox vinha logo atrás dela.
– Aquilo está fedendo – Kramisha apontou para Aurox. – Ele encheu a cara. Sério. Não sei muito bem o que ele é, mas tenho certeza de que ficar chapado não é bom
para ele – ela fez um gesto para que os outros novatos, que ainda estavam encarando Aurox, a seguissem. – Vamos nos acomodar e deixar que Z. cuide de seus próprios
assuntos.
Aurox os observou indo embora e falou:
– Eu não sou aquilo.
Zoey e Stark se aproximaram de Aurox. Zoey o farejou e olhou para o seu copo quase cheio e para o seu rosto. Os olhos belos e grandes dela ficaram ainda maiores,
mas não mais bonitos.
– Afe! Você está bêbado!
12
Stark
– Bêbado? – Aurox perguntou. Ele parecia confuso e, bem, bêbado. – Bêbado – o garoto repetiu. Então ele assentiu com uma seriedade exagerada. – Sim. Bêbado.
Zoey abriu a boca, sem dúvida para perguntar a Aurox o que estava rolando, mas ele a ignorou, entrou no espaço pessoal de Stark e tentou sussurrar no ouvido dele,
mas falou muito mais alto do que pretendia, exalando um bafo forte de cerveja:
– Stark, você vem comigo. Você tem que fingir que é um vampiro especialista em doação de sangue e fazer com que eles esqueçam as vampiras tesudas.
Zoey fez um barulho que soou como se ela estivesse tendo falta de ar. Stark não conseguiu olhar para ela. Ele estava ocupado demais tentando não cair na risada.
Aurox estava totalmente chapado! E ele tinha acabado de falar em vampiras tesudas – em voz alta! Cara, Zoey ia surtar! A coisa toda era incrível.
– Aurox, quantos copos desse aí você bebeu? – Stark apontou para o copo vermelho quase cheio.
Aurox franziu os olhos para o copo. Stark o viu contando nos dedos.
– Um, dois, três, quatro. Este é o quarto, e eu não derramei nada, mesmo saltando em cima do muro e depois para o chão. Stark, cerveja é bom!
– A minha cabeça vai explodir – Zoey disse.
– Não! Não! Não! – Aurox tentou tranquilizá-la e acabou espirrando cerveja em volta deles. – Nada de mau vai acontecer. Stark vai fazer os garotos humanos esquecerem.
De repente, Stark não achou mais tanta graça em Aurox.
– Espere aí... Que garotos humanos?
– Aqueles com o barril, que estão procurando as vampiras tesudas – Aurox respondeu naturalmente.
– Que diabo está rolando? – Zoey gritou.
– Caramba, Zo, relaxe – Aurox disse. – Eu e Stark podemos cuidar disso.
Por um instante, Aurox soou tão parecido com Heath que Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido. A mão dela buscou a pedra da vidência pendurada no seu pescoço, e
ela ficou manuseando-a nervosamente.
– Zoey – Stark falou em voz baixa, tentando transmitir calma. – Tudo vai dar certo. Seja o que for que estiver rolando, Aurox está certo. Ele e eu podemos cuidar
disso.
Zoey encontrou o seu olhar e assentiu, sem dizer nada. Stark se virou para Aurox. Caramba, era tão estranho! O garoto não parecia nada com Heath. Normalmente, o
jeito como ele falava e agia não lembrava Heath em nada. E agora ali estava o espírito de Heath, todo encharcado de cerveja, reluzindo através de Aurox com um brilho
tão intenso que quase os cegava.
– Dê isso aqui – Stark pegou a cerveja de Aurox e a derramou no chão de areia do ginásio. Aurox ficou olhando como se Stark tivesse desperdiçado água no deserto.
– Agora, conte-me exatamente o que está rolando.
– Eu bebi cerveja com eles. Foi bom, e eles eram legais, mas eles não deviam estar ali. Eu não quis afugentá-los para que eles não contassem aos outros humanos sobre...
– ele fez uma pausa e deu aquele sussurro em voz alta de novo – você sabe, o meu touro. Então, eu falei para eles esperarem lá e vim buscar você, para que você possa
fazê-los ir embora e esquecer.
– Há garotos humanos aqui em algum lugar? – Zoey perguntou.
Aurox franziu a sobrancelha ao olhar para ela.
– Não aqui. Do lado de fora. Lá – ele apontou mais ou menos na direção da porta do ginásio atrás deles.
– Do lado de fora do ginásio! – ela quase gritou.
– Zo, às vezes eu acho que você não escuta direito – Aurox disse. Ainda franzindo a sobrancelha para ela, ele continuou falando devagar, como se estivesse tentando
fazer com que ela entendesse uma língua estrangeira. – Dois garotos. Do lado de fora do muro. Com o barril. E os copos. Eles querem vampiras gostosas.
– Ok, acho que entendi – Stark pegou o braço de Aurox e começou a arrastá-lo em direção à porta e para longe de Z. antes que ela pulasse no pescoço dele, apesar
de que isso seria divertido pra caramba. – Você encontrou dois garotos, com cerveja, tentando pular o muro, certo?
– Viu, você escuta melhor – Aurox deu um tapinha nas costas de Stark, quase o derrubando. – Mas eles só estavam tentando ver vampiras tesudas pelo buraco, e não
tentando pular o muro.
– Se você disser “tesudas” mais uma vez, eu acabo com você – Zoey estava vindo atrás deles.
– Você não pode vir! – Aurox cambaleou e parou. – Você tem pernas e tetas!
– Aiminhadeusa. Eu vou matá-lo!
Stark se colocou entre os dois. Ele encarou Zoey. O rosto dela tinha mudado de pálido para vermelho em meio segundo.
– Z., eu acho que isso é algo para um guerreiro resolver.
Atrás deles, Aurox arrotou, mandando uma onda de bafo de cerveja para eles.
Zoey franziu os olhos e apontou para Aurox.
– Você nunca soube beber! – então ela deu meia-volta e saiu pisando forte até a entrada do porão, batendo a porta depois que passou por ela.
– Ela parece brava. Será que a gente deve trazer uma cerveja para ela? – Aurox perguntou.
Stark disfarçou a sua risada com uma tosse.
– Ahn, não. Z. não gosta de cerveja.
– Ela não gosta de cerveja? Pois deveria. Isso deixaria a cabeça dela borbulhante e feliz.
Stark não se preocupou em disfarçar a risada de novo.
– Eu gostaria que isso funcionasse assim com ela, mas não rola.
– Por que ela tem pernas e tetas?
Stark sabia que era errado o que ia falar, mas não conseguiu se conter.
– Não sei muito bem. Acho que você deve perguntar isso para ela da próxima vez que encontrá-la.
Aurox assentiu, parecendo tão sério quanto um bêbado pode ser.
– Eu vou perguntar.
– Isso vai ser engraçado. Mas, até lá, mostre-me onde esses humanos estão e, enquanto a gente não chega lá, volte ao começo e conte-me exatamente o que aconteceu
antes e depois de você ser apresentado ao copo vermelho Solo11.
Zoey
Aurox era Heath. O irritante, burro e encharcado de cerveja Heath. Vampiras tesudas... Quem é capaz de falar uma coisa assim? Eu sabia a resposta para essa pergunta
ridícula: adolescentes bêbados.
– Bem, eles parecem confortáveis como pulgas em um cachorro velho – Stevie Rae disse, interrompendo o meu diálogo interior e felizmente desviando a minha atenção
da questão Aurox/Heath bêbado e do fato de nem ele nem Stark terem voltado para o porão ainda.
– Quanto tempo falta para o amanhecer? – eu perguntei a ela.
– Pouco menos de uma hora – Rephaim respondeu.
– Ei, Stark já voltou? – Aphrodite falou quando ela, Darius e Shaylin se juntaram a nós.
– Não. Ainda não – eu disse. – Mas Aurox estava bem acabado. Pode levar algum tempo.
Kramisha tinha contado a todo mundo que Aurox estava bêbado. Eu havia falado que Stark o estava ajudando a ficar sóbrio, o que eu imaginei que ele ia fazer depois
de controlar a mente dos garotos que tinham deixado Aurox bêbado. Mas eu não tinha contado essa parte para ninguém. Eles já havia tido estresse bastante por um dia
– caramba, por um ano – e eu não queria apavorar ninguém sem motivo. E normalmente Stark estava certo, ele podia lidar com quase tudo, então eu estava deixando que
ele lidasse com isso.
É claro que eu ia querer ouvir cada detalhe depois que ele botasse os pés na minha frente. Eu também já tinha escolhido bem algumas palavras para dizer para Aurox/Heath
depois que ele ficasse sóbrio. Idiota.
– Eu tenho que concordar com Kramisha. Aurox beber provavelmente não é uma boa ideia – Stevie Rae estava dizendo.
– Comportamento típico de garoto – Aphrodite resmungou.
– Bem, Heath costumava beber. Lembram quando ele apareceu bêbado naquela... – Stevie Rae começou, mas parou de falar quando Aphrodite deu uma cotovelada nela. –
Ah, hum. Certo – então ela obviamente mudou de assunto. – Ei, vocês fizeram um ótimo trabalho aqui embaixo! – ela abraçou Rephaim e sorriu para Darius.
– É verdade – eu entrei na conversa, satisfeita por ela ter mudado de assunto. – Está tudo realmente ótimo, acolhedor e agradável.
Stark, Darius e Rephaim tinham feito a maior parte do trabalho duro, e então os novatos vermelhos de Stevie Rae haviam, rapidamente e em silêncio, levado sacos de
dormir, travesseiros e essas coisas para o porão depois do funeral (enquanto Dallas e os seus amigos tinham se retirado para sabe a Deusa onde).
– Obrigado – Rephaim sorriu.
– Tudo deu certo mesmo – Darius assentiu em reconhecimento.
– É como uma grande festa do pijama! – Stevie Rae exclamou.
– E é exatamente por isso que eu e Darius não vamos ficar – Aphrodite disse. – Na verdade – ela deu um bocejo exagerado –, eu já estou pronta para ir para a cama.
E você, bonitão?
– O seu desejo é uma ordem, minha bela – Darius a beijou.
– Acho que é uma boa ideia que aqueles que ainda estão ficando no dormitório vão para os seus quartos, obviamente – eu falei.
– Alguém viu Dallas e os seus amigos idiotas? – Aphrodite perguntou.
– Não, mas eles têm que estar em algum lugar do campus – eu respondi.
– Eu só digo que a gente deve ficar feliz por eles não terem aparecido aqui – Stevie Rae afirmou. – Talvez Dallas tenha voltado para o seu quarto porque ele está
triste por causa de Erin. Ela era a sua namorada.
– Da última vez que eu o vi, ele estava bravo, não triste – Aphrodite falou.
– O que você quer dizer? – eu quis saber.
– Depois do funeral, eu o vi observando Stevie Rae e Rephaim – Aphrodite contou.
– As cores dele são do mal – Shaylin disse. – Redemoinhos de raiva. Eu concordo com Aphrodite. Ele está bravo, não triste. Eu detesto dizer isso, mas, se ele e os
seus amigos horríveis estão escondidos no quarto dele, não é porque eles estão tentando consolá-lo. Aposto que ele quer se vingar, não ficar bem.
– Então ele precisa ir atrás de Neferet. Se tem alguma culpada pela morte de Erin, é ela – eu concluí.
– As cores dele dizem que ele não pensa assim – Shaylin explicou. – Ele está louco. Ponto. E ele vai querer atacar alguém que esteja na frente dele.
– Nós precisamos observá-lo – Aphrodite acrescentou. – Principalmente você, Shaylin. Se você vir as cores dele rodopiando de um jeito doido e anormal, corra para
avisar algum dos nossos guerreiros. Na hora. E depois encontre Thanatos ou Z.
Eu olhei para as duas Profetisas.
– Gostei de ver que vocês estão trabalhando juntas – eu disse.
– Eu também – Stevie Rae concordou.
– Nós só estamos fazendo o nosso trabalho – Aphrodite respondeu. – Não precisamos ficar de beijinhos e abraços. E por falar em trabalho, alguém já deu uma olhada
em Shaunee?
Eu suspirei.
– Provavelmente ela ainda está lá na pira. Por que não vamos todos até lá chamá-la? Ela precisa tomar um banho e dormir um pouco – eu sugeri.
– Ok – Stevie Rae concordou. – Estou feliz por estar dividindo o quarto com ela. Também vou cuidar para que ela coma alguma coisa antes de dormir.
– Bom, eu vou ter que perguntar... Como Rephaim volta para o seu quarto? Vocês simplesmente deixam a janela aberta ou o quê? – Aphrodite quis saber.
– Você só está perguntando para ser maldosa?
– Não, caipira. Não desta vez. Eu só fiquei curiosa.
Eu não disse nada. Na verdade, eu também estava curiosa. Shaylin e Darius também ficaram quietos. Ok, porque era estranho que Rephaim se transformasse em um pássaro
todo dia e a gente estava louco para saber os detalhes.
– Ela deixa a janela aberta sim, mas só um pouco – Rephaim respondeu por Stevie Rae.
– Ahn. Então você entra e sai voando? – Aphrodite perguntou.
– Normalmente eu só entro voando – Rephaim explicou. – Eu vou andando para o lado de fora um pouco antes do amanhecer. Eu voo de volta quando o sol se põe.
– E as suas roupas? – Shaylin fez a pergunta que eu queria fazer, mas não consegui, pois não pensei em um jeito de formulá-la como uma Grande Sacerdotisa.
– Ele tira a roupa antes de o sol nascer – Stevie Rae contou. – E eu levo a roupa dele para o nosso quarto. Então ele se veste quando se transforma nele mesmo novamente.
– Aposto que seria péssimo se vocês errassem o horário de abrir a janela – Shaylin disse.
Rephaim sorriu.
– Você está certa. Eu detestaria ter que ficar pendurado naquela janela do terceiro andar, gritando, até que alguém me ouvisse e me ajudasse a entrar.
– Você estaria pelado – Stevie Rae deu uma risadinha.
– Seria tipo aqueles pesadelos em que a gente está pelado na escola no meio da aula – eu falei.
– Eu também tenho esses pesadelos! – Shaylin exclamou. – É horrível. E eu nunca consigo encontrar os meus sapatos. Como se eu fosse me importar com os sapatos se
eu estivesse pelada na escola!
– Eu estou feliz que você é apenas um guerreiro alto, bonito e musculoso – Aphrodite falou para Darius, levantando na ponta dos pés e dando um beijo nele. – Essa
coisa de pássaro pelado ia me estressar.
– Ele não fica pelado quando ele é um pássaro – Stevie Rae afirmou. – Ele tem penas.
– Vamos embora – eu falei antes que as duas começassem a me dar dor de cabeça.
Acenamos para o grupo de garotos que estavam acomodados em um vários de sacos de dormir, cobertores e travesseiros, todos amontoados em volta da maior TV de tela
plana que passou pela entrada estreita do porão. O som da música louca de abertura de Django Livre nos seguiu escada acima.
– Ainda não descobri se gosto desse filme ou não – eu comentei.
– Z., Quentin Tarantino é um gênio. Obviamente louco, mas ainda assim um gênio – Aphrodite falou quando fechamos a porta do porão.
– Diferente de você, que só é louca – Shaylin disse para ela.
Stevie Rae estava rindo para Shaylin quando Nicole saiu do ginásio e apareceu no corredor, acabando com as risadas como se ela tivesse desligado um interruptor.
Com um farfalhar de asas, Kalona surgiu atrás dela.
– O que ela está fazendo aqui? – Stevie Rae ignorou Nicole e interpelou Kalona.
– Ela me encontrou e disse que estava procurando por você – Kalona explicou.
– Ou querendo me espionar – Stevie Rae afirmou.
– Espionar? Sério? Isso é mais ridículo do que chamar Tarantino de gênio – Nicole respondeu.
Aphrodite rosnou como um gato bravo.
Eu dei um passo para a frente e senti Darius se mover para o meu lado.
– O que você quer, Nicole? – eu perguntei.
A novata vermelha sustentou o meu olhar sem se abalar.
– Eu preciso dizer uma coisa para Stevie Rae.
– Então diga – eu falei. – Ela está bem aqui.
Nicole respirou fundo e então se aproximou de Stevie Rae. Rephaim a estava observando cuidadosamente, e Kalona estava logo atrás dela. Eu fiquei tensa, preparada
para alguma loucura que ela poderia fazer, mas senti um toque no meu braço.
– Não – Shaylin disse em voz baixa. – Não é nada de mau.
E Shaylin estava certa. Nicole parou na frente de Stevie Rae, colocou sua mão em punho sobre o coração e se curvou respeitosamente.
– O que eu quero dizer é que sinto muito por tudo de ruim que eu causei antes. Sinto muito por ter tentado ferir você. Eu não tenho nenhuma desculpa pelo que fiz.
Foi errado. Eu mudei e também quero mudar de lado. Quero que você seja a minha Grande Sacerdotisa.
Posso dizer que Stevie Rae ficou chocada – acho que todos nós ficamos. Bem, talvez Shaylin não, mas o resto de nós definitivamente ficou. Stevie Rae olhou para mim.
Eu dei de ombros. Ela olhou novamente para Nicole e perguntou:
– Por que eu deveria acreditar em você?
– Bem, eu pensei nisso antes de vir falar com você e não consegui encontrar nenhuma resposta certeira, então eu decidi correr o risco de você acreditar em mim porque
acho que as Grandes Sacerdotisas simplesmente sabem das coisas. Se isso for verdade, então você vai saber que pode acreditar em mim.
– Consulte a sua Profetisa – Kalona sugeriu.
– Ei, eu não sei de nada. Nenhuma visão. Nenhuma sensação sobrenatural também. Nada – Aphrodite falou. – Pergunte para Shaylin.
Stevie Rae olhou para a outra Profetisa.
– O que você vê?
– As cores dela são bonitas. Ela não é mais toda vermelha. Ela é rosa, como uma flor. Ela não está escondendo nada, exceto que ela está muito mais nervosa do que
parece – Shaylin fez uma pausa e sorriu para Nicole. – Desculpe pela última parte do que disse, mas preciso contar a verdade para Stevie Rae.
Nicole estava mordendo os lábios. Ela assentiu e falou rapidamente:
– Eu entendo. E você está certa. Eu estou nervosa.
– Onde está Dallas? – Stevie Rae perguntou a ela.
– A última vez que o vi foi quando eu estava indo para o meu quarto. Ele disse que estava indo para o dormitório dos garotos para uma maratona de Resident Evil no
quarto dele. Eu falei que não poderia ir. Já chega de sangue e morte por um tempo – ela respondeu.
– Então você não vai mais andar com ele de novo? – Aphrodite a questionou.
Nicole a encarou.
– Eu não quero ter nada a ver com ele.
– Só porque você ainda está brava depois que ele a traiu com Erin? – Aphrodite a cutucou.
– Não, porque eu não quero ficar com alguém do mal. Dallas é do mal – ela replicou.
– Ela está dizendo a verdade – Shaylin afirmou.
– Você tem a responsabilidade de dar uma chance a ela – Kalona disse.
Na hora eu achei estranho ele dizer isso, mas então eu realmente pensei sobre o assunto. Se existia alguém que sabia sobre segundas chances, esse alguém era Kalona.
– Acho que ele está certo – eu falei. – Você é a única Grande Sacerdotisa vermelha que ela tem e, se ela está jurando lealdade, então você tem que aceitá-la e dar
a ela a chance de provar que a palavra dela realmente vale alguma coisa.
– É isso o que você está fazendo? Jurando lealdade a mim?
– Sim.
– Bem, então eu vou te dar uma chance – Stevie Rae afirmou.
Eu vi o rosto de Nicole ficar vermelho e reparei que ela piscou com muita força, como se pudesse chorar. Stevie Rae obviamente também percebeu, pois quando ela falou
com Nicole de novo a sua voz estava mais suave.
– Eu preciso ver se Shaunee está bem, então vou pedir para Shaylin a levar até onde estão os outros garotos – Stevie Rae disse.
– No dormitório? – Nicole perguntou.
– Não, os meus novatos vermelhos estão acomodados no porão – Stevie Rae contou a ela.
– Um porão? Sério? – Nicole sorriu. – Que demais!
Senti o resto de desconfiança que eu tinha sobre Nicole se esvair. Parecia mesmo que ela não tinha a menor ideia sobre o porão.
– Shaylin, tudo bem você levá-la até lá embaixo e ajudá-la a se instalar? – Stevie Rae perguntou.
– Claro! Eu vou ficar lá de qualquer jeito. Venha, Nicole, vamos pegar o resto de Django Livre. Também tem sangue e violência, mas pelo menos tem um final feliz.
Antes de Nicole sair sorrindo com Shaylin, ela colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou para Stevie Rae de novo.
– Obrigada, Grande Sacerdotisa.
Stevie Rae inclinou a sua cabeça graciosamente em resposta e, soando como uma Grande Sacerdotisa totalmente madura e incrível, disse:
– Abençoada seja, Nicole.
13
Shaunee
– Você não precisa ficar – Shaunee se dirigiu a Thanatos, sem olhar para a Grande Sacerdotisa. Ela manteve a sua atenção na pira em chamas. – Eu vou ficar em vigília.
Acho que eu devo, e além disso é algo que eu realmente quero fazer.
– Você foi uma boa amiga para ela – Thanatos afirmou.
– Espero que eu tenha sido. Eu tentei ser, mas as coisas ficaram muito confusas e nada saiu como eu esperava.
– Minha filha, assim é a vida: confusa, dolorida, mas maravilhosa. Só o que qualquer um de nós pode fazer é tentar ser o seu melhor, além de aprender com os nossos
erros e com as nossas vitórias.
– Bem, agora o melhor que posso fazer é ficar aqui, velando Erin até o amanhecer.
– É uma tradição antiga que aqueles que mais amaram os mortos permaneçam ao lado dos seus amados na pira desde a primeira chama até o primeiro brilho do amanhecer.
Eu vou deixá-la em sua vigília. Abençoada seja, Shaunee.
Shaunee cruzou o punho sobre o coração e se curvou para Thanatos respeitosamente, então se virou para voltar a olhar as labaredas da pira funerária.
– Você também não precisa ficar – Shaunee falou para o imortal, que ela sabia que a estava observando das sombras. – Stevie Rae e Zoey vão precisar de você. Eu vou
ficar bem.
– Eu não gostei do jeito de Dallas hoje. Ele quer desforra por essa morte, o que é impossível – Kalona afirmou.
– Ele pareceu triste quando acendeu a pira. Talvez seja só isso... ela era a sua namorada – Shaunee disse, querendo acreditar nisso.
– Se ele realmente a amasse, ele a estaria velando, assim como você – Kalona colocou para fora algo em que Shaunee não quis pensar.
– Cada um tem um jeito diferente de sofrer – ela respondeu.
– Eu conheço o jeito dele de sofrer, e agora isso vai se transformar em raiva. Ele vai atacar, tentando apagar a sua dor com violência e vingança.
– Foi isso o que você fez? – Shaunee desviou os olhos da pira e se voltou para Kalona. A beleza do imortal alado era quase tão luminosa quanto as chamas, apesar
de o brilho dele ostentar uma luz prateada sobrenatural.
– Sim – ele admitiu devagar. – Sim, foi isso o que eu fiz. É por isso que eu reconheço a mesma coisa em Dallas. Também é por isso que eu sei como ele pode se tornar
perigoso.
– Isso é uma coisa que eu não entendo – Shaunee disse. – Como perder o amor de alguém pode fazer você querer destruir pessoas? Quando Erin e eu deixamos de ser gêmeas,
eu fiquei triste e sozinha. Mas eu não pensei em fazer nada de ruim para ela nem para Dallas, apesar de achar que ele não era bom o bastante para ela – Shaunee se
virou novamente para encarar o imortal, que não havia respondido nada, mas continuou com o braço estendido, com a palma da mão voltada para fora, na direção da pira,
controlando o seu elemento e permitindo que o seu calor familiar aliviasse a tristeza dentro dela.
– Acho que a sua pergunta só pode ser respondida por cada indivíduo.
– Então você não vai me responder?
Kalona hesitou, e Shaunee viu várias emoções passando pelo seu rosto bonito: tristeza, dúvida e até irritação. As suas asas se agitaram com impaciência, mas ele
finalmente respondeu:
– Quando eu perdi Nyx, o único jeito de conseguir suportar isso foi substituir todo o amor que eu sentia por ela por raiva. Quando eu me consumia com raiva, eu me
fazia acreditar que amar a Deusa havia sido uma mentira – Kalona encontrou o olhar de Shaunee, e ela pensou que podia enxergar éons de sofrimento em seus olhos âmbar.
– Para manter essa raiva era preciso pagar um preço, e esse preço era violência, destruição, morte e escuridão.
– Mas não faria mais sentido se você tivesse chegado em Nyx e admitido que não queria viver sem ela?
Kalona deu um sorriso infinitamente triste.
– O meu orgulho me impediu de enxergar qualquer caminho de volta até ela.
– E ainda impede?
– Não. Agora é a própria Nyx que me impede de estar ao seu lado – Kalona explicou.
– Acho que ela não vai impedi-lo para sempre – Shaunee disse.
– Você é jovem – ele falou. – Você ainda não viveu o bastante para que a vida mate a sua capacidade de ter esperança.
– Bem, eu não conheço Nyx tão bem quanto você, mas com certeza eu acredito que ela é uma Deusa justa e misericordiosa. Ela prova isso toda hora. Eu já vi isso, e
tenho apenas dezoito anos – Shaunee fez uma pausa. – Talvez não importe quanto tempo você já viveu para ter a capacidade de ter esperança, mesmo quando as coisas
parecem impossíveis. Talvez seja só uma questão de quanta fé você tem.
– Eu tenho fé, jovem novata. Eu tenho fé de que Nyx perdoe aqueles que merecem o seu perdão – ele afirmou.
– Você acha que não merece o perdão dela, não é?
– Eu sei que não mereço – ele curvou ligeiramente a sua cabeça para ela. – Continue a velar sua amiga. Não vou perturbá-la mais – então ele desapareceu na escuridão.
Shaunee se voltou para a pira de novo e levantou a outra mão. Ela deu um passo para ainda mais perto, fechou os olhos e deixou que o seu elemento a invadisse. Enquanto
isso, ela fez uma oração que se elevou junto com a fumaça até Nyx.
– Deusa, esta é a minha despedida de Erin. Eu sei que ela está com você, finalmente em paz. Obrigada por amá-la e por cuidar dela. Obrigada também por amar Kalona
e tomar conta dele, porque não importa o que aconteça, eu sei que você não dá as costas para as pessoas que ama.
– Você se acha tão fodona, tão melhor do que eu, não é?
A voz de Dallas fez Shaunee dar um salto, e ela não conseguiu dizer nada por um tempo enquanto controlava o seu elemento. A pira em chamas refletiu o seu choque
e, se Shaunee não tivesse se concentrado e conseguido manter o controle, pelo curso natural das coisas Dallas seria consumido pelo fogo.
Quando ela estava com o seu elemento sob controle de novo e foi capaz de voltar a sua atenção a Dallas, o garoto idiota estava parado ali, sorrindo ironicamente
para ela e parecendo o babaca que era, ignorando totalmente o fato de que ela tinha acabado de salvar a sua vida besta.
– Não, Dallas, eu não penso que sou melhor do que você. A verdade é que eu simplesmente não penso em você – ela falou.
– Erin achava que você era uma vaca nervosinha – ele disse.
Shaunee mordeu os lábios em vez de atacá-lo. Ela poderia tê-lo fritado com o seu fogo ou com suas palavras. Mas ela não queria fazer nenhuma coisa nem outra, principalmente
na pira de Erin. Então ela pensou nisso por um longo e desconfortável momento e disse a coisa mais agradável que ela conseguiu pensar:
– Você tem certeza que sabia o que Erin realmente pensava sobre qualquer coisa?
– Eu trepava com ela! É claro que eu sabia o que ela pensava – ele saiu das sombras e deu alguns passos em direção a Shaunee, e o seu sorriso irônico virou um riso
de escárnio. – A não ser que você queira me dizer que também trepava com ela.
Shaunee o encarou, chocada demais com a ignorância maldosa das palavras dele para saber o que responder.
– Que meeeerda! Eu sabia que vocês eram próximas de um jeito anormal. Você trepava com ela! E ela nem me contou. Que pena. Nós três podíamos ter nos divertido.
A chama que estava crescendo dentro de Shaunee se tornou incandescente de tão forte. A sua mente clareou. Então ela capturou Dallas com o seu olhar.
– Eu não gostava quando você estava com Stevie Rae. Para mim, sempre pareceu que tinha algo errado com você. Além disso, você é baixinho demais – ela não conseguiu
deixar de falar isso. Então ela se concentrou de novo e se esforçou para dizer a verdade, sem xingamentos nem comentários maldosos. Ela canalizou o fogo, mas, em
vez de queimá-lo, Shaunee o chamuscou com as suas palavras. – Em toda a sua vida, o maior desejo de Erin foi encontrar qualquer um, qualquer coisa, que a fizesse
sentir algo. Você foi apenas o último em uma longa lista desses “qualquer um”. Eu entendo como ela estava confusa e vulnerável, e eu realmente me importava com ela,
mesmo depois que ela não era mais a minha melhor amiga. Se você realmente se importava com ela, vai demonstrar isso ficando aqui comigo até o sol nascer e respeitando
a sua memória, apesar de ela já ter partido.
Dallas não desviou o olhar dela. Os seus olhos se encheram de lágrimas, que se derramaram. Shaunee pensou ter vislumbrado o garoto de verdade por um segundo – o
garoto que realmente podia ter sido capaz de amar Erin. Então ele piscou com força e enxugou o rosto com a manga. E sorriu.
– Você é tão burra quanto Erin dizia. Eu não posso ficar aqui até o sol nascer. Eu sou um vampiro vermelho. O sol vai me queimar.
O elemento de Shaunee a preencheu e a acalmou. Ela não ia responder as palavras detestáveis dele com mais veneno.
– Você sempre sabe quando chega o amanhecer. Você pode ficar aqui até um pouco antes de o sol nascer e então ir embora. Eu vou esperar até o final com ela. Erin
iria gostar disso.
– Acho que você acabou de dizer que eu era apenas o último de uma longa lista de “qualquer um” – ele falou.
– Eu não devia ter dito isso... Foi maldoso da minha parte, e não é certo ficar brigando na pira de Erin. Dallas, eu sinto muito.
A risada dele foi sarcástica.
– Você não sente muito, você é fraca. Erin sabia disso quando deixou você. Assim como eu sabia quando deixei Stevie Rae.
– Você não deixou Stevie Rae. Ela se apaixonou por Rephaim. Ela o deixou, e você não conseguiu lidar com isso. Foi então que você se voltou para as Trevas, onde
você ainda está.
– Foda-se Stevie Rae! Fodam-se todos vocês! Os seus amigos são o motivo da morte de Erin! – Dallas gritou, dando um passo ameaçador na direção dela.
Shaunee levantou uma mão. Ela canalizou um muro de calor, que crepitou entre eles. Protegendo o seu rosto com o braço, Dallas se afastou cambaleando.
– Você vai pagar pelo que fez! Todos vocês vão pagar pelo que fizeram!
Stark
– O cara com certeza vai estar mal amanhã – Stark falou quando entrou no antigo quarto de Zoey. Só faltavam uns dez minutos para o amanhecer, e ele se sentia exausto,
com um cansaço profundo dentro dele.
– Você demorou uma eternidade. Eu estava realmente ficando preocupada de que você não voltaria antes de o sol nascer – Zoey se sentou na cama e abaixou o livro que
ela estava lendo.
– Pois é, desculpe. É que eu não podia deixá-lo acabado daquele jeito – ele sorriu para Z. e foi até a pia. – Shaunee está bem?
Zoey pareceu incomodada com a pergunta.
– Sim, ela parece bem. Bem, ela está triste e tal, mas é normal. Ela vai ficar na pira até o sol nascer. Parece que Dallas esteve lá e fez alguma cena idiota, o
que é a cara dele, mas Shaunee lidou bem com a situação.
– Você não pensou que deveria estar com ela?
– Com Shaunee? Na pira? – Zoey franziu a sobrancelha para ele.
– Sim. Você é a Grande Sacerdotisa dela.
– Bem, tecnicamente, enquanto nós estamos presos aqui na Morada da Noite, Thanatos é a Grande Sacerdotisa dela, não eu. E Shaunee disse que falou para Thanatos que
queria ficar sozinha na pira. Thanatos respeitou a sua vontade, eu achei que também deveria respeitar. Você vê algum problema nisso?
Stark juntou água nas mãos para enxaguar o sabão do seu rosto enquanto tentava pensar em como falar com Z. Ela estava tão sensível desde aquela coisa toda na varanda
da cobertura, que mostrou que Aurox era Heath e Heath era Aurox. Ele se sentia como se estivesse vivendo com um porco-espinho!
– Não – finalmente ele respondeu. – Não vejo problema nenhum. Z., eu não estava tentando brigar com você. Eu só queria saber de Shaunee.
– O funeral de Erin acabou. Shaunee está bem. Só isso. Eu quero saber o que realmente aconteceu com Aurox e aqueles garotos humanos. Eu não estava entendendo nada
que Heath estava falando.
O estômago de Stark se contraiu.
– Você quis dizer Aurox.
– É, Aurox – Zoey franziu a testa. – Foi o que eu disse. Então, o que está rolando?
Stark estava cansado demais para discutir com ela, então ele ignorou o seu lapso freudiano12, apesar de aquilo ter feito o seu coração doer.
– Dois caras encontraram um buraco no muro da escola, não muito longe daqui. Eles estavam bebendo e tentando ver vampiras gostosas. Só isso – ele repetiu as palavras
dela, tirou a camisa e começou a escovar os dentes.
– Stark, sério? Você está deixando de contar um monte de detalhes.
Ele deu de ombros e falou com a escova de dente na boca, esperando que ela se tocasse e parasse com aquele interrogatório.
– Nada de mais. Eu usei os meus superpoderes de vampiro vermelho para fazê-los acreditar que eu era um policial e que eles tinham sorte, pois eu não ia levá-los
para a cadeia, nem acusá-los de se intoxicarem em público e nem chamar os seus pais. E agora eles acreditam que a Morada da Noite está na minha ronda, e eu disse
que vou procurar por eles todas as noites de agora em diante, o que significa que eles não vão voltar.
– Bem, isso é ótimo.
Ela não disse mais nada até ele terminar de escovar os dentes e deitar na cama, mas ele sabia, pelo jeito como ela estava mordendo o lábio e pelas rugas na sua testa,
que ela ainda tinha muito mais a dizer. Além disso, ele podia sentir a tensão de Zoey. Ele sempre podia sentir a tensão dela. Stark percebeu que deveria massagear
os seus ombros e tentar fazê-la relaxar, mas ele não conseguia esquecer o motivo da tensão dela.
Aurox era Heath. Zoey amava Heath.
E isso feriu os sentimentos de Stark e fez com que ele se sentisse uma merda.
Então ele se deitou perto dela e apagou o pequeno lampião a gás, desejando com todas as forças que Zoey se encostasse no seu ombro, colocasse os braços em volta
dele e dissesse que ele não precisava se preocupar, pois ela não queria ficar com Aurox, Heath nem mais ninguém além dele.
Em vez disso, no escuro, Zoey perguntou:
– Por que ele estava lá fora?
Stark suspirou.
– Ele estava correndo em volta do muro da escola. Eu não entendi muito bem por que e ele estava muito chapado para explicar.
– Correr deixa a mente dele quieta – Zoey disse.
– Como você sabe?
Houve um silêncio curto, e ele quase pôde ouvi-la pensando, então ela respondeu:
– Era isso que Heath costumava fazer quando ele tinha um problema. Ele corria até ficar exausto e isso deixava a mente dele quieta.
– Ah – Stark se sentiu mais merda ainda nesse momento.
– Onde ele está agora? – ela quis saber.
– Apagado no porão – Stark contou.
– Eu achei que ele não dormia.
– Pode ser que ele não durma, mas eu juro que ele apagou.
– Você o virou de lado, para que ele não engasgue se vomitar?
– Não, mas sinta-se livre para ir lá virá-lo você mesma, já que você está tão preocupada com ele.
– Stark, eu só estava...
– Eu sei o que você só estava. Eu sei a coisa toda, Zoey. Esse é o problema.
– Você não precisa ficar bravo comigo – ela disse.
– Eu não estou bravo. Estou cansado. O sol está se levantando e eu preciso dormir. Boa noite – Stark virou de lado. De costas para ela, ele se encolheu, desejando
que ela colocasse os braços em volta dele e o puxasse para mais perto, dizendo que tudo ficaria bem, que eles iam dar um jeito de resolver isso juntos.
Em vez disso, ele a ouvir dizer “boa noite” em voz baixa. Ele sentiu a cama mexer quando ela se virou para o outro lado.
Stark nunca ficou tão satisfeito de se entregar ao chamado do sol e ao sono sem sonhos que o amanhecer trazia.
Stevie Rae
Era sempre tão difícil se despedir de Rephaim. Stevie Rae estava rolando sozinha na cama. Ela estava exausta – o sol havia se levantado há alguns minutos, e ela
estava lutando com a necessidade de dormir que a deixava esgotada. Mas estava sendo difícil sossegar a sua mente. Stevie Rae não conseguia parar de pensar em como
queria que Rephaim estivesse ali com ela. Não que ela quisesse ser ingrata com Nyx, mas depois do funeral de Erin, de Thanatos romper com o Conselho Supremo, de
Nicole (ela!) jurar lealdade, sem falar no fato de Neferet estar sabe-se lá onde, ela queria muito, muito mesmo, ficar deitada de conchinha com Rephaim e se sentir
segura e amada.
Em vez disso, ela se despediu dele lá fora um pouco antes de o sol nascer e então subiu para o quarto que estava dividindo com Shaunee. Stevie Rae havia ficado com
a cama mais próxima da grande janela panorâmica, apesar de essa não ser a escolha mais inteligente. O quarto delas era voltado para o leste e recebia muita luz do
sol pela manhã. Se elas não tivessem cortina blackout, ela iria ficar como bacon frito.
Mas elas tinham cortinas blackout grandes, grossas e escuras. Elas eram tão pesadas e tão firmemente atadas que, apesar de Stevie Rae deixar a janela aberta o dia
inteiro enquanto dormia, nem um vento mais forte as tirava do lugar. Isso era bom, pois ela sempre deixava a janela aberta. Afinal, e se Rephaim precisasse voltar
para ela? E se ele se metesse em alguma encrenca enquanto era corvo e precisasse de um lugar seguro para se esconder? Ela queria acreditar que uma parte do garoto
que ela amava permanecia lá no fundo dele, mesmo quando ele era um animal.
Era por isso que ela desejava que ele a deixasse assistir a sua transformação em corvo. Ela tinha pensado bastante nisso, e ela podia tentar tocá-lo... tentar domesticá-lo.
Depois do dia em que a Deusa perdoara Rephaim e concedera a ele a forma de um garoto humano durante as horas entre o pôr do sol e o nascer do sol, ela havia dito
para ele: “Afinal, eu já domestiquei uma besta uma vez. Talvez eu possa fazer isso de novo!”. Ela esperava que Rephaim desse risada, como ele sempre fazia – ele
parecia tão feliz perto dela. Mas ele não riu. Ele ficou todo sério, pegou a mão dela e disse: “Quando eu era um Raven Mocker, tinha um pouco de humanidade dentro
de mim. Você tem que lembrar que eu sou diferente agora. Quando eu sou um garoto, como agora, sou completamente humano. Quando sou um corvo, não sou mais nada além
de uma besta, um animal. Eu não reconheço você. Eu não reconheço nem a mim. Eu só reconheço o céu e a necessidade de voar com o vento”.
Aquilo a assustou. E ela contou isso a ele. Ela não escondia nada de Rephaim – eles eram próximos demais para isso.
“Mas você sempre volta para mim. Será que isso não significa que uma parte de você ainda está dentro do corvo?”
Ele pareceu triste, mas disse a verdade, como eles haviam prometido dizer sempre um ao outro.
“Quando eu sou um corvo, eu sou um animal. Eu não sei o que é o amor. Eu não reconheço você. Por favor, não tente transformar isso em algo que não é.”
“Mas você volta para mim!”
“Stevie Rae.” Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Eu acho que isso só acontece por causa da magia de Nyx.”
“Como se ela tivesse colocado um GPS aí dentro, para que você pudesse me encontrar?”
“GPS?”
“Uma magia moderna que ajuda a encontrar o caminho de volta para casa.”
Ele abriu o sorriso.
“Sim! Nyx colocou um GPS dentro de mim para que eu possa encontrar você.”
Stevie Rae afastou o seu cobertor e olhou para a cama vazia de Shaunee. Ela queria tentar ficar acordada para se certificar de que Shaunee estava bem. Devia ser
horrível perder a melhor amiga. Apesar de Erin e Shaunee terem passado por problemas, isso não mudava o fato de que até algumas semanas atrás elas eram inseparáveis
desde que chegaram na Morada da Noite. Havia uma grande diferença entre brigar com a sua melhor amiga e a sua melhor amiga morrer.
A mente de Stevie Rae automaticamente voltou para a noite em que Erin havia tossido o seu sangue vital e morrido. Zoey estivera com ela em cada segundo. Isso tinha
ajudado. O fato de Shaunee estar lá com Erin também havia ajudado. E agora Shaunee estava fazendo a coisa certa, velando a pira da sua amiga até depois do amanhecer.
Stevie Rae rolou na cama e ficou olhando para a cortina blackout, tentando manter os olhos abertos, tentando lutar contra a falta de energia que naturalmente acometia
os novatos e vampiros vermelhos quando o sol se levantava. Não era impossível para ela ficar consciente durante o dia. Só era difícil. Muito difícil. As suas pálpebras
pesavam. Talvez ela pudesse descansar só um pouquinho. Ela iria escutar Shaunee entrando e acordaria para ver se ela estava bem...
A porta abriu tão devagar e sem fazer barulho que quase não acordou Stevie Rae. Ela estava deitada de lado, virada para a janela, lutando para despertar completamente.
Shaunee está tão quieta, Stevie Rae disse a si mesma, meio grogue. Talvez ela não queira conversar. Talvez ela só queira dormir. Stevie Rae resolveu que iria virar
de lado e abrir os olhos, mas não ia falar nada – apenas ia deixar Shaunee saber que ela estava lá, acordada (mais ou menos), se ela precisasse conversar. Ela começou
a se virar e de repente ouviu um som crepitante estranho bem acima do seu ombro. Ela tentou se virar e o barulho virou um zumbido ainda mais estranho, até que um
choque elétrico, como eletricidade estática em esteroides, atingiu-a, fazendo com que ela se deitasse novamente na cama.
Instantaneamente desperta e totalmente apavorada, Stevie Rae tentou sentar de novo, dizendo:
– Shaunee, tem algo errado aqui.
Apesar de não haver nada acima dela, a eletricidade a atravessou novamente! Ainda deitada de lado, Stevie Rae pressionou o seu corpo contra a cama, tentando se afastar
daquele perigo invisível que estava pairando acima dela.
– Shaunee! – ela gritou. – Ajude-me!
– Ela não tá aqui. Ela ainda tá se acabando de chorar na pira da Erin. Hipócrita de merda.
A respiração de Stevie Rae ficou ofegante de pânico quando ela reconheceu a voz dele.
– Dallas, o que você está fazendo aqui? – automaticamente, Stevie Rae começou a tentar alcançar a proteção do seu elemento, mas o quarto de Shaunee ficava no terceiro
andar do dormitório, ou seja, muitos metros acima da terra para que o seu elemento pudesse ajudá-la sem o auxílio de um círculo traçado e o reforço do poder de Zoey.
Ele deu um passo e entrou no campo de visão dela: uma silhueta escura contra as cortinas negras. Ela conseguiu ver que ele estava com uma das mãos levantadas, com
a palma voltada para ela. A palma da mão dele estava incandescente. Com a outra mão, ele segurou a corda grossa que prendia as cortinas no lugar.
– Vamos apenas dizer que estou aqui para começar a dar o troco.
Stevie Rae tentou sair da cama. Um campo elétrico crepitou e deu um choque nela, fazendo-a gritar de dor e se retrair.
– Dallas, isso é loucura! Shaunee vai chegar a qualquer momento.
– Já vai ser tarde demais para você. E não se preocupe, eu vou cuidar para que Shaunee também receba o que ela merece. Mas primeiro é a sua vez – o olhar dele estava
frio, e a sua voz, cheia de ódio. – Eu vou matar Shaunee rápido, com apenas um “zap”. Mas você não... Você merece sofrer. Você me traiu com uma aberração da natureza.
Agora vai fritar por causa disso!
Dallas puxou a corda com força, soltando as cortinas blackout. Abrindo metade da cortina, mas tomando cuidado para se manter coberto, ele deu um passo para trás.
A luz do dia invadiu o quarto através da janela descoberta diretamente em Stevie Rae.
Foi como se ela tivesse entrado na boca de uma fornalha. O campo elétrico a prendia na cama enquanto a luz do sol começava a queimar a sua pele. Stevie Rae cobriu
o rosto, contorcendo-se de agonia, e começou a gritar.
Então de repente tudo ficou muito louco.
Houve um grito estridente e terrível, tão alto que penetrou a agonia de Stevie Rae.
– Ahhh! Merda! Saia de mim! – Dallas estava berrando e cambaleando pelo quarto.
O campo elétrico que a estava mantendo presa se dissipou e Stevie Rae rolou para fora da cama. Ela se encostou na lateral da cama, escapando para a sombra fria.
Dallas passou bruscamente por ela, tentando chegar até a porta, mas o ataque do corvo gigante era implacável. Totalmente chocada, Stevie Rae viu o pássaro tirar
sangue de Dallas, arranhando com suas garras os braços levantados dele, enquanto batia suas asas enormes e guinchava de ódio.
A porta abriu bruscamente e Shaunee correu para dentro do quarto.
– Stevie Rae! O que...
Dallas a agarrou, segurando-a na frente dele, usando-a como um escudo.
– Não, Rephaim, não machuque Shaunee!
O corvo desviou suas garras no último segundo, apenas roçando a lateral do rosto de Shaunee, e o impulso do seu ataque fez com que ele passasse por ela e se chocasse
brutalmente contra a parede.
Dallas empurrou Shaunee na direção do pássaro e então saiu correndo em disparada pela porta, batendo-a com força depois de passar por ela.
Shaunee se arrastou pelo chão até Stevie Rae.
– Aiminhadeusa! A sua pele! Ah, Stevie Rae, você se queimou muito! Não se mexa... não se mexa! Eu vou fechar as cortinas e buscar ajuda.
Stevie Rae segurou a mão dela. Ofegante de dor, ela se esforçou para falar:
– Deixe Rephaim sair primeiro. Ele vai ficar assustado.
Shaunee não teve que procurar o corvo. Ele voou até elas, passando tão perto que Stevie Rae sentiu o ar que ele movimentou. Ele aterrissou no pé da cama. Empoleirado
ali, ele observou Stevie Rae atentamente, inclinando a cabeça.
– Pode ir – ela disse, tentando soar calma e normal. – Eu estou bem. Vá lá para fora – Stevie Rae levantou a mão, fazendo um gesto fraco na direção da janela aberta
e ignorando o fato de que a sua mão, o seu braço e, ela tinha certeza, o seu rosto, estavam todos chamuscados e ensanguentados. – Shaunee vai cuidar de mim agora.
Eu o vejo no pôr do sol.
Ele inclinou a cabeça de novo e grasnou baixinho.
Stevie Rae pensou que ele era o pássaro mais lindo que ela já tinha visto na vida.
– Eu te amo, Rephaim – ela falou. – Obrigada por me salvar.
Como se ele estivesse apenas esperando ouvir isso, o corvo enorme abriu as asas e levantou voo pela janela aberta.
Shaunee correu até a janela e fechou as cortinas blackout, amarrando-as rapidamente e com firmeza.
Ela se agachou ao lado de Stevie Rae.
– Quer que eu a ajude a deitar na cama?
– Não. Apenas busque ajuda.
Depois que Shaunee saiu correndo do quarto, Stevie Rae pressionou o rosto contra o chão e rezou para desmaiar.
14
Neferet
Nyx tirou de mim a única coisa que eu amava. Na sua toca, as palavras sussurraram ao redor dela, fazendo as gavinhas de Trevas estremecerem contra a sua pele. Envolvida
pelo seu casulo frio com toque afiado, Neferet viajava pelo tempo e por diferentes dimensões através da sua consciência, saltando como uma pedra sobre um lago plácido,
enquanto entrava em contato com o passado.
Como novata, ela já era respeitada e valorizada. Depois da sua Transformação em vampira, era inevitável que Neferet se tornasse uma Grande Sacerdotisa. Ela não teve
que ir atrás desse título. Ele viera até ela sem esforço, como ela tão abundantemente merecia.
Da mesma forma, o guerreiro chegou até ela.
O nome dele era Alexander. Ela se lembrou da primeira vez que o viu nos Jogos de Verão. Naquele dia, ele havia se tornado Mestre da Espada e derrotado todos os competidores
para obter a coroa, que era uma guirlanda de oliveira trançada com fitas vermelhas. Como a mais jovem Grande Sacerdotisa da Morada da Noite, Neferet tinha colocado
a coroa em sua cabeça e dado o beijo cerimonial da vitória em seus lábios.
Ela se lembrou de sentir o cheiro do seu suor misturado ao do sangue dos oponentes que ele havia derrotado. Os olhos dele a haviam seguido pelo resto da cerimônia.
Mais tarde, ele lhe dissera que nunca tentaria seduzi-la naquela noite, pois estava todo sujo, ainda coberto do sangue coagulado da competição. Mas Neferet o havia
seduzido, e não havia permitido que ele se lavasse e se preparasse para ela.
Ele costumava sorrir e contar várias vezes a história de como a sua Grande Sacerdotisa sentira tanto desejo por ele que nem quisera esperar que ele se banhasse.
O que Alexander não havia entendido até que fosse tarde demais é que Neferet havia sentido tanto desejo por ele por causa do sangue e do suor que o cobriam.
Durante o restante dos Jogos de Verão, Alexander se apaixonou por ela. Tanto que solicitou a transferência da Morada da Noite de Nova York para a escola de Tower
Grove de St. Louis, onde Neferet dava aula de Feitiços e Rituais. Como o novo vitorioso coroado dos Jogos de Verão, o seu pedido de transferência estava garantido.
Neferet o teria descartado logo após a chegada dele, como ela fez com todos os seus amantes anteriores, não fosse pela gatinha.
Alexander tinha, é claro, escutado a história da morte de Chloe e do grande “dom” que Neferet havia recebido de Nyx naquela noite. Então depois que chegou à Morada
da Noite de Tower Grove, ele se ajoelhou, curvou-se reverentemente diante dela e tirou de uma mochila em suas costas uma gatinha preta manhosa que bateu na mão dele
com pequenas garras afiadas que reluziam de todos os seus doze dedos.
Neferet estendeu os braços para pegar a gatinha.
– Uma polidáctila! Onde você a encontrou?
– No cais da margem do East River, do lado de Manhattan. Os marinheiros gostam de gatos com seis dedos. Eles juram que eles matam o dobro de ratos do que os gatos
com dedos normais. Quando eu a encontrei, sabia que você devia pertencer a ela, assim como eu sabia que você devia pertencer a mim.
Encantada com o olhar travesso da gatinha, Neferet não descartou Alexander.
Ele era um guerreiro poderoso. O talento de Alexander com a espada quase se emparelhava ao talento de Neferet para curar. Neferet gostava da ironia do amor dele
por ela. Ele podia abater os homens. Neferet podia curá-los – mesmo que essa cura não fosse nada mais do que um toque que suavizasse o caminho deles até o Mundo
do Além.
É claro que Alexander não costumava abater homens – a menos que ele ou a Morada da Noite estivessem ameaçados, e em 1899 havia poucos que se atreviam a ameaçar a
poderosa e rica Morada da Noite de Tower Grove.
Entediada, Neferet começou a ignorar Alexander. Ela tinha a pequena Claire, outra gata adorável e travessa toda sua. Ela tinha as suas ocupações na Morada da Noite.
E, o mais importante, ela tinha poderes que estavam crescendo mais a cada dia. Todas essas coisas eram mais interessantes que o honrado, dependente e enfadonho Alexander.
Ela nem teve que usar as suas habilidades de empatia para prever as suas declarações de amor eterno. Ela teve que usar a sua capacidade de diplomacia para suportá-las
sem bocejar.
No começo de 1900, Neferet recebeu um convite incomum. Ela foi a Grande Sacerdotisa mais jovem a ser convidada para a Assembleia na Ilha de São Clemente durante
a qual o Conselho Supremo iria liderar uma discussão sobre o rumo que a sociedade dos vampiros deveria tomar nesse novo século, no qual eles acreditavam que as invenções,
a ciência e a tecnologia iriam avançar a uma velocidade sem precedentes.
Alexander implorou para que Neferet permitisse que ele a acompanhasse. Ela recusou inflexivelmente. Ela não tinha a menor intenção de tolerar a sua atenção constante
e enjoativa lá, onde haveria tantos novos guerreiros para escolher. Afinal, os guerreiros mais condecorados, poderosos e experientes sempre eram escolhidos para
proteger o Conselho Supremo dos Vampiros e a Morada da Noite da Ilha de São Clemente.
Ela permitiu que ele conduzisse a carruagem que iria levá-la até o Mississipi River, onde estava o barco a vapor da Morada da Noite que a levaria como se ela fosse
uma rainha – ou melhor, uma deusa – até o porto de Nova Orleans. Lá ela iria se juntar a muitas outras Grandes Sacerdotisas para a travessia do Atlântico.
Eles tinham acabado de chegar ao cais onde estava o barco a vapor quando os ladrões atacaram. Confundindo a magnífica carruagem de mogno da Morada da Noite com a
de um jogador rico, os seis humanos, atraídos por uma carruagem tão opulenta com apenas um motorista e sem guardas adicionais, atacaram Alexander. Na escuridão,
eles não viram as tatuagens elaboradas que o Marcavam para sempre como vampiro. Já era tarde demais quando eles viram a sua espada.
Neferet assistiu da janela da carruagem, encantada, Alexander matar os seis atacantes rapidamente e brutalmente. Neferet pensou que o som que a espada dele fazia
quando cortava o ar devia ser como o canto das míticas Valquírias pairando acima de um campo de batalha nórdico, esperando para escolher os guerreiros mortos que
elas levariam para Valhalla.
Gotejando sangue, ele correu até a porta da carruagem e a abriu impetuosamente. Respirando ofegante, ele disse:
– Minha Sacerdotisa! Graças a Deusa que você não se feriu.
– Acho que devo agradecer a você – ela o possuiu ali, coberto de sangue, ainda carregando o cheiro forte e doce da batalha. O sangue de ambos pulsava quente pela
matança.
Depois de tudo, ele se ajoelhou diante dela e se curvou, dizendo:
– Grande Sacerdotisa Neferet, amor da minha vida, eu Juro servi-la como o seu guerreiro, com meu corpo, meu coração, minha mente e minha alma. Por favor, aceite-me!
– Eu aceito o seu Juramento – Neferet se ouviu dizer enquanto o seu corpo ainda pulsava pelo toque dele. – De agora em diante você será o meu guerreiro.
Levou exatamente um dia e uma noite inteiros para que ela se arrependesse de ter aceitado o Juramento de Alexander. Felizmente, os dons de empatia de Neferet permitiam
que ela fosse capaz de conter o fluxo de emoções que normalmente corria entre um guerreiro sob Juramento e a sua Grande Sacerdotisa. Alexander lamentava o fato de
não conseguir sentir as suas necessidades nem ouvir as suas emoções. Ele se queixou que, se ela estivesse em perigo, ele não saberia disso, como qualquer guerreiro
sob Juramento deveria saber.
Neferet apenas deu de ombros e disse que era uma ironia que as suas habilidades de empatia de algum modo negassem o compartilhamento psíquico entre guerreiro e Sacerdotisa.
Ele foi um tolo de acreditar nela. Como ele não conseguia enxergar que era ela quem controlava a ligação deles? Se Neferet se importasse mais, ela teria explicado
que ele deveria ser grato por não conseguir saber os verdadeiros pensamentos e emoções dela. Quando eles chegaram a Veneza, Neferet havia pensado em atirá-lo para
fora do navio exatamente trezentas e sessenta e uma vezes, apesar de ele ter passado toda a viagem felizmente sem saber da verdade.
Neferet estava certa sobre os guerreiros de São Clemente. Eles eram espetaculares. E ofuscando todos estava Artus, o Mestre da Espada do Conselho Supremo.
Artus tinha o porte de um deus. Ele era indiferente e intocável. A palavra dele era lei para os Filhos de Erebus. Ele respondia apenas a Duantia, líder do Conselho
Supremo.
E, o mais importante, ele adorava batalhas. Ele era impiedoso e só terminava as sessões de treinamento depois de tirar sangue pelo menos três vezes de cada oponente
e de fazer cada um se render formalmente a ele.
Artus não era bonito – ele era glorioso. Ele era alto. Os seus músculos eram longos e delgados. A pele dele era negra como as asas de um corvo. Ao contrário de Alexander,
cujo corpo jovem e musculoso era liso e sem cicatrizes, Artus era coberto de evidências que ilustravam uma vida de violência.
Mas não era apenas a sua aparência que atraía Neferet. Era o que fervia abaixo dela. Neferet usou o seu dom e esquadrinhou a mente dele, leu os seus desejos, conheceu
as suas necessidades. Artus se excitava com a dor. Era por isso que ele exigia tanto dos seus guerreiros. Foi assim que ele se tornou o líder Mestre da Espada do
século anterior e havia permanecido nessa função no novo século. Era por isso também que ele não havia se ligado por Juramento a nenhuma Sacerdotisa. Ele não queria
que nenhuma delas conhecesse a sua verdadeira natureza nem descobrisse as suas reais necessidades. Em vez de tomar uma vampira como amante, Artus escolhia prostitutas
humanas para saciar os seus desejos. Surpreendentemente, Neferet escutou poucas fofocas sobre a escolha de parceiras de cama de Artus. As outras Grandes Sacerdotisas
o achavam desconcertante. Ele era muito indiferente, muito sério. Ele fazia o seu trabalho melhor do que qualquer guerreiro no mundo – era só isso que importava
para as vampiras de São Clemente. Era só isso que as outras sabiam sobre ele. Mas Artus não podia se esconder de Neferet. Para ela, ele era um pergaminho escrito
a sangue, fácil de ler, fácil de apreciar. Neferet o desejava mais do que ela já havia desejado qualquer um. Ela ficou determinada a possuí-lo.
Seduzir Artus era mais difícil do que Neferet esperava. Neferet ofuscava a todas, mesmo no meio da beleza sobrenatural das mais importantes e poderosas Grandes Sacerdotisas
da sua época. Mas Artus parecia invulnerável à beleza de Neferet.
A indiferença dele serviu apenas para acender mais o desejo dela por ele.
Ela o analisou. Aprendeu os seus hábitos. Neferet se vestiu com o traje cerimonial tradicional das antigas Grandes Sacerdotisas italianas, que deixava os seus seios
à mostra, o seu cabelo enfeitado com flores e hera, e os seus quadris viçosos envoltos em um tecido transparente da cor do rubor de uma virgem. Então ela se certificou
de que iria liderar o traçado do círculo que diariamente pedia as bênçãos de Nyx para os guerreiros Filhos de Erebus.
Ela podia sentir os olhos de Artus em seu corpo, mas, quando ela tentava encontrar o olhar dele e atrair mais a sua atenção para ela, ele sempre desviava os olhos
rapidamente.
Infelizmente, Alexander não desviava os olhos dela. Nunca. O seu guerreiro achava que a razão pela qual ela estava gastando tanto tempo e atenção com os guerreiros
no ginásio era por devoção a ele. Alexander se pavoneava por causa disso, gostando dos olhares invejosos dos seus novos amigos guerreiros. Ele se vangloriava de
o poder de Neferet ser tão grande quanto a sua beleza. Ele atendia cada capricho dela como um cachorrinho. Alexander a desconcertava tanto quanto a irritava. Como
ele não percebia que ela apenas o aceitou porque não pensou muito? Ela sondou a mente do guerreiro procurando algum subterfúgio, mas não encontrou nenhum. Os sentimentos
dele eram verdadeiros. Ele era completamente apaixonado por ela e estava totalmente iludido achando que ela sentia o mesmo por ele.
Alexander não podia estar mais errado.
Neferet ansiava por algo mais sombrio, mais sensual, que a satisfizesse mais plenamente. Ela ansiava por Artus. Na próxima vez em que ela liderou a Oração do Guerreiro
e sentiu os olhos de Artus roçarem o seu corpo, Neferet se concentrou na força total do seu dom e investigou profundamente a mente dele. Ela foi fartamente recompensada.
Ela descobriu exatamente como seduzir o guerreiro indiferente.
Neferet preparou o terreno cuidadosamente. Ela esperou até um pouco depois do amanhecer. Ela sabia que Artus já teria terminado de treinar os guerreiros. Ele estaria
em seus aposentos, nos fundos do ginásio, preparando-se para descansar por seis horas. Então ele iria assumir o turno mais desconfortável de guarda, durante as horas
em que o sol estava mais brilhante no céu.
A Grande Sacerdotisa presumia que Artus havia escolhido esse turno por causa da sua devoção a eles. Neferet sabia a verdade por trás dessa crença conveniente. Artus
tinha prazer na dor física que o turno desconfortável e o sol causavam a ele. Neferet guardou esse segredo delicioso para ela enquanto arquitetava a sua sedução.
Primeiro, ela se livrou do guerreiro novato que servia como assistente de Artus. Essa foi a parte mais fácil. Ela permitiu que o novato a acariciasse – ela fingiu
que sentia desejo pela sua juventude e pelo seu corpo perfeito. Ela o fez acreditar que iria enviar um novato em seu lugar naquele amanhecer para servir Artus, se
o garoto fosse se encontrar com ela em uma hospedaria discreta na vizinha Ilha Torcella.
É claro que depois ela iria negar ter tentado seduzi-lo. Na verdade, ela se divertiu em pensar qual punição Artus iria dar a ele depois de descobrir por que o garoto
havia escapado de suas obrigações.
Em seguida, ela se desvencilhou de Alexander. Ela tinha pensado em mandá-lo até Veneza para encontrar um corte de seda perfeito em uma cor impossível de achar, mas
ela não gastou a sua energia para inventar uma missão para enganá-lo. Em vez disso, ela esperou até que ele estivesse com a atenção em outro lugar e invocou névoa,
sombras e escuridão para desaparecer antes que ele pensasse que precisava procurar por ela – e ela tinha certeza de que ele iria fazer isso. Ele sempre procurava
por ela. Neferet sorriu de desgosto. Por que ela deixara que sangue e luxúria a acorrentassem a um ser tão previsível e entediante? Neferet deu de ombros e afastou
o pensamento desagradável sobre Alexander e a sua devoção. Ela não iria mais pensar nele – ela não queria estragar o prazer que ela tinha certeza de que se aproximava.
Corada de excitação, Neferet foi sem ser vista até o ginásio. Ela entrou pela porta dos fundos – a mais próxima dos aposentos de Artus. Então ela esperou.
Neferet não teve que esperar muito. Como ela já havia descoberto, Artus era um vampiro de hábitos regrados. Exatamente trinta minutos após o amanhecer, como o seu
novato não apareceu, ele abriu a porta do quarto e gritou rispidamente:
– Salvatore! Onde você está, garoto?
– Salvatore não está aqui. Ninguém está aqui além de nós dois – ela disse.
Quando saiu de seus aposentos, ele estava franzindo a testa, com o cabelo molhado, o peito nu e apenas uma toalha enrolada meio solta em volta do seu quadril esbelto.
– Sacerdotisa, você se perdeu do seu guerreiro?
Neferet empinou o queixo e falou com voz dura:
– Guerreiro, você perdeu o respeito? Eu sou uma Grande Sacerdotisa. Espero ser saudada como tal.
Artus levantou uma sobrancelha escura, mas obedeceu, colocando a mão em punho sobre o coração e se curvando para ela.
– O que posso fazer por você, Neferet?
– Ah, você sabe o meu nome.
– Todos na Ilha de São Clemente sabem o seu nome. O que posso fazer por você, Neferet? – ele repetiu.
– Eu estou aqui para uma aula – ela respondeu.
– O seu guerreiro é um Mestre da Espada talentoso. Por que não ter uma aula com ele?
Ela curvou os lábios carnudos em um sorriso e ronronou:
– Ah, mas você me entendeu mal. Eu não estou aqui para ter aula. Estou aqui para dar aula.
Ele arregalou os olhos escuros quando ela tirou uma tira de couro das dobras do seu vestido e levantou a adaga que estava escondendo atrás dela. Então ela cortou
a alça dos seus ombros, e o seu vestido deslizou pelo seu corpo até o chão. Nua, ela caminhou até ele, sem falar nada até estar bem próxima.
– Coloque suas mãos à frente e junto os pulsos.
– Neferet, o que você...
– Eu não permiti que você falasse! Faça o que eu mando! – ela ordenou.
Como ele apenas ficou parado ali feito uma estátua, ela levantou a adaga e a encostou no peito dele.
Ele respirou fundo, mas não se moveu nem desviou os olhos dela.
Neferet sorriu, mas falou de um jeito mordaz e cruel:
– Obedeça-me!
– Sim, Grande Sacerdotisa – a voz dele havia se tornado penetrante. Ele levantou as mãos, juntando os pulsos.
Neferet amarrou a tira de couro em volta deles, apertando até perceber que estava desconfortável. A respiração de Artus estava ficando acelerada. O suor começou
a brotar do seu corpo de ébano.
– Ótimo, mas você não me obedeceu rápido o bastante. Eu devo puni-lo, mas só se você implorar.
Os olhos deles se encontraram. Ela viu choque e então compreensão e desejo dentro dos olhos dele.
– Por favor, Neferet, puna-me – ele implorou.
Ela ficou feliz em atender o seu pedido.
Na sua toca, o corpo de Neferet se aqueceu ao se lembrar de como ela o havia punido. Ela estava montando em Artus, imaginando-se como uma deusa ancestral montando
um touro de sacrifício, quando Alexander os encontrou. Ele gritou o nome dela, soando como um garoto de escola magoado. Totalmente absorta pelos espasmos de êxtase
e dor, ela desmontou de Artus para encarar Alexander, derrubando as barreiras que ela havia construído entre eles.
– Veja quem eu realmente sou! Veja o que eu realmente penso de você!
As emoções dela bombardearam Alexander. Ela se lembrava de como o rosto dele havia ficado pálido quando ele soluçou e saiu correndo do ginásio.
Quase tão pálido quanto no dia seguinte, quando ele foi encontrado caído sobre a sua própria espada, depois de ter acabado com a sua vida miserável e tediosa.
Ela teve que fingir estar arrasada em público, é claro, não pela primeira vez nem pela última em sua vida. Ela inventou uma história que retratou Alexander como
um jovem guerreiro perturbado. Ela chorou e disse que havia aceitado o seu Juramento porque acreditava que tinha a capacidade de curá-lo. A sua preocupação com as
emoções instáveis dele era o motivo de ela estar passando tanto tempo no ginásio – era a razão pela qual ela havia insistido em liderar a Oração do Guerreiro.
O Conselho Supremo havia reagido com compaixão, elogiando-a pela sua tentativa de curar alguém que obviamente estava tão frágil. Isso não havia sido surpresa. Neferet
era perita em manipular Grandes Sacerdotisas. A reação de Artus ao suicídio de Alexander é que tinha sido uma surpresa.
Ela foi até ele no próximo amanhecer, encobrindo-se se escuridão e entrando discretamente nos aposentos dele. Ele a rejeitou completamente. As suas palavras foram
respeitosas, mas ela viu dentro dele. Artus estava sentindo repugnância por ela.
Neferet cortou as suas desculpas tão meticulosamente quanto havia cortado a sua pele.
– Conte a qualquer um por que Alexander realmente se matou, e eu vou explicar em detalhes ao Conselho Supremo sobre a sua necessidade de punição. Você sabe o que
aconteceria. É por isso que você esconde os seus desejos com prostitutas humanas, pagando pelo silêncio delas. Se o Conselho Supremo descobrir isso, vai acreditar
corretamente que essa sua necessidade o afeta como guerreiro e vai tirar você de seu posto.
– Você é totalmente desprovida de compaixão – a aversão na voz dele nunca saiu da cabeça de Neferet.
– Nós dois usamos máscaras, não é? Guarde o meu segredo e eu guardarei o seu.
Neferet partiu da Ilha de São Clemente no dia seguinte, logo depois de acender a pira de Alexander. O Conselho Supremo havia sido compreensivo. É claro que ela deveria
voltar para a sua Morada da Noite imediatamente. A perda de um guerreiro Juramentado podia mudar a vida de uma Grande Sacerdotisa!
Artus ficou em silêncio.
Um ano depois, Neferet soube como o Conselho Supremo havia ficado chocado quando o corpo dele foi encontrado boiando no Grande Canal. Não havia nenhum sinal de violência
em seu corpo, apenas as suas muitas cicatrizes. Aparentemente, ele havia se afogado de propósito. Neferet sorriu com a notícia.
Sozinha na viagem de volta, Neferet havia caído em desespero. Ela tinha começado a acreditar que não haveria nenhum homem, humano ou vampiro, que pudesse ser um
par à altura dela. O seu desespero ia ficando cada vez maior enquanto o fim da viagem se aproximava. Ondas de emoção, junto com as do oceano, se levantavam diante
dela e batiam contra a costa, penetrando o chão e ensopando a terra.
Foi então que os sonhos começaram. Ela sonhou que estava envolta em poder, coberta de grandeza, apreciada além da dor e do prazer.
“Nenhum mortal está à sua altura porque você merece se unir a um deus!”
Aquela bela voz sussurrou, e Neferet começou a ouvir.
15
Zoey
– Ah, que merda. Ela está pior do que eu imaginava – Aphrodite disse.
– É, está mesmo – a minha voz soou trêmula, enquanto meus amigos e eu olhávamos pelo vidro do cubículo de terapia intensiva da nossa enfermaria.
Shaunee tinha levado até lá Stark, eu, Aphrodite e Darius. No caminho até a enfermaria, ela nos contou rapidamente o que Dallas havia feito. Eu prometi a mim mesma
que não ia chorar, que eu ia ser uma Grande Sacerdotisa forte e madura e dar um bom exemplo, mas só de olhar para Stevie Rae fiquei muito assustada e tive vontade
de explodir em lágrimas. Ela estava usando um camisetão de show do Kenny Chesney, mas todas as partes do corpo dela que a camiseta não cobria – rosto, braços e pernas
– estavam muito vermelhas, cobertas de bolhas horríveis que pingavam sangue. Margareta, a vampira responsável pela enfermaria, disse que ela ainda não tinha recuperado
totalmente a consciência, e isso não era bom, pois Stevie Rae precisava beber sangue, senão ela não ia começar a se curar.
– Não dá para fazer uma transfusão nela ou algo assim? – Aphrodite perguntou.
– Já perguntei isso – Shaunee falou enquanto eu enxugava meus olhos e fungava. Stark me estendeu um Kleenex. – Os vampiros não são como humanos. Uma transfusão não
ia funcionar. Nós temos que absorver sangue pela boca, pela garganta e, bem, você sabe, por toda parte, para que ele nos cure.
– Espero que você saiba como isso soa nojento – Aphrodite comentou.
– Aphrodite, eu mastigaria cocô e cuspiria no pescoço de Stevie Rae se isso a fizesse melhorar – eu afirmei.
– Isso não vai ser necessário – a voz de Thanatos fez com que todos virassem na direção da entrada da enfermaria. Ela tinha aberto a porta. Kalona entrou. Rephaim
vinha logo atrás dele. Descalço e colocando a camisa, ele passou correndo pelo seu pai.
Ele foi direto até Stevie Rae. Nós ficamos agrupados perto da porta, observando e esperando.
– Stevie Rae, está na hora de acordar agora – Rephaim sentou ao lado dela na cama do hospital. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas a sua voz dele não estava
trêmula. Ele soou calmo e seguro de si. – Eu vim o mais rápido que pude. Sinto muito que você teve que ficar assim tanto tempo, mas você sabe o problema que eu tenho
durante o dia. Eu não sou exatamente eu mesmo – ele tentou rir, mas em vez disso saiu um soluço. Ele limpou a garganta e enxugou os olhos, dizendo: – Mas isso não
é tão ruim quanto o seu problema com o sol – ele estendeu a mão como se quisesse tocar o rosto dela, mas desistiu por causa da carne viva e das bolhas. Em vez disso,
ele colocou a mão sobre o peito dela, em cima do coração. – Ei, eu preciso que você acorde agora – ele repetiu, com as lágrimas caindo cada vez mais rápido.
Kalona passou por nós para ficar ao lado do seu filho.
– Rephaim, você tem que fazer com que ela beba de você. Você é ligado a ela, e dentro das suas veias pulsa a força dos imortais. Só você pode curá-la.
Rephaim levantou os olhos para o seu pai.
– Ela não está consciente. Ela não está acordando.
– Então você precisa forçá-la a beber.
Rephaim assentiu. Ele levantou o braço que estava sobre o coração de Stevie Rae e mordeu a si mesmo. Com força. Bem no pulso.
Eu nem precisei ver o sangue brotando através da ferida. Eu o farejei na hora. Tinha um cheiro superestranho. De certo modo, era meio fedido, como mofo ou terra
recém-cavada. Mas também tinha algo mais, que lembrava chocolate escuro, temperos e uma brisa fresca iluminada pela lua no meio de uma noite quente de verão.
– Uau, que cheiro bizarro – Stark murmurou.
Eu não disse nada porque não conseguia parar de salivar. Só o que eu podia fazer era olhar com desejo quando Rephaim se inclinou para a frente e gentilmente segurou
a cabeça de Stevie Rae, enquanto pressionava o seu pulso ensanguentado contra os lábios abertos dela.
– Beba, Stevie Rae. Você tem que beber – Rephaim suplicou.
Stevie Rae não teve nenhuma reação. O sangue de Rephaim escorreu pelos cantos da boca dela e fez uma poça vermelha nos lençóis brancos do hospital, parecendo delicioso...
irresistível...
– Zoey! Ajude-a.
Percebi que estava olhando hipnotizada para o sangue de Rephaim quando a voz de Kalona me fez dar um salto e voltar a mim.
– Co-como? – eu gaguejei.
Thanatos respondeu por ele.
– Invoque o espírito. Faça com que ele a fortaleça e a preencha. O corpo dela vai se curar se o seu espírito despertar, para que ela possa beber do seu companheiro.
– É claro... Eu entendo, desculpem – limpei a minha garganta e respirei fundo, ignorando o cheiro de sangue que encheu os meus pulmões. – Espírito, venha para mim!
– eu me senti melhor quando o meu elemento respondeu. Mais eu mesma. Mais no controle. Com o pé no chão novamente, eu ordenei: – Vá para Stevie Rae. Preencha-a e
fortaleça-a para que ela volte para nós! – o meu cabelo se levantou quando o espírito saiu de mim e se derramou sobre Stevie Rae.
Imediatamente, ela respirou fundo e começou a tossir, engasgada com o sangue. E então os olhos dela se abriram e ela segurou o braço de Rephaim, sugando o seu pulso,
bebendo avidamente.
– Não deixe que ela beba demais para não o enfraquecer – Kalona colocou a mão no ombro do filho. – Ela vai precisar beber de você novamente, muitas vezes, até ficar
completamente curada, e você tem que estar forte o bastante para que ela possa fazê-lo.
Rephaim assentiu e gentilmente colocou a sua mão sobre a de Stevie Rae.
– Stevie Rae, você precisa parar agora. Mais tarde você pode beber mais.
Eu vi os olhos de Stevie Rae quando ela olhou para ele. Eles estavam vermelhos. A sua expressão era feroz.
– Oh-oh – Stark disse.
Ele e Kalona ficaram tensos ao mesmo tempo, mas a voz de Thanatos soou como um bálsamo, suavizando o ambiente no quarto:
– Deem tempo a ela. Stevie Rae é uma vampira, uma Grande Sacerdotisa. Confiem nela. Ela vai se encontrar.
E, de fato, Stevie Rae piscou algumas vezes e os seus olhos voltaram ao normal. Ela tirou o pulso de Rephaim de sua boca, limpando o sangue dos seus lábios e parecendo
que ia chorar.
– Eu o machuquei? Sinto muito, Rephaim!
– Shhh – ele a acalmou, puxando-a para os seus braços. – Você nunca iria me machucar.
De repente ela se sentou e encarou Rephaim. Eu fiquei impressionada ao ver que a pele dela já parecia menos queimada.
– Você me salvou! Quando você era um corvo!
– Você precisou de mim. Eu podia sentir a sua dor. Eu fui até você.
Shaunee já havia nos contado a sua versão do que havia acontecido, mas ouvir aquilo de Rephaim foi surreal. Tipo, o cara era um pássaro durante o dia. Ele não deveria
ser nada mais além de um pássaro. Mesmo assim, ele tinha salvado a vida de Stevie Rae.
– Você é o cara mais maravilhoso do universo! – Stevie Rae sorriu com amor e alegria para ele. – Você se lembra?
Rephaim enxugou as lágrimas dos seus olhos e sorriu para ela. Desta vez, ele pôde tocar levemente o rosto vermelho de Stevie Rae.
– Eu só lembro que você precisava de mim e da raiva do corvo.
– Bem, isso é o bastante para mim – ela falou. Então ela voltou a sua atenção para Thanatos. – Dallas tentou me matar e também matar Shaunee.
– Ah, Deusa! – Shaunee exclamou. – Eu sabia que Dallas estava bravo quando ele voltou para a pira de Erin, mas eu não sabia que ele estava louco.
– Ele não é louco – Stevie Rae disse. – Ele é malvado.
– E ele é poderoso – Thanatos acrescentou. – Capture-o – ela deu a ordem a Kalona. – Traga-o até mim. O Conselho Supremo pode ter virado as costas para nós, mas
a Morte ainda pode julgar e fazer justiça.
Kalona colocou a mão em punho sobre o coração, mostrando ter entendido a ordem dela. Quando ele saiu a passos largos do quarto, Stark afirmou:
– Eu vou com ele.
– Faça isso, e não permita que o imortal mate Dallas. Eu o quero bem vivo – Thanatos o instruiu.
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark se curvou rapidamente para ela e para mim antes de sair apressado atrás de Kalona.
– Os meus novatos vermelhos. Estão todos bem? – Stevie Rae perguntou.
Thanatos assentiu.
– Kalona e Aurox montaram guarda enquanto eles dormiam pacificamente durante o dia – A Grande Sacerdotisa respondeu.
– E Darius foi direto para o porão se juntar a Aurox assim que Shaunee nos contou o que tinha acontecido – Aphrodite complementou.
Eu fiquei surpresa ao ouvir o nome de Aurox. Aquela definitivamente não era a hora certa para mencionar isso, mas ele não tinha ficado superbêbado e depois passado
o dia todo apagado?
– Então os alvos dele eram apenas Shaunee e Stevie Rae? – eu quis saber.
– Eu não sei – Shaunee disse. – Ele parecia irritado com todos nós. Bem, eu quero dizer todos do círculo de Zoey. Acho que ele nos culpa por Erin ter rejeitado a
Transformação.
– Sim, ele me disse que estava apenas começando a dar o troco matando Shaunee e eu – Stevie Rae se recostou em Rephaim, como se ela estivesse absorvendo força do
toque dele.
– Isso é ridículo – Aphrodite falou. – Se há alguma culpada, é Neferet.
– Nós éramos alvos mais convenientes – Shaunee comentou.
– Ninguém mais vai ser alvo de novo, não enquanto a Morte reinar como Grande Sacerdotisa aqui – Thanatos afirmou. – Mas até Kalona e Stark encontrarem Dallas, todos
nós temos que ficar em alerta máximo – ela se virou para mim. – Zoey, eu sei que todos nós estamos preocupados com o fato de os garotos estarem dormindo juntos no
mesmo lugar, mas eu vou ordenar que você e o seu círculo, junto com as suas Profetisas, descansem lá com os novatos vermelhos. Isso vai nos dar duas linhas de proteção.
A primeira vai ser Darius e os guerreiros Filhos de Erebus. A segunda vai ser o seu próprio círculo.
– Você quis dizer os novatos vermelhos de Stevie Rae, certo? – eu quis saber. – Dallas tem todo aquele outro grupo que o segue.
– E que são igualmente detestáveis – Stevie Rae acrescentou. – Na noite passada, sabe a novata vermelha Nicole, aquela que ajudou Lenobia a salvar os cavalos quando
o estábulo pegou fogo? – Stevie Rae perguntou para Thanatos, que assentiu. – Então, ela oficialmente saiu do grupo de Dallas e jurou lealdade a mim, basicamente
porque Dallas e o seu grupo são totalmente detestáveis.
Eu estava abrindo a boca para concordar com Stevie Rae – eu não queria de jeito nenhum ficar presa em um porão com aqueles idiotas que Dallas chamava de amigos –,
mas Thanatos falou primeiro.
– Quando o meu julgamento de Dallas terminar, não haverá mais novatos que o seguem – a voz dela era como gelo.
Eu me perguntei como Thanatos faria para que os novatos vermelhos idiotas ficassem legais, mas ela tinha tipo uns milhões de anos de experiência e era superpoderosa.
Quem podia saber que espécie de magia vampírica ela tinha na manga? Eu esperava que fosse alguma coisa totalmente malvada. A verdade é que, depois do que havia acontecido
naquela noite, eu estava cansada de ser paciente com qualquer um que quisesse ferir os meus amigos ou a mim – e se isso significava que Thanatos ia usar o equivalente
dos vampiros às punições corporais de antigamente, então que fosse assim. Dallas e os seus amigos mereciam o que os aguardava.
– Zoey, você pode dar uma olhada nos meus garotos? Diga a eles que eu vou ficar bem. Você sabe que Kramisha e Shaylin vão surtar quando elas souberem o que aconteceu
– a voz de Stevie Rae estava ficando cada vez mais fraca e, apesar de ela estar sorrindo para mim e segurando a mão de Rephaim, ela tinha se recostado em seu travesseiro,
parecendo exausta e torrada.
– Sem problemas – eu a tranquilizei. – Não quero que você se preocupe com nada, a não ser ficar bem. Aphrodite, Shaunee e eu vamos ver os garotos e fazer com que
eles saibam que você vai se recuperar.
– Ótimo. Quando você falar com os novatos vermelhos, pode aproveitar e dizer a eles que, apesar de hoje ser sábado, eu decidi que a Morada da Noite precisa de um
dia extra de aulas para compensar todo o tempo de estudo que perdemos. Eu já avisei os professores. Vou fazer um anúncio para toda a escola daqui a alguns instantes.
Eu espero todos para a primeira aula às 20 horas em ponto. Atrasos são inaceitáveis. A violência e o ódio não vão jogar a minha Morada da Noite no caos – Thanatos
afirmou.
– Ah, que merda... aula... eca – Aphrodite resmungou baixinho.
– Acho que essa é uma ótima ideia – Stevie Rae apoiou. – Tome notas para mim, Z.
– Combinado – concordei, já pensando que eu iria pedir a Damien que fizesse anotações para ela. – Venho te ver depois da aula.
– Todos nós viremos – Shaunee acrescentou.
Aphrodite grunhiu.
Então, Stevie Rae estava totalmente certa. Os novatos vermelhos dela estavam apavorados. Kramisha veio para cima de nós assim que entramos no porão.
– Se ela não estiver bem, eu mesma vou furar Dallas.
– Stevie Rae vai ficar bem – eu assegurei a ela e aos outros garotos que estavam se aglomerando à nossa volta.
– Ele tentou mesmo matá-la, não foi? – a voz de Nicole, que estava afastada do grupo, fez todos se voltarem para ela. Só Shaylin estava perto dela.
– Dallas tentou matar Stevie Rae e Shaunee – eu encontrei o olhar dela, procurando por alguma pista de que ela sabia o que ele havia planejado.
A expressão de Nicole não traiu nada, além de desgosto. Ela balançou a cabeça.
– Ele estava ficando cada vez pior, mas não pensei que ele fosse tentar algo aqui, na Morada da Noite – ela disse.
– Você era como ele – eu afirmei.
– Você está certa. Eu era. Não sou mais. Já faz algum tempo.
– Como vamos saber que você está falando a verdade? – Shaunee perguntou.
– Eu acredito nela – Shaylin respondeu sem hesitação. – Eu vi a mudança nas cores dela.
Eu olhei para Aphrodite.
– Você está certa sobre ela? – eu a questionei.
– Ela quem? Shaylin ou Nicole?
– As duas – eu disse.
O olhar de Aphrodite passou rapidamente por Shaylin antes de se voltar para mim.
– Eu confio no julgamento de Shaylin. Se ela diz que a garota mudou, então eu acredito nela.
– Ela era a namorada de Dallas, e Dallas acabou de tentar matar Stevie Rae e eu! – Shaunee colocou para fora o que pensava. – Eu não estou sendo uma pessoa horrível,
só estou dizendo as coisas como elas são.
Escutei alguns garotos murmurarem concordando com ela. O rosto de Nicole ficou pálido, mas ela empinou o queixo e encarou Shaunee.
– Erin era a namorada de Dallas, e você ainda se importava tanto com ela que ficou na sua pira até depois do amanhecer.
– Eu conhecia Erin há muito tempo – Shaunee rebateu. – Eu conheço você, tipo, há dois segundos.
– Erin sempre foi perfeita em todo esse tempo em que você conviveu com ela? – Nicole perguntou.
Shaunee desviou os olhos da novata vermelha.
– Não. Não, ela não foi.
– Eu também não fui perfeita no passado, mas estou pedindo uma segunda chance.
Eu já tinha ouvido o suficiente. Minha Profetisa e o meu instinto me convenceram.
– Para mim, já é o bastante – eu afirmei em voz alta. – E isso tem que ser o bastante para vocês também. Se nós usássemos o passado contra os outros, então Kalona
não seria o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e Stark não seria o meu guerreiro. Que inferno, nem Stevie Rae seria a minha melhor amiga.
– Eu teria sido expulso e banido da Morada da Noite junto com Neferet – Aurox disse.
Eu não havia reparado nele antes. Ele estava parado atrás de nós, bem na entrada do porão.
Eu não olhei para ele, mas assenti.
– E se Aurox não tivesse recebido outra chance, a minha avó estaria morta. Shaunee, nós precisamos ficar na mesma página quanto a isso. Muita coisa ruim já aconteceu
com a gente para que agora nós comecemos a desconfiar uns dos outros.
Shaunee olhou para Nicole rapidamente, e então o olhar dela encontrou o meu.
– Ok, você é a minha Grande Sacerdotisa. Eu confio em você.
– Obrigada – eu olhei em volta para o grupo. – Alguém tem mais algo a dizer?
– Stevie Rae vai ficar bem? – Kramisha perguntou.
– Totalmente – eu respondi.
– É verdade que Rephaim a salvou quando ele era um pássaro? – Shaylin quis saber.
Eu sorri para Shaunee.
– Conte a história para eles, mas seja rápida. Lembre que Thanatos disse que ela quer que hoje seja um dia de reposição de aulas e que todo mundo tem que estar na
sua classe quando o sino soar às oito.
Houve vários resmungos por causa dessa notícia, mas eles pararam assim que Shaunee começou a contar o que havia acontecido mais cedo. Aproveitei a oportunidade para
sair para falar com Darius, que estava parado na porta de entrada de cima. Aphrodite, é claro, foi comigo.
Quando passei por Aurox, olhei de relance para ele. O garoto parecia mal. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e a sua pele perfeita parecia meio pálida e
úmida.
– Ressaca é péssimo, hein? – não pude deixar de tirar um sarro, mas não esperei para ouvir se ele me respondeu. Aphrodite subiu a escada rindo sarcasticamente.
– Kalona e Stark estão procurando por Dallas? – Darius perguntou quando nos aproximamos dele.
– Sim – eu respondi – Thanatos quer que ele seja pego para ser julgado. Ela também disse que está farta dos novatos vermelhos dele.
– Vai ser bem interessante ver o que ela fará com todos eles – Aphrodite comentou. – Bem, isso se eles conseguirem encontrar Dallas. Ele definitivamente não quer
ser encontrado.
– O imortal vai encontrá-lo, não tenho a menor dúvida – Darius afirmou.
– Alguém viu se algum dos amigos de Dallas desapareceu com ele? – eu quis saber.
– Eu dei uma conferida rápida depois que me certifiquei de que os nossos novatos estavam seguros. Dallas realmente sumiu, mas acho que ninguém mais foi embora com
ele – Darius disse.
– Eu só espero que o que Thanatos vai fazer nos deixe livres dele para sempre – Aphrodite falou.
Eu suspirei.
– Eu não consigo nem imaginar como prender um garoto que controla eletricidade. É deprimente pensar em todos os meios que ele pode usar para escapar.
– Thanatos é sábia. Ela fará um julgamento justo – Darius argumentou.
– Estou preocupada porque “justo” e “praticável” são duas coisas totalmente diferentes – eu contra-argumentei.
– Como o seu guerreiro não está presente, vou ocupar o lugar dele e dizer para você não se preocupar tanto – Darius me aconselhou.
– Ela é cabeça-dura. Ela não vai ouvir – Aphrodite deu um beijo na bochecha dele. – Mas obrigada por tentar.
– Eu estou acostumado a lidar com uma mulher cabeça-dura – ele sorriu para ela.
– Você anda me traindo com alguma vadia teimosa? – Aphrodite fingiu estar irritada. – Não me faça arrancar os olhos de alguma baranga.
Darius riu e a puxou para os seus braços. Eu revirei os olhos.
– Eu vou ver se tenho sorte por dois dias seguidos e consigo comer psaghetti no café da manhã. Tchau, Darius. Aphrodite, eu te vejo na primeira aula.
Eu tinha acabado de decidir passar primeiro no meu quarto para tentar pentear o cabelo e dar uma ajeitada no rosto antes de ir para o refeitório quando a voz dele
chamou o meu nome. Sinceramente, eu não queria parar. Eu queria fingir que não o havia escutado e sair apressada para o meu quarto, continuando a evitá-lo o máximo
possível. Mas eu vi o garoto correndo. Ele ia me alcançar de qualquer jeito. Respirei fundo, parei e fiquei esperando por ele.
– Zoey, posso falar com você um instante? – Aurox perguntou quando chegou perto de mim.
Ele soou tão diferente de Heath, tão formal, que eu relaxei um pouco.
– Sim, é claro.
– Acho que lhe devo desculpas.
– Pelo quê?
A testa lisa dele se enrugou.
– Acho que eu disse algo indelicado para você ontem à noite.
– Você acha?
– A minha memória está prejudicada. Só consigo lembrar algumas partes do que eu disse.
– Aurox, ficar bêbado causa um monte de outras coisas além de prejudicar a memória. Pode deixar a pessoa doente e fazer com que você faça ou diga coisas idiotas.
Não precisa me pedir desculpas, apenas não fique chapado novamente.
Ele suspirou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça, o que eu tinha certeza que ele estava sentindo mesmo.
– Mas, Zo, beber cerveja é muito bom.
Eu senti como se ele tivesse me dado um soco no estômago.
– Como você faz isso?
Ele tirou a mão da testa e me deu um olhar totalmente confuso.
– Gostar de cerveja?
– Não! – eu joguei os braços para cima de frustração. – Soar exatamente como Heath.
– Eu faço isso?
– Não na maior parte do tempo, mas você acabou de fazer isso quando me chamou de Zo.
Aurox pensou por um instante e então falou:
– Sinto muito se te ofendi.
– Você não me ofendeu. Você me deixa confusa – eu afirmei.
– Você também me deixa confuso – ele disse.
– Por quê?
– Porque eu sinto coisas por você que sei que são erradas.
– Sentimentos errados? Como o quê? – prendi a respiração enquanto ele respondia.
– Eu me sinto atraído por você. Eu me preocupo com você. Eu penso em você. Muito – ele falou devagar. – E eu sei que esses sentimentos são errados porque você me
detesta.
Eu abri a boca para dizer que eu não o detestava, que inferno, que eu nem tinha antipatia por ele, mas ele levantou a mão, impedindo as minhas palavras.
– Não, eu entendo porque você tem repugnância por mim. Não é que você seja uma pessoa má. Você é realmente uma pessoa ótima, especial. Não é sua culpa por se sentir
assim – Aurox começou a se afastar de mim. – Eu só queria pedir desculpas por qualquer coisa indelicada que eu tenha dito na noite passada. Vou deixá-la em paz agora.
– Aurox, espere aí. Não vá embora. Eu preciso dizer algo a você – eu fiz um gesto para que ele me seguisse até um dos vários bancos de pedra que ficavam embaixo
dos enormes carvalhos do jardim da escola. – Ok, sente aqui um pouco e me deixe pensar em como falar isto da forma certa.
Ele se sentou ao meu lado. Bem, não exatamente ao meu lado. Ele praticamente se encolheu na pontinha do banco, o mais longe possível de mim. Eu suspirei.
– Certo, é o seguinte – respirei fundo e coloquei tudo para fora. – Eu me sinto tão atraída por você quanto você se sente por mim. Eu penso em você. Não, espere,
isso não está certo. Eu me esforço para não pensar em você porque eu penso em você – suspirei de novo. – Como se isso não fosse confuso. Enfim, é o seguinte: eu
tenho dezessete anos, e dentro de você está a alma do garoto que eu amei por quase a metade da minha vida. Mas você não é esse garoto, e é isso que eu digo a mim
mesma o tempo todo, e na maioria das vezes eu acredito nisso. Só que de repente você faz algo como cantar a música do psaghetti ou me chamar de Zo com aquele tom
de voz único que só Heath tinha, ou fica bêbado feito um idiota e diz algo totalmente a cara do Heath, e eu fico com medo porque aí não consigo mais me fazer acreditar
naquilo – concluí rapidamente.
– Naquilo?
Eu franzi os olhos para ele.
– Viu só, é exatamente o que Heath teria dito. Eu usei uma frase complexa e você se perdeu.
– Sinto muito, Zo.
– Você fez isso de novo! E aquilo de que eu tenho medo é de não conseguir me fazer acreditar que você e Heath não estejam virando o mesmo garoto.
– Ah – ele fez uma pausa e eu praticamente pude ver os parafusos girando dentro da cabeça dele. – Você ainda ama Heath?
Eu encontrei o olhar dele e falei a absoluta verdade.
– Eu sempre vou amar Heath.
Aurox não desviou o olhar, então quando ele começou a sorrir eu vi como isso provocou em seus olhos a familiar faísca de travessura de Heath.
– Isso é bom – ele disse.
– Não, isso é confuso, principalmente porque Stark é o meu guerreiro e também o meu namorado – eu afirmei.
– Mas você não amava Heath e Stark ao mesmo tempo antes?
– Bem, sim, mas isso era muito complexo. E estressante. Para nós três.
– Mesmo assim, você amava os dois.
Ele não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi de todo modo.
– Sim, e o que eu estou tentando que você entenda é que eu acho que é muito difícil amar mais de um cara ao mesmo tempo. Posso te falar com certeza o que Stark diria
se eu tentasse fazer isso de novo.
– Stark foi gentil comigo na noite passada.
– Bem, Stark e Heath acabaram virando amigos. Ou mais ou menos isso.
– Então talvez todos nós possamos ser amigos de novo – ele sugeriu.
A ideia de sermos amigos parecia algo seguro. Quem não precisa de mais amigos?
– Nós podemos tentar.
– Você pode sugar o meu sangue se quiser.
– Aurox! Não. Não, eu não quero sugar o seu sangue – eu menti, lembrando como tinha sido totalmente incrível sugar o sangue de Heath e como ele gostava disso. Franzi
os olhos para o garoto. – Aurox, você não tem a memória de Heath, tem?
Ele balançou a cabeça.
– Acho que não. Às vezes, eu digo ou faço coisas que me surpreendem, pois não consigo lembrar como sei isso. Só há uma coisa que eu tenho certeza que tenho de Heath.
Eu sabia que não devia perguntar, mas escutei a minha boca dizer:
– O que é essa coisa?
– O amor dele por você, Zo.
16
Stark
– Você tem certeza de que ainda estamos seguindo o rastro dele? – Stark perguntou para o imortal alado, entre uma respiração ofegante e outra, depois de correr atrás
de Kalona.
– Você não consegue farejar o sangue dele? – Kalona olhou por sobre o ombro e então, percebendo que Stark obviamente estava com dificuldade para acompanhá-lo, diminuiu
o ritmo e apontou para um gramado bem cuidado, por onde eles estavam passando. – Ali, veja onde o sangue do vampiro respingou no chão, ou seja, ele ainda está sangrando.
O meu filho fez bem em arranhar a cabeça dele com suas garras. Feridas na cabeça sangram com facilidade e são difíceis de estancar.
– Sim, principalmente se a pessoa está se movendo tão rápido quanto ele – Stark enxugou o suor na sua testa enquanto corria ao lado de Kalona. – Quem diria que Dallas
podia correr assim? Eu achava que com certeza a essa hora a gente já o teria alcançado. Ele não tinha tanta vantagem sobre nós. O garoto sabe se mexer. Sempre pensei
nele como um daqueles garotos que vivem grudados em videogames: bonzinhos e fracos, a menos que eles estejam fingindo ser Zorg do Planeta Org, quando eles podem
destruir universos inteiros com os seus dedos gordos.
Kalona franziu a sobrancelha.
– Às vezes o mundo moderno ainda me deixa confuso, mas eu posso explicar por que Dallas está se movendo tão rápido. Ele está fugindo para salvar a sua vida.
– Ei, Thanatos disse claramente que você não deveria matá-lo.
– Isso é uma pena. Seria justo que eu terminasse o que meu filho começou – Kalona afirmou.
– Não posso dizer que eu discordo de você – Stark falou.
Kalona levantou a mão, fazendo Stark parar. Eles estavam seguindo o rastro de Dallas, que ia sempre na direção oeste, e tinha dado diretamente na movimentada Riverside
Drive.
– Ali – Kalona apontou do outro lado da avenida, onde a superfície do Arkansas River reluzia à luz da lua. – Ele pensa que usar a água para levar o cheiro do seu
sangue rio abaixo vai apagar o seu rastro.
– Pensa? Você quer dizer que isso não vai funcionar?
– Comigo não vai. O sangue ainda está caindo dele. É ele que eu farejo, com tanta certeza quanto farejo o seu rastro.
– Hum. Que ótimo – Stark disse.
Ao atravessar as quatro pistas da Riverside Drive atrás do imortal, Stark ficou feliz por estar frio e tarde da noite, assim não havia ciclistas e corredores por
ali. É claro que Kalona estava usando um sobretudo, mas aquelas asas não eram exatamente imperceptíveis.
Kalona fez uma pausa depois que eles atravessaram a ciclovia, abaixando-se para olhar a folhagem mais de perto.
– Foi aqui que ele desceu para o rio.
Stark olhou para as plantas e farejou, tentando sentir o cheiro ou ver o sangue de Dallas. Só o que ele sentiu foi o aroma do rio turvo e cheio de peixes. Mas o
imortal parecia seguro de si, então Stark deu de ombros e o seguiu até o rio. Quando eles chegaram à margem, Kalona parou novamente. Desta vez ele se agachou. Ele
parecia estar inspirando profundamente o ar, enquanto olhava fixamente para a água que corria vagarosamente. Estava muito seco desde a tempestade de gelo de dezembro,
e o rio estava raso, com grandes bancos de areia entre as águas preguiçosas.
– Eu não sabia que você era tão bom em seguir rastros – Stark se agachou ao lado dele.
– Eu passei éons rastreando seres do mal que tinham muito mais capacidade de se esconder do que esse vampirinho. Isso não se esquece facilmente – Kalona contou.
Stark o observou de canto de olho e se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Kalona havia feito para a Deusa antes de Cair. E se ele era tão bom no
seu trabalho, tanto que muitos séculos depois ele ainda podia rastrear assustadoramente bem, por que ele tinha Caído afinal?
– Lá! – Kalona apontou. – Você o vê ali, na tora perto da margem mais distante?
Stark sorriu.
– Eu não preciso ver uma coisa para atingi-la. Só me dê um pouco de espaço e se prepare para pegar o idiota depois que eu acertá-lo, porque agora eu preciso fazer
algo em que eu sou assustadoramente bom – ele se levantou, encaixou uma flecha em seu arco e puxou a corda para trás. Que a flecha atravesse a coxa do vampiro chamado
Dallas. Stark se concentrou em seu pensamento específico, em seu objetivo, e soltou a flecha.
A flecha fez a corda do arco vibrar e foi disparada assobiando pelo ar, invisível mas mortal.
– Aaaaah! – o grito de Dallas atravessou a água facilmente.
Stark deu o seu sorriso metido para Kalona e falou:
– Pode ir buscar.
Zoey
A primeira aula não foi daquelas que parecem que não vão acabar nunca. Eu normalmente gostava da aula especial de Thanatos. Ela não era a professora mais divertida
da escola (ahn, esse deveria ser Erik), mas ela era superinteligente e nos deixava fazer perguntas sobre praticamente qualquer coisa – desde que nós fôssemos respeitosos
com ela e com os outros. Eu me revirei na minha cadeira e olhei para trás. Dallas, é claro, não estava na sala. Que eu soubesse, Stark e Kalona ainda não tinham
voltado para o campus, com ou sem ele. Mas todos os outros novatos vermelhos estavam lá. Os garotos que não faziam parte do grupo de Dallas, como Shaylin, Kramisha,
Johnny B., Ant e o resto dos novatos vermelhos de Stevie Rae, estavam sentados na frente da classe, logo atrás da primeira fila, onde o meu círculo, Aphrodite e
eu estávamos. Nicole havia chegado junto com Shaylin e estava sentada ao seu lado. Ela tinha ignorado totalmente os seus ex-amigos, que a ficaram encarando como
se ela fosse uma aberração quando passou por eles.
Hoje Aurox não estava sentado sozinho no canto mais distante da sala. Na hora em que estava entrando, ele ficou hesitante ao começar a passar por nós. Damien então
acenou para ele e disse que os dois assentos ao seu lado estavam livres, já que Rephaim estava na enfermaria com Stevie Rae. Aurox fez uma pausa para olhar para
mim. Eu meio que dei de ombros e meio que assenti, então ele agradeceu Damien e sentou ao seu lado. Ou seja, só Aphrodite e Damien ficaram entre nós dois. Eu conseguia
vê-lo fazendo anotações depois que Thanatos começou a aula, falando sobre os cinco rituais mais importantes abordados no Manual do Novato.
Hum. Talvez Aurox fosse um bom aluno. Isso não seria nada parecido com Heath. Pensar isso me deu vontade de rir – como um princípio de histeria, não uma risadinha
engraçada –, então eu tossi para disfarçar.
– Você está bem? – Shaunee me perguntou em voz baixa. Ela estava sentada do meu lado esquerdo, e percebi que a deixei preocupada.
– Totalmente. Só uma coceira na garganta – eu a tranquilizei rapidamente.
Thanatos havia se virado para a lousa digital interativa e estava mostrando uma foto de uma faca ornamental. Do fundo da sala, uma bola de papel amassado foi atirada
na minha mesa. Percebi que havia algo escrito nela. Franzindo a testa, eu a desamassei e li: QUE XATO QUE VCS NAO MORRERAM.
Aphrodite pegou rapidamente o papel e o amassou de novo, guardando-o na sua bolsa.
– Ignore-os – ela sussurrou. – Até eu consigo escrever com menos erros do que eles.
Os novatos vermelhos de Dallas não estavam agindo como babacas tão abertamente quanto faziam quando Dallas estava lá abrindo o caminho. Em vez disso, eles eram como
uma pilha de irritação silenciosa cozinhando em fogo brando. Eles não respondiam nenhuma das perguntas de Thanatos e não faziam nenhum comentário durante a exposição
dela. Eles só faziam coisas maldosas, como jogar bolas de papel quando ela estava de costas. E eu podia jurar que estava sentindo os olhinhos vermelhos deles me
encarando. Eu olhei por sobre o meu ombro.
– Pare de olhar para eles – Aphrodite sussurrou enquanto Thanatos entregava cópias do Manual do Novato para todos nós. – Eles querem atenção. Não dê isso a eles.
– Eu queria saber se Dallas já foi pego – eu sussurrei de volta.
– Ele vai ser pego. Ele não é esperto o bastante para escapar de Kalona – ela disse.
– Eu gostaria de discutir o segundo dos Rituais Maiores abordado nesse capítulo do Manual do Novato, o Ritual de Proteção de Cleópatra – a voz imponente de Thanatos
chamou a nossa atenção para a frente da classe. Ela apontou para a lousa digital e para as imagens de adagas ornamentais. – Quem pode me dizer como elas são chamadas
quando são usadas apenas para rituais e feitiços?
Damien levantou a mão rapidamente.
– Damien?
– Athame – ele respondeu.
– Eu sabia disso – Aphrodite sussurrou.
– Certo. Obrigada, Damien – Thanatos agradeceu. – Vocês vão perceber que, nas mais puras e antigas formas de Ritual de Proteção, o fogo é tradicionalmente o elemento
invocado – ela curvou levemente a cabeça e sorriu para Shaunee, que assentiu entusiasmada para ela. – Como nós temos a sorte de ter nesta escola uma novata com afinidade
com o fogo, talvez ela possa nos dizer o que é de suma importância em um Ritual de Proteção tradicional.
– Ah, isso é fácil! O mais importante é a Grande Sacerdotisa que conduz o ritual. Apesar de o fogo ser uma proteção incrível, ele é apenas tão forte quanto a Sacerdotisa
que faz o feitiço – Shaunee disse.
Eu fiquei superfeliz por ela ter respondido, porque só o que eu me lembrava do Ritual de Proteção é que Cleópatra o fez e depois se atrapalhou porque ficou toda
apaixonada por Marco Antônio, que no final morreu, e o elemento dela se transformou em uma cobra de fogo e a engoliu. Afe.
– Você está absolutamente certa, Shaunee. Obrigada. Então, caros estudantes, a lição que precisamos aprender do Ritual de Proteção não é sobre proteção nenhuma.
É sobre foco, integridade e propósito – Thanatos afirmou. – Os últimos acontecimentos nesta escola me fizeram refletir com cuidado sobre a lição do Ritual de Proteção.
Enquanto eu meditava sobre essa lição, veio a mim o pensamento de que no mundo antigo os vampiros tendiam a ter mais dons do que os vampiros de hoje – Thanatos fez
uma pausa e olhou para mim. – Apesar de recentemente a tendência de menos dons e menos poder em vampiros jovens parecer estar se alterando – ela acrescentou. Eu
não sabia onde Thanatos queria chegar, mas definitivamente ela despertou o meu interesse. – Pensem, por um momento, nas implicações de uma alteração dessas. Em tempos
antigos, vampiros altamente dotados, como Cleópatra, foram responsabilizados pelas suas escolhas e por suas ações por causa do poder que eles detinham. Como vocês
podem ler no Manual do Novato, e como foi relatado pelos nossos historiadores, Cleópatra usou mal o seu dom concedido pela Deusa. Ela parou de ouvir seu povo. Ela
considerou a sua afinidade como uma coisa certa. Ela pensou apenas nos seus próprios desejos e necessidades. No fim das contas, o seu elemento fogo a consumiu.
Eu tentei não me preocupar. Será que Thanatos estava tentando me dizer que eu estava me atrapalhando? Tipo, eu sabia que eu andava sendo meio rude com as pessoas
nos últimos tempos – e toda a coisa Aurox/Heath era confusa e frustrante –, mas será que ela estava falando que eu precisava ser nocauteada pelos cinco elementos?
Que inferno! Eu esperava que não fosse isso! Eu estava fazendo o melhor que podia. Sim, eu andava frustrada e irritada, mas pelo menos eu não estava choramingando
muito. Ultimamente.
Aphrodite levantou a mão, surpreendendo-me e calando a minha tagarelice interior.
– Pois não, Aphrodite, você tem alguma pergunta? – Thanatos falou.
– Sim, eu estava pensando no que você disse, sobre como os dons dos vampiros eram mais fortes e mais frequentes nos tempos antigos e como parece que isso está mudando,
e eu gostaria de saber se você tem alguma ideia de por que essa alteração de poder está acontecendo.
– É uma ótima pergunta, Aphrodite. Eu gostaria de ter uma resposta definitiva para você. Posso dizer que acredito que essa alteração tem a ver com uma mudança maior
no equilíbrio entre Luz e Trevas.
– Talvez Nyx esteja nos concedendo esses dons para que a gente possa lutar para equilibrar as coisas de novo – Shaunee sugeriu.
– Talvez – Thanatos concordou.
– Isso poderia ter algo a ver com magia antiga? – Aurox perguntou.
Todos nós olhamos embasbacados para ele.
– O que o faz perguntar isso? – Thanatos quis saber.
Ele encolheu os ombros e pareceu desconfortável.
– Os touros. Eles não são uma manifestação de magia antiga?
– Eles são – ela confirmou.
– A pedra da vidência de Zoey também é magia antiga. Não é? – Aphrodite acrescentou.
Eu franzi a sobrancelha para ela.
– Isso também é verdade – Thanatos respondeu.
– Ok, mas algum de nós sabe o que a magia antiga realmente é? – eu perguntei, irritada com todo aquele assunto.
– A magia antiga não tem se manifestado fora da Ilha de Skye há muito tempo, desde antes de eu ser Marcada – Thanatos começou a falar devagar, como se ela estivesse
se lembrando e raciocinando em voz alta ao mesmo tempo. – Pelo que sei, a melhor descrição que eu posso dar a vocês é que ela é energia em seu nível mais puro: crua,
poderosa e neutra. A magia antiga é criação e destruição simultaneamente.
– Provavelmente é por isso que os feitiços antigos, como o Ritual de Proteção de Cleópatra, dependiam tanto da Sacerdotisa que fazia o feitiço – Damien disse. –
Pode ser que todos os cinco Rituais Maiores tenham raízes na magia antiga.
– Parece lógico – Thanatos assentiu.
– Mas isso ainda não explica exatamente o que é a magia antiga ou por que ela se tornou ativa de novo – Aphrodite afirmou. – Mas eu diria que ela definitivamente
está ativa de novo. Você não concorda, Z.?
Felizmente, ela foi interrompida pelo barulho da porta da sala sendo aberta impetuosamente e de Kalona entrando a passos largos pelo corredor central.
O imortal alado se curvou respeitosamente para Thanatos.
– Grande Sacerdotisa, eu voltei com o seu prisioneiro.
– Você cumpriu bem a sua missão – ela se dirigiu a Kalona e então encarou a classe. – Quero que todos vocês se reúnam imediatamente no centro do campus perto do
local da pira. A aula acabou.
Enquanto saíamos em fila da classe, observei Thanatos falando algo em voz baixa para Kalona. Eu vi o imortal arregalar os olhos, então ele assentiu e se curvou para
ela novamente – desta vez até muito mais embaixo, mantendo a posição por mais tempo do que o normal. Enquanto ele ainda estava curvado, Thanatos foi até a sua mesa,
pegou o telefone e apertou um botão. A sua voz ecoou pelo sistema de alto-falantes da escola.
– Todos os estudantes e o corpo docente vão se reunir no centro do campus no local da pira! Os professores que são membros do nosso Conselho devem se apresentar
à Câmara do Conselho imediatamente. Todas as aulas estão suspensas até o final da nossa assembleia – então ela desligou e saiu apressada pela porta de trás, com
Kalona logo atrás.
Tive uma sensação ruim.
– O que será que está rolando? – eu perguntei.
– Não tenho a menor ideia – Aphrodite respondeu. – Mas, seja o que for, vai acontecer na frente de todo mundo e vai fazer com que a gente perca pelo menos uma aula,
então não pode ser tão mau, não é?
Nós fomos direto para o local da pira e formamos um grande círculo em volta da área queimada e escura que definitivamente estava sendo muito usada ultimamente. Eu
procurei por Stark, mas não o vi, nem Kalona. Darius nos encontrou, pegou a mão de Aphrodite e disse que também não sabia o que estava rolando. Só quando todo mundo
estava começando a ficar impaciente e quase era preciso gritar para ser ouvido, as pessoas do lado oposto ao meu se deslocaram, abrindo caminho.
Thanatos apareceu primeiro no meu campo de visão. Ela tinha trocado de roupa e estava usando um longo vestido negro de veludo, decorado apenas com o emblema em fios
prateados de Nyx, com as mãos envolvendo a lua crescente. Thanatos havia soltado o seu cabelo longo e escuro, que caía como um véu espesso até a sua cintura. Lá
no meio, eu vi um pouco de cabelos prateados reluzindo, que me lembraram do fio usado para bordar o emblema de Nyx. O seu rosto estava com uma expressão severa.
Eu achei que ela parecia assustadora, mas bonita – antiga, mas sem aparentar idade.
Então a minha atenção foi atraída para Kalona e Stark, que entraram no meu campo de visão. Dallas estava mancando entre eles. Ele parecia péssimo. As mãos dele estavam
amarradas na sua frente. O seu rosto estava todo arranhado e ensanguentado. As roupas dele estavam molhadas e imundas. Uma das flechas de Stark estava enterrada
na sua coxa direita, só com as penas da parte de trás para fora. Kalona e Stark pareciam tão sérios e poderosos quanto Thanatos enquanto levavam Dallas até o centro
da nossa assembleia. Eles não pararam até que o vampiro ferido ficou bem no meio da área escurecida pelo fogo da pira.
Dallas não parecia sério nem poderoso. Ele parecia irritado. Eu vi quando os olhos dele encontraram Shaunee. Ele olhou com raiva para ela e então deu um escarro
nojento nas cinzas aos seus pés.
– Professores do Conselho da Morada da Noite de Tulsa, venham para a frente! – Thanatos ordenou.
Lenobia, Penthesilea, Garmy e Erik saíram da multidão para ficar ao lado de Thanatos. Eu estava pensando que o Conselho parecia desfalcado sem a presença de Dragon
e Anastasia Lankford e da professora Nolan, quando Thanatos continuou:
– Eu também ordeno que as nossas duas Profetisas venham para a frente!
– Ah, que merda – Aphrodite resmungou, mas soltou a mão de Darius e foi se juntar a Thanatos.
Shaylin demorou para conseguir chegar lá na frente. Quando ela se aproximou de Thanatos, a Grande Sacerdotisa assentiu e fez um gesto para que ela ficasse ao lado
de Aphrodite.
– A nossa escola foi ricamente agraciada com a presença de duas Grandes Sacerdotisas adicionais. Infelizmente, uma delas, a primeira Grande Sacerdotisa vermelha,
Stevie Rae, não pode ocupar o seu lugar ao meu lado hoje porque ela foi gravemente ferida – Thanatos continuou. Eu tinha acabado de perceber que ela havia dito duas
quando os seus olhos escuros me encontraram. – Mas eu chamo a nossa segunda Grande Sacerdotisa para se juntar a mim. Zoey Redbird, venha para a frente!
Sentindo-me nervosa e insegura, eu fui ficar ao lado de Aphrodite e Shaylin.
Thanatos encarou Dallas.
– Você é o vampiro vermelho conhecido como Dallas?
Dallas sorriu.
– Todo mundo sabe quem eu sou.
– Dallas, ao amanhecer você atacou a Grande Sacerdotisa vermelha, Stevie Rae, com a intenção de expô-la à luz do sol até que ela morresse. Você nega isso?
– Não, não nego.
– Dallas, ao amanhecer você também planejou matar a novata Shaunee com o poder que Nyx lhe concedeu. Você nega isso?
– Eu não nego nada! – o tom de voz dele era maldoso, e os seus olhos cintilaram com um brilho cor de ferrugem. – Pode me banir! Eu estou mais do que pronto para
ir embora desta merda de escola.
Thanatos se virou para encarar a multidão.
– Eu sei que esse vampiro tem seguidores que compartilham os mesmos pontos de vista que ele. Acredito que eles sabiam de tudo e até podem tê-lo ajudado nesses crimes.
Eles também devem compartilhar o seu destino. Eu agora chamo para a frente os seguidores de Dallas que desejam ficar ao lado dele!
Eu fiquei muito curiosa em saber o que ia acontecer. Havia uns dez garotos que andavam com Dallas o tempo todo. Bem, nove, agora que Nicole tinha saído do Lado Negro.
Eu meio que esperei que uma horda inteira dos seus novatos vermelhos fosse para a frente, andando feito uns metidos babacas e jogando bolas de papel nas pessoas.
Mas na verdade apenas dois se juntaram a Dallas. Um era o grandalhão chamado Kurtis. Eu me lembrava dele na briga nos túneis. Ele era um idiota total. O outro garoto
era Elliott, o novato que eu tinha visto morrer meses atrás na aula de Inglês. Eu sabia que Elliott era um inútil (alguém que não faz nada na classe além de respirar)
do mal, mas eu imaginava que ele era preguiçoso demais para ficar ao lado de Dallas, principalmente porque parecia que ele ia ser expulso da escola junto com ele.
Ah, espere aí. Isso fazia sentido. O garoto não gostava de escola. Ser expulso com Dallas devia ser como umas férias permanentes para ele.
– Elliott e Kurtis, vocês dois conscientemente ficam ao lado desse vampiro como cúmplices dos seus crimes? – Thanatos perguntou.
– Sim, que inferno! – Kurtis respondeu. Ele tentou soar todo durão e seguro de si, mas olhou nervoso em volta.
– Sim, que seja – Elliott falou.
– Agora eu pergunto ao meu Conselho: vocês reconhecem a culpa desse vampiro e dos seus seguidores novatos?
No mesmo instante em que Thanatos fez a pergunta, a minha pedra da vidência começou a irradiar calor. Coloquei a mão em cima dela, desejando que eu soubesse a que
ela estava reagindo e o que eu devia fazer em relação a isso.
Cada um dos membros do Conselho respondeu solenemente, dizendo:
– Sim, eu reconheço.
– Profetisas de Nyx, esses três foram considerados culpados de tramar o assassinato de uma Grande Sacerdotisa. Olhem dentro de vocês. Usem os seus dons. Vocês concordam
comigo que, como nos tempos antigos, a punição deles deve ser imediata e pública?
Aphrodite respondeu primeiro:
– Eu concordo.
Shaylin demorou mais. Ela deu alguns passos para mais perto de onde Dallas, Kurtis e Elliott estavam e os analisou. Pela sua expressão, parecia que ela tinha sentido
um cheiro ruim, mas não disse nada a eles. Ela voltou para o seu lugar perto de Thanatos e ainda não disse nada. Ficou só olhando para Thanatos por um tempo desconfortavelmente
longo. Finalmente, Shaylin respirou fundo e disse:
– Eu acredito que a coisa certa a fazer é concordar com você – então Shaylin abaixou a cabeça. Eu tinha certeza de que ela fechou os olhos e parecia estar rezando,
mas eu não tive mais tempo para ficar olhando, pois foi a minha vez de ser chamada.
– Zoey Redbird, como a outra única Grande Sacerdotisa presente, você está de acordo comigo e o meu direito ancestral de condenar esses três pela violência que eles
admitem terem planejado e praticado?
Eu me senti como se tivesse recebido a pergunta mais fácil.
– Sim, eu concordo – respondi rapidamente. A pedra da vidência estava queimando a minha mão.
Thanatos levantou os braços. O poder crepitou ao seu redor, arrepiando os pelos do meu pescoço e dos meus braços. A sua voz foi amplificada pelo poder de Nyx, e
ela soou como a personificação da Morte.
– Então eu invoco o meu direito como Grande Sacerdotisa desta Morada da Noite. Os crimes contra uma Grande Sacerdotisa sob a minha proteção devem ser punidos como
nos tempos antigos. Eu ordeno que o meu guerreiro Juramentado execute o vampiro vermelho e depois leve esses dois seguidores para o campo, longe o bastante de qualquer
vampiro, para que os seus corpos rejeitem a Transformação e eles também morram!
Eu não tive nem tempo de ofegar. Kalona se moveu como um raio. Ele pegou a espada longa que estava pendurada nas suas costas e, com um único e rápido golpe, cortou
a cabeça de Dallas. Stark se desviou quando o corpo dele teve convulsões e o sangue jorrou do coto onde era o seu pescoço. Eu não conseguia parar de olhar para a
cabeça de Dallas. Os seus olhos estavam muito arregalados. Ele parecia atordoado. E a sua boca ficava abrindo e fechando sem parar, como um peixe em terra firme.
Kurtis e Elliott berraram e começaram a correr. O imortal alado os apanhou antes que eles saíssem do círculo de pessoas chocadas. Ele os agarrou pela cintura. A
multidão se afastou dele, e então Kalona correu para a frente, com passos largos e firmes, batendo as asas enormes uma, duas, três vezes. Então ele e os dois garotos
estavam voando no ar. Os garotos esperneavam e gritavam, mas isso não parecia afetar Kalona nem um pouco, e em alguns instantes eles saíram de vista, na direção
oeste, dentro da escuridão.
– Silêncio! – a ordem de Thanatos acabou com o barulho como se um interruptor tivesse sido desligado. Foi só então que eu percebi que todo mundo à minha volta, exceto
Stark, Shaylin e os membros do Conselho da Escola, estava gritando de horror ou soluçando de choque. – O tempo de fraqueza e brigas internas acabou. A violência
contra a nossa Morada da Noite vai ser vingada. A nossa Deusa é misericordiosa, mas ela também é justa, e todos que se voltarem contra ela vão sentir o peso da sua
justa ira. Que isto seja um aviso e a minha promessa a vocês: aqueles que ficarem ao lado da Deusa e de mim serão protegidos. Aqueles que se voltarem contra nós
serão punidos. Morada da Noite de Tulsa, faça a sua escolha!
17
Zoey
A pedra da vidência ardia na minha mão. Eu sabia por que não havia me dissolvido em lágrimas ou berrado feito uma histérica.
Thanatos estava certa. Estava na hora de todos jurarem lealdade à nossa Morada da Noite e tomarem uma posição definitiva. Nós já estávamos contra muita coisa para
ter que ficar lutando uns contra os outros também. Foi isso que ela sempre disse. Era nisso que eu também tinha começado a acreditar.
Dei um passo à frente, tomando cuidado para ficar fora do círculo de sangue de Dallas. Segurando firme a minha pedra da vidência, respirei fundo e orei: Magia antiga,
ajude-me... fortaleça-me! O calor explodiu da pedra da vidência e o poder chiou através do meu corpo. Quando eu falei, o volume da minha voz ecoou as minhas palavras
pela multidão:
– O meu círculo e eu escolhemos o caminho de Nyx. Nós estamos unidos a esta Morada da Noite!
Damien e Shaunee foram os primeiros do meu círculo a se juntar a mim. Eles vieram até o meu lado e se curvaram respeitosamente para Thanatos, repetindo as minhas
palavras:
– Nós estamos unidos!
Shaylin e Aphrodite deram um passo à frente para ficar ao lado deles. Darius, Stark e Aurox (que eu fiquei surpresa e feliz em ver) juntaram-se a nós. Rodeando-me,
os membros do meu círculo colocaram suas mãos em punho sobre o coração e se curvaram respeitosamente, demonstrando a nossa solidariedade.
Isso deu o exemplo. Kramisha, Erik, Johnny B., Ant, Nicole e todos os outros novatos vermelhos de Stevie Rae atravessaram a multidão e vieram para a frente. Percebi
que alguns estavam chorando. Outros, como Erik e Kramisha, estavam pálidos de choque, mas todos se curvaram e juraram lealdade à nossa Morada da Noite.
O resto da escola começou a se curvar e a fazer suas promessas de ficar unidos e seguir o caminho da Deusa. Prestei uma atenção especial nos novatos que haviam sobrado
do grupo de Dallas. Eles eram fáceis de identificar. Os meninos eram totalmente desleixados e sujos, e as garotas usavam mais delineador do que roupas. Mas agora
eles não estavam todos valentões e rebeldes. Eles pareciam assustados. Todos se curvaram para Thanatos. Eu não pude deixar de pensar até que ponto os seus juramentos
eram sinceros, porque, afinal de contas, que escolha eles tinham? Imaginei o que eu faria no lugar deles. Eu não ia correr o risco de ser morta de jeito nenhum.
Com certeza, eu iria fingir me unir a Thanatos. Mais tarde, porém, a minha escolha poderia ser diferente.
E como se a minha pedra da vidência nunca tivesse se parecido com um forno em miniatura, ela se resfriou, deixando-me tonta e com náuseas, com uma dor de cabeça
latejante começando na minha têmpora direita.
Magia antiga era uma coisa assustadora!
– E agora eu ordeno que nós retomemos a nossa vida normal. A escola deve continuar – Thanatos estava dizendo. – Nós vamos ficar vigilantes em relação às forças das
Trevas que agem ao nosso redor, mas elas não devem mais agir entre nós. Peço a Zoey e seu círculo que permaneça aqui e se reúna comigo rapidamente. O resto de vocês
tem cinco minutos para estar na segunda aula. Professores, cuidem dos seus novatos. Que sejam todos abençoados.
Eu meio que senti como se alguém tivesse acabado de me dar um banho de água fria. Dallas havia sido decapitado. Dois novatos iriam morrer muito em breve, mas não
se atrasem para a segunda aula? Como assim? Como poderia ser tão simples continuar o resto do dia como se nada tivesse acontecido?
– Zoey, eu preciso que você trace um círculo – Thanatos veio andando a passos largos na minha direção enquanto a multidão se dispersava silenciosamente.
– Aqui? Agora?
– Sim, aqui. Ao redor do corpo do vampiro. Mas não agora. Espere até que os novatos já tenham voltado para as suas aulas.
– Ok – respondi devagar. – Mas preciso que alguém fique no lugar de Stevie Rae.
– Eu posso substituir Stevie Rae.
Todo mundo se virou para Aurox.
– Por que você? – Stark perguntou antes que eu dissesse qualquer coisa, o que me deixou muito irritada. Era o meu círculo, não o dele!
– Por que não eu? Sei onde fica o norte. Posso segurar uma vela verde e invocar a terra. E quero ajudar Zoey.
– Parece ótimo para mim – respondi sem olhar para Stark. – Damien, Aurox e Shaunee, vocês podem pegar as velas do círculo e os fósforos?
Aurox se curvou respeitosamente para mim antes de os três saírem em direção ao templo de Nyx para pegar o material para o círculo.
– O que está rolando? Por que fazer um círculo agora? Alguém não deveria vir limpar essa bagunça? – Aphrodite perguntou, indicando o corpo de Dallas, sem olhar para
ele.
– É exatamente isso o que Zoey e seu círculo vão fazer – Thanatos explicou. – Um vampiro condenado e executado não merece uma pira e as tradições de um funeral.
Ele também não deve ser enterrado em lugar nenhum que possa virar um local de adoração para seus seguidores desencaminhados. Os seus restos precisam ser simplesmente
destruídos, rápido e em silêncio.
– Oh – eu compreendi. – Você quer que eu trace um círculo e fortaleça Shaunee para que ela possa, bem, ahn... – eu hesitei, sem saber direito como colocar as coisas
e me sentindo mal ao pensar no que nós íamos ter que fazer.
– Limpar essa bagunça – Aphrodite concluiu por mim.
– Sim, bem colocado – Thanatos soou como se estivesse falando sobre levar o lixo para fora. – E quanto menos atenção a gente chamar para essa limpeza, melhor. Então,
eu agradeço às duas Profetisas por desempenharem os seus papéis com dignidade e sabedoria, mas agora devo insistir para que Aphrodite volte para a aula e que Shaylin
se junte a ela logo depois de ter invocado a água no círculo de Zoey.
Aphrodite fechou o cenho. A sala de aula não era o seu lugar favorito no mundo. Eu franzi a sobrancelha para ela – não que ela percebesse –, pensando que eu ficaria
feliz de trocar de lugar com ela.
– Venha, minha bela, vamos juntos – Darius pegou a mão dela, e os dois saíram andando na direção do prédio principal da escola.
– Eu vou buscar a minha vela azul e dizer a Damien e aos outros para se apressarem – Shaylin falou. Ela começou a caminhar na direção do Templo de Nyx, então fez
uma pausa e se voltou para Thanatos. – Eu li as suas cores. Você estava fazendo o que precisava ser feito. Às vezes, os métodos antigos são os melhores.
– Eu também acredito nisso – Thanatos afirmou.
– Isso não torna o que aconteceu aqui nem um pouco menos horrível – Shaylin continuou.
– Não menos horrível, mas necessário – Thanatos argumentou.
– A escola não está toda do seu lado – Shaylin contou.
– Estou ciente disso.
– Acho que você ficaria surpresa ao saber de todos que estão pensando duas vezes no seu juramento a você e a esta escola – Shaylin disse.
– Mas eu imagino que você possa me revelar isso lendo as cores das pessoas, não é? – Thanatos perguntou.
O meu estômago se revirou.
– Ok, esperem aí – eu intervim. – Sou totalmente a favor de uma frente unida contra as Trevas, mas não sou a favor de que Shaylin seja usada para invadir os pensamentos
das pessoas.
– O que você quer dizer, Zoey? – Thanatos pareceu me atravessar com os olhos.
– Que Shaylin não deve ser usada como sua espiã! – eu não sabia exatamente por que essa ideia me incomodava tanto, mas definitivamente me incomodava.
– Se ela estiver trabalhando a serviço de Nyx... – Thanatos começou.
Eu a cortei.
– Nyx concedeu o livre-arbítrio a todos nós. Isso significa que não é contra as regras da própria Deusa que qualquer um de nós questione as escolhas que fizemos
e que vamos fazer no futuro. Não há nada de errado nisso. Só um idiota nunca questiona o que dizem para ele fazer.
– Shaylin, as cores de Dallas mostraram a você que ele era perigoso? – Thanatos perguntou a ela, sem desviar os olhos dos meus.
– Eu sabia que ele estava nervoso e era violento. Eu não sabia que ele ia tentar matar Stevie Rae e Shaunee.
– Mas, se Dallas tivesse sido contido por causa do que você viu dentro da aura dele antes desta manhã, Stevie Rae teria sido poupada de muita dor – Thanatos presumiu.
– Contido? Você quer dizer morto, antes que ele realmente fizesse algo? – eu me sentia como se fosse explodir.
– Acho que não foi isso o que Thanatos quis dizer – Stark opinou.
– Eu gostaria de ouvir Thanatos dizer isso – eu falei.
– Nos tempos antigos, só vampiros que de fato cometiam alguma violência contra outros vampiros eram executados – ela afirmou.
– Nós não estamos nos tempos antigos – eu rebati. – E eu acho que não é da conta de ninguém o que as pessoas pensam. Mas você sabe quem achava que era da sua conta
escutar o que todos nós pensávamos? Neferet. E eu não gosto do que isso fez a ela.
Thanatos levantou as sobrancelhas.
– O seu ponto de vista foi bem colocado, Sacerdotisa – ela disse.
– Shaylin, vá ver por que Damien e os outros estão demorando tanto – eu ordenei.
Shaylin hesitou só por um instante, então se curvou para mim e saiu apressada.
– Você tem opiniões fortes – Thanatos observou.
– Você também.
– Você vai traçar o círculo e ajudar Shaunee a destruir o vampiro culpado?
– Sim. Eu não quero que ele seja feito de mártir, assim como você – eu respondi.
– Obrigada. Então vou deixá-la com o seu círculo – o olhar dela se voltou para Stark. – Você trabalhou bem hoje, guerreiro. Estou orgulhosa de você. Abençoado seja
– ela curvou levemente a cabeça e foi embora.
– Eu juro que ela está agindo a cada dia mais como a Morte – eu falei, observando Thanatos enquanto ela se afastava.
– Z., acho que ela só está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.
O meu primeiro impulso foi discutir com Stark, perguntar por que ele não estava ficando do meu lado, mas quando eu realmente olhei para ele vi que as suas roupas
estavam rasgadas e enlameadas, e o sangue de Dallas estava respingado por toda a sua blusa e sua calça. O rosto dele estava pálido e tenso, e eu me dei conta de
que, apesar de Kalona ter anunciado que havia trazido Dallas de volta para a escola, foi a flecha de Stark que tornou aquela execução possível.
Então Stark havia assistido Kalona decapitar o garoto.
Coloquei meus braços ao redor dele, afundando o meu rosto no seu peito.
– Acho que você está fazendo o melhor que pode para manter todos nós seguros.
– Você está bem, Z.? Eu queria ter contado a você o que Thanatos ia fazer, mas não deu tempo – ele hesitou e então acrescentou: – Eu senti aquela enorme onda de
poder que você teve quando levantou a voz. Não foi como você se sente quando o espírito a preenche, então eu imagino que possa ter algo a ver com magia antiga. Estou
certo?
Eu fiquei inquieta e desconfortável.
– Bem, a minha pedra da vidência esquentou, e agora eu estou me sentindo acabada. Então, sim, eu acho que isso tem algo a ver com magia antiga.
– Acho que faz sentido, especialmente com Thanatos invocando regras ancestrais e tal.
– Pois é, a gente tinha acabado de falar sobre isso na classe, mas eu queria saber se isso significa que ela está fazendo a coisa certa ou não – eu externei as minhas
preocupações em voz alta.
– Ei – ele levantou o meu queixo. – É você que tem a pedra da vidência. Você só tem que se preocupar se você está fazendo a coisa certa. E limpar essa bagunça de
Dallas é definitivamente a coisa certa. Ok?
– Ok – eu o beijei. – Como você está?
– Cansado – ele disse. – E toda essa coisa da cabeça de Dallas sendo cortada... bem... Eu sabia o que ia acontecer e achei que estava preparado para isso. Mas...
– ele perdeu as palavras e me abraçou com força.
– Stark, eu acho que não há nenhum jeito de se preparar para ver a cabeça de um garoto ser cortada – eu também o abracei forte. – Ei, você deve ir tomar um banho
e se trocar. Que tal nos encontrarmos no almoço?
– Que tal nós marcarmos um encontro depois das aulas para não fazer nada além de ficarmos juntinhos e sozinhos, assistindo uma maratona de Big Bang Theory pelo Roku13?
Eu sorri para ele.
– Ninguém além de mim sabe como você é bobo de verdade.
– Eu preciso rir, e Sheldon me faz rir.
– Ok, mas só se você não tirar sarro de mim por eu não entender todas as piadas dele – eu pedi.
– Mas isso é parte do que me faz rir – ele disse.
– Ok. Pode rir da minha cara. Eu vou me sacrificar por você – eu falei brincando.
A expressão dele ficou séria.
– Eu sempre vou me sacrificar por você – ele respirou fundo e então, do nada, afirmou: – Eu não quero que você comece a andar com Aurox.
Eu dei um passo para trás e me afastei dele.
– Do que você está falando?
– Sei que eu disse que dividiria você com Heath, mas eu só falei isso depois que o garoto estava morto, e agora ele está de volta e eu acho que não vou conseguir
dividir você com ele, e eu quero que você fique longe dele – ele colocou tudo para fora rapidamente.
– Desculpem pela demora! Alguém colocou os fósforos de ritual na gaveta dos bastões de defumação. Eu pensei que a gente nunca iria encontrá-los. Eu odeio quando
as coisas ficam fora do lugar – Damien tagarelou ofegante, com uma aparência exausta, quando ele, Shaylin, Shaunee e Aurox chegaram apressados até nós, com as mãos
cheias de velas e fósforos.
– Shaylin me contou o que Thanatos quer, estou pronta – Shaunee disse.
– Há algo errado? – Shaylin perguntou, olhando para mim e Stark com uma concentração desconcertante.
– Não, está tudo bem – respondi. – Stark está de saída para tomar um banho e se trocar. Certo, Stark?
Stark colocou os braços em volta de mim e me puxou para mais perto. Então ele me beijou. Na boca. De um jeito impetuoso e possessivo. Uma das suas mãos desceu pelas
minhas costas e parou no meu traseiro, enquanto ele dizia:
– Certo, Z. Eu te vejo mais tarde. Durante o nosso encontro. A sós – ele deu um apertão na minha bunda e então saiu apressado.
Shaylin me entregou a vela roxa do espírito, e eu me controlei para não atirá-la nele. Que diabos eu ia fazer em relação a Stark? Será que ele realmente acreditava
que agindo possessivamente e me dizendo o que eu devia fazer ele ia conseguir que eu não tivesse vontade de ficar com outro cara? Caramba, claro que não!
Deixei a minha irritação de lado e forcei um sorriso alegre.
– Então, vamos traçar esse círculo – eu disse. – Todo mundo pronto?
Enquanto íamos para os nossos lugares, eu ignorei o fato de que Shaylin continuava me observando. Então percebi que eu ia ter que assumir a minha posição no centro
do círculo, o que significava que eu teria que ficar perto do corpo decapitado de Dallas em meio a cinzas ensopadas de sangue e terra carbonizada. Resolvi que não
ia me importar que Shaylin estava me analisando atentamente e que Stark estava agindo feito um babaca. Eu meio que congelei ao chegar perto do sangue, odiando que
aquele cheiro fizesse a minha boca salivar, mas aquela visão fez o meu estômago se contrair.
– Não olhe para ele – a voz de Aurox fez com que eu desviasse o olhar daquele corpo sem cabeça horrível. Ele sorriu para mim da extremidade norte do círculo. – Vá
até Damien e invoque o ar. Na hora em que você tiver que ir para o centro do círculo, você vai estar fortalecida pelos elementos. Você consegue, Z.
A última parte do que ele disse soou tanto como Heath que os meus olhos se encheram de lágrimas. Pisquei com força para não chorar, assenti e fui na direção de Damien.
E Aurox estava absolutamente certo. Na hora em que fui para o meio do círculo, acendi a minha vela roxa e invoquei o espírito, eu me senti equilibrada e amparada.
Não foi difícil liderar Shaunee e forçar uma explosão de chamas no corpo de Dallas. Depois que ele foi reduzido a cinzas, para mim pareceu natural pedir a Shaylin
que fizesse a água lavar o local da pira e que Damien fizesse o vento soprar para longe aquele cheiro de queimado. Finalmente, eu usei Aurox como um canal com a
terra. Juntos, nós conseguimos que a terra fizesse brotar grama verde onde antes só existia sangue e cinzas.
– Agora está muito melhor – eu disse, parada no meio da grama verde e fofa, inspirando profundamente o cheiro de primavera, depois de fechar o círculo.
Damien pegou o celular na sua bolsa masculina e conferiu a hora.
– Ah, que ótimo! Nós só perdemos metade da terceira aula. Eu amo Literatura e a professora Penthesilea.
– Terceira aula! – Shaunee exclamou. – Para mim é Esgrima. Fui. Vejo vocês no almoço.
Demos tchau acenando para ela.
– Eu queria que já estivesse na sexta aula – suspirei.
– Pensei que você gostasse da aula de Literatura – Damien disse.
– Eu gosto, mas não gosto da aula de Espanhol, que é a quinta. Então, se já estivesse na sexta aula, eu teria perdido o Espanhol – esfreguei a testa, sentindo dor
de cabeça e tontura de novo.
– Você está bem? – Shaylin perguntou.
Eu olhei para Shaylin. Ela estava me encarando. De novo. A minha irritação ferveu e o meu estômago roncou. A pedra da vidência começou a esquentar no meio do meu
peito, o que só meu deixou mais nervosa.
– Shaylin, pare de ficar me secando! – eu não queria soar tão irritada como as minhas palavras acabaram saindo, e eu não queria de jeito nenhum fazer Shaylin dar
um salto como se eu tivesse acabado de dar um tapa nela, mas foi exatamente isso o que aconteceu.
– Desculpe. Eu não tive a intenção – ela falou, quase se encolhendo de medo e se afastando de mim.
Eu suspirei e toquei na pedra da vidência, que estava fria como uma pedra comum.
– Olhe só, eu não quis gritar com você. Eu estou com dor de cabeça e com fome, só isso.
– Bem, Z., você acabou de traçar um círculo. Você precisa se equilibrar. Vá até o refeitório e pegue algo para comer – Damien me aconselhou, acariciando o meu braço.
– Eu digo para a professora P. onde você está. Vai ficar tudo bem.
– Você está certo, Damien. Comida com certeza vai fazer bem para a minha cabeça.
– Comida ou refrigerante marrom? – Damien perguntou, sorrindo.
– Refrigerante marrom é comida – eu respondi.
– Zoey, você se importa se eu for até o refeitório com você? – Aurox sugeriu.
– Você não tem que ir para a aula? – eu quis saber.
– Não. Eu só assisto a primeira aula. Depois eu faço a ronda nos jardins da escola.
– Ah, eu, ahn, não sabia disso – eu fiz esse comentário inútil, sem saber se o invejava ou se sentia pena dele.
– De fato, acho que é uma boa ideia Aurox comer algo também. Foi o primeiro círculo dele – Damien fez uma pausa e sorriu para Aurox. – E você foi excelente. Muito
bem!
– Ei, obrigado, Damien – Aurox abriu o sorriso, fazendo com que os seus olhos faiscassem de um jeito um pouco familiar demais.
Como olhos da cor da pedra da lua podem me lembrar dos olhos de Heath?
– Zo, você não se importa que eu vá com você, não é?
Eu me dei conta de que eu estava encarando Aurox – enquanto Shaylin, Damien e Aurox me encaravam –, e pisquei.
– Não, tudo bem. Mas você vai ter que se apressar. Vou tentar pegar pelo menos o final da aula de Literatura. Só porque não é Matemática, não quer dizer que eu seja
muito boa nessa matéria – eu praticamente saí correndo, com Aurox me seguindo, depois de dar um tchau rápido para Damien e Shaylin.
O refeitório estava deserto, mas eu podia ouvir panelas e frigideiras tinindo lá na cozinha, e um cheiro delicioso tomava conta do ambiente. A minha boca estava
salivando loucamente quando Aurox disse:
– Você pode ir pegar as nossas bebidas, que eu vou até a cozinha ver o que está pronto para comer.
Eu concordei sem pensar e fui direto pegar refrigerante marrom. Matei um copo antes de sair de perto da máquina de bebidas. A minha cabeça já estava um pouco mais
clara quando eu estava levando dois copos grandes para a mesa em que meu grupo normalmente sentava. Enquanto eu bebia aquela maravilha marrom gelada, eu pensei em
como era estranho o fato de alguns lugares mudarem totalmente quando estavam vazios. Tipo, o refeitório normalmente era um lugar barulhento e cheio de estudantes
e comida, mas naquele momento, meia hora antes do almoço, parecia maior do que era e quase de outra dimensão, como se fosse possível ouvir os ecos dos espíritos
dos garotos que não estavam ali, mas que ainda, de algum modo, estavam me observando.
Isso me deu sérios arrepios.
– Peguei para você queijinho-quente e sopinha de tomate – Aurox sorriu alegremente enquanto sentava no banco ao meu lado, colocando uma bandeja cheia de sopa e sanduíches
na nossa frente.
Eu só consegui ficar olhando para ele.
O sorriso de Aurox esvaneceu. Ele olhou para o sanduíche de queijo e a sopa e depois para mim.
– Eu pensei que você fosse gostar. Posso levar isso de volta. Também tem sanduíche de peito de peru com queijo, e a cozinheira me disse que estão quase terminando
de preparar a salada Cobb.
– Não é isso. Eu amo queijo-quente. E a sopa.
– Então por que você está assim?
– Queijinho-quente e sopinha de tomate. Por que você falou desse jeito?
Ele enrugou a testa.
– Simplesmente saiu da minha boca. Não é assim que se fala?
– Aurox, é assim que eu falava desde o segundo ano do fundamental. Heath também falava assim. Era o nosso almoço preferido porque a nossa escola fazia um spaghetti
muito ruim.
– Psaghetti – ele disse em voz baixa.
A minha mente me disse para falar para ele ficar quieto e comer, mas a minha boca disse:
– Nós só falamos assim quando é bom. A loucura do psaghetti não acontece com spaghetti ruim – eu sabia que estava tagarelando bobagens, mas não conseguia me conter.
– Tem também uma música e uma dança sobre a loucura do psaghetti.
– Eu sei.
– O que mais você sabe? – eu me senti quente e fria ao mesmo tempo.
– Que algumas vezes eu quero tanto te tocar que às vezes eu acho que posso morrer se você não deixar – ele afirmou.
Senti um frio na barriga.
– Eu estou com Stark.
– Eu sei, e acho que você tinha que ficar fria quanto a isso.
“Ficar fria”! Quando ele falou isso, soou tão parecido com Heath que eu quase perdi o fôlego.
Nenhum de nós disse nada, então ele levantou a mão devagar na direção da minha, que estava na mesa entre nós. Delicadamente, ele pegou a minha mão e a virou ao contrário.
Com um dedo, ele acompanhou suavemente a tatuagem cheia de filigranas que cobria a minha palma.
– Você recebeu essas tatuagens de Nyx – ele disse.
– Sim.
– Você tem mais tatuagens especiais – ele tirou o dedo da palma da minha mão e o colocou sobre o meu rosto, onde ele acariciou o padrão repetido ali.
O dedo dele era quente e deu vida aos meus nervos, de modo que onde ele tocava eu me arrepiava. Ele seguiu a linha do meu pescoço até o decote em V da minha camiseta
da BDG, e então começou a seguir o traçado da tatuagem, que se estendia sobre a minha cicatriz, de um ombro a outro.
– Isso quase a matou – ele sussurrou.
– Quase – falei meio ofegante, como se estivesse tentando conversar e correr ao mesmo tempo.
Com os dedos ainda no meu corpo, ele olhou dentro dos meus olhos.
– Você se Carimbou com Heath e ele a salvou. Foi por isso que você não morreu.
– Sim.
– Você bebeu o sangue dele.
Estava muito difícil falar, então eu apenas assenti.
– Zo, eu quero que você beba o meu sangue.
– Heath, ahn, Aurox... – eu gaguejei. – Não posso. Isso iria magoar Stark e...
Perdi as palavras quando ele pegou uma faca e furou a ponta do dedo que tinha tocado meu peito. Uma única gota vermelha brotou. O cheiro do sangue dele me invadiu.
Não era humano. Não era de novato nem de vampiro. Era mágico.
Eu lambi a ponta do seu dedo e ele gemeu o meu nome:
– Zo!
Aquele sabor atingiu o meu corpo como uma bomba nuclear. Eu agarrei e segurei com força a mão dele, querendo mais. Fechei os olhos e coloquei o dedo dele na minha
boca. Ele se inclinou para a frente, encostando a cabeça na minha.
O sino que indicava o final da terceira aula e o começo do almoço soou. Arregalei os olhos e me dei conta do que estava fazendo.
– Não, isso não está certo! Não. Aurox – balançando a cabeça, eu soltei a mão dele.
Ele estava respirando tão ofegante quanto eu.
– Eu não vou contar a ninguém. Eu nunca vou te trair assim.
Eu queria chorar.
– Se você realmente se importa comigo, vá embora. Por favor.
Ele assentiu, colocou um guardanapo em volta do seu dedo sangrando e saiu rapidamente do refeitório.
Bebi um copo inteiro de refrigerante de uma só vez. Enxuguei a boca. Alisei a minha camiseta. Peguei uma metade de queijo-quente e me forcei a comer. E quando todos
os meus amigos se juntaram na mesa, sorri, conversei e deixei Stark colocar o braço no meu ombro possessivamente.
Ninguém sabia que eu estava berrando por dentro. Ninguém.
18
Neferet
Os olhos de Neferet se moveram embaixo de suas pálpebras fechadas enquanto ela revivia o século vinte. Para um período em que ela tinha conseguido tanto poder e
o princípio da sua imortalidade, tinha sido realmente um tédio terrível.
Duas coisas foram a exceção: os seus sonhos e a velha mulher. Os primeiros se mostraram mentiras, e a segunda se revelou incrivelmente mais do que a verdade. Era
irônico que o seus sonhos fossem a parte que ela mais gostou de revisitar.
Neferet tinha voltado para a Morada da Noite de Tower Grove, onde a escola inteira estava ávida demais por demonstrar preocupação e compaixão com ela. As mortes
precoces da sua primeira familiar14, a pequena Chloe, e de seu guerreiro haviam sido muito próximas. Todos compreenderam quando Neferet se retirou da vida social
e começou a passar uma quantidade de tempo incomum em meditação e oração.
Eles não tinham ideia de que Neferet na verdade passava o seu tempo de oração em um sono profundo e entorpecido, ansiando pelo deus que aparecia para ela apenas
quando ela estava inconsciente.
Kalona havia sido esperto. Apesar de ter uma beleza impressionante, ele aparecia nos sonhos dela como o Deus sem Rosto, que pedia apenas que ela revelasse as suas
fantasias e permitisse que ele a venerasse.
Não parecia sonho. Mais tarde – depois que era tarde demais –, Neferet percebeu que não andava sonhando, mas sim que Kalona estava entrando no seu subconsciente
e a manipulando. Porém, naquele momento, tudo o que Neferet sabia era que o toque imortal dele despertava desejo. Ela continuou a se abrir para ele e, enquanto o
seu subconsciente escutava os sussurros dele, Neferet ficava mais forte.
Ela começou a questionar os modos modernos dos vampiros à sua volta. E, basicamente, a acreditar que o seu destino era libertar um deus de sua prisão injusta, para
que ela e ele pudessem governar lado a lado, Nyx e Erebus sobre a Terra. Juntos eles iriam anunciar uma nova era, em que vampiros não iriam mais coexistir em uma
paz desconfortável e patética com os humanos.
Em silêncio, Neferet começou a tomar providências que iriam mudar a forma das relações entre humanos e vampiros irrevogavelmente. Como o imortal havia dito para
ela em seus sonhos: Por que os deuses que caminham sobre a Terra se curvam para aqueles que os deveriam venerar?
Neferet usou a perda do seu guerreiro como uma desculpa para viajar, para não ficar presa ao trabalho enfadonho de ser uma professora. Buscando, sempre buscando
o que alimentava os seus sonhos, mas a iludia na vida, Neferet sorriu quando começaram a chamá-la de embaixadora de Nyx, cujas visitas abençoavam cada Morada da
Noite de um modo especial.
Neferet pensava em si mesma como uma embaixadora de poder.
Ela usou os seus dons psíquicos para saber o que cada Grande Sacerdotisa queria ou precisava: ser adulada ou desafiada, ameaçada ou elogiada, adorada ou ignorada.
E então ela dava exatamente o que elas queriam: informação, um toque de cura, inspiração, excitação... a lista de necessidades e desejos das Grandes Sacerdotisas
era interminável. Enquanto Neferet “servia”, ela adquiria reputação na comunidade dos vampiros. Ela se via como um camaleão fascinante e poderoso. Ela aprendeu a
fazer com que as pessoas enxergassem nela a característica que cada uma mais respeitava, confiava e venerava em alguém.
E sempre, sempre, Neferet era atraída para o centro da nação – para Oklahoma, para a terra cor de sangue antigo, e para a jovem cidade, Tulsa, onde ela havia enterrado
os registros de seu passado humano e para onde os sonhos, os sussurros e o toque de Kalona continuavam a atraindo.
Busque a minha libertação... busque a minha libertação... Os sussurros dele preenchiam os seus sonhos e assombravam a sua vida.
Era o dia 22 de abril de 1927 quando o rico casal humano Waite e Genevieve Phillips fizeram um convite para as Grandes Sacerdotisas comparecerem ao grande baile
de gala que eles estavam oferecendo para celebrar o término da construção da mansão que estava sendo chamada de Philbrook.
Neferet se certificou de que estava entre as Sacerdotisas que aceitaram o convite. Ela não tinha interesse por Philbrook, nem pelo casal humano filantrópico e liberal
e seus amigos ricos da alta sociedade.
Mas a cidade interessava Neferet. Ela tinha cheiro de petróleo, álcool, dinheiro, sangue e poder – sempre o poder.
Foi o aroma do poder, como a essência dos seus sonhos, que naquela noite a fez sair da festa dos Phillips e começar a vagar pela cidade. Mansões do petróleo recentemente
construídas pontuavam a paisagem. Neferet passou por elas sem ser vista. Ela mal olhou para dentro de suas janelas, nem reparou no brilho cintilante dos novos lustres
elétricos de cristal. Em vez disso, ela foi atraída para longe das mansões resplandecentes e começou a seguir um pequeno e melódico córrego, que parecia estar sussurrando
uma canção para ela.
A mansão apareceu de repente, como se tivesse se materializado especialmente para Neferet. Ela era enorme e ficava no meio de jardins caprichosamente bem cuidados,
enfeitados por carvalhos. Neferet se lembrava de ter pensado como era estranho o fato de existir apenas um portão de ferro na entrada da rua, sem muros cercando
a propriedade.
Então ela viu a placa e percebeu que, apesar de aparentemente ter sido construído como uma elegante casa de campo europeia, ou talvez até como um castelo, o enorme
prédio de pedra era uma escola particular.
Neferet foi atraída para ela antes de ver a velha mulher. Quando ela entrou no campus, o seu interesse definitivamente despertou. Havia dois prédios principais,
ambos construídos com uma pedra de textura única. O campus aparentava ser novo, tão novo que parecia escuro e desabitado. Foi quando Neferet perambulava pelo campus
inativo que a canção sussurrante que ela estava escutando a noite inteira se tornou realidade e se aglutinou aos seus sonhos.
Primeiro ela ouviu a sonora batida do tambor. Neferet seguiu o som até um lugar no extremo leste dos jardins do campus. Lá o aroma da sálvia e da sweet grass15 a
guiaram até um enorme carvalho, grande o bastante inclusive para esconder a luz de uma fogueira. Ela reparou que vários pássaros enchiam os galhos da árvore. Corvos.
Estranho, normalmente corvos não são vistos à noite, ela se lembrava de tê-los identificado e de ter pensado nisso.
Neferet deu a volta na árvore e viu a fogueira.
Então a batida do tambor preencheu a clareira, e toda a atenção de Neferet se concentrou na anciã. Ela estava ajoelhada perto do fogo com um grande tambor na sua
frente, no qual batia com um bastão simples enrolado em couro, que ela segurava com sua mão direita. Na sua mão esquerda, ela tinha um machadinho. Depois de algumas
batidas, ela cortou um pedaço de uma corda grossa e longa de ervas secas, que estava no chão ao seu lado. O fogo chiou quando consumiu as ervas, soltando uma fumaça
com aroma doce.
O vestido da mulher, apesar de amarelado pelo tempo, tinha uma beleza inesperada. As delicadas contas bordadas se refletiam na luz do fogo, e a longa franja ondulava
graciosamente a cada batida do tambor. O seu rosto era velho, e o seu cabelo preso em uma trança grossa era completamente branco, mas a sua voz era clara como a
de uma garota. Ela começou a cantar, e Neferet foi arrebatada pelas suas palavras.
Ancestral adormecido, esperando para despertar...
Neferet se moveu silenciosamente na direção da velha mulher, enquanto a música pulsava através do seu corpo no mesmo compasso das batidas do seu coração.
Quando o poder da terra sangra em sagrado vermelho
A marca atinge a verdade; a Rainha Tsi Sgili irá tramar
Ele será levado de seu leito de morte
Neferet deu um passo e entrou na área iluminada pela luz do fogo. A anciã levantou os olhos embaçados, que deviam ser azuis, e parou de cantar.
– Não – Neferet insistiu. – Continue cantando. É uma canção adorável.
A expressão da mulher se endureceu, mas ela continuou:
Pelas mãos dos mortos ele se liberta
Beleza terrível, visão monstruosa
Eles haverão de ser regidos outra vez
As mulheres hão de se curvar à sua misteriosa força
Doce é a canção de Kalona
Enquanto assassinamos com um calor gelado
Kalona! O nome do deus penetrou em Neferet.
– Cante outra vez, velha – ela ordenou.
– Já terminei. Vou embora.
A anciã começou a se levantar, mas Neferet se moveu rapidamente para detê-la. Foi muito fácil pegar o machadinho daquela velha. Foi muito fácil pressioná-lo contra
a garganta dela.
– Faça o que eu mando ou vou cortar o seu pescoço e deixar o seu corpo velho aqui para que os pássaros a devorem até os ossos.
A velha mulher fechou os olhos, deu um suspiro profundo e trêmulo e começou a cantar sem parar, até que Neferet teve certeza de que havia memorizado a canção. Só
então ela permitiu que a mulher parasse. Só então ela passou a examinar a mente da anciã.
– Você se vê como uma Ghigua. O que é isso? – Neferet perguntou.
A idosa arregalou os olhos. Ela não respondeu, mas a sua mente de repente foi invadida por pânico e palavras estranhas: Ane li sgi, demon, Tsi Sgili, devoradora
de almas, assassina de homens. Esse fluxo de palavras foi levado até Neferet em uma onda de medo e horror.
– Você está com muito medo de mim – Neferet sorriu e se sentou mais perto da velha, deixando o machadinho no pequeno espaço entre elas.
– Você escuta o que está na minha mente – a mulher disse.
– Eu consigo escutar mais do que isso – Neferet afirmou. – A sua canção... acho que eu entendo o que ela significa.
– Eu canto essa canção a cada lua nova como um alerta.
– Certamente, para alguns deve ser um alerta. Para mim, é uma promessa – Neferet investigou mais a fundo a mente da velha mulher. – Você não tem medo de mim porque
eu sou uma vampira.
– Eu não tenho medo de vampiros.
– Mas ainda assim você tem medo de mim – Neferet falou. – E você canta sobre o meu amante. Deixe-me ver, como é mesmo a canção? A marca atinge a verdade; a Rainha
Tsi Sgili irá tramar. Diga-me, velha, quem e o que é a Rainha Tsi Sgili?
É você, demônio! Tem prazer com a dor! Alimenta-se da morte!
A condenação ecoou da mente da anciã até Neferet, mas ela disse apenas:
– Eu já falei o bastante por uma noite. Agora não vou dizer mais nada – então ela pressionou os seus lábios finos e enrugados, teimosamente.
Neferet sorriu de modo insinuante para ela.
– Ah, mas eu não preciso que você fale com palavras. A sua mente está gritando alto o suficiente. Eu posso capturar tudo o que preciso sem que você diga uma única
sílaba, velha.
Mas Neferet não teve tempo para violar a mente da mulher como ela pretendia. Com um grito de guerra estridente, a anciã pegou rapidamente o machadinho e deu um golpe
em seu próprio pescoço, abrindo a artéria carótida.
– Não! – Neferet gritou, pressionando a mão contra a carne da idosa, tentando prolongar os seus últimos minutos de vida, enquanto examinava a mente dela, buscando
respostas em pensamentos semiformados e em imagens que desvaneciam.
Na sua toca, o corpo de Neferet se contorceu e estremeceu em reação às suas lembranças. A velha mulher havia se sacrificado por nada. A sua mente moribunda ofereceu
informação suficiente para que Neferet começasse duas coisas: a busca de um modo para libertar Kalona e a sua transformação de uma Grande Sacerdotisa insatisfeita
em uma deusa imortal, a Rainha Tsi Sgili.
Zoey
Eu adorava a sexta aula. Não só porque Lenobia era a professora mais legal de todos os tempos, mas porque era uma aula em que eu montava um cavalo! Eu não conseguia
imaginar como isso poderia ser mais perfeito. Hoje parecia que Lenobia sabia que a gente precisava se livrar do estresse. Quando a aula começou, nós entramos na
arena e encontramos grandes barris pretos de aço dispostos na forma de um triângulo.
Lenobia veio galopando em Mujaji. A égua negra parou deslizando bem na nossa frente.
– Então, novatos, alguém sabe por que esses barris estão aqui?
Eu levantei a mão.
– Zoey?
– Para uma corrida de barris.
– Exato – ela disse. – Você já participou de uma corrida de barris antes, Zoey?
Eu sorri, um pouco nervosa.
– Bem, mais ou menos. O cavalo de minha avó, Mouse, era um corredor de prova de barris aposentado. Vovó costumava colocar barris para ele treinar. Mesmo quando já
estava bem velho, ele se empertigava e corria ao redor dos barris como se fosse um potro novamente. Eu apenas ficava em cima dele e o deixava fazer todo o serviço,
mas era divertido.
Lenobia sorriu.
– Essa é uma história adorável e uma lembrança especial, Zoey. Guarde-a com carinho.
– Vou guardar. Eu já guardo.
– E então, alguém mais tem experiência com corrida de barris?
Os outros cinco garotos balançaram as cabeças e se mostraram desconfortáveis.
Lenobia franziu a sobrancelha e resmungou, mais para si mesma do que para nós:
– É tão desanimador estar no meio de Oklahoma cercada de jovens que não sabem nada de cavalos – então ela levantou a voz e continuou: – Não importa. Eu preparei
um exemplo bem simples, grande e óbvio para vocês seguirem – ela fez um barulho com a boca para Mujaji, e a égua se moveu para o lado para que Travis, montado em
sua égua Percherão, Bonnie, pudesse entrar trotando na arena.
Ele empinou a égua na frente de Lenobia e tocou na aba de seu chapéu para cumprimentá-la.
– Madame, você não acabou de chamar a minha égua de grande e simples, chamou?
Ela acariciou o focinho de Bonnie e deu um beijinho nela antes de responder:
– Eu nunca chamaria essa criatura magnífica de grande e simples. Eu estava falando de você – os olhos dela faiscaram para o cowboy alto e bonitão.
– Bom, então tudo bem, madame – ele disse. – Fico feliz em saber que sou valorizado assim.
A risada de Lenobia pareceu a de uma garotinha, e eu pensei que nunca a tinha visto tão bonita.
– Vá, conduza Bonnie ao redor dos barris para que os garotos vejam – ela bateu de brincadeira na bota de Travis.
Sim, ela definitivamente estava apaixonada.
– Certo, minha garota, vamos mostrar a esses novatos que você não precisa ser um Quarto de Milha para fazer uma prova de barris – ele levou Bonnie até a posição
de partida e então a esporeou com força e bateu com o seu chapéu no traseiro enorme dela. A égua Percherão praticamente decolou.
Lenobia explicava o que Bonnie estava fazendo, como ela estava seguindo um padrão de trevo, em um tempo exagerado. Mesmo assim, quando a égua gigante arremeteu pelo
centro com Travis a incitando, e o chão da arena pareceu tremer, todos nós a saudamos e aplaudimos.
E isso foi só o começo da diversão. Por quase uma hora, fizemos sem parar a corrida de barris, um de cada vez, com o cavalo escolhido. Persephone era a “minha” égua.
Eu adorava cada centímetro de sua bela pelagem ruão. E ela também corria bem! Persephone sabia fazer direitinho o padrão de trevo. Como diria Stevie Rae, eu só precisava
ficar feito um carrapato, grudada nela.
Por todo esse tempo – cerca de cinquenta e poucos minutos –, eu esqueci de Neferet, Stark, Aurox, Transformação e magia antiga. Só durante esse pequeno período,
eu era uma garota de novo, rindo, montando um cavalo e amando a vida.
Isso acabou rápido demais. Normalmente, tratar de Persephone me ajudava a aquietar a mente. Hoje teve o efeito contrário. Talvez porque eu não tivesse pensado em
nada enquanto eu estava montando. Porém, quando eu comecei a pentear a sua crina com a almofaça, os meus problemas rugiram.
Pensar no que Neferet estava armando deveria ser o meu maior problema, seguido por tentar descobrir como a minha pedra da vidência e a magia antiga estavam funcionando
– ou não funcionando –, mas o que continuava girando sem parar na minha mente era a situação Heath/Aurox/Stark.
Afe, eu tinha lambido o sangue no dedo do garoto.
Que diabo eu ia fazer agora?
– Bom trabalho hoje, Zoey – a voz de Lenobia me assustou e Persephone levantou a cabeça por causa da minha reação.
Eu acalmei a égua e dei um olhar de desculpas para Lenobia.
– Sinto muito, a minha cabeça não estava aqui.
– Eu entendo totalmente – ela se encostou na portinhola da baia. – Tratar de Mujaji para mim é como tomar um comprimido para dormir. Ela me deixa tão relaxada que
até já me aconcheguei na sua baia e dormi ali mesmo algumas vezes.
Eu suspirei.
– É, normalmente eu também me sinto assim quando cuido de Persephone.
– Mas hoje não?
Balancei a cabeça.
– Hoje não.
– Você quer conversar sobre isso?
Eu quase respondi automaticamente algo como “está tudo ok, eu estou bem”. Mas então eu lembrei que ela havia dito que esperou Travis por mais de duzentos anos. Ela
devia entender de casos de amor complicados – além disso, Lenobia era mais do que apenas uma professora, ela era minha amiga. Então dei outra resposta:
– Sim, se você tiver tempo, eu realmente gostaria de conversar sobre isso.
Lenobia colocou um fardo de feno dentro da baia e se sentou nele.
– Eu tenho tempo.
Inspirei profundamente, sem saber direito por onde começar.
– Apenas escove a égua e comece a falar. O resto vai vir naturalmente – Lenobia disse.
Segurei a escova macia e comecei a passá-la em Persephone, seguindo o padrão de crescimento do seu pelo lustroso. E comecei a falar.
– Sei que é normal, e até parece ser meio esperado que uma Grande Sacerdotisa escolha mais de um cara, mas eu simplesmente não entendo como elas fazem isso.
Lenobia riu.
– O que foi que eu disse?
– Ah, Zoey, desculpe. Eu não estou rindo de você. É só que eu me esqueci de como você é tão jovem e de como há tantas coisas sobre vampiros que você não entende
muito bem.
– Tipo, como fazer para lidar com mais de um cara ao mesmo tempo – eu disse, concordando.
– Bem, talvez. Mas para mim parece que a primeira coisa que você deve entender é que não se espera que Grandes Sacerdotisas tenham mais de um amante ao mesmo tempo.
Elas simplesmente têm a opção de escolher mais de um parceiro sem serem julgadas, como uma mulher humana seria na cultura de hoje – Lenobia cruzou as pernas e se
encostou na parede da baia, como se estivesse se acomodando para uma longa conversa íntima. – Zoey, pense em como vai ser a sua vida quando você completar a Transformação.
– Se eu completar a Transformação – eu observei.
Lenobia sorriu.
– Eu tenho confiança em você, então vamos dizer quando você completar. Você sabe quantos anos eu tenho?
– Muitos – eu falei sem pensar. – Ahn, desculpe. Não é que você pareça velha nem nada disso.
– Não fiquei ofendida. Eu nasci no ano de 1772.
– Faz muito tempo! – exclamei.
O sorriso dela se ampliou.
– Se o destino for bom comigo, eu provavelmente vivi apenas metade da minha expectativa de vida. Desde 1772, eu só amei um único homem, mas isso foi uma escolha
minha, um voto que fiz. A maioria das vampiras encontram diversos amores durante suas vidas. Às vezes, elas já estão envolvidas com um vampiro quando conhecem um
novo amor humano. Às vezes, é o contrário.
– Então, não é que se espere que elas tenham vários caras ao mesmo tempo – eu concluí.
– Exato. Trata-se mais de lógica e expectativa de vida. E escolha. Como nós fazemos parte de uma sociedade matriarcal, podemos escolher sem sermos julgadas ou condenadas.
Isso a ajuda com o seu problema?
– Bem, sim e não. Obrigada por me explicar essa história de múltiplos parceiros, mas eu ainda não sei o que fazer em relação à coisa Heath barra Aurox – eu respondi,
sentindo-me péssima.
– Por que você tem que fazer algo?
– Porque eu já fiz uma coisa. E ignorar isso não é justo com Aurox ou com Stark – suspirei de novo. – Ou, eu imagino, com Heath.
– Então você tomou Aurox como amante, junto com Stark?
– Não! – eu gritei. Então espiei Lenobia por cima de Persephone. Ela estava olhando imperturbável para mim, serena e sem julgamentos. – Mas eu bebi um pouco do sangue
dele – eu admiti.
– E como você não é igual a uma novata normal do primeiro ano, isso é muito viciante e excitante para você. Certo?
– Sim, certo – eu reconheci.
– Stark sabe disso?
– Ah, Deusa, não! Ele iria surtar. Ele já está agindo feito um babaca possessivo sempre que Aurox está perto de mim.
– Mas ele sabe que você era companheira de Heath e que a alma de Heath está dentro de Aurox.
– É por isso que ele está agindo feito um babaca possessivo. Aparentemente, Stark não vai aceitar que eu fique com Heath, ahn, Aurox. E Stark pensa que nós mal falamos
um com o outro.
– Aurox te atrai.
Ela não formulou a frase como uma pergunta, mas eu a respondi.
– Sim, atrai. Isso porque Heath está dentro dele. Não é uma coisa consciente. É estranho... e perturbador. Aurox normalmente é apenas um garoto bonitinho, por quem
eu não me sinto particularmente atraída nem nada, mas de repente... bang!... eu pisco e ele diz ou faz algo tão igual a Heath que faz o meu coração doer.
– Se você não estivesse ligada a Stark, iria querer ficar com Aurox?
Mordi o lábio.
– Não tenho certeza. Eu amo Heath. Sempre vou amar Heath. Mas Aurox não é realmente o meu Heath.
– Você quer dizer que é como quando Kalona se sentia atraído por você, porque a alma da virgem A-ya está aí dentro, e ele reconhecia a presença dela?
Essa comparação me surpreendeu, mas, quanto mais eu pensava sobre ela, mais aquilo fazia sentido.
– Acho que você está certa. Uau, isso na verdade deixa as coisas mais fáceis para mim. Kalona realmente me queria por causa de A-ya, e eu tenho que admitir que sentia
uma atração profunda por ele. Mas não era real. Eu não sou A-ya, e eu escolhi não amá-lo. Aurox não é Heath. Ele não precisa escolher me amar... os resquícios de
Heath me amam, só isso.
– Eu vou ter que complicar as coisas para você, mas, para ser justa, você precisa saber que Aurox pode amar você também. Travis é a reencarnação do meu único companheiro,
Martin. Ele não tem as memórias de Martin. Na verdade, ele é muito diferente do meu Martin, e ainda assim ele é tão eternamente devotado a mim quanto eu sou a ele
– Lenobia sorriu com ternura, e os seus olhos se encheram de lágrimas. – Realmente é possível levar o amor com você, e alguns de nós tem sorte o bastante para encontrar
esse amor novamente.
– Lenobia, eu estou superfeliz por você, mas realmente você complicou muito as coisas para mim – eu afirmei.
– Zoey, a sua situação já era complicada. Você quer o meu conselho sobre como eu lidaria com isso?
– Claro que sim – eu respondi.
– Pode ser que isso pareça frio ou até egoísta, mas, se eu estivesse no seu lugar, iria decidir com quem eu realmente queria ficar, sem me preocupar com o que os
dois garotos queriam. O único modo de você ficar plenamente satisfeita com a sua escolha é se você fizer a escolha pensando em você, não em ninguém mais.
Abaixei a escova e olhei para ela.
– É mesmo tão simples assim?
– Se você conseguir ser honesta consigo mesma e então seguir em frente até o fim com essa honestidade, sim, é – Lenobia respondeu.
– Você me deu bastante coisa para pensar, mas pelo menos agora eu tenho uma direção – eu falei.
– Você tem que amar e ser verdadeira consigo mesma antes que alguém possa amá-la e ser verdadeiro com você.
O sino que sinalizava o fim das aulas soou. Coloquei a minha mão em punho sobre o coração e me curvei respeitosamente para ela.
– Obrigada, Lenobia.
Lenobia retribuiu com o mesmo gesto tradicional e disse:
– Que você seja sempre abençoada, Zoey Redbird.
– Stark, nós precisamos conversar – eu odiei dizer essas palavras provavelmente tanto quanto Stark odiou escutá-las. Afinal, quem não odiaria? Será que algum pai
ou mãe, namorado ou namorada, professor ou chefe já começou uma conversa boa dizendo isso?
– Ok, mas eu pensei que a gente ia assistir Big Bang Theory e, você sabe, passar algum tempo juntos e sozinhos – ele tentou dar aquele seu sorriso metidinho.
– Bem, a gente ainda pode fazer isso. Talvez. Se você ainda quiser, depois que a gente conversar.
– Você está me assustando – ele falou.
Eu estendi a mão para ele. Stark a segurou e se sentou perto de mim na cama.
– Eu preciso dizer algumas coisas que provavelmente vão ser difíceis para você escutar, mas você não precisa se assustar.
– Não preciso me assustar porque, não importa o que seja, eu sempre vou ser o seu guerreiro e Guardião?
Ele parecia muito nervoso. Eu entrelacei os meus dedos aos dele.
– Sim, em parte é por isso, mas em parte também é porque eu te amo.
– Ah, ótimo. Eu gosto dessa parte.
– Eu também – eu afirmei. – Mas eu também preciso gostar de você.
– Mas você acabou de dizer que gosta.
– Não, eu acabei de dizer que amo você. E amo mesmo. Mas você tem feito algumas coisas ultimamente de que eu não gosto muito, e nós temos que conversar sobre isso.
– O que você quer dizer?
Eu tinha decidido que, se ia ser honesta comigo mesma, tinha que ser honesta com Stark. Então eu falei a verdade a ele, diretamente, sem rodeios.
– Eu não gosto como você me trata quando Aurox está por perto. Você age feito um babaca possessivo, e quero que você pare com isso.
Ele tentou tirar a sua mão da minha, mas eu não deixei e continuei:
– O ponto é: eu não acho que você seja um babaca possessivo. Eu gosto de quem você realmente é, e quero que você volte a ser aquele cara, o tempo todo.
– Tudo bem. Que seja.
– Não, Stark. Isso não vai dar certo se você não for honesto comigo e consigo mesmo. Você sempre vai ser o meu guerreiro, mas se você ficar todo na defensiva comigo
e a gente não puder conversar sobre os nossos problemas, você vai acabar sendo apenas o meu guerreiro e nada mais.
– É isso o que você quer?
– Sério, Stark, pense um pouco. Se eu quisesse isso, por que a gente estaria tendo esta conversa?
– Então você não está terminando comigo?
– Espero que não – eu falei.
Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse se esvaziando. Os seus ombros desabaram e ele ficou olhando fixamente para o chão sob os seus pés.
– Saber que você ama Aurox está me deixando louco, e eu sinto muito se isso me faz agir feito um idiota. Mas eu não sei o que fazer em relação a isso, porque não
suporto pensar em você ficando com ele.
– Ok, em primeiro lugar, eu não amo Aurox. Eu amo Heath. Eu sempre vou amar Heath. Você sabe disso.
– Mas Aurox tem a alma de Heath dentro dele.
– Sim, e eu fico feliz que ele tenha, afinal foi isso que salvou Vovó. Eu sempre vou ser grata a Aurox por isso, mas eu não o amo.
– Você não quer ficar com ele? Mesmo? – Stark levantou os olhos do chão e se virou para mim.
– Eu decidi que não quero ficar com ele. Mesmo – eu afirmei.
– Por que não? – Stark perguntou, mas, antes que eu pudesse responder, ele me cortou. – Não... não importa. Eu não quero saber por quê. Só o que importa é que você
não quer ficar com ele. Não quero saber mais nada além disso.
Ok, eu tinha a intenção de contar a Stark que eu havia provado o sangue de Aurox, e que realmente era difícil para mim quando eu vislumbrava Heath dentro dele, e
que na verdade eu ainda amava Heath e Stark. Mas, mesmo apesar disso tudo, eu tinha decidido que simplesmente não conseguia lidar com mais de um namorado ao mesmo
tempo. Mas eu não consegui dizer nada disso porque Stark me puxou para os seus braços.
– Eu estou tão feliz que você me escolheu! – ele sussurrou.
Senti que ele estava trêmulo, então eu o abracei e sussurrei:
– Eu também.
E então ele de repente estava me beijando com um desejo tão quente que eu nem conseguia pensar no que queria dizer. Eu só conseguia pensar no seu toque e em quanto
eu o amava.
Foi só mais tarde, quando o sol havia se levantado e Stark estava roncando ao meu lado, com o braço sobre o meu corpo e a lateral do seu corpo pressionada intimamente
contra o meu, que a minha mente começou a funcionar de novo, e eu soube que precisava falar com Aurox.
19
Zoey
Não foi difícil tirar o braço de Stark de cima de mim e sair escondida da cama. Stark estava totalmente apagado. Acho que nem a explosão de uma bomba iria acordá-lo.
Mesmo assim, fiquei pensando em como a nova capinha do meu celular era brilhante enquanto eu me vestia e saia do quarto na ponta dos pés. Afinal, uma bomba podia
não acordar Stark, mas as minhas emoções em turbilhão provavelmente o acordariam.
Felizmente, não havia ninguém por perto. Apesar de estar no meio da manhã, o céu estava com cor de hematoma e havia um aroma de tempestade de primavera. No caminho
para o ginásio, percebi que as glicínias plantadas perto do muro da escola estavam brotando com grandes cachos de flores roxas. Então eu espirrei. Sim, tempestades,
flores e alergias. A primavera estava chegando a Oklahoma.
Fui até o ginásio passando pelo estábulo e fiz uma pausa no corredor entre os dois prédios, inspirando profundamente o cheiro de cavalo e feno para tentar manter
a calma.
Eu só vou ser honesta. Vou magoá-lo mais se eu ficar prolongando isso e o evitando. Heath entenderia.
Eu bufei e dei risada de mim mesma. Não, Heath não entenderia. Ele iria dizer: “A gente pertence um ao outro, amor!”. E ignorar o fato de que eu estava terminando
com ele. De novo.
Kalona estava parado sozinho no corredor ao lado da entrada para o porão.
– Zoey, você está acordada a essa hora – ele colocou a mão em punho sobre o coração e se curvou rapidamente.
Eu não o tinha visto mais desde que ele cortou a cabeça de Dallas e saiu voando com os dois novatos se debatendo em seus braços. Ele não parecia diferente em nada.
Acho que eu não deveria esperar isso dele. Mesmo assim, não pude deixar de ter uma curiosidade mórbida.
– Oi. E então, como foram as coisas com os dois novatos?
– Como deviam ser.
– Eles já estão... você sabe, mortos?
Kalona deu de ombros, fazendo suas asas enormes farfalharem.
– Eu os deixei no meio da Pradaria de Tallgrass. Com essas nuvens cobrindo o sol, pode ser que eles durem um dia. Mas certamente não vão durar mais do que isso.
– Você vai cuidar dos corpos deles?
Ele balançou a cabeça.
– Os coiotes vão fazer o serviço por mim.
– Isso é muito frio – eu comentei.
– A justiça normalmente parece fria. Isso não é uma característica que Thanatos e eu criamos. Julgar, condenar e fazer justiça não é agradável. Não é neste país
que o símbolo da Justiça é uma donzela cega segurando uma balança?
– Ahn, acho que isso não quer dizer que ela seja fria. Acho que isso quer dizer que a Justiça não deve se basear na aparência de uma pessoa ou em que ela é, mas
sim nos fatos.
– Não entendo a distinção que você está fazendo.
– Não importa – eu desisti. – Eu estou procurando Aurox. Você o viu?
– É o turno dele de patrulhar o perímetro da escola. Se você sair pela porta da frente do ginásio, ele deve passar por lá em breve.
– Ok, ótimo. Ahn, eu agradeço se você não contar a ninguém que eu estava procurando...
Kalona levantou a mão, cortando-me.
– Não vou fazer fofocas para o seu guerreiro.
Eu pensei em corrigi-lo e dizer que não era nada disso, que eu só não queria que os novatos ficassem fofocando sobre mim e Aurox, mas a minha boca não conseguiu
formular essa mentira, então eu suspirei e agradeci.
– Sim, obrigada – e então saí apressada.
Também não havia ninguém na parte da frente da escola, e eu encontrei um banco não muito longe da porta do ginásio. Enquanto eu estava sentada esperando Aurox, observei
as nuvens carregadas se aproximando e pensei no que Kalona havia dito.
Talvez ele estivesse certo. Julgar os outros não era agradável. Já houve um tempo em que eu teria pensado que julgar os outros era errado, mas eu havia concordado
com Thanatos em sua condenação. Acho que eu até concordava com a pena que ela havia determinado. Então, será que isso me tornava uma hipócrita quando, no final de
tudo, eu me senti mal e enjoada? Ou será que isso me tornava humana? Ou será que isso me tornava obtusa demais, impedindo que um dia eu possa ser uma Grande Sacerdotisa
decente?
– Zoey? Está tudo bem?
Eu não escutei Aurox se aproximando, então foi um choque desviar a minha atenção das nuvens carregadas e ver os seus olhos com o brilho do luar. Eu pisquei surpresa
e me chacoalhei mentalmente, tentando me concentrar de novo e pelo menos fazer a coisa certa.
– Sim, tudo bem. Eu só preciso conversar com você. É uma boa hora?
– Claro – ele fez um gesto na direção do banco ao meu lado.
– Ah, sim, sente-se.
Ele se sentou e eu tentei não me inquietar nem arrancar o meu esmalte.
– Parece que vai chover – eu disse. – E acho que acabei de ouvir um trovão ao longe.
– Há um cheiro de raios no ar – ele concordou.
Eu relaxei um pouco. Aquilo era algo que Heath definitivamente não diria.
– Eu nunca tinha pensado que raios pudessem ter cheiro, mas você provavelmente está certo. Raios e trovões andam juntos.
– Zo, o que está rolando?
Os meus olhos encontraram os dele. Heath estava definitivamente lá dentro.
– Eu não posso beber o seu sangue de novo.
– Mas você quer – ele argumentou.
– Aurox, ninguém tem tudo o que quer.
– Mas isso não é tudo, é apenas uma pequena parte do todo.
– Se eu realmente bebesse o seu sangue, a gente ia fazer amor. A gente provavelmente ia se Carimbar. Isso não seria uma coisa pequena para mim, nem para você, nem
para Stark.
– Então é Stark. É por causa dele que você não quer ficar comigo – Aurox afirmou.
– Não. É por minha causa. Eu não posso ficar com dois caras ao mesmo tempo.
– E você não vai trocar Stark por mim porque eu não sou Heath.
– Eu não vou trocar Stark por você porque já estou comprometida com ele – eu disse com firmeza.
– É porque eu não sou bom o suficiente para você... por causa do modo como eu fui criado... por causa do que eu posso ser.
Coloquei a minha mão na dele.
– Não, Aurox. Por favor, não pense isso. Você não tem culpa de nada disso, e eu nem penso nisso quando estou com você.
– No que você pensa?
Eu sorri, apesar de estar triste, e continuei a falar a verdade para ele:
– Penso em como estou feliz por você estar aqui. Também penso que você e Heath formam uma boa dupla.
– Você sabe que a gente te ama – ele disse.
– Eu sei – falei baixinho e tirei a minha mão da dele. – Sinto muito.
– E como vai ser agora?
– Vamos ser amigos – eu afirmei.
– Amigos – a palavra soou tão sem emoção quando ele a repetiu.
– Sim, e Stark não vai mais agir feito um louco perto de você – eu garanti.
– Zo, isso porque ele não tem nenhuma razão para agir assim – Aurox se inclinou, deu um beijo na minha bochecha e então, parecendo completamente derrotado, disse:
– Você poder avisar Kalona que vou conferir o perímetro da escola de novo?
– Sim, claro... – eu falei enquanto ele saía correndo na direção do muro de pedra da escola.
Eu me levantei, sentindo-me pesada e muito, muito cansada. Bem, eu falei a verdade para ele, mas foi péssimo. Tentei não pensar em nada a não ser em dormir, porque
a última coisa que eu queria era que Stark acordasse e perguntasse por onde eu andei e o que tinha feito com que eu me sentisse tão mal. Voltei pelo mesmo caminho
até o ginásio e pelo corredor que dava na entrada do porão. Kalona não estava lá. Eu suspirei e olhei dentro do ginásio. Ele também não estava lá. Imaginando que
ele estava no porão para dar uma conferida rápida nos garotos adormecidos, eu caminhei sem fazer barulho na direção da escada.
– Sim, andei observando Zoey como eu disse que faria.
Quando eu escutei meu nome, parei porque fiquei surpresa. A voz veio da área do estábulo, da porta meio aberta que separava o corredor entre o ginásio e o celeiro.
– E...? Que merda, será que eu tenho que te perguntar tudo?
Então eu percebi quem estava falando sobre mim e me aproximei lentamente, sem acreditar no que ouvia.
– E as cores dela ficaram muito loucas durante o funeral. Mas eu acho que sei por quê. Não tem nada a ver com ela perder o controle do seu temperamento ou dos seus
poderes.
– Shaylin, estou perdendo a paciência. Conte logo o que você viu, só isso.
Houve uma longa pausa. Escutei Shaylin soltar um suspiro, e então gelei por dentro quando a Profetisa falou para Aphrodite:
– Eu vi Zoey olhando para Aurox. Muito. As cores dela estavam loucas. Isso me fez pensar... Então, quando ela e Aurox foram até o refeitório depois do círculo, eu
os segui.
– Caraca, Shaylin! Você não é uma Profetisa, você é uma superespiã! – Aphrodite exclamou, rindo. – Diga que Z. e o menino-touro se pegaram.
Mordi o lábio para não gritar.
– Quase. Os dois definitivamente estão atraídos um pelo outro. Ela sugou sangue do dedo dele.
– Para Zoey, isso é praticamente a mesma coisa do que se pegar. Caramba! Isso é muito parecido com o que eu vi. Então, deixe-me adivinhar, as cores dela ficaram
loucas? Indicando confusão, frustração e irritação?
– Exato. Principalmente depois que ela...
Eu já tinha ouvido o bastante.
– Calem a boca! – eu gritei. A pedra da vidência no meu peito estava ardendo tanto quanto o meu rosto vermelho. Eu abri a porta com força, fazendo com que ela batesse
contra a parede.
– Oh-oh – Aphrodite disse.
– Zoey! Não é o que você está pensando! – Shaylin saiu na defensiva, afastando-se de mim quando eu entrei no aposento.
– Sério? Como isso não é o que estou pensando, se eu acabei de ouvir você contar a Aphrodite que andou me espionando! – eu não pensei. Eu reagi. Segurando a pedra
da vidência ardente, levantei a outra mão e pensei como eu queria tanto que Shaylin caísse no chão.
Uma bola de fogo azul saiu da minha mão e derrubou Shaylin. Ela caiu de costas, ofegante e chorando.
Não liguei para o choro dela. Eu me senti bem em fazer com que ela caísse de bunda no chão. Shaylin mereceu.
– Pare! Agora! – Aphrodite entrou na minha frente.
Eu franzi os olhos.
– Você estava falando sobre mim pelas minhas costas!
– E eu vou explicar por que em um segundo. Primeiro, você precisa cair em si. Controle essa merda louca que está rolando com você e acalme-se. Agora – ela olhou
sobre o ombro para Shaylin. – Volte já para o porão.
Ainda chorando, Shaylin se levantou com dificuldade e passou correndo por mim.
– E então, o que ela é, a sua pequena Profetisa particular?
Em vez de me responder, Aphrodite observou Shaylin indo embora. Então ela colocou as mãos nos quadris e me encarou.
– Sério? Você quer falar merda para mim depois de usar essa maldita pedra para machucar Shaylin? Você perdeu completamente a cabeça.
– Pedra? – eu pisquei surpresa para ela e então olhei para o meu peito, percebendo que eu estava segurando a pedra da vidência com tanta força que ela estava fazendo
a palma da minha mão doer. Assim que eu senti a dor, a pedra se resfriou. Eu a soltei. Sentindo-me confusa, tentei manter o foco no que tinha me irritado: Shaylin
espionando a centra entre mim e Aurox. – Eu não estou falando sobre a pedra e não estou falando merda. Quero saber o que você pensa que está fazendo para mandar
que eu seja seguida por aí.
– Eu tive uma visão. Era do seu ponto de vista. Você estava fazendo algumas coisas que Shaylin viu você fazer com Aurox.
– Quando você teve essa visão?
– Uns dias atrás. Não importa. O que importa é que...
– Não importa que você tenha escondido de mim uma visão sobre mim por dias?
– Não, o que importa é o motivo. Foi porque eu também vi você perdendo o controle sobre o seu maldito temperamento, sem conseguir controlar essa maldita pedra. E
foi exatamente isso o que acabou de acontecer.
– Não, não foi isso o que acabou de acontecer. Eu controlei a maldita pedra. Eu quis derrubar Shaylin, e a pedra fez exatamente o que eu queria.
Aphrodite balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Você prestou atenção no que está dizendo? Claro, você deveria ficar irritada com o que acabou de ouvir. Mas a Zoey normal nunca ia querer machucar Shaylin. Aliás,
a Zoey normal também nunca falaria “merda” ou “maldita”.
– A Zoey normal nunca ia imaginar que uma das suas melhores amigas ia ficar falando dela pelas costas e mandando espioná-la!
– Eu ia te contar sobre a visão. Eu ia te contar sobre Shaylin. Eu só precisava esperar o momento certo – Aphrodite argumentou.
– Quer saber, Aphrodite? O momento certo não era depois de você falar sobre mim e me espionar. Ah, que se dane. Tô fora – comecei a me afastar dela, mas Aphrodite
entrou na minha frente de novo.
– Z., tem mais coisas rolando aqui do que apenas o fato de você estar irritada comigo. Acho que a magia antiga está afetando você, e não de uma forma boa. Nós precisamos
conversar sobre isso. Você tem que me deixar contar o resto da minha visão.
– Estou tão cansada de ouvir o que eu tenho que fazer. Saia da frente, Aphrodite – o meu peito estava ardendo quando eu forcei a passagem.
Ela cambaleou para trás, fazendo uma exclamação de choque. Eu não me importei. Já estava cheia dela.
Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que eu tinha que ir. Se eu estivesse com as chaves do meu Fusca, teria dirigido até a casa de Vovó, mas as chaves estavam
lá no meu quarto e eu não queria ver Stark naquela hora e contar a ele porque eu estava tão perturbada. Que inferno, se aquilo não tivesse sido durante o dia, eu
já teria trombado com Stark, graças à ligação idiota que a gente tinha.
Eu precisava de tempo. Eu precisava de espaço. Eu sentia como se a raiva estivesse fervilhando embaixo da minha pele. Eu não podia fugir disso porque eu não podia
fugir de todo mundo me irritando e me dizendo o que fazer. Eu precisava pensar sem ficar sendo incomodada constantemente com chatices!
Mudei de direção, afastando-me dos dormitórios, até chegar ao muro que circundava a escola. O muro que Aurox patrulhava. Que droga! Eu também não queria vê-lo.
Foi então que eu decidi mandar pro inferno os policiais e a sua prisão domiciliar. Eu não tinha matado o prefeito e, se eu precisava dar uma volta fora do campus,
eu ia dar uma volta fora do campus! Comecei a correr para a parte leste do muro, onde havia uma passagem escondida, que eu sabia que não ficava muito longe dali.
Shaylin
Shaylin tentou parar de chorar. Ela não era uma chorona. Ela estava acostumada a não sentir pena de si mesma. Mas desta vez era diferente. Primeiro, aconteceu aquela
coisa horrível com Dallas e os dois novatos. Ela sabia o que ia acontecer. Shaylin tinha visto a morte deles nas cores de Thanatos. E ela havia ficado de boca fechada
e acreditado que Thanatos estava fazendo a coisa certa.
Depois Shaylin fez exatamente o contrário: ela tinha aberto a boca e fofocado sobre os assuntos pessoais de Zoey porque sentiu que estava fazendo o certo. Bem, Shaylin
também tinha sentido que estava se encaixando na Morada da Noite e fazendo um bom trabalho com o seu dom.
Mas isso não podia ser verdade, pois ela se sentiu péssima depois que Dallas foi morto e que a novata mais poderosa do mundo a fez cair de bunda no chão.
Ela tinha se atrapalhado totalmente. Duas vezes.
Shaylin se encolheu no canto escuro do porão onde ela tinha montado a sua cama. Ela se sentou com os joelhos dobrados e o seu travesseiro em cima deles. Ela pressionou
o rosto contra a fronha macia para abafar o choro. Mas ela não precisava ter se preocupado. A maioria dos novatos vermelhos dormia durante o dia como se estivessem
mortos.
Era isso o que eu devia estar fazendo também, ela repreendeu a si mesma. Eu devia estar dormindo, e não falando com Aphrodite sobre Zoey. Agora elas estão bravas
uma com a outra e também comigo! Eu nunca vou entender essa coisa de Profetisa.
Shaylin não pensou no fato de que Aphrodite aparentemente estava certa em relação ao problema do controle da raiva de Zoey. Naquele momento, não importava que Aphrodite
estivesse certa. Naquele momento, só o que importava era que parecia que o mundo dela – e os seus amigos – estavam entrando em colapso.
– Ei, Shaylin, o que aconteceu?
Abafando o choro, Shaylin levantou o rosto e viu Nicole em pé ao seu lado, esfregando os olhos, com o cabelo desgrenhado, como se ela fosse uma sonâmbula.
– Na-nada. E-eu estou bem – ela sussurrou e então enxugou o rosto na fronha, forçando-se a parar de chorar.
Nicole sentou ao lado dela.
– Não, você não está bem. Você está se acabando de chorar.
– Shhh – Shaylin pediu silêncio a ela e olhou em volta para conferir se todo mundo ainda continuava dormindo. – E-eu estou bem.
Nicole se aproximou mais dela, de modo que os seus ombros se tocaram, e sussurrou:
– Fique tranquila. Ninguém vai ouvir. Conte o que aconteceu.
Shaylin enxugou os olhos de novo e então falou em voz baixa:
– Eu acho que me atrapalhei usando a minha Visão Verdadeira.
– Ei, você é boa usando a sua Visão. Você viu que eu mudei – Nicole sorriu para ela. – Você devia confiar mais em si mesma.
– Eu devia aprender quando é a hora de abrir a minha boca idiota e quando é a hora de manter a minha boca idiota fechada – Shaylin afirmou. Ela enfiou a mão dentro
da sua bolsa, pescou um lenço de papel amassado e assoou o nariz.
– Você não é idiota.
– Se você soubesse que Thanatos ia mandar Kalona cortar a cabeça de Dallas, teria dito alguma coisa?
Nicole fez uma careta.
– Você não pode me perguntar isso. Não consigo ser imparcial em relação a Dallas.
– Você ainda o ama?
Nicole balançou a cabeça rapidamente.
– Não, esse é o ponto. Eu nunca o amei de verdade, e eu sabia como ele era perigoso. Então eu não posso ser imparcial em relação à sua morte.
Enquanto a ouvia, Shaylin deu um pequeno soluço. Nicole colocou o braço ao redor dela.
– Se você está mal por causa do que aconteceu com Dallas, não fique.
– Não foi só isso, apesar de isso ter sido ruim. Eu falei com Aphrodite sobre as cores de outra pessoa, e eu devia ter ficado fora disso.
– Mas Aphrodite também é uma Profetisa. Ela é meio maldosa e louca, mas ainda assim é uma Profetisa. Acho que é normal uma Profetisa conversar com a outra sobre
coisas como a sua Visão Verdadeira.
– Eu também pensava isso. Agora não tenho tanta certeza. Eu queria saber exatamente qual é a coisa certa a fazer.
– Acho que várias vezes não há uma única coisa certa a fazer em determinadas situações.
Shaylin levantou os olhos para Nicole.
– Você é muito inteligente.
– Que nada, é só que eu já cometi um monte de erros – Nicole sorriu para ela. – Mas agora eu não errei. Consegui fazer você parar de chorar.
Shaylin tentou sorrir.
– Conseguiu mesmo. Obrigada. E, aproveitando, as suas cores se tornaram muito bonitas.
– Viu só, se você acha que as minhas cores são bonitas, isso prova que você é uma grande Profetisa.
Shaylin estava sorrindo para Nicole quando a novata se inclinou devagar e a beijou nos lábios com delicadeza. Shaylin congelou e arregalou os olhos de choque. Então
Nicole se afastou dela e rapidamente tirou o braço do ombro de Shaylin.
– Desculpe – Nicole sussurrou. Mesmo na escuridão do porão, Shaylin percebeu que o rosto de Nicole ficou vermelho. – Não sei por que eu fiz isso. Sinto muito.
Shaylin continuou olhando para ela, observando a beleza suave das suas cores e sentindo ainda o calor macio dos seus lábios.
– Não precisa se desculpar – então ela colocou os braços em volta da cintura fina de Nicole, encostou a cabeça no ombro dela e disse: – Você fica comigo e me abraça?
Nicole colocou o braço de volta nos ombros dela.
– Shaylin, querida, eu fico com você para sempre se você quiser.
20
Kalona
Dez minutos mais cedo
Kalona estava parado perto da entrada do porão esperando Aurox voltar e pensando que o garoto provavelmente ia demorar um pouco, já que Zoey tinha ido procurá-lo,
quando sentiu uma coceira quente e familiar sob a pele.
– Erebus – ele resmungou.
– Você disse algo?
Kalona olhou rapidamente para o corredor.
– Aphrodite, o que posso fazer por você? – ele não colocou a mão em punho sobre o coração nem se curvou para ela. Sim, a garota era uma Profetisa de Nyx, mas também
era a humana mais irritante que ele já havia conhecido. E Kalona já conhecera muitos humanos.
– Preciso falar com Shaylin. Ela está no porão, certo?
– Todos os novatos vermelhos estão no porão – ele respondeu.
– Menos os dois que você largou no meio do nada para morrerem.
– Você gostaria de fazer alguma consideração a respeito disso?
– Não, só estou afirmando o óbvio. Vou acordar Shaylin. Eu agradeceria se você pudesse nos dar um pouco de privacidade para conversar.
– Como quiser, Profetisa. O seu guerreiro está a uma distância em que pode ouvir os seus gritos, no caso de haver problemas lá embaixo?
– Não preciso de Darius para lidar com os novatos vermelhos. Eu tenho isto aqui – ela deu um tapinha na sua bolsa.
– Você acha que pode apartar uma briga com uma bolsa? – ele quase riu.
– Não, eu acho que posso apartar uma briga com isto aqui – Aphrodite abriu a sua bolsa de couro. Kalona espiou dentro dela e viu um pequeno cilindro preto.
– Você vai jogar esse recipiente de perfume em alguém?
– Ah, por favor, entre neste século. Não é perfume, é um spray de pimenta. Eu estou morando em uns túneis no centro da cidade, embaixo de um porão. Os distritos
Brady, Greenwood e outros lá perto estão passando por uma reforma adorável, mas vale a pena andar protegida e estar preparada para tudo.
– Então eu vou lhe dar a privacidade que deseja – ele se curvou para ela nessa hora. Aphrodite era tão irritante que ele quase se esquecia de como ela também podia
ser divertida.
Com a sua mão com unhas pintadas de rosa, Aphrodite fez um gesto para que ele fosse embora antes de entrar no porão.
Kalona pensou em chamá-la e contar que Zoey estava ali perto com Aurox, mas então ele pensou melhor. Realmente seria divertido ver o que aconteceria se Aphrodite
encontrasse Zoey nos braços de Aurox.
Kalona estava rindo quando saiu do ginásio, passando através do estábulo. Ele parou do lado de fora, recompôs-se e tentou descobrir por qual direção o bastardo do
seu irmão iria chegar. Não demorou muito. Receando o encontro, mas resignado por ser inevitável, Kalona se dirigiu ao Templo de Nyx.
Ele não tentou entrar. Na verdade, ele desviou os olhos quando passou pela grande porta de madeira e deu a volta pelo edifício de pedra até a parte de trás do templo.
Ele esperava que o seu irmão iria se manifestar, do seu jeito tipicamente espalhafatoso, onde quer que Kalona estivesse. E o prédio iria bloquear a sua luz o suficiente
para evitar que todos os professores corressem para lá.
Kalona não teve que esperar muito. A bola de luz do sol que se materializou acima do solo era, de fato, espalhafatosa, mas Kalona não cedeu ao impulso de encobrir
os olhos. Erebus saiu dos raios ofuscantes, assentindo e sorrindo ironicamente.
– Parabéns por atender rapidamente ao meu chamado, irmão – Erebus disse.
– Fico perplexo como você finge que eu quero alguma coisa com você. Quem veio até mim foi você. Como diriam no mundo moderno, vivo há séculos sem ligar para você
e sem nem pensar em você.
– Sem nem pensar em mim? Mesmo? Pois eu acho que, desde a sua Queda, os seus pensamentos se voltam com frequência para o Mundo do Além.
– Você não é Nyx, irmão. Eu também fico perplexo como você confunde o meu interesse pela Deusa com interesse por você.
Erebus sorriu.
– Pois eu posso acabar com a sua perplexidade facilmente. Nyx e eu somos inseparáveis. Os interesses dela são os meus, assim como os meus são os dela.
– Inseparáveis? Mesmo? – Kalona fez uma cena, fingindo que estava procurando alguém perto do seu irmão. – Será que a Deusa está se escondendo na sua bola de sol?
Ah, não. É claro que ela não estaria aí. Pelo que me lembro, a Deusa prefere o toque frio e suave da luz da lua em vez da luz bruta do sol.
– Nyx me enviou aqui!
Kalona sorriu devagar, satisfeito.
– Então seja bem-vindo, irmão, como o moleque de recados da Deusa.
Erebus desfraldou suas asas. Elas se abriram ao redor dele e brilharam como a luz do sol refletida em barras de ouro.
– Eu não vim como um moleque de recados, mas sim como um imortal, Consorte da Deusa da Noite, e eu trago um aviso dela!
– Impressionante – Kalona falou sarcasticamente. – Mas se você não parar de cintilar e de gritar, o seu aviso vai ser testemunhado por todo o centro de Tulsa.
Erebus fechou as asas contra as costas. A sua voz saiu sem aquele volume sobrenatural, mas a sua expressão não perdeu em nada a sua presunção de imortal.
– Você já capturou Neferet?
– Com certeza você me observa o bastante para já saber a resposta a essa pergunta.
– Então você ignorou o édito de Nyx.
– Eu não ignorei nada. Estive ocupado cumprindo os meus deveres como guerreiro Juramentado da Sacerdotisa desta Morada da Noite – Kalona afirmou.
– Você está fora de forma se o fato de executar três crianças pode distraí-lo tanto a ponto de ignorar a ordem de Nyx e de falhar ao perceber que a magia antiga
está se manifestando no mundo moderno.
Kalona se recusou a morder a isca de Erebus. Ele não fez nenhum comentário sobre Nyx e apenas disse calmamente:
– Sgiach lida com magia antiga há séculos.
– Sim, Kalona, mas Sgiach é uma Rainha ancestral que vem lidando com magia antiga por todos esses séculos na Ilha de Skye, um lugar dedicado a preservar a magia
antiga há muito tempo. Tulsa, em Oklahoma, não é a Ilha de Skye, e não há nenhuma Rainha vampira ancestral aqui com experiência em usar a magia antiga – Erebus falou
em um tom professoral, como se estivesse dando uma aula para algum idiota cabeça oca.
– Sei exatamente onde eu estou e quem está comigo. Os meus atos são corretos, ao contrário dos seus. Eu decapitei um vampiro que foi condenado por tentativa de assassinato
pela minha Grande Sacerdotisa. Ela não usou magia antiga. Ela simplesmente invocou a lei ancestral. E o vampiro que eu executei não era uma criança – Kalona acrescentou,
não gostando do tom de seu irmão, como sempre.
– O garoto mal tinha dezoito anos.
– Se você quer discutir a execução de um assassino confesso, então discuta com Thanatos, o Conselho da Escola, duas Profetisas de Nyx e Zoey Redbird.
– Mas nenhum deles levantou a espada que cortou a cabeça do vampiro, assim como nenhum deles levou dois novatos para a morte certa – Erebus rebateu.
– Eu sou guerreiro Juramentado de Thanatos. Se ela me dá alguma ordem, eu tenho que obedecer.
– É uma pena que você não tenha demonstrado esse tipo de lealdade cega para Nyx quando era guerreiro Juramentado dela – Erebus falou.
Kalona encontrou o olhar âmbar de seu irmão sem se abalar.
– Eu aprendi com os meus erros do passado. E você, aprendeu?
Erebus desviou o olhar.
– Dê logo o aviso que você veio dar e desapareça. Você me cansa – Kalona disse.
– Muito bem, você está avisado de que a magia antiga foi despertada quando leis ancestrais foram invocadas. Nyx adverte que vocês estão lidando com forças que podem
não ser capazes de controlar.
– Nyx não deveria dizer isso a Thanatos? Foi a Grande Sacerdotisa dela que começou a lidar com essas forças.
– Ainda é você quem pode ser o fiel da balança em uma batalha entre Luz e Trevas. A Deusa já viu isso acontecer antes perto de você. Os Raven Mockers foram feitos
com magia antiga.
Kalona sentiu uma terrível punhalada de culpa, mas disse:
– Os meus filhos foram feitos de estupro e ódio.
Erebus assentiu solenemente.
– Sim. Magia antiga.
– Nyx controla a magia antiga! – Kalona exclamou.
– Você se tornou tão iludido, tão arrogante, que acredita que pode lidar com o mesmo tipo de poder que a Deusa?
– Eu não tenho nenhuma ilusão! Minha mente nunca esteve tão clara desde que eu Caí – Kalona avançou sobre Erebus. – E a minha arrogância não é nada comparada à sua,
irmãozinho. Sem mim para dar equilíbrio, é você que acredita que é tão poderoso quanto Nyx.
– Eu estou falando justamente de equilíbrio, irmão. Os touros são magia antiga, e eles deveriam estar eternamente em combate – Erebus afirmou.
– Eu não tenho nada a ver com o touro branco e o touro preto.
– Você acredita mesmo nisso? Você esteve ao lado dela por tempo o bastante para saber que a magia antiga é tão traiçoeira quanto poderosa. Seja sábio! Pense bem!
Tome cuidado com os poderes que estão sendo despertados antes que seja tarde demais. Este é o aviso da Deusa!
Kalona franziu os olhos e se virou para outro lado quando a bola de luz do sol engolfou Erebus e desapareceu, deixando uma espécie de purpurina dourada irritante
que o imortal teve que limpar das suas próprias asas.
– Nyx! – Kalona falou para o céu. – Ele me chama de arrogante e então desaparece em uma explosão solar de brilho dourado. Eu não entendo como você continua a suportar
a presença vaidosa dele!
Uma risada familiar, que sempre fez Kalona se lembrar de uma lua cheia avermelhada, ecoou ao redor de Kalona. Ele fechou os olhos por causa da dor da ausência dela,
enquanto a esperança acelerava as batidas do seu coração.
– Você me observa. Eu sei que você me observa – Kalona sussurrou.
A risada esvaneceu. Kalona abriu os olhos. Sentindo-se como se estivesse carregando um grande peso, ele começou a caminhar. Ele precisava voltar para zelar pelos
novatos. Isso era uma coisa que ele podia fazer, e fazer bem.
– Nenhum outro novato vai conseguir fazer nada estúpido para depois ser condenado... Não enquanto eu zelar por eles – ele falou seus pensamentos em voz alta.
O que Kalona não disse e não gostou nem de admitir em silêncio para si mesmo foi que ele não conseguia tirar da cabeça os gritos de misericórdia dos dois novatos.
Decapitar o vampiro não tinha sido difícil. Dallas tentara assassinar uma vampira e havia sido condenado justamente. Eram os dois novatos que o assombravam. Eram
garotos que apenas fizeram uma escolha insensata e seguiram o líder errado, ele pensou.
– Compaixão.
A palavra sussurrada fez Kalona parar.
– Nyx?
– Compaixão.
A palavra foi repetida. Ela foi falada em um tom muito baixo para que Kalona tivesse certeza, mas o afeto, o amor infinito contido nela... Só podia ser Nyx. E então
Kalona percebeu onde ele havia parado. Ele estava diante da porta de madeira do Templo de Nyx.
A porta de madeira que havia se transformado em pedra sob o seu toque quando a sua Deusa negou que ele entrasse.
Devagar, como se estivesse atravessando os séculos de espera por ela, Kalona levantou a mão. Ele colocou a palma da mão contra a porta e esperou que ela se transformasse
em uma pedra inflexível.
A porta continuou sendo de madeira.
A mão de Kalona tremia quando tocou a maçaneta. Ele a girou e empurrou, e a porta de madeira se abriu, fazendo um som de suspiro de mulher.
Kalona entrou no saguão do Templo de Nyx. Ele ouviu água corrente, mas mal olhou para a fonte de ametistas reluzentes que ficava em um nicho na grossa parede de
pedra. Ele passou por baixo de um portal em arco e entrou no coração do templo da Deusa.
O aroma de baunilha e lavanda das velas preenchiam o ambiente com uma fragrância doce e inebriante. Elas estavam em candelabros de ferro suspensos do teto. Mais
velas aromáticas estavam em outros candelabros independentes em formato de árvores que ficavam perto das paredes. Candeeiros com o formato de uma graciosa mão de
mulher estavam acesos nos cantos do aposento. Uma chama ardia em uma reentrância no chão de pedra. Kalona quase não reparou em nada disso. O seu único foco estava
na mesa de madeira antiga no centro do templo. Em cima dela, havia uma primorosa estátua de mármore de Nyx. Kalona avançou de modo hesitante e se ajoelhou diante
da estátua. Ele levantou os olhos para a estátua. Ela parecia brilhar. Kalona percebeu que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Com uma voz abafada pelas lágrimas, ele falou para ela:
– Obrigado. Eu sei que não mereço me ajoelhar aos seus pés. Pode ser que eu não mereça nunca. Não depois do que eu fiz para nós dois. Mas obrigado por permitir a
minha entrada no seu templo – então Kalona abaixou a cabeça e ficou chorando, ajoelhado diante da sua Deusa, por um longo tempo.
Neferet
Neferet se encolheu toda, abraçando os filamentos de Trevas que ainda a cobriam, e então reviveu o final de sua jornada.
Cascia Hall era como os humanos chamavam a escola particular que havia sido construída no meio do centro de Tulsa, naquela terra que dizia tanto a Neferet. A escola
humana, apenas para meninos, é claro, havia sido recentemente fundada pelo ramo Agostiniano do Povo da Fé. No ano de 1927, ela não estava à venda. Mas esse fato
não preocupou Neferet. O Conselho Supremo não estava pronto para comprar outra escola nos Estados Unidos – pelo menos não na cidade de Tulsa, Oklahoma, que existia
em 1927.
Neferet sabia que o tempo estava a seu favor. Nos setenta e cinco anos que levaram para que ela manipulasse, intimidasse, conduzisse e influenciasse o Conselho Supremo
a fazer uma oferta para os monges Agostinianos que eles não pudessem recusar, além de indicá-la como a Grande Sacerdotisa da recém-adquirida Morada da Noite de Tulsa,
Neferet descobriu a sua verdadeira natureza.
Ela era a Tsi Sgili. Não, ela era mais do que uma simples história de fantasmas dos nativos americanos. Ela era uma poderosa Grande Sacerdotisa cujos dons eram muito
maiores do que pareciam. Neferet era a Rainha Tsi Sgili.
Não era de se estranhar que ela tivesse sido tão atraída para Oklahoma. Foi através do povo Cherokee que se fixara lá que Neferet descobriu um aspecto escondido
do seu dom intuitivo. Ela não só conseguia ler as mentes das pessoas, como também absorver a sua energia. Mas apenas no momento das suas mortes.
Ela aprendera isso com a velha mulher. Neferet tinha feito mais do que roubar os seus pensamentos enquanto ela morria. Ela havia absorvido o poder da anciã.
A morte se tornou uma droga viciante, e Neferet nunca conseguia ficar satisfeita.
Ela seguira os ecos na mente da idosa e começou a fazer perguntas sobre a Tsi Sgili.
Foi assim que ela aprendeu a própria história. Uma Tsi Sgili vivia afastada da sua tribo. Elas eram poderosas e tinham prazer com a morte. Elas se alimentavam da
morte. Elas podiam matar com as suas mentes. Isso era o ane li sgi que a velha mulher havia pensado logo antes de morrer: uma morte causada pela mente de um ser
poderoso.
O marido da velha Cherokee tinha inadvertidamente ensinado Neferet a usar melhor o seu dom. Ele foi menos corajoso do que a sua mulher. Pensando em se salvar, ele
acabou se abrindo para Neferet. Através das lembranças que ele compartilhou com ela por vontade própria, Neferet aprendeu muito mais sobre a Tsi Sgili. Ela se alimentou
das histórias tribais que ele tinha em sua memória e descobriu que era possível entrar em uma mente e fazer as batidas do coração da pessoa pararem enquanto ela
se alimentava dos pensamentos, da energia e do poder da vítima, até que ela estivesse completamente seca. Drenar a energia do corpo era muito mais satisfatório do
que simplesmente drenar o sangue. E muito mais efetivo.
Como Neferet tinha ganhado mais poder, também começou a sonhar mais com o imortal alado, Kalona. Ele fazia amor com Neferet enquanto ela dormia. Não da forma como
os seus amantes inadequados humanos ou vampiros haviam tentado. Kalona possuía o seu corpo e usava a dor como prazer, e o prazer como dor.
Por todo esse tempo os seus sussurros pintaram imagens de um futuro onde eles reinariam como deuses sobre a Terra e anunciariam uma nova era de iluminismo para os
vampiros. Onde ela era a sua Deusa e ele era o seu Consorte ardoroso, poderoso e sedutor.
– Mas primeiro você precisa me libertar – ele havia dito enquanto o seu delicioso fogo frio queimava o corpo dela. – Siga a canção até Tulsa, e então você vai completar
a profecia e encontrar um meio de me libertar!
Neferet o escutou. Ah, mas ela encontrou muito mais do que um meio de libertá-lo. Ela descobriu como libertar a si mesma!
Ela não tinha compreendido totalmente até tomar posse da sua Morada da Noite em Tulsa. Havia um poder naquela terra que ressoava dentro dela. Estava lá em 1927,
e continuou lá depois da virada do século vinte e um.
A terra vermelha a tinha atraído com o seu poder ancestral, mas foi a morte da sua primeira novata que de fato selou o seu destino.
É claro que Neferet já havia testemunhado a morte de muitos novatos antes de se tornar a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Frequentemente ela era chamada
para suavizar a passagem de um novato morrendo com o dom do seu toque. Neferet era respeitada pela sua habilidade de acalmar um novato que estava rejeitando a Transformação.
Nenhum vampiro nunca imaginou que ela tirava muito mais do que dava. Mas os novatos sabiam disso. Nos seus últimos momentos, enquanto Neferet os segurava em seus
braços, eles percebiam que ela se alimentava da sua energia. É claro que nessa hora eles estavam longe de serem capazes de dividir essa informação com qualquer um.
Então, quando a jovem quarta-formanda que havia adotado o nome de Crystal começou a tossir o seu sangue vital, no meio da primeira aula de Equitação de Lenobia na
nova Morada da Noite de Tulsa, Neferet foi chamada imediatamente – não apenas porque ela era a Grande Sacerdotisa, mas porque ela era amplamente conhecida por ser
capaz de suavizar a dor de quem estava morrendo.
– Afastem-se! Abram espaço! Lenobia, leve os novatos para o ginásio e peça para Dragon Lankford trazer guerreiros e uma maca para a garota – Neferet ordenou quando
entrou apressada no estábulo. Então ela voltou sua atenção para Crystal. A novata havia desabado no chão de areia e terra da arena e estava tendo convulsões, sangrando
pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.
Neferet não prestou atenção no sangue nem na lama. Ela colocou a novata em seus braços, confortando-a com seu toque mágico, enquanto começou a entrar na mente de
Crystal, absorvendo a sua energia vital minguante. Neferet estava preparada para a onda de poder que vinha com a absorção da força vital. Mas ela não estava preparada
para o dom puro e delicioso que veio junto com a morte da sua primeira novata.
Na sua toca, o corpo de Neferet estremeceu de prazer ao reviver aquele momento poderoso.
Crystal levantou os seus olhos ensanguentados para ela.
– Não! – ela tossiu, engasgou e conseguiu gritar: – Eu não estou pronta para morrer!
– É claro que está, minha querida. Chegou a sua hora. Eu estou aqui.
– Você não vai me deixar? – a garota suplicou, chorando.
– Você não vai me deixar – Neferet sussurrou quando entrou na mente de Crystal.
A força vital de Crystal inundou Neferet. Tão pura, tão forte, tão doce que era como se a novata não estivesse morrendo, mas sim se transformando em um ser de luz
e poder que agora viveria dentro de Neferet.
Neferet se curvou reverentemente sobre o corpo da garota moribunda, aceitando esse novo dom que recebeu junto com a Morada da Noite de Tulsa.
Os guerreiros pensaram que Neferet ficou arrasada com a morte da primeira novata na sua própria Morada da Noite, e que por isso ela havia se curvado sobre o corpo
de Crystal, chorando histericamente.
Eles não sabiam que as lágrimas de Neferet eram de alegria, e que ela estava chorando porque finalmente havia reconhecido o seu destino. Rainha Tsi Sgili era um
título modesto. Na verdade, ela deveria ser chamada de Deusa Tsi Sgili, pois havia se tornado imortal e um dia iria ocupar o seu lugar entre os deuses e ser venerada
como tal!
Mas o seu dom não acabava aí. Mesmo antes de Neferet cumprir a profecia Cherokee e libertar Kalona, os novatos da sua Morada da Noite começaram uma metamorfose junto
com ela.
O corpo de Neferet se contorceu. A sua respiração se acelerou enquanto ela prosseguia através dos reinos do tempo e das camadas do seu inconsciente.
Os novatos que morriam na sua Morada da Noite renasciam diferentes, ligados a ela por Trevas e sangue. Neferet acreditava que havia gerado um novo tipo de exército,
além de uma nova espécie de vampiros. Essas novas criaturas iriam protegê-la e servi-la quando ela e o seu Consorte governassem a nova era dos vampiros.
Então Zoey Redbird havia sido Marcada, e o que se seguiu foi um passo em falso atrás do outro, uma irritação depois da outra, uma derrota após a outra. Neferet odiava
aquela novata e os seus amigos rebeldes com uma paixão que obscurecia todas as suas outras paixões.
Zoey Redbird era a razão pela qual Neferet estava escondida em uma toca, vestida apenas de Trevas e sangue.
Uma deusa não deveria sofrer esse tipo de aborrecimento! Uma deusa não deveria ser impedida de cumprir o seu destino divino!
Como em resposta ao seu turbilhão de emoções, o céu fora da toca rugiu com trovões, e um raio atingiu a terra com uma força que reverberou pela pele de Neferet.
Neferet, a Rainha Tsi Sgili, abriu os seus olhos.
– Eu fui tão idiota! Eu sou uma imortal. Ninguém pode ofuscar a minha majestade a não ser que eu permita. E não vou mais permitir! Mundo, prepare-se para me venerar!
Raios e trovões aplaudiram Neferet e a chuva acariciou o seu corpo, enquanto ela se preparava para sair de seu esconderijo em direção ao futuro, renascida, pronta
para abraçar o seu destino.
21
Zoey
No começo, eu não sabia para onde estava indo. Eu só precisava sair dali. Eu me enfiei através da passagem escondida no muro e dei a volta pelo lado sul da escola
até chegar rapidamente na Utica Street. Olhei para a minha direita, pensando nas minhas opções. A Utica Square ficava a apenas uma quadra dali. Era domingo de manhã,
mas o Starbucks provavelmente estava aberto. Eu podia pedir um daqueles cappuccinos ou frappuccinos com milhões de calorias, sentar lá fora e tentar descobrir o
que havia acontecido com a minha vida.
Não. Eu não queria ver ninguém. Eu não queria falar com ninguém. Eu não queria ter que lidar com os olhares que as minhas tatuagens iriam provocar nas pessoas.
Eu não queria lidar com nada nem ninguém.
Um trovão ressoou ao longe, e eu levantei os olhos para o céu, que estava escurecendo.
– Vá em frente. Pode chover em cima de mim. O meu dia não pode piorar muito – eu falei comigo mesma quando atravessei a rua.
Sim, eu estava irritada.
Eu não conseguia acreditar no que Aphrodite e Shaylin tinham feito. Elas deveriam ser minhas amigas! Bem, pelo menos Aphrodite deveria ser minha amiga. Eu pensava
que Shaylin e eu estávamos ficando amigas. Quero dizer, a gente havia tido aquela conversa na cozinha dos túneis. Ela se abriu para mim em relação ao uso da Visão
Verdadeira. A gente inclusive falou sobre como o seu dom podia ser invasivo. Caramba, a gente tinha feito um trato! E esse trato não tinha nenhuma parte em que ela
me espionava e depois fofocava para Aphrodite como uma garotinha do ensino fundamental.
O meu rosto ficou quente só de pensar nela observando a cena entre mim e Aurox no refeitório. Que inferno, o meu corpo inteiro ficou quente! Não era de se espantar
que eu a tivesse derrubado no chão. Aphrodite ficou toda chocada com o que eu havia feito, mas foi Aphrodite quem armou toda aquela coisa de espionagem.
Será que Aphrodite era mesmo minha amiga? Ela definitivamente era uma bruxa do inferno quando eu a conheci. Será que ela tinha mudado, ou será que eu esqueci quem
ela realmente era e fiquei cega, sem enxergar o que eu não queria ver? Será que eu estava apenas acreditando no que eu queria acreditar em relação a ela?
Que inferno! Será que Aphrodite ainda continuava apenas atrás de poder e popularidade? Será que essa história de espionagem era só uma parte do plano dela para me
enfraquecer e depois tomar o meu lugar?
Houve um estrondo no céu, como que ecoando as minhas emoções.
O meu peito queimava quando atravessei outra rua e fiz uma pausa, percebendo que eu havia chegado perto de casas caprichosamente conservadas. Afe, eu havia andado
até o Woodward Park. Eu quase me virei e fui embora. Era domingo, quando as pessoas normalmente se aglomeravam lá para tirar fotos com flores, árvores e tal, mas,
quando eu olhei para o parque, parecia vazio. Obviamente, a tempestade que se aproximava havia mudado os planos de quem pretendia tirar fotos. Percebi que os narcisos
tinham começado a florescer. Eu sempre amava quando os narcisos colocavam as suas cabeças amarelas para fora do gramado. Vovó e eu costumávamos falar sobre como
era mágico quando os bulbos da primavera brotavam tão rápido e inesperadamente.
Definitivamente, hoje eu precisava de um pouco de magia da primavera. E seria no Woodward Park!
Sentindo-me aliviada por encontrar um destino, entrei no parque, andando entre os tufos de narcisos por um caminho sinuoso em direção à área ladeada pela Twenty-first
Street. Era no alto daquele cume que os arbustos de azaleia eram mais espessos. Eu gostava daquela parte íngreme com caminhos de pedra serpenteando entre os arbustos.
Eu podia encontrar um banco entre as azaleias depois de descer o cume e tentar entender todos os meus problemas. E daí se chovesse e eu ficasse encharcada? Pelo
menos isso iria manter as pessoas afastadas.
Andei pelo caminho pavimentado, fazendo curvas através de arbustos de azaleia da minha altura. Percebi que os botões de flores já haviam começado a se formar, mas
ainda não dava para saber de que cor elas seriam.
Aquela tempestade estúpida provavelmente iria matá-las e elas nunca iriam florescer.
Chutei uma pedra.
Aphrodite tinha mandado me espionar! Eu simplesmente não conseguia esquecer essa traição. Imaginei o que Stevie Rae diria quando eu contasse para ela. Então eu me
dei conta de que, se eu contasse isso a ela, também iria ter que contar sobre mim e Aurox no refeitório, e eu não queria de jeito nenhum contar isso para ela nem
para ninguém e...
Eu parei.
– Ah, que inferno! Não vou ter escolha sobre contar isso para as pessoas. É claro que Shaylin e Aphrodite não vão ficar de boca fechada.
Eu tinha chegado ao topo das escadas de pedra na parte alta do parque, que davam lá embaixo na área rochosa com espécies de grutas e no lago raso que envolvia o
lado oeste do parque.
Eu pensei em me atirar lá de cima, mas constatei que não era muito alto, então provavelmente a queda não iria me matar. E eu realmente não queria me matar. Agora,
se Aphrodite estivesse lá, eu podia pensar em atirá-la do cume!
Esse pensamento me satisfez de um modo perturbador.
Desci as escadas até nível da rua. Havia um banco de pedra, não muito longe de onde acabavam os degraus e começava o gramado. Um trovão ressoou novamente. Eu sentei
e franzi os olhos para o céu. Sim, definitivamente ia chover em mim. Logo. Suspirei e olhei em volta. De repente essa pequena parte do Woodward Park me lembrou da
Ilha de Skye, talvez por causa da chuva iminente. Um inesperado sentimento de saudade de casa me invadiu. Eu deveria voltar para lá. Eu era feliz lá. Ninguém me
espionava. Ninguém tentava me matar. E eu poderia perguntar para Sgiach que diabos está rolando com a minha pedra da vidência. Stark podia ir comigo. Eu não teria
que ver Aurox todo dia e desejar...
Não! Eu interrompi essa linha de pensamento. Eu não desejava mais nada. Eu já tinha feito a minha escolha. Era só essa droga com Aphrodite e Shaylin que estava bagunçando
a minha cabeça e o meu coração.
E eu não poderia fugir para a Escócia. Pelo menos não agora. Eu tinha que ficar aqui, encarar os meus amigos – e ex-amigos – e resolver a confusão que a Morada da
Noite tinha virado.
Deusa, isso era deprimente. E irritante. E exaustivo.
Um trovão rugiu, desta vez mais perto. Fugir ou me esconder não estava resolvendo nada. Eu devia voltar para a escola. Talvez eu tivesse sorte e Stark ainda estivesse
dormindo, apesar da minha explosão emocional, e eu poderia entrar de fininho na cama e ainda dormir um pouco antes de ter que encarar a tempestade de cocô que estaria
me esperando depois do pôr do sol.
Eu tinha me levantado e me virado para subir de volta pela escada de pedra quando vi os dois homens. Eles haviam acabado de sair de trás dos arbustos de azaleia
e estavam parados no topo das escadas. Eles pareciam esfarrapados, sujos. As roupas deles não serviam direito. Um deles estava segurando um saco de lixo pendurado
no ombro, fazendo-o parecer um Papai Noel anoréxico. Foi ele que me viu primeiro. Ele deu uma cotovelada no amigo e me indicou com o queixo, abrindo um sorriso cheio
de dentes podres. O amigo dele assentiu e eles começaram a descer as escadas.
Ah, que inferno.
Eu deveria ter corrido na direção da Twenty-first Street. Essa era a coisa mais inteligente e mais segura a fazer. Eu quase fiz isso, mas então me lembrei de quem
eu era e fiquei irritada. Eu não era uma garotinha fraca que as pessoas podiam assustar e humilhar. Eu tinha afinidade com todos os cinco elementos. Eu era uma Grande
Sacerdotisa em treinamento. Caramba, eu era quase uma vampira! Será que eu não era capaz de estar no parque em um domingo de manhã sem ser incomodada por ninguém?
Em vez de sair correndo, eu sentei no banco de novo. Talvez ele fossem apenas passar por mim, dizer “bom dia” e só. Talvez.
– Ei, garota, você, ahn, tem algum trocado aí? – o primeiro cara perguntou quando eles terminaram de descer as escadas.
– Sim, a gente podia usar o dinheiro para comer – o segundo cara disse.
Eu estava virada para o outro lado, esperando que eles fossem embora. Então eu empinei o queixo e olhei direto para eles. Eles arregalaram os olhos quando viram
minhas tatuagens.
– Sério? Em que planeta vocês acham que é normal dois homens pedirem dinheiro para uma garota que está sozinha em um parque deserto? – enquanto eu falava, senti
minha raiva aumentar de novo.
– Ei, qual é a sua? – o cara com o saco de lixo respondeu. – Você é uma vampira. Não é a gente que pode assustar você.
Eu sabia que eles pensavam que eu era uma vampira completa. Eu sabia que isso os deixava com medo de mim.
Fiquei feliz por isso.
– Então, vocês costumam assustar garotas humanas para que elas deem dinheiro a vocês?
Que idiotas!
O segundo cara deu de ombros.
– Se uma garota não quer ser assustada por alguém, não deve ficar sozinha aqui.
– Ah, então é culpa da garota? – eu fiz a pergunta hipoteticamente, mas o cara do saco de lixo não entendeu.
– Sim, a culpa é da garota!
– Mas não vamos assustar ninguém se a pessoa nos der dinheiro.
– Mas nós não aceitamos cartão de crédito – o cara malvado do saco de lixo riu e deu um tapinha no braço do seu amigo.
– Vocês são uns otários. Quer tal arrumar um emprego em vez de mexer com garotinhas?
– Mexer com garotinhas paga melhor – o cara do saco de lixo respondeu.
– Eu estava sentada aqui, pensando nos meus próprios assuntos. Vocês têm que se lembrar disso. Foram vocês que provocaram isso – eu me levantei. O meu corpo inteiro
estava quente. Eu estava realmente irritada. – Sabem de uma coisa? Vocês deveriam ter escolhido outra garotinha para perturbar hoje.
– Ei, a gente não estava perturbando você. A gente só estava passando – o outro cara disse. Ele pegou o braço do seu amigo e começou a puxá-lo para sair dali.
– Relaxe, gatinha. Não aconteceu nada de mais – o cara mau do saco de lixo disse, dando um sorriso sarcástico com seus dentes escuros e quebrados.
Então eles pensavam que iriam sair de fininho e encontrar uma garota normal de verdade para assustar?
Eu sentia como se o meu coração fosse explodir para fora do meu peito.
– Não, hoje vocês não vão! – eu atirei minha raiva neles. Ela era uma bola incandescente de luz azul. Ela se chocou contra os dois homens, levantando-os do chão
e arremessando-os contra a parede de pedra do cume.
Eu estava ofegante e me sentindo bem com o que tinha acabado de fazer. Eles iam pensar duas vezes antes de mexer com outra garota! Idiotas!
Um trovão retumbou acima de mim e um raio atingiu o centro do parque, fazendo os pelos do meu braço se arrepiarem. Foi então que eu percebi que estava segurando
a pedra da vidência.
Eu pisquei surpresa e balancei a cabeça. Espere aí, o que tinha acabado de acontecer?
Eu olhei para os dois homens. Eles ainda estavam lá, deitados na sombra do cume rochoso. Eles não estavam gritando comigo nem se recompondo e levantando, nem mesmo
saindo correndo porque eu os tinha deixado apavorados.
Eles não estavam se mexendo.
Caramba! Eu tinha usado magia antiga para atacar aqueles homens. Tinha sido a mesma coisa quando derrubei Shaylin. Eu havia feito isso automaticamente, depois que
a minha raiva queimando se tornou insuportável. Mas aquela queimação não era a minha raiva, era a pedra da vidência esquentando, penetrando o meu corpo, alimentando-se
das minhas emoções e então atacando.
Soltei a pedra e olhei para a palma da minha mão. Uma queimadura com a forma de um círculo perfeito tinha ficado ali.
Confusa, levantei os olhos e vi acima de mim uma fumaça que vinha do meio do parque. O ar estava com cheiro de eletricidade e fogo, e eu me dei conta de que um raio
devia ter atingido uma árvore, ou até mesmo um dos edifícios do parque. O Woodward Park estava em chamas.
Os bombeiros chegariam logo. Assim como a polícia.
As minhas pernas estavam bambas e a minha cabeça doía quando eu me aproximei dos homens, olhando para as duas formas caídas na base do cume. Um deles gemeu. O braço
do outro se contraiu.
O céu desabou em uma chuva forte, de modo que eu não podia dizer se a umidade era água, sangue ou minhas lágrimas.
Não pensei em nada. Apenas saí correndo.
Não precisei invocar névoa e sombras para me encobrir. A tempestade fez isso por mim. Ninguém reparou em uma garota sozinha, correndo no meio da chuva, fugindo do
parque em chamas, principalmente porque vários carros de emergência e a polícia estavam indo para a direção oposta.
Corri em volta do muro da escola e entrei pela passagem escondida. E continuei correndo até chegar dentro do estábulo, ofegante e trêmula. Fui até a selaria e peguei
uma toalha limpa. Eu me enrolei na toalha e andei pela longa fileira de baias até encontrar Persephone. Abri a porta e entrei na baia quente e escura. Persephone
estava dormindo do jeito que os cavalos dormem: em pé, com uma das patas traseira em repouso, a cabeça baixa e os olhos semicerrados. Ela mal se moveu quando eu
coloquei meus braços ao redor do seu pescoço e chorei na sua crina macia e espessa.
O que estava acontecendo comigo?
Aqueles caras no parque tinham sido uns idiotas, mas eles não conseguiriam me machucar. Sim, eles atacavam garotas, assustando-as para que elas lhes dessem dinheiro,
mas eles não poderiam me machucar. Eu podia ter ido embora e feito uma ligação anônima para a polícia, dando uma descrição deles e dizendo aos policiais que eles
estavam vagando pelo parque ameaçando as garotas. Os policiais iriam afugentá-los.
Em vez disso, eu explodi em cima deles.
Eu nem pensei. Eu não fiz aquilo de propósito. Tinha simplesmente acontecido. A minha raiva havia literalmente explodido neles através da pedra da vidência.
O que Aphrodite estava tentando me dizer mesmo? Alguma coisa sobre a sua visão, magia antiga e eu perdendo o controle sobre a minha raiva. Eu não a havia escutado.
Eu a interrompi e acreditei que ela tinha me traído. E deixei que a minha raiva me controlasse.
– Ah, Deusa, isso foi errado... tão errado da minha parte – eu chorei.
Então, entre os meus soluços e o barulho da tempestade que turvava o céu, eu escutei uma sirene. Não era um caminhão dos bombeiros. Não era uma ambulância. Era um
carro de polícia. E não estava passando rápido pela escola em direção ao Woodward Park. Aquela sirene estava ficando cada vez mais próxima. O carro devia ter entrado
pelo nosso portão e ter estacionado na escola.
Como se estivesse sonhando, eu me desvencilhei do pescoço reconfortante de Persephone. Larguei a toalha. Saí do estábulo e caminhei até a calçada que levava ao saguão
de entrada da escola.
A chuva estava me molhando, mas eu não prestei a menor atenção nisso.
– Z.! Aí está você! Que merda, você está ficando ensopada – Stark apareceu correndo atrás de mim, segurando uma grande capa de chuva em cima da sua cabeça.
– Você não deveria estar aqui fora – eu disse sem emoção. – O sol já se levantou. Você vai se queimar.
Ele me deu um olhar estranho.
– Eu estou cansado e não é muito confortável estar aqui, mas as nuvens estão cobrindo o sol o suficiente para que eu não me queime. Bem, pelo menos por um tempo.
Z., entre embaixo da minha capa e vamos voltar para o nosso quarto. Sei que tem algo errado com você, mas não sei o que é.
Eu balancei a cabeça.
– Não. Eu tenho que ir até eles – continuei andando na direção da frente da escola. Havia dois carros de polícia, com as luzes ainda piscando, estacionados lá.
– Eles quem? – Stark perguntou, tentando segurar a capa sobre a cabeça dele e a minha.
– Stark, volte para a cama. Você não pode me ajudar nisso.
– Zoey, do que você está falando? O que está rolando?
Coloquei a minha mão na porta da frente.
– Volte – eu repeti. – Você não pode mais me salvar.
Ele pareceu assustado. Muito assustado.
Eu não me permiti sentir nada. Dei as costas a ele e abri a porta.
Thanatos estava lá. Darius também. Assim como Aphrodite. Por um instante, fiquei surpresa ao vê-los, então eu me dei conta de que Aphrodite devia ter ido falar com
Thanatos depois que eu saí andando. Essa era a coisa certa para ela fazer. Eu teria feito isso se estivesse no lugar dela. Se eu estivesse pensando como eu mesma,
como a Zoey normal.
O detetive Marx estava lá com dois policiais de uniforme.
– Z., você já acabou de fazer a ronda pelo perímetro da escola com Aurox? – Aphrodite falou rapidamente, andando na minha direção. – Eu estava dizendo para Thanatos
que estava preocupada com você lá fora nessa tempestade. Há até alertas de tornado na região de Tulsa.
– Não faça isso – eu disse. – Não quero que você minta por mim nunca mais – olhei para Darius. – Não quero que nenhum de vocês minta por mim nunca mais – então encontrei
o olhar do detetive Marx. – Por que vocês estão aqui?
– Dois homens acabaram de ser assassinados no Woodward Park. Alguém com poderes sobrenaturais os matou. Com um poder que nenhum humano tem. Foi por isso que eu e
os policiais viemos direto para cá – o rosto dele estava com uma aparência severa. A voz dele não tinha nenhuma emoção.
– E eu estava lembrando ao detetive que a nossa escola está em confinamento. Nenhum novato ou vampiro saiu do campus desde a noite em que o prefeito foi assassinado
– Thanatos afirmou.
– Eu saí do campus. Eu fui até o Woodward Park. Eu atirei aqueles dois caras contra o paredão de pedra na base do cume. Eu os matei – a minha voz soou tão morta
quanto aqueles homens, tão morta quanto eu me sentia.
– Zoey! Por que diabos você diria uma coisa dessas? – Stark segurou nos meus ombros e me sacudiu. – Saia dessa!
Eu o encarei e endureci o meu coração, congelando os meus sentimentos.
– Você precisa ficar aqui. Não quero vê-lo de novo. Não quero ver mais ninguém. Eu fiz isso. Eu mereço isso – eu me soltei dele e me afastei. Enquanto eu ia em direção
ao detetive Marx, coloquei a mão na minha pedra da vidência e a puxei, arrebentando a corrente de prata em que ela estava pendurada. Eu a entreguei para Aphrodite.
– Não deixe que ninguém, exceto você ou Sgiach, toque essa coisa. Você está certa. Isso despertou, e é do mal – então eu encarei o detetive Marx. – Estou pronta
para ir com você.
Ele desviou os olhos de mim e se voltou para Thanatos.
– Eu vou aguardar você entrar em contato com o Conselho Supremo para revogar a sua responsabilidade legal por esta novata, para que eu possa levá-la sob custódia.
– Não – eu falei. – Antes disso acontecer, eu rompi com o Conselho Supremo. Eu não reconheço a autoridade do Conselho Supremo sobre mim. Eu não reconheço a autoridade
de Thanatos sobre mim. Trate-me da mesma forma com que trataria qualquer um que confessou ser um assassino.
Ele suspirou profundamente e então pegou as algemas no seu bolso de trás.
– Zoey Redbird, você está presa pelo assassinato de Richard Williams e David Brown – ele fechou as algemas frias nos meus pulsos. – Você tem o direito de permanecer
em silêncio. Se renunciar a esse direito, tudo o que disser pode e vai ser usado contra você no tribunal. Você tem o direito de ter um advogado presente ao seu interrogatório.
Se não tiver condições de contratar um advogado, um defensor público vai ser designado para atendê-la. Você entendeu os seus direitos?
– Sim. Eu não preciso de um advogado. Eu confesso que matei aqueles dois homens. Eu mereço ir para a cadeia – eu disse, enquanto as palavras “eu mereço... eu mereço...”
ecoavam pela minha mente.
22
Neferet
Quando ela finalmente estava pronta para emergir da toca, a chuva banhou Neferet, limpando-a do sangue e da terra que cobriam o seu corpo. Aquela área estava em
um completo caos. Apesar da chuva, o fogo estava consumindo o parque acima dela.
Neferet pensou que essa era uma saudação encantadora.
Ela se alimentou da morte e da destruição ao seu redor e usou essa energia para se encobrir.
O seu cabelo ruivo e liso contra o seu corpo parecia um manto vivo. Os filamentos de Trevas fiéis a Neferet, saciados e pulsando de poder, levantaram-na. Como se
tivesse ordenado a uma nuvem de tempestade que a obedecesse, Neferet saiu flutuando do parque dentro de um véu de raios, trovões, névoa e loucura.
Ela atirou a cabeça para trás, adorando a carícia que a chuva fazia ao escorrer pela sua pele nua, limpando-a. Ela ergueu os braços, e gavinhas de Trevas se enrolaram
neles. Ela riu ao sentir o seu toque frio e perverso.
– Vamos para casa. Nós temos tanto a fazer! – a tempestade que era Neferet passou por sobre a cidade, na direção do centro de Tulsa e da sua cobertura no Mayo. –
Ah, mas não tão rápido – ela ronronou para as Trevas que a embalavam. – Nós não vamos jantar? Descobri que estou morrendo de fome!
Os filamentos de Trevas tremeram de excitação, impacientemente aguardando as suas ordens.
Neferet vasculhou a sua própria mente. Buscando... buscando... pervertendo o dom que ela havia recebido tantas décadas atrás.
Ela seguiu a Fifteenth Street no rumo oeste, ainda buscando. Foi na Boston Avenue que ela sentiu uma atração para o norte.
– Para o norte! Em direção àquelas almas deliciosas que fingem ser tão, tão boas! – Neferet estremeceu de prazer. – Todos reunidos tão convenientemente para mim.
É como se eles já soubessem me venerar – ela fez um gesto impetuoso indicando um ponto à sua direita. – Levem-me para lá!
Quando chegou à catedral, Neferet ordenou que os filamentos fizessem uma pausa, permitindo que ela absorvesse a perfeição da sua escolha. A construção era realmente
magnífica. Ela resplandecia na chuva. As pontas da torre principal pareciam dentes. As pontas das torres mais baixas pareciam mãos levantadas, com garras afiadas
e uma superfície de metal lisa e molhada, pronta para ser destruída.
– Soltem-me! Deixem que eu seja vista!
A nuvem de mágica se dissipou. Neferet pousou silenciosamente na calçada.
– Venham comigo, meus queridos! – ela falou para os seus filamentos. – O nosso jejum acabou. Vamos nos fartar como eu mereço!
Neferet subiu os vários degraus de calcário enquanto as Trevas, como a cauda do manto de coroação de uma rainha, seguiam atrás dela. Neferet levantou os olhos. Estátuas
projetando-se da parede externa eram deuses dourados montados em cavalos de guerra molhados pela chuva. Eles pareciam lhe dar as boas-vindas.
Abaixo deles, esculpidos em cima das três portas de entrada, havia homens se curvando.
– Para mim – ela falou para as estátuas silenciosas. – Vocês se curvam para mim.
Olhando para cima, Neferet leu as palavras escritas abaixo de cada um dos três grupos de estátuas de devotos: o fruto do espírito é o amor, o júbilo; paz, resignação,
gentileza, bondade; sinceridade, humildade, autocontrole.
Neferet deu uma gargalhada.
– Isso vai ser mais fácil do que eu imaginei.
Nua, Neferet entrou na igreja, escolhendo a porta embaixo da palavra resignação16. Do lado de dentro, as paredes estavam pintadas em um tom rosa claro, que para
Neferet lembrava sangue diluído em uma chuva de lágrimas. Ela pensou que essa era uma cor perfeita. Virando à esquerda, ela seguiu por um corredor curvo até a entrada
principal do santuário. As portas estavam fechadas. Neferet sorriu carinhosamente para os seus filamentos de Trevas.
– Sim, por favor, abram as portas.
Os filamentos a obedeceram.
Neferet adentrou no amplo salão oval. Um hino estava em seus acordes finais e, enquanto eles prolongavam o améééém final, Neferet aproveitou a oportunidade para
apreciar o cenário antes de ser notada. Era realmente um santuário adorável. Com assentos almofadados violeta claro e vitrais art déco estilizados em cores avermelhadas
e em tons de lilás, ela pensou que o local parecia mais um daqueles teatros decorados que proliferaram tanto nos Estados Unidos na virada do último século do que
uma igreja. Suas fileiras circulares de assentos afunilando-se até um palco central haviam sido criadas obviamente mais para o drama do que para a adoração.
Neferet sorriu, gostando da ironia.
– Psiu! – um sussurro veio das sombras nos fundos do aposento, enquanto o pastor começava a liderar os fiéis em uma oração repetitiva e entediante. – Com licença.
Você precisa de ajuda? – uma mulher gorda e de meia-idade se aproximou de Neferet. Ela estava tão hipnotizada pelo corpo nu de Neferet que nem percebeu as suas tatuagens.
Neferet se virou para ela.
– Sim, eu preciso – Neferet abriu os braços, como se quisesse que a mulher a abraçasse.
Confusa, a mulher deu alguns passos, aproximando-se dela. Neferet atacou com uma velocidade ofuscante, rasgando o pescoço dela com suas unhas feito garras e segurando
a mulher quando ela caiu para a frente. Neferet então a abraçou, mas o beijo que ela deu na mulher foi pressionar os lábios na ferida aberta e ensanguentada no seu
pescoço. Neferet drenou o seu corpo enquanto se alimentava da sua energia.
Um dos fiéis que estava na parte de trás da igreja gritou.
Neferet levantou os olhos quando as pessoas se viraram na sua direção. Ela soltou a mulher, gostando do barulho surdo que o corpo dela fez ao cair no chão.
Empinando o queixo, Neferet jogou o cabelo para trás e foi para a frente do santuário a passos largos.
– Oh, meus Deus, é uma vampira!
– Ela está nua!
– Ela acabou de matar a Sra. Peterson!
As pessoas começaram a gritar. Algumas até começaram a sair de seus bancos.
Neferet levantou os braços.
– Fechem as portas! E revelem-se para eles!
As sombras ao redor de Neferet ondularam quando as gavinhas grossas feito cobras assumiram formas que os humanos podiam ver. A congregação fez uma pausa, olhando
em choque os filamentos de Trevas deslizarem para cada uma das portas e fechando-as como uma teia pelo lado de dentro.
– O que você quer? – um homem de cabelos brancos vestindo um hábito negro enfeitado com veludo escarlate desceu do púlpito e caminhou decidido em direção a ela.
– Eu sou Neferet – ela disse cordialmente. – E quem é você?
– Eu sou o Dr. Andrew Mullins, pastor da Boston Avenue Church. O que significa esta profanação?
– Profanação? – Neferet sorriu. – Ah, eu mal comecei – ela apontou os seus dedos ensanguentados para o corpo da mulher. – Isso ali não pode nem ser considerado um
aperitivo.
– Pelo poder a mim concedido pelo nosso Senhor e Salvador, eu exijo que você vá embora deste local sagrado e não machuque mais ninguém!
– Pastor Mullins, apesar de não parecer, eu sou muito mais velha do que você, então deixe-me compartilhar com você algo que aprendi em meus muitos anos de vida:
o poder real sempre supera o poder concedido a alguém. Então, eu realmente acredito que vou usar o meu poder real e não vou embora.
– Muito bem. Se você não vai embora, nós vamos! – o pastor disse. Como se estivesse arrebanhando galinhas ao seu redor, o homem gesticulou para que as pessoas fossem
até ele, enquanto ele retrocedia, afastando-se de Neferet.
– Sinto muito, mas não posso permitir que vocês vão embora. Nenhum de vocês – Neferet apontou para o pastor. – Tragam-no para mim!
Um filamento grosso como um braço se desvencilhou do tornozelo de Neferet e foi rapidamente na direção do o pastor. Quando o alcançou, a gavinha se enrolou na cintura
dele feito um chicote, ferindo-o. As Trevas arrastaram o pastor aos berros até Neferet.
– Ah, acabem com esse barulho ridículo! – Neferet fez um gesto e uma gavinha menor envolveu o rosto do pastor, cobrindo a sua boca, amordaçando-o. – Melhor assim,
não? – ela olhou com raiva para a congregação em pânico. – Parem de gritar, a menos que vocês queiram ser amordaçados também!
As pessoas ficaram em silêncio, exceto por soluços abafados.
Neferet se aproximou do pastor.
– Eu gostei do seu hábito. Gosto muito da cor vermelha. Tire-o!
O homem obedeceu com mãos trêmulas, deixando o hábito cair aos seus pés.
Inclinando a cabeça, Neferet o examinou. Ele estava usando por baixo uma camisa branca e uma calça informal.
– Você estava tão grandioso com o seu hábito. Agora você parece um rato pelado – Neferet entrou na mente dele. – Aaaah, não é de se estranhar que você não esteja
olhando para o meu corpo. A castidade é tão entediante, não é? Deixe-me livrá-lo desse sofrimento – ela fez um corte no seu pescoço. Ele arregalou os olhos quando
ela disse para os dois filamentos: – Sim, vocês podem ficar com esse aí.
As Trevas perfuraram a boca e a cintura do pastor, alimentando-se fartamente, enquanto ele se contorcia em agonia.
– Neferet! Por que você está fazendo isso?
A atenção de Neferet se desviou do pastor moribundo e se voltou para um homem parado na frente do santuário. Reconhecendo-o, ela sorriu.
– Vereador Meyers! Que bom revê-lo – ela falou.
– O-olá, Neferet – ele gaguejou, segurando firme na mão de uma mulher bem-vestida ao seu lado. – Eu estava lá na sua coletiva de imprensa. Você... você disse que
era uma aliada dos humanos e contra a violência.
– Eu menti – o sorriso de Neferet se ampliou ao ver a expressão horrorizada do vereador. A mulher ao lado dele soluçou, com a mão sobre a boca para tentar conter
os seus gritos. – Você é a Sra. Meyers?
Tremendo e chorando, a mulher assentiu.
– Você está vestida com muito bom gosto. É Armani?
Novamente, a mulher em prantos concordou.
– E o seu tamanho deve ser trinta e seis, certo?
– Si-im! Pegue minhas roupas! Mas nos deixe ir embora, por favor – ela implorou.
– Ah, como você pediu educadamente! Tire o seu vestido e traga-o para mim, e eu posso pensar no seu pedido.
– Neferet, por favor, não machuque... – o marido dela começou.
Neferet entrou na mente dele e ordenou que o seu coração parasse de bater. O vereador Meyers ofegou e desabou no chão.
A sua mulher berrou.
Neferet suspirou.
– Sra. Meyers, eu acho tão desanimador que hoje em dia ninguém mais parece ser capaz de obedecer a ordens simples. Você não acha?
– Você pretende matar todos nós?
Neferet desviou o olhar da histérica Sra. Meyers e se voltou para uma mulher de meia-idade atraente que havia entrado no corredor central. Ela empinou o queixo e
encarou Neferet, sem mostrar nenhum sinal aparente de medo.
Neferet ficou intrigada.
– E quem é você?
– Karen Keith, outra representante de Tulsa. Eu também estava lá no dia em que você deu a sua coletiva de imprensa e prometeu se aliar à nossa cidade.
– Aaaaah, outra política. Que delícia!
– Você não respondeu a minha pergunta. Você vai matar todos nós?
– Perdoe-me, Karen. Posso chamá-la de Karen?
– Prefiro que não.
Neferet ergueu a sobrancelha, surpresa.
– Você tem uma energia adorável, Sra. Keith. Você vai ser o meu prato principal.
Gavinhas de Trevas começaram a deslizar na direção dela.
Karen Keith não se retraiu quando elas se enrolaram ao seu redor. Ela encontrou o olhar de Neferet e afirmou:
– Depois disso, todo mundo vai saber o monstro que você é.
– Não, Sra. Keith, todo mundo vai saber a deusa que eu sou.
Karen Keith morreu sem gritar, mas as pessoas em volta dela berraram e começaram a se lançar contra as portas fechadas em pânico.
– Bem, acho que é esperar demais ter uma conversa durante o jantar – Neferet disse. Ela levantou os braços. – Matem todos, mas cuidado com o vestido Armani!
Neferet e os seus servos das Trevas atacaram a congregação de fiéis. Eles se alimentaram sem parar, fartando-se de sangue e energia roubada, até que o santuário
virou um cemitério.
Neferet se banhou nas bacias de água benta e usou o hábito com detalhes escarlate do pastor para se secar. Então, vestida de Armani e pulsando com um poder glorioso,
ela saiu da Boston Avenue Church.
Tinha parado de chover. O céu estava novamente azul claro. O ar cheirava a primavera. Neferet limpou uma última gota de sangue no canto dos seus lábios carnudos.
Sorrindo, radiante, Neferet apontou para o Mayo.
– Levem-me para casa. Estou com tanta saudade da minha cobertura...
Pulsando e completamente saciados, os seus filamentos a levantaram gentilmente. Envolta em Trevas, Neferet flutuou, invisível, através do centro de Tulsa, enquanto
a frase “eu mereço... eu mereço...” ecoava na sua mente.
A estátua dourada de calcário no meio da entrada da igreja estremeceu, alterou-se e, em meio a uma rajada de vento fétida, o touro branco se materializou. Quando
ele emergiu do revestimento da igreja, os seus cascos faiscaram, fazendo o chão tremer. Ele bufou, olhando para a direção em que Neferet havia desaparecido.
– Agora, minha cara impiedosa, isso me surpreendeu...
1 Personagem de O Mágico de Oz. (N.T.)
2 RED Valentino é a marca jovem da grife Valentino. RED é uma sigla para Romantic Eccentric Dress (roupas românticas e excêntricas, em tradução livre). (N.T.)
3 Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)
4 Broken Arrow (flecha quebrada, em inglês) é uma cidade da região metropolitana de Tulsa. (N.T.)
5 Éon é um período de tempo que corresponde a um bilhão de anos. (N.T.)
6 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)
7 Bosque da torre. (N.T.)
8 Merry meet, merry part and merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
9 Aphrodite se refere ao filme Gata em Teto de Zinco Quente (1958), estrelado por Elizabeth Taylor e baseado na peça homônima de Tennessee Williams. (N.T.)
10 Trocadilho com o jogo Angry Birds. (N.T.)
11 Marca do copo vermelho de plástico tradicional nas festas de adolescentes norte-americanos. (N.T.)
12 Ato falho. Por exemplo, quando uma pessoa diz algo que não deveria por causa de um desejo do seu inconsciente. (N.T.)
13 Marca de set-up box, dispositivo que permite assistir na televisão a vídeos da internet por streaming, similar ao Apple TV. (N.T.)
14 No Paganismo, os familiares são animais associados a bruxas ou bruxos. (N.T.)
15 Erva-doce americana, da espécie Hierochloe odorata. (N.T.)
16 Em inglês, long-suffering, cuja tradução literal seria “sofrimento longo”, mas que significa resignação, paciência ou a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar. (N.T.)
P. C. Cast e Kristin Cast
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