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RIOS DE PRATA
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LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  LIVRO 3

COMEÇAR DE NOVO

Em minhas viagens pela superfície, certa vez conheci um homem que usava suas crenças religiosas como uma insígnia de honra nas mangas da túnica.
- Sou um homem de Gond! - disse-me ele, com orgulho, quando nos encontramos sentados lado a lado ao bar de uma taverna; eu bebericava meu vinho e ele, receio,
passava um pouco da conta com sua bebida bem mais forte.
Ele continuou a explicar a premissa de sua religião - sua própria razão de ser - de que todas as coisas se baseavam na ciência, na mecânica e na descoberta.
Ele até mesmo perguntou se poderia ficar com um pedaço da minha pele, para que pudesse estudá-la e descobrir por que a pele dos elfos drow é negra.
- Que elemento faltante - perguntava-se ele - torna sua raça diferente dos seus primos da superfície?
Acho que o homem de Gond acreditava sinceramente em sua alegação de que, caso pudesse simplesmente encontrar os vários elementos que constituíam a pele dos
drow, seria capaz de produzir uma alteração na pigmentação para fazer com que os elfos negros se tornassem mais semelhantes aos seus parentes da superfície. E, dada
sua devoção quase fanática, pareceu-me como se ele sentisse que conseguiria produzir uma alteração não apenas na aparência física.
Porque, em sua visão de mundo, todas as coisas poderiam ser explicadas e corrigidas.
Como eu poderia sequer começar a esclarecê-lo quanto à complexidade da questão? Como poderia mostrar a ele que as divergências entre os drow e os elfos da
superfície quanto à própria visão de mundo eram resultado de séculos de afastamento, ao longo dos quais estradas imensamente díspares foram percorridas?
Para um homem de Gond fanático, tudo pode ser desmontado, desarmado e restaurado. Até mesmo a magia talvez não passe de uma maneira de transmitir energias
universais - e isso também poderia ser replicado um dia. Meu companheiro homem de Gond me prometeu que ele e seus colegas sacerdotes e inventores um dia replicariam
todos os encantos do repertório de qualquer mago, usando elementos naturais nas combinações apropriadas.
Mas não se mencionou a disciplina que qualquer mago precisa conquistar ao aperfeiçoar sua arte. Não se mencionou o fato de que a poderosa magia dos magos
não é conferida a qualquer um, e sim conquistada, dia a dia, ano a ano e década a década. E um projeto para a vida toda, com um aumento gradual em poder, tanto místico
quanto secular.
Assim é com o guerreiro. O homem de Gond falou de certa arma chamada arcabuz, um lançador tubular de projéteis com dezenas de vezes o poder de fogo da mais
poderosa besta.
Uma arma assim aterroriza o coração do verdadeiro guerreiro, e não porque ele tema ser vitimado por ela ou porque tema que um dia ela venha a substituí-lo.
Armas assim são uma ofensa porque o verdadeiro guerreiro entende que, enquanto se está aprendendo a usar uma espada, deve-se também aprender por que e quando usar
uma espada. Conferir o poder de um mestre-de-armas a qualquer um, sem esforço, sem treinamento e prova de que as lições foram aprendidas, é negar a responsabilidade
que acompanha o poder.
É claro, há magos e guerreiros que aperfeiçoam sua arte sem aprender o nível de disciplina emocional concomitante, e sem dúvida há os que adquirem grande
perícia em uma ou outra profissão para o detrimento de todo o mundo - Artemis Entreri parece um exemplo perfeito -, mas esses indivíduos são raros - ainda bem -
e em grande parte porque sua carência emocional se revela muito cedo em suas carreiras, e isso geralmente ocasiona uma derrocada razoavelmente abrupta. Mas se o
homem de Gond conseguir o que quer, se sua visão distorcida de paraíso vier a se concretizar, então todos os anos de treinamento significarão muito pouco. Qualquer
idiota poderia pegar um arcabuz ou alguma outra arma poderosa e destruir sumariamente um guerreiro habilidoso. Ou qualquer criança poderia utilizar uma máquina mágica
do homem de Gond e replicar uma bola de fogo, talvez, e incendiar metade de uma cidade.
Quando apontei alguns de meus temores ao homem de Gond, ele pareceu chocado, não diante das possibilidades devastadoras, e sim diante da minha - como ele
assim o colocou - arrogância.
- As invenções dos Sacerdotes de Gond tornarão todos iguais! - ele declarou. - Nós promoveremos a ascensão do camponês humilde.
Dificilmente. O homem de Gond e seus camaradas só fariam garantir a morte e a destruição num nível até então desconhecido em todos os Reinos.
Nada mais havia a se dizer, pois eu sabia que o homem jamais daria ouvido às minhas palavras. Ele me achou arrogante - ou, já que estamos nisso, qualquer
um que atingisse um nível de perícia nas artes do combate ou da magia - porque era incapaz de apreciar o sacrifício e a dedicação necessários para tal realização.
Arrogante? Se o assim chamado camponês humilde do homem de Gond viesse até mim com o desejo de aprender as artes do combate, eu o ensinaria com prazer. Eu
me deleitaria com seus sucessos tanto quanto com os meus, mas exigiria - sempre exigiria - uma noção de humildade, dedicação e uma compreensão desse poder que estaria
ensinando, uma apreciação do seu potencial destrutivo. Eu não ensinaria alguém que não continuasse a exibir um nível apropriado de compaixão e solidariedade. Para
aprender a usar uma espada, deve-se primeiro dominar o quando usar uma espada.
Há ainda um outro erro na linha de raciocínio do homem de Gond, creio eu, num nível puramente emocional. Se as máquinas substituírem a realização, então a
que as pessoas aspirarão? E, sinceramente, quem somos nós sem esses objetivos?
Cuidado com os engenheiros da sociedade, digo eu, que tornariam a todos iguais em todo o mundo. A oportunidade deve ser igual, precisa ser igual, mas a realização
deve permanecer individual.
Drizzt Do'Urden


15. DIAS DE ANTANHO

Uma atarracada torre de pedra se erguia num pequeno vale contra a encosta de uma colina íngreme. Se estivesse coberta de hera e mato, um transeunte casual
não teria sequer reparado na estrutura.
Mas os Companheiros do Salão não eram casuais em sua busca. Tratava-se do Forte dos Arautos, talvez a solução para toda a sua demanda.
- Tem certeza de que é este o lugar? - Régis perguntou a Drizzt enquanto eles espiavam por sobre uma pequena ribanceira. E verdade que a antiga torre parecia
mais uma ruína. Nada se mexia nas proximidades, nem mesmo animais, como se uma quietude sobrenatural e reverente cercasse o lugar.
- Tenho - Drizzt respondeu. - Sinta a antigüidade da torre. Foi erguida há muitos séculos. Muitos séculos.
- E há quanto tempo 'tá desabitada? - perguntou Bruenor, até ali decepcionado com o lugar que lhe fora descrito como a mais auspiciosa promessa de
alcançar seu objetivo.
- Não está desabitada - respondeu Drizzt. - A menos que a informação que recebi esteja errada.
Bruenor ficou de pé e saltou intempestivamente a ribanceira.
- Provavelmente 'tá é certa - ele resmungou. - Algum troll ou yeti sarnento deve estar lá dentro olhando prá gente agora mesmo, aposto, babando de
vontade de a gente entrar! Vamos acabar com isso, então! Sundabar está um dia de viagem mais longe desde que a gente partiu!
Os três amigos do anão se juntaram a ele nos restos da trilha tomada pelo mato que fora outrora a aléia que conduzia à porta da torre. Eles se aproximaram
cautelosamente da antiga porta de pedra, com as armas desembainhadas.
Coberta de limo e erodida pelo tempo a ponto de apresentar um acabamento liso, aparentemente não era aberta havia muitos, muitos anos.
- Use os braços, garoto - Bruenor disse a Wulfgar. - Se tem um homem capaz de abrir essa coisa é você!
Wulfgar apoiou Garra de Palas contra a parede e colocou-se diante da porta descomunal. Firmou os pés da melhor maneira possível e correu as mãos pela pedra
em busca de uma boa posição para empurrar.
Mas, assim que ele aplicou a mais leve pressão ao portal de pedra, este oscilou para dentro, sem ruído nem esforço.
Uma brisa fresca soprou desde a serena escuridão lá dentro, trazendo uma mistura de odores desconhecidos e uma aura de grande antigüidade. Os amigos sentiram
o lugar como algo sobrenatural que pertencesse, talvez, a uma época diferente, e não foi sem um certo receio que Drizzt os conduziu para o interior da torre.
Eles pisavam leve, mas seus passos ecoavam nas trevas silenciosas. A luz do dia além da porta oferecia pouco alívio, como se restasse alguma barreira entre
o interior da torre e o mundo lá fora.
- Devíamos acender uma tocha... - Régis começou, mas calou-se abruptamente, assustado pelo volume involuntário de seu sussurro.
- A porta! - Wulfgar gritou de repente, percebendo que o silencioso portal começara a se fechar atrás deles. Ele saltou para agarrá-lo antes que se
fechasse completamente, submergindo-os em absoluta escuridão, mas mesmo sua grande força não conseguiria anular o poder mágico que movia a porta. Fechou-se com um
estrondo, uma simples lufada reprimida de ar que ressoou como o suspiro de um gigante.
A tumba escura que todos eles imaginaram quando a porta descomunal bloqueou a última ranhura de luz do sol não chegou a se materializar pois, assim que a
porta se fechou, um brilho azul iluminou a sala, o vestíbulo do Forte dos Arautos.
Não conseguiram pronunciar sequer uma palavra capaz de sobrepujar a profunda estupefação que os envolveu. Encontravam-se diante da história da raça do Homem
no interior de uma bolha de intemporalidade que anulava suas próprias percepções de tempo e identidade. Num piscar de olhos, foram arremessados à posição de observadores
afastados - a própria existência suspensa num momento e num local diferentes - a assistir à passagem da raça humana como o faria um deus. Tapeçarias intricadas -
as cores outrora vividas já desbotadas e os contornos distintos agora borrados - arrebataram os amigos numa fantástica colagem de imagens que exibiam as fábulas
da raça, cada uma delas a recontar inúmeras vezes uma única história; a mesma fábula, parecia, mas sutilmente alterada de modo a apresentar princípios diferentes
e desenlaces variados.
Armas e armaduras de todas as eras revestiam as paredes, abaixo dos estandartes e brasões de milhares de reinos havia muito esquecidos. Imagens em baixo-relevo
de heróis e sábios - alguns deles familiares, mas a maioria conhecida apenas pelos mais estudiosos eruditos - fitavam-nos do alto dos frisos, e suas fisionomias
petrificadas eram precisas o bastante para apresentar dramaticamente o próprio caráter dos homens ali representados.
Uma segunda porta, esta de madeira, achava-se diretamente em frente à primeira, do outro lado da câmara cilíndrica, e aparentemente adentrava a colina atrás
da torre. Só quando ela começou a se abrir é que os companheiros conseguiram se libertar do encanto do lugar.
Contudo, nenhum deles procurou as armas, compreendendo que o habitante daquela torre, não importava quem ou o que fosse, estaria muito além de um poder tão
mundano.
Um homem idoso entrou na sala, mais velho que qualquer pessoa que tivessem visto antes. Seu rosto mantivera a plenitude, sem que se tivesse deixado encovar
pela idade, mas sua pele quase aparentava a textura da madeira, com rugas que se assemelhavam mais a rachaduras e um gume encarquilhado que desafiava o tempo com
a mesma teimosia de uma árvore antiga. Seu andar era antes um fluxo de movimento silencioso, um caminhar flutuante que transcendia a definição de passos. Ele se
aproximou dos amigos e aguardou, os braços - obviamente magros, mesmo sob as dobras de sua longa túnica acetinada - abandonados pacificamente junto ao corpo.
- Você é o arauto da torre? - perguntou Drizzt.
- Noite Anciã é o meu nome - o homem respondeu numa voz que entoava serenidade. - Bem vindos, Companheiros do Salão. A Senhora Alustriel me informou
de sua vinda e de sua missão.
Mesmo absorto no respeito solene do ambiente, Wulfgar não deixou de notar a referência a Alustriel. Ele olhou de soslaio para Drizzt, encontrando os olhos
do drow com um sorriso perspicaz.
Drizzt deu-lhe às costas e também sorriu.
- Esta é a Câmara do Homem - proclamou Noite Anciã. - A maior de todas as salas do Forte, exceto pela biblioteca, é claro.
Ele notou o cenho franzido e desgostoso de Bruenor.
- A tradição de sua raça é extensa, meu bom anão, e maior ainda é a dos elfos - ele explicou. - Mas crises na história geralmente são medidas melhor
em gerações que em séculos. Os humanos de vida breve teriam derrubado milhares de reinos e construído outros milhares nos poucos séculos em que um único rei anão
governasse seu povo em paz.
- Falta de paciência! - bufou Bruenor, aparentemente satisfeito.
- Concordo - riu Noite Anciã. - Mas, venham, vamos jantar. Temos muito a fazer hoje à noite.
Ele os conduziu pela porta e por um corredor iluminado com a mesma luz azul. Portas de cada um dos lados identificavam as várias câmaras pelas quais passavam:
uma para cada raça virtuosa, e até mesmo algumas para a história dos orcs, goblins e a raça dos gigantes.
Os amigos e Noite Anciã cearam a uma imensa mesa redonda, cuja madeira antiga era tão dura quanto a pedra da montanha. Havia runas inscritas ao longo de toda
a sua borda, várias delas em línguas havia muito esquecidas, que mesmo Noite Anciã não conseguiria recordar. A comida, como tudo o mais, dava a impressão de um passado
distante. Longe de rançosa, porém, estava deliciosa, apresentando um sabor ligeiramente diferente de tudo o que os amigos haviam ingerido antes. A bebida, um vinho
cristalino, tinha um bouquet precioso que superava até mesmo os lendários elixires dos elfos.
Noite Anciã lhes fez as honras da casa enquanto comiam, recontando histórias grandiosas de antigos heróis e dos acontecimentos que haviam dado forma aos Reinos
no seu estado atual. Os companheiros foram uma platéia atenta apesar do fato de que, com toda a probabilidade, pistas substanciais sobre o Salão de Mitral pairassem
a uma ou duas salas dali.
Quando a refeição terminou, Noite Anciã se ergueu de sua cadeira e os fitou com estranha e curiosa intensidade.
- Chegará o dia, daqui a um milênio, talvez, em que hei de receber visitas novamente. Nesse dia, estou certo, uma das histórias que contarei envolverá
os Companheiros do Salão e sua gloriosa demanda.
Os amigos não tinham como responder à honra que o ancião lhes prestara. Mesmo Drizzt, controlado e inabalável, deixou de piscar durante um bom tempo.
- Venham - instruiu Noite Anciã -, que sua jornada comece de novo.
- Ele os conduziu por uma outra porta, aquela que levava à maior biblioteca em todo o Norte.
Volumes grossos e finos cobriam as paredes e jaziam por todo o lado em grandes pilhas sobre as inúmeras mesas espalhadas por toda a enorme sala. Noite Anciã
indicou uma certa mesa, uma das menores, num canto, e um livro solitário aberto sobre o tampo.
- Fiz boa parte da pesquisa por vocês - explicou Noite Anciã. - E, dentre todos os volumes sobre os anões, este foi o único que consegui encontrar
a fazer alguma referência ao Salão de Mitral.
Bruenor foi até o livro e agarrou-lhe as bordas com mãos trêmulas. Estava escrito em Alto Anão, a língua de Dumathoin, Guardião dos Segredos Sob a Montanha,
uma escrita cursiva quase esquecida nos reinos. Mas Bruenor sabia lê-la. Ele examinou a página rapidamente, depois leu em voz alta as passagens relevantes:
- "O Rei Elmor e seu povo se beneficiaram imensamente do trabalho penoso de Garumn e a gente do Clã Martelo de Batalha, mas os anões das minas secretas
não desmentiram os proveitos de Elmor. Assento de Pedra revelou-se um aliado valioso e confiável e, portanto, Garumn pôde dar início à trilha secreta que levava
ao mercado as peças de mitral.".
Bruenor ergueu a cabeça e fitou os amigos com um brilho de revelação nos olhos.
- Assento de Pedra - ele murmurou. - Conheço esse nome. - Ele voltou a mergulhar no livro.
- Não encontrará mais do que isso - disse Noite Anciã. - Pois as notícias sobre o Salão de Mitral se perderam nas eras. O livro meramente declara que
o fluxo de mitral logo cessou, o que levou ao desaparecimento definitivo de Assento de Pedra.
Bruenor já não ouvia. Precisava ler por si mesmo, devorar cada palavra escrita sobre sua herança perdida, não importava a relevância.
- O que é essa tal de Assento de Pedra? - Wulfgar perguntou a Noite Anciã. - Uma pista?
- Talvez - respondeu o arauto. - Até aqui, não encontrei qualquer outra referência ao lugar que não neste livro, mas estou inclinado a acreditar, com
base na obra, que Assento de Pedra era bastante incomum para uma vila anã.
- Na superfície! - Bruenor o interrompeu subitamente.
- Sim - concordou Noite Anciã. - Uma comunidade de anões abrigada em estruturas na superfície. Rara nos dias de hoje e inaudita à época do Salão de
Mitral. Apenas duas possibilidades, até onde eu saiba.
Régis deixou escapar um grito de vitória.
- Seu entusiasmo pode ser prematuro - observou Noite Anciã. - Mesmo se discernirmos onde ficava Assento de Pedra outrora, a trilha para o Salão de
Mitral meramente começa ali.
Bruenor folheou algumas páginas do livro, depois voltou a depositá-lo sobre a mesa.
- Tão perto! - ele resmungou, batendo o punho sobre a madeira petrificada. - E eu devia saber!
Drizzt se aproximou dele e sacou um frasco de sob seu manto.
- Uma poção - ele explicou diante do olhar confuso de Bruenor - que fará com que você caminhe novamente nos dias do Salão de Mitral.
- Um encanto poderoso - avisou Noite Anciã. - E incontrolável.
Pense bem antes de utilizá-lo, meu bom anão.
Bruenor já estava em movimento, oscilando à beira de uma descoberta que ele precisava realizar. Tragou o líquido num único gole, depois se segurou à borda
da mesa para não cair devido ao poderoso efeito da bebida. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa franzida e ele estremeceu involuntariamente quando a
poção enviou sua mente de volta no tempo, à deriva pelos séculos.
Régis e Wulfgar foram até ele, e o homenzarrão lhe segurou os ombros e delicadamente o forçou a se sentar numa cadeira.
Os olhos de Bruenor estavam bem abertos, mas ele nada via na sala diante dele. O suor o banhava agora, e os espasmos se transformaram em tremor.
- Bruenor - Drizzt chamou baixinho, questionando se fizera bem em apresentar ao anão uma oportunidade tão tentadora.
- Não, meu pai! - Bruenor gritou. - Não aqui no escuro! Vem comigo, então. O que eu vou fazer sem você?
- Bruenor - Drizzt, mais enfático, chamou novamente.
- Ele não está aqui - explicou Noite Anciã, familiarizado com a poção, pois esta era geralmente usada por raças longevas, particularmente a dos elfos,
quando buscavam lembranças do passado distante. Normalmente, porém, os que dela bebiam retornavam a uma época mais agradável. Noite Anciã continuou a observar com
grave preocupação, pois a poção fizera Bruenor retornar a um dia terrível em seu passado, uma lembrança que sua mente havia bloqueado, ou ao menos obscurecido, para
protegê-lo de emoções fortes. Essas emoções seriam agora desnudadas, reveladas à mente consciente do anão em toda a sua fúria.
- Levem-no à Câmara dos Anões - instruiu Noite Anciã. - Deixem-no deleitar-se com as imagens de seus heróis. Eles o ajudarão a recordar e lhe darão
forças para sobreviver à provação.
Wulfgar ergueu Bruenor e o carregou gentilmente pela passagem até a Câmara dos Anões, depositando-o no centro do piso circular. Os amigos se afastaram, deixando
o anão a sós com seu delírio.
Bruenor só enxergava em parte as imagens ao redor dele, preso entre os mundos do passado e do presente. Imagens de Moradin, Dumathoin e todas as suas divindades,
todos os seus heróis olhavam-no do alto dos frisos, ajudando a repelir as ondas de tragédia com um pouco de conforto. Armaduras para anões, machados e martelos de
guerra fabricados com grande perícia o cercavam, e ele se embevecia na presença das mais elevadas glórias de sua orgulhosa raça.
As imagens, porém, não eram capazes de desfazer o horror que ele agora voltava a conhecer: a queda de seu clã, do Salão de Mitral, de seu pai.
- Luz do dia! - ele gritou, dividido entre o alívio e o pesar. - Meu pobre pai, e o pai de meu pai! Mas ademais, nossa saída está próxima! Assento
de Pedra... - ele perdeu a consciência por um instante, oprimido -... acolha a gente. A ruína, a ruína! Acolha a gente!
- O preço é alto - disse Wulfgar, angustiado pelo tormento do anão.
- Ele está disposto a pagar - replicou Drizzt.
- Será um pagamento miserável se nada descobrirmos - disse Régis. - As divagações dele não têm direção. Vamos ficar aqui sentados e esperar quando
já não há esperança?
- As lembranças dele já o levaram o Assento de Pedra, sem qualquer menção à trilha atrás dele - observou Wulfgar.
Drizzt desembainhou uma das cimitarras e cobriu seu rosto com o capuz do manto.
- O quê? - Régis começou a perguntar, mas o drow já estava em movimento. Ele correu para o lado de Bruenor e aproximou seu rosto da face banhada em
suor do anão.
- Sou um amigo - ele sussurrou para Bruenor. - Vim em resposta às notícias da queda do palácio! Meus aliados aguardam! Será nossa a vingança, poderoso
anão do Clã Martelo de Batalha! Mostre-nos o caminho para que possamos restaurar as glórias do Salão de Mitral!
- É segredo - ofegou Bruenor, à beira da consciência.
Drizzt pressionou um pouco mais.
- O tempo se esgota! A escuridão está chegando! - ele gritou. - O caminho, anão, precisamos saber o caminho!
Bruenor resmungou alguns sons inaudíveis, e todos os amigos ficaram boquiabertos, pois sabiam que o drow havia atravessado a última barreira mental que impedia
Bruenor de encontrar o palácio.
- Mais alto! - insistiu Drizzt.
- Quartopico! - Bruenor respondeu com um grito. - Subindo a passagem alta e Vale do Guardião adentro!
Drizzt olhou para Noite Anciã, que balançava a cabeça em reconhecimento, depois voltou a encarar Bruenor.
- Descanse, poderoso anão - ele disse de maneira reconfortante. - Seu clã há de ser vingado!
- Com a descrição que o livro dá de Assento de Pedra, Quartopico só pode descrever um lugar - Noite Anciã explicou a Drizzt e a Wulfgar assim que voltaram
à biblioteca. Régis permaneceu na Câmara dos Anões para velar pelo sono agitado de Bruenor.
O arauto retirou um tubo de uma estante alta e desenrolou o antigo pergaminho ali contido: um mapa do centro das terras do norte, entre Lua Argêntea e Mirabar.
- O único povoado anão na superfície à época do Salão de Mitral, e próximo o bastante de uma cordilheira para fazer referência a um pico numera do,
seria aqui - ele disse, marcando o pico mais ao sul do contraforte no extremo sul da Espinha do Mundo, logo ao norte de Nesmé e dos Pântanos Eternos. - A cidade
de pedra abandonada é simplesmente chamada de "as Ruínas" agora, e era comumente conhecida como Dwarkardarrows quando a raça de longas barbas ali vivia. Mas as divagações
de seu companheiro me convenceram de que esta é de fato o Assento de Pedra de que fala o livro.
- Por que, então, o livro não faria referência a Dwarkardarrow? - perguntou Wulfgar.
- Os anões são uma raça reservada - Noite Anciã explicou com uma risadinha perspicaz -, principalmente no tocante a tesouros. Garumn do Salão de Mitral
estava determinado a manter a localização de seu cabedal oculta à cobiça do mundo exterior. Ele e Elmor de Assento de Pedra sem dúvida fizeram algum acordo que incluía
códigos intricados e nomes inventados para fazer referência aos arredores. Qualquer coisa para desviar mercenários intrometidos da trilha correta. Nomes que agora
aparecem em lugares desconexos espalhados em todos os tomos da história dos anões. Muitos eruditos provavelmente chegaram a ler sobre o Salão de Mitral, chamado
por algum outro nome que os leitores presumiram se referir a alguma outra das muitas antigas terras natais dos anões, hoje esquecidas.
O arauto fez uma pequena pausa para assimilar tudo o que o ocorrera.
- Devem partir imediatamente - ele aconselhou. - Carreguem o anão se for preciso, mas levem-no ao Assento de Pedra antes que passem os efeitos da poção.
Caminhando em suas lembranças, Bruenor talvez seja capaz de retraçar os próprios passos de duzentos anos atrás, subindo as montanhas do Vale do Guardião até os portões
do Salão de Mitral.
Drizzt estudou o mapa e o ponto que Noite Anciã havia marcado como a localização de Assento de Pedra.
- De volta ao oeste - ele murmurou, ecoando as suspeitas de Alustriel.
- Não chega a dois dias de marcha a partir daqui.
Wulfgar se aproximou para dar uma olhada no pergaminho e acrescentou, numa voz que encerrava tanto expectativa quanto um certo grau de tristeza:
- Estamos quase chegando ao fim de nossa estrada.


16. O Desafio

Eles partiram sob as estrelas e não pararam até que as estrelas preenchessem novamente o céu. Bruenor não precisava de ajuda. Pelo contrário. Era o anão -
recuperado de seu delírio e os olhos finalmente focados numa trilha palpável rumo ao seu objetivo havia muito desejado - quem os impelia, estabelecendo o ritmo de
marcha mais intenso desde que saíram do Vale do Vento Gélido. De olhos vidrados, caminhando tanto no passado quanto no presente, Bruenor era consumido por sua obsessão.
Durante quase duzentos anos ele sonhara com aquele retorno, e os últimos dias na estrada pareciam mais longos do que os séculos que haviam se passado até então.
Os companheiros haviam aparentemente derrotado o seu pior inimigo: o tempo. Caso seu cálculo no Forte estivesse correto, o Salão de Mitral pairava a alguns
dias de distância apenas, apesar de o breve verão mal ter ultrapassado seu ponto médio. Já que o tempo deixara de ser um problema urgente, Drizzt, Wulfgar e Régis
haviam previsto um ritmo moderado ao se prepararem para deixar o Forte. Mas Bruenor, ao despertar e se inteirar das descobertas, não quis saber de discutir as razões
da sua pressa. E ninguém tentou objetar pois, em meio a todo o alvoroço, a disposição já intratável de Bruenor se tornara ainda mais injuriosa.
- Mantenha os pés em movimento! - ele dizia rispidamente a Régis, cujas perninhas não conseguiam igualar o ritmo frenético do anão. - 'Cê devia ter ficado
em Dez-Burgos, com a barriga pendurada no cinto!-O anão, então, perdia-se em resmungos baixos, inclinando-se ainda mais sobre os pés em movimento, forçando-se a
prosseguir, indiferente às possíveis réplicas de Régis ou aos comentários de Wulfgar ou Drizzt quanto ao seu comportamento.
Eles retornaram ao Rauvin para usar as águas do rio como guia. Drizzt conseguiu convencer Bruenor a se desviar para noroeste tão logo os picos da cordilheira
fossem avistados. O drow não tinha o menor desejo de encontrar patrulhas de Nesmé novamente, certo de que os gritos de alerta daquela cidade é que haviam forçado
Alustriel a impedi-lo de entrar em Lua Argêntea. Bruenor não conseguiu relaxar no acampamento aquela noite, muito embora eles tivessem obviamente percorrido muito
mais da metade da distância até as ruínas de Assento de Pedra. Ele caminhava pelo acampamento como um animal enjaulado, abrindo e fechando os punhos nodosos, murmurando
consigo mesmo coisas sobre o dia fatídico em que seu povo fora expulso do Salão de Mitral e a vingança que encontraria quando ele finalmente retornasse.
- É a poção? - Wulfgar perguntou a Drizzt, mais tarde naquela noite, quando os dois se afastaram um pouco do acampamento e puseram-se a observar o
anão.
- Em parte, talvez - Drizzt respondeu, igualmente preocupado com o amigo. - A poção forçou Bruenor a reviver a experiência mais dolorosa de sua longa
vida. E agora, à medida que as lembranças desse passado afloram nas suas emoções, exasperam agudamente a vingança que cresceu dentro dele como uma infecção durante
todos esses anos.
- Ele está amedrontado - Wulfgar observou.
Drizzt assentiu.
- É a provação da vida dele. A promessa de retornar ao Salão de Mitral traz consigo o valor que ele dá à própria existência.
- Ele está forçando demais - Wulfgar comentou, olhando para Régis, que havia desmaiado, exausto, logo depois da ceia. - O halfling não consegue manter
o ritmo.
- Temos menos de um dia de marcha à nossa frente - Drizzt replicou. - Régis sobreviverá à estrada, como todos nós. - Ele espalmou o ombro do bárbaro
e Wulfgar, não totalmente satisfeito, mas resignado quanto ao fato de não poder fazer o anão mudar de idéia, afastou-se para descansar um pouco. Drizzt voltou-se
para olhar o anão inquieto, e seu rosto negro trazia um ar muito mais preocupado do que aquele que revelara ao jovem bárbaro.
Drizzt não estava realmente preocupado com Régis. O halfling sempre encontrava uma maneira de se sair bem, até melhor do que deveria. Bruenor, porém, inquietava
o drow. Ele se lembrou de quando o anão fabricara Garra de Palas, o poderoso martelo de guerra. A arma havia sido a criação definitiva da fecunda carreira de Bruenor
como artífice, uma arma digna das lendas. Bruenor sequer poderia sonhar em superar tamanha realização, nem mesmo igualá-la. O anão jamais utilizaria o martelo e
a bigorna novamente.
Agora, a jornada para o Salão de Mitral, o objetivo da vida de Bruenor. Assim como Garra de Palas havia sido a melhor obra de Bruenor, aquela jornada seria
sua mais alta escalada. O foco da preocupação de Drizzt era mais sutil e, ainda assim, mais perigoso do que o sucesso ou o fracasso da demanda; os perigos da estrada
afetaram a todos igualmente, e eles os haviam aceitado de boa vontade antes de começar. Reclamados ou não os antigos salões, a montanha de Bruenor seria galgada.
O momento de sua glória seria ultrapassado.
- Acalme-se, meu bom amigo - disse Drizzt, andando ao lado do anão.
- É o meu lar, elfo - retrucou Bruenor, mas ele pareceu realmente se controlar um pouco.
- Eu sei - ofereceu Drizzt. - Parece que haveremos realmente de pôr os olhos no Salão de Mitral, e isso levanta uma questão que devemos em breve responder.
Bruenor olhou para ele, curioso, apesar de saber muito bem aonde Drizzt queria chegar.
- Até aqui, só nos preocupamos em encontrar o Salão de Mitral e pouco se falou sobre nossos planos passada a entrada do lugar.
- Por tudo o que é certo e direito, eu sou Rei do Salão - rezingou Bruenor.
- Concordo - disse o drow -, mas e quanto às trevas que ainda podem restar? Uma força que expulsou todo o seu clã das minas. Deveremos nós quatro derrotá-la?
- Pode ser que tenha sumido por conta própria, elfo - Bruenor respondeu num tom mal-humorado, não desejando encarar as possibilidades. - Até onde a
gente saiba, pode ser que os salões estejam livres.
-Talvez. Mas quais são os seus planos caso as trevas tenham permanecido? Bruenor se deteve para pensar um momento.
- Vou mandar um mensageiro pro Vale do Vento Gélido - ele respondeu. - Meu pessoal vai estar com a gente na primavera.
- Não chegam a cem em condição de lutar - Drizzt o lembrou.
- Então eu vou recorrer a Adbar se precisarmos de mais! - retrucou Bruenor. - Harbromm ficará feliz em ajudar se a gente prometer um pouco de ouro.
Drizzt sabia que Bruenor não faria esse tipo de promessa com tanta facilidade, mas decidiu dar fim à torrente de perguntas perturbadoras, apesar de necessárias.
- Durma bem - ele disse ao anão. - Você há de encontrar as respostas quando for necessário.
O ritmo não foi menos frenético na manhã do dia seguinte. As montanhas logo assomavam sobre eles, e uma outra mudança acometeu o anão. Ele estacou de repente,
tonto, esforçando-se para manter o equilíbrio. Wulfgar e Drizzt estavam logo ao lado dele, amparando-o.
- O que foi? - Drizzt perguntou.
- Dwarkardarrow - Bruenor respondeu numa voz que parecia muito distante. Ele apontou um afloramento de rocha que se projetava da base da montanha
mais próxima.
- Você conhece o lugar?
Bruenor não respondeu. Ele se pôs a caminho novamente, cambaleante, mas rejeitou qualquer oferta de auxílio. Seus amigos encolheram os ombros, impotentes,
e o seguiram.
Uma hora depois, as estruturas apareceram. Como gigantescas casas de cartas, grandes lajes de pedra haviam sido habilmente justapostas para formar habitações
e, embora estivessem abandonadas havia mais de cem anos, as estações e o vento não as tinham reclamado. Somente os anões poderiam ter imbuído tamanha resistência
na rocha e assentado as pedras com tamanha perfeição para que durassem tanto quanto as montanhas, muito além das gerações e das histórias dos bardos, de modo que
alguma raça futura viesse a pôr os olhos nelas, admirada e deslumbrada com a construção, sem fazer a menor idéia de quem as teria criado.
Bruenor recordava. Ele perambulou pela aldeia como o fizera tantas décadas atrás, uma lágrima a marejar-lhe os olhos cinzentos, o corpo a tremer como sinal
de resistência à lembrança das trevas que haviam se congregado sobre seu clã.
Seus amigos o deixaram circular durante algum tempo, sem querer interromper as emoções solenes que haviam vencido a sua rudeza e agora transpareciam. Por
fim, quando a tarde terminava, Drizzt se aproximou dele.
- Você sabe o caminho? - ele perguntou.
Bruenor olhou para cima, para uma passagem que galgava a encosta da montanha mais próxima.
- Metade de um dia - ele respondeu.
- Acampamos aqui? - Drizzt perguntou.
- Seria bom prá mim - disse Bruenor. - Tenho muito no que pensar, elfo. Não vou esquecer o caminho, não tenha medo.
Os olhos dele se estreitaram, concentrando-se intensamente na trilha pela qual ele fugira no dia em que as trevas chegaram, e ele murmurou:
- Nunca mais vou esquecer o caminho.

O ritmo vigoroso de Bruenor se revelou a sorte dos amigos, pois Bok havia seguido a trilha do drow desde Lua Argêntea com facilidade e conduzira seu grupo
com a mesma pressa. Desviando-se completamente do Forte - as defesas mágicas da torre, de todo jeito, não permitiriam que eles se aproximassem -, o grupo do golem
fizera um progresso considerável.
Num acampamento não muito distante, Entreri esboçava seu sorriso maldoso e fitava o horizonte escuro e um ponto de luz que ele sabia ser a fogueira do acampamento
de sua vítima.
Cattiebrie também o via e sabia que o dia seguinte traria seu maior desafio. Ela passara a maior parte da sua vida com os aguerridos anões, sob a tutela do
próprio Bruenor. Ele lhe havia ensinado tanto disciplina quanto confiança. Não uma fachada arrogante para esconder inseguranças mais profundas, mas uma verdadeira
autoconfiança e a avaliação comedida do que ela era ou não capaz de realizar. Se ela não conseguisse dormir naquela noite, seria mais devido à sua ânsia de enfrentar
aquele desafio do que ao medo de fracassar.
Eles levantaram acampamento cedo e chegaram às ruínas logo depois do amanhecer. Não mais ansiosos do que o grupo de Bruenor, encontraram, porém, apenas os
restos do acampamento dos companheiros.
- Uma hora, talvez duas - observou Entreri, abaixando-se para sentir o calor das brasas.
- Bok já encontrou a nova trilha - disse Sidnéia, apontando o golem que se afastava em direção aos contrafortes da montanha mais próxima.
Um sorriso foi tomando o rosto de Entreri à medida que a emoção da caçada o arrebatava. No entanto, Cattiebrie deu pouca atenção ao assassino, mais preocupada
com as revelações estampadas no rosto de Jierdan.
O soldado parecia inseguro. Ele seguiu atrás deles assim que Sidnéia e Entreri partiram atrás de Bok, mas com passos forçados. Ele obviamente não esperava
pelo confronto iminente com a mesma ansiedade de Sidnéia e Entreri.
Cattiebrie ficou satisfeita.
Eles seguiram adiante durante toda a manhã, esquivando-se de ravinas abruptas e matacões, subindo cautelosamente a encosta das montanhas. Então, pela primeira
vez desde que havia dado início à sua busca, mais de dois anos antes, Entreri viu sua presa.
O assassino havia suplantado um cômoro semeado de matacões, e começava a desacelerar o passo para acomodar-se a um declive pronunciado num pequeno vale cheio
de árvores, quando Bruenor e seus amigos saíram de um matagal e puseram-se a percorrer a vertente de uma encosta íngreme ao longe. Entreri se agachou e sinalizou
para que os demais logo atrás dele diminuíssem o passo.
- Detenha o golem - ele gritou para Sidnéia, pois Bok já desaparecera no bosque abaixo dele e logo surgiria do outro lado sobre mais um cômoro estéril
de pedra, bem à vista dos companheiros.
Sidnéia acudiu.
- Bok, volte para mim! - ela gritou tão alto quanto poderia ousar pois, embora os companheiros estivessem bem longe, os ecos e os ruídos na encosta
da montanha pareciam se projetar pela eternidade.
Entreri indicou os pontos que se moviam pela vertente diante deles.
- Podemos alcançá-los antes que contornem a encosta da montanha - disse a Sidnéia. Com um salto, ele encontrou Jierdan e Cattiebrie e atou rude mente
as mãos da moça atrás das costas. - Se você gritar, vai assistir à morte dos seus amigos - ele garantiu. - E, então, seu próprio fim será extremamente desagradável.
Cattiebrie estampou no rosto seu olhar mais assustado, apesar de contente por ter a última ameaça do assassino soado tão vã. Ela suplantara o nível de terror
que Entreri usara contra ela quando se conheceram em Dez-Burgos. Convencera-se de que, apesar de sua repulsa instintiva pelo matador desapaixonado, ele era apenas
um homem afinal.
Entreri apontou o vale escarpado abaixo da vertente e os companheiros.
- Irei pela ravina - ele explicou a Sidnéia - e farei o primeiro contato. Você e o golem seguem pela trilha e se aproximam por trás.
- E quanto a mim? - protestou Jierdan.
- Fique com a garota! - Entreri ordenou tão distraidamente como se estivesse falando a um servo. Ele girou sobre os calcanhares e partiu, recusando-se
a ouvir quaisquer argumentos.
Sidnéia nem mesmo se voltou para fitar Jierdan enquanto esperava o retorno de Bok. Ela não tinha tempo para essas querelas e imaginou que, se Jierdan não
pudesse falar por si mesmo, não valeria a pena defendê-lo.
- Aja agora - Cattiebrie sussurrou para Jierdan -, por você mesmo e não por mim! - Ele a fitou, mais curioso que irritado, e vulnerável a qualquer
sugestão capaz de tirá-lo daquela situação desconfortável.
- A feiticeira perdeu todo o respeito por você, homem - continuou Cattiebrie. - O assassino tomou o seu lugar e, com certeza, ela vai ficar do lado
dele, e não do seu. Esta é a sua chance de agir. A última, pelo que vejo! E hora de mostrar o seu valor prá feiticeira, Soldado de Luskan!
Jierdan olhou de um lado para outro, nervoso. Apesar de todas as manipulações que esperava daquela mulher, as palavras dela encerravam verdade suficiente
para convencê-lo de que a avaliação era correta.
O orgulho dele venceu. Ele se voltou para Cattiebrie e a mandou ao chão com uma bofetada, depois passou correndo por Sidnéia em perseguição a Entreri.
- Aonde você vai? - Sidnéia gritou para ele, mas Jierdan não estava mais interessado em conversas inúteis.
Surpresa e confusa, Sidnéia se voltou para verificar a prisioneira. Cattiebrie havia previsto tal coisa e gemia e rolava na pedra dura como se estivesse inconsciente,
embora, na verdade, tivesse se desviado o suficiente do golpe de Jierdan para que este a atingisse apenas de raspão. Totalmente conscientes e coerentes, seus movimentos
foram calculados para posicioná-la de tal modo que ela pudesse deslizar as mãos amarradas por trás das pernas e trazê-las para frente.
O fingimento de Cattiebrie satisfez Sidnéia o bastante para que a feiticeira concentrasse toda a sua atenção no confronto iminente entre os seus dois camaradas.
Ouvindo a aproximação de Jierdan, Entreri deu meia-volta, o punhal e o sabre desembainhados.
- Eu disse para você ficar com a garota! - ele sibilou.
- Não vim nessa jornada para brincar de guarda com sua prisioneira! - retorquiu Jierdan, a espada também desembainhada.
O sorriso característico se insinuou mais uma vez no rosto de Entreri.
- Volte - ele disse uma última vez para Jierdan, embora soubesse, e se alegrasse com isso, que o soldado orgulhoso não lhe daria as costas.
Jierdan deu mais um passo adiante.
Entreri golpeou.
Jierdan era um combatente experimentado, um veterano de muitas escaramuças, e se Entreri esperava despachá-lo com uma única estocada, estava enganado. A espada
de Jierdan desviou o golpe e devolveu a estocada.
Reconhecendo o óbvio desdém que Entreri tinha por Jierdan, e ciente do tamanho do orgulho do soldado, Sidnéia temera aquele confronto desde que haviam deixado
a Torre das Hostes. Ela não se importava se um deles morresse agora - e desconfiava que seria Jierdan -, mas não toleraria nada que prejudicasse a missão. Depois
que o drow estivesse seguro em suas mãos, Entreri e Jierdan poderiam resolver as próprias diferenças.
- Vá até eles! - ela gritou para o golem que avançava. - Pare essa luta!
- Bok virou-se imediatamente e correu em direção aos combatentes, e Sidnéia, chacoalhando a cabeça de desgosto, acreditou que a situação logo estaria sob
controle e eles poderiam retomar a caçada.
O que ela não viu foi Cattiebrie que se levantava atrás dela.
Cattiebrie sabia que tinha apenas uma chance. Ela se ergueu furtiva e silenciosamente e deu com as mãos entrelaçadas na nuca da feiticeira. Sidnéia caiu diretamente
sobre a rocha dura, Cattiebrie passou por ela a toda pressa e entrou no bosque, o sangue a correr em suas veias. Ela precisava se aproximar o suficiente dos seus
amigos para berrar um aviso claro antes que seus captores a alcançassem.
Logo depois de ter entrado no denso arvoredo, Cattiebrie ouviu Sidnéia gritar, ofegante:
- Bok!
O golem fez a volta imediatamente, um pouco atrás de Cattiebrie, mas cada uma de suas longas passadas diminuía a distância que os separava.
Mesmo se tivessem presenciado a fuga da moça, Jierdan e Entreri estavam envolvidos demais em sua própria batalha para se preocuparem com ela.
- Você nunca mais me insultará! - Jierdan gritou, acima do clangor do aço.
- Insultarei, sim! - Entreri sibilou. - Existem muitas maneiras de se vilipendiar um cadáver, seu idiota, e saiba que vou praticar cada uma delas nos
seus ossos em decomposição. - Ele atacou com mais energia, concentrado no adversário, as armas a adquirir um ímpeto mortal em sua dança.
Jierdan respondeu corajosamente, mas o habilidoso assassino tinha pouca dificuldade em revidar a todas as suas estocadas com paradas hábeis e desvios sutis.
Logo o soldado havia exaurido todo o seu repertório de fintas e golpes, e ele nem mesmo chegara perto de atingir o alvo. Ele se cansaria antes de Entreri. Viu isso
claramente, mesmo no início da luta.
Eles trocaram vários outros golpes, e as cutiladas de Entreri eram cada vez mais rápidas, enquanto os movimentos da espada que Jierdan segurava com as duas
mãos começavam a sair arrastados. O soldado esperara que Sidnéia interviesse a essa altura. Sua falta de vigor se revelara claramente a Entreri, e ele não conseguia
entender por que a feiticeira nada dissera sobre a batalha. Ele olhou rapidamente para os lados, e seu desespero era cada vez maior. Então, viu Sidnéia, que jazia
de bruços sobre a pedra.
Uma escapatória honrosa, ele pensou, ainda mais preocupado consigo.
- A feiticeira! - ele gritou para Entreri. - Temos de ajudá-la! - As palavras caíram em ouvidos moucos.
- E a garota! - Jierdan berrou, esperando atrair o interesse do assassino. Ele tentou se desvencilhar do combate, afastando-se de Entreri com um salto
e abaixando a sua espada. - Vamos ter de continuar isto depois - ele declarou num tom ameaçador, embora não tivesse a intenção de enfrentar o assassino num combate
justo novamente.
Entreri não respondeu, mas baixou igualmente as armas. Jierdan, sempre o soldado honrado, deu meia-volta para cuidar de Sidnéia.
Um punhal ajaezado cravou-se em suas costas com um silvo.
Cattiebrie seguia aos trambolhões, incapaz de se equilibrar com as mãos amarradas. Pedras soltas escorregavam sob os seus pés, e mais de uma vez ela caiu
ao chão. Tão ágil quanto um gato, ela se levantava rapidamente.
Mas Bok era mais ligeiro.
Cattiebrie caiu novamente e rolou sobre um pronunciado cimo de pedra, Desceu um perigoso declive de pedras escorregadias, ouviu os pesados passos do golem
atrás dela e soube que não havia a menor possibilidade de escapar àquela coisa. Mas ela não tinha escolha. O suor fazia arder dezenas de arranhões e afligia-lhe
os olhos, e toda a esperança a abandonou. Mesmo assim, ela corria, pois sua coragem rejeitava o fim evidente.
Apesar do desespero e do terror, ela encontrou forças para procurar uma alternativa. O declive continuava por mais uns vinte passos e, bem ao lado dela, havia
um cepo delgado e em decomposição de uma árvore morta. Um plano desesperado lhe ocorreu então, mas a esperança já bastava para que ela o tentasse. Deteve-se por
um instante para examinar a estrutura radicular do cepo em decomposição e para estimar o efeito que desarraigar a coisa poderia ter sobre as pedras.
Ela retrocedeu alguns passos, subindo a inclinação, e aguardou, agachada para o salto impossível. Bok galgou o cimo e abateu-se sobre ela, as rochas a ricochetear
para bem longe dos passos pesados de suas botas. Estava logo atrás dela, esticando os braços horrendos.
E Cattiebrie saltou.
Ela enganchou a corda que lhe atava as mãos no cepo, jogando todo o seu peso contra a sustentação das raízes.
Bok vinha pesadamente atrás dela, desatento às suas intenções. Mesmo enquanto o cepo tombava e a trama de raízes mortas era arrancada do solo, o golem não
foi capaz de compreender o perigo. Enquanto as pedras soltas se deslocavam e começavam a cair, Bok ainda estava concentrado em sua presa.
Cattiebrie continuou descendo aos trambolhões, escapando ao deslizamento. Ela não tentou se levantar, só continuou a rolar e a correr penosamente, apesar
da dor, tentando se afastar ao máximo do declive que desmoronava. Sua determinação fez com que chegasse ao tronco grosso de um carvalho, e ela o contornou, virando-se
para fitar o declive.
Bem a tempo de ver o golem cair sob uma tonelada de pedras saltitantes.

17. O SEGREDO DO VALE DO GUARDIÃO

- O Vale do Guardião - declarou Bruenor solenemente. Os companheiros se achavam de pé sobre uma saliência elevada, observando o chão irregular, centenas
de metros abaixo, de uma profunda garganta rochosa.
- Como vamos descer até lá? - perguntou Régis, boquiaberto, pois todas as encostas pareciam absolutamente escarpadas, como se o desfiladeiro houvesse
sido entalhado propositalmente na rocha.
Havia uma trilha, é claro, e Bruenor, caminhando ainda com as lembranças de sua juventude, sabia muito bem disso. Liderando os amigos, ele contornou a margem
oriental da garganta e olhou para o oeste, para os picos das três montanhas mais próximas.
- 'Cês estão sobre o Quartopico - ele explicou -, que tem esse nome por causa da posição dele ao lado dos outros três.
- Três picos e um só ente - o anão recitou, um antigo verso de uma canção mais extensa ensinada a todos os jovens anões do Salão de Mitral antes que
tivessem idade suficiente para se aventurar fora das minas.
"Três picos e um só ente, Atrás de ti o sol nascente."
Bruenor mudou de posição algumas vezes para encontrar a linha exata das três montanhas a oeste, depois se aproximou lentamente da própria margem da garganta
e olhou por sobre a beirada.
- Chegamos à entrada do vale - ele declarou tranqüilamente, apesar de seu coração disparar com a descoberta.
Os outros três se juntaram a ele. Logo abaixo da beirada, viram um degrau esculpido - o primeiro de uma longa série que descia a face do penhasco -, perfeitamente
disfarçado pela coloração da pedra de modo que toda a construção se tornasse virtualmente invisível a partir de qualquer outro ângulo.
Régis sentiu vertigens ao olhar, quase assolado pela idéia de descer centenas de metros por uma escadaria estreita sem um corrimão sequer.
- Vamos certamente cair e morrer! - ele disse com um grito estridente, e afastou-se.
Entretanto, mais uma vez, Bruenor dispensou opiniões ou argumentos. Ele começou a descer, e Drizzt e Wulfgar fizeram menção de segui-lo, deixando Régis sem
outra alternativa a não ser acompanhá-los. Entretanto, Drizzt e Wulfgar se solidarizaram com a aflição do halfling e o ajudaram tanto quanto puderam. Wulfgar até
mesmo o ergueu nos braços quando o vento começou a soprar com força.
A descida foi cautelosa e lenta, mesmo com Bruenor na liderança, e horas pareceram passar antes que a rocha do chão do desfiladeiro tivesse se aproximado.
- Quinhentos para a esquerda, depois mais cem - cantou Bruenor, quando eles finalmente chegaram ao fundo. O anão percorreu o paredão em direção ao
sul, contando os passos medidos e conduzindo os demais para além de enormes colunas de pedra, grandes monolitos de uma outra era que, da beirada lá em cima, haviam
parecido meras pilhas de cascalho. Até mesmo Bruenor, cuja gente vivera ali durante muitos séculos, não conhecia nenhuma história que falasse da criação ou do propósito
dos monolitos. Mas, não impor tava o motivo, eles guardavam imponente e silenciosa vigília sobre o fundo do desfiladeiro havia incontáveis séculos, sendo já antigos
antes mesmo da chegada dos anões, e lançavam sombras sinistras que apoucavam os simples mortais que porventura caminhassem por ali.
E as colunas subjugavam o vento a um pranto lúgubre e lamentoso e conferiam a todo o chão a sensação de algo sobrenatural, atemporal como o Forte; impunham
uma noção de mortalidade aos espectadores, como se os monolitos zombassem dos vivos com sua existência imutável.
Bruenor, sem se incomodar com as torres, terminou sua contagem.
"Quinhentos para a esquerda, depois mais cem, As linhas secretas da porta vêem."
Ele estudou o paredão ao seu lado em busca de alguma marca que indicasse a entrada para os salões.
Drizzt também correu as suas mãos sensíveis pela pedra lisa.
- Você tem certeza? - ele perguntou ao anão depois de longos minutos de procura, pois não percebera nenhuma fissura.
- Tenho! - declarou Bruenor. - Meu povo era matreiro com essas coisas e acho que a porta 'tá bem escondida demais prá gente achar fácil.
Régis se aproximou para ajudar, enquanto Wulfgar, nada à vontade sob as sombras dos monolitos, montava guarda lá atrás.
Alguns segundos depois, o bárbaro notou movimento no caminho por onde vieram, na escadaria de pedra. Ele se agachou defensivamente e apertou Garra de Palas
como nunca antes.
- Visitantes - ele disse aos amigos, e o silvo de seu sussurro ecoou nas cercanias como se os monolitos rissem de sua tentativa de discrição.
Drizzt saltou para a coluna mais próxima e começou a dar a volta, usando os olhos semicerrados e petrificados de Wulfgar como guia. Irritado com a interrupção,
Bruenor sacou uma pequena machadinha de seu cinto e posicionou-se, preparado, ao lado do bárbaro, com Régis atrás deles.
Então, eles ouviram Drizzt gritar "Cattiebrie!", e viram-se aliviados e eufóricos demais para pensar no que poderia ter trazido sua amiga desde Dez-Burgos,
ou como ela os encontrara.
Seus sorrisos desapareceram quando a viram, machucada e ensangüentada, cambaleando até eles. Eles correram a encontrá-la, mas o drow, desconfiando que alguém
poderia estar perseguindo a moça, esgueirou-se pelos monolitos e postou-se como atalaia.
- Por que 'cê veio? - Bruenor gritou, agarrando Cattiebrie e abraçando-a. - E quem foi que te machucou? Ele vai sentir as minhas mãos no pescoço!
- E o meu martelo! - acrescentou Wulfgar, enfurecido com a idéia de alguém bater em Cattiebrie.
Régis deixou-se ficar para trás, começando a desconfiar do que acontecera.
- Arnês Mallot e Grollo estão mortos - Cattiebrie contou a Bruenor.
- Na estrada com você? Mas por quê? - perguntou o anão.
- Não, lá em Dez-Burgos - respondeu Cattiebrie. - Um homem, um assassino, estava lá, procurando Régis. Eu persegui ele, tentando chegar até vocês prá
avisar, mas ele me pegou e me arrastou com ele.
Bruenor girou e lançou um olhar furioso para o halfling, que agora estava ainda mais para trás, cabisbaixo.
- Eu sabia que 'cê tinha arrumado encrenca quando alcançou a gente correndo na estrada ainda perto das vilas! - ralhou ele. - O que é isso agora? E
chega das suas mentiras!
- O nome dele é Entreri - Régis admitiu. - Artemis Entreri. Ele veio de Calimporto, mandado pelo Paxá Pûk. - Régis sacou o pingente de rubi. - Atrás
disto.
- Mas ele não está sozinho - acrescentou Cattiebrie. - Magos de Luskan procuram Drizzt.
- Por qual motivo? - disse Drizzt desde as sombras.
Cattiebrie deu de ombros:
- 'Tão tomando muito cuidado prá não dizer, mas acho que estão atrás de respostas sobre Akar Kessell.
Drizzt compreendeu imediatamente. Eles procuravam a Estilha de Cristal, a poderosa relíquia que fora enterrada sob a avalanche no Sepulcro de Kelvin.
- Quantos são? - perguntou Wulfgar. - Estão muito longe?
- Eram três - respondeu Cattiebrie. - O assassino, uma feiticeira e um soldado de Luskan. Tinham um monstro com eles. Um golem, era como chamavam a
coisa, mas eu nunca vi nada como aquilo antes.
- Golem - Drizzt repetiu baixinho. Ele vira muitas daquelas criações na cidade subterrânea dos elfos negros. Monstros de grande poder e lealdade eterna
aos seus criadores. Deviam ser adversários realmente poderosos já que tinham uma dessas criaturas com eles.
- Mas a coisa já era - continuou Cattiebrie. - Ele me perseguiu quando fugi e teria me pegado, sem dúvida, mas eu enganei ele e joguei uma montanha
de pedras na cabeça dele!
Bruenor a abraçou ainda com mais força.
- Muito bem, minha filha - ele murmurou.
- E deixei o soldado e o assassino num combate terrível - prosseguiu Cattiebrie. - Um deles deve estar morto, eu acho, provavelmente o soldado. Uma
pena. Ele era um tipo decente.
- Ele ia era dar de cara com a minha arma por ajudar os canalhas! - retorquiu Bruenor. - Mas chega dessa história; vamos ter tempo prá isso depois.
'Cê 'tá no palácio, garota, sabia? 'Cê vai ver por si mesma os esplendores que eu venho te falando todos esses anos! Então, vá descansar.
Ele se voltou para dizer a Wulfgar que cuidasse dela, mas viu Régis em lugar do bárbaro. O halfling tinha os próprios problemas, trazia a cabeça baixa e imaginava
se teria forçado demais a amizade dos companheiros dessa vez.
- Não tenha medo, meu amigo - disse Wulfgar, vendo também a aflição de Régis. - Você agiu para sobreviver. Não há vergonha nisso. Mas você deveria
ter nos contado sobre o perigo!
- Ah, levanta a cabeça, Ronca-bucho - disse Bruenor, ríspido. - É o que a gente pode esperar de você, seu trapaceiro inútil! Não vá pensando que foi
uma surpresa! - A fúria de Bruenor, uma entidade irada que de certo modo crescia por vontade própria, inflamou-se de repente enquanto ele repreendia o halfling.
- Como se atreve a meter a gente nisto? - ele gritou para Régis, afastando Cattiebrie e avançando um passo. - E com a minha casa bem na minha frente!
Wulfgar bloqueou rapidamente o trajeto de Bruenor até Régis, embora estivesse realmente estupefato diante da súbita alteração no anão. Ele nunca vira Bruenor
tão consumido pela emoção. Cattiebrie também observava, atordoada.
- Não foi culpa do halfling - ela disse. - E os magos teriam vindo de qualquer jeito!
Drizzt retornou naquele momento.
- Ninguém achou a escadaria ainda - ele disse, mas, ao reparar melhor na situação, percebeu que suas palavras não foram ouvidas.
Um longo e desconfortável silêncio baixou sobre eles, então Wulfgar assumiu o comando.
- Chegamos muito longe nessa estrada para discutirmos e lutarmos entre nós! - ele ralhou com Bruenor.
Bruenor olhou estupidamente para o bárbaro, sem saber como reagir à posição atípica que Wulfgar tomara contra ele.
- Ora! - disse o anão, por fim, abrindo os braços de frustração. - O idiota do halfling vai matar a gente... mas tudo bem! - ele resmungou sarcasticamente,
voltando ao paredão para procurar a porta.
Drizzt olhou curiosamente para o anão mal-humorado, mas estava mais preocupado com Régis àquela altura. O halfling, completamente infeliz, havia se deixado
cair sentado e parecia ter perdido todo o desejo de continuar.
- Anime-se - Drizzt disse a ele. - A raiva de Bruenor vai passar. A essência de seus sonhos está diante dele.
- E quanto a esse assassino que quer a sua cabeça... - disse Wulfgar, juntando-se aos dois. - Ele há de encontrar uma tremenda recepção quando chegar
aqui, se o fizer. - Wulfgar afagou a cabeça de seu martelo de guerra. - Talvez possamos fazê-lo mudar de opinião quanto a essa caçada!
- Se conseguirmos entrar nas minas, pode ser que percam nossa trilha - Drizzt disse a Bruenor, tentando abrandar ainda mais a raiva do anão.
- Não vão achar a escadaria - disse Cattiebrie. - Mesmo vendo vocês descerem, foi difícil prá mim encontrar ela!
- Eu preferiria combatê-los agora! - declarou Wulfgar. - Eles têm muito o que explicar e não escaparão ao castigo pelo modo como trataram Cattiebrie!
- Cuidado com o assassino - Cattiebrie o avisou. - As espadas dele são o mesmo que a morte, acredite!
- E um mago pode ser um adversário terrível - acrescentou Drizzt. - Temos uma tarefa muito mais importante diante de nós. Não precisamos enfrentar
agora batalhas inevitáveis.
- Não quero saber de atrasos! - disse Bruenor, abortando a réplica do imenso bárbaro. - O Salão de Mitral está diante de mim e tenho a intenção de
entrar! Eles que sigam a gente, se tiverem coragem - Ele se voltou para o paredão a fim de retomar sua busca pela porta, chamando Drizzt para se juntar a ele. -
Fique de guarda, garoto - ele ordenou a Wulfgar. - E cuide da minha menina.
- Uma palavra mágica de desobstrução, talvez? - perguntou Drizzt quando se viu a sós com Bruenor diante do paredão insosso.
- E - disse Bruenor -, tem uma palavra. Mas a magia dela dura pouco e uma nova palavra precisa ser especificada. Ninguém 'tava aqui prá fazer isso!
- Tente a velha, então.
- Já tentei, elfo, uma dúzia de vezes, assim que a gente chegou aqui. - Ele esmurrou a pedra. - Tem um outro jeito, eu sei - resmungou, frustrado.
- Você vai se lembrar - Drizzt o tranqüilizou. E eles voltaram a inspecionar o paredão.
Mesmo a teimosa determinação de um anão nem sempre compensa, e a noite chegou, encontrando os amigos ainda sentados do lado de fora da entrada, no escuro,
sem coragem de acender uma fogueira, com medo de alertar seus perseguidores. De todas as provações na estrada, a espera tão perto do seu objetivo foi, talvez, a
mais desafiadora. Bruenor começou a duvidar de si mesmo, perguntando-se se aquele era mesmo o local correto para encontrar a porta. Ele recitou repetidas vezes a
canção que aprendera quando criança no Salão de Mitral, à procura de pistas que pudesse ter deixado escapar.
Os outros não dormiram bem, principalmente Cattiebrie, que sabia que a morte silenciosa da faca de um assassino os espreitava. Eles não teriam conseguido
dormir nem um pouco, não fosse pelo fato de saber que os olhos aguçados e sempre vigilantes de um elfo drow velava por eles.
A algumas milhas dali, na trilha que haviam deixado para trás, um acampamento semelhante havia sido montado. Entreri, em silêncio, perscrutava as trilhas
das montanhas orientais em busca de sinais de uma fogueira, apesar de duvidar que os amigos fossem tão descuidados a ponto de fazer fogo caso Cattiebrie os tivesse
encontrado e alertado. Atrás dele, Sidnéia estava envolvida numa manta sobre a pedra fria, descansando e se recuperando do golpe com que Cattiebrie a atingira.
O assassino havia pensado em abandoná-la - normalmente, ele o teria feito sem hesitar -, mas Entreri precisava de algum tempo para reordenar seus pensamentos
e conceber um curso de ação melhor.
A aurora chegou e o encontrou ainda de pé no mesmo lugar, imóvel e contemplativo. Atrás dele, a feiticeira despertava.
- Jierdan! - ela chamou, ainda tonta. Entreri recuou e se agachou ao lado dela.
- Onde está Jierdan? - ela perguntou.
- Morto - Entreri respondeu, sem o menor remorso na voz. - Assim como o golem.
- Bok? - perguntou Sidnéia, boquiaberta.
- Uma montanha caiu sobre ele - Entreri respondeu.
- E a garota?
- Sumiu - Entreri voltou a olhar para o leste. - Depois de cuidar de você, vou embora - ele disse. - Nossa caçada terminou.
- Eles estão tão perto - argumentou Sidnéia. - Vai desistir da sua caçada?
Entreri sorriu.
- O halfling será meu - ele disse tranqüilamente, e Sidnéia não teve dúvida de que ele falava a verdade. - Mas o nosso grupo foi debandado. Eu voltarei
à minha própria caçada e você à sua, embora eu a avise, se você tomar o que é meu, vai assinalar a si mesma como minha próxima vítima.
Sidnéia considerou as palavras cuidadosamente.
- Onde Bok caiu? - ela perguntou, tendo uma idéia repentina. Entreri percorreu com os olhos a trilha em direção ao leste.
- Num vale além do bosque.
- Leve-me até lá - insistiu Sidnéia. - Há algo que precisa ser feito. Entreri a ajudou a ficar de pé e a conduziu pela trilha, imaginando que poderia
deixá-la quando ela tivesse terminado sua última tarefa. Ele começara a respeitar a jovem feiticeira e a dedicação dela ao dever, e confiava que a jovem não iria
enganá-lo. Sidnéia não era um mago, nem páreo para ele, e ambos sabiam que o respeito que ele nutria por ela não o faria vacilar caso ela interferisse.
Sidnéia examinou o declive rochoso por um instante, depois se virou para Entreri com um sorriso perspicaz no rosto.
- Você diz que a nossa demanda conjunta chegou ao fim, mas está errado. Ainda podemos ser de algum valor para você, assassino.
- Nós?
Sidnéia se voltou para o declive.
- Bok! - ela chamou bem alto e manteve o olhar fixo no declive.
Um olhar confuso cruzou o rosto de Entreri. Ele também estudou as pedras, mas não viu sinal de movimento.
- Bok! - Sidnéia chamou novamente e, dessa vez, houve de fato um tremor. Um ruído surdo e prolongado ganhou força sob a camada de matacões, e então
um deles se moveu e foi erguido no ar; o golem estava de pé sob o rochedo e esticava os braços em direção ao céu. Danificado e deformado, mas aparentemente sem dor,
Bok arremessou longe a pedra descomunal e moveu-se em direção à sua senhora.
- Um golem não é destruído com tanta facilidade - Sidnéia explicou, encontrando satisfação na expressão estupefata do rosto normalmente impassível
de Entreri. - Bok ainda tem uma missão a cumprir, uma missão que ele não abandonará tão facilmente.
- Uma missão que mais uma vez nos levará ao drow - Entreri riu. - Venha, minha companheira - ele disse a Sidnéia, - vamos continuar a caçada.
Os amigos ainda não haviam encontrado uma pista quando a aurora chegou. Bruenor estava diante do paredão, declamando em voz alta uma longa seqüência de salmodias
arcanas, a maioria das quais nada tinha a ver com palavras de desobstrução.
Wulfgar adotou uma abordagem diferente. Imaginando que um som oco pudesse ajudá-los a confirmar que haviam chegado ao local correto, ele se movia metodicamente
com o ouvido colado ao paredão, batendo de leve com Garra de Palas. O martelo repicava ao tocar a pedra sólida, cantando, tamanha era sua perfeição artesanal.
Mas um dos golpes não atingiu o alvo. Wulfgar moveu a cabeça do martelo, mas, assim que ela alcançou a pedra, foi detida por uma cortina de luz azul. Wulfgar
saltou para trás, surpreso. Vincos apareceram na pedra, os contornos de uma porta. A rocha continuou a se deslocar e a deslizar para dentro, e logo havia se desligado
do paredão e escorregado para um lado, revelando o vestíbulo do lar dos anões. Uma lufada de ar, aprisionada havia séculos e impregnada com os odores de eras passadas,
escapou para encontrá-los.
- Uma arma mágica! - gritou Bruenor. - A única mercadoria que o meu povo aceitava nas minas!
- Quando chegavam aqui, os visitantes entravam batendo à porta com uma arma mágica? - perguntou Drizzt.
O anão assentiu, apesar de sua atenção agora se concentrar totalmente na obscuridade além do paredão. A câmara diretamente diante deles não estava iluminada,
exceto pela luz do dia que atravessava a porta aberta, mas, do outro lado de um corredor atrás do vestíbulo, eles enxergavam o bruxulear de tochas.
- Há alguém aqui - disse Régis.
- Não - respondeu Bruenor, muitas das lembranças do Salão de Mitral, havia tanto tempo esquecidas, agora afloravam em sua memória. - As tochas ardem
pela eternidade, pela vida de um anão ou mais - Ele atravessou o portal, chutando o pó que se depositara, intocado, durante duzentos anos.
Seus amigos lhe concederam um momento de solidão, depois solenemente se juntaram a ele. Por toda a câmara jaziam os restos de muitos anões. Uma batalha fora
travada ali, a batalha final do clã de Bruenor antes que fossem expulsos do seu lar.
- Por estes olhos que são meus, as histórias são verdadeiras - murmurou o anão. Ele se voltou para os amigos a fim de se explicar. - Os rumores que
alcançaram Assento de Pedra depois que eu e os anões mais jovens lá chegamos falavam de uma grande batalha no vestíbulo. Alguns voltaram para ver se os rumores eram
verdadeiros, mas nunca retornaram.
Bruenor se calou e, seguindo-lhe o exemplo, os companheiros começaram a inspecionar o lugar. Esqueletos de anões jaziam por todo o lado nas mesmas posições
e lugares onde haviam tombado. Armaduras de mitral, embaciadas pelo pó, mas não enferrujadas, esperando apenas um roçar da mão para que brilhassem novamente, distinguiam
claramente os mortos do Clã Martelo de Batalha. Outros mortos misturavam-se aos primeiros, esqueletos semelhantes que envergavam uma malha de confecção estranha,
como se a luta houvesse lançado anões contra anões.
Era uma charada impossível para os habitantes da superfície, mas Drizzt Do'Urden compreendeu. Na cidade dos elfos negros, ele conhecera como aliados os duergar,
os malignos anões cinzentos. Os duergar eram anões equivalentes aos drow e, caso seus primos da superfície às vezes escavassem fundo demais a terra e atingissem
o território reclamado pelos anões cinzentos, o ódio entre as raças de anões era ainda mais intenso que o conflito entre as raças de elfos. Os esqueletos dos duergar
explicavam muita coisa a Drizzt, e a Bruenor, que também reconheceu as armaduras estranhas, e que pela primeira vez compreendeu o que havia expulsado sua gente do
Salão de Mitral. Drizzt sabia que, se os cinzentos ainda estivessem nas minas, Bruenor teria dificuldades para reclamar o lugar.
A porta mágica se fechou atrás deles, escurecendo ainda mais a câmara. Cattiebrie e Wulfgar se aproximaram para proteger um ao outro, os olhos fracos na obscuridade,
mas Régis corria de um lado para outro, em busca de pedras preciosas e outros tesouros que um esqueleto anão viesse a possuir.
Bruenor também vira algo interessante. Ele se aproximou de dois esqueletos que jaziam de costas um para o outro. Uma pilha de anões cinzentos havia tombado
ao redor deles, e só aquilo já revelara a Bruenor a identidade dos dois, mesmo antes de ver o brasão da caneca espumante sobre seus escudos.
Drizzt estava logo atrás dele, mas manteve uma distância respeitável.
- Bangor, meu pai - Bruenor explicou. - E Garumn, o pai de meu pai, Rei do Salão de Mitral. Por certo que eles cobraram seu tributo antes de tombar!
- Tão poderosos quanto o seu sucessor - observou Drizzt.
Bruenor aceitou o elogio em silêncio e curvou-se para tirar o pó do elmo de Garumn.
- Garumn ainda traz a armadura e as armas de Bruenor, meu xará e o herói do meu clã. Meu palpite é que eles amaldiçoaram este lugar ao morrer - disse
ele -, pois os cinzentos não voltaram para a pilhagem.
Drizzt concordou com a explicação, conhecedor do poder da maldição de um rei quando sua pátria é tomada.
Reverentemente, Bruenor ergueu os restos de Garumn e os carregou para uma câmara adjacente. Drizzt não o seguiu, permitindo ao anão alguma privacidade naquele
momento. Drizzt retornou para Cattiebrie e Wulfgar a fim de ajudá-los a compreender a importância daquela cena.
Eles esperaram pacientemente durante vários minutos, imaginando o curso da batalha épica que ali tivera lugar, e suas mentes ouviam claramente os sons dos
machados nos escudos e os bravos gritos de guerra do Clã Martelo de Batalha.
Então, Bruenor retornou, e mesmo as poderosas imagens que as mentes dos amigos haviam produzido desabaram diante da visão que se lhes apresentou. Régis deixou
cair as poucas quinquilharias que encontrara, completamente assombrado, temendo que um fantasma do passado houvesse retornado para impedi-lo.
Abandonado estava o escudo castigado de Bruenor. O elmo amassado, e com um só chifre restante, achava-se amarrado à sua mochila. Ele envergava a armadura
de seu homônimo, o mitral reluzente, a insígnia da caneca sobre o escudo de ouro sólido, e o elmo circundado por milhares de jóias cintilantes.
- Por estes olhos que são meus, proclamo que as lendas são verdadeiras - ele gritou audaciosamente, erguendo o machado de mitral bem acima da
cabeça. - Garumn está morto e meu pai também. Portanto, reivindico o meu título: Oitavo Rei do Salão de Mitral!

18. SOMBRAS

- A Garganta de Garumn - disse Bruenor, traçando uma linha pelo mapa rudimentar que ele rabiscara no chão. Muito embora tivessem passado os efeitos da poção
de Alustriel, o simples fato de pôr os pés no lar de sua juventude reacendera um grande número de lembranças no anão. A exata localização de cada um dos salões não
era clara, mas ele tinha uma idéia geral do plano global do lugar. Os outros se acotovelavam perto dele, esforçando-se para enxergar os traços sob a luz bruxuleante
da tocha que Wulfgar removera do corredor.
- A gente pode sair do outro lado - continuou Bruenor. - Tem uma porta, que abre prum lado e só prá sair, depois da ponte.
- Sair? - perguntou Wulfgar.
- Nosso objetivo era encontrar o Salão de Mitral - respondeu Drizzt, tentando o mesmo argumento que usara com Bruenor antes da reunião. - Se as forças
que derrotaram o Clã Martelo de Batalha ainda estiverem aqui, reclamar o lugar seria uma tarefa impossível para nós poucos. Devemos tomar cuidado para que o conhecimento
da localização do palácio não morra aqui conosco.
- Minha intenção é descobrir o que a gente vai ter que encarar - acrescentou Bruenor. - A gente bem que podia voltar pela porta que entrou; é fácil
de abrir pelo lado de dentro. Minha idéia é atravessar o nível superior e dar uma olhada no lugar. Preciso saber o quanto sobrou antes de chamar minha gente lá no
vale, e outros, se for necessário. - Lançou a Drizzt um olhar sarcástico.
Drizzt desconfiava que Bruenor tinha algo mais em mente do que "dar uma olhada no lugar", mas permaneceu calado, satisfeito por terem suas preocupações chegado
até o anão e pelo fato de que a inesperada presença de Cattiebrie moderaria com cautela todas as decisões de Bruenor.
- Você vai voltar, então - inferiu Wulfgar.
- E com um exército atrás de mim! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele olhou para Cattiebrie e um pouco daquela ânsia abandonou seus olhos escuros.
Ela o compreendeu imediatamente.
- Não se contenha por minha causa, não! - ralhou. - Lutar ao seu lado, já lutei, e me saí bem! Eu não queria pegar esta estrada, mas ela me encontrou
e agora eu 'tô aqui com você, até o fim!
Depois de muitos anos treinando Cattiebrie, Bruenor não poderia agora discordar da decisão dela em seguir o caminho que escolhera. Olhou ao redor, para os
esqueletos na sala.
- Arrume armas e armadura então, e vamos embora... Se todos estiverem de acordo.
- A escolha é sua - disse Drizzt. - Pois é sua a busca. Caminhamos ao seu lado, mas não podemos dizer a você qual caminho tomar.
Bruenor sorriu diante da ironia da declaração. Notou um ligeiro lampejo nos olhos do drow, um sinal da sua costumeira centelha de emoção. Talvez o gosto pela
aventura não estivesse completamente extinto em Drizzt.
- Eu irei - disse Wulfgar. - Não andei tanto para voltar depois de encontrada a porta!
Régis nada disse. Ele sabia que fora apanhado no remoinho da emoção dos amigos, não importavam os próprios sentimentos. Afagou a pequena bolsa de quinquilharias
recém-adquiridas em seu cinto e pensou nas novas aquisições que logo encontraria se aqueles salões fossem verdadeiramente tão esplêndidos quanto Bruenor sempre dissera.
Sentiu honestamente que preferiria atravessar os nove infernos ao lado de seus formidáveis amigos a voltar lá fora e enfrentar Artemis Entreri sozinho.
Assim que Cattiebrie se equipou, seguiram adiante com Bruenor na liderança. Ele marchava orgulhosamente, vestindo a armadura reluzente de seu avô, o machado
de mitral gingava ao seu lado e a coroa do rei continuava firme sobre sua cabeça.
- Rumo à Garganta de Garumn! - ele gritou assim que deixaram o vestíbulo. - Lá a gente decide sair ou descer. Ah, as glórias que esperam por nós, meus
amigos. Tomara que eu leve vocês até elas sem problemas desta vez!
Wulfgar marchava ao lado dele, com Garra de Palas numa das mãos e a tocha na outra. Ele ostentava a mesma expressão soturna, porém ansiosa. Cattiebrie e Régis
eram os próximos, menos ansiosos e mais cautelosos, mas aceitando a inevitabilidade da jornada e determinados a tirar o melhor partido dela.
Drizzt seguia pelos lados, às vezes à frente deles, às vezes atrás, raramente visto e jamais ouvido, apesar de sua presença reconfortante fazer com que todos
seguissem mais tranqüilos pelo corredor.
Os corredores não eram lisos nem planos, como geralmente era o caso nas construções de anões. Alcovas se projetavam a intervalos dos dois lados, algumas
delas pouco profundas, mas outras desapareciam na escuridão para se unir a redes inteiras de corredores. As paredes por todo o caminho eram lascadas, com bordas
salientes e nichos escavados, projetados para realçar o efeito espectral das tochas perenes. Era um lugar de mistério e segredo, onde os anões podiam criar suas
melhores obras numa atmosfera de isolamento protetor.
Aquele nível era também quase um labirinto. Nenhum forasteiro teria sido capaz de encontrar o caminho correto por aquela série interminável de bifurcações,
intersecções e inúmeras passagens. Até mesmo Bruenor, auxiliado pelas imagens dispersas de sua infância e uma compreensão da lógica que orientara os mineradores
anões que haviam criado o lugar, errava com mais freqüência do que acertava e passava tanto tempo retrocedendo quanto avançando.
No entanto, havia algo de que Bruenor se lembrava.
- Cuidado onde pisam - ele advertiu os amigos. - Todo este nível em que a gente 'tá andando foi preparado prá defender os salões, e uma armadilha de
pedras mandaria vocês lá prá baixo rapidinho!
Ao longo de todo o primeiro trecho percorrido naquele dia, encontraram câmaras mais amplas, a maioria delas simples e aprumadas imperfeitamente, sem qualquer
sinal de que fossem habitadas.
- Salas de guarda e quartos de hóspedes - Bruenor explicou. - A maio ria prá Elmor e sua gente de Assento de Pedra quando eles vinham pegar os artigos
pro mercado.
Foram ainda mais fundo. Um silêncio opressivo os envolveu; os únicos sons eram os passos e o crepitar ocasional de uma tocha, e mesmo esses pareciam abafados
no ar estagnado. Para Drizzt e Bruenor, o ambiente apenas realçava as lembranças da juventude passada sob a superfície, mas, para os outros três, o abafamento e
a percepção de que havia toneladas de pedra sobre suas cabeças constituíam uma experiência completamente estranha e bastante desconfortável.
Drizzt se esgueirava de uma alcova a outra, tomando o cuidado adicional de testar o chão antes de entrar. Numa depressão rasa, sentiu algo lhe roçar a perna
e, com uma inspeção mais de perto, encontrou uma ligeira corrente de ar que passava através de uma fissura na base da parede. Ele chamou os amigos.
Bruenor se abaixou e cofiou a barba, compreendendo imediatamente o significado daquela brisa, pois o ar era quente, e não fresco como deveria ser uma corrente
vinda de fora. Ele removeu uma luva e sentiu a pedra.
- As fornalhas - murmurou para si mesmo tanto quanto para os amigos.
- Então há alguém lá embaixo - concluiu Drizzt.
Bruenor não respondeu. Era uma vibração sutil no solo mas, para um anão tão afeito à pedra, a mensagem chegou tão clara como se o chão tivesse falado com
ele: o ranger de blocos deslizando lá embaixo, a maquinaria das minas.
Bruenor desviou o olhar e tentou reorganizar seus pensamentos, pois ele quase se convencera - e quase alimentara a esperança - de que nenhum grupo organizado
ocupava as minas e estas poderiam ser facilmente tomadas. Mas, se as fornalhas ardiam, suas esperanças eram desfeitas.
- Vá até eles. Mostre-lhes a escada - ordenou Dendibar.
Morkai estudou o mago por um bom tempo. Ele sabia que poderia se libertar do domínio cada vez mais fraco de Dendibar e desobedecer à ordem. Na verdade, Morkai
ficou pasmo por ter Dendibar ousado convocá-lo novamente tão cedo, pois a força do mago obviamente ainda não retornara. O mago variegado ainda não chegara à exaustão,
quando Morkai poderia revidar, mas Dendibar realmente perdera boa parte de seu poder de obrigar o espectro a cumprir ordens.
Morkai decidiu obedecer àquela ordem. Desejava continuar aquele joguinho com Dendibar tanto quanto possível. Dendibar estava obcecado por encontrar o drow
e, sem dúvida, recorreria a Morkai mais uma vez, e em breve. Talvez, então, o mago variegado estivesse ainda mais fraco.
- E como vamos descer? - Entreri perguntou a Sidnéia. Bok os conduzira até a orla do Vale do Guardião, mas agora eles se encontravam diante da ver
tente íngreme.
Sidnéia olhou para Bok em busca de uma resposta, e o golem prontamente fez menção de ultrapassar a beirada. Se ela não o impedisse, ele teria despencado do
penhasco. A jovem feiticeira se voltou para Entreri com um impotente encolher de ombros.
Viram, então, uma mancha de fogo tremeluzente, e o espectro, Morkai, apareceu mais uma vez diante deles.
- Venham - disse ele. - Tenho ordens para mostrar a vocês o caminho.
Sem mais uma palavra, Morkai os levou à escada secreta, depois desvaneceu nas chamas e sumiu.
- Seu mestre é de muita ajuda - observou Entreri ao pisar no primeiro degrau.
Sidnéia sorriu, disfarçando os seus temores.
- Quatro vezes, pelo menos - ela murmurou consigo mesma, computando as ocasiões em que Dendibar invocara o espectro. A cada vez, Morkai parecera mais
relaxado na execução da missão designada. A cada vez, Morkai parecera mais poderoso. Sidnéia se aproximou da escada, atrás de Entreri. Ela esperava que Dendibar
não recorresse novamente ao espectro, pelo bem de todos eles.
Quando desceram até o chão da garganta, Bok os conduziu diretamente até o paredão e à porta secreta. Como se compreendesse a barreira diante de si, a coisa
se colocou pacientemente de lado, esperando novas instruções da feiticeira.
Entreri correu os dedos pela rocha lisa, o rosto colado ao paredão enquanto tentava distinguir qualquer rachadura substancial naquela superfície.
- Está perdendo tempo - observou Sidnéia. - A porta é obra dos anões e não será descoberta com uma inspeção desse tipo.
- Se é que há uma porta - replicou o assassino.
- Há, sim - tranqüilizou-o Sidnéia. - Bok seguiu a trilha do drow até este ponto e sabe que ela continua do outro lado da parede. Eles jamais conseguiriam
desviar o golem da senda correta.
- Então abra a sua porta - Entreri escarneceu. - Eles se afastam cada vez mais de nós a cada instante!
Sidnéia inspirou fundo, buscando tranqüilidade, e esfregou as mãos uma na outra, nervosa. Era a primeira vez desde que deixara a Torre das Hostes que ela
encontrava a oportunidade de usar os seus poderes mágicos, e a energia adicional do encantamento formigava dentro dela, tentando se libertar.
Ela executou uma série de gestos distintos e precisos, murmurou vários versos de palavras arcanas, depois ordenou - Bausin, sauminel - e atirou as mãos à
frente, em direção à porta.
O cinto de Entreri imediatamente se desafivelou, fazendo cair ao chão o sabre e o punhal.
- Muito bom - ele comentou sarcasticamente, recuperando as armas.
Sidnéia olhou para a porta, perplexa.
- Resistiu ao meu encantamento - ela disse, observando o óbvio. - Era de se esperar de uma porta construída pelos anões. Os anões mesmo utilizam pouca
magia, mas sua capacidade de resistir aos encantamentos de outras pessoas é considerável.
- Para que lado agora? - sibilou Entreri. - Haveria uma outra entrada, talvez?
- Esta é a nossa porta - insistiu Sidnéia. Ela se voltou para Bok e disse, ríspida - Arrebente-a! - Entreri saltou para longe quando o golem se aproximou
do paredão.
Com suas grandes mãos a esmurrar como aríetes, Bok golpeou o paredão, vez após vez, indiferente ao dano à sua própria carne. Durante vários segundos, nada
aconteceu, e só se ouvia o baque surdo dos punhos que socavam a pedra.
Sidnéia era paciente. Ela silenciou a tentativa de Entreri de questionar a ação que empreendiam e assistiu ao trabalho do inexorável golem. Uma rachadura
apareceu na pedra, e depois outra. Bok desconhecia o cansaço, seu ritmo não diminuiu.
Revelaram-se mais rachaduras, depois o contorno nítido da porta. Entreri estreitou os olhos de expectativa.
Com um último murro, Bok atravessou a porta com a mão, fazendo-a em pedaços e reduzindo-a a uma pilha de pedras fragmentadas.
Pela segunda vez naquele dia, a segunda vez em quase duzentos anos, o vestíbulo do Salão de Mitral foi banhado pela luz do dia.
- O que foi isso? - Régis murmurou depois que os ecos das batidas finalmente se extinguiram.
Para Drizzt, não era difícil imaginar, embora fosse impossível distinguir de onde provinham as batidas, já que o som chegava até eles depois de ecoar pelas
paredes de rocha nua em todas as direções.
Cattiebrie também tinha suas suspeitas, lembrando-se perfeitamente bem da muralha de Lua Argêntea em pedaços.
Nenhum deles disse uma palavra a mais sobre o fato. Na situação de perigo constante em que se encontravam, os ecos de uma potencial e distante ameaça não
os estimulavam a agir. Seguiram em frente como se nada tivessem ouvido, exceto que agora caminhavam com ainda mais cautela e o drow se mantinha mais na retaguarda
do grupo.
Em algum lugar no fundo de sua mente, Bruenor sentiu o perigo que se congregava ao redor deles, observando-os, pronto para atacar. Não havia como ter certeza
se seus temores eram justificados ou se eram meramente uma reação ao fato de saber que as minas estavam ocupadas e às lembranças agora reacesas do dia terrível em
que seu clã fora expulso.
Ele avançava, pois aquela era sua terra natal e ele não a entregaria de novo.
Numa secção protuberante da passagem, as sombras se alongaram, gerando uma obscuridade mais penetrante e móvel.
Uma delas se esticou e agarrou Wulfgar.
Uma pontada de frio mortal fez o bárbaro estremecer. Atrás dele, Régis gritou e, de repente, manchas de escuridão em movimento dançavam ao redor dos quatro.
Wulfgar, atordoado demais para reagir, foi atingido mais uma vez. Cattiebrie correu para o lado dele, golpeando a escuridão com a espada curta que recolhera
no vestíbulo. Ela sentiu uma ligeira pontada quando a lâmina atravessou as trevas, como se ela tivesse acertado algo que, de algum modo, não estava completamente
ali. Não tinha tempo para considerar a natureza de seu estranho adversário e continuou golpeando sem cessar.
Do outro lado do corredor, os ataques de Bruenor eram ainda mais desesperados. Vários braços negros se esticaram para atacar o anão simultaneamente, e suas
furiosas investidas não conseguiam atingir o alvo com suficiente firmeza para rechaçá-los. Vez após outra, ele sentiu a frialdade ardente das trevas que o agarravam.
O primeiro instinto de Wulfgar ao se recuperar foi golpear com Garra de Palas, mas reconhecendo-lhe a intenção, Cattiebrie o deteve com um berro.
- A tocha! - ela gritou. - Use a luz contra a escuridão!
Wulfgar enfiou a chama no meio das sombras. Formas escuras se encolheram imediatamente, fugindo da luminosidade reveladora. Wulfgar fez menção de persegui-las
e afastá-las ainda mais, mas tropeçou no halfling, que se encolhera de medo, e caiu sobre a pedra.
Cattiebrie apanhou a tocha e brandiu-a furiosamente para manter os monstros à distância.
Drizzt conhecia aqueles monstros. Aquelas coisas eram lugar-comum nos reinos dos drow e mesmo aliados de seu povo às vezes. Recorrendo novamente aos poderes
de sua raça, ele conjurou chamas mágicas para delinear as formas escuras, depois correu a se juntar à luta.
Os monstros pareciam humanóides, como pareceriam sombras de homens, apesar de seus contornos mudarem constantemente e se misturarem à obscuridade em volta
deles. Estavam em maior número, mas seu maior aliado, o encobrimento da escuridão, fora roubado pelas chamas do drow. Sem o disfarce, as sombras vivas tinham pouca
defesa contra os ataques do grupo e elas rapidamente fugiram através de rachaduras na rocha.
Os companheiros tampouco perderam mais tempo naquela área. Wulfgar ergueu Régis do solo e seguiu Bruenor e Cattiebrie, que corriam pela passagem, ficando
Drizzt para trás a fim de cobrir a retirada.
Eles passaram por muitas curvas e vários salões antes que Bruenor ousasse reduzir o passo. Perguntas perturbadoras novamente adejavam pelos pensamentos do
anão, preocupações concernentes a todo o seu sonho de reclamar o Salão de Mitral e até mesmo quanto à irresponsabilidade de trazer seus mais caros amigos ao lugar.
Ele agora olhava para cada sombra com terror, esperando um monstro a cada curva.
Ainda mais discreta foi a alteração emocional experimentada pelo anão. Vinha se desenvolvendo no subconsciente de Bruenor como uma infecção desde que ele
sentira as vibrações no chão, e agora, a luta com os monstros leitos de trevas havia forçado seu remate. Bruenor aceitava o fato de que não mais se sentia como se
tivesse voltado para casa, apesar de toda a sua gabolice inicial. Suas lembranças do lugar, boas lembranças da prosperidade do seu povo nos primeiros tempos, pareciam
distantes da aura terrível que agora cercava a fortaleza. Tanto fora roubado, a começar pelas sombras das tochas perenes. Outrora representantes de seu deus, Dumathoin,
o Guardião dos Segredos, as sombras agora meramente abrigavam os habitantes das trevas.
Todos os companheiros de Bruenor perceberam a decepção e a frustração que ele sentia. Wulfgar e Drizzt, imaginando que isso pudesse acontecer antes mesmo
que tivessem entrado no lugar, compreendiam-no melhor do que os demais e estavam agora ainda mais preocupados. Se, como a criação de Garra de Palas, o retorno ao
Salão de Mitral representasse um apogeu na vida de Bruenor - e tal reação já os preocupava presumindo-se o sucesso da demanda - quão esmagador seria o golpe caso
a jornada se revelasse catastrófica?
Bruenor se obrigava a seguir em frente, a visão focalizada no caminho para a Garganta de Garumn e a saída. Na estrada, durante aquelas longas semanas, e quando
ele entrara pela primeira vez nos salões, o anão tivera toda a intenção de ficar até ter retomado tudo o que era seu por direito, mas agora todos os seus sentidos
gritavam para que ele abandonasse o lugar e não retornasse.
Sentiu que devia ao menos atravessar o nível superior, por respeito ao seu povo morto havia tanto tempo e por seus amigos, que tanto haviam se arriscado ao
acompanhá-lo tão longe. E ele esperava que a repulsa que sentia por seu antigo lar passasse, ou pelo menos que conseguisse encontrar algum vislumbre de luz na negra
mortalha que envolvia os salões. Sentindo o machado e o escudo de seu heróico homônimo se aquecerem em suas mãos, ele enrijeceu o queixo barbado e seguiu adiante.
A passagem declinava, com um número menor de salas e corredores laterais. Correntes de ar quente ascendiam por toda a seção, um tormento constante para o
anão, pois o lembrava do que jazia lá embaixo. Entretanto, as sombras ali eram menos imponentes, já que as paredes eram mais lisas e retas. Depois de uma curva acentuada,
eles chegaram a uma grande porta de pedra cuja laje única bloqueava todo o corredor.
- Uma câmara? - perguntou Wulfgar, agarrando a pesada armela.
Bruenor chacoalhou a cabeça, incerto quanto ao que se achava do outro lado. Wulfgar abriu a porta, revelando outro trecho vazio de corredor que terminava
numa porta igualmente desprovida de sinais.
- Dez portas - comentou Bruenor, lembrando-se mais uma vez do lugar. - Dez portas no declive - ele explicou. - Cada uma delas com uma tranca atrás.
- Ele passou um braço por dentro do portal e abaixou um pesado bastão de metal, articulado numa extremidade para que pudesse ser facilmente baixado transversalmente
às travas na porta. - E depois dessas dez, mais dez subindo, e cada uma com uma tranca do outro lado.
- De modo que, se vocês 'tivessem fugindo de um inimigo, descendo ou subindo, cês trancariam as portas ao passar por elas - concluiu Cattiebrie. -
Encontrando no meio com sua gente vinda do outro lado.
- E entre as portas centrais, uma passagem para os níveis inferiores - acrescentou Drizzt, compreendendo a lógica simples mas eficiente por trás
da estrutura defensiva.
- Tem um alçapão no chão - confirmou Bruenor.
- Um lugar para descansarmos, talvez - disse o drow.
Bruenor assentiu e pôs-se novamente a caminho. Suas recordações se revelaram precisas e, alguns minutos depois, eles atravessavam a décima porta e entravam
numa sala pequena e oval, de frente para uma porta com a tranca do lado deles. Bem no meio da sala havia um alçapão, fechado durante muitos anos, aparentemente,
e também acompanhado de uma barra para trancá-lo. Em todo o perímetro da sala surgiam as familiares alcovas escurecidas.
Depois de uma rápida inspeção para garantir que a sala era segura, eles trancaram as saídas e começaram a se livrar de um pouco do pesado equipamento, pois
o calor se tornara opressivo e o abafamento do ar estagnado pesava sobre eles.
- A gente chegou ao centro do nível superior - Bruenor disse, distraído. - Amanhã a gente vai encontrar a garganta.
- E então, para onde? - perguntou Wulfgar, e o espírito aventureiro dentro dele ainda nutria esperança de mergulhar mais fundo nas minas.
- Para fora, ou para baixo - respondeu Drizzt, enfatizando a primeira opção o bastante para fazer o bárbaro compreender que a segunda era improvável.
- Saberemos quando chegarmos lá.
Wulfgar estudou seu amigo negro em busca de alguma indicação do espírito aventureiro que ele viera a conhecer, mas Drizzt parecia quase tão resignado a partir
quanto Bruenor. Algo naquele lugar havia dispersado a verve normalmente incontrolável do drow. Wulfgar podia apenas especular que Drizzt também lutava contra lembranças
desagradáveis de seu passado num lugar igualmente escuro.
O perceptivo jovem bárbaro estava correto. As lembranças de sua vida no mundo subterrâneo haviam realmente fomentado no drow esperanças de que eles pudessem
deixar o Salão de Mitral em breve, mas não devido a uma convulsão emocional que ele porventura sentisse por retornar ao domínio de sua infância. O que Drizzt agora
recordava agudamente a respeito de Menzoberranzan eram as coisas escuras que viviam em tocas escuras sob a terra. Sentia-lhes a presença ali nos antigos salões dos
anões, horrores além da imaginação dos habitantes da superfície. Não se preocupava consigo mesmo. Com sua herança drow, ele era capaz de enfrentar esses monstros
em pé de igualdade. Mas seus amigos, exceto talvez pelo experiente anão, estariam numa infeliz desvantagem, mal equipados para combater os monstros que certamente
enfrentariam caso permanecessem nas minas.
E Drizzt sabia que eram vigiados.
Entreri se aproximou sorrateiramente e colou o ouvido à porta, como fizera outras nove vezes. Dessa vez, o clangor de um escudo sendo largado na pedra fez
com que um sorriso se insinuasse em seu rosto. Voltou-se para Bok e Sidnéia e meneou a cabeça.
Ele finalmente apanhara sua presa.
A porta pela qual haviam entrado estremeceu com o peso de um golpe inacreditável. Os companheiros, recém-acomodados depois da longa marcha, olharam para trás,
assombrados e horrorizados, exatamente quando baixava o segundo golpe e a pesada pedra se partia, desfazendo-se. O golem entrou com estardalhaço na sala oval, arremessando
Régis e Cattiebrie longe com um pontapé antes que conseguissem sequer alcançar as armas.
O monstro poderia ter esmagado os dois ali mesmo, mas seu alvo, a meta que magnetizava todos os seus sentidos, era Drizzt Do'Urden. Passou correndo pelos
dois no meio da sala para localizar o drow.
Drizzt não ficara tão surpreso, escondeu-se nas sombras num dos lados da sala e agora dirigia-se à porta despedaçada para defendê-la contra outros invasores.
Contudo, ele não poderia se esconder da capacidade mágica de detecção que Dendibar conferira ao golem, e Bok voltou-se para ele quase imediatamente.
Wulfgar e Bruenor arrostaram o monstro de frente.
Entreri entrou na câmara logo atrás de Bok, usando a comoção provocada pelo golem para passar pela porta sem ser notado e ocultar-se nas sombras de uma maneira
surpreendentemente semelhante à do drow. Quando se aproximaram do ponto médio da parede da sala oval, cada um deles encontrou uma sombra tão similar à sua própria
que foi obrigado a se deter e avaliá-la antes de se envolver em combate.
- Então, finalmente encontro Drizzt Do'Urden - sibilou Entreri.
- Estou em desvantagem - replicou Drizzt -, pois nada sei sobre você.
- Ah, mas vai saber, elfo negro - disse o assassino, gargalhando. Num movimento indistinto, os dois se aproximaram, o sabre cruel e o punhal ajaezado
de Entreri igualando a velocidade das cimitarras sibilantes de Drizzt.
Wulfgar usou o martelo no golem com toda a sua força, e o monstro, distraído pela perseguição ao drow, sequer esboçou uma defesa. Garra de Palas o fez recuar,
mas a coisa pareceu não notar e partiu novamente em direção à sua presa. Bruenor e Wulfgar entreolharam-se, incrédulos, e lançaram-se sobre a coisa mais uma vez,
golpeando com martelo e machado.
Régis estava imóvel contra a parede, atordoado pelo golpe do pesado pé de Bok. Cattiebrie, porém, estava apoiada num joelho, a espada na mão. O espetáculo
de graça e habilidade dos combatentes junto à parede a paralisou por um instante.
Sidnéia, do lado de fora da porta, achava-se igualmente distraída, pois o combate entre o elfo negro e Entreri era diferente de tudo o que jamais vira: dois
mestres espadachins entrelaçando as armas e defendendo-se em absoluta harmonia.
Um antecipava exatamente os movimentos do outro, respondendo aos contragolpes um do outro, para frente e para trás numa batalha que dava sinais de que não
teria vencedor. Um parecia o reflexo do outro e a única coisa que mantinha os espectadores cientes da realidade do conflito era o clangor constante de aço contra
aço, quando a cimitarra e o sabre se juntavam e retiniam. Eles entravam e saíam das sombras, à procura de alguma pequena vantagem numa luta de iguais. Então, adentraram
a escuridão de uma das alcovas.
Assim que desapareceram de vista, Sidnéia recordou seu papel na batalha. Sem mais delongas, ela sacou uma varinha fina do cinto e mirou o bárbaro e o anão.
Por mais que tivesse adorado assistir à luta entre Entreri e o elfo negro até o fim, seu dever lhe dizia para liberar o golem e deixá-lo cuidar rapidamente do drow.
Wulfgar e Bruenor derrubaram Bok, pois o anão se abaixara entre as pernas do monstro e Wulfgar atingira a coisa com seu martelo, fazendo Bok tombar sobre
o anão.
A vantagem deles durou pouco. O raio de energia de Sidnéia os atingiu em cheio, e a força do disparo arremessou Wulfgar para trás. Ele rolou até ficar de
pé junto à porta do outro lado, com o gibão de couro chamuscado e fumegante, e todo o seu corpo formigava em conseqüência do choque.
Bruenor foi atirado ao chão e ali ficou por um bom tempo. Não estava muito ferido - os anões são tão duros quanto a rocha das montanhas e especialmente resistentes
à magia -, mas um estrondo específico que ele ouviu enquanto sua orelha se achava contra o chão exigia agora sua atenção. Ele se lembrava vagamente daquele som de
sua infância, mas não foi capaz de localizar-lhe a origem exata.
Sabia, porém, que aquilo pressagiava o fim.
O tremor aumentou ao redor deles, fazendo estremecer a câmara, mesmo enquanto Bruenor erguia a cabeça. O anão compreendeu. Olhou, impotente, para Drizzt e
berrou "Cuidado, elfo!" um segundo antes da armadilha ser disparada e parte do chão da alcova desaparecer.
A poeira foi tudo o que emergiu de onde o drow e o assassino haviam estado. O tempo pareceu congelar para Bruenor, fixado naquele terrível momento. Um bloco
pesado caiu do teto da alcova, roubando a última das fúteis esperanças do anão.
O disparo da armadilha de pedra só fez multiplicar os violentos tremores na câmara. As paredes racharam, fragmentos de pedra se soltaram do teto. De uma
das portas, Sidnéia gritou por Bok, enquanto na outra, Wulfgar atirava longe a tranca e berrava por seus amigos.
Cattiebrie ficou de pé num salto e correu até o halfling caído. Ela o arrastou pelos tornozelos em direção à porta distante, chamando Bruenor para ajudá-la.
Mas o anão estava perdido naquele momento, fitando com olhar vago as ruínas da alcova.
Uma vasta rachadura abriu o chão da câmara, ameaçando cortar-lhes a rota de fuga. Cattiebrie rilhou os dentes de determinação e correu, chegando à segurança
do corredor. Wulfgar gritou para o anão e até mesmo fez menção de ir até ele.
Então, Bruenor se levantou e foi em direção a eles - lentamente, cabisbaixo, quase torcendo, em seu desespero, para que uma rachadura se abrisse sob os seus
pés e o tragasse num buraco escuro.
E desse fim ao seu intolerável pesar.

19. FIM DE UM SONHO

Quando os últimos tremores do desabamento finalmente se extinguiram, os quatro amigos remanescentes abriram caminho pelos escombros e pelo véu de poeira,
de volta à câmara oval. Indiferente às pilhas de pedras fragmentadas e às imensas rachaduras no chão que ameaçavam tragá-lo, Bruenor entrou correndo na alcova, com
os demais logo em seus calcanhares.
Não havia sangue nem qualquer outro sinal dos dois mestres espadachins, apenas o monte de pedras que cobria o buraco da armadilha. Bruenor enxergava os limites
da escuridão sob a pilha e chamou por Drizzt. Sua razão lhe dizia, malgrado seu coração e suas esperanças, que o drow não ouviria, que a armadilha havia lhe roubado
Drizzt.
A lágrima que marejava um de seus olhos deslizou por sua face quando ele avistou a cimitarra solitária, a espada mágica que Drizzt recolhera do covil de um
dragão, a repousar sobre as ruínas da alcova. Solenemente, ele a apanhou e a enfiou no cinto.
- Pobre elfo - chorou ele, em meio à destruição. - 'Cê merecia um fim melhor.
Se não estivessem tão envolvidos em suas própria reflexões naquele momento, os demais teriam reparado no laivo irado do lamento de Bruenor. Em face da perda
de seu mais caro e confiável amigo, e já questionando o bom senso de continuar a atravessar os salões antes mesmo da tragédia, Bruenor descobriu seu pesar embaralhado
com sentimentos de culpa ainda mais fortes. Ele não conseguiria escapar ao papel que representara na morte do elfo negro. Recordava com amargura como enganara Drizzt
para que o drow se juntasse a sua busca, fingindo estar à morte e prometendo uma aventura como nenhum dos dois jamais vira.
Agora, ali de pé, em silêncio, ele aceitava seu tormento interior.
O pesar de Wulfgar era igualmente profundo, mas sem a complicação de outros sentimentos. O bárbaro perdera um de seus mentores, o homem - de - armas que
o transformara de um guerreiro selvagem e brutal num combatente cauto e sagaz.
Ele perdera um de seus amigos mais verdadeiros. Teria seguido Drizzt às entranhas do Abismo em busca de aventura. Acreditava firmemente que o drow um dia
meteria a ambos numa situação da qual não conseguiriam escapar, mas quando estava lutando ao lado de Drizzt, ou competindo com seu professor, o mestre, ele se sentia
vivo e passava a existir na perigosa proximidade dos próprios limites. Várias vezes, Wulfgar imaginara a própria morte ao lado do drow, um fim glorioso para os bardos
escreverem e cantarem muito tempo depois que os inimigos que matassem os dois companheiros já tivessem se transformado em pó em túmulos esquecidos.
Era um fim que o jovem bárbaro não temia.
- 'Cê encontrou a paz agora, meu amigo - Cattiebrie disse baixinho, compreendendo melhor do que ninguém a existência atormentada do drow.
As percepções de Cattiebrie em relação ao mundo eram mais afins ao lado sensível de Drizzt, o aspecto particular do caráter do drow que os outros amigos não
enxergavam sob seus traços estóicos. Era a parte de Drizzt Do'Urden que exigira que ele abandonasse Menzoberranzan e sua raça maligna e o forçara ao papel de pária.
Cattiebrie conhecia a alegria do espírito do drow e a dor inevitável que ele suportara diante da desconsideração daqueles que não enxergavam esse espírito sob a
cor da sua pele.
Ela também se deu conta de que as causas do bem e do mal perderam um campeão naquele dia pois, em Entreri, Cattiebrie via a imagem especular de Drizzt. O
mundo seria um lugar melhor com a perda do assassino.
Mas o preço era alto demais.
Qualquer alívio que Régis pudesse sentir pela morte de Entreri se perdeu no lodaçal revolto de sua ira e de sua tristeza. Uma parte do halfling morrera naquela
alcova. Ele não mais precisaria fugir - o Paxá Pûk não o perseguiria mais -, porém, pela primeira vez em toda a sua vida, Régis era obrigado a aceitar as conseqüências
dos seus atos. Juntara-se ao grupo de Bruenor sabendo que Entreri estaria logo atrás deles e compreendendo o possível risco para seus amigos.
Sempre o jogador confiante, a idéia de perder aquele desafio jamais entrara em sua cabeça. A vida era um jogo que ele jogava para valer, até o limite, e nunca
antes precisara pagar pelos riscos. Se algo nesse mundo era capaz de mitigar a obsessão do halfling pela sorte, era isto: a perda de um de seus poucos amigos de
verdade, devido a um risco que ele escolhera correr.
- Adeus, meu amigo - ele murmurou para os escombros. Virando-se para Bruenor, disse então - Aonde vamos? Como podemos sair deste lugar terrível?
Régis não tivera a intenção de acusar ninguém com o comentário, mas forçado a uma posição defensiva pelo lodaçal de sua própria culpa, Bruenor o tomou como
tal e devolveu o golpe.
- Você fez isto! - disse a Régis, ríspido. - Você colocou o assassino atrás da gente! - Bruenor, ameaçador, deu um passo à frente, o rosto deformado
pela fúria crescente e os punhos empalidecidos pela intensidade com que os apertava.
Wulfgar, confuso com esse súbito frêmito de ira, deu um passo em direção a Régis. O halfling não recuou, mas não fez qualquer menção de se defender, ainda
não acreditando que a ira de Bruenor pudesse ser tão devastadora.
- Seu ladrão! - rugiu Bruenor. - 'Cê vai fazendo o que bem entende sem consideração pelo que vai deixando prá trás e seus amigos é que pagam por isso!
- Sua ira foi aumentando a cada palavra, novamente quase uma entidade distinta do anão, que adquiria o próprio ímpeto e a própria força.
O passo seguinte o teria lançado diretamente sobre Régis, e seu movimento mostrou claramente a todos que era sua intenção atacar, mas Wulfgar se colocou entre
os dois e deteve Bruenor com um olhar inconfundível.
Arrancado de seu transe furioso pela postura austera do bárbaro, Bruenor se deu conta, então, do que estava prestes a fazer. Bastante constrangido, ocultou
a ira sob a preocupação com a sobrevivência imediata do grupo e deu meia-volta para inspecionar o que restara da sala. Poucos suprimentos, quando muito, haviam sobrevivido
à destruição.
- Deixem as coisas aí; não há tempo a perder! - Bruenor disse aos demais, livrando a garganta dos resmungos reprimidos com um pigarro. - Vamos deixar
este lugar imundo!
Wulfgar e Cattiebrie vasculharam os escombros em busca de algo que se pudesse salvar, não tão propensos a concordar com a insistência de Bruenor para que
seguissem em frente sem suprimentos. Contudo, rapidamente chegaram à mesma conclusão que o anão e, com uma última saudação às ruínas da alcova, seguiram Bruenor
de volta ao corredor.
- Quero chegar na Garganta de Garumn antes da próxima parada - Bruenor exclamou. - Então, vão se preparando pruma longa caminhada.
- E depois para onde? - perguntou Wulfgar, adivinhando, mas não apreciando a resposta.
- Prá fora! - vociferou Bruenor. - O mais rápido possível! - Ele fitou o bárbaro, desafiando-o a questionar.
- Para voltarmos com o resto do seu povo ao nosso lado? - pressionou Wulfgar.
Prá voltar, não - disse Bruenor. - Prá nunca mais voltar!
- Então Drizzt morreu em vão! - declarou Wulfgar categoricamente. - Ele sacrificou a própria vida por uma visão que jamais se concretizará.
Bruenor estacou para se acalmar em face da aguda percepção de Wulfgar. Ele não havia encarado a tragédia sob aquela luz de ceticismo e não gostava das implicações.
- A troco de nada, não! - rosnou para o bárbaro. - Foi um aviso prá que a gente deixasse o lugar. O mal vive aqui, numeroso como orcs num banquete
de carneiro assado! 'Cê não 'tá sentindo o cheiro, garoto? Os seus olhos e o seu nariz não 'tão te dizendo prá sumir daqui?
- Meus olhos me informam do perigo - Wulfgar respondeu tranqüilamente. - Como muitas vezes antes. Mas sou um guerreiro e não dou muita atenção a esse
tipo de advertência!
- Então com certeza 'cê é um guerreiro morto - interpôs Cattiebrie.
Wulfgar fitou-a.
- Drizzt veio ajudar a retomar o Salão de Mitral e eu hei de providenciar para que assim seja!
- 'Cê vai morrer tentando - murmurou Bruenor, agora sem ira na voz. - A gente veio achar a minha casa, garoto, mas não é este o lugar. Meu povo um
dia viveu aqui, é verdade, mas a escuridão que entrou sorrateiramente no Salão de Mitral pôs um fim à minha reivindicação. Não tenho a menor vontade de voltar depois
de me livrar do fedor do lugar, enfia isso na sua cabeça teimosa. É das sombras agora, e dos cinzentos, e que o maldito lugar inteiro caia nas malditas cabeças deles!
Bruenor dissera o suficiente. Girou abruptamente sobre os calcanhares e desceu o corredor pisando duro, e as botas pesadas golpearam a pedra com uma determinação
intransigente.
Régis e Cattiebrie seguiram logo atrás, e Wulfgar, depois de uma pausa para considerar a resolução do anão, correu para alcançá-los.
Sidnéia e Bok retornaram à câmara oval assim que a feiticeira se certificou de que os companheiros haviam partido. Como os amigos antes dela, dirigiu-se à
alcova arruinada e ali permaneceu por um instante, considerando o efeito que aquela súbita reviravolta nos acontecimentos teria sobre a sua missão. Estava impressionada
com a intensidade da sua tristeza pela perda de Entreri, pois, apesar de não confiar inteiramente no assassino e desconfiar que ele poderia estar, na verdade, em
busca do mesmo artefato poderoso que ela e Dendibar procuravam, ela viera a respeitá-lo. Poderia ter havido um melhor aliado uma vez iniciado o combate?
Sidnéia não teve muito tempo para lamentar Entreri, pois a perda de Drizzt Do'Urden evocava preocupações mais imediatas pela sua própria segurança. Era improvável
que Dendibar recebesse as notícias alegremente, e o talento do mago variegado para punir seus subordinados era largamente reconhecido na Torre das Hostes Arcanas.
Bok aguardou por um instante, esperando alguma ordem da feiticeira mas, quando nenhuma se apresentou, o golem entrou na alcova e começou a remover o monte
de pedras.
- Pare - ordenou Sidnéia.
Bok continuou em sua faina, impelido por sua diretriz de dar prosseguimento à perseguição ao drow.
- Pare! - Sidnéia disse novamente, dessa vez com mais convicção. - O drow está morto, sua coisa estúpida! - A declaração abrupta a obrigou a aceitar
o fato e a colocar seus pensamentos em ação. Bok de fato parou e voltou-se para ela, e Sidnéia aguardou um instante até escolher o melhor curso de ação.
- Vamos atrás dos outros - disse precipitadamente, tanto para iluminar os próprios pensamentos com a declaração quanto para redirecionar o golem. -
Sim, talvez, se entregarmos o anão e os outros companheiros a Dendibar, ele perdoe nossa estupidez por permitir a morte do drow.
Ela olhou para o golem, mas é claro que a expressão da coisa não se havia alterado para oferecer o menor encorajamento.
- Deveria ter sido você na alcova - Sidnéia murmurou, desperdiçando seu sarcasmo com a coisa. - Entreri, pelo menos, poderia dar algumas sugestões.
Mas não importa, já decidi. Seguiremos os outros e encontraremos uma oportunidade para pegá-los. Eles nos dirão o que precisamos saber sobre a Estilha de Cristal!
Bok permaneceu imóvel, esperando pelo sinal dela. Mesmo com seus padrões mais básicos de pensamento, o golem entendia que Sidnéia sabia melhor como completar
a missão.
Os companheiros atravessaram cavernas imensas, formações naturais mais do que a pedra esculpida pelos anões. Tetos e paredes altos se estendiam escuridão
adentro, fora do alcance da luz das tochas, o que deixava os amigos pavorosamente cientes de sua vulnerabilidade. Eles se mantinham juntos enquanto marchavam, imaginando
um exército de anões cinzentos a observá-los desde os confins escuros das cavernas, ou esperando que alguma criatura horrível se precipitasse sobre eles desde as
trevas lá em cima.
O som eternamente presente de água a gotejar marcava o ritmo dos seus passos, e aquele "plipe, plope" a ecoar por todos os salões acentuava a inanidade do
lugar.
Bruenor se lembrava muito bem daquela seção do complexo e achou-se mais uma vez tomado pelas imagens esquecidas do seu passado. Aqueles eram os Salões da
Assembléia, onde todo o Clã Martelo de Batalha se reunia para ouvir as palavras do Rei Garumn ou para receber visitantes de importância. Ali eram traçados os planos
de batalha e estabelecidas as estratégias para o comércio com o mundo exterior. Até mesmo os anões mais jovens compareciam às reuniões, e Bruenor recordava com ternura
as inúmeras vezes em que se sentara ao lado do pai, Bangor, atrás do avô, o Rei Garumn, enquanto Bangor indicava as técnicas do rei para cativar a platéia e instruía
o jovem Bruenor nas artes da liderança de que ele um dia precisaria.
O dia em que se tornasse o Rei do Salão de Mitral.
A solidão das cavernas pesava terrivelmente sobre o anão que as ouvira soar com os vivas e os cânticos comunais de dez mil anões. Mesmo se retornasse com
todos os membros remanescentes do clã, eles preencheriam apenas um minúsculo canto de uma das câmaras.
- Muitos se foram - disse Bruenor ao vazio, mas o sussurro baixo saiu mais alto do que fora sua intenção naquele silêncio retumbante. Cattiebrie e Wulfgar,
preocupados com o anão e examinando todas as ações dele, notaram o comentário e imaginaram facilmente as lembranças e emoções que o haviam inspirado. Entreolharam-se,
e Cattiebrie viu que a aspereza da raiva de Wulfgar em relação ao anão havia se dissipado numa torrente de solidariedade.
Os grandes salões se sucediam, ligados apenas por corredores curtos. Curvas e saídas laterais se destacavam a cada poucos metros, mas Bruenor confiava saber
o caminho para a garganta. Sabia também que os que estivessem lá embaixo teriam ouvido o estrondo da armadilha de pedra e subiriam para investigar. Aquela seção
do nível superior, ao contrário das áreas que haviam deixado para trás, tinha muitas passagens de ligação com os níveis inferiores. Wulfgar apagou a tocha, e Bruenor
os conduziu sob a obscuridade protetora da escuridão.
A cautela logo se revelou prudente pois, ao entrarem em mais uma caverna imensa, Régis agarrou o ombro de Bruenor, detendo-o, e fez sinal para que todos ficassem
quietos. Bruenor quase irrompeu num acesso de fúria, mas viu imediatamente o sincero olhar de pavor no rosto de Régis.
Com a audição aguçada por anos de prática a atentar para o clique dos volteadores de uma fechadura, o halfling ouvira ao longe um som diferente do gotejar
da água. Pouco depois, os demais também o perceberam e logo identificaram os passos de muitas botas em marcha. Bruenor os levou para um recesso escuro onde poderiam
observar e esperar.
Eles jamais viram o exército que passava com clareza suficiente para contar ou identificar seus membros mas, pelo número de tochas que atravessaram o outro
lado da caverna, era possível dizer que estavam em desvantagem numérica de no mínimo dez contra um, e conseguiram adivinhar a natureza dos soldados.
- Se não forem os cinzentos, minha mãe gosta de orcs - Bruenor resmungou. Fitou Wulfgar para ver se o bárbaro tinha alguma outra queixa quanto à decisão
de deixar o Salão de Mitral.
Wulfgar aceitou o olhar com um gesto de concessão.
- Quanto falta para a Garganta de Garumn? - ele perguntou, rapidamente tornando-se tão resignado a partir quanto os demais. Ainda sentia como se estivesse
abandonando Drizzt, mas compreendeu a sabedoria da opção de Bruenor. Ficava óbvio agora que, se eles permanecessem, Drizzt Do'Urden não seria o único a morrer no
Salão de Mitral.
- Uma hora até a última passagem - respondeu Bruenor. - Não mais que uma hora depois disso.
O exército de anões cinzentos deixou a caverna, e os companheiros se puseram novamente a caminho, usando ainda de maior cautela e temendo cada passo pesado
que martelasse o chão com mais força do que pretendiam.
Com as lembranças mais claras a cada passo, Bruenor sabia exatamente onde estavam e optou pelo caminho mais direto até a garganta, desejando sair dos salões
o mais rápido possível. Contudo, depois de vários minutos de caminhada, encontrou uma passagem lateral que simplesmente não poderia deixar de tomar. Sabia que qualquer
atraso era um risco, mas a tentação que emanava da sala ao final daquele corredor curto era grande demais para que ele a ignorasse. Precisava descobrir até que ponto
chegara a espoliação do Salão de Mitral; precisava saber se a sala mais estimada do nível superior sobrevivera.
Os amigos o seguiram sem questioná-lo e logo se acharam de pé diante de uma porta de metal alta e ornamentada, inscrita com o martelo de Moradin, o maior
dos deuses dos anões, e uma série de runas sob o mesmo. A respiração pesada de Bruenor desmentia sua calma.
- Aqui estão os presentes de nossos amigos - Bruenor leu solenemente - e as obras de nossa raça. Sabei ao entrardes neste salão consagrado que repousais
os olhos sobre a herança do Clã Martelo de Batalha. Amigos, sede bem-vindos; ladrões, cuidado! - Bruenor virou-se para os companheiros, e havia gotas de suor frio
em sua testa. - O Salão de Dumathoin - explicou.
- Há duzentos anos seus inimigos andam pelos salões - raciocinou Wulfgar. - Com certeza foi saqueado.
- Não foi, não - disse Bruenor. - A porta é mágica e não se abre prós inimigos do clã. Tem centenas de armadilhas lá dentro prá esfolar o cinzento que conseguisse
passar! - Ele fitou Régis, e os olhos cinzentos se estreitaram numa advertência severa. - Cuidado com as mãos, Ronca-bucho. Pode ser que uma armadilha não entenda
que cê é um ladrão amigo!
O conselho pareceu sincero o bastante para Régis ignorar o sarcasmo mordaz do anão. Admitindo inconscientemente a verdade nas palavras de Bruenor, o halfling
enfiou as mãos nos bolsos.
- Vá pegar uma tocha da parede - Bruenor disse a Wulfgar. - Pelo que me lembro, não tem luz lá dentro.
Mesmo antes de Wulfgar voltar, Bruenor começou a abrir a porta descomunal. Ela oscilou facilmente sob a pressão das mãos de um amigo, escancarando-se para
um corredor curto que terminava numa cortina negra e pesada. Um pêndulo afiado pairava soturnamente sobre o centro da passagem e havia uma pilha de ossos logo abaixo.
- Ladrão canalha - Bruenor riu, com impiedosa satisfação. Contornou a lâmina e foi até a cortina, aguardando até que todos os amigos se juntassem a
ele antes de entrar na câmara.
Bruenor se deteve, reunindo a coragem para abrir a última barreira entre eles e o salão; o suor brilhava nos rostos de todos os amigos agora que a ansiedade
do anão os contagiara.
Com um grunhido determinado, Bruenor puxou a cortina.
- Eis o Salão de Duma... - começou ele, mas as palavras ficaram presas em sua garganta assim que olhou pela abertura. De toda a destruição que presenciara
nos salões, nenhuma foi mais completa do que aquela. Montes de pedra cobriam o chão. Pedestais que outrora sustentaram as melhores obras do clã jaziam em pedaços
e outros haviam sido esmagados até virar pó.
Bruenor, às cegas, entrou cambaleando, as mãos a tremer e um enorme grito de ultraje encaroçado na garganta. Soube, antes mesmo de percorrer toda a sala,
que a destruição fora completa.
- Como? - boquiabriu-se Bruenor. Mesmo enquanto perguntava, porém, viu um imenso buraco na parede. Não um túnel escavado ao redor da porta obstrutora,
mas um talho na pedra, como se um incrível aríete a houvesse atravessado.
- Que força tamanha poderia ter feito tal coisa? - perguntou Wulfgar, acompanhando o olhar do anão até o buraco.
Bruenor foi até lá, à procura de alguma pista, Cattiebrie e Wulfgar com ele. Régis dirigiu-se para o outro lado, apenas para ver se restara algo de valor.
Cattiebrie percebeu um brilho iridescente no chão e se aproximou do que ela imaginou ser uma poça de algum líquido escuro. Abaixando-se, porém, deu-se conta
de que não se tratava de nenhum líquido, mas de uma escama, mais negra do que a noite mais escura e quase do tamanho de um homem. Wulfgar e Bruenor correram para
o lado dela ao ouvi-la arquejar.
- Um dragão! - deixou escapar Wulfgar, reconhecendo a forma distintiva. Agarrou a coisa pela borda e a colocou de pé para inspecioná-la melhor.

Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta antes que a formulassem.
- Mais negro que o negror - murmurou Bruenor, pronunciando nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos atrás. - Meu pai
me falou dessa coisa - ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie. - Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente - a gente teria combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a gente dos salões.
Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
- Vamos embora - sugeriu Cattiebrie - antes que a fera descubra que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
- Eu a encontrei aqui - explicou. - E há algo mais. Um arco, eu acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho prateado de uma corda
de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve, esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele conseguiu soltá-la
e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
- Taulmaril, o Caçador de Corações - leu ele. - Presente de...
- Anariel, Irmã de Eaerûn - completou Bruenor, sem nem mesmo olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar interrogativo de Cattiebrie.
- Libere o arco, garoto - ele disse a Wulfgar. - Por certo que a gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de soltar o arco longo
com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas pedras, e o perfeito
acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela. Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável e uniforme.
- Experimente-o - sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem intenção de atirar.
- Uma aljava! - gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. - E mais flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos correram a ver,
sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o mínimo que fosse.
- Não se aborreçam - disse Régis, contando as flechas na aljava que Wulfgar segurava. - Há outras dezenove... outras vinte! - Ele se afastou, aturdido.
Os demais olharam para ele, confusos.
- Eram dezenove - Régis explicou. - Minha contagem estava certa. Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
- Vinte - disse ele.
- Vinte, agora - Régis respondeu. - Mas eram dezenove quando contei pela primeira vez.
- Então a aljava também é mágica - inferiu Cattiebrie. - Um presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
- O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? - perguntou Régis, esfregando as mãos.
- Nada mais - Bruenor respondeu rispidamente. - A gente 'tá de partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os seguiu até a cortina
e dali para o corredor.
- A garganta! - declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em movimento.
- Espere, Bok - sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
- Ainda não - ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou por seu rosto riscado de poeira. - Haverá uma oportunidade melhor!

20. PRATA NAS SOMBRAS

De repente, ele encontrou um foco no borrão de névoa cinzenta, algo palpável em meio ao turbilhão de nada. Pairava diante dele e girava lentamente.
Suas margens se duplicaram e se distinguiram, então se reuniram novamente, e rápido. Ele resistiu à dor tênue na cabeça, a escuridão interior que o consumira
e agora lutava para mantê-lo sob seu domínio. Gradualmente, ele foi tomando consciência dos braços e das pernas, de quem ele era e de como chegara ali.
Na sobressaltada consciência dele, a imagem foi ganhando nitidez até chegar a um foco cristalino. A ponta de um punhal ajaezado.
Entreri assomava sobre ele, uma silhueta negra contra a iluminação de uma única tocha na parede alguns metros além, a arma erguida para atacar ao primeiro
sinal de resistência. Drizzt também viu que o assassino fora ferido na queda, apesar de ter obviamente se recuperado mais rápido.
- Consegue andar? - perguntou Entreri, e Drizzt era perspicaz o bastante para saber o que aconteceria caso ele não conseguisse.
Ele assentiu e fez menção de se levantar, mas o punhal se aproximou, rápido.
- Ainda não - rosnou Entreri. - Primeiro, precisamos determinar onde estamos e para onde devemos ir.
Drizzt, então, desviou sua atenção do assassino e estudou as cercanias, confiante de que Entreri já o teria matado caso fosse essa a sua intenção. Eles estavam
nas minas, isso era claro, pois as paredes eram de pedra grosseiramente escavada, suportadas por colunas de madeira a cada meio metro, aproximadamente.
- O quanto caímos? - ele perguntou ao assassino, mas seus sentidos lhe informavam que estavam muito abaixo da sala em que haviam lutado.
Entreri deu de ombros.
- Lembro-me de pousar sobre a pedra dura depois de uma queda breve, e então deslizar por uma calha inclinada e cheia de curvas. Pareceu-me um bom
tempo até finalmente cairmos aqui. - Apontou uma abertura no canto do teto, através da qual haviam despencado. - Mas a passagem do tempo é diferente para um homem
que acha estar à beira da morte, e a coisa toda pode ter sido muito mais rápida do que eu me recordo.
- Confie na sua primeira reação - sugeriu Drizzt -, pois minhas próprias percepções me dizem que descemos bastante.
- Como podemos sair?
Drizzt estudou a ligeira inclinação do chão e apontou para a sua direita.
- O piso sobe naquela direção - disse ele.
- Então fique de pé - disse Entreri, estendendo uma das mãos para ajudar o drow.
Drizzt aceitou o auxílio e levantou-se com cuidado, sem demonstrar o menor sinal de ameaça. Sabia que o punhal de Entreri o estriparia muito antes que ele
próprio conseguisse desferir um golpe.
Entreri também sabia disso, mas não esperava que Drizzt lhe causasse problemas naquela situação. Haviam tomado parte em algo mais do que uma simples troca
de passes de esgrima na alcova lá em cima, e os dois encaravam um ao outro com respeito relutante.
- Preciso dos seus olhos - explicou Entreri, embora Drizzt já tivesse imaginado. - Encontrei apenas uma tocha e ela não vai durar o bastante para me tirar
daqui. Seus olhos, elfo negro, podem encontrar o caminho na escuridão. Estarei perto o bastante para sentir cada um dos seus movimentos, perto o bastante para matá-lo
com um único golpe! - Ele girou o punhal mais uma vez para enfatizar o argumento, mas Drizzt compreendia perfeitamente bem sem o recurso visual.
Ao ficar de pé, Drizzt descobriu que não estava tão gravemente ferido quanto temera. Ele torcera o tornozelo e o joelho de uma das pernas e soube, assim que
colocou algum peso nela, que cada passo seria doloroso. No entanto, não poderia deixar que Entreri o percebesse. Não seria muito útil ao assassino caso não conseguisse
acompanhá-lo.
Entreri se virou para recolher a tocha, e Drizzt fez um rápido inventário do equipamento do assassino. Vira uma de suas cimitarras enfiada no cinto de Entreri,
mas a outra, a espada mágica, não estava em lugar algum. Sentiu um de seus punhais ainda enfiado numa bainha escondida na bota, mas não sabia ao certo o quanto isso
seria útil contra o sabre e o punhal de seu habilidoso inimigo. Enfrentar Entreri com qualquer tipo de desvantagem era um cenário que ele preferia reservar somente
para a situação mais desesperadora.
Então, de repente, quase em choque, Drizzt levou a mão a sua escarcela e o temor só fez aumentar quando ele viu que os nós se achavam desfeitos. Mesmo antes
de enfiar a mão dentro dela, ele sabia que Guenhwyvar se fora. Olhou ao redor freneticamente e viu apenas as pedras desmoronadas.
Notando a angústia de Drizzt, Entreri sorriu maldosamente sob o capuz de seu manto.
- Vamos indo - ele disse ao drow.
Drizzt não tinha escolha. Sem dúvida não poderia contar a Entreri sobre a estátua mágica e correr o risco de Guenhwyvar ser novamente possuída por um mestre
maligno. Drizzt salvara a grande pantera desse destino uma vez e preferiria que ela permanecesse eternamente enterrada sob toneladas de pedra a retornar às mãos
de um mestre indigno. Com um último olhar pesaroso para os escombros, ele aceitou estoicamente a perda, consolando-se com o fato de que o gato ainda vivia, incólume,
em seu próprio plano da existência.
Os suportes do túnel passavam por eles com uma regularidade perturbadora, como se os dois estivessem andando em círculos. Drizzt percebeu que o túnel descrevia
um arco amplo à medida que ascendia ligeiramente. Isso o deixou ainda mais nervoso. Conhecia a perícia dos anões na construção de túneis, principalmente quando pedras
ou metais preciosos estavam envolvidos, e ele começou a se perguntar quantos quilômetros teriam de percorrer antes de sequer alcançar o nível mais alto seguinte.
Apesar de possuir uma percepção subterrânea menos aguda e desconhecer os hábitos dos anões, Entreri tinha as mesmas sensações de inquietude. Uma hora transformou-se
em duas e ainda a linha de suportes de madeira se estendia escuridão adentro.
- A tocha está se apagando - disse Entreri, rompendo o silêncio que os cercava desde que haviam começado. Até mesmo o som de seus passos, as passadas
hábeis de guerreiros sorrateiros, extinguia-se na estreiteza da passagem baixa. -Talvez a vantagem passe a ser sua, elfo negro.
Drizzt sabia que não. Entreri era uma criatura da noite tanto quanto ele, sendo que os reflexos aguçados e a ampla experiência do matador mais do que compensavam
o fato de ele não enxergar no escuro. Os assassinos não agiam sob a luz do sol do meio-dia.
Sem responder, Drizzt se voltou para o caminho adiante mas, enquanto olhava ao redor, um repentino reflexo da tocha chamou-lhe a atenção. Ele se aproximou
da parede do corredor, ignorando a apreensiva agitação de Entreri logo atrás dele, passou a sentir a textura da superfície e a examinou atentamente, esperando ver
mais um lampejo. O brilho reapareceu apenas um segundo depois, quando Entreri se moveu atrás dele, um bruxuleio de prata ao longo da parede.
- Cortadas por rios de prata - murmurou, incrédulo.
- O quê? - indagou Entreri.
-Traga a tocha - foi a única resposta de Drizzt. Ele agora movia ansiosamente as mãos por sobre a parede, procurando a prova que sobrepujaria sua própria
lógica teimosa e inocentaria Bruenor de suas suspeitas de que o anão exagerara as histórias sobre o Salão de Mitral.
Entreri logo estava ao lado dele, curioso. A tocha o demonstrava claramente: um riacho de prata corria pela parede, tão largo quanto o antebraço de Drizzt,
e brilhava intensamente em toda a sua pureza.
- Mitral - disse Entreri, pasmo. - O tesouro de um rei!
- Mas de pouca utilidade para nós - disse Drizzt para dispersar o alvoroço de ambos. Voltou a seguir pelo corredor, como se o veio de mitral não o
impressionasse. De algum modo, ele sentia que Entreri não deveria ver o lugar, que a mera presença do assassino conspurcava as riquezas do Clã Martelo de Batalha.
Drizzt não queria dar ao assassino nenhum motivo para procurar novamente os salões. Entreri deu de ombros e seguiu.
A inclinação da passagem tornou-se mais evidente à medida que prosseguiam e os reflexos prateados dos filões de mitral reapareciam com regularidade suficiente
para fazer Drizzt imaginar se Bruenor não teria mesmo atenuado os fatos sobre a prosperidade de seu clã.
Entreri, nunca a mais de um passo atrás do drow, estava concentrado demais em vigiar seu prisioneiro para reparar no precioso metal, mas ele compreendia perfeitamente
bem o potencial que o cercava. Ele não se importava muito com essas especulações, mas sabia que a informação seria valiosa e poderia servi-lo bem em futuras negociações.
Não demorou muito para a tocha se extinguir, mas os dois descobriram que ainda enxergavam, pois uma fraca fonte de luz se encontrava em algum lugar adiante,
além das curvas dos túneis. Mesmo assim, o assassino se aproximou de Drizzt e encostou a ponta do punhal nas costas do drow para não se arriscar a perder a única
esperança de escapar caso a luz desaparecesse completamente.
O brilho apenas se intensificou, pois sua fonte era realmente grande. O ar ao redor deles se aqueceu, e eles logo ouviram o ranger de maquinaria distante
a ecoar pelo túnel. Entreri apertou ainda mais suas rédeas, agarrando o manto de Drizzt e aproximando-se um pouco mais.
- Você é um intruso aqui tanto quanto eu - sussurrou. - A confrontação é inimiga de ambos.
E os mineradores seriam piores do que o destino que você me oferece? Drizzt perguntou, com um suspiro sarcástico. Entreri soltou o manto e se afastou.
- Parece que preciso lhe oferecer algo mais para garantir sua cooperação - disse.
Drizzt o estudou atentamente, sem saber o que esperar.
- Você tem todas as vantagens - disse ele.
- Não é bem assim - replicou o assassino. Drizzt observou, perplexo, Entreri devolver o punhal à bainha. - Eu poderia matá-lo, concordo, mas o que
eu ganharia com isso? Não me agrada matar.
- Mas o assassínio não o revolta - retrucou Drizzt.
- Faço o que é preciso - disse Entreri, desprezando o comentário mordaz sob uma máscara de riso.
Drizzt reconhecia muito bem aquele homem. Desapaixonado e pragmático, e inegavelmente habilidoso na arte de provocar a morte. Olhando para Entreri, Drizzt
via o que ele poderia ter se tornado caso tivesse permanecido em Menzoberranzan, entre sua gente igualmente amoral. Entreri era o epítome dos preceitos da sociedade
drow, a crueldade egoísta que forçara Drizzt a deixar as entranhas do mundo, ultrajado. Ele fitou o assassino honestamente, detestando cada polegada do homem, mas,
de algum modo, incapaz de se desvencilhar da empatia que sentia.
Ele precisava lutar por seus princípios agora, decidiu, assim como o fizera anos antes na cidade escura.
- Você faz o que é preciso - disse, com veemência e nojo, desconsiderando as possíveis conseqüências. - Não importa a que custo.
- Não importa a que custo - repetiu Entreri tranqüilamente, o sorriso convencido a distorcer o insulto e a transformá-lo num elogio. - Agradeça por
eu ser tão prático, Drizzt Do'Urden, caso contrário, você jamais teria despertado depois da queda.
- Mas chega dessa discussão inútil. Tenho um acordo a lhe oferecer que pode vir a ser bastante lucrativo para nós dois.
Drizzt continuou em silêncio e não deixou transparecer nem um pouco o seu grau de interesse.
- Você sabe por que estou aqui? - perguntou Entreri.
- Está atrás do halfling.
- Está enganado - replicou Entreri. - Não do halfling, mas do pingente do halfling. Ele o roubou do meu mestre, embora eu duvide que ele o admitisse
para você.
- Eu leio nas entrelinhas - disse Drizzt, o que ironicamente o levou a sua próxima suspeita. - Seu mestre também procura a vingança, não é?
- Talvez - disse Entreri, sem se deter. - Mas a devolução do pingente tem primazia. Então, ofereço-lhe isto: cooperaremos para encontrar o caminho
de volta até seus amigos. Ofereço meu auxílio na jornada e sua vida em troca do pingente. Uma vez lá, convença o halfling a entregá-lo a mim e eu seguirei meu caminho,
para não mais voltar. Meu mestre recupera o tesouro que lhe foi roubado e seu amiguinho vive o resto da vida dele sem precisar olhar para trás.
- Devo confiar nas suas palavras? - refutou Drizzt.
- Deve confiar nas minhas ações - retrucou Entreri. Ele retirou a cimitarra do cinto e atirou-a para Drizzt. - Não tenho a intenção de morrer nestas
minas abandonadas, drow, e nem você, espero.
- Como sabe que eu cumprirei minha parte quando nos reunirmos aos meus companheiros? - perguntou Drizzt, inspecionando a arma, quase não acreditando
na reviravolta dos acontecimentos.
Entreri riu novamente.
- Você é honrado demais para plantar esse tipo de dúvida na minha mente, elfo negro. Você cumprirá o acordo, disso estou certo! Negócio fecha do, então?
Drizzt tinha de admitir a sabedoria das palavras de Entreri. Juntos, eles tinham uma boa chance de escapar dos níveis inferiores. Drizzt não tinha a intenção
de deixar passar a oportunidade de encontrar seus amigos, não pelo preço de um pingente que geralmente metia Régis em mais encrenca do que a coisa valia.
- Fechado - disse ele.
A passagem continuou a clarear a cada curva, não com a luz bruxuleante das tochas, mas com um brilho contínuo. O ruído de maquinaria aumentava proporcionalmente
e os dois precisavam gritar para que se fizessem compreender.
Contornando uma última curva, eles chegaram ao fim abrupto da mina, e os últimos suportes se abriram para uma imensa caverna. Passaram hesitantemente pelos
suportes e seguiram adiante até uma pequena saliência que corria ao longo da face de uma vasta garganta: a grande cidade subterrânea do Clã Martelo de Batalha.
Por sorte, eles estavam no nível superior do abismo, pois ambas as paredes haviam sido cortadas na forma de terraços descomunais dali até o chão, cada um
deles a ostentar fileiras de portas ornamentadas que outrora marcavam as entradas das casas da gente de Bruenor. Os terraços se achavam em grande parte desabitados
agora, mas Drizzt, com as incontáveis histórias que ouvira ae Bruenor, podia muito bem imaginar a glória passada do lugar. Dez mil anões, infatigáveis na paixão
pelo seu querido trabalho, martelando o mitral e cantando em louvor aos seus deuses.
Que espetáculo devia ter sido! Anões correndo de um nível a outro para exibir sua obra mais recente, um objeto de mitral de incrível beleza e valor. E,
ainda assim, a julgar pelo que Drizzt sabia dos anões do Vale do Vento Gélido, mesmo a mais ligeira imperfeição faria com que os artesãos voltassem correndo às suas
bigornas, implorando aos seus deuses perdão e o dom do talento para criar uma peça mais refinada. Nenhuma outra raça em todos os Reinos poderia fazer jus a tamanho
orgulho pela própria obra, e a gente do Clã Martelo de Batalha era meticulosa mesmo pelos padrões dos barbas-longas.
Agora, apenas o chão do abismo se agitava com atividade pois, dezenas de metros abaixo deles e estendendo-se em todas as direções, surgiam as forjas centrais
do Salão de Mitral, fornalhas quentes o bastante para derreter o duro metal que se retirava da pedra. Mesmo àquela altura, Drizzt e Entreri sentiam o calor cauterizante
e a intensidade da luz fazia com que apertassem os olhos. Dezenas de operários atarracados corriam de um lado a outro, empurrando padiolas de minério ou combustível
para as chamas. Duergar, presumiu Drizzt, apesar de não enxergá-los claramente em meio ao fulgor e daquela altura.
A uma pequena distância da saída do túnel, uma rampa larga e levemente arqueada descia em forma de espiral até o terraço imediatamente inferior. À esquerda,
a saliência seguia ao longo da parede, estreita, imprópria para a passagem casual; todavia, mais embaixo, Drizzt viu a silhueta negra de uma ponte em arco que se
estendia sobre o abismo.
Entreri fez sinal para que ele voltasse ao túnel.
- A ponte parece nossa melhor rota - disse o assassino. - Mas não acho prudente nos expormos atravessando a saliência com tanta gente por aí.
-Temos pouca escolha - raciocinou Drizzt. - Poderíamos retroceder e procurar alguns dos corredores laterais pelos quais passamos, mas acredito que não sejam
mais do que extensões do complexo das minas e duvido que eles nos levassem muito longe.
- Temos de seguir em frente - concordou Entreri. - Talvez o barulho e o fulgor nos proporcionem ampla cobertura. - Sem mais delongas, ele se esgueirou
até a saliência e começou a se dirigir para o contorno escuro da ponte do abismo, com Drizzt logo atrás dele.
Embora a saliência não tivesse mais do que sessenta centímetros de largura e, em certos pontos, fosse ainda mais estreita, os ágeis guerreiros não tiveram
dificuldades em percorrê-la. Logo se encontravam diante da ponte, uma estreita passarela de pedra que se arqueava sobre o alvoroço lá embaixo.
Abaixados, eles se moveram com facilidade. Ao cruzar o ponto médio e começar a descida pela metade posterior do arco, viram uma saliência mais ampla ao longo
da outra parede do abismo. Ao final da ponte surgia um túnel, iluminado por tochas como as que haviam deixado no nível superior. À esquerda da entrada, várias formas
pequenas - duergar - acotovelavam-se numa conversa, sem que reparassem na área. Entreri se voltou para Drizzt com um sorriso furtivo e apontou o túnel.
Tão silenciosos como gatos e invisíveis nas sombras, eles atravessaram a ponte e entraram no túnel, e o grupo de duergar continuou alheio à passagem deles.
Os suportes de madeira agora passavam pelos dois facilmente, pois eles retomaram uma marcha ligeira, deixando a cidade subterrânea para trás. Paredes desbastadas
lhes proporcionavam abundante proteção nas sombras à luz das tochas e, como o barulho dos operários lá atrás fosse abafado até se transformar num murmúrio distante,
eles relaxaram um pouco e começaram a acalentar a esperança de reencontrar os outros.
Viraram numa curva do túnel e quase atropelaram uma solitária sentinela duergar.
- Quem vem lá? - a sentinela clamou, e a espada de folha larga feita de mitral cintilava a cada bruxuleio da luz das tochas. Também sua armadura -
malha metálica, elmo e escudo reluzente - era do precioso metal, o tesouro de um rei a apetrechar um único soldado!
Drizzt ultrapassou o companheiro e fez sinal para Entreri esperar. Ele não queria uma trilha de cadáveres a marcar sua rota de fuga. O assassino compreendeu
que o elfo negro poderia ter alguma sorte ao lidar com aquele outro habitante do mundo subterrâneo. Sem desejar entregar que era humano, e talvez arruinar a credibilidade
de fosse lá qual a história que Drizzt inventara, ele cobriu a face com o manto.
A sentinela deu um passo para trás, os olhos arregalados de espanto ao reconhecer Drizzt como um drow. Drizzt franziu as sobrancelhas e não respondeu.
- Hã... o que o senhor estaria fazendo nas minas? - perguntou o duergar, reformulando tanto a pergunta quanto o tom de voz, agora de maneira educada.
- Passeando - respondeu Drizzt friamente, mas ainda assim fingindo irritação pela saudação grosseira que inicialmente recebera.
- E... hã... quem seria o senhor? - gaguejou o guarda.
Entreri estudou o evidente pavor que o anão cinzento sentia por Drizzt. Parecia que os drow inspiravam ainda mais respeito receoso entre as raças do mundo
subterrâneo do que entre os habitantes da superfície. O assassino anotou mentalmente aquilo, determinado a ser ainda mais cauteloso no futuro ao lidar com Drizzt.
Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan - disse Drizzt, não vendo
razão para mentir.
- Saudações! - gritou o atalaia, excessivamente ansioso por obter o favor do estrangeiro. - Monturo é o meu nome, do Clã Bukbukken. - Ele fez uma reverência
e sua barba cinzenta varreu o chão. - É raro saudarmos hóspedes nas minas. 'Cê 'taria à procura de alguém? Ou tem alguma coisa que eu possa fazer prá ajudar?
Drizzt pensou por um instante. Se seus amigos tivessem sobrevivido ao desabamento - e ele precisava manter as esperanças de que o tivessem feito -, estariam
a caminho da Garganta de Garumn.
- Meus assuntos aqui já foram resolvidos - ele disse ao duergar. - Estou satisfeito.
Monturo fitou-o, curioso.
- Satisfeito?
- Seu povo escavou fundo demais - explicou Drizzt. - Vocês perturbaram um dos nossos túneis com sua escavação. Assim, viemos investigar este complexo,
para garantir que ele não seja novamente habitado pelos inimigos dos drow. Vi suas forjas, cinzento. Vocês devem estar orgulhosos.
A sentinela endireitou o cinto e encolheu a barriga. O Clã Bukbukken de fato se orgulhava de sua organização, embora tivessem, na verdade, roubado toda a
operação do Clã Martelo de Batalha.
- E 'cê 'tá satisfeito, né? Então, onde 'cê 'taria indo agora, Drizzt Do'Urden? Ver o chefe?
- Quem seria ele, caso eu estivesse?
- 'Cê não ouviu falar de Trêmulo Obscuro? - respondeu Monturo, com uma risadinha perspicaz. - O Dragão das Trevas, negro como o negror e mais feroz
do que um demônio esporeado! Não sei se ele vai gostar de elfos drow nas minas dele, mas a gente logo vai descobrir!
- Acho que não - replicou Drizzt. - Já descobri tudo o que vim descobrir e agora minha trilha me leva para casa. Não vou perturbar Trêmulo Obscuro
nem ninguém do seu hospitaleiro clã novamente.
- Acho que 'cê vai ver o chefe, sim - disse Monturo, extraindo mais coragem da cordialidade de Drizzt e da menção do nome de seu poderoso líder. Ele
cruzou os braços nodosos sobre o peito, a espada de mitral agora a descansar mais visivelmente sobre o escudo reluzente.
Drizzt reassumiu seu aspecto severo e projetou um dedo sob o tecido do manto, apontando na direção do duergar. Monturo notou o movimento, assim como Entreri,
e o assassino quase recuou, confuso, diante da reação do duergar.
Um perceptível sudário plúmbeo se apoderou das feições já cinzentas de Monturo, e ele permaneceu perfeitamente imóvel, sequer ousando respirar.
- Minha trilha me leva para casa - Drizzt disse novamente.
- Prá casa, certo! - gritou Monturo. - Eu poderia ser de alguma ajuda prá encontrar o caminho? Os túneis se misturam todos naquela direção.
Por que não? - pensou Drizzt, calculando que suas chances seriam melhores se soubessem ao menos qual a rota mais rápida.
- Um abismo - ele disse a Monturo. - Antes do Clã Bukbukken, disseram-nos que se chamava a Garganta de Garumn.
- Agora é a Via de Trêmulo Obscuro - corrigiu Monturo. - O túnel da esquerda na próxima bifurcação - ofereceu ele, apontando o fim do corredor. - Dali
em diante, é só seguir em frente.
Drizzt não gostou do som do novo nome da garganta. Ele se perguntou que monstro os amigos encontrariam esperando por eles caso chegassem à garganta. Sem querer
desperdiçar mais tempo, acenou para Monturo e passou por ele. O duergar estava mais do que disposto a deixá-lo seguir sem mais conversa, encostando-se o mais que
pôde à parede do túnel.
Entreri olhou para Monturo ao passar e o viu limpar o suor frio da testa.
- Devíamos era matá-lo - disse a Drizzt quando já estavam longe e em segurança. - Ele vai colocar toda a sua gente atrás de nós.
- Não mais rápido do que um cadáver, ou uma sentinela desaparecida, teria provocado um alarma geral - replicou Drizzt. - Talvez alguns apareçam para
confirmar a história dele, mas ao menos agora sabemos como sair. Ele não teria ousado mentir para mim, temendo que minha pergunta fosse apenas um teste. Meu povo
é conhecido por matar os mentirosos.
- O que você fez a ele? - perguntou Entreri.
Drizzt não conseguiu evitar o riso diante dos irônicos benefícios da reputação sinistra de seu povo. Ele projetou o dedo sob o tecido de seu manto novamente.
- Imagine uma besta pequena o bastante para caber em seu bolso - ele explicou. - Não daria essa impressão quando apontada para um alvo? Os drows são
bem conhecidos por essas bestas.
- Mas quão mortífero seria um virote tão pequeno contra uma armadura de mitral? - perguntou Entreri, ainda sem compreender por que a ameaça havia sido
tão eficaz.
- Ah, não fosse o veneno - Drizzt sorriu pretensiosamente, afastando-se corredor afora.
Entreri se deteve e sorriu diante da lógica óbvia. Que traiçoeiros e impiedosos deviam ser os drow para arrancar uma reação tão forte de uma ameaça tão simples!
Parecia que sua reputação mortal não era um exagero.
Entreri descobriu que estava começando a admirar aqueles elfos negros.
Os perseguidores apareceram mais cedo do que eles esperavam, apesar do ritmo acelerado. O ruído de botas soou alto e então desapareceu, apenas para ressurgir
na curva seguinte ainda mais próximo do que antes. Passagens laterais, tanto Drizzt quanto Entreri compreenderam, amaldiçoando cada curva do próprio túnel serpeante.
Por fim, quando seus perseguidores estavam quase sobre eles, Drizzt deteve o assassino.
- São poucos - ele disse, distinguindo individualmente cada som de passos.
- O grupo da saliência - inferiu Entreri. - Vamos resistir. Mas seja rápido, há mais atrás deles, sem dúvida! - A luz irrequieta que tomou posse dos
olhos do assassino pareceu pavorosamente familiar a Drizzt.
Ele não teve tempo de ponderar as desagradáveis implicações. Livrou-se delas chacoalhando a cabeça, readquirindo sua total concentração para o assunto imediato,
depois sacou o punhal oculto de sua bota - agora não era hora para guardar segredos de Entreri - e encontrou um recesso obscuro na parede do túnel. Entreri fez o
mesmo, posicionando-se a uma pequena distância do drow, do outro lado do corredor.
Os segundos se passaram lentamente, marcados apenas pelo indistinto arrastar das botas. Os dois companheiros prenderam o fôlego e aguardaram pacientemente,
sabendo que nada havia passado por eles ainda.
De repente, o som se multiplicou quando os duergar saíram correndo de uma porta secreta e entraram no corredor principal.
- Não podem estar longe agora! - Drizzt e Entreri ouviram um deles dizer.
- O dragão vai empanturrar a gente por essa captura! - piou um outro.
Todos envergando malha reluzente e empunhando armas de mitral, eles contornaram a última curva e apareceram diante dos companheiros escondidos.
Drizzt fitou o metal opaco de sua cimitarra e considerou qual deveria ser a precisão de seus golpes contra as armaduras de mitral. Deixou escapar um suspiro
resignado ao desejar estar segurando agora sua arma mágica.
Entreri também viu o problema e sabia que precisavam compensar de algum modo as desigualdades. Rapidamente, ele sacou uma bolsa de moedas do cinto e atirou-a
corredor abaixo. Ela flutuou pela obscuridade e bateu na parede onde o túnel fazia outra curva.
Os duergar do bando se aprumaram como se fossem um só.
- Logo adiante! - um deles gritou, e eles se abaixaram e arremeteram até a curva seguinte. Entre o drow e o assassino à espera.
As sombras explodiram em movimento e se precipitaram sobre os aturdidos anões cinzentos. Drizzt e Entreri atacaram juntos, aproveitando o momento de maior
vantagem quando o primeiro do bando alcançava o assassino e o último passava por Drizzt.
Os duergar gritaram de horror e surpresa. Punhais, sabre e cimitarra dançavam ao redor deles numa rajada de morte cintilante, espetavam as costuras de suas
armaduras, buscavam uma abertura no metal inflexível. Quando encontravam uma, enterravam a ponta no alvo com impiedosa eficiência.
Quando os duergar se recuperaram do choque inicial do ataque, dois jaziam mortos aos pés do drow, um terceiro sob Entreri e ainda outro cambaleava para longe,
apertando as entranhas com a mão ensangüentada.
- Às minhas costas! - gritou Entreri, e Drizzt, pensando na mesma estratégia, já começara a abrir caminho entre os anões desorganizados como se dançasse.
Entreri abateu mais um duergar exatamente quando os dois se juntaram, pois a vítima infeliz olhara por sobre o ombro, para o drow que se aproximava, tempo suficiente
para o punhal ajaezado deslizar por sob a costura na base de seu elmo.
Então, eles estavam juntos, de costas um para o outro, girando na esteira do manto um do outro e manobrando suas armas em movimentos indistintos tão semelhantes
que os três duergar remanescentes hesitavam antes de atacar, tentando distinguir onde um inimigo terminava e o outro começava.
Com gritos em louvor a Trêmulo Obscuro, o monarca semelhante a um deus, eles avançaram de qualquer maneira.
Drizzt acertou uma série de golpes de uma só vez que deveria ter abatido seu oponente, mas a armadura era de um material mais resistente que a cimitarra de
aço, e suas estocadas foram rechaçadas. Entreri também teve dificuldade para encontrar uma abertura e atravessar com uma estocada a malha e os escudos de mitral.
Drizzt encostou um dos ombros em seu companheiro e deixou que o outro se afastasse. Entreri compreendeu e seguiu o exemplo do drow, fazendo a volta logo atrás
dele.
Gradualmente, o giro dos dois foi ganhando ímpeto, sincrônicos como dançarinos experientes, e os duergar sequer tentaram acompanhar o passo. Os oponentes
se alternavam continuamente, o drow e Entreri se voltavam para repelir a espada ou o machado que o outro bloqueara na última passada. Eles deixaram o ritmo se sustentar
durante algumas voltas, deixaram os duergar acompanharem os padrões de sua dança e então, Drizzt ainda na liderança, falsearam seus passos e reverteram o fluxo.
Os três duergar, uniformemente espaçados em volta da dupla, não sabiam de que direção partiria o ataque seguinte.
Entreri, que àquela altura praticamente lia cada pensamento do drow, enxergou as possibilidades. Ao se afastar de um anão particularmente confuso, fingiu
um ataque invertido, paralisando o duergar tempo suficiente para Drizzt, vindo pelo outro lado, encontrar uma abertura.
- Acabe com ele! - o assassino gritou, vitorioso.
A cimitarra fez seu trabalho.
Agora eram dois contra dois. Eles interromperam a dança e enfrentaram os oponentes de igual para igual.
Drizzt passou pelo adversário menor com um salto repentino e dançou ao longo da parede. O duergar, atento às lâminas mortíferas do drow, não notara a terceira
arma de Drizzt entrar na batalha.
A surpresa do anão cinzento foi apenas superada por sua expectativa pelo golpe fatal iminente quando o manto que seguia atrás de Drizzt flutuou e caiu sobre
ele, cobrindo-o com uma escuridão que somente se intensificaria no vácuo da morte.
Contrário à técnica graciosa de Drizzt, Entreri agiu com repentina fúria, imobilizando seu anão com golpes de baixo para cima e contragolpes rápidos como
o raio, sempre visando a mão que empunhava a arma. O anão cinzento compreendeu a tática quando seus dedos começaram a ficar insensíveis com os cortes de vários pequenos
golpes.
O duergar supercompensou, trazendo o escudo para proteger a mão vulnerável.
Exatamente como Entreri antecipara. Ele girou no sentido oposto ao movimento do oponente, encontrou as costas do escudo e uma costura na armadura de mitral
logo abaixo do ombro. O punhal do assassino mergulhou furiosamente, investindo e arremessando o duergar ao chão de pedra. O anão cinzento ali ficou, arqueado sobre
um cotovelo, e expeliu seus últimos suspiros.
Drizzt se aproximou do último anão, aquele que havia sido ferido no ataque inicial, recostado à parede a uma pequena distância dali, a luz das tochas a produzir
um reflexo grotescamente vermelho na poça de sangue sob o seu corpo. O anão ainda estava disposto a lutar. Ele ergueu sua espada de lâmina larga para enfrentar o
drow.
Era Monturo, viu Drizzt, e um silencioso pedido de misericórdia chegou à mente do drow e removeu-lhe o brilho incandescente dos olhos.
Um objeto brilhante, cintilando com os matizes de uma dezena de jóias distintas, passou girando por Drizzt e pôs fim ao seu debate interior.
O punhal de Entreri cravou-se no olho de Monturo. O anão sequer tombou, tão destro foi o golpe. Ele apenas manteve sua posição, recostado à pedra. Mas agora
a poça de sangue era alimentada por dois ferimentos.
Drizzt permaneceu paralisado pela fúria e não se retraiu quando o assassino passou serenamente para recuperar a arma.
Entreri retirou o punhal rudemente, depois se virou para encarar Drizzt enquanto Monturo tombava e espadanava no sangue.
- Quatro a quatro - resmungou o assassino. - Você não acreditou que eu o deixaria me passar na contagem?
Drizzt não respondeu nem piscou.
Ambos sentiram o suor em suas palmas ao apertarem as armas, uma vontade de completar o que haviam começado na alcova lá em cima.
Tão parecidos, porém tão dramaticamente diferentes.
A fúria pela morte de Monturo não levou a melhor sobre Drizzt naquele momento, não mais do que para confirmar seus sentimentos em relação ao vil companheiro.
A ânsia que tinha em matar Entreri era ainda mais profunda do que a raiva que poderia sentir por qualquer um dos atos hediondos do assassino. Matar Entreri significaria
matar o lado mais sombrio de si próprio, acreditava Drizzt, pois ele poderia ter sido como aquele homem. Tratava-se de um teste do seu valor, um confronto com o
que ele poderia ter se tornado. Se tivesse permanecido entre os seus - e muitas foram as vezes em que considerara sua decisão de abandonar seus costumes e sua cidade
escura uma tentativa débil de distorcer a própria ordem natural -, seu próprio punhal teria encontrado o olho de Monturo.
Entreri olhava Drizzt com o mesmo desdém. Quanto potencial ele via no drow! Mas abrandado por uma fraqueza intolerável. Talvez, em seu coração, o assassino,
na verdade, invejasse a capacidade de amar e de sentir compaixão que ele reconhecera em Drizzt. Tão semelhante a ele, Drizzt apenas acentuava a realidade de seu
próprio vácuo emocional.
Mesmo que realmente existissem, esses sentimentos nunca chegariam a influenciar Artemis Entreri. Ele passara a vida transformando-se num instrumento de morte,
e nenhum fiapo de luz conseguiria jamais atravessar aquela barreira empedernida de escuridão. Ele tinha a intenção de provar, a si mesmo e ao drow, que o verdadeiro
guerreiro não tinha lugar para a fraqueza.
Estavam mais perto agora, embora nenhum dos dois soubesse qual deles se movera, como se forças invisíveis agissem sobre eles. As armas contraíram-se de expectativa,
um esperando que o outro mostrasse as cartas.
Um esperando que o outro fosse o primeiro a se render ao desejo comum, o desafio definitivo dos princípios de sua existência.
O ruído de botas desfez o encanto.

21. O DRAGÃO DE TREVAS

Do centro dos níveis inferiores, numa imensa caverna de paredes irregulares e quebradas, ocultas por sombras intensas, e um teto alto demais para a luz da
fogueira mais brilhante encontrar, descansava o atual soberano do Salão de Mitral, empoleirado sobre um sólido pedestal do mais puro mitral. que se erguia de uma
pilha alta e vasta de moedas e jóias, copas e armas, e incontáveis outros objetos extraídos a marteladas dos blocos toscos de mitral pelas mãos habilidosas dos artesãos
anões.
Formas escuras cercavam a fera, cães descomunais de seu próprio mundo, obedientes, longevos e famintos pela carne humana ou élfica, ou qualquer outra coisa
que lhes desse o prazer de uma brincadeira sangrenta antes da matança.
Trêmulo Obscuro não estava entretido agora. Os estrondos lá em cima anunciavam invasores, e um bando de duergar comentou algo sobre alguns dos seus assassinados
nos túneis, e havia boatos de que um elfo drow fora visto.
O dragão não era deste mundo. Viera do Plano das Sombras, uma imagem sombria do mundo iluminado, desconhecido dos habitantes daqui a não ser na matéria menos
substancial de seus pesadelos mais tenebrosos. Trêmulo Obscuro lá detivera uma posição considerável, antigo mesmo então, e era tido em alta conta entre os dragões
que dominavam o plano. Mas quando os tolos e gananciosos anões que outrora habitaram aquelas minas escavaram buracos profundos, escuros o bastante para abrir um
portal para o plano do dragão, ele não perdeu tempo em atravessá-lo. Agora senhor de um tesouro dez vezes superior ao maior deles em seu próprio plano, Trêmulo Obscuro
não tinha a menor intenção de retornar.
Ele lidaria com os intrusos.
Pela primeira vez desde o desbaratamento do Clã Martelo de Batalha, os latidos dos mastins sombrios preencheram os túneis e aterrorizaram até mesmo os corações
dos seus tratadores duergar. O dragão os mandou para oeste em missão, rumo aos túneis superiores que circundavam o vestíbulo no Vale do Guardião, onde os companheiros
haviam entrado no complexo. Com suas poderosas mandíbulas e seu inacreditável poder de dissimulação, os mastins eram de fato uma força mortífera, mas sua missão
agora não era capturar e matar, e sim acossar a presa.
Na primeira batalha pelo Salão de Mitral, Trêmulo Obscuro dispersara sozinho os mineradores nas cavernas inferiores e em algumas das imensas câmaras na extremidade
oriental do nível superior. Mas a vitória final escapara ao dragão, pois o fim tivera lugar nos corredores ocidentais, apertados demais para seu corpanzil escamoso.
A fera não deixaria escapar a glória novamente. Colocou seus asseclas em ação para impelir quem quer ou o que quer que tivesse entrado nos salões em direção
à única entrada para os níveis superiores à qual ele tinha acesso: a Garganta de Garumn.
Trêmulo Obscuro se esticou todo e abriu as asas coriáceas pela primeira vez em quase duzentos anos, e a escuridão se espalhou sob elas quando se estenderam
para os lados. Os duergar que haviam permanecido na sala do trono caíram de joelhos diante da visão do soberano que se levantava, em parte por respeito mas, principalmente,
por medo.
O dragão partiu, voando por um túnel secreto nos fundos da câmara, em direção ao lugar onde um dia conhecera a glória, o lugar que seus asseclas denominavam
a Via de Trêmulo Obscuro em louvor ao seu soberano.
Um borrão de trevas indistinguíveis, ele se movia tão silenciosamente quanto a nuvem de escuridão que o seguia.
Wulfgar se perguntava quanto mais ele teria de se abaixar antes que alcançassem a Garganta de Garumn, pois os túneis diminuíam até o tamanho dos anões à medida
que se aproximavam da extremidade oriental do nível superior. Bruenor sabia que era um bom sinal, pois os únicos túneis no complexo com tetos abaixo de um metro
e oitenta de altura eram os das minas mais profundas e os que haviam sido projetados para a defesa da garganta.
Mais rápido do que Bruenor havia esperado, eles encontraram a porta secreta para um túnel menor que se separava à esquerda, um ponto conhecido pelo anão,
mesmo depois de dois séculos de ausência. Ele correu a mão pela parede inconspícua sob a tocha e o revelador suporte vermelho, em busca do padrão em relevo que conduziria
seus dedos ao ponto exato. Ele encontrou um triângulo, depois outro, e seguiu suas linhas até o ponto central - o ponto mais baixo no vale entre os picos das montanhas
gêmeas por eles representadas -, o símbolo de Dumathoin, o Guardião dos Segredos Sob a Montanha.
Bruenor o apertou com um único dedo, e a parede se afastou, abrindo-se em mais um túnel baixo. Nenhuma luz provinha daquele ali, mas um som cavernoso, como
o vento através de uma face rochosa, os saudou.
Bruenor lançou uma piscadela perspicaz para os companheiros e entrou, mas diminuiu o passo quando viu as runas e os altos-relevos esculpidos nas paredes.
Por toda a passagem, em cada superfície, os artesãos anões haviam deixado sua marca. Bruenor se encheu de orgulho, apesar da depressão, ao ver as expressões admiradas
nos rostos dos seus amigos.
Algumas curvas depois, eles encontraram uma grade levadiça, abaixada e enferrujada, e depois dela viram a vastidão de outra caverna descomunal.
- A Garganta de Garumn - anunciou Bruenor, aproximando-se das barras de ferro. - Diziam que se podia atirar uma tocha da beirada e ela iria se apagar
antes de chegar no fundo.
Quatro pares de olhos olharam admirados através do portão. Se a jornada pelo Salão de Mitral fora uma decepção para eles, pois ainda não haviam visto as paisagens
mais magníficas que Bruenor mencionava com freqüência, a vista diante deles agora compensava. Eles haviam alcançado a Garganta de Garumn, embora parecesse mais um
desfiladeiro de tamanho natural do que uma garganta, e esta abarcava dezenas de metros de um lado a outro e se estendia para além dos limites da visão. Eles estavam
acima do piso da câmara, sendo que uma escadaria descia à direita, do outro lado da grade. Esforçando-se para enfiar as cabeças através das barras tanto quanto possível,
eles enxergaram a luz de uma outra sala na base das escadas e ouviram claramente a balbúrdia de vários duergar.
À esquerda, a parede descrevia um arco até a borda, mas o abismo seguia em frente além da parede limítrofe da caverna. Uma única ponte transpunha a fenda,
uma antiga construção de pedra encaixada tão perfeitamente que seu discreto arco seria capaz de agüentar um exército dos mais descomunais gigantes das montanhas.
Bruenor estudou a ponte cuidadosamente, notando que algo na estrutura não parecia estar bem certo. Ele seguiu a linha de um cabo que atravessava o abismo,
imaginando que este continuava sob o soalho de pedra e se ligava a uma grande alavanca que se projetava de uma plataforma construída do outro lado mais recentemente.
Duas sentinelas duergar andavam em círculos perto da alavanca, apesar de sua atitude relaxada revelar os incontáveis dias de tédio.
- Eles prepararam a coisa prá desabar! - Bruenor bufou.
Os outros imediatamente compreenderam do que ele falava.
- Tem algum outro jeito de atravessar, então? - perguntou Cattiebrie.
-Tem - respondeu o anão. - Uma saliência que dá na ponta sul da garganta. Mas são horas de marcha, e o único caminho até ela é por esta caverna!
Wulfgar agarrou as barras de ferro da grade e experimentou-as. Elas resistiram, como ele suspeitara.
- Não passaríamos por estas barras, de qualquer maneira - ele interpôs.
- A menos que você saiba onde encontrar a manivela.
- Meio dia de marcha - Bruenor replicou, como se a resposta, perfeita mente lógica para a mentalidade de um anão interessado em proteger seus tesouros,
fosse óbvia. - Pelo outro caminho.
- Que gente mais alarmada - Régis disse, à meia-voz.
Ouvindo o comentário, Bruenor rezingou, agarrou Régis pelo colarinho e o ergueu até que os dois ficassem face a face.
- Minha gente é cautelosa - rosnou ele, e a frustração e a confusão voltaram a transbordar em sua fúria mal-orientada. - A gente gosta de guardar bem
o que é nosso, principalmente contra ladrõezinhos com dedinhos pequenos e bocas grandes.
- Por certo que deve ter outro jeito de entrar - raciocinou Cattiebrie, apressando-se a dispersar o confronto.
Bruenor largou o halfling no chão.
- A gente consegue chegar naquela sala - ele replicou, indicando a área iluminada na base das escadas.
- Então vamos rápido - pediu Cattiebrie. - Se o barulho do desabamento deu o alarma, pode ser que a notícia ainda não tenha chegado tão longe.
Bruenor rapidamente conduziu-os pelo pequeno túnel, de volta ao corredor atrás da porta secreta.
Contornando a curva seguinte no corredor principal, cujas paredes também ostentavam runas e relevos esculpidos pelos artesãos anões, Bruenor foi novamente
envolvido pelos prodígios de sua raça e logo esqueceu toda a raiva que sentia por Régis. Ouviu novamente em sua mente o repicar dos martelos no dia de Garumn e a
cantoria das assembléias. Se a infâmia que encontraram ali e a perda de Drizzt haviam mitigado seu fervoroso desejo de reclamar o Salão de Mitral, as vividas recordações
que o assaltavam enquanto percorriam aquele corredor realimentavam aquelas chamas.
Talvez ele retornasse com seu exército, pensou. Talvez o mitral viesse novamente a ressoar nas forjas do Clã Martelo de Batalha.
Com a idéia de reconquistar a glória do seu povo repentinamente reacesa, Bruenor olhou ao redor, para seus amigos cansados, famintos, a lamentar a perda do
drow, e lembrou a si mesmo de que a missão diante dele agora era escapar do complexo e levá-los de volta à segurança.
Um brilho mais intenso logo adiante sinalizava o fim do túnel. Bruenor diminuiu o ritmo do grupo e se esgueirou até a saída. Novamente, os companheiros se
viram sobre uma sacada de pedra, sobranceando outro corredor, uma imensa passagem, praticamente uma câmara, com um teto alto e paredes ornamentadas. As tochas ardiam
a cada poucos passos de ambos os lados, dispostas paralelamente logo abaixo deles.
Um nó se formou na garganta de Bruenor quando ele pôs os olhos nos entalhes que revestiam a parede oposta, do outro lado, grandes baixos-relevos esculpidos
que representavam Garumn, Bangor e todos os patriarcas do Clã Martelo de Batalha. Ele se perguntou, e não pela primeira vez, se seu próprio busto um dia teria lugar
junto aos de seus ancestrais.
- De seis a dez deles, acho eu - murmurou Cattiebrie, mais atenta ao clamor que provinha de uma porta parcialmente aberta à esquerda, a sala que eles
viram desde a câmara no alto da garganta. Os companheiros estavam pelo menos seis metros acima do chão do corredor maior. À direita, uma escadaria descia até o chão
e, depois dela, o túnel serpenteava de volta aos grandes salões.
- Salas laterais onde outros podem estar escondidos? - Wulfgar perguntou a Bruenor.
O anão chacoalhou a cabeça.
- Tem uma ante-sala, e apenas uma - ele respondeu. - Só que mais salas ficam dentro da caverna da Garganta de Garumn. Se estão ou não cheias de cinzentos,
não sei. Mas não ligue prá eles; vamos passar por esta sala e pela porta do outro lado prá chegar na garganta.
Wulfgar bateu o martelo contra a mão e o segurou em posição de luta.
- Então vamos - rosnou ele, partindo na direção da escada.
- E quanto aos dois na outra caverna? - perguntou Régis, detendo o bárbaro ansioso com a mão.
- Eles vão derrubar a ponte antes que a gente chegue na garganta - acrescentou Cattiebrie.
Bruenor cofiou a barba, depois olhou para a filha.
- Como 'tá sua pontaria? - perguntou-lhe. Cattiebrie segurou o arco mágico diante dela.
- Boa o suficiente para abater as duas sentinelas - ela respondeu.
- Vai pro outro túnel - disse Bruenor. - Ao primeiro som de batalha, mate eles. E seja ligeira, menina; essa escória de covardes provavelmente vai
derrubar a ponte ao primeiro sinal de encrenca!
Com um aceno de cabeça, ela partiu. Wulfgar a observou desaparecer no corredor, agora não tão determinado a lutar, sem saber que Cattiebrie estaria segura
atrás deles.
- E se os cinzentos tiverem reforços por perto? - ele perguntou a Bruenor. - E quanto a Cattiebrie? Ela terá o caminho bloqueado e não poderá voltar
para nós.
- Sem choro, garoto! - Bruenor retrucou, também desconfortável com sua decisão de dividir o grupo. - 'Cê 'tá apaixonado por ela, eu acho, apesar de 'cê não
querer admitir. Ponha na cabeça que Cat é uma guerreira, treinada por mim. O outro túnel é bastante seguro. Os cinzentos ainda não encontraram ele, pelo que pude
ver. A garota tem experiência e sabe se cuidar! Você se concentre no combate que tem pela frente. O melhor que tê pode fazer por ela é acabar com esses cães de barba
cinzenta mais rápido do que a gente deles é capaz de chegar aqui!
Foi preciso algum esforço, mas Wulfgar desviou os olhos do corredor e voltou a focalizar o olhar na porta aberta lá embaixo, preparando-se para a tarefa imediata.
Sozinha agora, Cattiebrie percorreu silenciosamente a pequena distância do corredor e desapareceu pela porta secreta.
- Pare! - Sidnéia ordenou a Bok, e ela também se deteve, sentindo que alguém estava logo adiante. Ela se esgueirou um pouco mais à frente, com o golem em
seus calcanhares, e espiou o túnel depois da curva seguinte, esperando que tivesse encontrado os companheiros. Havia apenas o corredor vazio diante dela.
A porta secreta se fechara.
Wulfgar inspirou fundo e avaliou as chances de vitória. Se a estimativa de Cattiebrie estivesse correta, ele e Bruenor estariam em grande desvantagem numérica
quando irrompessem pela porta. Sabia que não tinham outras opções. Inspirando mais uma vez para se acalmar, partiu novamente em direção às escadas, com Bruenor logo
em sua cola e Régis seguindo hesitantemente atrás.
O bárbaro não diminuiu o ritmo de suas longas passadas, nem se desviou da rota mais direta até a porta, porém, o primeiro som que todos eles ouviram não foram
as pancadas de Garra de Palas nem o habitual grito de guerra do bárbaro, a clamar por Tempus, mas a canção de batalha de Bruenor Martelo de Batalha.
Era sua terra natal, e sua luta, e o anão colocava a responsabilidade pela segurança de seus companheiros diretamente sobre os próprios ombros. Ele passou
correndo por Wulfgar quando chegaram à base da escada e arrebentou a porta, com o machado de mitral de seu heróico homônimo erguido diante dele.
- Este é pelo meu pai! - ele gritou, rachando o elmo reluzente do duergar mais próximo com um único golpe. - Este é pelo pai do meu pai! - berrou, abatendo
o segundo. - E este é pelo pai do pai do meu pai!
A linhagem de Bruenor era realmente longa. Os anões cinzentos jamais tiveram a menor chance.
Wulfgar dera início a sua investida logo depois de perceber que Bruenor passava correndo por ele mas, quando entrou na sala, três duergar estavam mortos,
e o furioso Bruenor estava prestes a derrubar o quarto. Outros seis corriam de um lado para outro tentando se recuperar daquele ataque selvagem e, principalmente,
tentando sair pela outra porta e entrar na caverna da garganta onde poderiam se reagrupar. Wulfgar arremessou Garra de Palas e abateu mais um, e Bruenor saltou sobre
a quinta vítima antes que o anão cinzento atravessasse o portal.
Do outro lado da garganta, as duas sentinelas ouviram o início da luta ao mesmo tempo que Cattiebrie mas, sem compreender o que acontecia, hesitaram.
Cattiebrie, não.
Um raio de prata lampejou pelo abismo, explodiu no peito de um dos atalaias, e a poderosa magia da flecha atravessou impetuosamente a armadura de mitral e
arremessou-o para trás e para os braços da morte.
O segundo se lançou imediatamente para a alavanca, mas Cattiebrie completou serenamente a tarefa. A segunda flecha flamejante o atingiu no olho.
Os anões desbaratados na sala abaixo entraram em grande número na caverna abaixo dela, e outros, provenientes das salas que ficavam depois da primeira, correram
para se juntar a eles. Cattiebrie sabia que Wulfgar e Bruenor logo apareceriam também, bem no meio de um exército a postos!
A avaliação de Bruenor sobre Cattiebrie fora precisa. Ela era uma guerreira e estava tão disposta a enfrentar a desigualdade como qualquer homem-de-armas
vivo. Ela esqueceu todos os temores em relação aos amigos e se posicionou para ser da maior ajuda possível. Com os olhos e o queixo enrijecidos de determinação,
ela ergueu Taulmaril e lançou uma barragem de morte contra o exército que se congregava, o que gerou o caos entre eles e fez com que muitos corressem em busca de
abrigo.
Bruenor apareceu aos brados, salpicado de sangue, o machado de mitral rubro com a matança e ainda uma centena de ancestrais para vingar. Wulfgar vinha logo
atrás, consumido pela sede de sangue, cantava para seu deus da guerra e jogava longe os pequenos inimigos com a mesma facilidade que abriria caminho por entre os
fetos numa trilha de floresta.
A barragem de Cattiebrie não se abrandou, e uma flecha flamejante depois da outra encontrou seu alvo letal. A guerreira interior a possuiu completamente,
e suas ações permaneciam às margens dos seus pensamentos conscientes. Metodicamente, ela pedia mais uma flecha e a aljava mágica de Anariel obedecia. Taulmaril entoava
sua própria canção e, na esteira de suas notas, jaziam os corpos chamuscados e arruinados de muitos duergar.
Régis permaneceu na retaguarda durante toda a luta, sabendo que seria mais um problema do que uma ajuda para seus amigos no grosso da batalha, pois só acrescentaria
mais um corpo a ser protegido quando eles já tinham muito com o que se preocupar. Ele viu que Bruenor e Wulfgar tinham conseguido uma vantagem com presteza suficiente
para reclamar a vitória, mesmo contra os diversos inimigos que entravam na caverna para enfrentá-los de modo que Régis agora se certificava de que os oponentes caídos
na sala estivessem mortos de fato e não se esgueirariam para atacá-los pelas costas.
Mas também para se certificar de que quaisquer objetos de valor possuídos por aqueles cinzentos não se desperdiçassem nos cadáveres.
Ele ouviu a pesada pancada de uma bota atrás dele. Mergulhou de lado e rolou para o canto exatamente quando Bok atravessou estrondosamente a porta, alheio
à presença dele. Quando recuperou a voz, Régis fez menção de avisar os amigos com um berro.
Mas, então, Sidnéia entrou na sala.
Dois de uma só vez tombaram diante dos golpes do martelo de guerra de Wulfgar. Incitado pelos trechos que ele ouvia dos gritos de guerra enfurecidos do anão
- "... pelo pai do pai do pai do pai do pai do meu pai..." -, Wulfgar ostentava um sorriso impiedoso ao atravessar as fileiras desorganizadas dos duergar. Flechas
incendiavam linhas de prata bem ao seu lado enquanto buscavam as vítimas, mas ele confiava o bastante em Cattiebrie para não temer um tiro perdido. Seus músculos
desferiram mais um golpe esmagador, e nem mesmo a armadura reluzente dos duergar oferecia qualquer proteção contra a força bruta do bárbaro.
Mas, então, braços ainda mais fortes que os dele o envolveram por trás.
Os poucos duergar que restavam diante dele não reconheceram Bok como um aliado. Fugiram aterrorizados rumo à ponte sobre o abismo, esperando atravessar e
destruir a rota que seria tomada por seus perseguidores depois de passarem.
Cattiebrie os abateu.
Régis não fez nenhum movimento brusco, pois conhecia o poder de Sidnéia devido ao confronto na sala oval. O raio de energia da feiticeira havia derrubado
tanto Bruenor quanto Wulfgar; o halfling estremeceu ao pensar o que a mágica faria a ele.
Sua única chance era o pingente de rubi, ele pensou. Se conseguisse prender Sidnéia em seu encanto hipnótico, poderia detê-la tempo suficiente para que seus
amigos voltassem. Lentamente, ele moveu a mão sob o paletó, os olhos assestados sobre a feiticeira, atento ao início de um raio letal.
A varinha de Sidnéia continuou enfiada no cinto. Ela tinha um outro truque planejado para o pequeno. Murmurou um cântico breve, depois abriu os dedos da
mão, apontou-a para Régis e soprou suavemente, lançando um filamento membranoso na direção dele.
Régis compreendeu a natureza do encantamento quando o ar ao redor dele se encheu repentinamente de teias flutuantes: pegajosas teias de aranha. Elas aderiram
a todo o seu corpo, desaceleram seus movimentos e preencheram a área ao redor dele. Sua mão apertava o pingente de rubi, mas a teia o tinha inteiramente sob domínio.
Deleitando-se no exercício de seu poder, Sidnéia se voltou para a porta e para a batalha que era travada depois dela. Preferia recorrer aos seus poderes interiores,
mas compreendendo a força dos outros inimigos, ela sacou a varinha.
Bruenor deu cabo do último dos anões cinzentos que o enfrentavam. Ele recebera muitos golpes, alguns sérios, e boa parte do sangue que o cobria era seu mesmo.
Todavia, a fúria interior que ele desenvolvera ao longo dos séculos o fazia ignorar a dor. Sua sede de sangue fora saciada, mas apenas até que ele se virasse em
direção à ante-sala e visse Bok erguendo Wulfgar no ar para esmagá-lo até a morte.
Cattiebrie também o viu. Horrorizada, ela tentava atingir o golem com um tiro limpo mas, com Wulfgar a se debater desesperadamente, os combatentes se confundiam
com demasiada freqüência para que ela ousasse disparar.
- Ajuda ele! - ela implorou a Bruenor, à meia-voz, já que tudo o que podia fazer era assistir.
Metade do corpo de Wulfgar estava entorpecido pela força inacreditável dos braços magicamente fortalecidos de Bok. Entretanto, ele conseguiu se torcer, dar
a volta, encarar o adversário e enfiar uma das mãos no olho do golem, e depois empurrar com toda a sua força, tentando desviar um pouco da energia do monstro.
Bok parecia não notar.
Wulfgar deu com Garra de Palas na cara do monstro com toda a força que foi capaz de reunir sob circunstâncias tão difíceis; ainda assim, um golpe que teria
abatido um gigante.
Mais uma vez, Bok pareceu não notar.
Os braços o apertavam implacavelmente. Uma onda de tontura varreu o bárbaro. Seus dedos formigavam com o entorpecimento. O martelo caiu ao solo.
Bruenor estava quase lá, trazia o machado erguido e pronto para começar a retalhar. Mas, quando o anão passou pela porta aberta da ante-sala, um ofuscante
clarão de energia se projetou contra ele. Atingiu-lhe o escudo, por sorte, e desviou-se rumo ao teto da caverna, mas a força bruta do raio derrubou Bruenor. Ele
sacudiu a cabeça, incrédulo, e debateu-se até conseguir se sentar.
Cattiebrie viu o raio e se lembrou da rajada semelhante que derrubara tanto Bruenor quanto Wulfgar na sala oval. Instintivamente, sem a menor hesitação
ou preocupação por sua própria segurança, ela partiu, correu de volta pela passagem, impelida pela noção de que, se não conseguisse chegar até a feiticeira, seus
amigos não teriam chance.
Bruenor estava mais preparado para o segundo raio. Viu Sidnéia dentro da ante-sala apontar a varinha na direção dele. Mergulhou de bruços e jogou o escudo
acima da cabeça, de frente para a feiticeira. O escudo resistiu de novo à rajada, desviando a energia inofensivamente para longe, mas Bruenor sentiu a proteção enfraquecer
sob o impacto e compreendeu que esta não resistiria a um outro golpe.
Os teimosos instintos de sobrevivência do bárbaro arrancaram sua mente errante das garras do desfalecimento e trouxeram-na de volta à batalha. Ele não chamou
pelo martelo, pois sabia que este seria de pouca utilidade contra o golem e, de qualquer maneira, ele duvidava que fosse capaz de segurá-lo. Invocou sua força, envolvendo
o pescoço de Bok com seus braços descomunais. Seus músculos delineados se retesaram tanto que chegaram ao limite do rompimento e até o ultrapassaram com o esforço.
Ele não conseguia respirar; Bruenor não chegaria a tempo. Ele afastou a dor e o medo com um grunhido e enfrentou a sensação de entorpecimento com um esgar.
E torceu com toda a sua força.
Régis finalmente conseguiu tirar a mão e o pingente de sob o paletó.
- Espere, feiticeira! - ele gritou para Sidnéia, sem esperar que ela o ouvisse, mas alimentando apenas a esperança de distrair a atenção dela tempo suficiente
para que ela visse a jóia de relance e rezando para que Entreri não a tivesse informado sobre os poderes hipnóticos do rubi.
Mais uma vez, a desconfiança e o sigilo do grupo maligno agiu contra eles mesmos. Alheia aos perigos do rubi do halfling, Sidnéia olhou de relance para ele
com o canto dos olhos, mais para garantir que sua teia ainda o prendia firmemente do que para ouvir as palavras que ele porventura tivesse a dizer.
Um brilho vermelho prendeu-lhe a atenção mais completamente do que ela pretendera e um bom tempo se passou antes que ela conseguisse desviar os olhos.
Na passagem principal, Cattiebrie se abaixou e seguiu em frente o mais rápido possível. Então, ela ouviu os latidos.
Os mastins das sombras encheram os corredores com seus gritos agitados e o terror se apossou de Cattiebrie. Os mastins ainda estavam longe, mas os joelhos
da moça cederam quando o som espectral baixou sobre ela, ecoando de uma parede a outra e envolvendo-a numa confusão desconcertante. Ela rilhou os dentes para resistir
ao ataque e prosseguiu com todo o vigor. Bruenor precisava dela, Wulfgar precisava dela. Ela não os decepcionaria.
Chegou à sacada e desceu correndo as escadas, encontrando fechada a porta para a ante-sala. Maldizendo a sorte, pois ela esperara acertar a feiticeira de
longe, lançou Taulmaril sobre o ombro, sacou sua espada e arremeteu às cegas e audaciosamente.
Entrelaçados num abraço mortal, Wulfgar e Bok cambaleavam pela caverna, algumas vezes perigosamente perto da garganta. O bárbaro rivalizava em força com a
construção mágica de Dendibar; nunca antes enfrentara um adversário como aquele. Furiosamente, ele movia a imensa cabeça de Bok de um lado para outro, vencendo a
resistência do monstro. Então, ele passou a girá-la numa só direção e prosseguiu com cada grama de energia que ainda lhe restava. Ele não se lembrava da última vez
em que conseguira respirar, já não sabia mais quem era nem onde estava.
Sua absoluta teimosia se recusava a ceder.
Ele ouviu o estalido dos ossos e não havia como saber se havia sido a própria espinha ou o pescoço do golem. Bok jamais estremeceu nem afrouxou seu abraço
tenaz. A cabeça girava facilmente agora, e Wulfgar, impelido pela escuridão final que começava a baixar sobre ele, puxou e torceu numa última comoção de rebeldia.
A pele se rasgou. O enchimento sanguinolento da criação do mago se derramou nos braços e no peito de Wulfgar, e a cabeça foi arrancada. Wulfgar, para seu
próprio assombro, pensou ter vencido.
Bok não pareceu notar.
O início do encanto hipnotizador do pingente de rubi se desfez quando a porta se abriu impetuosamente, mas Régis fizera sua parte. Quando Sidnéia reconheceu
o perigo iminente, Cattiebrie estava perto demais para que ela lançasse qualquer encantamento.
O olhar de Sidnéia se travou numa fixidez aturdida, os olhos arregalados em confuso protesto. Todos os seus sonhos e planos futuros tombaram diante dela naquele
instante. Ela tentou gritar uma recusa, certa de que os deuses do destino tinham um papel mais importante planejado para ela em seu projeto do universo, convencida
de que eles não permitiriam que a estrela brilhante daquele poder florescente se extinguisse antes mesmo de realizar todo o seu potencial.
Mas uma varinha de madeira fina é de pouca serventia para bloquear uma lâmina de metal.
Cattiebrie nada viu além do alvo, nada sentiu naquele instante a não ser a necessidade do dever. Sua espada rachou a débil varinha e se enterrou no alvo.
Ela fitou o rosto de Sidnéia pela primeira vez. O próprio tempo pareceu parar.
A expressão de Sidnéia não mudara, os olhos e a boca ainda estavam abertos, recusando aquela possibilidade.
Cattiebrie assistiu, horrorizada e impotente, aos últimos bruxuleios de esperança e ambição que desapareciam dos olhos de Sidnéia. O sangue quente jorrou
sobre o braço de Cattiebrie. A última inspiração de Sidnéia soou impossivelmente alta.
E Sidnéia deslizou, tão lentamente, para longe da lâmina e adentrou o reino da morte.
Um único talho violento do machado de mitral decepou um dos braços de Bok e Wulfgar despencou, livre. Caiu sobre um joelho, mal-e-mal consciente. Seus imensos
pulmões agiram por reflexo e aspiraram uma grande quantidade de oxigênio revigorante.
Sentindo claramente a presença do anão, mas sem olhos para focalizar o alvo, o golem sem cabeça investiu atrapalhadamente contra Bruenor e errou feio.
Bruenor não compreendia as forças mágicas que guiavam o monstro, ou que o mantinham vivo, e não tinha a menor vontade de testar sua perícia em combate com
aquela coisa. Ele enxergou uma alternativa.
- Vem cá, seu monte imundo de bosta de orc - provocou ele, aproximando-se da garganta. Num tom mais sério, gritou para Wulfgar - Prepara o martelo, garoto.
Bruenor teve de repetir o pedido várias vezes e, quando Wulfgar começou a ouvi-lo, Bok tinha feito o anão retroceder até a saliência.
Apenas meio consciente de suas ações, Wulfgar encontrou o martelo de guerra de volta em suas mãos.
Bruenor parou, os calcanhares no ar, um sorriso no rosto, aceitando a morte. O golem também se deteve, compreendendo de algum modo que Bruenor não tinha para
onde fugir.
Bruenor se jogou no chão quando Bok atacou. Garra de Palas atingiu as costas da coisa, empurrando-a sobre o anão. O monstro caiu em silêncio, sem ouvidos
para ouvir o som do ar que passava rapidamente por ele.
Cattiebrie ainda estava de pé e imóvel sobre o corpo da feiticeira quando Wulfgar e Bruenor entraram na ante-sala. Os olhos e a boca de Sidnéia continuavam
abertos em silenciosa recusa, uma tentativa inútil de desmentir a poça de sangue que se aprofundava em volta de seu corpo.
O trajeto das lágrimas umedecia o rosto de Cattiebrie. Ela havia abatido goblinóides e anões cinzentos, um ogro e um yeti da tundra certa vez, mas nunca matara
um ser humano. Nunca antes fitara olhos tão semelhantes aos seus e observara a luz abandoná-los. Nunca antes compreendera a complexidade de sua vítima, ou mesmo
que a vida que ela tirara existia fora do momentâneo campo de batalha.
Wulfgar foi até ela e a abraçou em total solidariedade enquanto Bruenor libertava o halfling dos últimos filamentos de teia.
O anão treinara Cattiebrie para lutar e deleitara-se com as vitórias dela contra orcs e outros monstros, feras hediondas que inquestionavelmente mereciam
a morte. No entanto, ele sempre acalentara a esperança de que sua amada Cattiebrie fosse poupada daquela experiência.
Mais uma vez, o Salão de Mitral se manifestava como uma fonte de sofrimento para os seus amigos.
Uivos distantes ecoaram além da porta aberta atrás deles. Cattiebrie devolveu a espada à bainha, sem nem mesmo pensar em limpar o sangue da lâmina, e acalmou-se.
- A perseguição não terminou - ela disse categoricamente. - Já passou da hora da gente partir.
Ela os conduziu para fora da sala então, mas deixou uma parte dela, o pedestal de sua inocência, para trás.

22. O ELMO QUEBRADO

O ar arruflava em suas asas negras como o ribombar contínuo de trovoadas distantes quando o dragão deixou impetuosamente a passagem e entrou na Garganta
de Garumn, usando a mesma saída pela qual Drizzt e Entreri haviam passado apenas alguns minutos antes. Os dois, dez ou doze metros acima, rente à parede, permaneceram
perfeitamente imóveis, não ousando sequer respirar. Sabiam que o tenebroso senhor do Salão de Mitral chegara.
A nuvem negra que era Trêmulo Obscuro passou rápida por eles, sem nada perceber, e planou pela extensão do abismo. Drizzt, na liderança, escalou a face da
garganta, enterrando as unhas na pedra a fim de encontrar quaisquer apoios possíveis e, em seu desespero, confiou neles inteiramente. Ouvira sons de batalha bem
acima dele assim que entrara no abismo e sabia que, mesmo se os amigos tivessem obtido a vitória até ali, logo seriam confrontados por um inimigo mais poderoso do
que qualquer outra coisa que já haviam enfrentado.
Drizzt estava determinado a lutar ao lado deles.
Entreri igualava o ritmo do drow, desejando manter-se junto dele, apesar de ainda não ter formulado um plano exato de ação.
Wulfgar e Cattiebrie apoiavam um ao outro enquanto caminhavam. Régis continuava ao lado de Bruenor, preocupado com os ferimentos do anão, mesmo que este não
se importasse.
- Cuide da própria pele, Ronca-bucho - ele retrucava insistentemente, apesar de Régis notar que a aspereza de Bruenor diminuíra. O anão parecia um tanto quanto
constrangido pela maneira como agira anteriormente. - Minhas feridas vão cicatrizar; não vá pensando que 'cê vai se livrar de mim tão fácil! A gente vai ter bastante
tempo prá cuidar delas assim que deixarmos este lugar prá trás.
Régis havia parado de andar e trazia uma expressão perplexa no rosto. Bruenor se virou e olhou para o halfling, também confuso, e perguntou-se se havia novamente
ofendido o halfling de algum modo. Wulfgar e Cattiebrie estacaram atrás de Régis e esperaram alguma indicação do problema, sem saber o que se passara entre ele
e o anão.
- Qual é sua queixa? - indagou Bruenor.
Régis não se incomodara com nada que Bruenor dissera, nem com o anão em momento algum. Era Trêmulo Obscuro que ele havia percebido, uma súbita frialdade que
penetrara a caverna, uma infâmia que insultava o elo de afeição dos companheiros com sua mera presença.
Bruenor estava prestes a falar novamente quando também sentiu a aproximação do dragão das trevas. Olhou para a garganta assim que a ponta da nuvem negra ultrapassou
a beirada do abismo - ao longe, à esquerda, depois da ponte - e partiu rapidamente na direção deles.
Cattiebrie conduziu Wulfgar para um lado, depois ele passou a arrastá-la a toda a pressa. Régis voltou correndo para a ante-sala.
Bruenor recordava.
O dragão das trevas, o monstro abominável que, em última instância, dizimara sua gente e os obrigara a fugir para os corredores menores do nível superior.
Com o machado de mitral erguido e os pés fixos à pedra logo abaixo, ele esperou.
O negrume mergulhou sob o arco da ponte de pedra, depois se alçou até a saliência. Garras como pontas de lança se prenderam à beirada da garganta, e, diante
de Bruenor, Trêmulo Obscuro se sentou sobre as patas traseiras em todo o seu terrível esplendor, a serpente usurpadora a encarar o legítimo Rei do Salão de Mitral.
- Bruenor! - suplicou Régis, sacando sua pequena maça e voltando para a caverna, sabendo que nada havia a fazer senão morrer ao lado do amigo condenado.
Wulfgar lançou Cattiebrie para trás dele e voltou-se para o dragão.
A serpente, com os olhos fixos na expressão inflexível do anão, sequer notou Garra de Palas girando em sua direção, nem a intrépida investida do imenso bárbaro.
O poderoso martelo de guerra atingiu as escamas negras como a plumagem de um corvo, mas foi rechaçado, inócuo. Enfurecido por alguém ter interrompido o momento
de sua vitória, Trêmulo Obscuro lançou um olhar feroz para Wulfgar.
E soprou.
A mais absoluta escuridão envolveu Wulfgar e exauriu a força dos seus ossos. Ele sentiu como se caísse, como se caísse eternamente e não houvesse ali a pedra
para recebê-lo.
Cattiebrie gritou e correu até ele, indiferente ao risco que ela própria corria ao mergulhar na nuvem negra do hálito de Trêmulo Obscuro.
Bruenor tremeu de raiva, tremeu pela sua gente morta havia tanto tempo e pelo seu amigo.
- Dá o fora da minha casa! - ele bradou para Trêmulo Obscuro, depois investiu de cabeça e lançou-se contra o dragão, com o machado a golpear furiosamente,
tentando impelir o monstro por sobre a beirada. O fio de mitral da arma foi mais efetivo contra as escamas do que o martelo de guerra, mas o dragão resistiu.
Uma pata pesada lançou Bruenor de costas ao solo e, antes que este pudesse se levantar, o pescoço flexível como um látego baixou sobre ele, e o anão foi erguido
na bocarra do dragão.
Régis recuou mais uma vez, tremendo de medo.
- Bruenor! - ele suplicou novamente e, dessa vez, suas palavras não pas saram de um sussurro.
A nuvem negra se dissipou ao redor de Cattiebrie e Wulfgar, mas o bárbaro recebera a força total da insidiosa peçonha de Trêmulo Obscuro. Ele quis fugir,
mesmo que a única rota de fuga fosse mergulhar de cabeça garganta abaixo. Os latidos dos mastins das sombras, embora ainda estivessem a muitos minutos de distância,
cerraram-se sobre ele. Todas as suas fendas - o esmagamento do golem, os cortes infligidos pelos anões cinzentos - doíam vividamente, fazendo com que ele se encolhesse
a cada passo, apesar de a adrenalina da batalha ter tantas vezes antes ignorado ferimentos muito mais graves e dolorosos.
O dragão parecia a Wulfgar dez vezes mais poderoso, e ele não conseguia sequer se resolver a erguer uma arma contra a fera, pois acreditava até o âmago que
Trêmulo Obscuro não seria derrotado.
O desespero o deteve onde o fogo e o aço falharam. Cambaleando, ele retrocedeu com Cattiebrie em direção a uma outra sala, deixando-se arrastar por ela, já
sem forças.
Bruenor perdeu todo o fôlego quando a terrível bocarra se fechou sobre ele. Agarrou-se teimosamente ao machado e até mesmo conseguiu desferir um ou dois golpes.
Cattiebrie empurrou Wulfgar através da porta, para dentro do abrigo da pequena sala, depois deu meia-volta para lutar na caverna.
- Seu bastardo filho de um lagarto demoníaco! - disse ela, com veemência, ao colocar Taulmaril em ação. Flechas flamejantes e prateadas abriram buracos
na armadura negra de Trêmulo Obscuro. Quando Cattiebrie compreendeu o grau de eficácia de sua arma, ela se agarrou a um plano desesperado. Apontando os disparos
seguintes para os pés do monstro, procurou expulsá-lo da saliência.
Tremulo Obscuro pulou, dolorido e confuso, quando os virotes ardentes o atingiram com um zunido. O ódio fervilhante dos olhos semicerrados do dragão se
abateu sobre a moça corajosa. Ele cuspiu a forma alquebrada de Bruenor no chão e rugiu:
- Conheça o medo, menina tola! Experimente o meu hálito e saiba que está condenada! - Os pulmões negros se expandiram, pervertendo o ar inspirado e
transformando-o na nuvem fétida de desespero.
Então, a pedra na beirada da garganta se desprendeu.
Foi pequena a alegria de Régis quando o dragão caiu. Ele conseguiu arrastar Bruenor de volta à ante-sala, mas não tinha idéia do que fazer em seguida. Atrás
dele, aproximavam-se os implacáveis mastins das sombras; ele se achava separado de Wulfgar e Cattiebrie e não ousava atravessar a caverna sem saber se o dragão realmente
morrera. Fitou a forma maltratada e coberta de sangue de seu mais antigo amigo, sem a menor idéia de como poderia começar a ajudá-lo, ou até mesmo se Bruenor ainda
vivia.
Somente a surpresa retardou os instantâneos guinchos de alegria de Régis quando Bruenor abriu os olhos e piscou.
Drizzt e Entreri colaram-se à parede quando as pedras da saliência arrebentada passaram perigosamente perto deles. O deslizamento só durou um instante, e
Drizzt voltou a subir imediatamente, desesperado para chegar aos amigos.
No entanto, ele precisou parar novamente e aguardar, ansioso, até que a forma negra do dragão em queda passasse por ele, depois se recuperou rapidamente e
voltou a se movimentar em direção à beirada.
- Como? - Régis perguntou, pasmo diante do anão.
Bruenor se remexeu desconfortavelmente e se esforçou para ficar de pé. A malha de mitral resistira à mordida do dragão, mas Bruenor fora terrivelmente esmagado
e a experiência deixou nele fileiras de profundas equimoses e, provavelmente, um grande número de costelas quebradas. Contudo, o resistente anão ainda estava muito
vivo e alerta, ignorava a dor considerável que sentia para dar atenção à questão mais importante diante dele: a segurança de seus amigos.
- Cadê o garoto? E Cattiebrie? - insistiu imediatamente, e os uivos dos mastins das sombras ao fundo acentuaram o desespero da sua voz.
- Numa outra sala - Régis respondeu, indicando a área à direita, passando a porta que se abria para a caverna.
- Cat! - gritou Bruenor. - 'Cê 'tá bem?
Depois de uma pausa aturdida, pois Cattiebrie também não esperara ouvir a voz de Bruenor novamente, ela respondeu:
- Wulfgar não consegue mais lutar, eu receio! Um feitiço do dragão, pelo que vejo! Mas, na minha opinião, a gente deve partir! Os cães vão chegar aqui
muito antes do que eu gostaria!
- É! concordou Bruenor, levando a mão à pontada de dor em seu flanco ao berrar. - Mas 'cê viu a serpente?
- Não, nem ouvi o monstro! - veio a resposta incerta.
Bruenor olhou para Régis.
- Ele caiu, e não voltou ainda - o halfling respondeu ao olhar inquisitivo, tampouco convencido de que Trêmulo Obscuro fora derrotado tão facilmente.
- A gente não tem escolha, então! - gritou Bruenor. - A gente tem que chegar na ponte! Dá prá trazer o garoto?
- Foi só a vontade de lutar dele que saiu machucada! - respondeu Cattiebrie. - Vamos estar lá com vocês!
Bruenor agarrou o ombro de Régis, amparando o amigo ansioso.
- Vamos indo, então! - vociferou ele, com sua familiar voz confiante.
Régis sorriu, apesar do pavor, diante da reaparição do antigo Bruenor. Sem que precisasse ser persuadido, ele deixou a sala ao lado do anão.
Mal haviam dado o primeiro passo em direção à garganta e a nuvem negra que era Trêmulo Obscuro novamente galgou a beirada.
- 'Cê viu? - gritou Cattiebrie.
Bruenor recuou para dentro da sala, vendo o dragão com bastante clareza. A morte o acossava, insistente e inescapável. O desespero anulou sua determinação,
não por si mesmo, pois sabia que seguira o curso lógico da própria sina ao retornar ao Salão de Mitral - um destino que fora estampado na tessitura de seu próprio
ser desde o dia em que sua gente fora chacinada -, mas seus amigos não deveriam perecer daquela maneira. Não o halfling, que antes sempre encontrara um modo de escapar
de toda e qualquer armadilha. Não o garoto, com tantas aventuras gloriosas diante dele.
E não a sua menina. Cattiebrie, sua própria filha querida. A única luz que de fato brilhara nas minas do Clã Martelo de Batalha, no Vale do Vento Gélido.
Somente a morte do drow, companheiro sincero e mais caro amigo, já fora um preço demasiado alto por sua audácia egoísta. A perda que o afrontava agora era
simplesmente excessiva para que ele a suportasse.
Seus olhos dardejaram pela pequena sala. Tinha de haver uma alternativa. Se um dia demonstrara sua fé nos deuses anões, ele rogava agora que lhe concedessem
uma única coisa. Que lhe dessem uma alternativa.
Havia uma pequena cortina numa das paredes da sala. Bruenor olhou para Régis, curioso.
O halfling deu de ombros.
- Uma despensa - disse ele. - Nada de valor. Nem mesmo uma arma.
Bruenor não aceitou a resposta. Ele atravessou correndo a cortina e começou a vasculhar os engradados e sacos que se encontravam lá dentro. Comida desidratada.
Pedaços de madeira. Um manto sobressalente. Um odre de água.
Um barril de óleo.
Trêmulo Obscuro esvoaçava de lá para cá ao longo da extensão da garganta, à espera dos invasores para enfrentá-los nos próprios termos no interior da vasta
caverna, confiante que os mastins das sombras levantariam a caça.
Drizzt praticamente alcançara o nível do dragão, prosseguindo vigorosamente em face do perigo, sem qualquer outra preocupação que não seus amigos.
- Espere! - Entreri gritou para ele, um pouco mais abaixo. - Você está tão determinado assim a se matar?
- Dane-se o dragão! - Drizzt sibilou como resposta. - Não vou me encolher nas sombras e assistir à destruição dos meus amigos.
- E o que você ganharia morrendo com eles? - veio a resposta sarcástica. - Você é um idiota, drow. Você vale muito mais do que todos os seus lamentáveis
amigos juntos!
- Lamentáveis? - Drizzt repetiu, incrédulo. - Eu lamento é por você, assassino.
A desaprovação do drow ofendeu Entreri mais do que ele próprio teria esperado.
- Então lamente por si mesmo! - ele devolveu, furioso. - Pois você é mais parecido comigo do que gostaria de acreditar!
- Se eu não for até eles, suas palavras serão verdadeiras - continuou Drizzt, agora mais calmo. - Pois então minha vida não terá qualquer valor, menos
ainda do que a sua! Caso eu aceitasse a impiedosa inanidade que domina o seu mundo, toda a minha vida não passaria então de uma mentira. - Ele voltou a subir, esperando
honestamente morrer, mas seguro em sua percepção de que era realmente muito diferente do assassino que o seguia.
Seguro, também, por saber que escapara à própria herança.
Bruenor voltou a atravessar a cortina com um sorriso selvagem no rosto, um manto embebido em óleo sobre o ombro e o barril amarrado às costas. Régis o fitou
na mais completa confusão, apesar de adivinhar o bastante do que o anão tinha em mente para se preocupar com o amigo.
- Que é que 'cê 'tá olhando? - disse Bruenor, com uma piscadela.
- Você é louco - respondeu Régis, e o plano de Bruenor ficava cada vez mais claro quanto mais ele estudava o anão.
- Sei, a gente concordou nisso antes da viagem começar! - riu Bruenor, desdenhoso. Ele se acalmou subitamente, o brilho selvagem se abrandou e se converteu
numa preocupação afetuosa por seu pequeno amigo. - 'Cê não merecia o jeito que eu te tratei, Ronca-bucho - disse ele, mais à vontade do que jamais estivera ao se
desculpar.
- Eu nunca tive um amigo mais leal do que Bruenor Martelo de Batalha - replicou Régis.
Bruenor retirou o elmo cravado de pedras preciosas da cabeça e o jogou para o halfling, confundindo Régis ainda mais. Levou uma das mãos às costas e soltou
uma tira amarrada entre a mochila e o cinto, removendo seu antigo elmo. Passou um dedo pelo chifre quebrado e sorriu ao recordar as fantásticas aventuras que haviam
maltratado tanto aquele elmo. Até mesmo o ponto amassado onde Wulfgar o atingira, tantos anos atrás, quando os dois se encontraram pela primeira vez, como inimigos.
Bruenor colocou o elmo, mais à vontade com seu ajuste perfeito, e Régis o viu à luz da velha amizade.
- Guarde bem o elmo - Bruenor disse a Régis. - E a coroa do Rei do Salão de Mitral!
- Então ele é seu - argumentou Régis, estendendo o elmo para Bruenor.
- Não, nem por direito e nem por minha escolha. O Salão de Mitral não existe mais, Ronca... Régis. Eu sou Bruenor do Vale do Vento Gélido, e sou o
que sou há duzentos anos, só que sempre fui muito cabeça-dura prá entender isso!
- Desculpa a minha rabugice - disse ele. - Por certo que os meus pensamentos andaram trilhando tanto o passado quanto o futuro.
Régis assentiu e disse, com genuína preocupação:
- O que você vai fazer?
- Cuida da sua parte neste negócio! - bufou Bruenor, de repente o líder feroz mais uma vez. - Já é muita coisa 'cê ter que sair sozinho destes malditos
salões quando eu acabar! - Ele grunhiu uma ameaça para o halfling a fim de mantê-lo afastado, depois se moveu rapidamente, apanhando uma tocha da parede e lançando-se
pela porta da caverna antes que Régis conseguisse sequer fazer menção de impedi-lo.
A forma negra do dragão roçava a beirada da garganta, mergulhava baixo sob a ponte e retornava ao nível que vinha patrulhando. Bruenor o observou durante
alguns momentos para sentir o ritmo de seus movimentos.
- Eu te pego, serpente! - grunhiu, à meia-voz, e depois arremeteu. - Este e um dos seus truques, garoto! - ele gritou ao passar pela sala onde se encontravam
Wulfgar e Cattiebrie. - Mas, quando eu resolvo pular nas costas de um dragão, eu não erro!
- Bruenor! - gritou Cattiebrie quando ela o viu correr em direção à garganta.
Era tarde demais. Bruenor tocou o manto embebido em óleo com a tocha e ergueu o machado de mitral bem alto diante dele. O dragão o ouviu chegando e guinou
para mais perto da beirada a fim de investigar - e ficou tão assombrado quanto os amigos do anão quando Bruenor, com o ombro e as costas em chamas, saltou desde
a beirada e caiu sobre o monstro, deixando um rastro de fogo.
Impossivelmente forte, como se todos os fantasmas do Clã Martelo de Batalha houvessem juntado suas mãos às de Bruenor em volta do cabo do machado e emprestado-lhe
sua força, o primeiro golpe do anão enterrou o machado de mitral nas costas de Trêmulo Obscuro. Bruenor colidiu com o dragão logo em seguida, mas agarrou-se firmemente
à arma encravada, muito embora o barril de óleo se despedaçasse com o impacto e vomitasse chamas por todo o costado do monstro.
Trêmulo Obscuro guinchou, ultrajado, e guinou furiosamente, chegando mesmo a se chocar contra a parede de pedra da garganta.
Bruenor se recusou a cair. Com selvageria, ele agarrou o cabo, esperando pela oportunidade de liberar a arma e golpear mais uma vez.
Cattiebrie e Régis correram até a beirada da garganta, chamando, impotentes, pelo amigo condenado. Wulfgar também conseguiu se arrastar até lá, ainda lutando
contra as negras profundezas do desespero.
Quando pôs os olhos em Bruenor, estatelado em meio às chamas, o bárbaro se livrou do feitiço do dragão com um brado e, sem a menor hesitação, arremessou Garra
de Palas. O martelo atingiu Trêmulo Obscuro na lateral da cabeça, e o dragão guinou novamente, surpreso, passando rente à outra parede da garganta.
- 'Cê 'tá doido? - Cattiebrie berrou para Wulfgar.
- Pegue seu arco - disse-lhe Wulfgar. - Se você é de fato amiga de Bruenor, então não o deixe morrer em vão! - Garra de Palas retornou às suas mãos
e ele o arremessou novamente, atingindo o alvo uma segunda vez.
Cattiebrie foi obrigada a aceitar a realidade. Ela não podia salvar Bruenor da sina que ele escolhera. Wulfgar estava certo: ela poderia ajudar o anão a conquistar
o objetivo desejado. Piscando os olhos para afastar as lágrimas que afloravam, ela segurou Taulmaril e lançou virotes de prata contra o dragão.
Tanto Drizzt quanto Entreri assistiram ao salto de Bruenor no mais completo assombro. Amaldiçoando a posição impotente em que se encontrava, Drizzt investiu
adiante, quase alcançando a beirada. Gritou para os amigos remanescentes mas, em meio à comoção e aos rugidos do dragão, eles não ouviram.
Entreri estava logo abaixo dele. O assassino sabia que aquela era sua última oportunidade, apesar de correr o risco de perder o único desafio que jamais encontrara
em toda a sua vida. Quando Drizzt procurava alcançar o apoio seguinte, Entreri agarrou-lhe o tornozelo e o puxou para baixo.
O óleo foi abrindo caminho por entre os encaixes das escamas de Trêmulo Obscuro, levando o fogo à carne do dragão. O dragão gritou, sentindo uma dor que jamais
acreditara ser possível conhecer.
O baque do martelo de guerra! A ardência constante daquelas linhas flamejantes de prata! E o anão! Implacável em seus ataques, de algum modo indiferente às
chamas.
Trêmulo Obscuro voou a toda velocidade pela extensão da garganta, mergulhou repentinamente, e depois se alçou e girou no ar. As flechas de Cattiebrie nunca
erravam o alvo. E Wulfgar, mais seguro a cada um de seus ataques, procurava pelas melhores oportunidades para atirar o martelo de guerra, esperando até que o dragão
passasse por um afloramento rochoso na parede, e então impelindo o monstro contra a pedra com a força de seu arremesso.
Chamas, pedra e pó voavam a esmo a cada impacto ensurdecedor.
Bruenor se agüentava. Cantando alto em louvor ao seu pai e aos seus ancestrais, o anão absolveu a si próprio da culpa, contente por ter satisfeito os fantasmas
do seu passado e proporcionado aos amigos uma chance de sobreviver. Ele não sentia o calor do fogo, nem a pancada da pedra. Tudo o que sentia era o estremecimento
da carne do dragão sob sua lâmina e as reverberações dos gritos agoniados de Trêmulo Obscuro.
Drizzt caiu pela face da garganta, procurando desesperadamente algo no que se segurar. Chocou-se contra uma saliência seis metros abaixo do assassino e conseguiu
interromper a queda.
Entreri aprovou o fato e a própria pontaria com um aceno de cabeça, pois o drow caíra exatamente onde ele havia esperado que caísse.
- Adeus, seu tolo confiante! - ele gritou para Drizzt e começou a escalar a parede.
Drizzt jamais confiara na honra do assassino, mas acreditara no pragmatismo de Entreri. Aquele ataque não fazia o menor sentido em termos práticos.
- Por quê? - ele gritou para Entreri. - Você poderia ter conseguido o pingente sem precisar pagar por ele!
- A jóia é minha - replicou Entreri.
- Mas não sem um preço! - declarou Drizzt. - Você sabe que irei atrás de você, assassino!
Entreri o encarou com um sorriso divertido.
- Você não entendeu ainda, Drizzt Do'Urden? É esse exatamente o meu propósito!
O assassino rapidamente alcançou a beirada e espiou por cima dela. À sua esquerda, Wulfgar e Cattiebrie continuavam a atacar o dragão. A sua direita, Régis
estava encantado com a cena, completamente desatento.
A surpresa do halfling foi completa, e seu rosto se empalideceu de terror quando seu pior pesadelo se ergueu diante dele. Régis deixou cair o elmo crivado
de pedras preciosas e desmaiou de medo quando Entreri o apanhou, em silêncio, e partiu em direção à ponte.
Exausto, o dragão tentou encontrar um outro método de defesa. Entretanto, a fúria e a dor o haviam levado longe demais. Recebera muitos golpes e ainda os
raios prateados o atingiam vez após vez.
Ainda o incansável anão arrancava o machado de suas costas e golpeava novamente.
Uma última vez o dragão retrocedeu em pleno vôo, tentando fazer a volta com o pescoço sinuoso para que pudesse ao menos se vingar no cruel anão. Pairou, imóvel,
por apenas uma fração de segundo, e Garra de Palas o acertou no olho.
O dragão girou no ar em fúria cega, perdido num remoinho estonteante de dor, e entrou de cabeça numa porção saliente da parede.
A explosão abalou a própria fundação da caverna, quase atirou Cattiebrie ao chão e derrubou Drizzt de sua precária posição.
Uma última imagem apareceu a Bruenor, uma visão que fez seu coração novamente se rejubilar com a vitória: o olhar penetrante dos olhos cor de lavanda de Drizzt
Do'Urden a lhe acenar um adeus desde as trevas na parede.
Alquebrado e derrotado, as chamas a consumi-lo, o dragão das trevas planou e girou, penetrando o negrume mais profundo que jamais viria a conhecer, um negrume
do qual não poderia haver retorno. As profundezas da Garganta de Garumn.
Levando com ele o legítimo Rei do Salão de Mitral.

23. O PANEGÍRICO DO SALÃO DE MITRAL

O dragão em chamas se deixou cair mais e mais, e a luz das línguas de fogo minguou lentamente até se tornar um mero pontinho no fundo da Garganta de Garumn.
Drizzt galgou a saliência e surgiu ao lado de Cattiebrie e Wulfgar. Cattiebrie segurava o elmo crivado de pedras preciosas e ambos fitavam, impotentes, o
outro lado do abismo. Os dois quase despencaram, surpresos, quando se voltaram e viram o amigo drow de volta do túmulo. Mesmo a aparição de Artemis Entreri não preparara
Wulfgar e Cattiebrie para a aparição de Drizzt.
- Como? - Wulfgar boquiabriu-se, mas Drizzt o interrompeu. Não era hora para explicações; eles tinham assuntos mais urgentes e imediatos.
Do outro lado da garganta, bem ao lado da alavanca ligada à ponte, estava Artemis Entreri, segurando Régis pelo pescoço diante dele e sorrindo perversamente.
O pingente de rubi agora pendia do pescoço do assassino.
- Solte-o - disse Drizzt serenamente. - Como havíamos concordado.
- Você tem a jóia.
Entreri gargalhou e puxou a alavanca. A ponte de pedra estremeceu, depois se desfez em pedaços, caindo na escuridão lá embaixo.
Drizzt achara que começava a entender as motivações do assassino para tamanha traição, deduzindo agora que Entreri capturara Régis para garantir a perseguição
e, assim, dar continuidade ao desafio pessoal entre ele e Drizzt. Mas, agora, com a ponte destruída e nenhuma escapatória aparente diante de Drizzt e seus amigos,
e os latidos incessantes dos mastins das sombras cada vez mais perto, às costas deles, as teorias do drow não pareciam se sustentar. Furioso com a própria confusão,
ele reagiu rapidamente. Tendo perdido seu arco na alcova, Drizzt arrebatou Taulmaril das mãos de Cattiebrie e prendeu uma flecha.
Entreri se moveu com a mesma rapidez. Correu para a saliência, ergueu Régis por um tornozelo e o segurou com uma só mão por sobre a beirada. Wulfgar e Cattiebrie
sentiram o estranho elo entre Drizzt e o assassino e compreenderam que o drow estava mais apto a lidar com aquela situação. Eles retrocederam um passo e se abraçaram.
Drizzt manteve o arco firme e retesado, sem jamais piscar os olhos enquanto procurava um lapso nas defesas de Entreri.
Entreri chacoalhou Régis perigosamente e gargalhou mais uma vez.
- A estrada para Calimporto é realmente longa, drow. Você terá a oportunidade de me alcançar.
- Você bloqueou nossa rota de fuga - retorquiu Drizzt.
- Uma inconveniência necessária - explicou Entreri. - Sem dúvida, você achará um meio de sair, mesmo que seus outros amigos não consigam. E eu estarei
esperando!
- Eu irei - prometeu Drizzt. - Você não precisa do halfling para me fazer desejar caçá-lo, assassino imundo.
- É verdade - disse Entreri. Ele enfiou a mão na bolsa, sacou um pequeno objeto e o arremessou no ar. A coisa subiu, rodopiou sobre ele e depois caiu.
Ele estendeu o braço e apanhou o objeto pouco antes que este despencasse na garganta. Arremessou-o novamente. Algo pequeno, algo negro.
Entreri o arremessou uma terceira vez, provocante, e o sorriso se espalhou pelo seu rosto enquanto Drizzt baixava o arco. Guenhwyvar.
- Eu não preciso do halfling - declarou Entreri, categórico, e estendeu Régis um pouco mais sobre o abismo.
Drizzt largou o arco mágico atrás de si, mas manteve o olhar fixo no assassino.
Entreri trouxe Régis de volta à saliência.
- Mas meu mestre exige o direito de matar este ladrãozinho. Trace seus planos, drow, pois os mastins se aproximam. Sozinho, suas chances são melhores.
Abandone esses dois aí e viva!
- Então venha, drow. Vamos dar um fim ao nosso assunto. - Ele gargalhou mais uma vez, girou sobre os calcanhares e sumiu na escuridão do último túnel.
- Já escapou - disse Cattiebrie. - Bruenor disse que aquela passagem é uma rota direta até a porta que dá prá fora dos salões.
Drizzt olhou ao redor, tentando encontrar algum meio de atravessar o abismo.
- O próprio Bruenor disse que tem um outro caminho - ofereceu Cattiebrie. Ela apontou a sua direita, em direção à extremidade sul da caverna. saliência
- disse -, mas são horas de caminhada.
- Então corram - replicou Drizzt, os olhos ainda fixos no túnel do outro lado da garganta.
Quando os três companheiros chegaram à saliência, os ecos dos uivos e os pontos de luz mais ao norte informavam que os duergar e os mastins das sombras haviam
entrado na caverna. Drizzt os conduziu pelo estreito passadiço, com as costas coladas à parede enquanto ele se dirigia lentamente ao outro lado. Toda a garganta
se achava exposta diante dele, e as chamas ainda ardiam lá embaixo, um lembrete sinistro do destino de seu amigo de longas barbas. Talvez fosse apropriado que Bruenor
morresse ali, no lar de seus ancestrais, ele pensou. Talvez o anão houvesse finalmente satisfeito o desejo ardente que havia determinado boa parte de sua vida.
No entanto, a perda ainda era intolerável para Drizzt. Os anos ao lado de Bruenor haviam lhe revelado um amigo compassivo e respeitado, um amigo com quem
sempre poderia contar, em qualquer circunstância. Drizzt poderia repetir para si mesmo que Bruenor estava satisfeito, que o anão escalara sua montanha e vencera
sua batalha pessoal, mas, na terrível contigüidade da morte dele, esses pensamentos em nada ajudaram a dispersar o pesar do drow.
Cattiebrie piscou os olhos para se livrar de mais algumas lágrimas e o suspiro de Wulfgar desmentiu seu estoicismo quando os dois atravessaram a garganta
que se tornara o túmulo de Bruenor. Para Cattiebrie, Bruenor foi o pai e o amigo que lhe ensinou a ter firmeza e a enterneceu com seu afeto. Todas as constantes
do mundo, sua família e seu lar, ardiam lá embaixo, nas costas de um dragão infernal.
Um entorpecimento baixou sobre Wulfgar, a frialdade gélida da mortalidade e a percepção de quão frágil podia ser a vida. Drizzt retornara, mas, agora, Bruenor
se fora. Acima de quaisquer emoções de alegria ou pesar, surgiu uma onda de instabilidade, uma trágica reformulação de imagens heróicas e lendas cantadas pelos bardos
que ele não havia antecipado. Bruenor morrera com coragem e força, e a história de seu salto incandescente seria contada e recontada milhares de vezes. Mas nunca
preencheria o vazio que Wulfgar sentia naquele momento.
Eles se dirigiram ao outro lado do abismo e dispararam rumo norte para chegar ao último túnel e livrar-se dos mastins das sombras do Salão de Mitral.
Quando chegaram novamente ao vasto final da caverna, foram avistados. Os duergar gritaram e os amaldiçoaram; os imensos e negros mastins das sombras rugiram
suas ameaças e arranharam a orla do outro lado da garganta. Mas seus inimigos não tinham como chegar até eles, a não ser contornando todo o abismo até a saliência,
e Drizzt entrou sem oposição no túnel pelo qual Entreri havia passado algumas horas antes.
Wulfgar o seguiu, mas Cattiebrie se deteve na entrada e olhou para trás, para o outro lado da garganta, para o exército de anões cinzentos ali reunido.
- Venha - disse-lhe Drizzt. - Não há nada que possamos fazer aqui e Régis precisa da nossa ajuda.
Os olhos de Cattiebrie se estreitaram, e ela apertou os dentes com força ao prender uma flecha ao arco e disparar. O raio de prata penetrou com um zunido
o ajuntamento de duergar e arrancou a vida de um deles, fazendo com que os outros corressem em busca de abrigo.
- Nada, agora - Cattiebrie replicou sombriamente -, mas eu vou voltar! Quero que esses canalhas cinzentos saibam disso.
- Eu vou voltar!


EPÍLOGO

Drizzt, Wulfgar e Cattiebrie entraram em Sela Longa alguns dias depois, cansados da viagem e ainda envoltos numa mortalha de pesar. Harkle e sua gente os
receberam calorosamente e os convidaram a ficar na Mansão de Hera por quanto tempo desejassem. Mas, embora todos os três tivessem acolhido com prazer a oportunidade
de relaxar e se recuperar de suas provações, outras estradas clamavam por eles.
Drizzt e Wulfgar se achavam à saída de Sela Longa na manhã seguinte, com cavalos descansados fornecidos pelos Harpells. Cattiebrie caminhou até eles lentamente,
com Harkle apenas alguns passos atrás dela.
- Você vem? - perguntou Drizzt, mas adivinhou pela expressão da moça que ela não viria.
- Eu queria poder - replicou Cattiebrie. - 'Cês vão achar o halfling, tenho certeza. Tenho uma outra promessa a cumprir.
- Quando? - perguntou Wulfgar.
- Na primavera, acho - disse Cattiebrie. - A magia dos Harpells colocou a coisa toda em andamento; eles já chamaram o clã, lá no vale, e Harbromm,
na Cidadela Adbar. A gente de Bruenor vai estar em marcha antes do fim desta semana, com muitos aliados de Dez-Burgos. Harbromm promete oito mil, e alguns dos Harpells
prometeram ajudar.
Drizzt pensou na cidade subterrânea que vira ao passar pelos níveis inferiores, e na bulha de milhares de anões cinzentos, todos apetrechados com mitral reluzente.
Mesmo com todo o Clã Martelo de Batalha e seus amigos do vale, oito mil anões experientes vindos de Adbar e os poderes mágicos dos Harpells, a vitória, caso chegasse,
seria duramente conquistada.
Wulfgar também compreendia a enormidade da tarefa que Cattiebrie enfrentaria e colocou em dúvida sua decisão de partir ao lado de Drizzt. Régis precisava
dele, mas ele não podia abandonar Cattiebrie num momento de necessidade.
Cattiebrie percebeu-lhe o tormento. Caminhou até ele e o beijou de repente, com paixão, depois se afastou bruscamente.
- Termine esse assunto, Wulfgar, filho de Beornegar - ela disse. - E volte prá mim!
- Eu também era amigo de Bruenor - argumentou Wulfgar. - Eu também partilhei de sua visão do Salão de Mitral. Eu deveria estar ao seu lado quando você
fosse honrá-lo.
- 'Cê tem um amigo ainda com vida que precisa de você agora - Cattiebrie retrucou. - Eu posso colocar os planos em ação. Trate de ir atrás de Régis!
Dê a Entreri tudo o que ele merece e seja rápido. Pode ser que 'cê volte a tempo de marchar até os salões.
Ela se voltou para Drizzt, um herói de extrema confiança.
- Traga ele inteiro prá mim - ela implorou. - Mostra prá ele a estrada mais curta e também o caminho de volta!
Com o assentimento de Drizzt, ela girou sobre os calcanhares e correu de volta a Harkle e em direção à Mansão de Hera. Wulfgar não a acompanhou. Confiava
em Cattiebrie.
- Pelo halfling e pelo gato - ele disse a Drizzt, apertando Garra de Palas e inspecionando a estrada diante deles.
Chamas repentinas brilharam nos olhos cor de lavanda do drow, e Wulfgar deu um passo involuntário para trás.
- E por outras razões - disse Drizzt sombriamente, fitando as vastas terras do sul que encerravam o monstro que ele poderia ter se tornado. Ele sabia
ser seu destino encontrar Entreri em batalha novamente, o teste de seu próprio valor para derrotar o assassino.
- Por outras razões.

*****

Dendibar respirava com dificuldade ao ver a cena: o cadáver de Sidnéia enfiado num canto de uma sala escura.
O espectro, Morkai, fez um gesto largo com o braço e a imagem foi substituída pela visão do fundo da Garganta de Garumn.
- Não! - gritou Dendibar ao ver os restos do golem, sem a cabeça, entre os escombros. O mago variegado estremeceu visivelmente. - Onde está o drow?
- ele indagou ao espectro.
Morkai desfez a imagem com um aceno e ficou em silêncio, satisfeito com a aflição de Dendibar.
- Onde está o drow? - Dendibar repetiu, mais alto.
Morkai riu.
Encontre as próprias respostas, seu feiticeiro tolo. Meus serviços chegaram ao fim! - A aparição se transformou em chamas e sumiu.
Dendibar saltou furiosamente de seu círculo mágico e emborcou o braseiro ardente com um pontapé.
- Hei de atormentá-lo milhares de vezes por sua insolência! - ele berrou para o vazio da sala. Sua mente girava com as possibilidades. Sidnéia, morta. Bok,
morto. Entreri? O drow e seus amigos? Dendibar precisava de respostas. Ele não poderia renunciar à sua busca pela Estilha de Cristal; não lhe seria negado o poder
que tanto anelava.
Inspirou fundo para se acalmar e concentrou-se nas preliminares de um encantamento. Reviu o fundo da garganta, focalizou a imagem em sua mente. À medida que
entoava os cânticos do ritual, a cena se tornava mais real, mais palpável. Dendibar a experimentou em sua plenitude; a escuridão, a inanidade oca das paredes sombrias
e o silvo quase imperceptível do ar que atravessava velozmente a ravina, a dureza pontiaguda da pedra partida sob seus pés.
Com um passo, deixou o território de seus pensamentos e entrou na Garganta de Garumn.
- Bok - ele sussurrou ao fitar de cima a forma retorcida e alquebrada de sua criação, sua maior realização.
A coisa se mexeu. Uma pedra rolou para longe quando o monstro se moveu e lutou para ficar de pé diante de seu criador. Dendibar assistiu a tudo, incrédulo,
atônito com a capacidade de recuperação do golem conferida pelo poder mágico com que ele impregnara a criatura, a ponto de esta sobreviver a uma queda como aquela
e a tamanha mutilação.
Bok se ergueu diante dele e aguardou.
Dendibar estudou a coisa durante algum tempo, imaginando como poderia começar a restaurá-la.
- Bok! - ele saudou o monstro enfaticamente enquanto lhe ocorria um sorriso esperançoso. - Venha, meu querido. Eu o levarei para casa e tratarei seus ferimentos.
Bok deu um passo adiante, imprensando Dendibar contra a parede. O mago, ainda sem compreender, começou a ordenar que o golem se afastasse.
Mas o braço remanescente de Bok subiu rápido como um raio e agarrou Dendibar pelo pescoço, erguendo-o no ar e desencorajando quaisquer outros comandos. Dendibar
agarrou e golpeou aquele braço, indefeso e confuso.
Uma risada familiar lhe chegou aos ouvidos. Uma bola de fogo apareceu acima do coto dilacerado do pescoço do golem, transformando-se num rosto Morkai.
Os olhos de Dendibar se esbugalharam de pavor. Percebeu que havia ultrapassado os próprios limites, que havia invocado o espectro vezes demais. Ele não
havia de fato dispensado Morkai daquele último encontro e desconfiou corretamente que ele provavelmente não teria sido forte o bastante para expulsar o espectro
do plano material mesmo se tivesse tentado. Agora, fora de seu círculo mágico de proteção, ele estava à mercê de sua nêmesis.
- Venha, Dendibar - sorriu Morkai, e sua vontade dominadora torceu o braço do golem. - Junte-se a mim no reino da morte onde nós poderemos discutir sua traição!
O estalido dos ossos ecoou pelas pedras, a bola de fogo se desfez, e mago e golem tombaram, sem vida.
Num outro ponto da garganta, meio enterradas numa pilha de escombros, as chamas do dragão ardente haviam se extinguido e dado lugar a brasas fumegantes.
Outra pedra se moveu e rolou para longe  

 

 

                                                    R. A. Salvatore         

 

 

 

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