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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RIOS DE PÚRPURA / Jean Christophe Grange
RIOS DE PÚRPURA / Jean Christophe Grange

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

Pierre Niémans, dedos crispados sobre o emissor via lá em baixo a multidão a descer as rampas de betão do Parque dos Príncipes. Milhares de crânios afogueados, de chapéus brancos, de cachecóis garridos, formando uma fita sarapintada e delirante. Uma explosão de confetis. Ou uma legião de demónios alucinados. E as três notas, sem descanso, lentas e lancinantes: Ganhámos!”.

 

O polícia, de pé sobre o telhado do jardim de infância que ficava defronte do parque, tinha em panorama as manobras da terceira e quarta brigadas das companhias republicanas de segurança. Os homens de azul escuro corriam sob os seus capacetes negros, protegidos pelos escudos de policarbonato. O método clássico. Duzentos homens de ambos os lados de cada série de portas, e comandos em barreira, incumbidos de evitar que os adeptos das duas equipas se cruzassem, se abeirassem uns dos outros ou se avistassem sequer...

 

Nessa noite, para o encontro Saragoça-Arsenal, a única partida do ano em que duas equipas não-francesas se defrontavam em Paris, mais de mil e quatrocentos polícias e gendarmes tinham sido mobilizados. Controlo de identidade, revistas de alto a baixo e enquadramento dos quarenta mil adeptos vindos dos dois países. O comissário principal Pierre Niémans era um dos responsáveis por tais manobras. Este tipo de operações não correspondia às suas funções habituais, mas o polícia de cabelo cortado à escovinha apreciava exercícios assim. Vigilância e enfrentamento puros. Sem inquérito nem autos. De certo modo, uma tal gratuitidade repousava-o. E gostava do aspecto militar deste exército em marcha.

 

Os adeptos chegavam ao primeiro nível - podia-se lobrigá-los entre as fuselagens betonadas da construção, acima das portas H e G. Niénams consultou o seu relógio. Dentro de quatro minutos estariam cá fora, derramando-se na calçada. Começariam então os riscos de contactos, de atritos, de rupturas. O polícia encheu os pulmões até ao fundo. A noite de Outubro estava carregada de tensões.

 

Dois minutos. Por reflexo, Niémans voltou-se e enxergou ao longe a Porta de Saint-Cloud. Absolutamente deserta. As três fontes erguiam-se na noite, como tótemes de inquietude. Ao longo da avenida, os carros de CRS apertavam-se em fila indiana. Em frente, alguns homens remexiam os ombros, de capacetes afivelados no cinto e matracas a bater na perna. As brigadas de reserva.

 

O chinfrim aumentou. A multidão espraiava-se por entre as grades eriçadas de bicos. Niémans não pôde reprimir um sorriso. Era disto que ele tinha vindo à procura. Houve uma vaga. Clarins rasgaram o alarido. Um fragor fez vibrar o mínimo interstício do cimento: “Ganhámos! Ganhámos!”. Niémans carregou no botão do emissor e falou ajoachim, o chefe da companhia leste. - Aqui, Niémans. Estão a sair. Canalizem-nos para os carros, na alameda Murat, para as áreas de estacionamento, as bocas do metropolitano.

 

Das alturas, o polícia avaliou a situação: os riscos daquele lado eram mínimos. Os vencedores nessa noite eram os espanhóis, e portanto os menos perigosos. Os ingleses estavam a sair pela ala oposta, portas A e K, junto à bancada de Bolonha - a tribuna dos animais ferozes. Niémans iria deitar uma olhadela assim que esta operação encarrilasse.

 

De súbito, à luz dos candeeiros, por cima da turba voou uma garrafa de vidro. O polícia viu abater-se uma matraca, fileiras cerradas a recuar, homens a cair. Berrou no emissor: _Joachim, porra! Segure os seus homens!

 

Niémans embrenhou-se na escada de serviço e desceu de escantilhão os oito andares a pé. Quando saiu para a avenida, já duas linhas de CRS acorriam, prontos a subjugar os hooligans, Niémans precipítou-se ao encontro dos homens em armas e agitou os braços em longos acenos circulares. As matracas já estavam a poucos metros do seu rosto quando Joachim irrompeu à direita, de capacete enterrado na cabeça. Levantou a viseira e desferiu um olhar enfurecido:

 

- Santo Deus, Niémans, é doido ou quê? À paisana, ainda apanha...

 

O polícia ignorou a interpelação:

 

- Que vem a ser esta merda? Domine os seus homens, Joachim! Caso contrário, daqui a três minutos teremos um tumulto.

 

Rotundo, rubicundo, o capitão ofegava. O seu bigodinho, modelo princípio do século, estremecia ao sabor da sua respiração sacudida. A banda VHF ressoou: “A... Apelo a todas as unidades... Apelo a todas as unidades ... A curva de Bolonha... rua do Commandant Guilbaud... Eu     ... Temos um problema! “. Niémans fitou Joachim como se fosse ele o único responsável pelo caos generalizado. Os seus dedos tactearam o emissor:

- Aqui, Niémans. Vamos já. - Depois ordenou ao capitão, numa voz refreada:

 

- Vou até lá. Mande-nos o máximo de homens. E arrume a situação aqui.

 

Sem aguardar a resposta do oficial, o comíssârio correu em busca do estagiário que lhe servia de motorista. Atravessou a praça em longas passadas, avistou ao longe os empregados da Cervejaria dos Príncipes, que desciam à pressa as portas ondulantes. O ar estava saturado de angústia.

 

Descortinou finalmente o moreno baixote de blusão de cabedal, que andava de um lado para o outro ao pé de um chaço preto. Niémans bradou, dando uma palmada no capot do automóvel.

 

- Depressa! A curva de Bolonha!

 

Os dois homens subiram no mesmo instante. As rodas fumegaram ao arrancar. O estagiário virou à esquerda do estádio a fim de alcançar a porta K o mais depressa possível, ao longo de um caminho vedado por razões de segurança. Niémans teve uma intuição:

 

- Não - murmurou ele -, dá a volta. A bulha vai deslocar-se na nossa direcção.

 

O automóvel fez um rodopio, deslizando sobre as poças dos camiões de água já prontos para as represálias. Em seguida percorreu a avenida do Parque dos Príncipes, ao longo de um corredor estreito formado pelos carros cinzentos da guarda móvel. Os homens de capacete que corriam no mesmo sentido afastaram-se sem lhes lançar um só olhar. Niémans colocara o farol magnético no tejadilho. O estagiário virou à esquerda nas imediações do liceu Claude-Bernard e contornou a praceta, a fim de ladear o terceiro lanço do estádio. Acabavam de ultrapassar a bancada de Auteuil.

 

Quando Niémans viu as primeiras nuvens de gás a pairar no ar, soube que fizera bem: o confronto chegarajá à praça da Europa.

 

O automóvel atravessou o nevoeiro esbranquiçado e teve de travar bruscamente diante das primeiras vítimas, que fugiam sem olhar para trás. A batalha desencadeara-se mesmo em frente da tribuna presidencial. Homens de gravata e mulheres cintilantes corriam e tropeçavam, com o rosto banhado em lágrimas. Alguns procuravam uma abertura para as ruas; outros, pelo contrário, subiam de novo os degraus conducentes aos pórticos do estádio.

 

Niémans saltou do veículo. No meio da praça, corpos amalgamados desancavam-se sem dó nem piedade. Distinguiam-se vagamente as cores berrantes da equipa inglesa e as silhuetas escuras dos CRS. Alguns destes rojavam-se no chão - espécie de lesmas ensanguentadas -, enquanto outros, à distância, hesitavam em utilizar as suas espingardas antimotins por causa dos colegas feridos.

 

O comissário guardou os óculos e atou um lenço em volta do rosto. Dirigiu-se ao CRS mais próximo e arrancou-lhe a matraca, estendendo-lhe no mesmo gesto o seu cartão tricolor. O homem ficou estupefacto; o vapor embaciava a viseira translúcida do seu capacete.

 

Pierre Niémans correu para o meio da bordoada. Os adeptos do Arsenal agrediam a murro, a golpes de barras e de tacões ferrados, enquanto os CRS ripostavam recuando, tentando defender os colegas já levados ao tapete. Havia corpos a gesticular, rostos a amarfanhar-se, mandíbulas a percutir o asfalto. Os bastões erguiam-se e abatiam-se, dobrando-se sob a violência das pancadas.

 

O oficial avançou para a peleja.

 

Serviu-se do punho, da matraca. Agadanhou um tipo gordo e depois assestou-lhe uma série de directos. Nas costelas, no baixo-ventre, na cara. De repente, amargou um pontapé vindo da direita, depois levantou-se aos urros. O seu bastão encurvou-se na garganta do agressor. O sangue zumbia-lhe na cabeça, um gosto a metal anestesiava-lhe a boca. Não pensava em nada, não sentia nada. Estava na guerra e sabia-o.

 

Nisto, reparou numa cena estranha. A cem metros dali, um homem à paisana, bastante maltratado, debatia-se agarrado por dois hooligans. Niémans escrutou os veios de sangue no rosto do adepto, os gestos mecânicos dos dois outros, frenéticos de ódio. Mais um instante e Niémans compreendeu: o ferido e os dois agressores arvoravam nos seus blusões as insígnias dos clubes rivais.

 

Um ajuste de contas.

 

Ainda mal tinha compreendido e já a vítima se livrava dos atacantes, escapando para uma rua transversal - a rua Nungesser et Coli. Os dois espancadores seguiram-lhe as pisadas. Niémans deitou fora a matraca, abriu passagem e foi-lhes no encalço.

 

A perseguição iniciou-se.

 

Niémans corria, de fôlego cadenciado, ganhando terreno aos dois algozes, que por sua vez se aproximavam da presa, ao longo da rua silenciosa.

 

Voltaram outra vez à direita e atingiram em breve a piscina Molitor, inteiramente murada. Desta feita, os pulhas acabavam de apanhar a sua vítima. Niémans chegou ao pé da praça da Porta Molitor sobranceira à alameda periférica e não acreditou no que os seus olhos viam: um dos assaltantes sacava de um machete.

 

Sob as luzes glaucas da artéria, Niémans discerniu a lâmina que lacerava sem cessar o homem ajoelhado, o qual absorvia os golpes com pequenas convulsões. Os agressores soergueram o corpo e atiraram-no por cima da balaustrada.

 

- NÃO!

 

O polícia rugira e tirara o seu revólver do coldre no mesmo instante. Encostou-se a um automóvel, firmou o punho direito na palma esquerda e visou, retendo a respiração. Primeiro tiro. Falhado. O matador armado de machete virou-se, estupefacto. Segundo tiro. Também falhado.

 

Niémans retomou a corrida, de revólver contra a coxa, em posição de combate. A cólera moía-lhe o coração: sem os óculos, falhara o alvo por duas vezes. Atingiu por seu turno a ponte. O homem do machete fugia já para as matas que orlam a alameda periférica. O seu cúmplice permanecia imóvel, esgazeado. O oficial da polícia abateu a coronha da arma sobre a garganta do homem e arrastou-o Pelos cabelos até a uma placa de sinalização. Algemou-o com uma das mãos. Só nessa altura se debruçou sobre a circular.

 

O corpo da vítima esmagara-se contra a calçada e vários carros tinham-lhe passado por cima antes de os choques em cadeia obstruírem completamente o tráfego. Veículos em amontoados caóticos, chapas destroçadas... O engarrafamento lançava agora o seu cântico desvairado de buzinas. à luz dos faróis, Niémans entreviu um dos condutores, que cambaleava perto do seu veículo levando as mãos ao rosto.

 

O comissário estendeu o olhar para lá do periférico. Avistou o assassino, de braçadeira colorida, atravessando a folhagem. Niémans pôs-se logo em movimento enquanto metia a arma no coldre.

 

Através das árvores, o assassino deitava-lhe agora breves miradas. o polícia não se escondia: o homem devia saber que o comissário principal Pierre Niémans ia dar-lhe cabo do canastro. De súbito, o hooligan galgou um talude e sumiu-se. O ruído dos passos que pisavam o saibro indicou a Niémans a sua direcção: os jardins de Auteuil.

 

O polícia seguiu-o e viu a noite reflectir-se nos calhaus cinzentos dos jardins. Flanqueando as estufas, distinguiu a silhueta que escalava um muro. Arremeteu e achou-se diante dos courts de ténis de Roland Garros.

 

As portas gradeadas não estavam aferrolhadas: o assassino passava sem custo de court em court. Niémans empurrou uma porta, penetrou no terreno vermelho e saltou uma primeira rede. Cinquenta metros adiante, o homem abrandava já, dando sinais de fadiga. Ainda conseguiu transpor uma rede e subir escadas por entre as bancadas. Atrás dele, Niémans trepava os degraus de modo ágil e lesto, só um nadinha arquejante. Encontrava-se já a poucos metros quando, no alto da bancada, a sombra se despenhou no vazio.

 

O fugitivo acabava de alcançar o telhado de uma vivenda. Desapareceu num ápice, lá na outra extremidade. O comissário recuou e lançou-se por sua vez. Aterrou sobre a plataforma de brita. Em baixo, relvados, árvores, o silêncio.

 

Nem rastro do assassino.

 

O polícia deixou-se cair e rebolou na erva húmida, Só havia duas possibilidades: o edifício principal, donde saltara agora mesmo, e uma vasta dependência de madeira, ao fundo do jardim. Sacou do seu MR 73 e arrimou-se à porta que se erguia na sua frente: não ofereceu qualquer resistência.

 

O comissário esboçou alguns passos, depois estacou, pasmado. Estava num átrio de mármore, encimado por uma placa de pedra circular, gravada com letras desconhecidas. Um corrimão dourado elevava-se nas trevas dos andares superiores. Tapeçarias de veludo, vermelho imperial, estiravam-se na sombra, vasos hieráticos reluziam... Niémans compreendeu que acabava de penetrar numa embaixada asiática.

 

De repente, um barulho ecoou lá fora. O matador estava no outro edifício. O polícia atravessou o parque rastejando pelo relvado e atingiu a dependência feita de ripas de madeira. A porta ainda baloiçava. Entrou, sombra dentro da sombra. E a magia diminuiu um furo. Era uma estrebaria, dividida em boxes cinzeladas, ocupadas por cavalinhos de crina aparada em escova.

 

Garupas frementes. Palhas esvoaçantes. Pierre Niémans adiantou-se, de arma em punho. Ultrapassou uma box, duas, três... Um ruído surdo à direita. O polícia voltou-se. Apenas um casco que batia. Um rosnido à esquerda. Nova meia volta. Demasiado tarde. A lâmina desceu. Niémans desviou-se no derradeiro momento. O machete roçou-lhe o ombro e cravou-se na garupa de um cavalo. O coice foi fulgurante: a ferradura embateu no rosto do assassino. O polícia aproveitou a superioridade em que ficara e atirou-se ao homem, virando o revólver e utilizando-o como um martelo.

 

Malhou, malhou, depois parou repentinamente, fixando as feições ensanguentadas do hooligan. Saliências de osso assomavam sob as carnes retalhadas. Um globo ocular pendia na ponta de um feixe de fibras. O matador já não bulia, conservando embora na cabeça a sua chapeleta com as cores do Arsenal Niémans endireitou a arma e pegou na coronha sanguinolenta com ambas as mãos, introduzindo o cano na boca devastada do homem. Moveu o cão e fechou os olhos. Estava quase a disparar... quando um ruído estridente surgiu.

 

O seu telemóvel tocava dentro do bolso.

 

Três horas mais tarde, ao longo das ruas demasiado novas e demasiado simétricas do bairro de Nanterre-Préfecture, um pequeno clarão brilhava no edifício da

 

Direcção Central da Políciajudiciária do Ministério do Interior.

 

Uma espécie dejorro de luz, de potência difusa e concentrada, que cintilava muito baixo, quase ao rés da secretária de Antoine Rheims, sentado na sombra. Diante dele, atrás do halo, erguia-se a alta silhueta de Pierre Niémans. Acabava de resumir, laconicamente, o relatório que redigira sobre a corrida-perseguição de Bolonha. Rheims inquiriu, céptico:

 

- Como está o homem?

 

- O inglês? Em coma. Fracturas faciais múltiplas. Telefonei agora mesmo para o hospital de Hôtel Dieu: vão tentar um enxerto de pele no rosto.

 

- E a vítima?

 

- Esmagada debaixo dos carros, no periférico. Porta Molitor.

- Santo Deus. O que aconteceu?

 

- Um ajuste de contas entre hooligans. No meio dos adeptos do Arsenal havia homens do Chelsea. Aproveitando a zaragata, os dois hooligans do machete abateram o seu inimigo.

 

Rheims aquiescia, incrédulo. Após um silêncio, prosseguiu:

- E o teu? Tens realmente a certeza de que foi um coice que o pôs naquele estado?

 

Niémans não respondeu e voltou-se para a janela. Sob a alvura da lua, discerniam-se os estranhos motivos desenhados * pastel que cobriam as fachadas dos prédios vizinhos: nuvens

* arco-íris que planavam por cima das colinas verde escuro do parque de Nanterre. A voz de Rheims tornou a elevar-se:

 

- Não te entendo, Pierre. Por que te deixas atrair por histórias deste gênero? Vigilância de estádio, com franqueza, eu...

 

A voz desfaleceu-lhe. Niémans mantinha-se em silêncio. -já não é para a tua idade - insistiu Rheims. - Nem da tua alçada. O nosso acordo era claro: nada de acção no terreno, nada de actos de violência...

 

Niémans virou-se e dirigiu-se para o seu superior hierárquico.

 

- Vamos ao que interessa, Antoine. Por que me chamaste aqui, a meio da noite? Quando me telefonaste, não podias estar ao corrente do que se passou no parque. Então, de que se trata?

 

A sombra de Rheims não se mexia. Ombros largos, cabelo grisalho encaracolado, faces talhadas a direito num rosto áspero. Um físico de guardião de farol. O comissário de divisão chefiava há vários anos o Serviço Central para a Repressão do Tráfico de Seres Humanos - o SCRTSH -, um nome complicado para designar simplesmente uma instância superior da Brigada de Costumes. Niémans conhecera-o muito antes de ele reinar nesta sinecura administrativa, quando eram ambos chuis de rua, papa-léguas de chuva, rápidos e eficazes. O polícia de cabelo à escovinha debruçou-se e repetiu:

 

- O que é, afinal? Rheims ciciou:

 

- Trata-se de um homicídio.

 

- Em Paris?

 

- Não, em Guernon. Uma pequena cidade no lsère, perto de Grenoble. Uma cidade universitária.

 

Niémans puxou de uma cadeira e sentou-se em frente do chefe de divisão.

 

- Sou todo ouvidos.

 

- Encontraram o corpo ontem, ao fim da tarde. Entalado nuns rochedos, acima de um rio que margina o campus. Tudo leva a crer que estamos perante um crime de maníaco.

 

- O que sabes a respeito do corpo? É uma mulher?

 

- Não. Um homem. Um tipo novo. O bibliotecário da faculdade, ao que parece. O corpo estava nu. Tinha marcas de tortura: cortes, lacerações, queimaduras... Também me falaram de estrangulação.

 

Niémans apoiou os cotovelos na secretária. Brincava com um cinzeiro.

 

- Por que me contas tudo isso?

 

- Porque tenciono mandar-te para lá.

 

- O quê? Por causa desse homicídio? Mas os gajos do SRI?J de Grenoble vão prender o assassino durante a semana e...

 

- Pierre, não te armes em parvo. Sabes muito bem que nunca é assim tão simples. Nunca. Falei com o juiz. Quer um especialista.

 

- Um especialista em quê?

 

- Em Homicídios. E Costumes. Ele suspeita de um mõbil sexual. Enfim, uma coisa desse género.

 

Niémans esticou o pescoço ao encontro da luz e sentiu o escaldão acre da lâmpada de halogéneo.

 

- Antoine, não estás a dizer-me tudo.

 

- O juiz é Bernard Terpentes. Um velho compincha. Somos os dois dos Pirenéus, ele e eu. Anda às aranhas, percebes? E quer resolver o caso o mais depressa possível. Evitar os boatos, osjornais, todas essas idiotices. Daqui a poucas semanas é a reabertura das aulas na universidade: é preciso concluir o processo antes dessa data. Acho que não custa compreender.

 

O comissário principal levantou-se e voltou para ajanela. Esquadrinhou as refulgentes cabeças de alfinete dos candeeiros de iluminação pública, as copas sombrias do parque. A violência das últimas horas ainda lhe palpitava nas têmporas: os golpes de machete, o periférico, a corrida através de Roland Garros. Pensou, pela milésima vez, que a chamada telefónica de Rheims o salvara sem dúvida de matar um homem. Pensou nesses incontroláveis acessos de violência que lhe encegueiravam a consciência, rasgando o tempo e o espaço, a ponto de o levarem a cometer o pior.

 

- Então? - perguntou Rheims.

 

Niémans virou-se e encostou-se ao alizar dajanela.

 

- Hájá quatro anos que não faço esse gênero de investigação. Por que razão me propões ocupar-me do caso?

 

- Preciso de um homem eficaz. E sabes que os serviços centrais podem escolher um dos seus homens e enviá-lo para qualquer sítio em França. - As suas largas mãos tamborilaram na obscuridade. - Ponho em prática o meu pequeno poder. O polícia dos óculos de aros de metal sorriu.

 

- Fazes o lobo sair do covil?

 

- Isso mesmo, tiro-o do covil. Para ti, é uma lufada de ar fresco. Para mim, é um serviço que presto a um velho amigo. Pelo menos, entretanto, não surrarás ninguém...

 

Rheims pegou nas folhas de um fax que brilhavam em cima da sua secretária:

 

- As primeiras ilações dos gendarmes. Aceitas ou não? Niémans dirigiu-se para a secretária e amarfanhou o papel térmico.

 

- Depois telefono-te. Para ter notícias do hospital de Hôtel Dicu.

 

O polícia deixou logo a rua dos Trois Fontanot e encaminhou-se para o seu domicílio, na rua La Bruyère, pertencente à ga circunscrição. Um vasto apartamento quase vazio, com tacos de madeira encerados de senhora idosa. Tomou um duche, tratou das feridas - superficiais - e olhou-se ao espelho. Feições ossudas, enrugadas. Um corte à escovinha, luzidio e cinzento. óculos com aros de metal. Niémans sorriu à sua própria imagem. Não gostaria nada de se cruzar com umas fuças assim numa rua deserta.

 

Meteu algumas roupas num saco de desporto e, entre camisas e peúgas, enfiou uma espingarda de mola Reminglon, calibre 12, bem como caixas de cartuchos e speedloader para o seu Manhutin. Por fim, pegou numa mala de lona espalmada e dobrou lá dentro dois fatos completos de Inverno e umas gravatas com arabescos fulvos.

 

No caminho para a porta de Ia Chapelle, parou no McDonald’s da alameda de Clichy, aberto toda a noite. Tragou rapidamente dois Royal Cheese, sem tirar os olhos do automóvel, estacionado em dupla fila. Três horas da manhã. Sob os néons esbranquiçados, alguns fantasmas familiares palmilhavam a sala sebenta. Negros com farpelas demasiado amplas. Prostitutas de compridas tranças jamaicanas. Drogados, sem-abrigo, bêbedos. Todos estes seres pertenciam ao seu universo de outrora: a rua. Esse universo que Niémans tivera de trocar por um trabalho de gabinete, bem pago e respeitável. Para qualquer outro chui, ter acesso aos serviços centrais era uma promoção. Para ele, significara ser colocado na prateleira - uma prateleira dourada, mas que apesar de tudo o mortificara. Contemplou de novo as criaturas crepusculares que o rodeavam, Estas aparições haviam sido as árvores da sua floresta, por onde avançara noutro tempo, na pele do caçador.

 

Niémans rodou sem parar, faróis no máximo, com desprezo pelos radares e limitações de velocidade. Às oito horas da manhã, metia pela saída da auto-estrada em direcção a Grenoble. Atravessou Saint-Martin d’Hères, Saint-Martin d’Uriage e rumou a Guernon, no sopé do Grande Pico de Belledone. Ao longo da estrada em S alternavam as florestas de coníferas e as zonas industriais. Imperava aqui uma atmosfera ligeiramente mórbida, como sempre sucede no campo quando a paisagem já não consegue disfarçar a sua solidão profunda por meio da mera beleza dos seus sítios.

 

Cruzou as primeiras placas que indicavam a direcção da faculdade. Ao longe, os altos cimos delineavam-se na luz pardacenta da manhã entroviscada. No fim de uma curva, enxergou a universidade lá ao fundo do vale: grandes edifícios modernos, blocos estriados de betão, rodeados de extensos relvados por todos os lados. Niémans pensou num sanatório que tivesse a dimensão de uma cidade administrativa.

 

Saiu da estrada nacional e orientou-se para o vale. Discerniu, a oeste, os ribeiros verticais que se misturavam, escoriando os flancos escuros das montanhas com as suas fieiras de prata. Abrandou: arrepiou-se ao perscrutar aquelas águas geladas que caíam a pique, escondendo-se sob tufos de brenhas para reaparecer logo a seguir, brancas e resplendentes, e depois desaparecer uma vez mais...

 

Decidiu-se por um pequeno rodeio. Bifurcou, rodou sob uma abóbada de lárices e abetos salpicados pelo orvalho matinal, e em seguida descobriu uma comprida planície, orlada de altas escarpas negras.

 

Parou. Saiu do carro e pegou no binóculo. Sondou demoradamente a paisagem: perdera de vista o rio. Em breve percebeu que a torrente, chegada ao côncavo do vale, se esgueirava por detrás da muralha de rochas. Podia mesmo avistá-la graças a alguns V de pedras.

 

De súbito notou um outro pormenor e tirou a limpo com o seu binóculo. Não, não se enganara. Voltou para o automóvel e arrancou de chofre a caminho da ravina. Acabava de distinguir, numa das falhas de penedia, o cordão amarelo fluorescente, específico da gendarmaria nacional:

 

                 EXPRESSAMENTE INTERDITO

 

Niémans desceu pela falha de rochedo onde se desenhavam as curvas de uma vereda estreita. Em breve teve de parar, pois o espaço já não era suficientemente largo para a viatura. Saiu do carro, passou por baixo do cordão plastificado e alcançou o rio.

 

O curso das águas era aqui travado por uma barragem natural. A torrente, que Niémans esperava encontrar cachoante de espuma, transformava-se num pequeno lago, claro e lenificante. Como um rosto donde toda a cólera houvesse inopinadamente desaparecido. Mais longe, à direita, recomeçava o seu curso e atravessava sem dúvida a cidade, que surgia, acinzentada, no leito do vale.

 

Mas estacou de repente. A sua esquerda estava um homem, acocorado acima da água. Num gesto reflexo, Niémans soergueu a correia de velcro do seu boldrié. O movimento fez tilintar ligeiramente as algemas. O homem voltou-se para ele e sorriu logo.

 

- O que faz aqui? - perguntou Niémans brutalmente.

 

O desconhecido sorriu outra vez, sem responder, e levantou-se sacudindo as mãos. Era um jovem de rosto franzino e cabelos louros que faziam lembrar pêlos de pincel. Blusão de camurça e calças justas à perna. Retorquiu numa voz clara:

 

- E você?

 

Esta demonstração de insolência desarmou Niémans, que declarou num tom desabrido:

 

- Polícia. Não viu o cordão? Espero que apresente uma boa razão para o facto de haver transposto o limite porque...

- Éric Joisneau, SRPJ de Grenoble. Vim como batedor. Três outros OPJ devem chegar durante o dia de hoje.

 

Niémansjuntou-se-lhe na margem direita.

- Onde estão os plantões? - indagou.

 

- Dei-lhes meia hora. Para o pequeno-almoço. - Encolheu os ombros com displicência. - Precisava de trabalhar aqui. Queria estar sossegado... comissário Niémans.

 

O polícia de cabelo grisalho fez semblante de desagrado. O jovem continuou, num tom de evidência:

 

- Reconheci-o imediatamente. Pierre Niémans. Ex-glória do RAID. Ex-comissário da BRB. Ex-caçador de assassinos e de dealers. Ex-muitas coisas, em suma...

 

- A insolência agora faz parte do programa dos inspectores?

 

Joisneau inclinou-se, numa postura irónica:

 

- Desculpe, comissário. Tento apenas dessacralizar a vedeta. Sabe muito bem que é uma estrela, o “superchui” que alimenta os sonhos de todos osjovens inspectores. Está aqui por causa do homicídio?

 

- O que achas?

 

O polícia inclinou-se novamente.

 

- Será uma honra trabalhar a seu lado.

 

Niémans examinava, a seus pés, a superfície rutilante das águas lisas, como que vitrificadas pela luz matinal. Uma luminescência dejade parecia erguer-se dos fundos.

 

- Diz-me o que sabes sobre o caso.

 

Joisneau levantou os olhos para a muralha de rocha.

- O corpo estava entalado lá no alto.

 

- Lá no alto? - repetiu Niémans, observando a penedia onde relevos agressivos lançavam sombras abruptas.

 

- Sim. A quinze metros de altura. O assassino enfiou o corpo numa das falhas do rochedo. Imprimiu-lhe uma posição bizarra.

 

- Que posição?

 

Joisneau flectiu as pernas, subiu os joelhos e cruzou os braços contra o torso.

 

- A do feto.

 

- Não é banal.

 

- Nada é banal nesta história.

 

- Falaram-me de ferimentos, de queimaduras - volveu Niémans.

 

- Ainda não vi o corpo. Mas parece, de facto, que há muitas marcas de tortura.

 

- A vítima morreu por causa dessas torturas?

 

- Não existe a mínima certeza por enquanto. A garganta também mostra incisões profundas. Sinais de estrangulamento.

 

Niémans voltou-se de novo para o pequeno lago. Viu a sua silhueta - crânio rapado e casacão azul - reflectir-se distintamente.

 

- E aqui? Encontraste alguma coisa?

 

- Não. Há uma hora que procuro um pormenor, um indício. Mas não há nada. Na minha opinião, a vítima não foi morta aqui. O assassino só a suspendeu lá em cima.

 

- Subiste até à falha?

 

- Sim. Nada a assinalar. O assassino trepou sem dúvida ao alto das escarpas, pelo outro lado, depois arriou o corpo na ponta de uma corda. Desceu por seu turno, com a ajuda de outra corda, e entalou a vítima. Teve muito trabalho para lhe dar aquela postura teatral. É incompreensível.

 

Niémans olhava outra vez a parede rochosa, eriçada de arestas e escavada por asperezas. Do ponto onde se encontrava, não podia avaliar claramente as distâncias, mas parecia-lhe que o nicho onde o corpo fora descoberto estava a meia altura da escarpa, tão afastado do solo quanto do alto da falésia. Girou bruscamente sobre si mesmo.

 

- Vamos.

 

- Aonde?

 

- Ao hospital. Quero ver o corpo.

 

O homem estava nu, a descoberto só até aos ombros, pousado de perfil sobre a mesa refulgente, numa posição encolhida, como se receasse que um relâmpago o atingisse na cara. ombros metidos para dentro, nuca abaixada, o corpo conservava os dois punhos cerrados sob o queixo, entre os joelhos dobrados. A pele enlividecida, os músculos ressaídos e a epiderme semeada de chagas davam uma presença, uma realidade quase insustentável ao cadáver. O pescoço mostrava longas lacerações, como se tivessem procurado talhar a garganta. As veias difusas desdobravam-se sob as fontes, como rios na enchente.

 

Niémans ergueu o olhar para os outros homens presentes na morgue. Havia o juiz de instrução Bernard Terpentes, silhueta esguia de bigode curto, o capitão Roger Barnes, colossal, oscilando como um cargueiro, que chefiava a brigada de gendarmaria de Guernon, e o capitão Renê Vermont, delegado pela secção de investigação da gendarmaria, um homenzinho calvo, de rosto barroso e olhos miúdos. Joisneau mantinha-se um pouco recuado e exibia um ar de estagiário zeloso.

 

- Conhecem a identidade dele? - perguntou Niémans sem se dirigir especialmente a ninguém.

 

Barnes deu um passo em frente, muito militar, e pigarreou.

- A vítima chama-se Rémy Caillois, senhor comissário. Tinha vinte e cinco anos. Exercia a actividade de bibliotecário-chefe desde há três anos, na universidade de Guernon. O corpo foi identificado pela esposa, Sophie Caillois, esta manhã.

 

- Ela assinalara o desaparecimento?

 

- Ontem, domingo, ao fim da tarde. O marido partira na véspera em passeio pela montanha, até à ponta do Muret.

 

Sozinho, como costumava fazer todos os fins de semana. Por vezes dormia num dos refúgios. Por isso é que ela não se inquietou. Só ontem à tarde e...

 

Houve uma espécie de pavor silencioso, um grito branco que ficou represo nas gargantas. O abdômen e o tórax da vítima estavam crivados de chagas negruscas, cujas formas e relevos variavam. Cortes nos lábios violáceos, queimaduras irisadas, dir-se-ia até que umas nuvens de fuligem. Notavam-se também lacerações, menos profundas, que se estiravam em volta dos braços e dos pulsos, como se houvessem amarrado o homem com cabos.

 

- Quem descobriu o corpo?

 

- Uma mulher, aindajovem... - Barnes deitou uma olhadela às suas fichas e prosseguiu: - Fanny Ferreira. É professora na universidade.

 

- Como é que o descobriu? Barnes pigarreou outra vez:

 

- É uma desportista que pratica remo em águas rápidas. Sabe como é: descem os rápidos num flutuador, em equipa ou em caiaque. É um desporto muito perigoso e...

 

- E então?

 

- Ela terminou a corrida para lá da barragem natural do rio, ao pé do rochedo que veda o campus. Ao subir para o parapeito, avistou o corpo alojado nas fragas.

 

- Foi o que ela lhe disse?

 

Barnes deitou um olhar incerto à sua roda.

- Bem... sim, eu...

 

O comissário destapou completamente o corpo. Andou em volta da criatura lívida, contorcida, cujo crânio de cabelo muito curto se aguçava como uma flecha de pedra.

 

Niémans pegou nas folhas da certidão de óbito que Barnes lhe estendia. Percorreu as linhas dactilografadas. O documento fora redigido pelo director do hospital em pessoa. O clínico não se pronunciava sobre a hora do óbito. Limitava-se a descrever as feridas visíveis e concluía por uma morte resultante de estrangulamento. Para saber mais, era indispensável abrir o corpo e praticar a autópsia.

 

- Quando vem o legista?

 

- Estamos à espera dele a todo o instante.

 

O comissário aproximou-se da vítima. Debruçou-se, observou-lhe as feições. Um rosto nada feio, jovem, de olhos fechados, e sobretudo sem qualquer vestígio de pancada ou sevícias.

- Ninguém tocou no rosto?

 

- Ninguém, comissário.

 

- Tinha os olhos fechados?

 

Barnes confirmou. Com o polegar e o indicador, Niémans apartou ligeiramente as pálpebras da vítima. Passou-se então o impossível: uma lágrima, lenta e clara, escorreu do olho direito. O comissário teve um sobressalto revulsivo: aquele rosto chorava.

 

Niémans pousou o olhar nos outros homens: ninguém reparara neste pormenor assombroso. Conservou o sangue-frio e recomeçou o gesto, igualmente invisível para os outros. O que viu provou-lhe que não era louco, mas que esse homicídio constituía sem dúvida o homicídio que todo o chui receia ou espera, consoante a personalidade de cada um, ao longo da sua carreira. Endireitou-se e recobriu o corpo com um gesto seco. Murmurou, dirigindo-se aojuiz:

 

- Fale-nos do procedimento de inquérito. Bernard Terpentes empertigou-se:

 

- Meus senhores, compreendereis que este caso pode vir a revelar-se difícil e... inabitual. Por tal motivo, o procurador e eu resolvemos entregá-lo, em simultâneo, ao SRPJ de Grenoble e à SR da gendarmaria nacional. Também chamei o comissário principal Pierre Niémans, aqui presente, que vem de Paris. Conheceis com certeza o seu nome. O comissário pertence agora a uma instância superior da BRP, a Brigada de Repressão do Proxenetismo, em Paris. Nada sabemos, por enquanto, das motivações do homicídio, mas talvez se trate de um crime de motivação sexual. Pelo menos, devemos estar na presença de um maníaco. E a experiência do Sr. Niémans ser-nos-á muito útil. Por isso é que vos proponho que o comissário assuma a direcção das operações...

 

Barnes anuiu com um breve meneio de cabeça. Vermont imitou-o, mas numa versão menos pressurosa. Quanto a Joisneau, respondeu:

 

- Por mim, não há problema. Mas os meus colegas do SRPJ vão chegar e...

 

- Explicar-lhes-ei - atalhou Terpentes. Virou-se para Niémans: - Comissário, ouvi-lo-emos com a maior atenção. A ênfase desta cena incomodava Niémans. Tinha pressa de se ver lá fora, em pleno inquérito, e principalmente sozinho.

 

- Capitão Barnes - indagou -, de quantos homens dispõe?

 

- De oito. Não... Desculpe, de nove.

 

- Estão habituados a interrogar testemunhas, a recolher indícios, a organizar controlos de identidade nas estradas?

 

- Bem... Não é realmente o género de coisas que nós...

- E o senhor, capitão Vermont, quantos homens tem sob as suas ordens?

 

A voz do gendarme estalou como uma salva de honra:

 

- Vinte. Homens experientes. Vão passar a pente fino os terrenos que rodeiam o local da descoberta e...

 

- Muito bem. Sugiro que eles interroguem também todas as pessoas que habitam perto das estradas conducentes ao rio, e que visitem as estações de serviço, as gares, as casas vizinhas das paragens de autocarro... Ojovem Caillois, durante os seus passeios, dormia por vezes nos refúgios. Procurem-nos e vasculhem-nos. A vítima talvez tenha sido surpreendida num deles. Niémans voltou-se para Barnes.

 

- Capitão, quero que lance pedidos de informações em toda a região. Pretendo obter, antes de tudo, a lista dos moinantes, ratoneiros e outros vadios desta região. Quero que verifique as recentes saídas de prisão, num raio de trezentos quilómetros. Os roubos de automóveis e os roubos em geral. Quero que interrogue todos os hotéis e restaurantes. Envie questionários por fax. Desejo conhecer o mais pequeno facto singular, a mínima chegada suspeita, o mínimo sinal. Quero também a lista das notícias locais de Guernon, desde há vinte anos e mais, que possam relacionar-se, de perto ou de longe, com o nosso caso.

 

Barnes anotava cada exigência num canhenho. Niémans dirigiu-se ajoisneau:

 

- Contacte as Informações Gerais. Peça-lhes a lista das seitas, dos magos e de todos os chalados recenseados na região.

 

Joisneau aquiesceu. Terpentes também aprovava com a cabeça, em sinal de assentimento superior, como se lhe tirassem as ideias do bestunto.

 

- já tem aqui o bastante para se ocuparem enquanto esperamos os resultados da autópsia - concluiu Niémans.

- É inútil recomendar-vos que devemos guardar absoluto silêncio sobre tudo isto. Nem uma palavra à imprensa local. Nem uma palavra seja a quem for.

 

Os homens separaram-se na escadaria do CHRU - o Centro Hospitalar Regional Universitário -, estugando o passo sob a morrinha matinal. Envoltos na sombra do alto edifício, que parecia datar pelo menos de há dois séculos, dirigiram-se cada qual para o seu veículo, cabisbaixos, ombros descaídos, sem uma palavra nem um olhar.

 

A caça começava.

 

Pierre Niémans e Éric Joisneau encaminharam-se logo para a universidade, às portas da cidade. O comissário P pediu ao tenente que o esperasse na biblioteca, situada no corpo principal do estabelecimento, enquanto visitava o reitor da faculdade, cujos escritórios abrangiam o último andar do edifício administrativo, cem metros mais adiante.

 

O polícia penetrou numa vasta construção dos anos 70, já restaurada, de tecto muito alto, onde cada parede ostentava uma cor pastel distinta. No último piso, numa espécie de antecâmara ocupada por uma secretária e o seu pequeno gabinete, Niémans apresentou-se e pediu para ver o Sr. Vincent Luyse.

 

Aguardou alguns minutos e pôde contemplar, nas paredes, fotografias de estudantes triunfantes, brandindo taças e medalhas, ao longo de pistas de esqui ou de torrentes tumultuosas.

 

Alguns minutos mais tarde, Pierre Niémans estava de pé em frente do reitor. Um homem de cabelo crespo e nariz achatado, mas tez cor de talco. O rosto de Vincent Luyse era uma curiosa mescla de traços negróides e palidez anêmica. Na penumbra prenunciadora de trovoada, alguns raios de sol dardejavam, recortando tiras de luz. O reitor convidou o polícia a sentar-se e começou a friccionar nervosamente os pulsos.

- Então? - perguntou numa voz seca.

 

- Então o quê?

 

- Descobriram indícios? Niémans estendeu as pernas.

 

- Acabo de chegar, senhor reitor. Dê-me tempo para me ambientar. Responda antes às minhas perguntas.

 

Luyse inteiriçou-se no seu assento. Todo o gabinete era construído em madeira ocre, entremeada de motivos metálicos que lembravam caules de flores num planeta de aço.

 

-já houve acontecimentos suspeitos na sua faculdade? inquiriu Niémans num tom calmo.

 

- Suspeitos? De modo nenhum.

 

- Nem casos de droga? Roubos? Brigas?

- Não.

 

- Também não há bandos, clãs? jovens um bocado excitados?

 

- Não percebo aonde quer chegar.

 

- Estou a pensar, por exemplo, nosjogos de desempenho. Sabe o que é, essesjogos cheios de cerimônias, de rituais...

- Não. Não temos cá disso. Os nossos estudantes caracterizam-se por um espírito claro.

 

Niémans guardou silêncio. O reitor analisou o aspecto dele: cabelo à escovinha, ombros largos, punho do MR 73 a despontar do casaco. Luyse passou a mão pelo rosto e depois declarou, como se procurasse convencer-se a si mesmo:

 

- Disseram-me que é um excelente polícia.

 

Niémans não acrescentou nada e fixou o reitor. Luyse desviou o olhar e continuou:

 

- Só desejo uma coisa, comissário: é que descubra o assassino o mais depressa possível. A reabertura das aulas não tarda e ...

 

- Por ora, nenhum estudante pôs os pés no campus?

 

- Só alguns internos. Instalam-se lá em cima, nas águas-furtadas do edifício principal. Há também alguns professores, que preparam a matéria para o ano escolar.

 

- Pode dar-me a lista deles?

 

- Mas... - hesitou. - Não há problema nenhum...

- E Rémy Caillois, como era?

 

- Um bibliotecário muito discreto. Solitário.

- Os estudantes estimavam-no?

 

- Sim... É evidente que sim.

- Onde vivia? Em Guernon?

 

- Aqui mesmo, no campus. No último andar do edifício principal, com a esposa. O andar dos internos.

 

- Rémy Caillois tinha vinte e cinco anos. Nos dias de hoje, é um pouco cedo para alguém se casar, não acha?

 

- Rémy e Sophie Caillois são antigos alunos da nossa faculdade. Antes disso, conheceram-se, creio eu, no colégio do campus, reservado aos filhos dos nossos professores. São... eram amigos de infância.

 

Niémans levantou-se abruptamente:

 

- Muito bem, senhor reitor. Agradeço-lhe,

 

O comissário eclipsou-se logo, fugindo do cheiro a medo que ali reinava.

 

Livros. Por todos os lados, na grande biblioteca da universidade, múltiplas correntezas de livros desdobravam-se sob a luz dos néons. As estantes, com prateleiras de metal, sustentavam autênticas muralhas de papel, perfeitamente arrumadas. Segmentos de cor escura. Cinzelagens a ouro ou prata. Rótulos nos quais se estampava sempre a sigla da universidade de Guernon. No centro da sala deserta viam-se mesas plastificadas, separadas em pequenos compartimentos envidraçados. Ao entrar lá dentro, Niémans pensara logo num parlatório de prisão.

 

A atmosfera mostrava-se simultaneamente luminosa e recolhida, espaçosa e confinada.

 

- Os melhores professores ensinam nesta universidade explicou ÉricJoisneau. - A nata do sudeste da França. Direito, Economia, Letras, Psicologia, Sociologia, Física... E sobretudo Medicina. Todos os craques do Isère ensinam aqui e dão consultas no hospital: o CHRU. É no fundo, o antigo edifício da faculdade. As estruturas foram inteiramente renovadas. Metade da região vem tratar-se aqui, e todos os habitantes das montanhas nasceram nesta maternidade.

 

Niémans escutava-o, de braços cruzados, apoiado numa das mesas de leitura.

 

- Falas como um conhecedor. joisneau pegou num livro, ao acaso.

 

- Estudei nesta faculdade. Tinha começado o curso de Direito... Queria ser advogado.

 

- E tornaste-te polícia?

 

O tenente fitou Niémans. Os seus olhos brilhavam sob as luzes brancas.

 

- Quando cheguei à licenciatura, receei de repente chatear-me. Inscrevi-me então na escola dos inspectores de Toulouse. Disse com os meus botões que chui era um ofício de acção, de risco. Um ofício que me reservaria surpresas...

 

- E estás decepcionado?

 

O tenente repôs o livro na estante. O seu sorriso superficial desapareceu.

 

- Ho e não. Menos do que nunca. - Cravou a vista em Niémans. - Aquele corpo... Como se pode fazer uma coisa assim?

 

Niémans mudou de assunto.

 

- Como era o ambiente da universidade? Nada de particular?

 

- Não. Muitos filhotes de burgueses, com a cabeça cheia de lugares-comuns sobre a vida, sobre a época, sobre as ideias que se devia ter... Filhos de camponeses também, de operários. Ainda mais idealistas. E mais agressivos. De qualquer modo, tínhamos todos encontro marcado com o desemprego. Portanto...

 

- Não havia histórias bizarras? Grupúsculos?

 

- Não. Nada. Enfim, talvez. Recordo-me de que existia uma espécie de elite na faculdade. Um microcosmo composto pelos filhos dos professores da própria universidade. Alguns deles eram hiperdotados. Arrebanhavam todos os anos as melhores classificações. Até mesmo nos domínios desportivos. Os outros ficavam muito abaixo.

 

Niémans lembrou-se dos retratos de campeões na antecâmara do gabinete de Luyse. Perguntou:

 

- Esses estudantes formam um clã no pleno sentido da palavra? Poderiam coligar-se em volta de um projecto esquisito? Joisneau desatou a rir.

 

- Está a pensar em quê? Num gênero de... conspiração? Foi a vez de Niémans se erguer e caminhar ao longo das estantes.

 

- Um bibliotecário, numa faculdade, ericontra-se no centro de todos os olhares. É um alvo ideal. Imagina um grupo de estudantes, versados em não sei que delírio. Um sacrifício, um ritual... No momento de escolher a vítima, pensariam, muito naturalmente, em Caillois.

 

- Esqueça então os sobredotados de que lhe falei. Estão demasiado ocupados em ficar à frente de toda a gente nos exames para se interessarem por qualquer outra coisa.

 

Niémans insinuou-se entre as paredes de livros, umas pardas, as outras castanho-avermelhadas. Joisneau seguiu-lhe as pisadas.

 

- Um bibliotecário- volveu ele - é também aquele que empresta os livros... O que sabe o que cada um lê, o que cada um estuda... Talvez soubesse algo que não devia saber.

 

- Não se mata uma pessoa daquela forma por... E que segredo entende que uns simples estudantes possam esconder atrás das suas leituras?

 

Niémans virou-se intempestivamente.

- Não sei. Desconfio dos intelectuais. -já tem uma ideia? Uma suspeita?

 

- Pelo contrário. Por enquanto, tudo é possível. Uma zaragata. Uma vingança. Uma trica de intelectuais. Ou de homossexuais. Ou muito simplesmente um malandrim, um maníaco, que deu de caras com o Caillois por acaso, na montanha.

 

O comissário disparou um piparote na enfiada de obras.

- Repara: não sou sectário. Mas vamos começar por aqui. Passar pelo crivo os livros que possam ter uma relação com o homicídio.

 

- Que espécie de relação?

 

Niémans atravessou outra vez o corredor de estantes e desembocou na grande sala. Dirigiu-se para a secretária do bibliotecário, situada no outro extremo, sobre um estrado, sobranceira às mesas de leitura. Um computador pontificava em cima do tampo, cadernos de espiral estavam guardados nas gavetas. Niémans deu umas pancadinhas no ecra negro.

 

- Deve estar aqui dentro a lista de todos os livros consultados e requisitados todos os dias. Quero que encarregues uns OPJ desta tarefa. Os mais literários que puderes encontrar, se porventura existe algum. Pede também ajuda aos internos. Quero que eles apontem todos os livros que falam do mal, da violência, da tortura e também dos sacrifícios, das imolações religiosas. Que atentem, por exemplo, nas obras de Etnologia. Quero igualmente que tomem nota dos nomes dos estudantes que consultaram com frequência este tipo de leitura. E que procurem também a tese do Caillois.

 

- E... eu?

 

- Tu interrogas os internos. A sós. Vivem aqui dia e noite, devem conhecer a universidade como as suas mãos. Os hábitos, estado de espírito, os rapazes originais... Quero saber como Caillois era considerado pelos outros. Quero também que te informes sobre as passeatas dele na montanha. Procura os seus companheiros de passeio. Descobre quem conhecia os seus périplos. Quem poderia irjuntar-se-lhe lá em cima...

 

joisneau lançou um olhar céptico ao comissário. Niémans acercou-se. Falava agora em voz baixa:

 

- Vou-te dizer o que temos. Temos um homicídio pasmoso, um cadáver pálido, liso, encolhido, exibindo os sinais de um sofrimento sem limite. Uma coisa que cheira a loucura a mais de cem quilómetros. Por enquanto, é o nosso segredo. Dispomos de algumas horas ou um pouco mais, assim o espero, para resolver o caso. Depois, os meios de comunicação social irão imiscuir-se, as pressões iniciar-se-ão, as paixões desencadear-se-ão. Concentra-te. Mergulha no pesadelo. Dá o que tens de melhor. É assim que desvendaremos o rosto do mal.

 

O tenente parecia assustado.

 

- Acredita realmente que, em poucas horas, nós...

 

- Queres trabalhar comigo ou não? - interrompeu Niémans. - Então, vou explicar-te a minha maneira de ver as coisas. Quando é perpetrado um homicídio, devemos considerar cada elemento circundante como um espelho. O corpo da vítima, as pessoas que a conhecem, o lugar do crime... Tudo isto reflecte uma verdade, um aspecto particular do crime, compreendes?

 

Bateu com as pontas dos dedos no ecrã do computador.

- Este ecrã, por exemplo. Quando estiver aceso, tornar-se-á o espelho do quotidiano de Rémy Caillois. O espelho da sua actividade diária, dos seus próprios pensamentos. Há aqui dentro pormenores, reflexos que podem servir-nos. É preciso mergulhar no interior. Passar para o outro lado.

 

Endireitou-se e abriu os braços.

 

- Estamos num palácio dos espelhos, joisneau, um labirinto de reflexos! Sendo assim, olha bem. Olha para tudo. Porque, algures ao longo destes espelhos, num ângulo morto, está o assassino.

 

Joisneau ficou boquiaberto.

 

- Para um homem de acção, acho-o bastante cerebral... O comissário deu-lhe uma palmadinha no peito com as costas da mão.

 

- Não é filosofia, Joisneau. É prática.

 

- E o senhor? Quem... quem vai interrogar?

 

- Eu? Vou interrogar a nossa testemunha, Fanny Ferreira. E também Sophie Caillois, a mulher da vítima.

 

Niémans piscou o olho.

 

- Só mulherio, Joisneau. A prática é isto mesmo.

 

Sob o céu tristonho, a estrada de asfalto serpenteava através do campus e servia cada um dos edifícios acinzentados, de janelas azuis e ferrugentas. Niémans rodava devagar - arranjara uma planta da universidade - e seguia a caminho de um ginásio isolado. Atingiu uma nova construção de betão estriado que parecia mais um bunker do que um edifício desportivo. Saiu do automóvel e respirou fundo. Caía uma chuva fina e miúda.

 

Mirou o campus e os prédios que se sucediam, a algumas centenas de metros dali. Os pais dele também haviam sido professores, mas em pequenos colégios dos arredores de Lyon. Não se recordava de nada, ou quase. Bem cedo, o casulo familiar surgira-lhe como uma fraqueza, uma mentira. Bem cedo, pressentira que devia lutar sozinho e que, por conseguinte, quanto mais depressa melhor. Aos treze anos pedira para fazer a sua frequência escolar como interno. Não tinham ousado recusar este exílio voluntário, mas ainda se lembrava dos soluços da mãe, através da divisória do seu quarto: era um som dentro da cabeça, e ao mesmo tempo uma sensação física, algo de húmido, de quente, na sua pele. Abalara numa fugida.

 

Quatro anos de internato. Quatro anos de solidão e de adestramento físico, paralelamente às aulas. Todas as suas esperanças convergiam então num único objectivo, numa única data. Aos dezassete anos, Pierre Niémans, depois de concluir brilhantemente o liceu, efectuara os seus três dias de provas de aptidão e pedira para integrar a escola de oficiais. Quando o médico-major lhe anunciara que fora considerado inapto e lhe explicara a razão do veredicto, o jovem Niémans compreendera. As suas angústias eram tão manifestas que o haviam traído, até ao mais fundo da sua ambição. Soube que o seu destino seria sempre aquele comprido corredor, sem hiato, atapetado de sangue, com uns cães a uivar nas trevas, lá muito ao fim...

 

Outros adolescentes teriam desistido, escutando docilmente o parecer dos psiquiatras. Não assim Pierre Niémans. Obstinou-se, retomou as actividades físicas, redobrou de raiva e de vontade.

 

Ojovem Pierrejamais seria militar. Escolheria então outro combate: o das ruas, a luta anónima contra o mal comum. Ia mergulhar as suas forças, a sua alma, numa guerra sem glória nem bandeira, mas que assumiria até às últimas consequências. Tornar-se-ia polícia. Neste propósito, exercitou-se durante longos meses a responder aos testes psíquicos. Ingressou em seguida na escola de polícia de Carmes-Écluse. Começou por essa altura a era da violência: treino de tiro, resultados de excepção. Niémans não cessava de melhorar, de se fortalecer. Passou a ser um polícia sem igual. Tenaz, brutal, manhoso.

 

Integrou a princípio esquadras de bairro, depois tornou-se atirador de elite na brigada que iria transformar-se na Brigada de Investigação e Intervenção). Começaram as operações especiais. Matou o seu primeiro homem. Nesse instante, concluiu um pacto consigo mesmo e encarou uma derradeira vez a sua própria maldição. Não, nunca seria um soldado de orgulho, um oficial valoroso. Mas seria um combatente das cidades, febril, obstinado, que afogaria os seus próprios medos na violência e na sanha do asfalto.

 

Niémans respirou fundo o éter da montanha. Pensou na sua mãe, falecida há tantos anos. Pensou no tempo passado, que adquirira o aspecto de uma ravina transbordante, e nas recordações, que se tinham gretado e depois apagado, debatendo-se face ao olvido.

 

Bruscamente, distinguiu um pequeno trote, como num sonho. O cão era todo músculos, de pêlo raso luzindo sob o chuvisco. Os seus olhos, duas bolas de laca escura, fixavam o polícia. Aproximava-se, bamboleando a cauda. O oficial imobilizou-se. O cão aproximou-se mais, até ficar a alguns passos. O seu focinho húmido fremia. De súbito, pôs-se a rosnar. Os olhos brilharam-lhe. Farejara o medo. O medo que exsudava do homem.

 

Niémans estava petrificado.

 

Os seus membros pareciam-lhe fustigados por uma força ignorada. O sangue fugia-lhe por um sifão invisível, algures no ventre. O cão ladrou, arreganhou as beiças. Niémans conhecia o processo. O medo produzia moléculas olfactivas que o cão cheirava e que desencadeavam nele o receio e a hostilidade. O medo engendrava o medo. O cão ladrou, depois raivou surdamente com as fauces e rangeu os dentes. O chui sacou da arma.

- Clarisse! Clarisse! Vem cá, Clarisse!

 

Niémans saiu do parêntese de gelo. Avistou, para além de um véu vermelho, um homem cinzento com uma camisola de meia manga. Abeirava-se em passo rápido.

 

- É doido ou quê? Niémans resmoneou:

 

- Polícia. Desande. Leve o rafeiro consigo. O homem ficou siderado.

 

- Com a breca! Não acredito numa coisa destas. Anda, Clarisse. Anda, minha menina...

 

O dono e o seu bicho sumiram-se. Niémans tentou engolir a saliva. Sentiu as asperezas da goela, seca como um forno. Abanou a cabeça, guardou o revólver e contornou o edifício. Ao virar à esquerda, esforçou-se por reflectir: há quanto tempo não ia ao seu psiquiatra?

 

Logo na segunda esquina do ginásio, o comissário lobrigou a mulher.

 

Fanny Ferreira estava de pé, junto a um portal aberto, e polia com lixa de papel uma prancha sintética de cor vermelha. O chui supôs tratar-se do flutuador sobre o qual a mulher descia as torrentes.

 

- Bom dia - disse ele inclinando-se. Recobrara calor e segurança.

 

Fanny ergueu o olhar. Devia ter uns escassos vinte anos. A sua pele era mate e os cabelos encaracolados torneavam em finos anéis à volta das têmporas ou em pesadas cascatas sobre os ombros. O rosto era carregado, aveludado, mas os olhos tinham uma claridade ofuscante, quase indecente.

 

- Sou Pierre Niémans, comissário da polícia. Investigo o assassínio de Rémy Caillois.

 

- Pierre Niémans? - repetiu, incrédula. - Essa é boa! Espantoso!

 

- O quê?

 

Ela apontou, com um meneio de cabeça, um pequeno rádio pousado no chão.

 

- Acabam de falar de si no noticiário. Dizem que esta noite prendeu dois assassinos, perto do Parque dos Príncipes. E que fez muito bem. Dizem também que desfigurou um deles, e que fez muito mal. Tem o dom da ubiquidade ou quê?

- Passei a noite a guiar, simplesmente.

 

- O que veio fazer aqui? Então os chuis da terra não são suficientes?

 

- Digamos que estou a título de reforço.

 

Fanny retomou o seu trabalho: humedecia a superfície oblonga da prancha, depois comprimia com ambas as palmas, esfregando a lixa de papel dobrada. O seu corpo parecia socado, sólido. Vestia sem elegância - fato de mergulho, em neopreno, casula de marinheiro, sapatos subidos de couro claro, bem atacados. A luz velada lançava dulçores irisados sobre toda a cena.

 

- Parece aguentar bem o choque - prosseguiu Niémans.

- Que choque?

 

- Ora... a descoberta do...

- Evito pensar nisso.

 

- E não a incomoda voltar a falar no assunto?

- É a sua função, não é?

 

Ela não olhava para o polícia. As suas mãos não paravam de subir e descer ao longo do flutuador. Os seus gestos eram secos, enérgicos.

 

- Em que circunstâncias descobriu o corpo?

 

- Todos os fins de semana desço os rápidos... - indicou a sua embarcação virada - em cima desta coisa. Acabava de efectuar um dos meus trajectos. Nas imediações do campus há uma parede de rochas, uma barragem natural que trava o caudal do rio e permite acostar sem dificuldade. Puxava o meu flutuador para cima quando o enxerguei...

 

- Na rocha?

 

- Claro, na rocha.

 

- É falso. Estive lá. Notei que não havia qualquer recuo. É impossível reparar seja no que for ao longo da parede, a quinze metros de altura...

 

Fanny deitou a folha de lixa no copo, enxugou as mãos e acendeu um cigarro. Estes simples gestos suscitaram bruscamente em Niémans um desejo violento.

 

Ajovem expirou uma comprida baforada azulada.

 

- O corpo estava na muralha de rocha. Mas não foi aí que o vi.

 

- Onde foi?

 

- Distingui-o nas águas do rio. Graças ao reflexo. Uma mancha branca à superfície do lago.

 

Os traços de Niémans desanuviaram-se. É exactamente o que eu pensava.

 

É importante para o seu inquérito?

 

Não. Mas gosto de clareza em tudo. - Niémans fez uma pausa, depois continuou: - Pratica alpinismo?

 

- Como é que sabe?

 

- Nada de especial... O sítio. Ainda por cima, acho-a muito... desportiva.

 

Ela voltou-se e abriu os braços na direcção das montanhas que dominavam o vale. Era a primeira vez que sorria.

 

- Eis o meu feudo, comissário! Do Grande Pico de Belledorme até às Grandes Rousses, conheço de cor todas estas montanhas. Quando não desço os ribeiros, escalo os cimos.

 

- Na sua opinião, era preciso ser-se alpinista para colocar o corpo ao longo da parede rochosa?

 

Fanny ficou outra vez séria - observava a extremidade incandescente do seu cigarro.

 

- Não necessariamente; creio que não. Os rochedos quase formam degraus naturais. Em compensação, era preciso ser-se extraordinariamente robusto para transportar semelhante peso sem perder o equilíbrio.

 

- Um dos meus inspectores pensa que o assassino deve ter trepado pelo outro lado, onde o declive é menos abrupto, arriando depois o corpo na ponta de uma corda.

 

- Isso obrigava a um desvio enorme. - Hesitou, depois continuou: - No fundo, há uma terceira solução, muito simples, desde que se conheça um pouco das técnicas de escalada.

 

- Importa-se de me explicar?

 

Fanny Ferreira apagou o cigarro na sola do sapato e atirou-o de um piparote.

 

- Venha comigo - ordenou.

 

Penetraram no interior do ginásio. Na penumbra, Niémans divisou uns tapetes de solo empilhados, as sombras rectilíneas de barras paralelas, de perchas, de cordas com nós. Fanny comentou, encaminhando-se para a parede da direita:

 

- É a minha toca. Durante o Verão, ninguém põe aqui os pés. Posso armazenar o meu arsenal.

 

Acendeu uma lâmpada à prova de intempérie, suspensa sobre uma espécie de banco de carpinteiro. Sobre a mesa desdobravam-se numerosos instrumentos, peças metálicas com pontas e entalhes diversos que desferiam reflexos argênteos ou apresentavam tonalidades vivas. Fanny acendeu outro cigarro. Niémans perguntou:

 

- O que é isto?

 

- Espetos, mosquetões, triângulos, punhos: material de alpinismo.

 

- E então?

 

Fanny expirou novamente fumo, mas simulando um soluço repetido.

 

- E então, senhor comissário, um assassino que possuísse este gênero de apetrechos e soubesse servir-se deles poderia subir o corpo sem custo a partir da margem do rio.

 

Niémans cruzou os braços e encostou-se à parede. Fanny manteve o cigarro nos lábios e manipulou os utensílios. Este gesto anódino reforçou o desejo do polícia. Aquela rapariga agradava-lhe em profundidade.

 

- Como lhe disse, a muralha rochosa comporta degraus naturais no local. Para uma pessoa conhecedora do alpinismo, ou até habituada ao trekking, seria uma brincadeira de criança subir uma primeira vez, sem o corpo.

 

- Em seguida?

 

Fanny pegou numa roldana verde e fluorescente, constelada de pequenos orifícios.

 

- Em seguida, fixa-se isto na rocha, por cima do nicho.

- Na rocha! Como? Com um martelo? Deve ser muito demorado, não?

 

A mulher declarou através das volutas do cigarro:

 

- Os seus conhecimentos de alpinismo rondam o zero, comissário. - Pegou nuns pitões roscados que estavam sobre a mesa. - Aqui tem uns spits, espetos para os rochedos. Com um perfurador igual a este - indicava uma espécie de pua, preta e engordurada -, pode cravar vários spits em qualquer penedo, em poucos segundos. Fixa as suas roldanas e só lhe falta içar o corpo. É a técnica que se utiliza para elevar os sacos em lugares estreitos ou difíceis.

 

Niémans fez um trejeito céptico.

 

- Não subi até ao alto mas, em meu entender, o nicho é muito estreito. Não vejo como é que o assassino, especado naquela falha, poderia puxar o corpo com a simples força dos seus braços, sem o mínimo recuo. Ou então voltamos ao mesmo perfil de suspeito: um colosso.

 

- Quem lhe falou de o puxar lá do alto? Para içar a sua vítima, o alpinista já só tinha uma coisa a fazer: deixar-se descer, do outro lado da roldana, para servir de contrapeso. O corpo subiria sozinho.

 

O polícia compreendeu de súbito a técnica e sorriu perante a evidência.

 

- Mas seria necessário que o assassino fosse mais pesado que o morto, não?

 

- Ou de um peso igual: se nos lançarmos no vazio, o nosso peso aumenta. Depois de içado o corpo, o assassino poderia tornar a subir rapidamente ao longo das asperezas, para entalar a vítima naquela falha teatral.

 

O comissário olhou de novo para todos os pitões, parafusos e argolas espalhados sobre a mesa que fazia lembrar um banco de carpinteiro. Pensou no material de um arrombador, mas um arrombador especial: um que se dedicasse a furar altitudes e gravidades.

 

- Quanto tempo levaria uma tal operação?

 

- Para uma pessoa como eu: menos de dez minutos. Niémans concordou: desenhava-se um perfil de assassino. Os dois interlocutores saíram. O sol coava-se através das nuvens, enchendo os cumes de uma claridade de cristal. O polícia perguntou:

 

- É professora nesta faculdade?

- Geologia.

 

- De que cadeiras?

 

- Ensino várias disciplinas: Taxinomia das Pedras, os Deslocamentos Tectónicos e também Glaciologia, a evolução dos glaciares.

 

- Parece muito nova.

 

- Fiz o doutoramento aos vinte anos. E já era assistente. Sou a mais nova diplomada de França. Tenho agora vinte e cinco anos e sou professora titular.

 

Um verdadeiro animal de faculdade.

 

É isso mesmo. Um animal de faculdade. Filha e neta de professores eméritos, aqui, em Guernon.

 

- Pertence então à confraria?

- Que confraria?

 

- Um dos meus tenentes estudou em Guernon. Explicou-me que a universidade possui uma elite à parte, composta pelos filhos dos professores da faculdade...

 

Fanny meneou a cabeça num gesto malicioso.

 

- Eu diria antes uma grande família. Os filhos de que fala crescem na faculdade, em contacto com o ensino, a cultura. Obtêm seguidamente excelentes resultados. Não acha natural?

- Até mesmo nas actividades desportivas?

 

Ela alçou as sobrancelhas.

 

- Ah, isso é o ar da montanha! Niémans prosseguiu:

 

- Conhecia sem dúvida Rémy Caillois. Como era ele? Fanny respondeu sem hesitar:

 

- Solitário. Metido consigo, inclusive inacessível. Mas muito brilhante. Culto a ponto de nos causar vertigens. Corria aqui um rumor... Dizia-se que lera todos os livros da biblioteca.

 

-Julga que esse rumor tinha fundamento?

 

- Não sei. Mas ele conhecia a biblioteca a fundo. Era o seu antro, o seu refúgio, o seu covil.

 

- Também era muito novo, não era?

 

- Crescera nessa biblioteca. O pai já desempenhava as funções de bibliotecário-chefe da faculdade.

 

Niémans esboçou uns passos.

 

- Não sabia. Os Caillois também pertenciam à vossa “grande família”?

 

- Claro que não. Pelo contrário, Rémy era-lhe hostil. Apesar da sua cultura, nunca alcançou os resultados que esperava. Creio... enfim, suponho que nos invejava.

 

- Qual era a especialidade dele?

 

- Filosofia, parece-me. Estava a acabar a tese.

- Sobre que assunto?

 

- Não faço ideia.

 

O comissário calou-se. Mirou as montanhas, cada vez mais ensolaradas. Assemelhavam-se a gigantes deslumbrados.

 

- O pai dele ainda é vivo? - perguntou, retomando o fio da meada.

 

- Não. Morreu há alguns anos. Um acidente de alpinismo.

- Nada de suspeito, dessa vez?

 

- O que está já a magicar? Perdeu a vida numa avalancha. A da Grande Lance d’Allemond, em 93. Vejo que é um chui chapado.

 

- Temos dois bibliotecários alpinistas. Um pai e um filho. Ambos falecidos nas montanhas. A coincidência merece ser frisada, não é?

 

Nada nos diz que Rémy foi morto nas montanhas.

 

É verdade. Mas abalou no sábado de manhã para um passeio. Deve ter sido surpreendido pelo assassino nas alturas. Talvez o assassino conhecesse o seu itinerário e...

 

- Rémy não era do género de seguir um itinerário clássico. Nem de o revelar a outros. Era um homem bastante... secreto.

 

Niémans inclinou-se.

 

- Bem, estou-lhe muito grato. Conhece certamente a fórmula: se lhe ocorrer um pormenor... pode telefonar-me para aqui.

 

Niémans escreveu os números do seu telemóvel e de uma sala que o reitor lhe cedera na universidade - preferia instalar-se na faculdade em vez de ficar na gendarmaria. Murmurou:

 

- Até breve.

 

A jovem não ergueu os olhos. O polícia já se ia embora quando ela o interpelou:

 

- Posso fazer-lhe uma pergunta?

 

Fitava-o com as suas pupilas cristalinas. Niémans experimentou uma espécie de mal-estar. Aquelas íris eram demasiado claras. Eram de vidro, de água viva, cortantes como geada.

- Diga lá - respondeu ele.

 

- Na telefonia, contaram... enfim, é verdade que pertencia à equipa que matou Jacques Mesrine?

 

- Era novo. Mas é verdade, sim.

- Pensava de mim para comigo... o que é que se sente depois?

 

- Depois de quê?

 

- Depois de uma coisa assim.

 

Niémans deu alguns passos na direcção da rapariga. Ela recuou instintivamente. Mas ergueu o olhar com valentia, cheia de arrogância.

 

- Terei sempre muito prazer em conversar consigo, Fanny. Mas nunca me ouvirá falar no assunto. Nem do que perdi nesse dia.

 

A interlocutora baixou os olhos. Disse numa voz surda:

- Compreendo.

 

- Não, não compreende nada. E é a sua sorte.

Os jorros da água zoavam-lhe nas costas. Niémans requisitara uns sapatos de marcha na gendarmaria e trepava agora os degraus naturais da parede rochosa, relativamente fáceis de escalar. Chegado à altura da falha, observou a cavidade estreita onde o corpo havia sido descoberto. Examinou a rocha com atenção, a toda a volta. Com as mãos protegidas por luvas de goretex, procurava as eventuais marcas de spits na penedia.

 

Buracos na pedra.

 

O vento carregado de gotas de água açoitava-lhe o rosto e Niémans gostava desta sensação. Apesar das circunstâncias, ao abeirar-se do pequeno lago experimentara uma forte impressão de plenitude. O assassino escolhera talvez aquele sítio pela seguinte razão: era um lugar de calma, de serenidade, sem escórias, sem ruptura. Um lugar onde as águas dejade traziam a paz aos espíritos de violência.

 

Não encontrava nada. Continuou a busca em torno da cavidade: nenhum vestígio de pitões. Pousou umjoelho no rebordo e tacteou as paredes interiores do nicho. De repente os seus dedos detectaram um orifício, nítido e preciso, mesmo a meio do tecto da gruta. As palavras de Fanny Ferreira acudiram-lhe brevemente à memória. Ela acertara: o assassino, munido de pitões e de roldanas, içara o corpo servindo-se sem dúvida do seu próprio peso.

 

Mergulhou o braço, tacteou mais e descobriu um total de três buraquinhos, furados e roscados, com uma profundidade de vinte centímetros, dispostos em triângulo - as três marcas dos spits que tinham sustentado a roldana. As circunstâncias do crime tornavam-se mais precisas. Rémy Caillois fora surpreendido durante o seu giro. O assassino amarrara-o, torturara-o, mutilara-o e matara-o nas elevações ermas, descendo depois até ao vale com o corpo da vítima. Como? Niémans deitou uma olhadela quinze metros abaixo, onde as águas se cristalizavam num espelho de laca. Por meio da torrente. O assassino sulcara sem dúvida o rio a bordo de uma canoa ou de uma embarcação do mesmo género.

 

Mas por que se dera a tanto trabalho? Por que não abandonara o cadáver no local do crime?

 

Desceu com precaução. Chegado ao sopé, tirou as luvas, virou as costas aos rochedos e escrutou desta vez a sombra da falha nas águas perfeitamente lisas. O reflexo era tão fixo como um quadro. Invadiu-o uma convicção: aquele lugar era um santuário. De calma e de pureza. E o assassino escolhera-o porventura por tal motivo. De qualquer modo, o investigador tinha agora uma certeza.

 

O assassino era um alpinista consumado.

 

O carro de Niémans estava equipado com um transmissor VHF, mas nunca o utilizava. Assim como não utilizava o seu telemóvel para as comunicações confidenciais, pois era ainda menos discreto. Há já alguns anos que preferia um pager, um receptor de radiomensagens, cujas marcas e modelos ia variando. Ninguém podia captar este gênero de sistema, que só funcionava com a ajuda de um santo-e-senha. Aprendera tal astúcia com os dealers parisienses, que haviam percebido sem demora a extrema discrição da troca de mensagens cifradas. O comissário dera o número e o nome de código a joisneau, Barnes e Vermont. Ao entrar no automóvel, tirou o aparelho do bolso e accionou o mostrador. Não havia mensagens.

 

Arrancou e voltou à universidade.

 

Eram agora onze horas da manhã; raras silhuetas atravessavam a esplanada verdejante. Alguns estudantes corriam na pista do estádio, ligeiramente descentrada relativamente ao grupo dos blocos betonados.

 

Meteu por uma estrada transversal e dirigiu-se de novo para o edifício principal. O imenso bunkerdesdobrava-se por oito andares e seiscentos metros de comprimento. Estacionou o carro e consultou a sua planta. Para além da biblioteca, esta construção imensa englobava os anfiteatros de Medicina e de Ciências Físicas. Pelos andares distribuíam-se as salas de trabalhos práticos. No último piso situavam-se os quartos dos internos. O guarda do campus anotara a tinta vermelha, com uma caneta de ponta de feltro, o número do-apartamento ocupado por Rémy Caillois e a suajovem esposa.

 

Pierre Niémans ultrapassou as portas da biblioteca, contígua à entrada principal, e penetrou no átrio do edifício: um espaço todo seguido, alumiado por largas aberturas envidraçadas. As paredes ostentavam frescos de pintura naive, que brilhavam sob a claridade matinal, e a extremidade do átrio perdia-se a várias centenas de metros dali, numa espécie de pulverulência mineral. As dimensões do lugar eram algo estalinistas - nada a ver com a atmosfera de mármore claro e madeira castanha das universidades parisienses. Pelo menos, assim o supunha Niémans: nunca pusera os pés em qualquer faculdade. Nem em Paris, nem algures.

 

Enveredou por uma escada de degraus de granito suspensos, onde cada lanço se iniciava em ângulo agudo e era separado ao meio por lâminas verticais. Uma fantasia de arquitecto, no mesmo estilo esmagador que o resto. Um em cada dois néons não funcionava e Niémans atravessava zonas de sombra total para ressurgir sob uma luz demasiado forte.

 

Desembocou por fim num corredor estreito, margeado de pequenas portas. Percorreu a escura passagem - as lâmpadas, aqui, tinham-se finado todas - à procura do nº 34, o apartamento dos Caillois.

 

A porta estava entreaberta.

 

Com dois dedos, empurrou a delgada tábua de contraplacado.

 

Acolheram-no o silêncio e a penumbra. Encontrava-se num pequeno vestíbulo. Ao fundo, uma nesga luminosa atravessava o estreito corredor. A ténue claridade permitíu que estudasse os quadros suspensos das paredes. Eram fotografias a preto e branco, que pareciam datar dos anos 30 ou 40. Atletas olímpicos em pleno esforço rasgavam o céu ou pisavam a terra num hieratismo de orgulho. Os rostos, as silhuetas, as posturas, destilavam uma espécie de perfeição inquietante, uma pureza de estátuas, inumana. Pensou na arquitectura da universidade: tudo isto formava um conjunto coerente, e não forçosamente festivo.

 

Sob estes quadros, descortinou um retrato de Rémy Caillois. Desprendeu-o para o observar melhor. A vítima havia sido um belo mancebo sorridente, de cabelo curto e feições crispadas. No olhar brilhava-lhe um lampejo particularmente arguto.

 

- Quem é o senhor?

 

Niémans voltou a cabeça. Uma silhueta feminina, trajando uma gabardina, recortava-se ao fundo do corredor. O comissário aproximou-se. Mais uma rapariga. Devia andar igualmente pelos vinte e cinco anos, talvez menos. O cabelo, nem curto nem comprido, claro, emoldurava-lhe o rosto esguio e esgalgado, cuja palidez acentuava as olheiras fundas. Os seus traços eram ossudos mas delicados. A beleza desta mulher só aparecia fora de tempo, como que em eco a uma primeira impressão desagradável.

 

- Sou Pierre Niémans. Comissário principal.

- E entra na minha casa sem tocar?

 

- Desculpe. A porta estava aberta. É a esposa de Rémy Caillois?

 

À laia de resposta, a mulher arrancou o quadro das mãos de Niémans e ajustou-o outra vez contra a parede. Despiu em seguida a gabardina, recuando para o compartimento da esquerda. Sub-repticiamente, Niémans entreviu um peito pálido e descarnado pela entreabertura de uma blusa desbotada. Arrepiou-se.

 

- Entre - disse a mulher de má vontade.

 

Niémans descobriu uma sala exígua, decorada com esmero e austeridade. Viam-se pinturas modernas suspensas das paredes. Linhas simétricas, cores angustiantes, coisas incompreensíveis. O polícia não ligou. Em contrapartida, um pormenor chamou-lhe a atenção: pairava naquele compartimento um intenso cheiro químico. Um cheiro a cola. Os Caillois tinham recentemente forrado as paredes com um novo papel pintado. Este pormenor apertou-lhe o coração. Pela primeira vez, estremeceu ao lembrar-se do destino aniquilado do casal, das cinzas de felicidade que deviam crepitar no fundo da mágoa daquela mulher. Começou num tom grave:

 

- Minha senhora, venho de Paris. Fui chamado pelo juiz de instrução para colaborar no inquérito respeitante à morte do seu marido. Eu...

 

- Tem alguma pista?

 

O comissário olhou-a bem e apeteceu-lhe repentinamente partir um objecto, um vidro, fosse o que fosse. Aquela mulher estava transida de mágoa, mas mais ainda de ódio contra a polícia.

 

- Não dispomos de nada por enquanto - concedeu ele.

- Mas estou muito esperançado em que o inquérito...

 

- Faça as suas perguntas.

 

Niémans sentou-se no sofá desmontável, em frente da mulher que acabava de escolher uma cadeirinha, como se quisesse ficar a boa distância dele. Para não perder o sangue-frio, o comissário pegou numa almofada e revolveu-a durante uns segundos.

 

- Li o seu testemunho. Só pretendo obter algumas informações suplementares. Há muita gente que efectua passeios nesta região, não é assim?

 

- Acha que há assim tantas distracções em Guernon? Somos todos obrigados a praticar marcha ou alpinismo.

 

- Os outros caminhantes conheciam os itinerários de Rémy?

 

- Não. Ele nunca falava disso. Partia em direcções que lhe eram próprias...

 

- Tratava-se de simples passeios ou de estiradas?

 

- Dependia. No sábado, o Rémy abalara a pé, para menos de dois mil metros de altitude. Não levara material consigo. Niémans fez uma pausa, depois entrou no cerne da questão:

- O seu marido tinha inimigos?

 

- Não.

 

O tom equívoco desta resposta incitou-o a fazer outra pergunta que o espantou a si mesmo:

 

- Tinha amigos?

 

- Também não. Rémy era um homem solitário.

 

- Que tipo de relações mantinha com os estudantes, os que frequentavam a biblioteca?

 

- Os seus contactos com eles limitavam-se às fichas de saída dos livros.

 

- Nada de anormal, nos últimos tempos? A mulher não respondeu. Niémans insistiu:

 

- O seu marido não andava especialmente nervoso, tenso?

- Não.

 

- Fale-me da morte do pai dele.

 

Sophie Caillois ergueu os olhos. A cor das pupilas era baça, mas o desenho das pestanas e das sobrancelhas era esplêndido. Ela encolheu os ombros ao de leve.

 

- Morreu sob uma avalancha, em 93. Ainda não estávamos casados. não possuo elementos precisos a tal propósito. Rémy nunca falava disso. Aonde quer chegar?

 

O polícia guardou silêncio e esquadrinhou a pequena sala, com os seus móveis ordenados em linha recta. Conhecia de cor este gênero de lugar. Sabia que não se encontrava aqui sozinho com Sophie Caillois. A memória do morto ainda pairava, como se a sua alma estivesse a fazer as malas ali ao pé, no quarto contíguo. Apontou para os quadros nas paredes.

 

- O seu marido não conservava nenhum livro aqui?

 

- Por que razão o faria? Trabalhava todo o dia na biblioteca.

 

- Era lá que preparava a tese?

 

A mulher confirmou com um breve aceno de cabeça. Niémans não cessava de observar aquele rosto belo e duro. Surpreendia-o cruzar-se em menos de uma hora com duas mulheres tão sedutoras.

 

- A tese era sobre quê?

- OsJogos Olímpicos.

 

- Não é um tema muito intelectual.

 

Sophie Caillois adoptou uma expressão de desdém.

 

- A tese incidia sobre as relações entre a prova e o sagrado. O corpo e o pensamento. Ele estudava o mito do athlon, o homem originário que assegurava a fecundidade da Terra mediante a sua própria força, pelos limites transgredidos do seu corpo.

 

- Desculpe - suspirou Niémans. - Conheço mal as questões filosóficas... Isso está relacionado com as fotografias penduradas no corredor?

 

- Sim e não. São imagens extraídas de um filme de Leni Riefenstahl, sobre osJogos Olímpicos de 1936, em Berlim.

 

- Trata-se de imagens impressionantes.

 

- Rémy dizia que esses jogos tinham recuperado a coincidência profunda dos jogos de Olímpia, baseada na união do corpo e do pensamento, da prova física e da expressão filosófica.

 

- Nesse caso específico, referia-se à ideologia nazi, não é assim?

 

- O meu marido estava-se nas tintas para a natureza do pensamento expresso. O que o fascinava era esta simples fusão: a ideia e a força, o espírito e o corpo.

 

Niémans não compreendia patavina daquele género de palavreado. A mulher debruçou-se e disse subitamente, com toda a violência:

 

- Por que razão o mandaram cá? Porquê um homem da sua espécie?

 

Ele ignorou a agressividade do comentário. Por ocasião dos interrogatórios, usava sempre da mesma técnica, inumana e fria, fundada na intimidação. Era inútil a um polícia - sobretudo quando se tinha a fronha dele - lançar mão dos sentimentos ou da psicologia barata. Inquiriu, numa voz autoritária:

 

- Em seu entender, existia alguma razão para alguém querer mal ao seu marido?

 

- Está a delirar ou quê? - articulou ela. - Não viu o corpo? Não percebe que foi um maníaco quem matou o meu marido? Que o Rémy se deixou surpreender por um demente? Um tarado que se encarniçou contra ele, que o agrediu, torturou e mutilou até ao limite?

 

O polícia respirou fundo. Pensava, a falar verdade, naquele bibliotecário silencioso, desencarnado, e nessa mulher agressiva.

 

Um casal capaz de gelar o sangue. Indagou:

- Como corriam as coisas aqui no lar?

 

- Não são contas do seu rosário.

- Por favor, responda.

 

- Sou suspeita?

 

- Sabe muito bem que não. Peço-lhe que me responda. Ajovem lançou-lhe um olhar afiado.

 

- Quer saber quantas vezes fornicávamos por semana? Niémans sentiu a nuca em pele de galinha.

 

- Coopere, minha senhora. Estou a fazer o meu trabalho.

- Ponha-se a andar daqui para fora, seu chui imundo! Os dentes dela não eram brancos, e no entanto o contorno dos lábios era deslumbrante, comovedor. Niémans fitou aquela boca, os contornos agudos das maçãs do rosto, das sobrancelhas, que irradiavam através da palidez macilenta das faces. Pouco importavam o brilho da tez, a cor dos olhos, todas essas ilusões de luzes e tons. A beleza era uma questão de delineamento. De esboço. De pureza incorruptível. O polícia não bulia.

 

- Desande! - berrou a mulher.

 

- Uma última pergunta. Rémy viveu sempre na universidade. Quando é que fez o serviço militar?

 

Sophie Caillois imobilizou-se, desconcertada pela pergunta. Estreitou-se nos seus próprios braços, como se a acometesse brutalmente um frio interior.

 

- Não o fez.

- Dispensado?

 

Ela anuiu inclinando a cabeça.

- Por que motivo?

 

Os olhos da mulher pousaram de novo no comissário.

- O que procura?

 

- Por que motivo?

 

- Psiquiátricos, creio eu.

 

- Sofria de perturbações mentais?

 

- Mas em que mundo vive? Toda a gente consegue ficar isenta por razões psiquiátricas. Não quer dizer nada. Está a fingir, só diz coisas sem sentido, é um inapto.

 

Niémans nada acrescentou, mas todo o seu ser devia exprimir uma surda desaprovação. A mulher, de repente, aquilatou o seu corte à escovinha, a sua elegância sucinta, e os lábios dele arquearam-se num esgar de nojo.

 

- Alma do diabo, desapareça! Ele levantou-se e murmurou:

 

- Vou-me embora. Mas quero que saiba uma coisa.

- O quê? - desfechou ela.

 

- Quer lhe agrade ou não, são pessoas como eu que apanham os assassinos. São pessoas como eu que podem vingar o seu marido.

 

Durante alguns instantes, as feições da mulher petrificaram-se, depois o seu queixo agitou-se. Desatou a soluçar. Niémans virou-lhe as costas.

 

- Hei-de apanhá-lo - repetiu.

 

já no vão da porta, deu um murro na parede e proferiu por cima do ombro:

 

- Céus! juro-lhe que apanharei o filho da puta que matou o seu marido.

 

Cá fora, uma claridade de mercúrio bateu-lhe na face. Manchas negras dançavam-lhe sob as pálpebras. Vacilou por alguns segundos. Esforçou-se por caminhar calmamente até ao automóvel, enquanto os halos escuros se transformavam a pouco e pouco em rostos de mulher. Fanny Ferreira, a morena. Sophie Caillois, a loura. Duas mulheres fortes, inteligentes e agressivas. Mulheres como o polícia jamais cingiria sem dúvida nos seus braços.

 

Deu um violento pontapé num cesto de metal cheio de lixo, adossado a um pilar, depois consultou o seu Pager, como por reflexo.

 

O ecrã piscava: o médico legista terminara nesse momento a autópsia.

 

O ALVORECER do mesmo dia, a duzentos e cinquenta quilómetros dali, na direcção oeste, o tenente da polícia Karim Abduf concluía a leitura de uma tese de Criminologia sobre a utilização dos sinais genéticos nos casos de violação e homicídio. O calhamaço de seiscentas páginas mantivera-o acordado praticamente toda a noite. Atentava agora nos algarismos do despertador de quartzo que tocava: 07:00.

 

Karim suspirou, atirou a tese para o outro lado do compartimento e foi para a cozinha preparar chá preto. Regressou à sala - era também a sua sala de jantar e o seu quarto de dormir - e sondou as trevas através do vão envidraçado. De testa encostada ao vidro, avaliou as hipóteses de efectuar algum dia um inquérito genético na parvalheira acanhada para onde o tinham transferido. Eram nulas.

 

O jovem argelino observava os candeeiros que ainda retinham as asas fuscas da noite. Um nó de amargura apertava-lhe a garganta. Mesmo no auge das suas actividades criminosas, soubera sempre evitar a prisão. E eis que aos vinte e nove anos, tornado chui, o fechavam numa prisão ainda mais insuportável: uma pequena cidade de província, atascada em tédio, no meio de um leito de penedia. Uma prisão sem paredes nem grades. Uma prisão psicológica, que o consumia a fogo lento.

 

Começou a devanear. Viu-se a engaiolar assassinos em série, graças a análises de ADN e a programas informáticos especializados, como nos filmes americanos. Imaginou-se à frente de uma equipa de cientistas a estudar a cartografia genética dos criminosos. À custa de pesquisas, de estatísticas, os especialistas isolavam uma espécie de ruptura, de falha, algures na cadeia cromossómica e identificavam essa deficiência como a própria chave da pulsão criminosa. Numa dada época, já se falara de um duplo cromossoma Y que caracterizaria os assassinos, mas esta pista revelara-se falsa. No sonho de Karim, porem, um novo “erro de ortografia” era posto em evidência no agregado das letras do ciclo genético. E era Karim em pessoa que permitia esta descoberta, mercê das suas detenções ininterruptas. De repente, ojovem chui não pôde reprimir um frémito.

 

Sabia que, se tal “erro” existia, ele corria igualmente nas suas veias.

 

Para Karim, a palavra “órfão” nunca significara coisa alguma. Só se podia sentir a perda do que se conhecera, e o magrebino nunca vivera nada que se assemelhasse, de perto ou de longe, a uma vida de família. As suas primeiras recordações consistiam num canto de linóleo e uma televisão a preto e branco, no lar da rua Maurice Thorez, em Nanterre. Crescera no coração de um bairro sem misericórdia e sem cor. Havia vivendas ao lado de torres e baldios que se transmutavam gradualmente em quarteirões. E recordava-se ainda dos seus jogos de escondidas com os estaleiros, que a pouco e pouco ganhavam terreno aos escalrachos da sua infância.

 

Era um miúdo esquecido. Ou encontrado. Tudo dependia do ponto de vista em que nos colocássemos. De qualquer modo, nunca conhecera os pais e nada, na educação que lhe tinham ministrado em seguida, viera alguma vez lembrar-lhe as suas origens. Não falava muito bem o árabe, só possuia umas vagas noções do Islão. O adolescente cedo se emancipou dos

seus tutores - os educadores do lar, cuja boa vontade e simplicidade lhe causavam vómitos - e entregara-se à cidade.

 

Descobrira então Nanterre, um território sem limites, estriado de amplas avenidas orladas de prédios colossais, de fábricas, de edifícios administrativos, onde circulavam transeuntes inquietos, acabrunhados, vestidos com umas fatiotas desengraçadas e habituados aos amanhãs que nunca cantavam. Mas a miséria só chocava os ricos. E Karim não reparava na pobreza que ensopava tudo naquela cidade, do mais ínfimo material às rugas cavadas nos rostos.

 

Guardava, pelo contrário, recordações emocionadas da sua adolescência. O tempo da punkitude, do No Future. Treze anos. Os primeiros amigalhaços. As primeiras namoradas. Paradoxalmente, Karim surpreendeu, na solidão e na tormenta da puberdade, razões para amar e partilhar. Depois da sua infância órfã, o período do mal-estar adolescente foi para ele como uma segunda oportunidade de encontro, em que pôde abrir-se aos outros, ao mundo exterior. Ainda hoje se lembrava dessa época com uma nitidez de cristal. As longas horas nas cervejarias, acotovelando-se perto dos flippers e galhofando com os compinchas. Os sonhos infinitos, a garganta estrangulada só de pensar nalguma garina entrevista nos degraus do liceu.

 

Mas o subúrbio também escondia o seu jogo. Abduf soubera sempre que Nanterre era triste e sem retorno. Descobriu que a cidade era igualmente violenta e mortal.

 

Uma sexta-feira à noite, um bando surgira na cafetaria da piscina, que tinha então serviço nocturno. Sem uma palavra, esfacelaram o rosto do dono a pontapé e a golpes de caneca. Uma velha história de acesso recusado, de cerveja não paga, não se sabia muito bem. Ninguém se mexera. Mas os gritos sufocados do homem, debaixo do balcão, haviam-se inscrito em linhas de ressonância nos nervos de Karim. Nessa noite, explicaram-lhe tudo. Nomes, lugares, rumores. O argelino vislumbrara então um outro mundo de cuja existência não suspeitava. Um mundo povoado de seres superviolentos, bairros inacessíveis, caves mortíferas. Outra vez, pouco antes de um concerto, na rua da Ancienne Mairie, uma zaragata descamba em massacre. Tinham irrompido novamente clãs. Karim vira uns gajos de rosto desfeito a rolar contra o asfalto, uma rapariga com o cabelo empastado de sangue a proteger-se debaixo dos carros.

 

O argelino crescia ejá não reconhecia a sua cidade. Erguia-se uma vaga de fundo. Todos falavam com admiração de Victor, um camaronês que se injectava sobre os telhados dos prédios. De Marcel, um madraço de cara bexigosa, com um sinal azul tatuado na testa, à indiana, condenado várias vezes por vias de facto contra chuis. De Jamel, de Saffi, que tinham assaltado a Caixa de Aforro à mão armada. Por vezes, Karim enxergava estes tipos à saída da escola, e a altivez e nobreza deles impressionavam-no. Não eram seres vulgares, incultos e grosseiros, mas sujeitos distintos, elegantes, de olhar febril, gestos estudados.

 

Escolheu o seu campo. Começou por roubar auto-rádios, depois automóveis, e alcançou uma efectiva independência financeira. Conviveu com o negro opiómano, os “irmãos” assaltantes, e sobretudo Marcel, um ser errante, assustador, brutal, que se drogava de manhã à noite, mas que possuía também um olhar, uma distância em relação ao subúrbio, que fascinava Karim. Marcel, de cabelo curto e oxigenado, usava coletes de pele e ouvia as Rapsódias Húngaras de Liszt. Vivia em casas ocupadas e lia Blaise Cendrars. Chamava a Nanterre o “polvo” e concebia Karim não o ignorava, toda uma série de álibis e de análises para explicar a sua futura decadência, inelutável. Paradoxalmente, este ser dos bairros periféricos demonstrava a Karim que existia uma outra vida para lá do subúrbio.

 

O argelino jurou então a si mesmo alcançar essa vida.

 

Ao mesmo tempo que prosseguia os seus roubos, começou a marrar cada vez mais no liceu, o que ninguém compreendeu. Inscreveu-se no curso de boxe tai, para se proteger dos outros e de si mesmo, pois não era raro ceder a acessos de furor, pasmosos e incontroláveis. De ora avante, o seu destino era uma corda esticada, sobre a qual caminhava em equilíbrio.

 

Em redor, a vasa negra da delinquência e da droga absorviam tudo. Karim tinha dezassete anos. Sobreveio, de novo, a solidão. O silêncio à sua volta, quando atravessava o átrio do centro associativo, ou quando tomava café na cantina do liceu, perto dos flippers. Ninguém ousava chateá-lo. Nessa época, já havia sido seleccionado para os campeonatos de boxe tai. Todos sabiam que Karim Abduf era capaz de lhes quebrar o nariz com um golpe de calcanhar sem tirar as mãos do balcão de zinco. Também se cochichavam outras histórias: arrombamentos, tráficos de droga, brigas inauditas...

 

A maior parte destes rumores eram falsos, mas garantiam uma relativa tranquilidade a Karim. O jovem liceal concluiu o curso com boas notas. Teve direito às felicitações do reitor e compreendeu, cheio de surpresa, que o homem autoritário também tinha medo dele. Inscreveu-se na faculdade, em Direito. Ainda Nanterre. Nessa altura, roubava dois carros por mês. Dispunha de vários receptadores, que alternava constantemente. Era sem dúvida o único argelino do arrabalde que nunca fora preso, nem sequer inquietado pela bófia. E ainda não tomara uma única dose de droga, qualquer que ela fosse.

 

Aos vinte e um anos, licenciou-se em Direito. O que fazer agora? Nenhum advogado daria sequer um estágio de mandarete a um jovem argelino com um metro e oitenta e cinco, magro como um pau de virar tripas, de pêra, tranças exóticas e uma fiada de brincos em cada orelha. Fosse como fosse, Karím iria parar ao desemprego e teria de começar tudo outra vez. Antes morrer. Continuar a roubar carros? Apreciava acima de tudo as horas secretas da noite, o silêncio dos Parques de estacionamento, as descargas de adrenalina que o inundavam quando anulava os sistemas de segurança dos BMW. Sabia que jamais poderia renunciar àquela existência oculta, aguda, tecida de riscos e de mistério. Sabia também que, mais cedo ou mais tarde, a sorte acabaria por mudar.

 

Teve então uma revelação: iria tornar-se chui. Evoluiria no mesmo universo oculto, mas ao abrigo de leis que desprezava, à sombra de um país no qual cuspia com todas as suas forças.

 

Karim retivera uma lição dos anos de mocidade: não tinha origem, nem pátria, nem família. As suas leis eram as suas próprias leis, o seu país era o seu próprio espaço vital.

 

Ao regressar do exército, inscreveu-se na escola superior dos inspectores da polícia nacional de Carmes-ÉcIuse, perto de Montereau, e tornou-se interno. Pela primeira vez, deixava o seu feudo de Nanterre. Os resultados foram excepcionais desde o início. Karim possuía aptidões intelectuais acima da média e, sobretudo, conhecia como ninguém o comportamento dos delinquentes, as leis dos bandos da zona podre. Também se transformou num atirador de eleição e a sua mestria no combate de mãos nuas aprofundou-se. Especializou-se na arte do pé, uma quinta-essência do combate corpo-a-corpo, que agrupava o que existia de mais perigoso no seio das artes marciais e dos desportos de afrontamento de todas as espécies. Nas fileiras dos aprendizes de chuis, detestaram-no instintivamente. Era árabe. Era orgulhoso. Sabia lutar e exprimia-se melhor que a maioria dos seus colegas, que não passavam de falhados indecisos, inscritos nos efectivos da polícia para escapar ao desemprego.

 

Um ano mais tarde, Karim concluiu a sua formação mediante estágios no seio de várias esquadras parisienses. Sempre os mesmos bairros excêntricos, a mesma miséria, mas desta vez em Paris. Ojovem estagiário instalou-se num pequeno quarto, no bairro das Abbesses. Confusamente, compreendeu que estava salvo.

 

No entanto, não cortara as pontes com as suas origens. Voltava regularmente a Nanterre e ia sabendo notícias. A derrocada estava em marcha. Tinham encontrado Victor no telhado de um prédio de dezoito andares, encarquilhado como um feitiço de marabuto, com uma seringa cravada no escroto. Overdose. Hassan, um calão cabila, louro e imenso, dera um tiro nos miolos com uma espingarda de caça. Os “irmãos assaltantes” estavam encarcerados em Fleury-Mérogis. E Marcel caíra definitivamente na heroína.

 

Karim via soçobrar os seus amigos e assistia, com terror, ao surgimento da derradeira vaga de fundo. A Sida acelerava agora o processo de destruição. Os hospitais, outrora povoados por operários gastos e velhos entrevados, enchiam-se agora de garotos condenados, com as gengivas negras, a pele malhada, os órgãos roídos. Viu assim desaparecer a maior parte dos seus compinchas. Viu o mal ganhar em pujança, em extensão, e depois aliar-se à hepatite C para dizimar as hostes da sua geração. Karim recuou, com as entranhas repassadas de medo. A sua cidade agonizava.

 

Em junho de 1992, obteve o diploma. Com as felicitações do *uri - uns paspalhões de cachucho no dedo que só lhe inspiravam piedade e condescendência. Mas era preciso festejar isto. Comprou champanhe e dirigiu-se às Fontenelles, o bairro de Marcel. Ainda hoje se recordava do mínimo pormenor desse fim de tarde. Batera à porta dele. Ninguém. Interrogara os miúdos, em baixo, depois palmilhara os átrios dos prédios, os terrenos de futebol, os depósitos de papéis velhos... Ninguém. Andara assim até à noite. Debalde. Ás vinte e duas horas, fora ao hospital da Casa de Nanterre, serviço de Serologia - Marcel era seropositivo há dois anos. Atravessara as tempestades de éter, arrostara os semblantes doentes, interrogara os médicos. Vira a morte em acção, contemplara os progressos atrozes da infecção.

 

Mas não encontrara Marcel.

 

Cinco dias depois, soube que tinham descoberto o corpo do amigo no fundo de uma cave, com as mãos esturradas, o rosto acutilado, as unhas furadas por verruma. Marcel fora torturado até à morte, antes de o acabarem com um tiro de espingarda na garganta. Karim não se admirou quando lhe deram a notícia. O seu companheiro consumia demasiado e adulterava as doses que vendia. O comércio dele tornara-se uma corrida contra a morte. Por coincidência, no mesmo dia o chui recebeu o seu cartão de inspector, tricolor e reluzente. Viu um sinal neste capricho do acaso. Recuou para a sombra e sorriu ao pensar nos assassinos de Marcel. Esses bandalhos não podiam adivinhar que Marcel tinha um amigo polícia. Não podiam adivinhar, tão-pouco, que este chui não hesitaria em matá-los, em nome de um passado volvido e da profunda convicção de que, porra!, não, a vida não podia ser assim tão asquerosa.

 

Karim pôs-se à procura.

 

Em poucos dias, conseguiu o nome dos assassinos. Tinham-nos visto com Marcel, pouco tempo antes do provável momento do crime. Thierry Kalder, Éric Masuro, Antonio Donato. O argelino ficou desiludido: tratava-se de três drogados insignificantes que tentaram, sem dúvida, arrancar a Marcel o segredo do lugar onde alapava a droga. Karim informou-se com mais precisão: nem Kalder nem Masuro podiam ter torturado Marcel. Não eram suficientemente tresloucados. As culpas recaíam sobre Donato. Extorsões e violências sobre fedelhos. Proxenetismo de menores ao fundo dos estaleiros. Pedrado até ao tutano.

 

Karim decidiu que o sacrifício dele bastaria para a sua vingança.

 

Devia agir depressa: os chuis de Nanterre que lhe tinham confiado estes elementos também procuravam os filhos da puta. Karim lançou-se nas ruas. Era de Nanterre, conhecia os bairros, falava a linguagem do rapazio. Num único dia localizou os três drogados. Estavam instalados num prédio devastado, próximo de uma das pontes rodoviárias de Nanterre-Universidade. Um lugar que iria em breve ser destruído enquanto vibrava sob o fragor dos carros que passavam a poucos metros das janelas.

 

Encaminhou-se ao meio-dia para o prédio em ruínas, alheio ao estridor da auto-estrada, sob o sol abrasador de junho. Crianças brincavam no meio da poeira. Olharam todas para o tipo alto de aspecto exótico que penetrava no edifício escalavrado.

 

Karim transpôs o átrio com as caixas de correio esventradas, trepou as escadas a quatro e quatro e distinguiu, através do bramido dos carros, os batimentos característicos da música rap. Sorriu ao reconhecer A Túbe Called Quest, um álbum que escutava desde há vários meses. Empurrou a porta com um pontapé e disse simplesmente: “Polícia”. Uma descarga de adrenalina brotou-lhe nas veias. Era a primeira vez que se armava em chui sem medo.

 

Os três mânfios ficaram tolhidos de estupor. O apartamento estava cheio de entulho, as divisórias tinham sido arrancadas, assomavam canalizações por toda a parte, uma televisão pontificava sobre um colchão esfrangalhado. Um modelo Sony, último grito, sem dúvida fanado na noite anterior. No ecrã, um filme pornográfico exibia as suas carnes descoradas. O ventilador zunia a um canto, sacudindo o pó de gesso.

 

Karim sentiu o seu corpo desdobrar-se e flutuar no compartimento. Viu pelo rabo do olho uns auto-rádios pousados a trouxe-mouxe ao fundo da sala. Viu saquinhos de pó rasgados sobre uma caixa de papelão virada. Viu uma espingarda de mola no meio de estojos de cartuchos. Identificou logo Donato, a partir da foto antropométrica que guardava no bolso, um rosto pálido de olhos claros, com ossos salientes e cicatrizes. Em seguida os dois outros, contorcidos pelo esforço de saírem dos seus sonhos químicos. Karim ainda não sacara da arma.

- Kalder, Masuro, pirem-se.

 

Os dois homens estremeceram ao ouvirem os seus nomes. Hesitaram, lançaram um olhar dilatado, depois deslizaram até à porta. Restava Donato, que tremia como uma asa de insecto. De súbito, deu um pulo na direcção da espingarda. Karim pisou-lhe a mão no instante em que ela agarrava a coronha, e deu-lhe um pontapé na cara - calçava sapatos de pontas ferradas - sem abrandar a pressão do seu outro calcanhar. A articulação do braço estalou. Donato soltou um grito rouco. O chui agadanhou o homem e impeliu-o contra um colchão velho. O ritmo surdo de A Tribe Called Quest continuava.

 

Karim puxou do seu automático, que trazia num boldrié com correia de feltro, do lado esquerdo, e envolveu a sua mão armada num saco de plástico transparente - um polímero específico, não-inflamável, que levara consigo. Apertou os dedos sobre a coronha quadriculada. O tipo ergueu os olhos.

- O que é ... ? Poça! O que é que estás a fazer?

 

Karim meteu um projéctil no cano e sorriu.

 

- As cápsulas, pá. Nunca viste isto nos telefilmes? É essencial não as deixar perdidas por aí...

 

- Mas o que pretendes, afinal? És chui? Tens a certeza de que és mesmo chui?

 

Karim marcava a cadência com a cabeça. Disse por fim:

- Venho da parte de Marcel.

 

- Quem?

 

O chui leu a incompreensão no olhar do fulano. Percebeu que o italiano não se lembrava do homem que torturara até à morte. Percebeu que Marcel não existia, que nunca existira na memória do drogado.

 

- Pede-lhe perdão. -O o quê?

 

A luz do sol derramava-se sobre o rosto luzidio de Donato. Karim assestou a sua arma envolvida em plástico.

 

- Pede perdão a Marcel! - ofegou ele. O homem soube que ia morrer e berrou:

 

- Perdão! Perdão, Marcel! Mas que chiça! Peço-te perdão, Marcel! Eu...

 

Karim disparou-lhe duas vezes no rosto.

 

Recuperou as balas nas fibras calcinadas do colchão, enfiou as cápsulas esbraseadas na algibeira e saiu sem se virar. Pressentia que os outros dois tipos iam voltar com reforços.

 

Esperou alguns minutos no átrio de entrada, depois avistou Kalder e Masuro, acompanhados de três outros zombis, chegando em passo de carga. Engolfaram-se no prédio pelas portas desengonçadas. Antes que pudessem reagir, Karim postou-se diante deles e pespegou Kalder contra as caixas do correio. Brandiu a arma e bradou:

 

- Se falares, és um homem morto. Se me procurares, morres. Se me matares, levas prisão perpétua. Sou chui, meu desgraçado! Chui, compreendes bem?

 

Atirou o homem ao chão e saiu para o sol, esmagando cacos de vidro sob os seus passos.

 

Foi assim que Karim disse adeus a Nanterre, a cidade que lhe ensinara tudo.

 

Algumas semanas mais tarde, o jovem argelino telefonou para a esquadra da praça da Boule a propósito do inquérito. Explicaram-lhe o quejá sabia. Donato fora morto, em princípio por duas balas de calibre 9 mil parabeltum, mas não tinham encontrado os projécteis nem as cápsulas. Quanto aos dois comparsas, haviam desaparecido. Processo arquivado. Para os chuis. Para Karim.

 

O árabe pedira para ser integrado na BRI, cais dos Orfêvres, especializada em seguimentos, flagrantes delitos e detenções de surpresa. Mas os seus resultados jogaram contra si. Propuseram-lhe antes a Sexta Divisão - a brigada antiterrorista - a fim de se infiltrar entre os integristas islamitas dos arrabaldes quentes. Os chuis argelinos eram demasiado raros para não se aproveitar este. Recusou. Não estava disposto a servir de informador, até mesmo no seio de assassinos fanáticos. Karim queria calcorrear o reino da noite, perseguir os assassinos, enfrentá-los no seu próprio terreno e trilhar esse mundo paralelo ao qual pertencia. Não apreciaram a sua recusa. Alguns meses depois, Karim Abduf, saído com a patente de major da escola de polícia de Cannes-Écluse, assassino desconhecido de um drogado psicopata, foi transferido para Sarzac, na região do Lot.

 

O Lot. Uma região onde os comboios não paravam. Uma região onde as aldeias fantasmas surgiam como flores de pedra na curva de uma estrada. Uma terra de cavernas, onde até o turismo era destinado aos trogloditas: gargantas, despenhadeiros, pinturas rupestres... Esta região constituía um insulto à identidade de Karim. Ele era um argelino da metrópole, um homem das ruas, e nada podia ser mais diferente dele que essa maldita cidade de província.

 

Desde logo, iniciou-se um quotidiano lastimoso. Teve que defrontar dias mortais, pautados por missões irrisórias. Verificar um acidente de viação, prender um ladrão de meia-tigela nas zonas comerciais, apanhar um burlão nos sítios turísticos...

 

Ojovem argelino tinha então começado a viver em sonhos. Arranjara as biografias dos grandes chuis. Sempre que podia, ia às bibliotecas de Figeac ou de Cahors, a fim de coligir artigos de jornais que descreviam inquéritos, factos do dia-a-dia, qualquer coisa que lhe relembrasse o seu verdadeiro ofício de polícia. Também adquiria velhos best-sellers, as memórias de gangsters... Assinava as revistas profissionais da polícia, os magazines especializados em armas, em balística, em novas tecnologias. Um autêntico mundo de papéis, no qual Karim se afundara a pouco e pouco.

 

Vivia sozinho, dormia sozinho, trabalhava sozinho. Na esquadra, sem dúvida uma das mais pequenas de França, temiam-no e detestavam-no ao mesmo tempo. Os colegas chamavam-lhe “Cleópatra” por causa das tranças. julgavam-no integrista porque não bebia álcool. Atribuíam-lhe costumes bizarros porque recusara sempre, por ocasião das patrulhas nocturnas, o desvio obrigatório pela casa de Sylvie.

 

Murado na sua solidão, Karim contava os dias, as horas, os segundos, e podia passar fins de semana inteiros sem abrir a boca.

 

Nessa segunda-feira de manhã, saía de uma das tais curas de silêncio vividas quase inteiramente no seu estúdio, com excepção do treino na floresta onde repetia incansavelmente os gestos e os movimentos mortíferos do pé, antes de gastar alguns carregadores contra árvores centenárias.

 

Bateram à porta. Por reflexo, Karim consultou o relógio.

07.45. Foi abrir.

 

Era Sélier, um dos chuis de guarda. Tinha estampada no rosto uma expressão turva, entre inquietude e sono. Karim não lhe ofereceu chá. Nem sequer o convidou a sentar-se. Perguntou:

 

- Que aconteceu?

 

O homem moveu os lábios, mas nada disse. Um suor espesso colava-lhe o cabelo por baixo do boné. Finalmente, balbuciou:

 

- É... a escola. A escola pequena.

 

- O quê?

 

- A escola jean-Jaurès. Assaltaram-na... esta noite.

 

Karim sorriu. A semana começava em bom ritmo. Uns jovens estoira-vergas do bairro vizinho tinham sem dúvida semeado o caos numa escola primária, pelo simples prazer de aborrecer as pessoas.

 

- Muitos estragos? - inquiriu Karim vestindo-se.

 

O polícia fardado fez uma careta ao ver as roupas que Karim punha. Sweat-shirt, Jeans, fato de jogong com capuz, depois casaco de cabedal castanho, modelo varredor de ruas dos anos 50. Balbuciou:

 

-Justamente, não. Foi um acto de profissionais... Karim atou os seus sapatos subidos.

 

- Um acto de profisionais? O que pretendes dizer?

 

- Não foram jovens que fizeram disparates... Entraram na escola com chaves-mestras. E tomaram muitas precauções. Foi só a directora que reparou nalguns pormenores que destoavam, senão...

 

O argelino levantou-se.

 

- O que é que eles roubaram?

 

Sélier arfou e passou o indicador por baixo do colarinho:

- Isso ainda é o mais estranho. Não roubaram nada.

 

- A sério?

 

- A sério. Limitaram-se a entrar numa sala e depois, parece que abalaram sem mais nem menos...

 

Por breves instantes, Karim observou-se a si mesmo nas vidraças. As tranças caíam-lhe de esguelha de ambos os lados das têmporas, o seu rosto estreito e escuro era aguçado por uma pêra. Ajeitou a boina tecida com as cores jamaicanas e sorriu à sua imagem. Um Diabo. Um Diabo emanado das Caraíbas. Virou-se para Sélier.

 

- E por que vens procurar-me a mim?

 

- O Crozier ainda não regressou do fim de semana. Então, o Dussard e eu... pensámos que... enfim, que tu... Tens de ver aquilo, Karim, eu...

 

- Está bem. Vamos lá.

 

O SOL erguia-se sobre Sarzac. Um sol de Outubro, tépido e mortiço como uma convalescença difícil. Karim seguiu na sua velha carripana Peugeot, a carrinha da patrulha. Atravessaram a cidade dormente, que àquela hora ainda mostrava esbranquiçados de fogos-fátuos.

 

Sarzac não era uma terriola antiga nem uma cidade moderna. Desdobrava-se por uma longa planície, expondo os seus prédios ou as suas construções entre duas idades, sem sinais particulares. Só o centro da cidade alardeava uma ligeira especificidade: atravessava-o um pequeno carro eléctrico de lado a lado, percorrendo ruas de pedras velhas. Todas as vezes que ali passava, Karim pensava na Suíça ou na Itália, sem saber lá muito bem porquê. Não conhecia nenhum destes dois países.

 

A escola jean-Jaurès situava-se mesmo a leste, no bairro dos quarteirões pobres, perto da zona industrial da cidade. Karim chegou a um conjunto de prédios azuis e castanhos, muito feios, que lhe lembravam os subúrbios da sua infância. A escola erguia-se no extremo de uma rampa de betão que sobranceava uma estrada de asfalto gretado.

 

Na escadaria aguardava-os uma mulher enroupada num cardigão escuro. A directora. Karim cumprimentou-a e apresentou-se. A mulher acolheu-o com um sorriso sincero e ele ficou surpreendido. De um modo geral, desencadeava uma onda de desconfiança. Karim agradeceu mentalmente àquela mulher a sua espontaneidade e analisou-a durante uns segundos. O seu rosto era chato como um lago, com grandes olhos verdes pousados em cima, semelhantes a dois nenúfares.

 

Sem mais preâmbulos, a directora pediu-lhe que a seguisse. A construção pseudomoderna parecia nunca ter sido acabada. Ou então estava numa fase de renovação indefinida. Os corredores, de tectos muito baixos, eram constituídos por painéis de polistireno, alguns dos quais se encontravam mal ajustados. A maior parte deles surgiam recobertos de desenhos de crianças, pregados com tachas ou pintados nas próprias paredes. Pequenos cabides sucediam-se de enfiada à altura dos gaiatos. Estava tudo de esguelha. Karim tinha a impressão de avançar numa caixa de sapatos que alguém houvesse esmagado com o pé.

 

A directora parou em frente de uma porta entreaberta. Sussurrou então numa voz misteriosa:

 

- Foi o único compartimento onde eles entraram. Empurrou a porta com precaução. Penetraram num gabinete que parecia mais uma sala de espera. Móveis envidraçados abrigavam inúmeros registos e livros escolares. Sobre um pequeno frigorífico via-se uma máquina de café. Uma secretária, em imitação de madeira de carvalho, estava submersa por plantas verdes que assentavam em pratos cheios de água. Pairava por todo o compartimento um cheiro a terra diluída.

 

- Repare - disse a mulher apontando para um dos móveis -, abriram aquele armário. São os nossos arquivos. Mas, à primeira vista, não roubaram nada. Nem sequer tocaram em nada.

 

Karim ajoelhou-se e observou a fechadura do armário envidraçado. Dez anos de arrombamentos e de roubos de automóveis tinham-lhe forjado uma sólida experiência em matéria de assaltos. Sem a mínima dúvida, o intruso que manipulara aquela fechadura dispunha de autênticos conhecimentos no domínio. Karim estava assombrado: por que motivo teria um profissional vindo assaltar uma escola primária em Sarzac? Pegou num dos registos, folheou-o brevemente. Listas de nomes, comentários de docentes, cartas administrativas... Cada volume correspondia a um ano diferente. Ergueu-se.

 

- Ninguém ouviu nada? A mulher respondeu:

 

- Sabe, a escola não é bem vigiada. Há de facto uma guardiã, mas francamente...

 

Karim ainda olhava para o armário, forçado em jeito.

 

- Acha que o assalto ocorreu na noite de sábado ou na de domingo?

 

- Em qualquer das noites, ou mesmo de dia. Pode crer, durante o fim de semana, a nossa pequena escola fica ao deus-dará. Não há nada para roubar aqui.

 

- Muito bem - concluiu ele. - Terá de passar pela esquadra central, para prestar o seu depoimento.

 

- É um infiltrado, não?

- Como diz?

 

A directora mirava Karim com um olhar atento. Acrescentou:

 

- Quero eu dizer: o seu traje, o seu aspecto. Mistura-se com os gangs dos subúrbios e...

 

Karim deu uma gargalhada.

 

- Os gangs não andam pelos campos, por aqui.

 

A directora ignorou o reparo e continuou, num tom entendido:

 

- Sei como isso se passa. Vi um documentário sobre o assunto. Os tipos como você usam roupas reversíveis, marcadas com a sigla da Polícia Nacional e...

 

- Minha senhora... - interrompeu Karim. - Estou a ver que sobrestima a sua pequena cidade.

 

Virou costas e encaminhou-se para a porta. A directora correu atrás dele:

 

- Não anota os indícios? As impressões digitais? Karim retorquiu:

 

-Julgo que, atendendo à gravidade do caso, vamos contentar-nos em recolher o seu testemunho e dar uma volta pelo bairro.

 

A mulher pareceu decepcionada. Fitou de novo Karim com atenção.

 

- Não é cá do sítio, pois não?

- Não.

 

- O que fez para vir aqui parar?

 

- É uma longa história. Um destes dias, talvez volte a passar para lha contar.

 

No exterior, Karim juntou-se aos polícias fardados que fumavam de punho crispado e com olhares acossados de meninos de escola. Séller pulou do furgão.

 

- Tenente, com mil demónios! Há um novo sarilho.

- O que é?

 

- Outro arrombamento. Desde que aqui estou, nunca...

- Onde?

 

Séller hesitou, olhou para os colegas. A respiração saía-lhe em arquejos sob o bigode.

 

- Eu... No cemitério. Entraram num jazigo.

 

As sepulturas e as cruzes desdobravam-se sobre uma vertente suave, variando os cinzentos e os verdes, como cinzelagens de líquen a brilhar ao sol. Por detrás do gradeamento, ojovem árabe respirou o perfume de orvalho e de flores emurchecidas.

 

- Esperem por mim aqui - resmoneou ele aos chuis. Karim calçou luvas de látex dizendo consigo que Sarzac se lembraria durante muito tempo de uma segunda-feira assim.

 

Desta vez, voltara ao seu estúdio para se munir do equipamento “científico”: um estojo que continha pós de alumínio e de granito, adesivos e ninidrina para apurar as impressões digitais latentes, bem como elastómeros para moldar eventuais pegadas... Estava decidido a tomar nota do mínimo indício com precaução.

 

Seguiu pelas áleas de saibro conducentes ao jazigo profanado cuja localização lhe tinham indicado. Por momentos, receara tratar-se de uma verdadeira profanação, ao gosto das que se verificavam em França desde há vários anos, de acordo com uma moda macabra. Caveiras e cadáveres mutilados. Mas não: aqui tudo estava perfeitamente em ordem. Visivelmente, os profanadores não haviam tocado em nada, excepto nojazigo. Karim chegou ao pé do bloco de granito: um monumento em forma de capela.

 

A porta só estava entreaberta. Ajoelhou-se e observou a fechadura. Tal como na pequena escola, os arrombadores tinham posto um cuidado especial na abertura do sepulcro. O polícia afagou a aresta do batente e deduziu, uma vez mais, estar perante profissionais. Os mesmos?

 

Abriu mais a porta e tentou imaginar a cena. Por que razão haviam os intrusos tomado tantas precauções para abrir uma sepultura, abalando em seguida sem fechar a entrada? Accionou várias vezes o batente de pedra e compreendeu: tinham-se introduzido umas areias grossas sob a borda e o alizar dera de si. Agora era impossível cerrar o jazigo. Essas pequenas lascas minerais é que haviam denunciado a passagem dos profanadores.

 

Espiolhou seguidamente o sistema de linguetas de pedra que compunham a fechadura. Uma estrutura específica, sem dúvida habitual neste gênero de edifício, mas que só uns especialistas podiam conhecer. Reprimiu um arrepio: especialistas? Perguntou de novo a si mesmo se seria realmente a mesma equipa que assaltara a escola primária e o cemitério. Qual podia ser o elo entre estas duas intrusões?

 

Foi a estela que lhe indicou um início de resposta. A inscrição funerária rezava assim: <jude Itero. 23 de Maio de 1972 -

14 de Agosto de 1982”. Karim reflectiu. Talvez este rapazinho tivesse estudado na escola Jeanjaurès. Olhou novamente para a placa funerária: nenhum epitáfio, nenhuma oração. Só uma pequena moldura oval, em prata envelhecida, estava pregada no mármore. Mas sem qualquer retrato.

 

- É um nome de gaja, não é?

 

Karim voltou-se: Sélier postara-se ali com as suas botifarras e o seu ar assarapantado. O tenente respondeu cheio de desdém:

 

- Não, é masculino.

- Mas é inglês?

 

- Não, judaico.

 

Sélier enxugou a testa.

 

- Diacho! É uma profanação como em Carpentras? Um acto de extrema-direita?

 

Karim endireitou-se e esfregou as suas mãos enluvadas uma contra a outra.

 

- Não, não creio. Faz-me um favor. Espera por mim junto ao portão, com os outros.

 

Sélier foi-se embora a praguejar, de boné levantado. Karim viu-o afastar-se e depois observou outra vez a porta entreaberta.

 

Decidiu-se por um pequeno mergulho debaixo de terra. Avançou, arqueado sob o nicho, enquanto acendia a sua lanterna. Desceu os degraus fazendo a poeira ranger sob os passos. Tinha o sentimento de violar um tabu ancestral. Pensou que não nutria qualquer convicção religiosa e, acto contínuo, congratulou-se com isso. O feixe de halogéneo rasgava a escuridão. Continuou a avançar, depois parou de chofre. O pequeno caixão de madeira clara, pousado sobre dois cavaletes, recortava-se no foco da sua lanterna.

 

Sentindo a garganta seca, Karim aproximou-se e contemplou o caixão. Media cerca de um metro e sessenta. Os cantos eram encimados por ornatos em espiral e arabescos de prata. O conjunto parecia em bom estado, apesar dos corrimentos. Palpou as,junções ao mesmo tempo que pensava que, sem as luvas, jamais se atreveria a tocar naquele caixão. Censurava-se por experimentar tamanho receio. à primeira vista, a tampa não fora aberta. Pôs a lanterna entre os dentes para se entregar a um exame mais aprofundado dos parafusos. Mas uma voz ressoou acima dele:

 

- O que está aí a fazer?

 

Karim sobressaltou-se. Abriu a boca, a lanterna caiu e rolou sobre a madeira do caixão. As trevas abateram-se sobre si enquanto se voltava. Um homem - ombros descaídos e boné espalmado - debruça-se pela abertura. O argelino tacteou, procurando a sua lanterna no chão. Sibilou:

 

- Polícia. Sou tenente da polícia.

 

O homem, lá no alto, nada disse; depois resmungou de repente:

 

- Não tem o direito de estar aqui.

 

Karim iluminou o solo e dirigiu-se para a escada. Fixou o tipo corpulento e carrancudo, emoldurado pelo friso de claridade. Decerto o guarda do cemitério. Karim sabia que estava em infracção. Até mesmo num caso assim, era necessária uma autorização escrita, assinada pela família, ou um mandato específico para penetrar numa sepultura. Galgou os degraus e disse:

 

- Chegue-se para lá. Vou subir.

 

O homem afastou-se. Karim bebeu a luz como um elixir de vida. Mostrou o seu cartão tricolor e declarou:

 

- Karim Abduf. Esquadra de Sarzac. Foi você que descobriu a profanação?

 

O homem mantinha-se silencioso. Sondava o árabe com as suas pupilas incolores: bolhas de ar em água cinzenta.

 

- Não tem o direito de estar aqui.

 

Karim aquiesceu distraidamente. O ar matinal varria a sua perturbação.

 

- Pronto, amigo. Não discuta. Os chuis têm sempre razão. O velho arredondou os seus lábios eriçados de felpas de barba.

 

Tresandava a álcool, a barro húmido. Karim prosseguiu:

- O.K., diga-me o que sabe. A que horas descobriu isto? O velho suspirou:

 

- Vim às seis horas. Temos um enterro, esta manhã.

- Quando é que passara pela última vez?

 

- Na sexta-feira.

 

- Devem, então, ter aberto o jazigo em qualquer altura durante o fim de semana...

 

- Sim. Embora eu me incline para a noite passada.

- Porquê?

 

- Porque choveu no domingo à tarde e não se vê qualquer traço de humidade no jazigo... A porta devia, portanto, estar ainda fechada.

 

Karim perguntou:

 

- Mora perto daqui?

 

- Ninguém mora perto daqui.

 

O árabe deitou um olhar circular ao pequeno cemitério que respirava calma e serenidade.

 

- Costumam aparecer vadios aqui pelas paragens? - voltou ele à carga.

 

- Não.

 

- Nunca há visitantes suspeitos? Vandalismo? Cerimónias ocultas?

 

- Não.

 

- Fale-me deste túmulo.

 

O guarda cuspiu no saibro.

 

- Não há nada de especial para dizer.

 

- U trijazigo só para uma criança, é estranho, não acha?

- Sim, é estranho.

 

- Conhece os pais?

- Não. Nunca os vi.

 

- Em 1982, não estava aqui?

 

- Não. E o colega que vim substituir já morreu. - O homem deu uma risada. - Nós também não ficamos cá...

 

- Ojazigo parece bem conservado.

 

- Não disse que não vinha ninguém. Disse que não os conheço. Tenho experiência. Sei a que velocidade se gastam as pedras. Conheço a duração de vida das flores, mesmo quando são de plástico. Sei como surgem as sarças, as ervas daninhas, todas essas bodeguices. Posso dizer que acabam de o arranjar, sim, este jazigo. Mas, por mim, nunca vi ninguém.

 

Karim reflectiu um pouco mais. Ajoelhou-se de novo e observou a pequena moldura em forma de camafeu. Falou ao guarda sem erguer os olhos:

 

- Tenho a impressão de que os saqueadores roubaram o retrato do garoto.

 

- Ah! Talvez, sim.

 

- Lembra-se do rosto dele? Do rosto do menino?

 

- Não.

 

Karim levantou-se e concluiu, descalçando as luvas:

 

- Há-de vir cá uma equipa científica durante o dia, para colher as impressões digitais, os eventuais indícios. Sendo assim, é melhor anular a cerimónia desta manhã. Diga que há obras, uma avaria nas canalizações, qualquer coisa. Não quero hoje ninguém aqui, entendido? Principalmente jornalistas...

 

O velho disse que sim com a cabeça, ao passo que Karim já caminhava para o portão.

 

Ao longe, um sino lancinante badalava as nove horas.

 

Antes de ir à esquadra para redigir o seu relatório, Karim optou por um novo desvio pelo estabelecimento escolar. O sol lançava agora raios de cobre sobre as esquinas das casas. O chui disse uma vez mais com os seus botões que ia estar um dia magnífico, e este pensamento banal provocou-lhe uma náusea.

 

Chegado à escola, interrogou a directora:

 

- Um rapazinho chamado jude Itero andou aqui a estudar nos anos 80?

 

A mulher requebrou-se, brincando com as amplas mangas do seu cardigão:

 

- Já tem uma pista, inspector?

- Faça o favor de me responder.

 

- Pois bem... é preciso ir ver nos nossos arquivos.

- Vamos lá, depressa.

 

Conduziu novamente Karim ao pequeno gabinete das plantas verdes.

 

- Nos anos 80, foi o que disse? - perguntou ela passando um dedo ao longo dos registos empilhados atrás do vidro.

 

- 1982, 1981 e assim sucessivamente, respondeu Karim. De súbito, notou uma hesitação na mulher.

 

- O que há?

 

- É esquisito. Não reparei, esta manhã...

- O quê?

 

- Os registos... Os de 81 e 82... Desapareceram.

 

Karim arredou a mulher e rebuscou a série de livros castanhos, sobrepostos na vertical. Cada livro trazia a menção de um ano. 1979, 1980... De facto, faltavam os dois seguintes.

 

- O que há exactamente nestes registos? - indagou Karim folheando um dos exemplares.

 

- A composição das classes. As observações dos professores. São osjornais de bordo da escola...

 

Ele pegou no registo de 1980 e consultou a composição das classes.

 

- Se a criança tinha oito anos em 1980, em que classe estava?

 

- Curso elementar 2. Ou mesmo curso médio 1.

 

Karim leu as listas correspondentes: não constava jude Itero. Perguntou:

 

- Há outros documentos na escola respeitantes às classes dos anos 81 e 82?

 

A directora reflectiu.

 

- Ora bem... Temos de ver lá em cima... Os registos de cantina, por exemplo. Ou os relatórios das visitas médicas. Está tudo arrumado nas águas-furtadas, venha comigo. Nunca lá vai ninguém.

 

Subiram a quatro e quatro as escadas revestidas de linóleo. A mulher parecia sobreexcitada com todo este caso. Seguiram por um corredor estreito e atingiram uma porta de ferro diante da qual a directora ficou confusa.

 

- Oh!... é incrível - disse. - Esta porta também foi forçada!

 

Karim examinou a fechadura. Aberta, mas sempre com precaução. Deu uns passos no interior. Era um grande compartimento em forma de mansarda semjanela, à excepção de uma lucarna gradeada. Sobre estruturas de metal, acumulavam-se maços de papéis e pastas. O cheiro a papel seco e poeirento impressionou Karim.

 

- Onde estão os documentos de 81 e 82? - perguntou. Sem responder, a directora encaminhou-se para um suporte e afadigou-se no meio dos maços espessos e dos registos comprimidos. A operação só durou alguns minutos, mas a mulher foi categórica:

 

- Também desapareceram.

 

Karim sentiu formigueiros nos membros. A escola. O cemitério. Os anos 81/82. O nome de um rapazinho:Jude Itero. Estes elementos formavam um conjunto. Quis saber mais:

 

-já estava nesta escola em 1981?

 

A mulher meneou-se cheia de coqueteria.

 

- Que ideia, inspector - ciciou ela. - Ainda andava a estudar...

 

- Não se passou nada de particular aqui na escola nessa época? Algo de grave, de que tenha ouvido falar?

 

- Não. A que se refere?

- À morte de um aluno.

 

- Não. Nunca ouvi falar de semelhante história. Mas posso informar-me.

 

- Onde?

 

- Na academia da nossa região. Eu...

 

- Ser-lhe-ia também possível saber se um rapaz chamado Jude Itero frequentou a sua escola durante esses dois anos?

 

A respiração da directora estava opressa.

 

- Mas... não há problema, inspector. Eu vou...

 

- Despache-se o mais depressa que puder. Voltarei daqui a um bocado.

 

Desceu as escadas a correr, mas parou a meio e virou-se.

- Só uma pequena coisa, para a sua cultura policial. Hoje, entre os chuis,já não se diz “inspector”, mas “tenente”. Como lá na América.

 

A directora esbugalhou os seus grandes olhos para a sombra que já se sumia.

 

De todos os chefes da esquadra, o chefe Crozier era o que Karim detestava menos. Não por ser o seu superior hierárquico, mas porque tinha uma profunda experiência do terreno e dava amiúde provas de uma autêntica intuição policial.

 

Originário do Lot, antigo militar, Henrri Crozier, cinquenta e quatro anos, pertencia à polícia francesa desde há uns vinte anos. Nariz abatatado, grenha empastada, como se fosse penteada a ancinho, exalava rigor e dureza, mas o seu humor também podia dar lugar a uma bonomia desconcertante. Crozier era um indivíduo solitário. Não tinha mulher nem filhos e imaginá-lo no meio de um lar aparentava-se a pura ficção científica. Esta solidão aproximava-o de Karim, mas era o seu único ponto comum. Para além disto, o chefe possuía todas as características do chui tacanho e obediente. O género de filante que gostaria de reencarnar num pastor alemão.

 

Karim bateu à porta e entrou no gabinete. Mobiliário de marca todo em metal. Cheiro a tabaco perfumado. Cartazes em glória da polícia francesa, silhuetas estáticas e mal fotografadas. O argelino sentiu outra náusea.

 

- Que história vem a ser esta? - perguntou Crozier, sentado atrás da secretária.

 

- Um arrombamento e uma profanação. Duas coisas muito discretas, muito esmeradas. E muito estranhas.

 

Crozier fez um trejeito:

- O que roubaram?

 

- Na escola, alguns registos de arquivos. No cemitério, não sei. Conviria efectuar uma busca atenta no interior dojazigo onde...

 

-Julgas que as duas acções estão ligadas?

 

- Como não hei-dejulgar? Dois assaltos, no mesmo fim de semana, em Sarzac. É um acontecimento capaz de rebentar com as estatísticas.

 

- Mas descobriste laços entre os dois casos?

 

Crozier esgaravatou o fundo de um cachimbo enegrecido. Karim sorriu no seu íntimo: a caricatura do comissário, nas séries negras dos anos 50.

 

- Talvez disponha de um elo, sim - murmurou. - Um elo ténue, mas...

 

- Diz lá.

 

- O jazigo profanado é o de um miúdo que tinha um nome original, Jude Itero. Morreu aos dez anos, em 1982. Talvez se recorde dele...

 

- Não. Continua.

 

- Pois bem, os registos que os assaltantes bifaram correspondem aos anos 81 e 82. Pensei de mim para comigo que talvez o pequenojude tivesse estudado nesse estabelecimento e que se tratava justamente dos anos em que...

 

- Tens elementos para apoiar a tua hipótese?

- Não.

 

- E verificaste nas outras escolas?

 

- Ainda não.

 

Crozier soprou no cachimbo à maneira de Popeye. Karim abeirou-se e adoptou o seu tom mais doce:

 

- Deixe-me levar a cabo este inquérito, comissário. Sinto que se esconde aqui algo de obscuro. Um laço entre estes elementos. Parece incrível, mas tenho a impressão de que foram profissionais que deram o golpe. Procuravam qualquer coisa. Procuremos, em primeiro lugar, os pais do garoto, depois procederei a uma busca aprofundada nojazigo. Eu... Não está de acordo?

 

O comissário, de olhos baixos, atestava agora com aplicação o seu fornilho escuro. Resmoneou:

 

- É obra dos skins.

- O quê?

 

Crozier ergueu os olhos para Karim.

 

- Repito: o que se passou no cemitério foi obra dos cabeças rapadas.

 

- Que cabeças rapadas?

 

O comissário desatou a rir e cruzou os braços.

 

- Vês que ainda tens muito que aprender sobre a nossa pequena região? São uns trinta. Vivem num entreposto devoluto, perto de Caylus. Um antigo armazém de águas minerais. A vinte quilómetros daqui.

 

Abduf reflectiu enquanto fitava Crozier. O sol brilhava no seu penteado oleoso.

 

- Creio que se engana.

 

- O Sélier disse-me que a sepultura é judaica.

 

- Mas de modo nenhum! Eu ensinei-lhe simplesmente quejude é um nome de origem judaica. Não quer dizer nada.

 

O jazigo, não ostenta qualquer símbolo da religiãojudaica e os judeus preferem ser inumados no sítio onde a sua família está enterrada. Comissário, esta criança morreu aos dez anos de idade. Nos túmulos judaicos, em tais casos, há sempre um desenho, um motivo, que ilustra o destino interrompido. Como um pilar incompleto ou uma árvore abatida. Esta sepultura é uma sepultura cristã.

 

Um verdadeiro especialista. Como sabes tudo isso? Li.

 

Crozier insistiu, imperturbável:

- É obra dos skins.

 

- É absurdo. Não é um acto racista. Não é sequer vandalismo. Os assaltantes procuravam outra coisa...

 

- Karim - atalhou Crozier num tom amistoso onde aflorava uma leve tensão -, aprecio sempre os teus juízos e os teus conselhos. Mas ainda sou eu que comando. Confia na velha fera. Temos de aprofundar a pista dos cabeças rapadas. Julgo que uma visitinha tua nos permitiria ficar elucidados.

 

Karim levantou-se e engoliu em seco.

- Sozinho?

 

- Não me digas que tens medo de uns moços com o cabelo cortado um bocadinho curto.

 

Karim não respondeu. Crozier apreciava este gênero de prova. No seu espírito, era simultaneamente uma patifaria e um sinal de estima. O tenente firmou-se nas bordas da secretária. Se Crozier queria jogar, então ele levaria ojogo a fundo:

- Proponho-lhe um contrato, comissário.

 

- Essa é boa!

 

- Interrogo os skins, sem mais ninguém. Sacudo-os um pouco e redijo-lhe um relatório antes das treze horas. Em troca, obtém-me a autorização para entrar no jazigo e efectuar uma busca a preceito. Também quero interrogar os pais do miúdo. Hoje.

 

- E se foram os skins que deram o golpe? Não foram os skins.

 

Crozier acendeu o cachimbo. O tabaco crepitou como um ramalhete de luzerna.

 

- Combinado - resmungou Crozier.

 

- Quando vier de Caylus, ocupo-me do inquérito?

 

- Só se eu tiver o teu relatório antes das treze horas. De qualquer modo, não tarda que tenhamos de aturar os gajos do SRPI.

 

O jovem chui encaminhou-se para a porta. Os seus dedos apertavam a maçaneta quando o comissário lhe atirou:

 

- Hás-de ver: estou certo de que os skins vão adorar o teu estilo.

 

Karim bateu com a porta sob a gargalhada do velho militarão.

 

Um BOM chui devia conhecer o inimigo de fio a pavio. Todos os seus rostos, todos os seus aspectos. E Karim era imbatível a respeito dos skins. Na época de Nanterre, enfrentara-os várias vezes, por ocasião de combates sem piedade. No tempo da escola de inspectores, consagrara-lhes um relatório pormenorizado. Rodando a toda a velocidade em direcção a Caylus, o árabe passou em revista os seus conhecimentos. Uma maneira que tinha de avaliar as suas hipóteses diante dos pulhas.

 

Rememorava sobretudo os uniformes das duas tendências. Nem todos os skins eram de extrema-direita. Havia também os Red Skins, erigidos em frente de extrema-esquerda. Multirraciais, supertreinados, privilegiando um código de honra, eram tão ou mais perigosos que os neonazis. Mas, frente a eles, Karim dispunha de algumas probabilidades de se sair airosamente. Recapitulou de modo sucinto os atributos de cada um. Os fascistas usavam o seu bomber, o blusão da Força Aérea Inglesa, do direito: o lado verde reluzente. Os Reds pelo contrário, vestíam-no do avesso: o lado cor de laranja fluorescente. Os fachos atacavam os seus sapatos de estivador com cordões brancos ou vermelhos. Os esquerdistas, com amarelos.

 

Por volta das onze horas, Karim estacionou diante do armazém devoluto As ÁGUAS DO VALE. O entreposto fundia-se no azul do céu puro, com as suas altas paredes de plástico ondulado. Um DS preto estava parado defronte da porta. Karim apeou-se logo depois de fazer alguns preparativos. Os biltres deviam estar lá dentro, a curtir a cerveja.

 

Caminhou até ao armazém, esforçando-se por respirar lentamente, escondendo as sentenças da sua realidade imediata. Blusões verdes e cordões brancos ou vermelhos: fachos. Blusões cor de laranja e cordões amarelos: esquerdistas.

 

Só no último caso teria uma hipótese de se tirar de apuros sem grandes estragos.

 

Inspirou fundo e fez deslizar a porta na corrediça. Não precisou de ver os cordões para saber onde acabava de penetrar. Nas paredes destacavam-se cruzes gamadas, bombeadas a tinta vermelha. Siglas nazis surgiam ao lado de imagens de campos de concentração e de fotografias ampliadas de argelinos torturados. Por baixo, uma horda de rapados, envergando blusões verdes, observavam-no. Os seus Doc Martin’s guarnecidos de ferro luziam na sombra. Extrema-direita, tendência dura. Karim sabia que todos aqueles tipos traziam tatuada no interior do lábio inferior as letras sKiv.

 

Karim concentrou-se em si mesmo, na posição de lince, e procurou as armas deles com o olhar. Conhecia o arsenal deste gênero de tarados: soqueiras americanas, tacos de beisebol e pistolas de autodefesa com carga dupla de granalha. Os pulhas deviam também esconder algures espingardas de mola, carregadas de “grãos de borracha” semelhantes aos de chumbo.

 

O que avistou pareceu-lhe muito pior.

 

Eram “birds>. Skins no feminino, com a cabeça rapada exceptuando uma poupa que desabrochava na testa e longas madeixas que pendiam sobre as bochechas. Umas aves bem gordas, saturadas. de álcool, sem dúvida ainda mais violentas

que os seus mecos. Karim ficou baço. Compreendeu que não estava na presença de alguns desempregados ociosos, mas de um verdadeiro bando, decerto ali alapardado à espera de um contrato de bordoada. Via diminuir velozmente as suas hipóteses de se sair bem.

 

Uma das mulheres sorveu um trago de espuma e escancarou a bocarra para arrotar. Em honra de Karim. Os outros desataram a gargalhar. Eram todos do tamanho do polícia.

 

O argelino concentrou-se para falar alto e com firmeza:

- O.K., rapazes. Sou chui. Vim fazer-vos algumas perguntas.

 

Os tipos acercaram-se. Chui ou não, Karim era antes de tudo um árabe. E o que valia a pele de um árabe num barracão a abarrotar de aloucados daquela laia? E até mesmo aos olhos de um Crozier e dos outros polícias? O jovem tenente estremeceu, Num ápice, sentiu o universo ceder sob os seus passos. Afigurou-se-lhe ter contra si toda uma cidade, um país, talvez o mundo.

 

Sacou do seu automático e apontou-o para o tecto. O gesto travou os atacantes.

 

- Repito: sou chui e quero fazer jogo limpo convosco. Devagarinho, pousou a arma sobre um barril enferrujado. Os cabeças rapadas observavam-no.

 

- Deixo a fusca aqui. Ninguém lhe toca enquanto falamos.

 

O automático de Karim era um Glock 21, um desses novos modelos, 70% em polímero, ultraleve. Quinze balas no tambor, mais uma no cano, e visor fosforescente. Sabia que os mânfios nunca tinham visto um assim. Estavam no papo.

 

- Quem é o chefe?

 

O silêncio foi a única resposta. Karim deu uns passos e repetiu:

 

- O chefe, irra! Não percamos tempo.

 

O mais alto avançou, com todo o seu corpo pronto a partir numa arremetida de violência. Tinha o sotaque agreste da região.

 

- O que é que este mouro imundo quer de nós?

 

- Prefiro esquecer que me chamaste isso. E falamos só uns momentos.

 

O skin aproximou-se, abanando a cabeça. Era mais alto e mais largo do que Karim. O argelino pensou nas suas tranças e na desvantagem que constituíam: os seus dreadlocks eram o sítio ideal por onde pegar em caso de confronto. O skin continuou a avançar. De mãos abertas, como polvos de metal. Karim não recuava um milímetro. Uma olhadela para a direita: os outros acercavam-se da sua arma.

 

- Então, ó sarraceno, o que é que tu...

 

A cabeçada partiu como um óbus. O nariz do skin afundou-se no rosto. O homem dobrou-se em dois, Karim girou sobre si mesmo e afinfou-lhe um golpe de calcanhar na glote. O tratante ergueu-se do chão para voltar a cair dois metros mais adiante, vergado pela dor.

 

Um dos skins correu para a fusca e apertou o gatilho. Nada. Só um estalido. Tentou armar a culatra, mas o carregador estava vazio. Karim puxou de uma segunda arma automática, uma Beretta, disfarçada nas suas costas. Fez pontaria aos cabeças rapadas, com ambas as mãos, imobilizando a vítima sob o seu tacão, e berrou:

 

- Acreditaram mesmo que eu ia deixar uma fusca carregada ao alcance de tarados da vossa espécie?

 

Os skins estavam petrificados. O homem por terra gemeu, asfixiado:

 

- Maldito... “Jogo limpo”, hem?...

 

Karim desferiu-lhe um pontapé entre as pernas. O tipo urrou. Ajoelhou-se e torceu-lhe a orelha. As cartilagens estalaram sob os seus dedos.

 

- Limpo? Com uns malandros como vocês? - Karim explodiu num riso nervoso. - Mas que gozo!... Voltem-se para ali! As mãos contra a parede, idiotas de merda! Vocês também, suas galdérias!

 

Disparou então sobre os néons. jorrou um lampejo azulado, o encaixe de folha ricocheteou contra o tecto antes de se desprender e despedaçar no solo por entre uma deflagração de chispas. Os “terrores” trotearam em todas as direcções. Lastimosos. Karim berrava até quase romper as cordas vocais:

 

- Esvaziem os bolsos! Um simples gesto, e rebento-vos as rótulas!

 

Karim via o compartimento através de palpitações tenebrosas.

 

Cravou o cano nas costelas do chefe e perguntou em voz mais baixa:

 

- Com que é que se chutam? O homem cuspia sangue. -O quê?

 

Karim enterrou ainda mais o cano.

 

- O que é que tomam para se drogarem?

- Anfetaminas... speed... cola...

 

- Que cola?

 

-ADi... a Dissoplastina...

- A cola de remendo?

 

O rapado aquiesceu sem compreender.

- Onde está? - volveu Karim.

 

O cabeça rapada rebulia uns olhos injectados.

- No saco do lixo, ao pé do frigorífico...

 

- Não te mexas, senão morres...

 

Karim partiu às arrecuas, varrendo a sala com o olhar, assestando a arma ao mesmo tempo sobre o skin ferido e as silhuetas estáticas que estavam de costas para si. Virou o saco com a mão esquerda: espalharam-se milhares de pílulas no chão, bem como tubos de cola. Apanhou os tubos, abriu-os e atravessou a sala. Desenhou serpentinas viscosas no chão, mesmo por detrás dos skins encostados à parede. De passagem, dava-lhes pontapés nas pernas, nos rins, enquanto ia atirando para boa distância as suas facas e outros utensílios.

 

- Voltem-se.

 

Os cabeças rapadas arrastaram as sapatorras.

 

- Rapazes, agora vão chupar à minha saúde. Vocês também, galdérias. E acertem bem nos rastros de cola.

 

Todas as mãos agatanharam a Dissoplastina, que esguichou entre os dedos cerrados. à terceira tracção, as palmas estavam definitivamente coladas. Os skins baquearam de peito contra o chão, torcendo os punhos ao abaterem-se sobre o betume.

 

Karim dirigiu-se ao seu primeiro adversário. Sentou-se de pernas cruzadas, na posição de lótus, e inspirou profundamente para se acalmar. A sua voz tornou-se mais pausada.

 

- Onde estavam ontem à noite?

 

- Não... não fomos nós.

 

Karim arrebitou as orelhas. Humilhara os skins por bravata e fazia agora as perguntas por simples pró-forma. Tinha a certeza de que estes imbecis não estavam de modo nenhum implicados na profanação do cemitério. No entanto, o chefe parecia saber alguma coisa. O argelino debruçou-se:

 

- De que estás a falar?

 

O cabeça rapada apoiou-se num cotovelo.

- O cemitério... Não fomos nós.

 

- Como estás ao corrente?

 

- Nós... nós passámos por lá...

 

Uma ideia acudiu ao espírito de Karim. Crozier tinha uma testemunha. Alguém, nessa manhã, o prevenira: os skins haviam rondado o cemitério e tinham sido vistos. Logo, o comissário atirara-o às feras sem lhe dizer nada. Karim ajustaria contas mais tarde.

 

- Conta-me tudo.

 

- Andávamos a passarinhar por ali...

- A que horas?

 

- Não sei... Talvez duas horas...

 

- Porquê?

 

- Não sei... queríamos desopilar... armar banzé... Procurávamos os abarracamentos dos estaleiros para ir aos fagotes dos mouros...

 

Karim sentiu-se fremir.

 

- E depois?

 

- Passámos ao pé do cemitério... Bolas!... O portão estava aberto... Vimos sombras... gajos a sair dojazigo...

 

- Quantos eram?

 

- Dois, julgo eu...

 

- És capaz de os descrever? O ferido soltou uma risada.

 

- Meu! Estávamos a cair de bêbados...

 

Karim deu-lhe um bofetão na orelha magoada. O skin reprimiu um grito, que acabou num silvo de serpente.

 

- És capaz de descrever o aspecto deles?

- Não! Era noite velha...

 

Karim reflectiu. Voltou-lhe a convicção inicial a respeito dos assaltantes: profissionais.

 

- E em seguida?

 

- Poça... Cortámos prego... Pusemo-nos a fancos... Pensámos que iam acusar-nos daquilo... por... por causa do que acontecera em Carpentras...

 

- É tudo? Não repararam em mais nada? Um pormenor?

- Não... népia ... às duas horas da madrugada, nesta terriola... é um deserto ...

 

Karim imaginou o ermo da pequena estrada, com o único candeeiro, uma garra branca acima da escuridão a fascinar as borboletas nocturnas. E o bando de cabeças rapadas a dar o piro, de caixão à cova, rugindo hinos nazis. Repetiu:

 

- Procura bem.

 

- Foi... Foi um pouco mais tarde... julgo que vimos um chaço do Leste, um Lada ou coisa parecida, que ia desembestado no sentido contrário... Vinha do cemitério... Na D143...

 

- De que cor?

- Branco...

 

- Nada de particular?

 

- Estava... coberto de lama...

- Tomaste nota da matrícula?

 

- Safa!... Não somos da bófia, que estupidez, eu...

 

Karim pespegou-lhe com um tacão no baço. O homem torceu-se, emitindo um gorgolejo sangrento. O tenente levantou-se e sacudiu o Pó dos seus Jeans. Não havia mais nada para respigar ali. Ouvia os outros a gemer atrás de si. Deviam ter as mãos cheias de queimaduras de terceiro ou quarto grau. Karim concluiu:

 

- Vais fazer-me a gentileza de aparecer na esquadra de Sarzac. Hoje. Para assinar o teu depoimento. Diz que fui eu que te mandei lá, terás um tratamento privilegiado.

 

O skin anuiu com a sua cabeça baloiçante, depois ergueu uns olhos de bicho prostrado.

 

- Por que é... por que é que tu... me fazes isto, meu?

 

- Para te recordares - murmurou Karim. - Um chui é sempre um problema. Mas um chui árabe, é um tremendíssimo problema. Experimenta ir de novo aos fagotes dos mouros e travarás conhecimento com o problema. - E desferiu-lhe um último pontapé. - Um conhecimento profundo.

 

Saiu às arrecuas e colheu de passagem o seu Glock 21. Arrancou a toda a pressa e parou alguns quilómetros mais adiante, numa mata, para deixar a calma regressar às suas veias e reflectir. Em suma, a profanação desenrolara-se antes das duas horas da madrugada. Os assaltantes eram dois e conduziam - talvez uma carripana do Leste. Olhou para o relógio: ainda tinha tempo, mesmo àjusta, de pôr tudo isto por escrito. O inquérito ia poder iniciar-se a sério. Era preciso lançar um pedido de busca, telefonar ao serviço do registo de propriedade, interrogar as pessoas que viviam ao longo da D143...

 

Mas ele já tinha o espírito algures. Cumprira a sua missão. Crozier ia agora dar-lhe rédea larga. Poderia conduzir a investigação a seu modo: bisbilhotar, por exemplo, no que respeitava a um menino falecido em 1982.

 

O EXAME da face anterior do tórax revela longas incisões longitudinais, realizadas sem dúvida

 

com um instrumento cortante. Observam-se igualmente outras lacerações, efectuadas com o mesmo instrumento, nos ombros, nos braços...

 

O médico legista trazia um fato de sarja amarrotado e uns óculos pequenos. Chamava-se Marc Costes. Era um homem novo, de feições afiladas e olhos vagos. Agradara a Niémans logo à primeira vista, que reconhecera nele um apaixonado, um autêntico investigador, falho sem dúvida de experiência, mas não certamente de fervor. Lia o seu relatório numa voz metódica:

 

- ...Múltiplas queimaduras: no torso, nos ombros, nos flancos, nos braços. Contámos cerca de vinte e cinco marcas deste tipo, muitas das quais se confundem com as incisões anteriormente descritas...

 

Niémans interveio: - O que significa isso?

 

O médico ergueu um olhar tímido por cima dos óculos. -Julgo que o assassino cauterizava as feridas pegando-lhes fogo. Tudo leva a crer que aspergia as chagas com fracas quantidades de gasolina para as inflamar em seguida. Parece-me que ele utilizou um aerossol adulterado, talvez um Kürcher.

 

Niémans calcorreou uma vez mais em grandes passadas a sala de trabalhos práticos onde instalara o seu quartel-general, no primeiro andar do edifício de Psicologia e Sociologia. Desejara encontrar-se com o médico legista neste compartimento discreto. O capitão Barnes e o tenentejoisneau estavam igualmente presentes, muito ajuizados nas suas cadeiras de estudantes.

 

- Continue - ordenou ele.

 

- ...Verificámos igualmente a existência de numerosos hematomas, edemas, fracturas. Só no torso, pudemos contar dezoito hematomas. Quatro costelas estão partidas. As duas clavículas reduzidas a estilhas. Três dedos da mão esquerda e dois da direita estão esmagados. As partes genitais ficaram roxas de tanta pancada. A arma utilizada foi, sem dúvida, uma barra de ferro, ou de chumbo, com uma espessura de aproximadamente sete centímetros. Convém, é claro, discernir os ferimentos causados em seguida pelo transporte do corpo e o seu “encastramento” na rocha, mas os edemas não reagem da mesma maneira, post mortem...

 

Niémans perscrutou brevemente a assistência: olhares fugidios e têmporas luzidias.

 

- ...Em relação à parte superior do corpo, rosto intacto, ausência de sinais de equimoses na nuca...

 

O polícia perguntou:

 

- O rosto não foi agredido?

 

- Não. Dá até a impressão de que o assassino evitou tocar-lhe.

 

Costes baixou o olhar para o relatório e retomou a leitura, mas Niémans voltou a interromper:

 

- Espere lá. Suponho que isso irá continuar assim durante muito tempo.

 

O médico pestanejou nervosamente, folheando o seu relatório.

 

- Várias páginas...

 

- Ok. Cada um de nós o lerá mais tarde a sós. Dê-nos antes a causa do óbito. Esses ferimentos provocaram a morte da vítima?

 

- Não. O homem foi morto por estrangulamento. Não há a mínima dúvida. Com um fio metálico de cerca de dois milímetros de diâmetro. Eu diria: cabo de travão de bicicleta, corda de piano, um fio deste gênero. O filamento rasgou as carnes num comprimento de quinze centímetros, cortou a glote, esborrachou os músculos da laringe e lacerou a aorta, provocando a hemorragia.

 

A hora do homicídio?

 

É difícil dizer. Por causa da posição encolhida do corpo. O processo de rigidez cadavérica foi perturbado por essa ginástica e...

 

- Dê-me uma hora aproximada.

 

- Bem... ao anoitecer de sábado, entre as vinte e as vinte e quatro horas.

 

- O Caillois teria sido surpreendido quando regressava da expedição?

 

- Não necessariamente. As torturas, em meu entender, duraram bastante tempo. Penso, antes, que o Caillois foi apanhado de manhã. E que o seu calvário se prolongou pelo dia todo.

 

Na sua opinião, a vítima defendeu-se?

 

É impossível dizer, atendendo aos ferimentos múltiplos. Uma coisa é certa: o homem não levou uma pancada na cabeça. E estava amarrado, consciente, durante a sessão de tortura: as marcas de ataduras nos braços e nos pulsos são evidentes. Por outro lado, na medida em que a vítima não apresenta qualquer sinal de mordaça, podemos supor que o seu algoz não receava que ouvissem os gritos dele.

 

Niémans sentou-se no rebordo de uma dasjanelas.

- O que acha dessas torturas? São profissionais?

- Profissionais?

 

- Trata-se de técnicas de guerra? De métodos conhecidos?

- Não sou um especialista, mas não me parece. Diria antes que se trata de procedimentos de... de um furioso. De um lunático, que pretendia obter as respostas certas às suas perguntas.

 

- Por que diz isso?

 

- O assassino procurava fazer falar o Caillois. E o Caillois falou.

 

- Como sabe?

 

Costes inclinou-se com humildade. Apesar do calor da sala, não tirara a parka que envergava por cima do fato.

 

- Se o assassino quisesse fazer sofrer Rémy Caillois por simples prazer, tê-lo-ia torturado até ao fim. Ora, como já disse, ele acabou por matá-lo de outra maneira. Com o fio metálico.

- Não há vestígios de sevícias sexuais?

 

- Não. Nada desse tipo a assinalar. Não é o mesmo universo. Nem por sombras.

 

Niémans deu mais algumas passadas de um lado para o outro. Esforçou-se por imaginar um monstro capaz de infligir tais atrocidades. Visualizou a cena, a partir do exterior. Não viu nada. Nem rosto nem silhueta. Pensou então no supliciado, no que ele podia ver, sim, debatendo-se com a morte e o sofrimento. Viu gestos fulvos, cores castanhas, ocre, vermelhas. Uma insuportável tempestade de golpes, de fogo, de sangue. Quais poderiam ter sido os derradeiros pensamentos de Caillois? Articulou distintamente:

 

- Fale-nos dos olhos.

- Dos olhos?

 

Fora Barnes quem fizera a pergunta. Sob o efeito da surpresa, a sua voz subira um grau. Niémans dignou-se responder-lhe:

 

- Sim, os olhos. Notei-o há bocado, no hospital. O assassino roubou os olhos da vítima. As órbitas até pareciam cheias de água.

 

- Exactamente - concordou Costes.

 

- Explique-nos desde o início - ordenou Niémans. Costes mergulhou nas suas notas.

 

- O assassino actuou sob as pálpebras. Introduziu um instrumento cortante, seccionou os músculos oculomotores e o nervo óptico, depois extirpou os globos oculares. Em seguida raspou cuidadosamente e limpou o interior das cavidades ósseas.

 

- Durante essa operação, a vítima já estava morta?

 

- Não se pode saber. Mas detectei sinais de hemorragia na mesma região, que talvez demonstrem, ao invés, que Caillois ainda vivia.

 

O silêncio fechou-se sobre as suas palavras. Barnes estava lívido; joisneau, como que cristalizado em torno do seu terror.

- E depois? - perguntou Niémans, para suster aquela angústia que se adensava a cada instante.

 

- Mais tarde, quando a vítima já morrera, o assassino encheu as órbitas com água. Água do rio, suponho eu. Em seguida fechou delicadamente as pálpebras. Por isso é que os olhos estavam cerrados e inchados, como se não houvessem sofrido mutilação alguma.

 

- Voltemos à ablação. O assassino possui, na sua opinião, noções de cirurgia?

 

- Não. Quando muito, umas noções bastante vagas. Diria que, tal como no caso das torturas, ele se aplicou o mais que podia.

 

- Que instrumentos utilizou? Os mesmos que nas incisões?

- A mesma família, pelo menos.

 

- Que família?

 

- Instrumentos industriais: cúteres. Niémans postou-se diante do médico.

 

- É tudo o que pode dizer-nos? Nenhum indício? Nenhuma orientação se desenha, de acordo com o seu relatório?

 

- Nada, infelizmente. O corpo foi completamente enxaguado antes de ser entalado na falésia. Este cadáver não pode ensinar-nos nada sobre o local do crime. Ainda menos sobre a identidade do assassino. No máximo, podemos supor que se trata de um homem forte e hábil. É tudo.

 

- É pouco - resmungou Niémans.

 

Costes fez uma pausa e voltou ao seu relatório:

 

- Há apenas um pormenor de que não falámos... Um pormenor que não tem nada a ver com o homicídio em si mesmo.

 

O comissário entesou-se.

 

- O que é?

 

- Rémy Caillois não tinha impressões digitais.

- Como é possível?

 

- As mãos dele estavam corroídas e desgastadas a tal ponto que já não aparecia nos seus dedos qualquer sulco, qualquer marca. Talvez tenha ficado queimado num acidente. Mas é um acidente que data de há muito.

 

Niémans interrogou Barnes com o olhar, mas só obteve um arqueamento de sobrancelhas em sinal de ignorância.

 

- Veremos isso depois - disse o comissário entredentes. Aproximou-se do médico até roçar na sua parka.

 

- O que pensa deste homicídio, pessoalmente? Como o encara? Qual é a sua intuição profunda de clínico perante tal suplício?

 

Costes tirou os óculos e esfregou as pálpebras. já com as lentes repostas, o seu olhar parecia mais claro, como que polido. E a sua voz mais firme:

 

- O assassino segue un rito obscuro. Um rito que devia terminar naquela posição de feto, no côncavo da rocha. Tudo isto se afigura muito preciso, muito amadurecido. Assim, a mutilação dos olhos deve ser essencial. Há também a água. Essa água sob as pálpebras, no lugar dos olhos. Como se o assassino tivesse querido lavar as órbitas, purificá-las. Estamos a analisar a dita água. Nunca se sabe. Talvez contenha um indício... Um indício químico.

 

Niémans secundou estas últimas palavras com um gesto vago. Costes falava de um papel purificador. O comissário, desde a sua visita ao pequeno lago, também pensava numa operação de catarse, de apaziguamento. Os dois homens iam ao encontro um do outro neste terreno. Acima do lago, o homicida quisera lavar a mácula - quiçá simplesmente purificar o seu próprio crime...

 

Os minutos decorreram. Ninguém ousava mexer-se. Niémans murmurou finalmente, abrindo a porta da sala:

 

- Voltemos ao trabalho. O tempo urge. Não sei o que Rémy Caillois teria a confessar. Só espero que isto não vá desencadear outros homicídios.

 

Uma vez mais, Niémans e Joisneau dirigiram-se à biblioteca. Antes de entrar, o comissário deitou uma breve mirada ao tenente: os seus traços estavam alterados. O polícia deu-lhe uma palmada nas costas, ao mesmo tempo que resfolgava como um desportista. O jovem Éric respondeu com um sorriso sem convicção.

 

Os dois homens penetraram na grande sala dos livros. Aguardava-os um espectáculo espantoso. Dois oficiais da polícia judiciária, com um ar afadigado, em companhia de um pelotão de agentes da polícia em mangas de camisa, tinham invadido a biblioteca e entregavam-se a uma busca aprofundada. Estendiam-se centenas de livros à sua frente, em blocos, em colunas. Atónito, Joisneau perguntou:

 

- O que vem a ser isto?

 

Um dos oficiais respondeu-lhe:

 

- Então, fazemos como nos disseram... Procuramos todos os livros que falam do mal, dos ritos religiosos e...

 

Joisneau deitou uma olhadela a Niémans. Parecia mortificado com os contornos incertos desta operação. Vociferou contra o OPJ:

 

- Mas eu disse-vos para consultar o computador! Não para procurar livros nas estantes!

 

- Lançámos uma pesquisa informática, por título e por tema. Agora, percorremos os livros à procura de indícios, de pontos de semelhança com o homicídio...

 

Niémans interveio:

 

- Pediram conselho aos internos?

 

O oficial compôs uma expressão despeitada.

 

- São filósofos. Encheram-nos de discursos. O primeiro respondeu que a noção de mal é um valor burguês, que devíamos revistar tudo isto sob um ângulo social, de preferência marxista. Não lhe ligámos mais. O segundo falou-nos de fronteira e de transgressão. Mas acrescentou que a fronteira estava em nós... que a nossa consciência não cessava de negociar com um censor superior e... Enfim, não compreendemos patavina. O terceiro levou a coisa para o absoluto e a busca do impossível... Falou-nos da experiência mística, que pode realizar-se tanto no bem como no mal, enquanto aspiração. Assim... eu... Em resumo, não chegámos a lado nenhum, tenente...

 

Niémans desatou a rir.

 

- Eu bem te disse - segredou ele a Joisneau -, convém desconfiar dos intelectuais.

 

Indicou directamente ao polícia aturdido:

 

- Continuem as vossas pesquisas. Às palavras-chave “mal”, “violência”, “torturas” e “ritos”, acrescentem “água”, “olhos” e “pureza”. Consultem o computador. Procurem sobretudo os nomes dos estudantes que requisitaram estes livros, que pesquisavam este gênero de temas; por exemplo, em tese de doutoramento. Quem se ocupa do computador central?

 

Um moço espadaúdo, que meneava os ombros dentro do seu blusão, respondeu:

 

- Sou eu, comissário.

 

- Que mais encontrou nos ficheiros de Caillois?

 

- Há listas dos livros danificados, encomendados, etc. As listas dos estudantes que vêm consultar obras e o seu lugar na sala.

 

- O seu lugar?

 

- Sim. A função de Caillois consistia em colocá-los... com um gesto de cabeça, o tenente apontou os compartimentos envidraçados - nos pequenos cubículos, ali. Memorizava cada lugar no seu programa.

 

- Não encontrou os seus preparativos de tese?

 

- Sim, um documento de mil páginas sobre a Antiguidade e... - olhou para uma folha de papel que garatujara Olímpia. Fala dos primeiros jogos Olímpicos e dos ritos sagrados organizados em volta de tudo isso... Um texto intrincado, posso garantir-lhe.

 

- Imprima tudo e leia. Hem?

 

Niémans acrescentou, num tom irónico:

- Em diagonal, já se vê.

 

O homem parecia desconcertado. O comissário quis saber ainda:

 

- Nada mais dentro da maquineta? jogos de vídeo? Caixa de correio electrónico?

 

O OPj disse que não com a cabeça. Esta notícia não espantou Niémans. Pressentia que Caillois não vivera senão nos livros. Um bibliotecário rigoroso que só admitia um desvio às suas tarefas profissionais: a redacção da sua própria tese. O que podiam fazer confessar a semelhante asceta?

 

Niémans dirigiu-se ajoisneau:

 

- Anda cá. Quero que me informes sobre o teu inquérito. Isolaram-se numa das áleas atapetadas de livros. Ao fim da passagem, um agente de boné compulsava um livro. O comissário sentia alguma dificuldade em manter um ar grave diante daquela cena. O tenente abriu o seu canhenho.

 

- Interroguei vários internos e os dois colegas de Caillois na biblioteca. Rémy não era muito estimado, mas, enfim, respeitavam-no.

 

- O que lhe censuravam?

 

- Nada de especial. Tenho a impressão de que ele suscitava um mal-estar. Era um tipo secreto, fechado. Não fazia o mínimo esforço para comunicar com os outros. Num certo sentido, isto adequava-se ao seu ofício. -Joisneau lançou um olhar em redor, quase assustado. - Veja bem... nesta biblioteca, o dia inteiro a manter silêncio...

 

- Falaram-te do pai dele?

 

- Sabia que também foi bibliotecário? Sim, falaram-me. O mesmo gênero de tipo. Silencioso, impenetrável. Este ambiente de confessionário, com o tempo, deve dar cabo dos nervos. Niémans encostou-se aos livros.

 

- Disseram-te que ele morreu na montanha?

 

- Decerto. Mas não há nada de suspeito neste caso. O homenzinho foi surpreendido por uma avalancha e...

 

- Eu sei. Em teu entender, alguém podia querer mal aos Caillois, ao pai e ao filho?

 

- Comissário, a vítima ia buscar livros ao depósito, preenchia fichas e dava aos estudantes um número de mesa. Que espécie de vingança quer que ele atraia? A de um esfudante a quem não entregaram a edição correcta?

 

- E no tocante ao alpinismo? joisneau voltou a folhear o seu canhenho.

 

- Caillois era simultaneamente um alpinista e um andarilho sem igual. No sábado passado, segundo as testemunhas que o viram partir, deve ter efectuado apenas uma expedição a pé, a cerca de dois mil metros. Sem material.

 

- Companheiros de caminhada?

 

- Nunca. Nem sequer a mulher o acompanhava. Caillois era um solitário. No limite do autismo.

 

Niémans largou o que soubera:

 

- Regressei às imediações do rio. Descobri vestígios de pitões na rocha. julgo que o assassino utilizou uma técnica de escalada para içar o corpo.

 

As feições dejoisneau crisparam-se.

- Merda! Também subi e... -

 

- Os furos estão no interior da falha. O assassino fixou roldanas na cavidade e depois deixou-se descer, para fazer contrapeso à vítima.

 

- Merda!

 

O seu rosto estava dividido entre o despeito e a admiração. Niémans sorriu.

 

- O mérito não é meu: fui guiado pela minha testemunha. Fanny Ferreira. Uma autêntica profissional. - Piscou o olho.

- E uma boa febra... Quero que escarafunches mais nesta direcção. Faz a lista exaustiva dos alpinistas encartados e de todos os que têm acesso a este gênero de material.

 

- Isso vai dar-nos milhares de nomes!

 

- Pede aos teus colegas. Pede a Barnes. Nunca se sabe. Talvez possa sair uma verdade da investigação que se fizer. Também quero que te ocupes dos olhos.

 

- Dos olhos ?

 

- Não ouviste o legista? O assassino roubou estes órgãos com um cuidado particular. Estou longe de imaginar o que tal pode significar. Talvez se trate de fetichismo. Ou de uma vontade de purificação especial. Esses olhos talvez recordem ao assassino uma cena que a vítima terá visto. Ou o peso de um olhar que o assassino teria sempre vivido como uma obsessão. Não sei. Estamos a pisar um terreno pantanoso e não aprecio este gênero de paleio psicológico. Mas quero que revolvas a cidade e tomes nota de tudo o que possa relacionar-se com os olhos.

- Por exemplo?

 

- Por exemplo, indagar se já se verificaram, aqui na faculdade ou na cidade, acidentes relativos a essa parte do corpo. Rebusca também os autos dos últimos anos, na brigada, e as notícias locais nos jornais da região. Zaragatas em que alguém terá ficado ferido. Ou, pelo contrário, mutilações em animais. Sei lá: investiga. Vê também se não há problemas de cegueira ou afecções dos olhos nesta zona.

 

- Acha realmente que eu posso encontrar...

- Não penso nada - bufou Niémans. - Fá-lo!

 

Ao fundo da álea, o polícia fardado continuava a olhar de soslaio. Por fim, abandonou os livros e sumiu-se. Niémans prosseguiu em voz baixa:

 

- Também quero saber, tintim por tintim, tudo o que Caillois fez nas últimas semanas. Quem encontrou, com quem falou. Quero a lista das suas chamadas telefónicas, pessoais e na faculdade. Quero a lista das cartas que recebeu, tudo! O Caillois talvez conhecesse o seu assassino. Talvez tivesse mesmo encontro marcado lá no alto.

 

- E da mulher dele, não tirou nada?

 

Niémans não respondeu. joisneau acrescentou:

- Parece que tem pêlo na venta.

 

joisneau guardou o canhenho. Recobrara a cor das faces.

- Não sei se deva dizer-lhe... Com este corpo mutilado... e este assassino desaparafusado que anda por aí...

 

- O quê?

 

- Ora, com mil raios! Tenho a impressão de aprender coisas consigo.

 

Niémans folheava um livro da prateleira: Topografia e Relevo da Região do Isère. Atirou o volume para as mãos do tenente e concluiu:

 

- Pois bem, reza para que aprendamos assim tanto sobre o assassino.

 

O PERFIL da vítima especada.

 

Músculos torcidos sob a pele, como cordas. Chagas negras, violáceas, lacerando a carne lívida e azulada nalguns sítios.

 

De regresso à sala onde trabalhava, Niémans observava as fotografias polaróide do corpo de Rémy Caillois.

 

O rosto de frente. Pálpebras entreabertas sobre os buracos negros das órbitas.

 

Sem tirar o casacão, ele pensava nos sofrimentos do homem. Na violência do pavor que acabava de surgir naquela terra inocente. Sem o confessar a si mesmo, o polícia temia o pior. Outro homicídio, quem sabe... Ou um crime impune, varrido pelos dias, e o medo, que ajudariam toda a gente a esquecer. Muito mais do que a recordar.

 

As mãos da vítima. Fotografadas de cima, depois de baixo. Umas belas mãosfinas entreabertas nas suas extremidades anónimas. Nem sombra de uma impressão digital. Vestígios de cisalha nos punhos. Granulosos. Escuros. Minerais.

 

Niémans inclinou a cadeira para trás, encostando-se à parede. Cruzou as mãos atrás da nuca e reflectiu nas suas próprias sentenças: “Cada elemento de um inquérito é um espelho. E o assassino esconde-se num dos ângulos mortos”. Não conseguia enxotar do espírito esta certeza: Caillois não fora escolhido ao acaso. A morte dele estava ligada ao seu passado. A uma pessoa que ele conhecera. A um acto que cometera. Ou a um segredo que desvendara.

 

Mas o quê?

 

Desde a infância, Caillois passava a vida na biblioteca da universidade. E desaparecia todos os fins de semana nos ermos etéreos que sobranceavam o vale. O que pudera ele fazer ou descobrir para merecer o supliciamento?

 

Niémans decidiu-se por um breve inquérito sobre o passado da vítima. Por reflexo, ou obsessão pessoal, começou por um pormenor que lhe chamara a atenção durante o encontro com Sophie Caillois.

 

Após alguns telefonemas, ligou finalmente para o 14º Regimento de Infantaria, situado nos arredores de Lyon, onde todos os jovens convocados da região do Isère efectuavam então os seus três dias de exames nos centros de selecção. Depois de haver declinado a sua identidade e explicado a razão da chamada, puseram-no em comunicação com o serviço de arquivos e pediu então que extraíssem os dados informáticos do jovem Rémy Caillois, que fora dispensado nos anos 90.

 

Niémans ouviu o estalido furtivo das teclas da consola, os passos longínquos na sala, em seguida o rumorejo das folhas de papel. Pediu ao arquivista:

 

- Leia-me as conclusões do processo individual.

 

- Não sei se... Quem me prova que o senhor é de facto comissário.

 

Niémans suspirou.

 

- Telefone à brigada de gendarmaria de Guernon. Peça para falar com o capitão Barnes e...

 

- Pronto. Está bem. Eu leio-lhe. - Folheou as páginas. Omito os pormenores, as respostas aos testes e tudo isso. A conclusão é que o sujeito foi considerado inapto por “esquizofrenia aguda”. O psiquiatra acrescentou uma nota manuscrita na margem... Escreveu: “Injunções terapêuticas” e sublinhou estas palavras. Em seguida apontou: “Contactar o CHRU de Guernon”. Na minha opinião, o tipo tinha uma grande tara porque habitualmente o que...

 

- Sabe o nome do médico?

 

- Com certeza, é o major Yvens.

- Ainda trabalha nessa guarnição?

- Sim. Está lá em cima.

 

- Ligue-me para ele.

 

- Eu... Bom. É só um momento.

 

Uma música de fanfarra sintética irrompeu no auscultador, depois ecoou uma voz muito grave que se diria colocada numa clave de fá. Niémans apresentou-se e repetiu as explicações. O Dr. Yvens estava hesitante. Acabou por perguntar:

 

- Qual é o nome do convocado?

 

- Caillois Rémy. O senhor doutor considerou-o inapto, há cinco anos. Esquizofrenia aguda. Há alguma hipótese de se lembrar dele? No caso afirmativo, gostaria de saber se, em seu entender, simulava ou não a loucura.

 

A voz objectou:

 

- Esses documentos são confidenciais.

 

- Encontraram há pouco tempo o corpo dele encaixado num rochedo. Garganta aberta. Globos oculares roubados. Torturas múltiplas. O juiz de instrução Bernard Terpentes mandou-me vir de Paris a fim de investigar este homicídio. Pode contactá-lo pessoalmente, mas era bom avançar já. Recorda-se de...

 

- Recordo - atalhou Yvens. - Um doente. Um demente. Sem a mínima dúvida.

 

Embora não o confessando a si mesmo, era isto que Niémans esperava, mas apesar de tudo sentia-se surpreendido com a resposta. Insistiu:

 

- Ele não simulava?

 

- Não. Vejo simuladores durante todo o ano. Os sãos de espírito têm muito mais imaginação do que os verdadeiros dementes. Dizem o que quer que seja, inventam delírios incríveis.

 

Os doentes autênticos são facilmente reconhecíveis. Estão presos à sua loucura. Obsidiados, roídos por ela. Até a demência tem a sua lógica... racional. Rémy Caillois era um doente. Um caso de escola.

 

- Quais eram os sinais da sua loucura?

 

- Ambivalência de pensamentos. Perda de contacto com o mundo exterior. Mutísmo. Os sintomas clássicos de uma esquizofrenia.

 

- Doutor, esse homem era bibliotecário na universidade de Guernon. Tinha contactos diários com centenas de estudantes e...

 

O médico riu-se.

 

- A loucura é fugaz, comissário. Ela sabe muitas vezes esconder-se aos olhos dos outros, insinuar-se sob uma aparência anódina. Nada disto deve ser novidade para si.

 

- Mas disse-me há pouco que a demência dele lhe saltara aos olhos.

 

- Tenho experiência. E o Caillois talvez haja aprendido desde então a controlar-se.

 

- Por que anotou “injunções terapêuticas”?

- Aconselhei-o a tratar-se. Nada mais.

 

- Pelo seu lado, falou para o CHRU de Guernon?

 

- Francamente, já não me lembro. O caso era interessante, mas não creio ter prevenido o hospital. Sabe, se o paciente...

 

- “Interessante”, foi mesmo o que disse? O médico soltou um suspiro.

 

- Esse tipo vivia num mundo compartimentado, um mundo de um rigor extremo, onde a sua própria personalidade se multiplicava. Simulava sem dúvida uma certa maleabilidade aos olhos dos outros, mas estava literalmente obcecado com a ordem, a precisão. Cada um dos seus sentimentos se cristalizava numa figura concreta, numa personalidade à parte. Era um exército só por si. Era um caso... fascinante.

 

- Era perigoso?

 

- Sim, inegavelmente.

 

- E deixou-o ir-se embora? Houve uma pausa, depois:

 

- Sabe, os loucos em liberdade...

 

- Doutor - volveu por fim Niémans num tom mais baixo esse homem era casado.

 

- Pois bem... lamento a esposa.

 

O polícia desligou. Estas revelações abriam-lhe novos horizontes. E intensificavam a sua perturbação.

 

Niémans decidiu-se por uma nova visita.

 

- Você mentiu-me!

 

Sophie Caillois tentou fechar a porta, mas o comissário meteu o cotovelo contra o alizar.

 

- Por que não me disse que o seu marido era doente?

- Doente?

 

- Esquizofrénico. Segundo os especialistas, devia ter ido parar a um manicómio.

 

- Canalha!

 

De lábios cerrados, ajovem tentou uma vez mais fechar a porta, mas Niémans aguentou, sem dificuldade. Apesar do cabelo liso, da camisola de malha folgada, esta mulher parecia-lhe mais bela que nunca.

 

- Então não percebe? - berrou ele. - Procuramos um assassino. Procuramos um móbil. Talvez o Rémy Caillois tenha cometido um acto, um gesto que poderia explicar a barbaridade da sua morte. Um gesto de que ele já nem sequer se recordava... Por favor... só você pode ajudar-me!

 

Sophie Caillois abria uns olhos arregalados. Toda a beleza do seu rosto se entrelaçava em subtis redes que vibravam nervosamente Sobretudo as suas sobrancelhas, de desenho perfeito, tinham-se imobilizado num acento esplêndido, patético. É louco.

 

Devo conhecer o passado dele... É louco.

 

A mulher tremia. Mal-grado seu, Niémans baixou os olhos. Admirou o relevo das clavículas, que tendiam as malhas da camisola. Vislumbrou, através da lã, a alça retorcida, como que encarquilhada, do soutien. De súbito, obedecendo a um impulso, agarrou-lhe no punho e arregaçou-lhe a manga. Veios azulados estriavam o seu antebraço. Niémans rugiu:

 

- Ele batia-lhe.

 

O comissário desprendeu o olhar das marcas escuras e fixou as pupilas de Sophie Caillois.

 

- Ele batia-lhe! O seu marido era um doente. Gostava de magoar. Tenho a certeza. Ele perpetrou um acto culposo. Estou certo de que suspeita de alguma coisa. Não diz a décima parte do que sabe!

 

A mulher cuspiu-lhe na cara. Niémans recuou, cambaleando.

 

Ela aproveitou para bater com a porta. As linguetas aferrolharam-se numa catadupa de estalidos enquanto Niémans arremetia de novo contra a madeira. No corredor, os internos deitavam olhares inquietos pelas portas entreabertas. O polícia deu uma sapatada no alizar.

 

- Hei-de voltar! - berrou ele. Fez-se silêncio.

 

Niémans desferiu um último murro que provocou um eco surdo e ficou por instantes quieto.

 

A voz da mulher, entrecortada por soluços, ressoava atrás da porta como no mais sombrio dos jazigos. “É louco”.

 

Quero UM chui à paisana na peugada dela. Chamem outros OPJ, de Grenoble.

 

- Sophie Caillois? Mas... porquê?

 

Niémans fitou Barnes. Estavam os dois na sala principal da gendarmaria de Guernon. O capitão vestia a camisola regulamentar: azul-marinho, atravessada por uma listra branca lateral. Assemelhava-se a um marujo.

 

- Esta mulher esconde-nos qualquer coisa - explicou Niémans.

 

- Por acaso não pensa que ela é que...

- Não. Mas não nos diz aquilo que sabe.

 

Barnes aquiesceu, sem convicção; depois pespegou nos braços de Niémans uma grande pasta de papelão cheia de faxes, de documentação rumorejante de papel químico.

 

- Os primeiros resultados do inquérito geral - declarou ele. - Por ora, não podemos deitar foguetes.

 

Indiferente à balbúrdia do local, onde os gendarmes se acotovelavam uns aos outros, Niémans manuseou logo a papelada, enquanto caminhava lentamente para um gabinete isolado. Passou em revista os maços de originais e cópias que resumiam as investigações levadas a cabo por Barnes e Vermont. Apesar da quantidade de relatórios e de testemunhos, não havia ali o bastante para alimentar o mínimo apontamento construtivo. Os dispositivos, as audições, as buscas, os inquéritos de terreno... nada disto dera algo que se visse. Niémans resmungou ao penetrar no gabinete de paredes envidraçadas. Numa cidade tão pequena, um crime tão espectacular: o comissário não podia admitir que não se tivesse ainda recolhido qualquer indício, qualquer pista.

 

Puxou de uma cadeira, sentou-se diante de uma secretária de metal e leu desta vez com atenção.

 

A hipótese dos ratoneiros revelara-se nula. Os pedidos de informação às prisões, às prefeituras, aos tribunais, tinham desembocado noutros tantos impasses. Quanto aos roubos de automóveis cometidos nas últimas quarenta e oito horas, também nenhum deles podia ser ligado ao homicídio. As pesquisas sobre os crimes e as notícias locais dos últimos vinte anos não se haviam mostrado mais fecundas. Ninguém se lembrava, de um crime tão atroz, tão estranho, ou do mínimo acto que se lhe pudesse comparar. Na própria cidade, a lista dos autos redigidos em vinte anos resumia-se a alguns salvamentos na montanha, a roubos ínfimos, acidentes, incêndios...

 

Folheou a série seguinte. Os interrogatórios sistemáticos nos hotéis, através de fax, não tinham proporcionado o mais pequeno elemento útil.

 

Passou aos documentos de Vermont. Os seus homens continuavam a palmilhar os terrenos em volta do rio. Até ao momento, só tinham visitado cinco refúgios e o mapa da região assinalava dezassete, alguns dos quais encarrapitados na montanha, a mais de três mil metros de altitude. Um homicídio efectuado em tais cocurutos porventura faria sentido? Os homens também haviam interrogado os camponeses das redondezas. Algumas audiçõesjá estavam batidas à máquina na gíria habitual dos gendarmes. Niémans folheou-as e sorriu: se os erros de ortografia e os boleios de frase eram equiparáveis aos dos polícias, já outros termos cheiravam a linguagem militar. Vários homens tinham visitado as estações de serviço, as gares, as paragens de autocarro. Nada a assinalar. Mas começava-se a bichanar nas ruas, nos chalés. Porquê todas aquelas perguntas? Porquê tantos gendarmes?

 

Pousou a pasta em cima da secretária. Avistou, pelo vidro, uma patrulha que acabava de regressar, com as faces vermelhas, os olhos a brilhar de frio. Interrogou com a cabeça o capitão Vermont, que lhe respondeu esboçando um gesto sem ambiguidade: nada.

 

Ainda fixou durante alguns segundos as fardas, mas os seus pensamentos já derivavam para outro lado. Devaneava sobre as duas mulheres. Uma era forte e trigueira como a casca das árvores. Devia ter músculos amplos, a pele mate, aveludada. Um gosto a resina e ervas pisadas. A outra era franzina e acre. Respirava um mal-estar, uma agressividade mesclada de pavor, que não fascinava menos Niémans. O que escondia aquele rosto ossudo, de uma beleza tão perturbante? O marido batia-lhe realmente? Qual era o seu segredo? E qual podia ser a medida da sua mágoa ante um marido enucleado, cujo corpo descrevia tantos sofrimentos?

 

Levantou-se e virou-se para uma das janelas. Por detrás das nuvens, acima das montanhas, o sol lançava linhas de claridade que pareciam longos ferimentos escavados na carne negra e entumescida da trovoada. Por baixo, enxergava as casas cinzentas e idênticas de Guernon. Os telhados poligonais que impediam a neve de se aglutinar. Asjanelas obscuras, pequenas e quadradas como retábulos submersos na penumbra. O rio que atravessava a cidade e seguia ao longo da brigada.

 

A imagem das duas mulheres impôs-se outra vez. A cada inquérito, atazanava-o a mesma sensação. O calor da investigação despertava os seus sentidos, intimava-lhe uma espécie de caçada amorosa, ardente, febril. Só se apaixonava nesta urgência criminal: testemunhas, suspeitas, putas, empregadas de café...

 

A morena ou a loura?

 

O seu telemóvel tocou. Era Antoine Rheims.

- Venho agora do hospital de Hôtel Dicu.

 

Niémans deixara correr a manhã sem ligar sequer para Paris. O caso do Parque dos Príncipes iria em breve voltar ao seu encontro como um bumerangue explosivo. O director continuava:

 

- Os médicos tentam um quinto enxerto para lhe salvar o rosto. O tipo jánão tem praticamente pele nas coxas, tantas as colheitas que já lhe fizeram. Mas não é tudo. Três traumatismos cranianos. Um olho perdido. Sete fracturas no rosto. Sete, Niémans. O maxilar inferior está profundamente enterrado nos tecidos da laringe. Esquírolas de osso rasgaram-lhe as cordas vocais. O homem está em coma, mas, aconteça o que acontecer, nunca mais falará. No entender dos cirurgiões, nem mesmo um acidente de Viação causaria tantas lesões. Tens alguma ideia sobre o que devo dizer-lhes? Bem como à embaixada do Reino Unido? Ou aos órgãos de comunicação social? Conhecemo-nos há muito tempo, tu e eu. E julgo que somos amigos. Mas acho que és uma besta tresloucada.

 

As mãos de Niémans tremiam por acessos convulsos.

- Esse tipo é um assassino - retorquiu.

 

- Bolas! julgas ser diferente dele?

 

Não respondeu. Passou o auscultador, reluzente de suor, para a mão esquerda. Rheims insistiu:

 

- O teu inquérito tem avançado?

 

- Devagar. Não há indícios. Nem testemunhas. Mostra-se muito mais complicado do que o previsto.

 

- Eu bem te disse! Quando osjornalistas souberem que estás em Guernon, vão cair-te em cima, como sarna num cão pelado. Que raio de ideia a minha ao enviar-te para aí!

 

Rheims desligou brutalmente. Niémans ficou vários minutos de olhos parados, com a boca seca. Em flashes ofuscantes, reviu as violências da noite anterior. Os seus nervos tinham cedido. Espancara o assassino num excesso de raiva que o inundara e aniquilara qualquer outra vontade senão a de destruir o que agarrava nas mãos nesse instante.

 

Pierre Niémans vivera sempre num mundo de violência, num universo de depravação com fronteiras cruéis e selvagens, e não temia a iminência do perigo. Pelo contrário, sempre o procurara e afagara, a fim de melhor o enfrentar, de melhor o dominar. Mas agora já não era capaz de assegurar este domínio. A violência acabara por avassalá-lo e investi-lo em profundidade. Ele já não era mais do que fraqueza, crepúsculo. E não vencera os seus próprios medos. Os cães continuavam a uivar, algures, num recanto da sua cabeça.

 

De repente, sobressaltou-se: o telemóvel tocava novamente. Era Marc Costes, o médico legista, numa voz triunfal.

 

- Tenho novidades, comissário. Dispomos de um indício. Sólido. É a propósito da água sobre as pálpebras. Recebi agora mesmo os resultados das análises.

 

- E então?

 

- Não se trata de água do rio. É incrível, mas é assim mesmo. Estou a trabalhar no assunto com um químico da polícia científica de Grenoble, Patrick Astier. Um verdadeiro craque. De acordo com o que ele diz, os vestígios de poluição na água das órbitas não são iguais aos da torrente. De modo nenhum.

 

- Seja mais preciso.

 

- O líquido das cavidades oculares contém F12SO4 e FINO3, quer dizer, ácido sulfúrico e ácido nítrico. O seu pH é 3, ou seja, uma acidez muito elevada. Quase vinagre. Uma cifra destas constitui uma informação preciosa.

 

- Não percebo nada. O que significa isso, afinal?

 

- Não quero falar-lhe em termos técnicos, mas o ácido sulfúrico e o ácido nítrico são derivados do So2, dióxido de enxofre, e do No2, dióxido de azoto. Segundo Astier, só um tipo de indústria produz semelhante mistura de dióxidos: as centrais térmicas onde se queima lenhite. Centrais de um tipo muito antigo. A conclusão de Astier é que a vítima foi morta junto de um lugar deste género ou transportada para lá. Se localizarmos uma central de lenhite na região, teremos encontrado o lugar do crime.

 

Niémans fixava o céu, cujas escamas escuras refulgiam sob o sol persistente, qual imenso salmão de prata. Talvez possuísse finalmente um elemento. Ordenou:

 

- Mande-me por fax a composição dessa água, no telecopiador de Barnes.

 

O comissário abria a porta do gabinete quando Éric Joisneau apareceu.

 

- Ando à procura de si por todo lado. Talvez tenha uma informação importante.

 

Dar-se-ia o caso de o inquérito adquirir ritmo? Os dois polícias recuaram; Niémans voltou a fechar a porta. Joisneau compulsava nervosamente o seu canhenho.

 

- Descobri que existe, perto dos Sept Laux, um instituto para jovens cegos. Parece que muitos dos seus pensionistas vêm de Guernon. Estes miúdos sofrem de problemas diversos. Cataratas. Retinite pigmentar. Cegueira das cores. O número de tais afecções em Guernon está muito acima da média.

 

- Continua. Qual é a origem desses problemas? Joisneau uniu as mãos em forma de bacia.

 

- O vale. O isolamento do vale. São doenças genéticas, explicou-me um médico. Transmitem-se de geração em geração por causa de uma certa consanguinidade. Parece que é frequente nos sítios isolados. Um género de contaminação, mas por via genética.

 

O tenente arrancou uma página do seu bloco.

 

- Tome, é a morada do instituto. O director, o Dr. Champelaz, estudou este fenômeno com precisão. Pensei que... Niémans espetou o indicador na direcção de joisneau.

 

- Tu é que vais lá.

 

O rosto dojovem polícia resplandeceu.

- Confia em mim?

 

- Confio, sim. Pisga-te.

 

joisneau virou costas, mas reconsiderou, franzindo o sobrolho.

 

-   Comissário... Desculpe, mas... por que não vai interrogar pessoalmente o director? Talvez seja uma pista interessante. Encontrou coisa melhor pelo seu lado? Acha que as minhas perguntas serão melhores por ter nascido na região? Não estou a topar.

 

Niémans encostou-se à ombreira.

 

- É verdade, tenho outra pista. Mas ministro-te uma pequena lição anexa, joisneau. Há, por vezes, motivações exteriores ao inquérito.

 

- Que motivações?

 

- Motivações pessoais. Não irei a esse instituto porque sofro de uma fobia.

 

- De quê? Dos cegos?

- Não. Dos cães.

 

As feições do tenente exprimiam incredulidade.

- Não compreendo.

 

- Pensa bem. Quem diz cegos, diz cachorros. - Niémans mimou a silhueta alcachinada de um cego, guiado por um canídeo imaginário. - Cães para invisuais, entendes? Sendo assim, por nada deste mundo ponho lá os pés.

 

O comissário afastou-se, deixando o tenente abismado. Bateu à porta do gabinete do capitão Barnes e abriu-a sem esperar. O colosso erguia pilhas distintas de faxes: respostas de hotéis, de restaurantes, de garagens, que continuavam a chegar. Fazia lembrar um merceeiro a repartir os seus lotes.

 

- Comissário? - Barnes arqueou uma sobrancelha. Tome. Acabo de receber...

 

- Eu sei.

 

Niémans pegou na telecópia de Costes e percorreu-a brevemente. Era uma lista de algarismos e de nomes complexos, a composição química da água das órbitas.

 

- Capitão - perguntou o polícia -, conhece uma central na região? Uma central que funcione a lenhite?

 

Barnes fez um trejeito de incerteza.

 

- Não, isso não me diz nada. Talvez mais a oeste       ... As zonas industriais multiplicam-se na direcção de Grenoble     ...

- Onde poderei informar-me?

 

- Há a Federação das Actividades Industriais do lsère volveu Barnes -, mas... espere aí. Tenho muito melhor. Essa central deve poluir ao máximo, não?

 

Niémans sorriu e exibiu o fax constelado de algarismos.

- Acidez em potência.

 

Barnes escreveu qualquer coisa.

 

- Vá procurar este sujeito. Alain Derteaux. Um horticultor que possui estufas tropicais à saída de Guernon. É o nosso especialista em poluições. Um militante ecologista. Não existe um gás ou uma emanação na região cuja proveniência, composição e consequências para o meio ambiente ele não conheça.

 

Niémans ia a sair quando o gendarme o chamou. Levantou as duas mãos, de palmas estendidas para o comissário. Uns gadanhos enormes, de avantesma.

 

- É verdade, informei-me acerca do problema das impressões digitais. Sabe, as mãos de Caillois. Foi um acidente, sobrevindo quando ainda era criança. Estava a ajudar o pai a reparar o pequeno veleiro familiar, no lago de Annecy. Queimou as duas mãos com um garrafão de detergente muito corrosivo. Contactei a capitania e eles recordavam-se do acidente. Serviço de assistência médica urgente, hospital e tudo o resto... Podemos verificar, mas, na minha opinião, nada mais há a averiguar sobre o assunto.

 

Niémans deu meia volta e rodou a maçaneta.

 

- Obrigado, capitão. - Apontou para os faxes. - Coragem!

 

- Isso desejo-lhe eu a si - replicou Barnes. - O ecologista, o tal Derteaux, é um grande chato.

 

- Ttoda a nossa região está moribunda, envenenada, condenada! As zonas industriais espalharam-se por toda a parte, nos vales, nas encostas das montanhas, nas florestas, contaminando os lençóis freáticos, infectando as terras, intoxicando o ar que respiramos... O Isère: gás e veneno a todas as altitudes!

 

Alain Derteaux era um homem seco, de rosto estreito e sulcado. Usava uma barba à passa-piolho, óculos com aros metálicos que lhe davam o ar de um mórmon transfugido. Metido numa das suas estufas, manipulava uns frascos de boca larga que continham algodão e terra móvel. Niémans interrompeu o discurso do homem, que se iniciara logo após as apresentações.

 

- Desculpe. Preciso de uma informação... urgente.

 

- O quê? Ah, sim, com certeza... -Adoptou um tom condescendente. - É da polícia...

 

- Conhece aqui na região uma central térmica que consuma lenhite?

 

- Lenhite? Um carvão natural... Um veneno em estado puro...

 

- Conhece um estabelecimento industrial deste gênero? Derteaux fez que não com a cabeça, enquanto introduzia uns ramos minúsculos num dos frascos.

 

- Não. Não há lenhite na região, graças a Deus. Desde os anos 70, essas indústrias estão em nítido recuo, em França e nos países limítrofes. Demasiado poluentes. Emanações ácidas que sobem directamente no céu, transformando cada nuvem nuna bomba química...

 

Niémans vasculhou no bolso e estendeu o fax de Marc Costes.

 

- Importa-se de deitar uma olhadela a estes constituintes químicos? É a análise de uma amostra de água descoberta muito perto daqui.

 

Derteaux leu com atenção a folha de papel enquanto o polícia olhava distraidamente para o lugar onde se encontravam: uma vasta estufa, cujas superfícies envidraçadas estavam embaciadas, estaladas e manchadas por compridos rastros negruchos. Folhas largas como janelas, rebentos balbuciantes e minúsculos como enigmas, lianas langorosas, torcidas e enlaçadas, tudo isto se assemelhava a uma luta para ganhar a mais pequena parcela de terreno. Derteaux, ergueu a cabeça, perplexo.

 

- E diz que esta amostra provém da região?

- Absolutamente.

 

Derteaux reajustou os óculos.

 

- Posso perguntar-lhe onde? Quero eu dizer: exactamente onde.

 

- Encontrámo-la num cadáver. Um homem assassinado.

- Oh!, já se vê... Deveria ter adivinhado... pois se é da polícia. - Tornou a reflectir, cada vez mais dubitativo. - Um cadáver, aqui, em Guernon?

 

O comissário ignorou a pergunta.

 

- Confirma que esta composição se refere a uma poluição ligada à combustão da lenhite?

 

- Pelo menos, uma poluição fortemente ácida, sim. Frequentei seminários sobre o assunto. - Voltou a ler a fórmula,

- As taxas de H2So4 e de l-LNO3 São... excepcionais. Mas repito-lhe: já não existem centrais deste tipo na região. Nem aqui, nem em França, nem na Europa Ocidental.

 

- Esta contaminação poderia vir de outra actividade industrial?

 

- Não, não creio.

 

- Onde se poderia então encontrar uma actividade industrial que gerasse uma poluição assim?

 

- A mais de oitocentos quilómetros daqui, nos países do Leste.

 

Niémans cerrou os maxilares: não podia admitir que a sua primeira pista abortasse tão rapidamente.

 

- Talvez haja outra solução... - murmurou Derteaux.

- Qual?

 

- Esta água talvez provenha efectivamente de outro lado. Teria viajado até aqui desde a República Checa, a Eslováquia, a Roménia, a Bulgária... - Sussurrou, em tom de confidência:

- Autênticos bárbaros, em matéria de ambiente.

 

- Quer dizer, em contentores? Um camião de passagem que...

 

Derteaux deu uma gargalhada, sem o mínimo lampejo de alegria.

 

- Estou a pensar num transporte muito mais simples. Esta água pode ter chegado até nós pelas nuvens.

 

- Por favor - pediu Niémans -, explique-se melhor. Alain Derteaux abriu os braços e levantou-os lentamente na direcção do tecto.

 

- Imagine uma central térmica, situada algures na Europa do Leste. Imagine umas grandes chaminés que expelem dióxido de enxofre e dióxido de azoto durante todo o santo dia... Tais chaminés elevam-se por vezes até trezentos metros de altura. Os espessos borbotões de fumo sobem, sobem, depois fundem-se nas nuvens... Se não há vento, os venenos permanecem no território. Mas se o vento sopra, por exemplo, na direcção do Oeste, então os dióxidos viajam, levados pelas nuvens que vêm em breve despedaçar-se nas nossas montanhas e se transformam em chuvas diluvianas. É aquilo a que se chama as chuvas ácidas que destroem as nossas florestas. Como se já não produzíssemos suficientes venenos, as nossas árvores também definham por causa dos venenos dos outros! Mas garanto-lhe que nós próprios despejamos uma data de produtos tóxicos através das nossas nuvens...

 

Uma cena, nítida e precisa, veio gravar-se no espírito de Niémans, como a escalpelo. O assassino sacrificava a sua vítima a céu aberto, algures nas montanhas. Torturava, matava, mutilava, enquanto uma bátega caía sobre o campo da carnificina. As órbitas vazias, franqueadas ao céu, enchiam-se então de chuva. Desta chuva envenenada. O assassino fechava as pálpebras, selando a sua operação macabra sobre aqueles pequenos reservatórios de água ácida. Era a única explicação...

 

Chovera enquanto o monstro perpetrava o seu homicídio.

- Como é que estava o tempo aqui no sábado? - perguntou Niémans subitamente.

 

- Há?

 

- É capaz de me dizer se choveu na região, sábado à tardinha ou à noite?

 

- Não me parece. Estava um tempo radioso. Um autêntico sol de mês de Agosto e...

 

Uma probabilidade em mil. Se o céu tivesse permanecido seco durante o suposto período do crime, talvez Niémans pudesse descobrir uma zona - uma única - onde irrompera uma bátega. Uma chuva ácida que delimitaria precisamente a zona do homicídio, com tanta exactidão como um círculo de giz. O polícia imbuía-se desta verdade singular: para encontrar o lugar do crime, bastava reconstituir o curso das nuvens.

 

- Onde fica a estação meteorológica mais próxima? perguntou numa voz precipitada.

 

Derteaux reflectiu e depois respondeu:

 

- A trinta quilómetros daqui, perto do colo da Mina de Ferro. Quer verificar se choveu? Uma ideia interessante. Eu próprio gostaria de saber se aqueles bárbaros continuam a enviar-nos as suas bombas tóxicas. É uma verdadeira guerra química que se desenrola, senhor comissário, no meio da indiferença geral!

 

Derteaux calou-se. Niémans estendia-lhe um papel.

 

- É o número do meu telemóvel. Se lhe ocorrer uma ideia, seja ela qual for a este respeito, telefone-me.

 

Niémans rodopiou e atravessou a estufa, sentindo o rosto fustigado por folhas de ébano.

 

O comissário rodava a toda a velocidade. Apesar do céu toldado, o bom tempo parecia prestes a emergir.

Uma luz de mercúrio não cessava de vomitar através das nuvens. Entre o negro e o verde, as frondescências dos abetos rematavam em extremidades fugazes, brilhantes, sacudidas por um vento pertinaz. Ao sabor das curvas, Niémans fruía da alacridade secreta e profunda da floresta, que se diria propulsada, arrebatada, iluminada pelo vento soalheiro.

 

Pensou em nuvens que veiculavam um veneno, encontrado no fundo de umas órbitas órfãs. Quando partira de Paris, na noite passada, não imaginava um inquérito assim.

 

Quarenta minutos depois, chegava ao colo da Mina de Ferro. Não lhe custou descobrir a estação meteorológica, cuja cúpula pontificava numa vertente. Seguiu pela vereda conducente ao estabelecimento científico, avistando a pouco e pouco um espectáculo surpreendente. A cem metros do laboratório, alguns homens esforçavam-se por insuflar um colossal balão de matéria plástica transparente. Estacionou, galgou o declive e aproximou-se dos homens vestidos com parka, de rostos vermelhuscos, estendendo-lhes o seu cartão oficial. Os meteorologistas olharam-no sem perceber. As longas abas amarrotadas do balão assemelhavam-se a um rio de prata. Por baixo, um jacto de lume azulado inchava lentamente o invólucro. Toda a cena se revestia de um cunho de encantamento, de sortilégio.

 

- Comissário Niémans - berrou o polícia para cobrir o estridor da chama. Indicou a cúpula de cimento. - Preciso que um de vós me acompanhe à estação.

 

Ergueu-se um homem, sem sombra de dúvida o responsável.

 

- O que é?

 

- Preciso de saber onde choveu no sábado passado, Por causa de uma investigação criminal.

 

O meteorologista estava de pé, com cara de poucos amigos. O capuz de resguardo açoitava-lhe o rosto. Apontou para a imensa campânula que inchava gradualmente. Niémans inclinou-se, esboçando um gesto de desculpa.

 

- O balão pode esperar.

 

O cientista tomou a direcção do laboratório, resmoneando:

- Não choveu no sábado.

 

-já vamos ver isso.

 

O homem tinha razão. Quando consultaram, num dos gabinetes, o posto central meteorológico, não encontraram a sombra de uma turbulência, de uma precipitação ou de uma trovoada por cima de Guernon durante aquelas horas de Outubro. As cartas-satélite, que se desenhavam no ecrã, eram explícitas: nem de dia nem na noite de sábado para domingo caíra uma gota de água na região. Apareciam outros elementos no canto do ecrã: a taxa de humidade do ar, a pressão atmosférica, a temperatura... O cientista dignou-se dar algumas explicações a contragosto: um anticiclone impusera uma certa estabilidade aos movimentos do céu durante perto de quarenta e oito horas.

 

No entanto, Niémans pediu ao engenheiro que alargasse a pesquisa ao domingo de manhã, depois ao domingo à tarde. Nenhuma trovoada, nenhum aguaceiro. Mandou estender a observação a um raio de cem quilómetros. Nada. Duzentos quilómetros. Ainda nada. O comissário bateu com a mão na secretária.

 

- Não é possível - ruminou. - Choveu nalgum lado, tenho a prova disso. No fundo de um vale. No cimo de uma colina. Algures, aqui nas redondezas, houve uma trovoada.

 

O meteorologista encolheu os ombros, manejando o seu rato, enquanto sombras irisadas, traçados ondulados e espirais esbatidas viajavam no ecrã, por cima de um mapa das montanhas, remontando assim à génese de um dia puro e sem nuvens, no coração do Isère.

 

- Deve haver uma explicação - murmurou Niémans. Diacho! Eu...

 

O seu telemóvel tocou.

 

- Senhor comissário? Daqui fala Alain Derteaux. Reflecti na sua história da lenhite. Efectuei eu próprio um pequeno inquérito. Peço muita desculpa, mas enganei-me.

 

- Enganou-se?

 

- Sim. É impossível que uma chuva de tamanha acidez tenha caído na região durante o fim de semana. Até mesmo em qualquer outro momento.

 

- Porquê?

 

- Informei-me sobre as indústrias da lenhite. Hoje em dia, mesmo nos países de Leste, as chaminés onde se queima este combustível estão guarnecidas de filtros específicos. Ou então os minérios são dessulfurados. Em suma, essa poluição baixou muito desde os anos 60. Chuvas assim tão poluentes já não caem em parte alguma desde há trinta e cinco anos. Felizmente! Induzi-o em erro, queira desculpar-me.

 

Niémans guardava silêncio. O ecologista prosseguiu, num tom incrédulo:

 

- Tem a certeza de que o cadáver encerra esses vestígios de água?

 

- Absoluta - retorquiu Niémans.

 

- Então, é incrível, mas a vítima provém do passado. Apanhou uma chuva que caiu há mais de trinta anos e...

 

O polícia desligou balbuciando um vago “adeus”.

 

De ombros vergados, regressou ao automóvel. Durante um breve lapso de tempo, julgara possuir uma pista. Mas ela diluíra-se entre os seus dedos, como essa água carregada de acidez que descambava num absurdo total.

 

Levantou uma última vez os olhos ao encontro do horizonte.

 

O sol dardejava agora os seus raios transversalmente, aureolando os arabescos mimosos das nuvens. O brilho da luz ricocheteava nos cumes do Grande Pico de Belledorme, refractando-se nas neves eternas. Como pudera ele, um polícia de ofício, um homem racional, acreditar um só instante em que um punhado de nuvens lhe indicariam a direcção do local do crime?

 

Como pudera ele...

 

De repente abriu os braços para a paisagem flamejante, imitando o gesto de Fanny Ferreira, ajovem alpinista. Acabava de compreender onde Rémy Caillois fora morto. Acabava de inferir onde podia encontrar água datada de há mais de trinta e cinco anos.

 

Não era na terra. Não era no céu. Era nos gelos.

 

Rémy Caillois fora morto muito acima de dois mil metros de altura. Fora executado nos glaciares, a três mil metros de altitude. No sítio onde as chuvas de cada ano se cristalizam e permanecem na eternidade transparente do gelo.

 

Era esse o local do crime. E isto era algo de concreto.

 

Dez horas. Karim Abduf penetrou no gabinete de Henri Crozier e pousou o seu relatório em frente dele. O homem, concentrado numa carta que estava a escrever, não deitou sequer um olhar às folhas e inquiriu:

- Então?

 

- Os skins não deram o golpe, mas viram duas silhuetas a sair do jazigo. A noite passada.

 

- Fizeram-te a descrição delas?

- Não. Estava demasiado escuro. Crozier dignou-se erguer os olhos.

- Talvez mintam.

 

- Não mentem. E não foram eles que profanaram o túmulo.

 

Karim calou-se. O silêncio estirou-se entre os dois homens. O tenente continuou:

 

- O senhor tinha uma testemunha, comissário. - Espetou o indicador na direcção do homem sentado. - Tinha uma testemunha e não me disse nada. “Alguém” o avisou de que os skins andaram a vaguear perto do cemitério, a noite passada, e concluiu daí que eram eles os culpados. Mas a realidade é mais complexa. E se me tivesse deixado interrogar a sua testemunha, eu...

 

Crozier levantou a mão devagar, em sinal de apaziguamento.

 

- Calma, moço. As pessoas daqui confiam-se aos veteranos. Aos da sua cidade. Nunca te diriam a décima parte do que vieram desabafar comigo, espontaneamente. Foi só isso que te revelaram os rapados?

 

Karim contemplou os cartazes à glória dos “agentes da paz”.

 

Sobre um dos móveis de ferro brilhavam as taças que Crozier ganhara em diferentes concursos de tiro. Declarou então:

 

- Os skins também viram um chaço branco partir daquele sítio por volta das duas horas da madrugada. Rodava na D143.

- Que género de carro?

 

- Um Lada. Ou uma outra marca do Leste. Convém pôr alguém a trabalhar no assunto. Os chaços deste tipo não devem ser às dúzias aqui na região e...

 

- Por que não pôr-te a ti?

 

- Comissário, sabe o que eu quero. Interroguei os skins. Agora, pretendo rebuscar ojazigo em profundidade.

 

- O guarda disse-me que já entraste lá dentro. Karim ignorou o reparo.

 

- Em que ponto está o inquérito no cemitério?

 

- Zero absoluto. Nenhuma impressão digital. Nem o mais pequeno indício. Vamos estender a cata às redondezas. Se porventura se trata de vândalos, a verdade é que tomaram imensas precauções.

 

- Não são vândalos. São profissionais. Em todo o caso, gajos que sabiam o que procuravam. Aquele jazigo abriga um segredo que eles vieram desvendar. Preveniu a família? O que dizem os pais? Concordariam que nós...

 

Karim emudeceu. A fronha de Crozier exprimia um mal-estar. O tenente chimpou as mãos na secretária e esperou a resposta do comissário. O homem murmurou:

 

- Não encontrámos a família. Não há ninguém com esse nome na cidade. Nem nos municípios da região.

 

- O funeral data de 1982, há forçosamente documentos, papelada.

 

- Por ora, não temos nada.

- A certidão de óbito?

 

- Nem certidão de óbito. Pelo menos em Sarzac.

 

O rosto de Karim afogueou-se. Rodopiou sobre si mesmo e esboçou uns passos.

 

- Há um problema com esta sepultura, com este garoto. Tenho a certeza. E o problema está ligado ao arrombamento da escola primária.

 

- Karim, tens demasiada imaginação. Existem milhentas maneiras de explicar este mistério. O pequenojude talvez tenha morrido num acidente de viação. Talvez o tenham hospitalizado numa cidade vizinha e enterrado aqui porque era a solução mais prática. Talvez a mãe ainda viva aqui, mas não use o mesmo nome. Talvez...

 

- Falei com o guarda do cemitério. Ojazigo está perfeitamente conservado, mas ele nunca deu por alguém vir visitá-lo. Crozier não respondeu. Abriu uma gaveta de ferro e tirou

 

de lá uma garrafa com uma bebida de revérberos castanho-avermelhados. De um só gesto, deitou um escasso dedo num cálice.

 

- Se não encontrarmos essa família - insistiu Karim será possível obter autorização para penetrar no jazigo?

- Não.

 

- Então deixe-me procurar os pais.

 

- E o carro branco? O levantamento dos indícios em volta do cemitério?

 

- Vão chegar reforços. Os tipos do SRPJ farão isso muito bem. Dê-me algumas horas, comissário. Para levar a cabo esta parte do inquérito. A solo.

 

Crozier ergueu o cálice diante de Karim.

- Posso oferecer-te um?

 

Karim recusou abanando a cabeça. Crozier esvaziou o cálice de um só trago e fez estalar a língua.

 

- Tens até às dezoito horas, incluindo o relatório redigido.

 

O argelino abalou num roçagar de cabedal.

 

Karim telefonou de novo à directora do estabelecimento jean-jaurès, a fim de saber se tinha coligido algumas informações sobre Jude Itero na academia de tutela. A mulher efectuara a pesquisa, mas não conseguira nada: nem uma ficha, nem uma menção. Nem a sombra de uma presença nos arquivos de toda a região. - Talvez labore em erro arriscou ela. - Talvez a criança que procura não tenha vivido na nossa região.

 

Karim desligou e consultou o relógio. Treze e trinta. Calculou que em duas horas seria capaz de visitar os arquivos das outras escolas e verificar a composição das classes que correspondiam à idade do garoto.

 

Em menos de uma hora, concluíra o giro pelos grupos escolares e não vislumbrara o rastro de jude Itero. Voltou uma vez mais à escola jean-jaurès. Ao folhear todos aqueles arquivos, ocorrera-lhe uma ideia. A mulher de olhos rasgados acolheu-o febrilmente.

 

- Fiz mais um trabalhinho para si, tenente.

- Diga lá.

 

- Procurei os nomes e moradas dos professores que exerciam aqui na época que lhe interessa.

 

- E então?

 

- Estamos com azar. A antiga directora aposentou-se.

 

- O pequeno jude tinha nove anos em 1981 e dez em

  1. É possível desencantar as professoras dessas classes?

 

A mulher mergulhou nos seus apontamentos.

 

- Com certeza. Ainda por cima, quis o acaso que o CM1 de

81 e o CM2 de 82 fossem supervisionados pela mesma professora. É bastante frequente uma professora leccionar a mesma classe de um ano para o outro...

 

- Onde está ela agora?

 

- Não sei. Deixou o estabelecimento no fim do ano escolar de 81-82.

 

Karim resmungou. A directora tomou uma expressão grave.

- Também tenho pensado no caso. Há uma coisa que nós não vimos.

 

- O quê?

 

- As fotografias escolares. Sabe, guardamos um exemplar de cada retrato. Para todas as classes.

 

O tenente mordeu os lábios: como não lhe viera tal ideia?

A directora continuava:

 

- Fui consultar os nossos arquivos fotográficos. As fotos do CM1 e do CM2 que lhe interessam foram igualmente roubadas. É inacreditável...

 

A revelação diluía-se na consciência do polícia, como uma toalha de luz. Pensava na moldura oval, pregada na estela do jazigo. Compreendeu que tinham “apagado” o rapazinho, retirando o seu nome e roubando o seu rosto. A mulher interveio:

- Por que sorri?

 

Karim replicou:

 

- Desculpe. Estava à espera disso mesmo. Ando a investigar outro caso, compreende? - Fez uma pausa e concentrou-se. - Também me lembrei de uma coisa. Costumam guardar os livros de ponto dos anos anteriores?

 

- Os livros de ponto?

 

- No meu tempo, cada classe possuía uma espécie de registo diário onde se assentavam simultaneamente os ausentes e os trabalhos de casa para o dia seguinte...

 

- Ainda se procede assim.

- Guardam-nos?

 

- Sim. Mas esses livros não contêm as listas dos alunos.

- Eu sei, só o nome dos ausentes.

 

O rosto da mulher iluminou-se. Os seus olhos brilhavam como espelhos.

 

- Espera que o pequeno Jude tenha faltado um dia?

 

- Espero sobretudo que não tenha ocorrido a mesma ideia aos intrusos.

 

A directora abriu novamente o armário envidraçado que abrigava os arquivos. Karim passou o dedo pelas lombadas de

um verde escuro e separou os livros correspondentes aos anos cruciais. Foi uma decepção: nem uma só vez o nome de Jude Itero apareceu.

 

Afinal, enganara-se: apesar da sua convicção profunda, nada indicava que o rapazinho frequentara aquela escola. No entanto, Karim folheou e tornou a folhear as páginas, em busca de um pormenor que, ainda assim, lhe confirmasse estar no bom caminho.

 

O sinal saltou-lhe à vista através da caligrafia redonda e infantil que numerara as páginas do livro, em cima, à direita. Faltavam páginas. Abriu bem o livro e descobriu, junto aos fios de encadernação, as felpas de papel significativas. De 8 a 15 de junho de 1982, no álbum do CM2, tinham arrancado as páginas. Estas datas assemelhavam-se a tenazes apertando um pedaço de nada. Pareceu a Karim que “via” o nome do petiz, escrito com a mesma caligrafia redonda, através das páginas que faltavam...

 

O tenente sussurrou à mulher:

- Traga-me uma lista telefónica.

 

Alguns minutos depois, Karim ligava para todos os médicos de Sarzac, com uma certeza batida pelo seu sangue: Jude Itero estivera ausente de 8 a 15 de junho de 1982. Sem dúvida por doença.

 

Interrogou cada médico, pedindo-lhes que consultassem o seu ficheiro, soletrando todas as vezes o nome do menino. Nenhum deles se recordava deste apelido. O chui praguejou. Passou aos municípios vizinhos: Cailhac, Thiernions, Valuc. Foi em Cambuse, uma cidade situada a trinta quilómetros dali, que um médico respondeu num tom neutro:

 

-Jude Itero. Sim, claro. Lembro-me muito bem. Karim não acreditava no que ouvia.

 

- Catorze anos depois, lembra-se muito bem?

 

- Venha ao meu consultório. Depois explico-lhe.

 

O DR. STÉPHANI MACÉ era uma versão actualizada e elegante do médico de aldeia. Traços finos, mãos compridas e pálidas, um fato caro: um perfeito espécime de doutor desempoeirado e compreensivo, burguês e requintado. Karim detestou este médico e as suas maneiras afáveis logo à partida. Sentia-se por vezes assustado com estes assomos de furor que se desprendiam de si como icebergues num mar de Bering pessoal.

 

Sentou-se a um canto da poltrona, sem despir o casaco de cabedal. Havia entre eles uma secretária de madeira envernizada. Alguns bibelots, vagamente preciosos, um computador, um simpósio... O consultório era sóbrio, austero, de bom quilate.

 

- Conte-me lá, doutor - ordenou Karim entrando logo no assunto.

 

- Talvez possa dizer-me em que âmbito o seu inquérito se...

 

- Não. - Karim atenuou a sua brutalidade com um sorriso. - Tenho muita pena. Mas não.

 

O clínico tamborilou sobre o rebordo da secretária e depois levantou-se. Aquele árabe de boina colorida surpreendia-o visivelmente. Ao telefone, parecia muito diferente.

 

- Foi em junho de 82. Uma chamada como tantas outras. Por causa de um rapazinho... uma febre muito alta. Era a minha primeira ida a casa de um doente. Tinha vinte e oito anos.

- É por isso que se lembra dessa visita?

 

O médico sorriu. Um sorriso largo como uma talhada de melão, que acabou por exasperar Karim.

 

- Não. já vai ver... Recebera a chamada através de um receptor colectivo e anotara a morada sem saber aonde ia. Tratava-se, afinal, de uma pequena casa, perdida numa planície pedregosa, a quinze quilómetros daqui... Tenho a morada... Depois dou-lha.

 

O tenente aquiesceu em silêncio.

 

- Em resumo - continuou o médico -, descobri um casinhoto de pedra, completamente isolado. O calor era terrível, ouviam-se insectos a zumbir nas moitas áridas... Quando a mulher me abriu a porta, experimentei logo uma impressão esquisita. Como se a mulher não estivesse no seu lugar naquele cenário de camponeses...

 

- Porquê?

 

- Não sei. Um piano brilhava no compartimento principal e...

 

- Os camponeses não podem gostar de música?

 

- Não disse isso... - O médico interrompeu-se. - Parece que não lhe sou muito simpático...

 

Karim ergueu os olhos.

- Que importância tem?

 

O doutor aprovou com ar entendido, sempre afável. O sorriso não lhe saía dos lábios, mas o seu olhar exprimia agora temor. Acabava de reparar no punho quadriculado do Glock

21, metido no coldre de velcro. E talvez nos vestígios de sangue seco, na manga de cabedal de Karim. Recomeçou a andar de um lado para o outro, cada vez menos à vontade.

 

- Entrei no quarto do menino e as coisas tornaram-se francamente bizarras.

 

- Porquê ?

 

O doutor encolheu os ombros.

 

- O quarto estava vazio. Nem um brinquedo, nem um desenho, nada.

 

- Como era o miúdo? Que rosto tinha ele?

- Não sei.

 

- Não sabe?

 

- Não. Isso era o mais estranho. A mulher recebera-me na obscuridade. Todas as portadas estavam fechadas. Não havia uma fonte de luz em toda a casa. Ao entrar, julguei que a mulher procurava simplesmente sombra, frescura, mas entreviam-se também lençóis a cobrir cada móvel. Era... muito misterioso.

- O que lhe disse ela?

 

- Que o filho estava doente. Que a luz lhe feria a vista.

- E pôde auscultá-lo normalmente?

 

- Sim, na penumbra.

- O que tinha ele?

 

- Uma simples angina. Aliás, recordo-me...

 

O doutor curvou-se e espetou o indicador diante dos lábios

- um gesto seco, doutoral, compassado, concebido sem dúvida para impressionar a clientela. Mas Karim não estava impressionado.

 

- Foi nesse instante que compreendi... Quando peguei no meu lanternim para iluminar a garganta do petiz, a mulher agarrou-me no punho... um gesto de grande violência... Ela não queria que eu visse o rosto do filho.

 

Karim reflectiu. Uma das suas pernas trepidava. Voltou a pensar na moldura vazia, pregada no túmulo. No roubo das fotografias.

 

- Quando fala de violência, o que pretende de facto dizer?

 

- Eu deveria falar antes de força. A mulher tinha uma força... anormal. Convém dizer que ela talvez medisse mais de um metro e oitenta. Um autêntico colosso.

 

- Viu-lhe o rosto?

 

- Não. Repito-lhe que tudo se passou numa semiescuridão.

 

- E em seguida?

 

- Redigi a minha receita e vim-me embora.

 

- Como é que a mulher se comportava? Quero eu dizer: com o filho.

 

- Parecia ao mesmo tempo muito atenciosa e distante    ... Quanto mais penso no caso... Nada batia certo nessa visita ...

- Nunca mais foi vê-los?

 

O médico continuava a percorrer o compartimento. Deitou uma mirada grave a Karim. Toda a jovialidade desaparecera do seu rosto. O polícia compreendeu de súbito por que motivo Macé se recordava tão bem desta visita. Dois meses mais tarde, o pequeno Jude morria. E o doutor devia sabê-lo.

 

- Houve as férias - prosseguiu ele -, e... enfim... Voltei lá no começo do mês de Setembro. A família já não habitava naquela casa. Soube, por um vizinho afastado, que tinham partido...

 

- Partido? Ninguém lhe disse que o miúdo morrera? O médico negou com a cabeça.

 

- Não. Os vizinhos nada sabiam. Soube ainda mais tarde, por acaso.

 

- Como?

 

- No cemitério de Sarzac, indo a um funeral.

- Outro dos seus pacientes?

 

- Está a tornar-se desagradável, inspector, eu... Karim levantou-se. O médico recuou.

 

- Desde essa época - disse o chui -, deve perguntar a si mesmo se não lhe escaparam naquele dia os sinais de uma afecção, de uma doença mais grave. Desde essa época, vive com um remorso latente. É natural que tenha efectuado o seu próprio inquérito. Sabe de que morreu o miúdo?

 

O médico enfiou um indicador no colarinho da camisa e abriu-o. As suas têmporas escorriam suor.

 

- Não. É verdade, eu... eu efectuei o meu inquérito, mas não encontrei nada. Contactei os meus confrades, os hospitais... Nada. Esta história obcecava-me, compreende?

 

Karim virou costas.

 

- E ainda não sabe o melhor.

- O quê?

 

O médico estava tão pálido como uma compressa.

 

- Não tardará a tomar conhecimento - retorquiu Karim.

- Apre! Mas que mal lhe fiz eu?

 

- Nenhum. Mas passei ajuventude a roubar chaços a tipos da sua laia...

 

- Mas donde saiu você? Quem é afinal? Você... nem sequer me mostrou documentos oficiais...

 

Um sorriso bailou nos lábios de Karim.

- Sossegue, estou a brincar.

 

Saiu para o corredor. A sala de espera estava abarrotada de gente. O doutor apanhou-o.

 

- Ouça - ofegou ele. - Há algum elemento que conheça e eu ignore? Sobre a causa do óbito... ja se vê...

 

- Infelizmente, não.

 

O chui rodou a maçaneta. O médico espalmou a mão sobre a porta. A sua bata tremia como um velame.

 

- O que sucedeu? Qual a razão deste inquérito, tanto tempo depois?

 

- Visitaram o jazigo do miúdo, esta noite. E assaltaram a escola dele.

 

- Quem... Quem fez isso, na sua opinião? O tenente declarou:

 

- Não sei. Mas uma coisa é certa: os delitos desta noite são as árvores que escondem a floresta.

 

Guiou durante muito tempo por estradas absolutamente desertas. Naquela zona, as nacionais assemelhavam-se a itinerários regionais, e estes a caminhos vicinais. Sob o

 

céu azul e ameno estendiam-se campos sem cultivo nem gado. Por vezes, uns cabeços rochosos erguiam-se na paisagem e sobrelevavam valezinhos prateados tão acolhedores como armadilhas de lobo. Atravessar esta região significava recuar no tempo, a um tempo em que a agricultura ainda não existia.

 

Karim fora primeiramente visitar o casinhoto da família de Jude cujo endereço pedira a Macé. A pequena casa já não existia. Em seu lugar, um montão de ruínas e rochedos mal sobressaía de um leito de ervas pardacentas. Poderia ter-se dirigido então ao cadastro, para inquirir o nome do proprietário, mas preferira ir a Cahors, no intuito de interrogar Jean-Pierre Cau, o fotógrafo titular da escola jean-jaurès, o qual tirara os retratos escolares desaparecidos.

 

Esperava examinar no estúdio de Cati, por meio dos negativos, as fotografias de classe que lhe interessavam. Entre os rostos anónimos estaria forçosamente o do menino, e Karim sentia agora uma necessidade premente de ver este rosto, ainda que não houvesse a mínima possibilidade de o reconhecer. Lá no íntimo, esperava captar um frémito, um sinal, em filigrana, no momento da descoberta dos negativos.

 

Cerca das dezasseis horas, estacionou à entrada do bairro pedonal de Caliors. Pórticos de pedra, varandas de ferro foiJado e gárgulas. Toda a beleza altiva de um centro histórico, e o bastante para causar vómitos a Karim, filho dos subúrbios.

 

Caminhou ao longo das paredes e encontrou finalmente o estabelecimento dejean-Pierre Cau, especialista em “casamentos e baptizados”.

 

O fotógrafo estava no primeiro andar, no seu estúdio. Karim subiu um lanço de degraus. Encontrou o compartimento vazio e mergulhado na penumbra. Apenas entrevia umas largas molduras suspensas, onde sorriam casais endomingados. A felicidade regulamentar, em papel de lustro.

 

Arrependeu-se logo da onda de desprezo que o atravessava, Quem era ele para julgar aquelas pessoas? O que tinha para oferecer em seu lugar, ele, o chui exilado que nunca soubera ler no olhar das raparigas e que transformara todo o amor que trazia dentro de si num núcleo fossilizado, ao abrigo das vistas alheias e de todo o calor? Para ele, os sentimentos implicavam uma humildade, uma vulnerabilidade que sempre recusara como um bicho-do-mato. Mas, neste terreno, pecara sempre por um excesso de orgulho. E agora, na sua concha de solidão, ressequia-se a olhos vistos.

 

- Vai casar-se?

 

Karim virou-se para a voz.

 

Jean-Pierre Cau era cinzento e bexiguento como uma pedra-pomes. Usava umas largas suíças esguedelhadas que pareciam fremir de impaciência, contrastando com os seus olhos pisados e cansados. O homem acendeu a luz.

 

- Não, não vai casar-se - acrescentou ele, medindo Karim dos pés à cabeça.

 

A voz era gutural como a de um fumador de longo curso. Cau aproximou-se. Por detrás dos óculos, sob as pálpebras engelhadas1 o olhar oscilava entre lassidão e desconfiança. Karim sorriu. Não tinha mandato nem qualquer autoridade naquela cidade. Devia conduzir o diálogo com brandura.

 

- Chamo-me Karim Abduf - declarou. - Sou tenente da polícia. Preciso de umas informações no âmbito de um inquérito...

 

- É de Cahors? - perguntou o fotógrafo, mais intrigado que inquieto.

 

- Sarzac.

 

- Tem um cartão, qualquer coisa?

 

Karim meteu a mão no casaco e depois estendeu o seu documento oficial. O fotógrafo observou-o durante vários segundos. O argelino suspirou. Sabia que o homem nunca vira tão de perto um cartão de chui, mas isto não o impedia de o farejar como um podengo. Cau devolveu-lho com um sorriso constrangido. Uma série de vincos barravam-lhe a testa.

 

- O que me quer?

 

- Procuro fotografias de classe.

- De que escola?

 

- Jean-jaurès, em Sarzac. Procuro os retratos das classes de CM1 em 1981 e de CM2 em 1982, bem como as listas dos nomes de alunos, se porventura estiverem com as fotografias. Conserva este tipo de documentos?

 

O homem sorriu novamente.

- Conservo tudo.

 

- Posso deitar uma olhadela? - perguntou o polícia no tom mais doce que pôde colher no fundo da garganta.

 

Cau indicou o compartimento contíguo: recortava-se na penumbra um risco de luz.

 

- Com certeza, venha comigo.

 

A segunda sala era ainda mais vasta que o estúdio. Uma máquina preta e alambicada, espécie de amálgama de ópticas e de estruturas reguláveis, estava fixada por cima de um comprido balcão. Nas paredes expunham-se amplos retratos de baptizados. Tudo branco. Sorrisos, recém-nascidos.

 

Karim acompanhou o fotógrafo até aos móveis de arrecadação - marca Ordex. O homem debruçou-se, lendo os rótulos apostos por cima dos puxadores metálicos; depois abriu uma gaveta maciça. Compulsou maços de envelopes kraft. -jeanjaurès. Aqui está.

 

Retirou um envelope que continha várias capas de papel transparente. Passou-as em revista, depois folheou-as novamente. Os vincos da sua testa multiplicaram-se.

 

- Disse CM1 em 81 e CM2 em 82?

- Isso mesmo.

 

As pálpebras exaustas reergueram-se.

- É estranho. Eu... Não estão aqui.

 

Karim estremeceu. Seria possível que os pilhantes se tivessem lembrado do mesmo que ele? Perguntou:

 

- Esta manhã, quando chegou, não notou nada?

- A que se refere?

 

- A algo como um arrombamento.

 

Cau desatou a rir, apontando para uns captores infravermelhos nos quatro cantos do estúdio.

 

- Quem penetrar aqui ficará sem fala, acredite. Eu investi no que toca a segurança...

 

Karim esboçou um leve sorriso e declarou:

 

- Verifiquemos apesar de tudo. Conheço uma data de melros para quem o seu sistema não seria mais embaraçoso que um capacho. Guarda os seus negativos, não é?

 

Cau mudou de expressão.

 

- Os meus negativos? Porquê?

 

- Talvez tenha conservado os que me interessam...

- Não. Lamento muito, mas é confidencial...

 

O chui observava uma vela que pulsava na garganta do fotógrafo. já era tempo de mudar de tom.

 

- Os teus negativos, avozinho. Não me faças enervar.

 

O homem fitou o olhar de Karim, hesitou, depois anuiu ao mesmo tempo que recuava. Chegaram a outro móvel de ferro, desta vez com fecho automático. Cau abriu-o e em seguida puxou uma das gavetas. As mãos tremiam-lhe. O tenente arrimou-se e encarou bem o fotógrafo. Quanto mais os minutos passavam, mais ele sentia crescer naquele homem uma inquietude, uma angústia inexplicáveis. Como se Cau, à medida que procurava, se recordasse de um facto particular, de um pormenor que lhe envenenava agora o espírito.

 

O fotógrafo mergulhou outra vez nos envelopes. Os segundos passaram por fim, ergueu os olhos. O seu rosto contraía-se em tiques.

 

- Eu... Não, realmente. Também já não os tenho.

 

Karim empurrou violentamente a gaveta. O fotógrafo urrou, com as duas mãos entaladas na armadilha de metal. Karim atirara completamente a doçura às malvas. Apertou a garganta do homem e soergueu-o do chão. A sua voz ainda era calma:

 

-Vê se ganhas juízo, Cau. Foste assaltado ou não?

- ...Não... juro-lhe...

 

- Então o que fizeste dessas malditas imagens? Cau balbuciou:

 

- Eu... vendi-as...

 

Estupefacto, Karim largou-o. O homem gemia, enquanto friccionava os pulsos. O chui rosnou baixinho:

 

- Vendeste Mas... quando? O homem respondeu:

 

- Valha-me Deus... é uma velha história ... Tenho o direito de fazer o que me apetece com as minhas...

 

- Quando é que as vendeste?

 

- Não me lembro... Há uns quinze anos     ...

 

O espírito de Karim curveteava de estupor em estupor. Encostou ainda mais o fotógrafo ao móvel. Esvoaçaram capas transparentes em redor deles.

 

- Conta tudo pelo princípio, avozinho. Acho isso muito pouco claro.

 

Cau fez um esgar:

 

- Foi uma noite, no Verão... Veio cá uma mulher... Queria as fotografias... As mesmas que você... Agora recordo-me...

 

Estes novos dados transtornavam inteiramente as convicções de Karim. já em 1982 “alguém” procurava as fotografias do pequeno Jude.

 

- Ela falou-te de Jude? Jude Itero? Disse-te este nome?

- Não. Só levou as fotografias e os negativos.

 

- Deu-te grana?

 

O homem admitiu que sim.

- Quanto?

 

- Vinte mil francos... Uma fortuna para a época... por uns retratos de gaiatos...

 

- Qual era o interesse dela nas fotografias?

 

- Não sei. Nem me passou pela cabeça perguntar.

 

- Deves ter olhado para as fotografias... Havia um miúdo com alguma coisa de particular na cara? Uma coisa susceptível de ser escondida?

 

- Não. Não vi nada. Não sei... já não sei.

 

- E a mulher? Como era ela? Era uma mulher alta e alentada? Era a mãe dele?

 

O velho imobilizou-se de repente, depois deu uma gargalhada. Uma grande gargalhada sem gosto, que arrastou consigo os miasmas lá das funduras. Em seguida guinchou:

 

- De certeza que não!

 

Karim agadanhou o homem com os dois punhos, impelindo-o acima dos móveis Ordex.

 

- PORQUÊ?

 

Os olhos de Cau rolaram sob as pálpebras engelhadas.

- Era uma freira. Um estafermo de uma freira católica!

 

 

 

AviA três igrejas em Sarzac. Uma estava a ser restaurada, outra dependia de um velho padre moribundo, a terceira era dirigida por um jovem pároco acerca

 

do qual corriam os mais obscuros rumores. Murmurava-se que ele bebia em companhia da mãe no segredo do presbitério. O tenente, que detestava globalmente todos os habitantes de Sarzac, e mais ainda a sua paixão pelos mexericos, devia no entanto reconhecer que eles tinham razão desta feita: já lhe acontecera uma vez ser chamado em reforço para separar a mãe e o filho, no termo de uma bulha apocalíptica.

 

Karim escolhera este padre para obter as informações. Estacou em frente do presbitério. Uma casa de cimento sem graça, com um andar, junto de uma igreja moderna de vitrais assimétricos. A pequena placa indicava: “A minha paróquia”. Silvas e urtigas disputavam entre si a soleira da porta. Tocou. Passaram minutos. Karim ouviu gritos sufocados. Praguejou interiormente; não apreciava nada isto.

 

Por fim, abriram.

 

Karim teve a impressão de contemplar um náufrago. Em pleno meio-dia, o padre já tresandava a álcool. A sua cara de vaca escanzelada era devorada por uma barba irregular e uns cabelos hirsutos, como que recobertos de um véu de cinzas. Os olhos tinham a cor da nicotina. O casaco estava puído na gola. No peitilho reluziam nódoas. Enquanto padre, este homem estava acabado, queimado, lixado. O seu destino religioso só durara o que duram as folhas de incenso quando ardem no meio do seu perfume obsidiante.

 

- O que deseja, meu filho?

 

A voz era roufenha, mas firme.

 

- Karim Abduf, tenente da polícia. já nos conhecemos. O homem compôs o seu colarinho acinzentado.

 

- Ah, sim, também creio... - Deitou uns olhares aflitos, da direita para a esquerda. - Foram os vizinhos que o chamaram?

 

Karim sorriu.

 

- Não. Preciso da sua ajuda. Por causa de um inquérito.

- Ah, bom. Entre.

 

O chui penetrou na casa e sentiu logo as solas enlambuzadas. Baixou os olhos: rastros brilhantes maculavam o linóleo.

- É a minha mãe - ciciou o padre. -já não faz nada.

 

Suja tudo com as suas compotas. - Esfregou o cabelo, desfigurado. - É horrível, ela só come isto.

 

A decoração era caótica. Tiras de adesivo, coladas de esguelha, imitavam a madeira, a cerâmica, o tecido. Pela fresta de uma porta, Karim lobrigou rectângulos de espuma amarela, recortados a buril, almofadas desirmanadas, que esboçavam a caricatura de uma sala. Uma miscelânea de utensílios de jardinagem jazia no chão. Defronte, um outro compartimento abrigava uma mesa de fôrmica, ajouJada de pratos sujos, e uma cama desmanchada.

 

O padre obliquou para a sala. Tropeçou e reequilibrou-se. Karim disse:

 

- Beba um copo. Ganharemos tempo. O pároco voltou-se com um olhar hostil.

 

- Faria melhor se olhasse para si mesmo, meu filho. Está a tremer dos pés à cabeça.

 

Karim engoliu em seco. Ainda se sentia em estado de choque. Não reflectira nem tomara qualquer distância desde a sessão agitada na oficina do fotógrafo. Só ouvia um zunido na cabeça e marteladas no peito. Maquinalmente, passou a manga do casaco pela cara, aojeito de um fedelho ranhoso.

 

O padre serviu-se de un cálice de pinga.

 

- Posso oferecer-lhe alguma coisa? - perguntou com um sorriso desagradável.

 

- Não bebo.

 

O homem de preto sorveu um gole: o sangue ferveu no seu rosto descarnado. Os olhos febris flamejaram como enxofre. Soltou uma risada trocista.

 

- O Islão, hem?

 

- Não. Conservo simplesmente o espírito lúcido para o meu trabalho. Nada mais.

 

O sacerdote brandiu o cálice.

- Então, ao seu trabalho.

 

Karim avistou a mãe, que ia e vinha no corredor. Andava arqueada, ou melhor, alquebrada, e aconchegava contra si um boião de compota. Ele pensou no jazigo aberto, nos skins, na freira que comprava retratos escolares, e agora apareciam-lhe estas duas figuras de comboio fantasma. Abrira uma boceta de Pandora que dava a impressão de engendrar pesadelos sem descanso.

 

O padre surpreendeu o seu olhar:

 

- Deixe lá, meu filho, não tem importância. - Sentou-se num dos colchões de espuma. - Sou todo ouvidos.

 

Karim ergueu uma mão, com suavidade.

 

- Só uma pequena coisa. Por favor, não torne a chamar-me “meu filho”.

 

- Tem razão - retorquiu o homem na risota. - É uma deformação profissional.

 

O padre bebeu uma golada com um gesto irónico. Readquiria um ar franco.

 

- Que gênero de inquérito está a efectuar?

 

Karim percebeu com satisfação que o pároco ainda não fora informado da profanação do cemitério. Significava que Crozier conseguira evitar a mínima fuga.

 

- Tenho muita pena, mas não posso dizer-lhe nada. Fique apenas a saber que procuro um convento. Nos arredores de Sarzac e de Cahors. Ou mesmo noutro sítio, aqui na região. Conto consigo para me ajudar a encontrá-lo.

 

- Conhece a congregação?

- Não.

 

O homem encheu um segundo copo. Reflexos espessos voltejavam no seu cálice.

 

- Há vários nas redondezas. - Riu-se outra vez. - A região deve prestar-se ao recolhimento...

 

- Quantos?

 

- Só na nossa região, pelo menos uns dez.

 

Karim efectuou um breve cálculo mental. Visitar estes conventos, sem dúvida dispersos por toda a região, levar-lhe-ia um dia, na melhor das hipóteses. Ora, eram mais de dezasseis horas. já não dispunha senão de duas horas. Um impasse.

 

O padre levantara-se e rebuscava num armário. - Ah, aqui está. - Folheou uma espécie de anuário com folhas em papel de bíblia. A mãe entrou no compartimento e troteou até à garrafa. Serviu-se de um cálice sem lançar uma única mirada a Karim. Só tinha olhos para o filho. Uns olhos-gatilho, uns olhos de pássaro, encovados de ódio. O padre ordenou, enquanto lia o anuário:

 

- Deixa-nos, mãezinha.

 

A mulher não respondeu. Pegava no cálice com as duas mãos. Uns dedos que pareciam ganizes. Fitou subitamente Karim. A sua voz elevou-se, estridente:

 

- Quem é você?

 

- Deixa-nos. - O padre voltou-se para Karim. - Pronto! Marquei as páginas dos dez conventos, se quiser tomar nota deles... Mas estão bastante afastados uns dos outros...

 

Karim relanceou as páginas. Conhecia vagamente os nomes das aldeias indicadas. Tirou o seu canhenho do bolso e anotou-as com precisão.

 

- Quem é você? - insistiu a mãe.

 

- Volta para o teu quarto, mãezinha! - gritou o padre. Abeirou-se de Karim.

 

- O que procura, ao certo? Talvez possa ajudá-lo... Karim levantou a caneta e fitou o padre.

 

- Procuro uma freira. Uma freira que se interessa por fotografias.

 

- Que espécie de fotografias?

 

Foi algo de fulgurante, mas Karim captou uma chispa no olhar do padre.

 

-já ouviu falar de uma história deste gênero? O homem coçou a cabeça:

 

- Eu... não.

 

Karim perguntou:

- Que idade tem?

 

- Porquê? Mas... tenho vinte e cinco anos.

 

A mãe encheu outro cálice, arrebitando as orelhas. Karim prosseguiu:

 

- Nasceu em Sarzac?

 

- Sim. -

 

- E frequentou a escola aqui? O padre alçou um ombro.

 

- Sim, até ao segundo ciclo. Depois, entrei no...

 

- Que escola? jean-jaurès?

- Sim, mas...

 

De súbito, o relacionamento pareceu-lhe óbvio.

- Ela veio aqui.

 

- Quem?

 

- A freira. A freira que eu procuro... Veio comprar-lhe as suas fotografias de classe. Com mil raios! Ela arrebanhou todos os retratos escolares que havia nos lares. Andava na mesma classe que o Jude Itero? Este nome diz-lhe alguma coisa?

 

O padre empalidecera a valer:

 

- Eu... eu não compreendo nada das suas palavras... A voz da mãe elevou-se:

 

- Que história vem a ser essa?

 

Karim passou as mãos pela cara como se virasse uma página nas suas próprias feições.

 

- Começo pelo princípio. Se teve uma escolaridade normal, devia andar no CM2 em 1982, não?

 

- Mas já lá vão perto de quinze anos!

- E no CM1 em 1981.

 

O padre inteiriçou-se, de ombros metidos para dentro. Os dedos crisparam-se-lhe nas costas de uma cadeira. Apesar da suajuventude, as mãos pareciam-se com as da mãe. já envelhecidas e sulcadas por veias azuladas.

 

- Sim, as... as datas talvez concordem...

 

- Andava então na classe de um rapazinho chamado ltero.Jude Itero. Não é um nome comum. Pense bem. É muito importante para mim.

 

- Não, sinceramente, eu... Karim deu um passo em frente.

 

- Mas recorda-se de uma freira que procurava fotografias escolares, não é assim?

 

- Eu...

 

A mãe não perdia pitada.

 

- Meu patifório, é verdade o que este árabe diz? perguntou ela.

 

Rodou sobre si mesma e saltitou até à porta. Karim aproveitou para estreitar os ombros do padre e segredar-lhe ao ouvido:

 

- Conte lá, porra! Esclareça-me!

 

O padre deixou-se cair nun canto do colchão de espuma.

- Nunca percebi bem o que sucedeu naquela noite... Karim ajoelhou-se. O padre articulou numa voz surda:

 

- Ela veio numa noite de Verão. -Julho de 1982?

 

Ele confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Bateu à nossa porta... Estava um calor... medonho... Como se as últimas horas do dia cozessem as pedras... já não sei porquê, mas estava sozinho... Abri... Meu Deus... Vej a bem... Eu tinha uns escassos dez anos e aquela freira surgiu-me na penumbra, com o seu véu preto e branco...

 

- O que lhe disse ela?

 

- Começou por falar-me da escola, das minhas notas nas aulas, das minhas matérias preferidas. Tinha uma voz muito doce... Depois pediu para ver os meus colegas... - enxugou o rosto, banhado em suor. - Eu... eu levei-lhe a minha fotografia de classe... Aquela em que estávamos todos... Sentia-me muito orgulhoso por lhe apresentar os meus companheiros, compreende? Foi então que notei que ela procurava qualquer coisa. Observou demoradamente a imagem e perguntou-me se lha dava... Para ficar com uma recordação, segundo dizia...

- Pediu-lhe outros retratos?

 

O sacerdote meneou afirmativamente a cabeça. A sua voz ensurdeceu:

 

- Também queria o retrato do CM1, do ano anterior. Karim sabia-o: podia interrogar todos os pais de um aluno das duas classes que a resposta seria sempre a mesma. já nenhum deles possuía a fotografia destes grupos. Mas por que razão aparecia uma religiosa a arrebanhar os retratos? Karim teve a impressão de que uma selva de pedra se erguia à sua roda, cercada de escuridão.

 

A mãe assomou de novo na cercadura da porta. Apertava uma caixa de sapatos contra o peito.

 

- Patifório. Deste as nossas fotografias. Os teus retratos de classe. Do tempo em que eras tão engraçado, tão amoroso...

- Cala-te, mãezinha! - O padre mergulhou o seu olhar

 

no de Karim. -já sentia a vocação, compreende? Fiquei como que hipnotizado por aquela mulher tão alta...

 

- Alta? Ela era alta?

 

- Bem... Agora não sei... Eu tinha dez anos... Mas ainda estou a vê-la, com a sua capa preta... Falava numa voz tão serena... Queria os retratos... Dei-lhos sem hesitar. Abençoou-me e desapareceu. Acreditei que era um sinal... Eu...

- Patife!

 

Karim deitou um olhar à velha mãe, tomada de exaltação. Voltou ao filho e compreendeu que o padre ia fechar-se nas suas recordações.

 

Adoptou então o tom mais apaziguante:

 

- Ela disse-lhe por que motivo queria a imagem?

- Não.

 

- Falou-lhe de Jude?

- Não.

 

- Deu-lhe dinheiro?

 

O padre fez uma careta.

 

- Claro que não! Ela pediu-me as duas fotografias, foi só isso! Meu Deus... Eu... julguei que essa visita era um sinal, percebe? Um reconhecimento divino!

 

Soluçava.

- Ainda não sabia que não prestava para nada. Um alcoólico. Um tarado. Ensopado em aguardente. O filho desta... Como hei-de dar o que eu próprio ignoro? - Implorava agora a Karim, aferrado ao seu casaco de cabedal. - Como hei-de levar a luz se estou afogado nas trevas? Como? Como?

 

A mãe largou a caixa, espalhando fotografias pelo chão. Atirou-se ao filho com as unhas em riste. Bateu-lhe nas costas, nos ombros, em pequenas pancadas convulsas.

 

- Patife, patife, patife!

 

Karim recuou, aterrado. Todo o compartimento palpitava. Compreendeu que devia partir. Caso contrário, ficaria também chalado. Mas ainda não possuía todas as respostas. Repeliu a mulher e debruçou-se à altura do padre.

 

- Vou sair. Depois tudo se acabará. Tornou a ver a freira, não é verdade?

 

O homem conveio, sacudido pelos soluços.

- Como é que ela se chama?

 

O padre fungou. A mãe andava de um lado para o outro, grazinando palavras ininteligíveis.

 

- Como é que ela se chama?

- Irmã Andrée.

 

- Em que convento?

 

- São João da Cruz. As carmelitas.

- Onde se situa?

 

O homem escondeu a cabeça nos braços. Karim soergueu-o pelos ombros.

 

- Onde é?

 

- Entre... entre Sète e o cabo de Agde, mesmo ao pé do mar. Às vezes vou vê-la, quando a dúvida me atormenta. Para mim, ela é um recurso, compreende? Uma ajuda... Eu...

 

Já a porta batia ao vento. Karim corria para o seu automóvel.

 

O céu toldara-se outra vez. Sob as nuvens, o Grande Pico de Belledone elevava-se como uma vaga negra e monstruosa, petrificada nos seus flancos de rocha. As suas vertentes, eriçadas de árvores minúsculas, pareciam desmaterializar-se, lá nas alturas em brancura ensombrecida por brumas. Os cabos dos teleféricos estiravam-se na vertical, como ténues amarras esticadas sobre a neve.

 

-Julgo que o assassino subiu lá acima, com Rémy Caillois, quando ele ainda vivia. - Niémans sorriu. - Penso que tomaram um destes teleféricos. Um alpinista experimentado consegue facilmente pôr a funcionar o sistema, a qualquer hora do dia ou da noite.

 

- Por que está assim tão seguro de que eles foram lá para cima?

 

Fanny Ferreira, ajovem professora de Geologia, estava magnífica: junto à gola do capuz contra as tempestades, o seu rosto vibrava de uma frescura e de umajuventude esfuziantes. Como um grito de tempo. O cabelo tornejava em volta das suas têmporas, os olhos brilhavam na penumbra da sua pele. Niémans sentia um desejo furioso de morder aquela carne tecida de vida pura. Respondeu:

 

- Temos a prova de que o corpo viajou nos glaciares de uma destas montanhas. O meu instinto diz-me que a montanha é o Grande Pico e que o glaciar é o do círculo de Vallernes, por ser esse cume que domina a faculdade e a cidade, e também porque é deste glaciar que corre o rio que vai ter ao campus. julgo que o assassino desceu em seguida até ao vale pela torrente, num Zodiac ou numa coisa do gênero, com o corpo da vítima a bordo. Só então a encaixou na rocha, para a expor aos reflexos do rio...

 

Fanny lançava olhares crispados em torno de si. Iam e vinham gendarmes à roda das cabinas dos teleféricos. Havia armas, uniformes, tensão. Declarou, com um ar obtuso:

 

- Isso ainda não me explica o que faço aqui.

 

O comissário sorriu. As nuvens viajavam devagar no céu, como um cortejo fúnebre que tivesse ido enterrar o sol. O polícia também envergava um fato de goretex, com umas sobrecalças estanques de kevlar-tec fechadas nos tornozelos sobre sapatos de alpinismo.

 

- É muito simples: conto subir lá acima, à procura de indícios. E preciso de um guia.

 

- O quê?

 

- Vou sobrevoar o glaciar de Vallernes até encontrar um sinal. E preciso de um perito para me guiar: naturalmente, pensei em si. - Niémans sorriu outra vez. - Foi você mesma que me disse que conhecia esta montanha como a palma da mão.

 

- Recuso.

 

- Seja razoável. Posso convocá-la como testemunha no terreno. Posso simplesmente requisitá-la na qualidade de guia. Disseram-me que possui a carta nacional. Não faça fitas. Vamos só sobrevoar esta vertente e cruzar o círculo de helicóptero. São apenas umas horas.

 

Niémans fez sinal aos gendarmes que aguardavam perto de uma carrinha. Eles depuseram uns grandes sacos de tela impermeável sobre os taludes, a poucos metros.

 

- Mandei subir material. Para a expedição. Se quiser verificar que...

 

- Por que me chamou a mim? - insistiu ela, mais obstinada que um licorne. - Qualquer gendarme serviria... - Apontou para os homens que se azafamavam atrás de si. - São eles que prestam os socorros na montanha, sabia?

 

O polícia inclinou-se para ela.

 

- Pois bem, digamos que o meu objectivo é engatá-la. Fanny deitou-lhe um olhar que parecia um corisco.

 

- Comissário, há menos de vinte e quatro horas, descobri um cadáver entalado numa falésia. Sofri vários interrogatórios e passei um bom bocado de tempo na esquadra. Se estivesse no seu lugar, tinha mais cautela com os dichotes machistas!

 

Niémans observava a sua interlocutora. Apesar do homicídio, apesar daquela atmosfera funesta, atingia-o em cheio o encanto desta mulher musculosa e selvagem. Fanny repetiu, cruzando os braços:

 

- Sendo assim, uma vez mais: porquê eu?

 

O oficial de polícia apanhou do chão um ramo seco, coberto de líquen, e avaliou-lhe a flexibilidade com um gesto nervoso.

 

- Porque é geóloga.

 

Fanny franziu o sobrolho. A expressão do seu rosto mudara. Niémans explicou-se:

 

- Após a análise, concluiu-se que os vestígios de água encontrados no corpo da vítima datam de um período anterior aos anos 60. Essa água contém resíduos de uma poluição que já não existe. Resíduos de uma precipitação que caiu na região há mais de trinta e cinco anos. Compreende o que isto significa, não é verdade?

 

A jovem parecia intrigada, mas não respondeu. Niémans ajoelhou-se e desenhou no solo, com o seu pedaço de madeira, uns traços sobrepostos.

 

- Informei-me. As precipitações de cada ano comprimem-se num estrato de vinte centímetros de espessura sobre a calota dos glaciares mais altos, no sítio onde já não há fusão.

- Indicava as diferentes camadas do seu desenho. - Estes estratos são conservados lá no alto para sempre, como arquivos de cristal. Foi, por conseguinte, num desses glaciares que o corpo viajou e reteve a água surgida do passado.

 

Olhou para Fanny.

 

- Quero mergulhar nestes gelos, Fanny. Quero descer até essas águas antigas. Porque foi aí que o assassino eliminou a sua vítima. Ou transportou-a, não sei bem. E preciso de um cientista que saiba localizar exactamente as gretas por onde se podem alcançar esses gelos profundos.

 

Com um joelho no solo, Fanny observava agora o desenho esquemático. A luz era cinzenta, mineral, diluída em reflexos. Os olhos dajovem cintilavam como estrelas de neve. Impossível dizer o que pensava. Murmurou:

 

- E se fosse uma cilada? Se o assassino tivesse apenas arranjado esses cristais para o atrair ao cume? Os estratos de que fala situam-se a mais de três mil e quinhentos metros de altitude. Não é uma pequena passeata. Lá em cima, ficará vulnerável e...

 

- Pensei nisso - admitiu Niémans. - Mas, então, significa que se trata de uma mensagem. De que o assassino pretende que subamos. E vamos subir. Conhece, no círculo de Vallernes, as gretas por onde podemos atingir os gelos do passado?

 

Fanny disse que sim com um breve aceno de cabeça.

- Quantas há? - tornou Niémans.

 

- Neste glaciar, julgo que só existe uma greta particularmente profunda.

 

- Muito bem. Temos alguma probabilidade de descer, você e eu, a esse abismo?

 

Um estridor de helicóptero rasgou subitamente o céu. O ronco das pás aproximou-se, as ervas onduladas entufaram, a superfície da torrente arrepiou-se, a poucos metros dali. O oficial repetiu:

 

- Temos alguma probabilidade, Fanny?

 

Ela lançou uma olhadela ao engenho ensurdecedor e passou a mão pelos cabelos encaracolados. O seu perfil, levemente inclinado, fez estremecer Niémans. Ela sorriu.

 

- Vai ter de se agarrar bem, senhor polícia.

 

VISTAS do céu, a terra, as penhas e as árvores repartiam entre si o território numa sucessão de cumes e de vales, de luzes e de escurecimentos. À medida que o helicóptero sobrevoava a paisagem, Niémans observava esta alternância com o deslumbre de uma primeira vez. Admirava aqueles lagos de nervuras sombrias, aqueles soçobros de moreias, aquelas vertigens de pedras. Tinha a impressão de captar, através destes horizontes solitários, uma verdade profunda do nosso planeta. Uma verdade subitamente posta a nu, violenta, incorruptível, que resistiria sempre às vontades dohomem.

 

O helicóptero dirigia-se perfeitamente através dos dédalos de relevos, acompanhando sem falha o curso do rio, cujos afluentes convergiam agora, a contrapelo, num único fluxo cintilante. Ao lado do piloto, Fanny, de cabeça baixa, perscrutava as águas, que aqui e além despediam resplendores furtivos. Daí em diante, era ajovem que chefiava as operações.

 

O verde das florestas esboroou-se. As árvores recuaram, esgueiraram-se para dentro das suas próprias sombras, como se renunciassem a medir-se com o céu. Chegou a vez das terras negras de barro estéril que devia permanecer quase gelado o ano inteiro. Musgos enegrecidos, líquenes tristonhos, pauis estáticos, suscitando um intenso sentimento de desolação. Logo a seguir surgiram largas cristas cinzentas. Arestas rochosas, aqui irrompidas como sob a força dos suspiros da gleba. Depois, novos escurecimentos, tal qual os fossos negros de uma fortaleza interdita. A montanha estava ali. Perfilava-se, estirava-se, desnudava-se, desdobrando os seus contrafortes de abismos.

 

Por fim, deu-se o maravilhamento. O branco imaculado. As cúpulas cobertas de neve. As fissuras de gelo, cujos lábios começavam a fechar-se com o Outono. Niémans discerniu o curso das águas que se petrificavam no meio das suas ribas.

 

Apesar do fosco do céu, a superfície desta serpente de luz era deslumbrante, como se a tivessem abrasado até branquejar. Desceu os óculos de policarbonato, agrafando as abas protectoras nos lados, e sondou o rio estigmatizado. No fundo do leito imaculado, ele podia assinalar traços azulados, como recordações do céu ali aprisionadas. O ronco das pás era agora absorvido pela neve.

 

À frente, Fanny não cessava de consultar o seu GPS (Global PositiOníng System), um receptor com um pequeno mostrador de quartzo que lhe permitia situar-se relativamente a dados de satélite. Empunhou o microfone ligado ao seu capacete e dirigiu-se ao piloto.

 

- Acolá, a nordeste, o círculo.

 

O piloto obedeceu e viroul com uma mobilidade de brinquedo, na direcção de uma grande cratera de pelo menos trezentos metros de comprimento, em forma de bumerangue, que parecia enlanguescer na vertente extrema do pico. No interior desta bacia desdobrava-se uma monstruosa língua de gelo que destilava fulgores lustrosos nas suas alturas e reflexos mais escuros na base do declive, onde os gelos se acumulavam, comprimiam e estilhaçavam, a ponto de formarem lâminas petrificadas. Fanny berrou ao piloto:

 

- Aqui. Mesmo por baixo. A grande fenda.

 

O helicóptero encaminhou-se para os confins do glaciar, onde as arestas translúcidas, acumuladas em escada, se abriam numa comprida greta - numa racha de trevas que parecia sorrir num rosto arrebicado de neve. O engenho pousou num turbilhão de polvilhador. A tempestade das pás desenhava amplos sulcos sobre a neve.

 

- Duas horas - gritou o piloto. - Volto dentro de duas horas. Depois começará a anoitecer.

 

Fanny regulou o seu GPS e em seguida estendeu-o ao homem, indicando assim o ponto onde desejava que ele viesse buscá-los. O homem anuiu. Niémans e Fanny saltaram para o chão, cada qual segurando um enorme saco estanque.

 

O engenho não tardou a afastar-se, como que tragado pelo céu, deixando as duas silhuetas no silêncio das neves eternas.

 

Houve uns breves momentos de recolhimento. Niémans ergueu o olhar e mirou o precipício de gelo, à beira do qual se encontravam como duas partículas humanas num deserto branco. O polícia estava deslumbrado e tinha todos os sentidos despertos. Parecia-lhe escutar, em contraste com a desmesurada paisagem, o sussurro ligeiro da neve cujos cristais estalavam numa frialdade secreta, íntima.

 

Lançou um olhar à jovem. Com o peito dilatado, os ombros atirados para trás, ela respirava fundo, como se quisesse empanturrar-se de frio e pureza. A montanha parecia ter-lhe restituído o bom humor. O polícia supôs que esta mulher só era feliz no meio daqueles reflexos ondeantes, sob uma pressão mais leve. Pensou numa fada. Uma criatura das montanhas. Apontou para a greta e perguntou:

 

- Porquê esta e não uma outra?

 

- Porque é a única suficientemente profunda para atingir os estratos que lhe interessam. Abre-se até cem metros de profundidade.

 

Niémans aproximou-se.

 

- Cem metros? Mas só precisamos de descer alguns metros para alcançar as camadas correspondentes aos anos 60. Fiz os meus cálculos: à razão de vinte centímetros por ano, nós...

 

Fanny sorriu.

 

- Isso é teoria. Mas este glaciar não corresponde à sua média. Os gelos são esmagados obliquamente na bacia. Por outras palavras, alargam-se, alongam-se. No fundo, cada ano é representado neste sumidouro por uma camada de cerca de um metro de espessura. Reveja os seus cálculos, senhor polícia. Para recuar trinta e cinco anos, vamos ter que descer...

 

- _a mais de trinta e cinco metros?

 

A jovem confirmou. Algures, num nicho azulado, escoava-se um débil jorramento. O pequeno riso de um cadinho de água viva. Fanny indicou o abismo atrás de si.

 

- Também escolhi esta falha por outro motivo. A última estação do teleférico fica apenas a oitocentos metros. Se não está enganado, e se o assassino atraiu de facto a vítima a uma greta, há grandes probabilidades de o ter feito aqui. É o despenhadeiro mais acessível a pé.

 

Fanny deixou-se cair no solo, ao mesmo tempo que abria o seu saco. Pegou em dois pares de peças de aço laminado e lançou um a Niémans.

 

- Fixe isto por baixo dos pés.

 

Niémans assim fez. Enfiou as duas solas de pontas metálicas ajustando-as aos rebordos dos sapatos. Afivelou em seguida as correias de neopreno como se fossem estribos. Vieram-lhe à ideia os atilhos dos patins da sua infância.

 

Fanny tirava do saco umas hastes roscadas e ocas que terminavam num anel oblongo, - Espetos de gelo - comentou laconicamente. O seu bafo cristalizava-se num eflúvio brilhante. Em seguida pegou num martelo-picareta de cabo bojudo, onde cada elemento niquelado parecia amovível, após o que estendeu um capacete a Niémans, o qual contemplava tais objectos cheio de curiosidade. Estes instrumentos pareciam simultaneamente muito sofisticados e de uma evidente simplicidade. Davam a impressão de ser fabricados com materiais revolucionários, desconhecidos, e exibiam cores de bombons ingleses.

 

- Aproxime-se.

 

Fanny prendeu em volta da cintura e das coxas dele um boldrié acolchoado que se assemelhava a um labirinto de correias e fivelas. No entanto, a jovem fechou-o em poucos segundos. Deu então um passo para trás, como um estilista a admirar o seu modelo.

 

- Está esplêndido - sorriu ela.

 

Apoderou-se depois de uma lâmpada complexa, composta no seu todo por tiras cruzadas, um sistema eléctrico e uma mecha chata, erguida diante de um reflector. Niémans teve tempo de se vislumbrar neste espelho: de cogula, capacete, boldrié e pontas de aço, assemelhava-se a um yeti futurista.

 

Fanny fixou a lâmpada no capacete dele, depois fez passar um tubo por trás do seu ombro. Prendeu o reservatório à cintura de Niémans e murmurou: - É uma lâmpada de acetileno. Funciona com carbureto. Hei-de mostrar-lhe, na devida altura.

 

Em seguida ergueu os olhos e dirigiu-se a Niémans num tom grave:

 

- O gelo é um mundo à parte, comissário - principiou ela. - Esqueça os seus reflexos, os seus hábitos, os seus modos de dedução. Não se fie em nada: nem nos reflexos, nem na dureza, nem no aspecto das paredes. - Indicou o abismo, enquanto fixava o seu próprio boldrié. - Naquele bojo, ali, tudo irá tornar-se assombroso, extraordinário, mas tudo estará armadilhado. É um gelo como nunca viu outro igual. Um gelo hipercomprimido, mais duro que betão, mas que pode também abrigar um poço sob uma placa de alguns milímetros. Eu é que lhe darei as instruções a executar.

 

Fanny calou-se, deixando que as suas palavras ganhassem todo o sentido. A condensação desenhava em torno do seu rosto um halo encantado. Reuniu o cabelo num carrapicho e enfiou a cogula.

 

- Vamos penetrar lá dentro por aqui - prosseguiu ela. Há um desnível, será mais fácil. Eu irei à frente e cravarei os espetos. O gás aprisionado que vou libertar ao fender o gelo traçará uma racha gigante, de várias dezenas de metros. Esta falha pode produzir-se na vertical ou na horizontal. Tem de afastar-se da parede. Isto causará um ruído de trovão. Não é nada em si mesmo, mas pode soltar blocos de gelo, estalactites. Olhe para todos os lados, comissário. Fique sempre à espreita e não toque em nada.

 

Niémans assimilava as injunções dajovem. Era de facto a primeira vez que se achava às ordens de uma cachopa de cabelo encaracolado. Fanny pareceu discernir este frémito de orgulho. Retomou então o fio do discurso num tom ao mesmo tempo divertido e autoritário:

 

- Vamos perder a noção do tempo e das distâncias. A nossa única referência será a corda. Disponho de vários sacos de cem metros de corda cada um, e só eu posso medir a distância percorrida. Avançará seguindo as minhas pisadas e fará o que eu lhe disser. Nada de iniciativas pessoais. Nada de gestos espontâneos. Compreendido?

 

- OK - arfou Niémans. - É tudo?

 

- Não.

 

Fanny observou o céu, saturado de nuvens.

 

- Só aceitei esta expedição por causa da trovoada. Se o sol voltar, deveremos subir imediatamente.

 

- Porquê?

 

- Porque o gelo se derreterá. As torrentes despertarão e cair-nos-ão em cima, ao longo das paredes. Águas cuja temperatura não ultrapassará os dois graus. Ora, os nossos corpos estarão ardentes, devido aos esforços efectuados. Será o primeiro choque, capaz de nos fazer saltar o coração. Se sobrevivermos a isto, a hidrocussão acabará connosco logo a seguir. Membros entorpecidos, movimentos abrandados... Não preciso de me alongar mais. Ficaremos petrificados em poucos minutos, como estátuas, suspensos da nossa corda. Sendo assim, independentemente do que acontecer ou do que encontrarmos, subiremos aos primeiros sinais de sol.

 

Niémans quis aclarar este último fenômeno.

 

- Quer dizer que o assassino também precisou de uma trovoada para descer à falha?

 

- De uma trovoada ou da noite.

 

O comissário reflectiu: quando inquirira sobre as nuvens, tinham-no informado de que o sol brilhara durante todo o dia de sábado na região. Se o assassino, com a sua vítima, descera realmente através dos gelos, significava então que ele esperara pela noite. O que o levara a acumular tantas dificuldades? E por que razão regressara em seguida ao vale com o corpo?

 

Niémans caminhou desajeitadamente, estorvado pelas suas solas de aço, até à beira da falha. Arriscou um olhar: o canyon não era vertiginoso. Cinco metros mais abaixo, pelo contrário, as paredes abaulavam-se, a ponto de quase se unirem. O precipício já não deixava então mais do que um estreito reduto, que fazia lembrar os lábios de uma concha infinita.

 

Fanny acercou-se dele e comentou, enquanto prendia uma quantidade de mosquetões e de espetos em volta da cintura:

 

- A torrente insinua-se na greta e expande-se alguns metros mais abaixo. Por isso é que o abismo é muito mais largo após esta primeira falha. Na parte inferior, as águas esparrinham as paredes e escavam-nas. Devemos introduzir-nos no interior, passar por entre estas mandíbulas.

 

Niémans contemplava os dois bordos de gelo que pareciam entreabrir-se de má vontade sobre o precipício.

 

- Se descêssemos mais fundo no glaciar, poderíamos encontrar as águas dos séculos passados?

 

- Absolutamente. Na zona árctica, pode-se descer assim até épocas muito antigas. A vários milhares de metros de profundidade, conservam-se intactas as águas que levaram Noé a construir a sua arca. Bem como o ar que ele respirava.

 

- O ar?

 

- Bolhas de oxigénio, aprisionadas nos gelos.

 

Niémans estava pasmado. Fanny pôs o seu saco às costas e ajoelhou-se à beira da greta. Enroscou um primeiro espeto e prendeu um mosquetão pelo qual passou uma corda. Olhou de novo para o céu entroviscado, depois declarou de uma maneira travessa:

 

- Bem-vindo à máquina de recuar no tempo, comissário.

 

Desceram em rappel.

 

O polícia estava suspenso de uma corda, a qual se enfiava por sua vez num manípulo autobloqueante. Para descer, bastava-lhe carregar no manípulo que libertava logo a corda, devagarinho. Assim que afrouxava a pressão, o sistema bloqueava-se novamente. Permanecia então no vazio, como que sentado no seu boldrié.

 

Concentrado neste simples gesto, Niémans escutava as ordens de Fanny que, alguns metros mais abaixo, lhe indicava o momento em que podia deixar-se deslizar. Chegado ao espeto seguinte, o polícia mudava de cabo, tendo primeiramente o cuidado de se precatar com uma arreata - uma corda curta fixada no seu boldrié. Munido de todas as suas ramificações, Niémans sentia-se como uma espécie de polvo cujos tentáculos tilintassem como um trenó de Natal.

 

Ao longo da descida, o comissário sobranceava a jovem sem a ver, mas depositava uma confiança espontânea na sua experiência. À medida que seguia ao longo da parede, ouvia-a azafamar-se poucos metros abaixo dele. Nesse instante, não pensava em nada. Através da sua própria concentração, experimentava simplesmente sensações mescladas, vivas, inéditas. O sopro frio da muralha. O apoio do boldrié que mantinha o seu corpo em suspenso, acima do vazio. A beleza do gelo que brilhava de um azul escuro, como um bloco de noite arrancado ao firmamento.

 

Em breve saíram da luz do céu. Passaram sob as bordas bojudas da falha, penetrando no exacto coração do abismo. Niémans teve a impressão de mergulhar na pança cristalizada de um animal monstruoso. Sob aquele sino de gelo, constituído integralmente por humidade, as suas sensações aguçavam-se, intensificavam-se ainda mais. Admirava, sub-repticiamente, as paredes sombrias e transidas que desferiam clarões baços, como ecos de luz. Na obscuridade, cada um dos seus gestos provocava uma ressonância de caverna.

 

Por fim, Fanny pousou o pé numa espécie de coxia, quase horizontal, que corria ao longo da parede. Niémans chegou por seu turno ao degrau natural. As duas paredes da greta tinham-se apertado de novo ejá só estavam agora espaçadas de alguns metros.

 

- Aproxime-se - ordenou ela.

 

O polícia obedeceu. Fanny carregou num botão, no alto do seu capacete - Niémans iajurar que ela acendera um isqueiro -, e de repente jorrou um clarão. No reflector do capacete da mulher, o polícia avistou novamente a sua silhueta. Distinguiu sobretudo a chama de acetileno, uma espécie de cone invertido, que difundia por refracção aquela poderosa luz. Fanny, às apalpadelas, acendeu a sua própria lâmpada e ciciou:

 

- Se o assassino veio a este abismo, foi aqui que tudo se passou.

 

Niémans fitou-a, sem compreender. O brilho amarelado da sua lâmpada, incidindo na horizontal, deformava o rosto da mulher, transformando-o em sombras acentuadas, inquietantes.

 

- Estamos à profundidade certa - prosseguiu ela, designando a superfície lisa da muralha. - A menos trinta metros sob a abóbada, ou seja, as neves cristalizadas dos anos 60, e além deles...

 

Fanny pegou num novo saco de cordas e fixou um espeto na parede. Depois de o ter cravado em poucas pancadas de martelo, enroscou-o enfiando um mosquetão no seu anel e atarraxando a haste espiralada, como faria com um saca-rolhas. O vigor da mulher assombrava Niémans. Ele olhava para o gelo extirpado, que esguichava do pitão por um orifício lateral, e pensava que conhecia poucos homens capazes de tal proeza.

 

Tornaram a partir para uma nova cordada, mas desta vez na horizontal, ao longo da passagem cintilante. Caminhavam acima do precipício, ligados um ao outro. Os seus reflexos desenhavam-se confusamente na parede fronteira. De vinte em vinte metros, Fanny fraccionava a corda, querendo isto dizer que cravava um novo espeto na muralha e destacava o troço seguinte. Repetiu várias vezes a manobra e cobriram assim cem metros.

 

- Continuamos? - interrogou ela.

 

O polícia mirou-a. O seu rosto, endurecido pela luz abrupta da lâmpada, revestia-se agora de um carácter maléfico. Ele fez sinal que sim, apontando para o corredor de gelos que se perdia na infinitude dos reflexos. A mulher tirou outro saco e recomeçou a sua manobra. Espeto, corda, vinte metros; depois, novamente espeto, corda, vinte metros...

 

Percorreram assim quatrocentos metros. Nem um vestígio, nem uma marca indicavam que o assassino passara ali antes deles. Não tardou a parecer a Niémans que as paredes vacilavam diante dos seus olhos. Também ouvia estalidos leves, risos longínquos e sardônicos. Tudo se tornava luminoso, ressoante, incerto. Existiria uma vertigem dos gelos? Lançou um olhar a Fanny, que pegava num novo saco de cordas. Ela parecia não ter reparado em nada.

 

Invadiu-o uma angústia. Se calhar começava a delirar. O seu corpo, o seu cérebro, sob o efeito da fadiga, talvez manifestassem sintomas de abandono. Pôs-se a tremer. O frio sacudia os seus ossos aos sacões. As suas mãos cerraram-se sobre o último pitão. Os seus pés avançavam, desengonçados. De lágrimas nos olhos, tentou aproximar-se de Fanny. Sentiu de repente que ia cair, que as pernas já não o aguentavam. E o seu delírio íntensificou-se. As paredes azuladas pareceram-lhe ondular cada vez mais, ao sabor da sua lâmpada, e dir-se-ia que as risadas ressaltavam em ecos. Ia cair. No vazio. Na sua própria loucura. Sufocado, conseguiu chamar:

 

- Fanny...

 

A jovem voltou-se, e Niémans compreendeu subitamente que não delirava.

 

O rosto da alpinista já não era marcado pelas sombras da lâmpada. Uma claridade resplandecente, tão intensa que não se podia definir a sua fonte, inundava as feições dela. Fanny recobrara a beleza radiosa e soberana. Niémans deitou um olhar em redor. A muralha cintilava agora em todo o seu esplendor. E os regatos verticais corriam ao longo da parede, numa precipitação fantástica.

 

Não, não delirava. Pelo contrário: captara um fenômeno que Fanny, demasiado ocupada a fixar os cordames, descurara. O sol. À superfície, as nuvens da trovoada tinham-se sem dúvida dissipado e o sol reaparecera. Daí a luz difusa, insinuada nos interstícios do gelo. Daí os reflexos incessantes e as casquinadas dos nichos.

 

A temperatura subia. O glaciar estava a derreter-se.

 

- Merda - sibilou Fanny, que acabava igualmente de compreender.

 

Observou logo o pitão mais próximo. Os passos de rosca brilhavam, fora da parede que fundia ressumando compridas lágrimas. Os dois companheiros iam desenganchar-se. Desabar em queda livre no fundo do abismo. Fanny ordenou:

 

- Afaste-se.

 

Niémans esboçou um passo atrás, tentou desviar-se para a esquerda. O seu pé escorregou, mas endireitou-se, de costas sobre o vazio, e puxou violentamente a corda para recuperar o equilíbrio. Ouviu em simultâneo o ruído do espeto que se soltava, as suas solas de pontas metálicas que raspavam a parede, o choque do punho de Fanny que o apanhava pela nuca, no derradeiro instante. Ela pregou-o contra a parede fria.

 

A água gelada mordeu-lhe a face. Fanny disse-lhe ao ouvido:

- Não se mexa.

 

Níémans imobilizou-se encolhido, ofegante. Fanny galgou por cima dele. Sentiu o bafo dajovem, o seu suor, a doçura dos seus caracóis. A mulher encordou-o outra vez, enterrou dois novos pitões a uma velocidade espantosa.

 

Só o tempo de realizar esta manobra e ja os rumorejos do abismo se tinham volvido em estrondos, e os pequenos jorros em cascatas. Por todo o lado, as quedas de água fustigavam as paredes, ribombavam, percutiam. Lanços inteiros de gelo desprendiam-se, despedaçando-se sobre o escolho da coxia. Niémans fechou os olhos. Sentia-se fraquejar, escorregar, esvaecer naquele palácio faiscante onde os ângulos, as distâncias, as perspectivas, desapareciam.

 

Foi o grito de Fanny que o chamou à realidade.

 

Voltou a cabeça e viu a jovem à sua esquerda, fincada na corda, tentando arredar-se da parede. Niémans fez um esforço sobre-humano para se levantar e abeirar, sob as cargas de água que se abatiam com uma força de catarata. Estreitando os dedos sobre a sua corda, deixou-se abanar como um enforcado e atravessou uma autêntica torrente vertical. Por que motivo procurava ela afastar-se da muralha alvejante, quando afinal a fenda estava prestes a tragá-los? Fanny apontou o indicador para o gelo:

 

- Ali. Ele está ali - segredou ao polícia.

 

Niémans meteu-se no eixo de visão dajovem alpinista. Compreendeu então o impossível.

 

No paredão transparente, verdadeiro espelho de águas vivas, acabava de irromper a silhueta de um corpo prisioneiro dos gelos. Posição de feto. Boca aberta sobre um grito de silêncio. As finas toalhas de águas incessantes passavam por cima desta imagem e torvelinhavam a visão do corpo arroxeado e semeado de feridas.

 

Apesar do seu estupor, apesar do frio que estava a matá-los a ambos, o comissário compreendeu logo que contemplavam aqui o reflexo da verdade. Garantiu o equilíbrio sobre a coxia, depois rodou sobre sil operando um arco de círculo perfeito para descobrir a outra parede, mesmo defronte:

 

- Não. Ali.

 

Os olhos dele já não podiam desprender-se do verdadeiro corpo, incrustado na muralha oposta, e cujos contornos sangrentos se misturavam com o seu próprio reflexo.

 

NiÉMANS pousou a documentação sobre a secretária e dirigiu-se ao capitão Barnes:

 

- Como pode ter a certeza de que este homem é a

 

nossa vítima?

 

O gendarme, de pé, esboçou um gesto de evidência.

 

- A mãe dele veio ver-nos, há bocado. Disse que o filho desapareceu esta noite...

 

O comissário estava de novo num gabinete da gendarmaria, no primeiro andar. Só agora começava a aquecer, vestido com uma camisola de gola alta, de malha apertada. Uma hora antes, Fanny conseguira tirá-los a   ambos do abismo, mais ou menos intactos. A sorte jogara então a favor deles: o helicóptero,já de volta, sobrevoava o sítio no mesmo instante.

 

Desde essa altura, equipas de socorro na montanha empenhavam-se em extrair o corpo do seu santuário de gelos, ao passo que o comissário e Fanny Ferreira tinham regressado à cidade, sujeitando-se a uma visita médica minuciosa.

 

Na brigada, Barnes mencionara logo um novo desaparecido, cuja identidade podia coincidir com o corpo descoberto: Filipe Sortys, vinte e seis anos, solteiro, auxiliar de enfermagem no hospital de Guernon. Niémans repetiu a pergunta ao mesmo tempo que bebia um café bem quente:

 

- Enquanto não verificarmos a identidade exacta da vítima, como pode ter a certeza de que se trata realmente desse homem?

 

Barnes rebuscou numa pasta de cartão, depois balbuciou: É ... é por causa da parecença.

 

Da parecença?

 

O capitão depôs diante de Niémans uma fotografia de um moço com feições afiladas, de cabelo cortado à escovinha. O rosto sorria, febril, o olhar melancólico estava impregnado de doçura. Emanava deste semblante uma expressão juvenil, quase infantil, mas também nervosa. O comissário percebia o que Barnes queria dizer: este homem parecia-se com Rémy Caillois, a primeira vítima. Mesma idade. Mesmo rosto maneirinho. Mesmo corte de cabelo. Dois mancebos, belos e esguios, mas cuja expressão dava mostras de abrigar uma agitação interior.

 

- É uma série, comissário.

 

Niémans bebeu uma golada de café. Afigurou-se-lhe que a sua garganta ainda gelada poderia ter estoirado ao contacto de um calor tão violento. Ergueu o olhar,

 

- O quê?

 

Barnes baloiçava de um pé para o outro. Podia-se ouvir ranger os seus calcantes, como a coberta de um navio.

 

- É claro que não tenho a sua experiência, mas... Enfim, se a segunda vítima é de facto Filipe Sertys, não custa ver que se trata de uma série. De um assassino em série, quero eu dizer. Ele escolhe as vítimas em função do físico. Este... este rosto deve trazer-lhe à memória um traumatismo e...

 

O capitão calou-se sem demora ao atentar no olhar furibundo de Niémans. O comissário tentou apagar a sua veemência com um sorriso forçado.

 

- Capitão, não devemos tirar um romance desta parecença. Principalmente agora, quando ainda nem sequer estamos seguros da identidade da vítima.

 

- Eu... Sim, tem razão, comissário.

 

O gendarme manipulava nervosamente a sua pasta, que se diria conter a vida da cidade inteira. Parecia ao mesmo tempo confuso e exasperado. Niémans podia ler nos seus pensamentos, em caracteres rutilantes: “Um assassino em série, em Guernon”. O gendarme ficar-ia marcado até à reforma, e mesmo para além dela. O polícia volveu:

 

- Em que ponto estão os socorros?

 

- Falta pouco para retirarem a vítima. O enfim, o gelo fechou-se sobre o corpo. Segundo dizem os colegas, o homem foi ali colocado na noite passada. Era necessária uma temperatura muito baixa para o gelo petrificar assim.

 

- Daqui a quanto tempo poderemos dispor do corpo?

 

- Ainda devemos esperar uma hora, no mínimo. Tenho muita pena, comissário.

 

Niémans levantou-se e abriu ajanela. O frio engolfou-se no compartimento.

 

Dezoito horas.

 

A noite descia já sobre a cidade. Uma sombra intensa, que sugava lentamente os telhados de ardósia e os frontões de madeira. O rio insinuava-se nas trevas como uma serpente entre duas pedras.

 

O comissário arrepiou-se por baixo da camisola. A província não era decididamente o seu universo. Sobretudo esta: confinada no sopé das montanhas, batida pelo frio e pelas tempestades, repartida entre a lama enfarruscada de neve e o estalido incessante das estalactites. Todo um mundo ensimesmado, secreto, hostil, que cristalizava no seu silêncio como o caroço num fruto coberto de geada.

 

- Ao fim de doze horas de inquérito, qual é a situação? perguntou ele virando-se para Barnes.

 

- Bastante má. As verificações não deram qualquer resultado. Não há larápios. Não há presos libertados cujo perfil possa corresponder ao do assassino. Também não há nada no tocante a hotéis, paragens de autocarro ou estações de comboio. As barragens nas estradas não foram mais proveitosas.

- E a biblioteca?

 

Com o aparecimento do novo corpo, a pista dos livros parecia agora secundária, mas o polícia queria levar a bom termo todas as vias de investigação. Explicou:

 

- Os tipos do SRPJ estão a efectuar uma pesquisa sobre os livros consultados pelos estudantes.

 

O capitão meneou os ombros.

 

- Oh, isso... Não somos nós. É melhor falar com o Joisneau para...

 

- Onde está ele?

- Não faço ideia.

 

Niémans marcou logo o número do telemóvel do jovem tenente.

 

Nenhuma resposta. Desligado. Insistiu, mal-humorado:

- E o Vermont?

 

- Sempre lá nas alturas, com o seu esquadrão. Andam a esquadrinhar os refúgios, os flancos da montanha. Mais que nunca.

 

Niémans suspirou.

 

- Peça mais efectivos a Grenoble. Quero outros cinquenta homens. Pelo menos. Quero que as buscas se orientem na direcção do glaciar de Vallernes e do teleférico que lá conduz. Quero que toda a montanha seja passada a pente fino até ao cimo.

 

- Vou tratar disso.

 

- Quantas barragens nas estradas?

 

- Oito. A portagem da auto-estrada. Duas nacionais. Cinco regionais. Guernon está sob alta vigilância, comissário. Mas, como lhe disse, o...

 

O polícia cravou os olhos em Barnes.

 

- Capitão, só temos agora uma certeza: o assassino é um alpinista experimentado. Interrogue todos os tipos aptos a calcorrear um glaciar, em Guernon e nos arredores.

 

- Vai ser um bocado complicado. O alpinismo é o desporto local e...

 

- Refiro-me a um perito, Barnes. A um homem capaz de descer a trinta metros de profundidade sob os gelos e transportar aí um corpo. já pedi isto a Joisneau. Fale com ele e veja o quejá apurou.

 

Barnes inclinou-se.

 

- Muito bem. Mas repito: somos um povo de montanheses. Encontrará alpinistas experimentados em cada aldeia, em cada casebre, nas encostas de todos os maciços. É uma tradição nossa: alguns homens da região ainda são pesquisadores de cristal de rocha, criadores de gado... todos conservaram a paixão dos cumes. Bem vistas as coisas, só em Guernon, na cidade universitária, é que tais práticas foram abandonadas.

 

- Aonde quer chegar?

 

- Quero simplesmente dizer que vamos ter de estender mais as nossas buscas. Às aldeias lá no cimo. E que isto vai demorar alguns dias.

 

- Peça mais reforços. Instale QG em cada lugarejo. Veja onde as pessoas estiveram nas últimas horas, verifique os equipamentos, as distâncias. E, com mil diabos!, arranje-me suspeitos. O comissário abriu a porta e rematou:

 

- Convoque-me a mãe.

- A mãe?

 

- A mãe de Filipe Sertys: quero falar-lhe.

 

NIÉMANS desceu ao rés-do-chão. A brigada de gendarmaria assemelhava-se a qualquer outra esquadra de polícia em França, e sem dúvida em todo o mundo. Pelas paredes guarnecidas de vidros, Niémans podia enxergar os armários de metal, as secretárias plastificadas, desirmanadas, o linóleo sebento, roto por queimadelas de cigarro. Gostava destes lugares monocromos, sob o pestanejo dos néons porque remetiam para a verdadeira natureza do ofício de polícia, as ruas, o exterior. Estes locais turvos só constituíam a antecâmara da vocação policial, o seu antro negro, donde se irrompia com as sirenes a uivar.

 

Foi então que a avistou, sentada no corredor, envolvida numa capa de fibra polar e envergando uma camisola de gendarme azul-marinho. Acometido de um frémito, estava de novo prisioneiro dos gelos, junto dela, e sentia o seu bafo quente na nuca. Ajustou os óculos, entre ansiedade e coqueteria.

 

- Não voltou para casa?

 

Fanny Ferreira ergueu os olhos claros.

 

- Tenho que assinar o meu depoimento. Começa a tornar-se um hábito. Não conte comigo para descobrir o terceiro.

- O terceiro?

 

- O terceiro corpo.

 

- Acha que os homicídios vão continuar?

- E você, não acha?

 

A jovem deve ter distinguido uma expressão dolorosa no rosto de Niémans. Disse então baixinho:

 

- Desculpe. A ironia é o meu escape pessoal.

 

Em seguida deu umas pancadinhas no lugar a seu lado, no banco, como faria para incitar uma criança a sentar-se junto dela. Niémans anuiu. De cabeça enterrada nos ombros, mãos unidas, ele batia ligeiramente com os tacões no chão.

 

- Quero agradecer-lhe - murmurou entredentes. - Sem si, no meio dos gelos...

 

Desempenhei o meu papel de guia.

 

É verdade. Não só me salvou a vida, como ainda me levou exactamente aonde eu pretendia ir...

 

A expressão de Fanny tornou-se grave. Passavam gendarmes no corredor a todo o momento. De galochas rangentes e oleados sussurrantes. Ela perguntou:

 

- Em que ponto está? Quero eu dizer: do seu inquérito. Qual o motivo desta violência inaudita? Destes actos tão... esquisitos?

 

Niémans procurou sorrir, mas a sua tentativa não foi bem sucedida:

 

- Não estamos a avançar. Tudo o que sei, é o que sinto.

- Como?

 

- Sinto que temos pela frente uma série. Mas não no sentido em que se poderia entendê-lo. Não é um assassino que fere ao acaso das suas obsessões. Esta série corresponde a um móbil. Preciso. Profundo. Racional.

 

- Que gênero de móbil?

 

O polícia observou Fanny. As sombras das sentinelas afloravam o seu rosto como asas de ave.

 

- Não sei. Por enquanto.

 

O silêncio impôs-se. Fanny acendeu um cigarro e perguntou de repente:

 

- Há quanto tempo está na polícia?

- Há uns vinte anos.

 

- O que é que o motivou na escolha? A captura dos maus? Niémans sorriu, agora com franqueza. Pelo rabo do olho, apercebeu-se da chegada de um novo pelotão com as carapaças perladas de chuva. Pela simples expressão deles, deduziu que não haviam descoberto nada. O seu olhar regressou a Fanny, que inalava uma longa baforada.

 

- Sabe, esse tipo de objectivo é algo que se deixa muito depressa para trás. Aliás, ajustiça, e toda a parlapatice à roda dela, foi uma coisa que nunca me atraiu.

 

- Então o quê? O chamariz do ganho? A segurança do emprego?

 

Niémans espantava-se:

 

- Tem umas ideias muito estrambólicas. Não, eujulgo que fiz esta escolha por causa das sensações.

 

- As sensações? Do gênero das que acabamos de viver?

- Sim, por exemplo.

 

- Estou a ver - afirmou ela com ironia, soprando fumo de tabaco louro. - “O homem do extremo”. Que dá valor à sua existência arriscando-a todos os dias...

 

- E por que não?

 

Fanny imitou a posição de Niémans - ombros curvados e mãos juntas, como se rezasse. já não se ria. Parecia adivinhar que Niémans, por detrás destas generalidades, confiava nesse instante uma parte de si mesmo. Ciciou, de cigarro nos lábios:

- Por que não, de facto...

 

O polícia baixou os olhos e espreitou, através dos aros dos seus óculos, as mãos da jovem. Não tinha aliança. Só pensos, marcas, escoriações. Como se a alpinista se tivesse casado antes de tudo com os elementos, a natureza, as emoções violentas.

 

- Ninguém pode compreender um chui - prosseguiu ele cheio de gravidade. - E ainda menos julgá-lo. Evoluímos num mundo brutal, incoerente, fechado. Um mundo perigoso, de fronteiras bem estabelecidas. Se estamos fora, já não podemos entendê-lo. Se estamos dentro, perdemos toda a objectividade. O mundo dos chuis é assim. Um universo vedado. Uma cratera de arame farpado. Incompreensível. É a sua própria natureza. Mas uma coisa é certa: não temos lições a receber dos burocratas, que nem sequer se arriscam a entalar os dedos na porta do seu carro.

 

Fanny endireitou-se, mergulhou as duas mãos nos caracóis e puxou-os para trás. Niémans pensou em raízes misturadas com terra. As raízes de uma vertigem chamada “sensualidade “. O polícia fremiu. Formigamentos gelados travavam batalha com o calor do seu sangue.

 

Ajovem perguntou, em voz baixa:

 

- O que vai fazer? Qual é a sua próxima etapa?

 

- Continuar a procurar. E esperar.

 

- Esperar o quê? - repetiu ela, de novo agressiva. - Uma próxima vítima?

 

Niémans levantou-se, ignorando esta provocação.

 

- Espero que o corpo desça da montanha. O assassino marcara encontro connosco. Ele pusera no primeiro cadáver um indício que me permitiu subir até ao glaciar. julgo que introduziu um segundo indício no novo corpo, que nos conduzirá ao terceiro... E assim sucessivamente. É uma espécie de jogo, no qual devemos perder de modo invariável.

 

Fanny levantou-se por seu turno e pegou na sua parka, que secava na outra extremidade do banco.

 

- Tem de me conceder uma entrevista.

 

- De que está a falar?

 

-Sou redactora-chefe do jornal da faculdade, Tempo. Niémans sentiu os nervos retesarem-se sob a pele.

 

- Não me diga que...

 

- Nada receie, estou-me nas tintas para estejornal. E, sem querer entristecê-lo, ao ritmo a que se dão os acontecimentos, não tarda muito que todos os meios de comunicação social do país apareçam aqui. Terá então de se haver com jornalistas muito mais tenazes do que eu.

 

O comissário varreu esta eventualidade com um gesto.

- Onde mora? - indagou subitamente.

 

- Na faculdade.

 

- Onde, mais precisamente?

 

- Nas águas-furtadas do edifício central. Tenho um apartamento ao pé dos quartos dos internos.

 

- No sítio onde residem os Caillois?

 

- Exactamente.

 

- O que pensa de Sophie Caillois?

 

O rosto de Fanny mostrou uma expressão admirativa.

 

- É uma moça estranha. Silenciosa. E tremendamente bela. Eram os dois retraídos ao máximo. Não sei como hei-de dizer-lhe... Dava a impressão de possuírem um segredo. Niémans concordou.

 

- Penso tal e qual como você. O móbil dos assassinos talvez resida nesse segredo. Se não se importa, irei vê-la logo à noite.

 

- Ainda quer engatar-me? O comissário assentiu:

 

- Mais do que nunca. E reservo-lhe as primeiras das minhas informações para o seujornaleco. - Volto a dizer-lhe que me estou marimbando para esse jornal. Sou incorruptível.

 

- Até logo - lançou-lhe ele por cima do ombro, dando meia volta.

 

Uma HORA mais tarde, o corpo da segunda vítima ainda não estava solto dos gelos. Niémans impacientava-se. Acabava de escutar o testemunho lacónico da mãe de Filipe Sertys, uma mulher já idosa e de sotaque tortuoso. O filho, na véspera, abalara como todas as noites, cerca das vinte e uma horas, no seu automóvel

- um Lada em segunda mão, que acabava de comprar. Filipe trabalhava à noite no CHRU de Guernon e iniciava o seu serviço às vinte e duas horas. A mulher só principiara a inquietar-se no dia seguinte de manhã, quando descobrira o carro na garagem, mas não Filipe no seu quarto. Significava isto que ele voltara e tornara a sair. Mas não era a única surpresa que esperava a mãe: ao telefonar para o hospital, soubera que Sertys tinha prevenido que não iria fazer o turno da noite. Por conseguinte, fora a outro sítio, depois regressara e partira a pé. O que significava isto? A mulher, assustada, sacudia a manga de Niémans. Onde estava o seu rapaz? Segundo dizia, o facto era muito inquietante: o filho não tinha namorada, nunca saía e dormia sempre “em casa”.

 

O comissário anotara todos estes esclarecimentos sem entusiasmo. E no entanto, se Sertys era realmente o prisioneiro dos gelos, tais indicações permitiriam definir o eventual momento do crime. O homicida surpreendera o jovem nas últimas horas da noite, matara-o, decerto também o mutilara, e depois transportara-o para o círculo de Vallernes. Fora o frio da alvorada nascente que fechara as paredes de gelo sobre a vítima. Mas tudo isto era apenas uma hipótese.

 

O comissário acompanhara a mulher junto de um gendarme, a fim de que ela prestasse um depoimento pormenorizado. Quanto a si, com pasta de cartão debaixo do braço, decidira voltar ao seu antro, à pequena sala de TP da faculdade.

 

Chegado aqui, mudou de roupa, envergou um dos seus fatos e depois, sozinho no gabinete, espalhou sobre uma mesa os diferentes documentos que possuía. Entregou-se logo a um estudo comparado de Rémy Caillois e Filipe Sertys, tentanto estabelecer um laço entre estas duas vítimas eventuais.

 

No capítulo dos pontos comuns, só reuniu um escasso número de elementos. Os dois homens andavam ambos pelos vinte e cinco anos. Eram muito altos, delgados, e tinham um rosto de feições simultaneamente regulares e atormentadas, encimado por um corte à escovinha. Eram ambos órfãos de pai: Filipe Sertys vira o seu morrer dois anos antes, com um cancro no fígado. Só Rémy Caillois perdera também a mãe, falecida quando ele fizera oito anos. último ponto comum: os dois jovens exerciam a profissão paterna - bibliotecário no caso de Caillois, auxiliar de enfermagem no de Sertys.

 

No capítulo das diferenças, ao invés, os factos abundavam. Caillois e Sertys não haviam frequentado os mesmos estabelecimentos escolares. Não tinham crescido nos mesmos bairros nem pertenciam à mesma classe social. Oriundo de um meio modesto, Rémy Caillois evoluíra numa família de intelectuais e criara-se no regaço da universidade. Filipe Sertys, filho de um obscuro funcionário da Saúde, começara a trabalhar aos quinze anos na esteira do pai, ingressando no mesmo hospital.

 

Era quase analfabeto e ainda vivia no casebre familiar, nos confins de Guernon.

 

Rémy Caillois passava a vida no meio dos livros, Filipe Sertys ia de noite para o hospital. O segundo não parecia ter qualquer hobby, a não ser o de ficar encafuado nesses corredores que fediam a assepsia ou o de se distrair com jogos de vídeo, aos fins de tarde, na cervejaria- situada defronte do CHRU. Caillois fora dispensado do serviço militar. Sertys fizera a tropa na infantaria. Um era casado, o outro solteiro. Um apreciava a marcha e a montanha. O outro parecia nunca ter saído da sua terriola. Um era esquizofrénico e sem dúvida violento. O outro, na opinião de toda a gente, era “doce como um anjo”.

 

Tinha que se render à evidência: o único traço comum aos dois homens era o seu físico. Essa parecença que os unia, estampada nos seus rostos afilados, nos cortes à escovinha e nas suas silhuetas esguias. Como Barnes declarara, o assassino escolhera manifestamente as duas presas devido a aparência exterior.

 

Niémans admitiu, por instantes, um crime sexual: o homicida seria um homossexual recalcado, atraído por este tipo de mancebos. O comissário pôs a ideia de lado, e de resto o médico legista fora categórico: “Não é o mesmo universo. Nem por sombras”. O doutor distinguira, através dos ferimentos e das mutilações do primeiro corpo, uma frieza, uma crueldade, uma aplicação que nada tinha a ver com o desvario de um desejo perverso. Por outro lado, nem um só vestígio de sevícias sexuais havia sido verificado no cadáver.

 

Então o quê?

 

A loucura do assassino talvez fosse de outra espécie. De qualquer modo, a semelhança entre as vítimas presumidas e o início de uma série - dois homicídios em dois dias - fundamentavam a tese do maníaco que se aprestava a matar mais, possuído por uma demência vulcânica. Havia ainda outros argumentos a favor desta suspeita: o indício deposto no primeiro corpo, que conduzira ao segundo, a posição de feto, a

mutilação dos olhos e essa vontade de colocar os cadáveres em lugares selvagens e teatrais: a falésia sobranceira ao rio, a prisão transparente dos gelos...

 

E, no entanto, Niémans continuava a não aderir a esta tese. Antes de mais, por causa da sua experiência quotidiana de polícia: embora os serial killers, importados dos Estados Unidos, se tivessem apoderado da literatura e do cinema universais, esta tendência atroz nunca se afirmara realmente em França. Em vinte anos de carreira, Niémans perseguira pedófilos que haviam descambado no homicídio por ocasião de uma crise, violadores que tinham morto por excesso de brutalidade, sadomasoquistas cujosjogos cruéis haviam derrapado, mas nunca, no sentido estrito do termo, um assassino em série que declinasse uma lista lívida de homicídios sem móbil nem indício. Não era uma especialidade francesa. O comissário não se interessava por analisar um tal fenômeno, mas os factos estavam bem presentes: os últimos assassinos reincidentes franceses chamavam-se Landru ou Doutor Petiot e exalavam um forte cheiro a pequeno-burguês sequioso de surripianços ou de magras heranças. Em nada comparáveis à moderna vaga americana, aos monstros sanguinários que amedrontavam os Estados Unidos.

 

O comissário observou de novo as fotografias do jovem Filipe Sertys e em seguida as de Rémy Caillois, espalhadas sobre a mesa de estudante. Escaparam-se igualmente da pasta de cartão as imagens do primeiro cadáver. Um aguilhão de terror abrasou a sua consciência: não podia ficar assim, de braços caídos. No próprio instante em que olhava para aquelas polaróides, talvez um terceiro homem padecesse as piores torturas. Quem sabe se não haveria órbitas trituradas a escalpelo, olhos arrancados por mãos enluvadas em plástico...

 

Eram dezanove horas. Anoitecia. Niémans levantou-se e apagou o néon da sala. Decidiu-se por um mergulho em profundidade na existência de Filipe Sertys. Talvez encontrasse alguma coisa. Um indício. Um sinal.

 

Ou simplesmente outro ponto comum entre as duas vítimas.

 

Phillippe Sertys e a mãe viviam numa pequena moradia no exterior da cidade, não longe de um bloco de prédios escalavrados, ao longo de uma rua deserta. Um telhado acastanhado poligonal, uma fachada branca e suja, cortinas de renda amarelecidas que enquadravam a obscuridade interior como um sorriso cariado. Niémans sabia que a velhota ainda prestava o seu depoimento na brigada, e nenhuma luz brilhava dentro de casa. No entanto, tocou, a fim de não correr risco algum.

 

Não houve resposta.

 

Deu a volta à vivenda. O vento soprava com violência. Um vento gelado, portador das primícias do Inverno. Uma pequena garagem confinava com o casebre, do lado esquerdo. Deitou um olhar e avistou um Lada enlameado, que já fora novo há muito tempo. Retomou o caminho. Uns poucos metros quadrados de relva rasa estendiam-se atrás do edifício: o jardim.

 

Olhou outra vez em redor, à procura de testemunhas indiscretas. Ninguém. Subiu os três degraus e examinou a fechadura. Um modelo clássico, dos mais baratos. Forçou a porta sem dificuldade, limpou os pés no capacho e penetrou na casa da vítima presumida.

 

Após um vestíbulo, chegou a uma sala acanhada e acendeu a sua lanterna de bolso. No foco branco surgiram uma alcatifa esverdeada, coberta de tapetes escuros, uma poltrona-cama, metida por baixo de espingardas de caça suspensas, móveis mal condizentes, bugigangas rústicas e feiosas. Experimentou um sentimento de conforto bafiento, de quotidiano cioso.

 

Calçou luvas de látex e espiolhou com precaução as gavetas. Não encontrou nada de especial. Talheres em casquinha de prata, lenços bordados, papéis pessoais: folhas de impostos, formulários da Segurança Social... Consultou rapidamente os documentos, depois procedeu a uma breve inspecção de outros pormenores. Em vão. Era a sala de uma família sem história.

 

Subiu ao piso superior.

 

Identificou sem custo o quarto de Filipe Sertys. Gravuras de animais nas paredes, magazines ilustrados empilhados numa arca, programas de televisão: tudo traduzia aqui a miséria intelectual, no limite da debilidade mental. Iniciou uma busca mais esmiuçada. Nada encontrou, excepto algumas minudências que traíam a vida totalmente nocturna de Sertys. Lanternas de todos os géneros, de todas as potências, alinhavam-se numa prateleira - como se o homem tivesse querido recriar luzes diferentes para cada estação. Reparou também nas portadas reforçadas, compactas e sem abertura, para se proteger da luz diurna ou não revelar os seus próprios momentos de vigília. Por fim, descobriu máscaras, como as utilizadas nos aviões a fim de servirem de defesa contra a mínima claridade. Ou Sertys tinha o sono leve, ou possuía uma natureza de vampiro.

 

Niémans ainda soergueu os cobertores, os lençóis, o enxergão.

 

Enfiou os dedos sob o tapete, apalpou o papel pintado. Nada deslindou. Sobretudo, não havia o mais pequeno rastro de uma relação feminina.

 

Deitou um olhar ao quarto da mãe, sem se atardar muito. A atmosfera daquela casa começava a suscitar-lhe um negrume sem quebra. Desceu ao rés-do-chão e inspeccionou rapidamente a cozinha, a casa de banho, a cave. Em pura perda.

 

Lá fora, o vento continuava a bater, sacudindo ligeiramente as vidraças.

 

Apagou a sua lanterna e percorreu-o um arrepio agradável, inesperado. Um sentimento de intrusão silenciosa, de refúgio secreto.

 

Reflectiu. Não podia enganar-se a tal ponto. Devia desencantar aqui um elemento, um sinal, qualquer que ele fosse. À medida que parecia transviar-se, persuadia-se, pelo contrário, de que tinha razão, de que existia uma verdade a apurar, um laço entre Caillois e Sertys.

 

O comissário teve então outra ideia.

 

O vestiário do hospital diluía cores de chumbo. As correntezas de armários sucediam-se numa posição de sentido precária e desabrida. Estava tudo deserto. Niémans avançou sem ruído. Leu os nomes nas pequenas placas metálicas e descobriu o de Filipe Sertys.

 

Calçou de novo as luvas e manipulou o cadeado. Uma mancheia de recordações atravessou-lhe o espírito: o tempo das expedições nocturnas, dos golpes de mão embuçados com as equipas do Antigang. Não experimentava a mínima nostalgia dessa época. Niémans gostava acima de tudo de penetrar nos espaços, de dominar as horas cruciais da noite, mas como um autêntico intruso: solitário, mudo, clandestino.

 

Uns pequenos estalidos e já a porta se abria. Batas. Guloseimas. Revistas velhas. E ainda lanternas e máscaras. Niémans tacteou as paredes, observou os recantos, tendo o cuidado de não fazer ressoar o metal. Nada. Verificou que o armário não possuía um tecto falso nem um alçapão.

 

Ajoelhou-se e praguejou. Era óbvio que se obstinava numa pista falsa. Não havia nada a desvendar na vida deste rapazola. Aliás, nem sequer tinha a certeza de que o cadáver congelado, no alto da montanha, era de facto o do celibatário. Filipe Sertys talvez fosse reaparecer daí a poucos dias, após a sua primeira fuga nos braços de uma capitosa enfermeira.

 

Não pôde deixar de sorrir diante da sua própria teimosia. Decidiu eclipsar-se antes que o surpreendessem naquela posição. Foi ao levantar-se que distinguiu, sob o armário, um taco de linóleo levemente descolado. Introduziu a mão e apalpou o pedaço de material sintético. Com dois dedos, soergueu o taco. Sentiu as asperezas do cimento, o contacto de um objecto. Ouviu um tinido, avançou os dedos um pouco mais e depois fechou o punho. Quando o reabriu, tinha na mão uma chave e a sua argola, que haviam sido cuidadosamente escondidas sob o armário.

 

Ao longo da haste, Niémans reconheceu os entalhes característicos, destinados a abrir uma fechadura blindada.

 

Se Sertys possuía um segredo, estava situado atrás da porta que esta chave abria.

 

No edifício da câmara, apanhou in extremis o empregado do cadastro, que se aprestava a partir. Ao ouvir o nome de “Sertys”, o homem não teve o mais pequeno pestanejo. Logo, ninguém estava ao corrente do caso, nem da identidade presumida da nova vítima. O funcionário, já de casacão vestido, efectuou a contragosto a pesquisa pedida pelo oficial de polícia.

 

Enquanto esperava, Niémans repetiu uma vez mais para si mesmo a hipótese que o conduzira ali, como se quisesse aumentar as probabilidades de êxito. Filipe Sertys dissimulara uma chave de fechadura blindada sob o armário do seu vestiário. Ora, a porta da sua casa não dispunha de qualquer reforço. Esta chave podia abrir uma infinidade de portas, de cacifos, de escaninhos, desígnadamente no hospital. Mas por que motivo a esconderia? Uma intuição levara Niémans a vir aqui, ao cadastro, a fim de verificar se Philíppe Sertys não possuía outra morada, uma choça, uma granja, o que quer que fosse, mas cujas estruturas protegidas estavam acantonadas numa outra vida.

 

Sempre a rabujar, o empregado meteu sob a divisória do balcão uma caixa de cartão endurecido. Do lado de fora, uma pequena guarnição de cobre emoldurava um rótulo marcado a tinta: “Sertys”. Refreando a sua excitação, Niémans abriu a caixa e folheou os documentos oficiais, as escrituras públicas, a planta do terreno. Atentou nos documentos, observou os números das parcelas, situou-as no mapa da região anexo à matriz. Leu e releu o endereço da propriedade.

 

Assim, era tão simples como isto.

 

Filipe Sertys e mãe alugavam uma moradia, mas ojovem possuía em seu próprio nome, herdada do pai, Renê Sertys, uma outra casa.

 

Pelo que respeita à casa, tratava-se de um entreposto solitário situado no sopé do Grand Dornénon, cercado por coníferas ressequidas. Nas paredes do edifício, uma pintura deslavada, coberta de escamas como     a pele de uma iguana, parecia ter amargado cortes de estações.

 

Com prudência, Niémans aproximou-se. janelas defendidas por barras de ferro, tapadas por sacos de cimento. Um pesado portão e, à direita, uma porta blindada. Este depósito poderia abrigar tonéis, cilindros de metal, sacos de materiais. Qualquer coisa de teor industrial. Mas o entreposto pertencia a um auxiliar de enfermagem silencioso, que acabava sem dúvida de ser morto num glaciar etéreo.

 

O polícia começou por dar a volta ao edifício, depois veio postar-se novamente diante da porta reforçada. Enfiou a chave na fechadura. Ouviu o estalido ténue das linguetas e em seguida o ruído das compridas trancas que saíam do seu encaixe metálico.

 

O batente girou e Niémans respirou fundo antes de entrar. No interior, o luar azulado da noite escoava-se como que de má vontade através das exíguas frinchas deixadas pelos sacos encostados às grades dasjanelas. Era um espaço de várias centenas de metros quadrados, sombrio, vetusto, estriado pelas sombras transversais das estruturas metálicas do telhado. Altas colunas elevavam-se até às vigas do tecto.

 

Niémans avançou, de lanterna acesa. Esta sala achava-se completamente vazia. Ou melhor, tinham-na esvaziado há muito pouco tempo. Ainda se viam partículas a mactilar o chão, múltiplos sulcos gravados no cimento térreo que constituíam decerto o rastro de pesados móveis puxados na direcção da porta. Pairava aqui uma atmosfera singular, como um eco de pânico, de precipitação.

 

O comissário observou, fungou, tacteou. Era de facto um lugar industrial, mas de uma enorme limpeza. Eflúvios assepsiados circulavam no espaço. Também se respirava um odor bravio, um cheiro animal.

 

Continuou a avançar. Caminhava agora sobre poeira esbranquiçada, farpas gredosas. Ajoelhou-se e descobriu minúsculas malhas metálicas. Pensou em amostras de gradeamento ou em detritos de filtros, de ventilação. Meteu vários destes extractos em invólucros & plástico, depois recolheu o pó e as farpas, sem reconhecer o seu cheiro insípido, neutro. Levedura. Ou gesso. De modo nenhum era droga,

 

À margem desta última descoberta, reparou em vários sinais que demonstravam ter-se ali mantido um grande calor durante anos. Tomadas de corrente, instaladas nos quatro cantos do espaço, podiam haver alimentado radiadores eléctricos, cujos lugares estavam marcados por auréolas negras nas paredes.

 

Finalmente, concluiu por várias hipóteses contraditórias. Pensou numa criação de animais que exigisse altas temperaturas. Supôs também que podiam ter-se desenrolado ali, em condições estéreis, certas experiências de laboratório sugeridas pelo forte odor clínico. Ele nada sabia, mas sentia um medo profundo. Mais surdo e mais violento que esse outro que experimentara no glaciar.

 

Possuía agora duas certezas. A primeira era que Filipe Sertys, homem apagado, se entregava aqui a uma actividade oculta. A segunda era que o moço fora obrigado, mesmo antes de morrer, a esvaziar à pressa as instalações.

 

Niémans endireitou-se e esquadrinhou com atenção as paredes, fazendo incidir sobre elas a sua lanterna. Talvez houvesse aqui nichos ou esconderijos contendo algum objecto esquecido por Sertys. Tacteou, bateu nos tabiques, escutou as ressonâncias, buscou diferenças de matérias. Estas paredes estavam revestidas de folhas de papel kraft, sob as quais havia lã de vidro comprimida. Uma vez mais, a procura de calor.

 

Apalpou assim dois lanços inteiros, até notar, a um metro e oitenta de altura, um afundamento rectangular que não quadrava com a superfície abaulada do conjunto. Enterrou o indicador ao longo do interstício e apercebeu-se de que tinham colmatado esta ranhura. Rasgou mais papel e descobriu charneiras. Enfiando as unhas na fisga central, conseguiu entreabrir o esconso. Prateleiras. Pó. Bolor.

 

Tacteou as tábuas e sentiu, numa delas, algo de chato, revestido de uma película pegajosa: era um pequeno caderno com lombada em espiral.

 

Um afogueamento sob a sua carne. Folheou-o logo. Todas as páginas estavam cobertas de algarismos minúsculos, incompreensíveis. Mas uma das páginas ostentava uma larga inscrição oblíqua acima dos algarismos. Essas letras pareciam escritas com sangue. O traço era de tamanha violência que as palavras tinham furado o papel aqui e além. Niémans pensou numa cólera frenética, num géiser ao rubro. Como se o autor destas linhas não tivesse podido coibir-se de bolçar a sua loucura em letras escarlates. Leu.

 

SOMOS OS SENHORES, SOMOS OS ESCRAVOS

ESTAMOS EM TODA APARTE, ESTAMOS EM PARTE NENHUMA

SOMOS OS AGRIMENSORES

DOMINAMOS OS RIOS DE PÚRPURA

 

Apoiou-se contra a parede, entre os retalhos de papel castanho e os filamentos de lã. Apagou a lanterna de bolso, mas uma luz encandeava a sua consciência. Não encontrara um laço entre Rémy Caillois e Filipe Sertys. Descobrira algo melhor: uma sombra, um segredo no cerne da discreta existência do jovem enfermeiro-ajudante. O que significavam os algarismos e as sentenças absconsas do caderninho? A que se dedicava Sertys no seu entreposto clandestino?

 

Niémans fez brevemente o ponto sobre o seu inquérito, como quem reúne as primeiras palhas crepitantes de uma fogueira sob um vento gelado. Rémy Caillois era um esquizofrénico agudo, um ser violento que perpetrara - talvez - um acto culposo no passado. Filipe Sertys, esse, levava a cabo actividades clandestinas numa oficina sinistra, actividades que tentara desmantelar poucos dias antes da sua morte.

 

O comissário ainda não possuía qualquer prova tangível, qualquer precisão, mas tornava-se evidente que nem Caillois nem Sertys eram tão cristalinos quanto a sua existência oficial deixava presumir.

 

Nem o bibliotecário nem o enfermeiro-ajudante constituíam vítimas inocentes.

 

Havia perto de duas horas que Karim guiava com os nervos num feixe.

 

Pensava no rosto. O rosto da criança. Por vezes, imaginava uma espécie de monstro. Um semblante perfeitamente liso, sem nariz nem maçãs, esfuracado por dois globos brancos e reluzentes. Outras vezes, pelo contrário, concebia um garoto vulgar, de feições doces, esbatidas, anódinas. Uma criança tão vulgar que se perdia em todas as memórias. Outras vezes, ainda, via feições impossíveis. Traços ondulantes, instáveis, que reflectiam a face de quem os olhava. Traços cintilantes que reenviavam a imagem de cada rosto, denunciando o segredo das almas sob a hipocrisia dos sorrisos. Karim vibrava. Estava definitivamente empolgado por esta certeza: a chave da verdade era o rosto. Exclusivamente. Irreversivelmente.

 

Enveredara pela auto-estrada em Agen, a caminho de Toulouse. Seguira depois ao longo do canal do Midi, deixara para trás Carcassona e Narbona. O seu automóvel era uma maldição. Uma espécie de tosse de cilindros e de peças tintinantes, montados em conjunto. Nunca ia além dos cento e trinta quilómetros à hora, mesmo com o vento pelas costas. Não cessava de matutar. Rodava agora na direcção de Sète, pela beira do mar, e aproximava-se do convento de São João da Cruz. A paisagem cinza e branda do litoral incutia-lhe uma calma difusa. Com o pé no prego, rememorou desta feita os elementos racionais que coligira.

 

As visitas ao fotógrafo e ao padre tinham alterado as perspectivas do seu inquérito. Karim Percebera subitamente que os documentos que faltavam na escola Jeanjaurès talvez houvessem sido roubados muito antes do arrombamento da noite anterior. já na estrada, telefonara outra vez à directora. À pergunta: “É possível que todos esses documentos tenham desaparecido desde 1982 e que ninguém se haja apercebido durante os anos decorridos?”, a directora respondera: “Sim”. À pergunta: <É possível que só hoje se tenha descoberto esse desaparecimento por causa do arrombamento?”, respondera: “Sim”. À pergunta: “Já ouviu falar de uma religiosa que teria procurado arranjar as fotografias escolares dessa época?”, ela respondera: “Não”.

 

E no entanto... Antes de partir, Karim efectuara uma última verificação em Sarzac. Graças aos estados civis - datas de nascimento e endereços -, contactara por telefone com vários alunos das classes fatídicas: CM1 e CM2, 1981 e 1982. Nenhum deles possuía já os retratos escolares. Por vezes, um incêndio deflagrara no compartimento onde estavam as fotografias. Outras vezes, ocorrera um furto: os ladrões só tinham bifado essas poucas imagens. Outras vezes, ainda, mas mais raramente, havia quem se lembrasse da freira: viera buscar os retratos. Era noite e ninguém poderia reconhecê-la. Todos estes acontecimentos tinham sobrevindo durante o mesmo período: julho de 1982. Um mês antes da morte do pequeno Jude.

 

Por volta das dezoito e trinta, quando seguia ao longo da bacia de Thau, Karim avistou uma cabina telefónica e marcou o número de Crozier. Investigava agora fora de normas. Obscuramente, este sentimento invadia-o. Cortava as amarras. O comissário berrou:

 

- Espero que venhas a caminho, Karim. Combinámos até às dezoito horas.

 

- Comissário, estou a seguir uma pista.

 

- Que pista?

 

- Deixe-me avançar. Cada passo confirma a minha intuição. Tem novos elementos a respeito do cemitério?

 

- Actuas sozinho e ainda queres que eu...

- Responda-me. Encontrou o carro? Crozier suspirou.

 

- Identificámos os proprietários de sete Lada, dois Trabant e um Skoda nas regiões do Lot, Lot-e-Garona, Dordonha, Aveyron e Vaucluse. Nenhum deles é o carro que nos interessa.

 

-já verificaram onde os condutores estiveram nas últimas horas?

 

- Não, mas encontrámos partículas de pneus perto do cemitério. Trata-se de pneus com carbono, de má qualidade. O proprietário da nossa caranguejola anda com as borrachas de origem. Todos os carros que identificámos usam Michelin ou Goodyear. É a primeira coisa que os compradores mudam neste tipo de veículos. Ainda estamos a investigar. Noutras regiões.

- É tudo?

 

- Sim, por enquanto. Diz lá tu... sou todo ouvidos.

- Vou avançando às avessas.

 

- Às avessas?

 

- Quanto menos encontro, mais tenho a certeza de que estou no bom caminho. Os assaltos desta noite dissimulam um caso muito mais grave, comissário.

 

- De que gênero?

 

- Não sei. Qualquer coisa referente a uma criança. O seu rapto ou o seu assassínio. Não sei bem. Torno a telefonar-lhe mais tarde.

 

Sem dar tempo a que o comissário fizesse nova pergunta, Karim desligou.

 

Nas cercanias de Sète, atravessou uma aldeola, defronte do mar. As águas do golfo do Lyon misturavam-se aí com as terras, num imenso pântano indistinto, orlado de canaviais. Abrandou, ladeando um porto estranho onde nenhum barco era visível e só umas compridas redes de pesca enegrecidas se erguiam entre as casas de portadas cerradas.

 

Estava tudo deserto.

 

Um cheiro pesado enchia a atmosfera, não um cheiro marítimo, mas antes o de um adubo, carregado de ácidos e excrementos.

 

Karim aproximava-se do seu destino, Placas de sinalização indicavam a direcção do convento. O sol declinante alumiava charcos salinos, finos como facas, à superfície dos pântanos. Ao cabo de cinco quilómetros, avistou uma nova placa que apontava para um caminho de betume que subia à direita. Continuou a andar, meteu por outros ziguezagues, outras curvas, marginados por caniços ejuncos desgrenhados.

 

Por fim, perfilaram-se as linhas do claustro. Karim ficou estupefacto. Entre as dunas escuras e as ervas daninhas, elevavam-se duas igrejas monumentais. Uma delas arvorava torres delicadamente cinzeladas, terminadas em zimbórios estriados que faziam lembrar uns bolos gigantescos. A outra era vermelha e maciça, tecida de pequenas pedras, encimada por uma ampla torre de tecto chato como uma roda. Duas verdadeiras basílicas que se aparentavam a destroços esquecidos no ar marinho. O argelino não conseguia perceber a presença delas num sítio tão deserto, tão desesperado.

 

Ao acercar-se, descobriu um terceiro edifício que se estirava entre as paróquias. Uma construção de um único andar, com janelas em série, estreitas e austeras. Era sem dúvida o próprio mosteiro, que parecia adelgaçar as suas pedras como se quisesse evitar todo o contacto com os edifícios sagrados.

 

Karim estacionou. Pensou que nunca se vira confrontado de tão perto com a religião - nem tantas vezes, em tão pouco tempo. Esta reflexão suscitou nele um raciocínio quejá ouvira. Quando andava na escola de inspectores, em Carmes-ÉcIuse, alguns comissários vinham, a espaços, contar a sua experiência. Um deles marcara profundamente Karim. Um sujeito alto, de cabelo cortado à escovinha e uns óculos pequenos com aros metálicos. O seu discurso fascinara-o. O homem explicara que o crime se reflectia sempre nos espíritos das testemunhas e dos familiares. Que era sempre necessário considerá-los como espelhos, que o assassino se escondia num dos ângulos mortos.

 

O homem tinha um aspecto de louco, mas a assistência ficara subjugada. Também falara de estruturas atómicas. Na sua opinião, quando alguns elementos, pormenores, mesmo anódinos, ressurgiam regularmente num inquérito, convinha sempre retê-los porque encerravam com toda a certeza um significado profundo. Cada crime era um núcleo atómico e os elementos recorrentes eram os seus electrões, oscilando à volta dele e desenhando uma verdade subliminar. Karim sorriu. O filante de óculos de metal tinha razão. Esta teoria poderia aplicar-se ao seu próprio inquérito. A religião tornara-se um elemento recorrente. Desde essa manhã, delineava-se sem dúvida aqui uma verdade que lhe cabia captar.

 

Encaminhou-se para um pequeno pórtico de pedra e tocou à porta. Ao fim de alguns segundos, um sorriso assomou na entreabertura. Era um sorriso antigo, debruado a branco e preto. Antes de Karim poder mover os lábios, a freira desviou-se para o lado e disse-lhe: - Entre, meu filho.

 

O chui penetrou num vestíbulo muito sóbrio. Só uma cruz de madeira se recortava numa das paredes brancas, por cima de um quadro de obscuros revérberos. À direita, ao longo de um corredor, distinguiu a claridade alvadia de umas portas abertas. Por uma fisga mais próxima, enxergou correntezas de cadeiras envernizadas, um chão revestido de linóleo claro - a aparência nua e impecável de um lugar de prece.

 

- Siga-me - acrescentou a religiosa. - Estávamos ajantar.

- A esta hora? - admirou-se Karim.

 

A freira reprimiu um risinho. Tinha a malícia de uma rapariga.

 

- Não conhece o horário das carmelitas? Todos os dias, devemos retomar a oração às dezanove horas.

 

Karim seguiu a silhueta. As sombras de ambos reflectiam-se no linóleo como nas águas de um lago. Chegaram a uma grande sala onde umas trinta freirasjantavam. por entre tagarelices, sob uma luz crua. As fisionomias e os véus tinham uma secura ligeiramente cartonada, uma secura de hóstia. Houve alguns olhares dirigidos ao polícia, alguns sorrisos, mas nenhuma conversa se interrompeu. Karim distinguiu várias línguas diferentes: francês, inglês, também uma língua eslava, talvez polaco. Seguindo o conselho da freira, sentou-se a uma ponta da mesa, diante de um prato covo cheio de uma sopa com grumos de cor ocre.

 

- Coma, meu filho. Um rapaz tão possante como você... “Meu filho”, sempre... Mas Karim não tinha ânimo para repreender a freira. Baixou os olhos sobre o prato e pensou de si para consigo que não comia desde a véspera. Tragou a sopa em poucas colheradas, depois devorou várias fatias de pão e queijo. Cada alimento possuía o gosto íntimo e singular das iguarias caseiras, confeccionadas com os meios de bordo. Serviu-se de água, num copo de alumínio, e em seguida ergueu o olhar: a freira observava-o, trocando alguns comentários com as companheiras. Murmurou:

 

- Estávamos a falar do seu penteado...

- E então?

 

A freira emitiu um risinho.

- Como faz essas tranças?

 

- São naturais - respondeu ele. - O cabelo crespo forma-se espontaneamente em tranças, se o deixarmos crescer. NaJamaica, chama-se a isto dreadIochs. Os homens nunca cortam o cabelo nem se barbeiam. É contrário à religião deles, como os rabinos. Quando os dreadlocks estão suficientemente compridos, enchem-nos de terra a fim de os tornarem mais pesados e...

 

Após estas palavras, Karim calou-se. O objectivo da visita acabava de voltar em força à sua memória. Entreabriu os lábios para falar do inquérito, mas foi a freira que perguntou, num tom grave:

 

- Que deseja, meu filho? Por que traz uma pistola sob o casaco?

 

- Sou da polícia. Preciso de ouvir a irmã Andrée. Urgentemente.

 

As religiosas continuavam a conversar, mas o tenente compreendeu que elas tinham ouvido o seu pedido. A mulher declarou:

 

- Vamos chamá-la. - Fez um sinal discreto a uma das suas vizinhas de mesa, depois dirigiu-se a Karim: - Venha comigo. O chui inclinou-se diante das comensais, num gesto de

 

adeus e de agradecimento. Um salteador de estradas saudando as que lhe haviam oferecido hospitalidade. Meteram de novo pelo corredor refulgente. Os seus passos não produziam o mínimo ruído. De repente, a religiosa virou-se.

 

- Preveniram-no, não foi?

- De quê?

 

- Poderá falar-lhe, mas não poderá vê-la. Poderá escutá-la, mas não poderá aproximar-se dela.

 

Karim mirava as bordas do véu, arqueadas como uma abóbada de sombra. Pensou numa nave, numa cúpula iluminada de azul, em sinos rasgando o céu de Roma, nesse gênero de estereótipos que nos acodem ao espírito quando queremos pôr um rosto no Deus dos católicos.

 

- As trevas - ciciou a mulher. - A irmã Andrée fez voto de trevas. Há catorze anos que não a vemos. já deve estar cega. lá fora, os últimos raios de sol desapareciam por detrás dos edifícios maciços. Laivos de friagem abatiam-se sobre o pátio deserto. Encaminharam-se para a igreja de altas torres. No flanco direito do edifício, deparou-se-lhes uma nova portinha de madeira. A religiosa rebuscou nas dobras da sua veste. Karim ouviu o tinido de chaves, o batente a raspar a pedra.

 

A freira abandonou-o em frente da porta entreaberta.

 

A escuridão parecia habitada, povoada de odores húmidos, de círios vacilantes, de pedras gastas pelo tempo. Karim deu alguns passos e ergueu os olhos. Não distinguia as alturas da abóbada. Os raros reflexos dos vitrais já estavam corroídos pelo crepúsculo, as chamas das velas pareciam prisioneiras do frio, da esmagadora imensidade da igreja.

 

Passou por uma pia de água benta em forma de concha, deixou para trás confessionários, depois ladeou capelas que pareciam esconder objectos secretos de culto. Reparou num novo candelabro anegriscado que suportava uma quantidade de velas que ardiam em lagos de cera.

 

Estes lugares despertavam nele surdas reminiscências. Apesar das suas origens, apesar da cor da sua pele, o seu inconsciente estava impregnado do credo católico. Recordava-se das quartas-feiras, recatadas do lar, em que as sessões de televisão da tarde eram sempre precedidas pelas aulas de catecismo. O martírio do caminho do Calvário. A benevolência de Cristo. A multiplicação dos pães. Todas essas baboseiras... Sentiu subir dentro de si uma onda de nostalgia e uma estranha ternura pelos seus educadores; censurou-se a si mesmo por experimentar semelhantes sentimentos. Não queria ter recordações nem fraquezas a propósito do seu passado. Era um filho do presente. Um ser do instante. Pelo menos, gostava de se considerar assim.

 

Continuou ao longo das abóbadas. Por detrás dos engradados de madeira, ao fundo dos nichos, discernia tapetes escuros, caliças esbranquiçadas, quadros tecidos de ouro. Um odor a poeira envolvia cada um dos seus passos. De súbito, um ruído grave fê-lo voltar a cabeça. Precisou de alguns segundos para distinguir a sombra na sombra - e largar a coronha do seu Glock, que empunhara instintivamente.

 

Ao fundo de uma capela, a irmã Andrée mantinha-se perfeitamente imóvel.

 

Ela INCLINAVA o rosto e o seu véu dissimulava-lhe inteiramente as feições. Karim compreendeu que não veria esta fisionomia e teve uma iluminação. A freira e o rapazinho talvez partilhassem de um sinal, de uma marca no rosto, que revelava um laço de parentesco. A freira e o rapazinho talvez fossem mãe e filho. Este pensamento aperreou-lhe o espírito, como um tornilho, de tal modo que não ouviu as primeiras palavras da mulher.

 

- O que disse? - tartamudeou ele.

- Perguntei-lhe o que desejava.

 

A voz era grave, mas doce. As crinas de um arco, velando o timbre de um violino.

 

- Irmã, pertenço à polícia. Vim falar-lhe de Jude. O véu escuro não buliu.

 

- Há catorze anos - prosseguiu Karim -, numa pequena cidade chamada Sarzac, roubou ou destruiu todos os retratos que diziam respeito a um menino, Jude Itero. Em Caliors, subornou um fotógrafo. Enganou crianças. Provocou incêndios, cometeu roubos. Tudo isto para apagar um rosto no papel lustroso de algumas fotografias. Porquê?

 

A irmã permanecia imóvel. O seu véu formava uma abóbada de nada.

 

- Executava ordens - pronunciou finalmente.

- Ordens? De quem?

 

- Da mãe do menino.

 

Karim sentiu um fervedouro percorrer-lhe o corpo todo. Sabia que a mulher dizia a verdade. Num ápice, renunciou à sua hipótese freira/ mãe/filho.

 

A religiosa abriu a cancela de madeira que a separava de Karim. Passou diante dele e caminhou num passo firme para as cadeiras de palha. Ajoelhou-se perto de uma coluna, num genuflexório, baixando a nuca. Karim dirigiu-se para a fila superior e sentou-se defronte dela. Aspirou um cheiro a palha entrançada, a cinzas, a incenso.

 

- Pode falar - disse ele, perscrutando a mancha de sombra no sítio do rosto.

 

- Ela veio ver-me num domingo à noite, no mês de junho de 82.

 

-Já a conhecia?

 

- Não. Encontrámo-nos aqui mesmo. Não vi as suas feições. Não me disse como se chamava nem me deu qualquer informação. Declarou-me apenas que precisava de mim. Para uma missão particular... Queria que eu destruísse as fotografias escolares do filho. Queria apagar todos os vestígios do rosto dele.

 

- Que motivo a movia?

- Nenhum. Estava louca.

 

- Por favor. Arranje outra explicação.

 

- Dizia que o filho era perseguido por diabos.

- Diabos?

 

- Exprimia-se assim. Afirmava que eles procuravam o rosto do menino...

 

- Não deu qualquer outra explicação?

 

- Não. Dizia que o filho estava amaldiçoado. Que o seu rosto era uma prova, um testemunho indesmentível que reflectia o malefício dos diabos. Dizia também que ela e o filho tinham ganho dois anos de vantagem sobre a maldição, mas que a desgraça acabava de os atingir, que os diabos rondavam de novo. As suas palavras não faziam o mínimo sentido. Uma louca. Era uma louca.

 

Karim captava cada palavra da irmã Andrée. Não compreendia o que significava aquela história de “prova”, mas uma verdade era clara: os dois anos de trégua eram os passados em Sarzac, no mais estrito anonimato. Donde vinham então esta mãe e o seu filho?

 

- Se o pequeno Jude era realmente perseguido por seres ameaçadores, o que a levou a confiar uma missão secreta a uma religiosa, de quem toda a gente se lembraria?

 

A mulher não respondeu.

 

- Por favor, irmã - sussurrou Karim.

 

- Dizia que tentara tudo para esconder o filho, mas que os diabos eram muito mais fortes. Dizia que só lhe restava exorcizar o rosto.

 

- O quê?

 

- Na opinião dela, devia ser eu a obter as fotografias e, depois, a queimá-las. Esta missão teria o valor de um exorcismo. Libertaria assim o rosto do seu filho.

 

- Irmã, não percebo nada.

 

- Volto a dizer-lhe que a mulher estava louca.

 

- Mas por que recorreu a si? Bolas! Este mosteiro fica a mais de duzentos quilómetros de Sarzac!

 

A freira fez uma nova pausa e em seguida volveu:

- Ela procurara-me. Escolhera-me.

 

- Como é possível?

 

- Nem sempre fui carmelita. Antes de a vocação nascer em mim, era mãe de família. Tive que abandonar o meu marido e um filho pequeno. A mulher pensava que, por tal razão, eu seria sensível ao seu pedido. Tinha razão.

 

Karim continuava a fitar a ansa de sombra. Insistiu:

 

- Não está a dizer-me tudo. Se julgava que a mulher era louca, por que lhe obedeceu? Por que percorreu centenas de quilómetros por causa de umas fotografias? Por que mentiu, roubou, destruiu?

 

- Pensei na criança. Apesar da demência da mulher, apesar do seu discurso absurdo, eu... eu sentia que a criança estava em perigo. E que a única maneira de a ajudar era executar as ordens da mãe. Quanto mais não fosse, para acalmar aquela fúria.

 

Karim disfarçou o seu mal-estar. O formigueiro voltara-lhe em força. Aproximou-se e tomou um tom de voz mais apaziguador.

 

- Fale-me da mãe. Que aspecto tinha, fisicamente?

 

- Era muito alta, muito forte. Media pelo menos um metro e oitenta. De ombros largos. Nunca lhe vi o rosto, mas recordo-me de que andava com uma autêntica grenha preta e ondulada que lhe aureolava a cabeça. Também usava uns óculos de aros grossos. Vestia sempre de negro. Uma espécie de camisola de algodão ou de lã...

 

- E o pai de Jude? Nunca falou nele?

- Não, nunca.

 

Karim deitou a mão ao encosto do genuflexório e debruçou-se ainda mais. Instintivamente, a mulher recuou:

 

- Quantas vezes veio ela? - tornou o polícia.

 

- Quatro ou cinco vezes. Sempre ao domingo. De manhã. Dera-me uma lista de nomes e de moradas - o fotógrafo, as famílias que podiam possuir as fotografias. Durante a semana, eu tratava de arranjar as imagens. Ia a casa das famílias. Mentia. Roubava. Subornei o fotógrafo com o dinheiro que ela me dera...

 

- Ela ficava em seguida com as fotografias?

 

- Não. já lhe disse: queria que fosse eu a queimá-las     ... Quando vinha, riscava simplesmente os nomes na sua lista       ... Quando já não havia mais nomes, eu... senti que ela serenara. Desapareceu, para todo o sempre. Pelo meu lado, soçobrei nas trevas. Escolhi a escuridão, o isolamento. Só o olhar de Deus me é tolerável. Desde essa época, não se passa um único dia sem que eu reze pelo rapazinho. Eu...

 

Calou-se de chofre, parecendo subitamente compreender uma verdade implícita.

 

- Por que veio aqui? Qual o motivo deste inquérito? Meu Deus, jude não...

 

Karim levantou-se. Os odores de incenso faziam-lhe arder a garganta. Percebeu que respirava ruidosamente, de boca aberta. Engoliu saliva, depois lançou um olhar ao vulto da irmã Andrée.

 

- Fez o que devia - disse ele numa voz surda. - Mas não serviu de nada. Um mês mais tarde, o garoto morria. Não sei como. Não sei porquê. Mas a mulher era menos louca do que julga. E o túmulo de jude foi profanado ontem à noite, em Sarzac. Tenho agora quase a certeza de que os culpados deste acto são os diabos que ela temia na época. Essa mulher vivia num pesadelo, irmã. E o pesadelo acaba de despertar.

 

A freira gemeu, cabisbaixa. O seu véu desenhava vertentes de seda preta e branca. Karim prosseguiu, numa voz cada vez mais forte. O seu timbre rouco elevava-se na igreja e ele já não sabia a quem falava: se a ela, a si mesmo, ou ajude.

 

- Sou um chui sem experiência, irmã. Sou um vadio e actuo sozinho. Mas, num certo sentido, os biltres da noite passada não podiam ter caído em piores mãos. - Agadanhou outra vez o genuflexório, - Porque fiz uma promessa ao petiz, está a topar? Porque não venho de lado nenhum e nada nem ninguém poderá travar-me. Corro com as minhas próprias cores, compreende? As minhas próprias cores!

 

Inclinou-se. Sentiu lascas de madeira a estalar sob os dedos.

 

- Agora, chegou a altura de cogitar, irmã. Encontre alguma coisa, seja o que for, capaz de me pôr na pista certa. Tenho de seguir o rastro da mãe de jude.

 

Sempre vergada, a religiosa negava com a cabeça.

- Não sei nada.

 

- Pense bem! Onde posso desencantar essa mulher? Depois de Sarzac, para onde foi? E, antes de tudo, donde vinha ela? Dê-me um pormenor, um indício que me permita continuar o inquérito!

 

A irmã Andrée sofreou os soluços.

 

- Eu... eu creio que ela vinha com ele.

- Com ele?

 

- Com o menino.

- Viu-o?

 

- Não. Ela deixava-o na cidade, perto da estação de caminho de ferro, num parque de atracções. A feira ainda existe, mas nunca tive coragem de ir falar com os feirantes, eu       ... Talvez um deles se lembre do rapazinho... É tudo o que sei   ...

- Obrigado, irmã.

 

Karim abalou em passo de corrida. No vasto adro, os seus sapatos cardados chiaram como sílex. Estacou no meio do ar gelado, hirto como um pára-raios, e sondou o céu. Os seus lábios murmuraram num dilaceramento de angústia:

 

- Livra! Mas onde é que estou?... O que faço aqui?

 

O PARQUE de atracções estirava-se no crepúsculo, ao longo de uma via férrea à saída da cidadezinha deserta. As barracas vertiam em vão as suas luzes e a sua música. Não havia um basbaque nem uma família a quem apetecesse flainar por ali numa segunda-feira à noitinha. Ao longe, o mar sombrio entreabria as suas mandíbulas esbranquiçadas em golpes de vagas pérfidas.

 

Karim abeirou-se. Uma grande roda girava devagar. Os seus raios estavam constelados de pequenas luminárias, metade das quais se acendiam alternadamente como se bruxuleassem sob o efeito de um curto-circuito. Os carrinhos de feira embatiam uns nos outros às cegas; atracções uniformes aguardavam sob os toldos fustigados pelo vento: tômbolas, jogos de pontaria, espectáculos miseráveis... Entre a igreja ou esta feira, não saberia dizer o que o deprimia mais.

 

Sem convicção, começou a interrogar os feirantes. Evocou um miúdo chamado Jude Itero, murmurou a data: julho de

  1. A maior parte das vezes, os rostos não pestanejaram mais que umas múmias engelhadas. De quando em quando, obtinha momices negativas. Ou então observações incrédulas: “Há catorze anos? Não quer mais nada?”. Karim sentia-se invadido por um profundo desânimo. Quem poderia recordar-se? Quantos domingos viera realmente Jude aqui? Três, quatro, cinco, na melhor das hipóteses?

 

Por mera perseverança, deu a volta completa ao parque, persuadindo-se de que o garoto talvez tivesse preferido uma determinada atracção, ou simpatizado com um feirante...

 

No entanto, terminou a giravolta sem o mais pequeno resultado.

 

Contemplou a beira-mar. As vagas ainda revolviam as suas línguas de espuma em torno dos pilares do dique. Pensou num mar de alcatrão. Parecia-lhe que chegara a uma terra de ninguém onde já nada havia a respigar. Acudiu-lhe uma recordação de criança: a cidade mágica de Pinóquio, onde os fedelhos maus eram apanhados numa armadilha, engodados por atracções fabulosas, antes de serem transformados em burros.

 

Em que se transformara Jude?

 

Aprestava-se a regressar ao carro quando reparou num pequeno circo ao fundo de um baldio.

 

Disse com os seus botões que devia apostar tudo em nome da investigação que efectuava. Recomeçou a andar, de ombros caídos, e alcançou a cúpula de tela. Não se tratava afinal de um circo, mas de uma tenda precária que abrigava porventura um punhado de atracções de feira. Por cima da entrada mal segura, uma bandeirola de plástico anunciava, em letras espiraladas: “Os Braseiros”. Um autêntico programa. Com dois dedos, afastou o pano que fazia as vezes de porta.

 

Ficou parado ante o espectáculo ofuscante que o esperava no interior. Chamas. Resfôlegos abafados. Odores de gasolina trazidos pelas correntes de ar. Por breves instantes, pensou numa máquina com excesso de voltagem, composta de fogo e de músculos, de fogachos e de bustos humanos. Depois compreendeu que estava simplesmente a ver, sob lâmpadas anémicas, uma espécie de bailado de expelidores de fogo. Homens de torso nu, luzidios de suor e de gasolina, que cuspiam a sua saliva inflamável sobre tochas irascíveis. Os homens deslocavam-se em arco de círculo, formando uma ronda maléfica. Novo sorvo de gasolina. Novas chamas. Alguns dos homens curvavam-se, outros saltavam por cima dos seus dorsos sem parar de expelir o deslumbrante sortilégio.

 

Lembrou-se dos diabos que perseguiam a mãe de Jude. Tudo, naquele longo pesadelo, alimentava uma paridade de atmosferas, uma mesma inquietude venenosa. “Cada crime é um núcleo atómico”, dizia o chui de cabelo cortado à escovinha.

 

Karim sentou-se na bancada de madeira e observou durante alguns momentos os aprendizes de dragões. Sentia que devia ficar ali, interrogar esses homens. Porquê, não o sabia. Por fim, um dos Braseiros dignou-se atentar nele. Interrompeu o manejo e dirigiu-se ao seu encontro, empunhando ainda o bastão enegrecido que continuava a vomitar umas faúlhas. Não devia ter trinta anos, mas as suas feições pareciam escavadas por anos que contavam a dobrar. Anos de chilindró, sem dúvida alguma. Gaforina castanha, pele morena, pupilas escuras. E o ar lancinante do súcio sempre pronto para uma má acção.

 

- És dos nossos? - perguntou.

- Dos vossos?

 

- Sim. És feirante? Procuras trabalho? Karim uniu as mãos, palma contra palma.

 

- Não, sou chui.

- Chui?

 

O expelidor de fogo aproximou-se e apoiou o calcanhar no degrau inferior, mesmo por baixo de Karim.

 

- ó pá, não tens cara disso.

 

O chui árabe podia sentir o cheiro do torso ardente do homem. Disse então:

 

- Tudo depende da ideia que se tem deste ofício.

 

- O que pretendes? Não me digas que és da territorial... Karim não respondeu. Englobou num só olhar a cúpula de pano remendado, os saltimbancos no centro da pista, depois calculou que em 1982 este moço devia ter uns quinze anos. Haveria alguma probabilidade de ele se ter cruzado com Jude? Nem por sombras. Mas ainda o espicaçava uma pulsão. Inquiriu: Há catorze anos, já por aqui andavas?

 

É possível, sim. O circo pertence aos meus velhotes. Karim pronunciou de uma assentada:

 

- Ando a seguir o rastro de um miúdo que talvez tenha vindo aqui, na época. Em julho de 82, para ser mais exacto. Vários domingos consecutivos. Procuro pessoas que se lembrem dele.

 

O expelidor de fogo sondou a verdade nos olhos de Karim.

- ó pá, estás a falar a sério?

 

- Não achas que sim?

 

- Como é que se chamava o miúdo? -Jude.jude Itero.

 

-Julgas mesmo que alguém pode recordar-se de um gaiato que talvez haja passado aqui pelo circo, há catorze anos? Karim levantou-se e desceu os degraus.

 

- Deixa lá.

 

O moço agarrou-o bruscamente pelo casaco.

 

- Jude veio várias vezes. Ficava especado à nossa frente enquanto ensaiávamos. Parecia hipnotizado. Um autêntico garoto de pedra.

 

- O quê?

 

O homem subiu um degrau e colocou-se ao nível de Karim.

 

O chui sentia o bafo dele carregado de gasolina. O expelidor volveu:

 

- Pá, foi num Verão tórrido. O calor quase fazia derreter os carris. Jude veio quatro domingos seguidos. Tínhamos quase a mesma idade. Brincámos juntos. Ensinei-o a expelir fogo. Histórias de miúdos. Não há grande coisa a dizer.

 

Karim fixou ojovem Braseiro.

 

- E lembras-te desse miúdo, catorze anos depois?

- Era o que esperavas, ou não?

 

O chui elevou o tom:

 

- Só te pergunto como podes lembrar-te disso.

 

O tipo saltou para o chão de terra batida, uniu os calcanhares e depois chegou o bastão o mais perto possível dos seus lábios. Irisou a tocha com algumas gotas de saliva carregadas de fúel. jorrou uma chuva de centelhas.

 

- Pá, é que o Jude tinha uma coisa especial. Karim estremeceu:

 

- No rosto? Tinha alguma coisa no rosto?

- Não, no rosto não.

 

- Então o quê?

 

O moço cuspiu mais umas chamazinhas e logo desatou a rir: - ó pá, ojude era uma rapariguinha.

 

Lentamente, a verdade ganhava corpo. Segundo o expelidor de fogo, a criança que ele encontrara quatro vezes

 

era uma menina, cuidadosamente disfarçada de rapaz. Cabelo cortado curto, roupas apropriadas, maneiras de catraio. O homem afirmava, categórico: - Ela nunca me disse que era uma rapariga... Era o seu segredo, estás a topar? Simplesmente, eu notei logo qualquer coisa que não batia certo. Primeiro, era muito bela. Um espanto de miúda. E, pior ainda, havia a voz dela. E até mesmo as suas formas. Devia ter uns dez, doze anos. Aquilo começava a ver-se. Além de outras coisas. Usava não sei bem quê nos olhos que lhe mudava a cor das íris. Tinha os olhos pretos, mas era um preto como a tinta-da-china, um preto artificial. Apesar de ser ainda um gaiato, eu reparava. E estava sempre a queixar-se de que lhe doíam os olhos. Umas dores que lhe entravam pela cabeça dentro, dizia ela...

 

Karim reunia os elementos. A mãe de Jude receava acima de tudo os diabos que pretendiam destruir-lhe a filha. Por tal motivo, decerto, é que saíra de uma primeira cidade para vir parar a Sarzac. Aqui, e Karim já devia ter pensado nisto, ela adoptara uma nova identidade, mudara o nome da filha e até a transformara em profundidade trocando-lhe o sexo. já não havia assim a mínima possibilidade de alguém a identificar ou reconhecer. No entanto, dois anos mais tarde, os diabos tinham reaparecido na nova cidade, em Sarzac. Ainda procuravam a criança e estavam muito perto de a descobrir.

 

Sim, de a descobrir.

 

A mãe entrara em pânico. Destruíra todos os documentos, todos os registos, todas as fichas que incluíam o nome, até mesmo de empréstimo, da sua filhinha. E sobretudo as fotografias, pois uma coisa era certa: os diabos, se não conheciam o novo nome da criança, não ignoravam pelo menos o seu rosto. Era mesmo este rosto que eles procuravam: o testemunho, a prova convincente. Por tal razão é que deviam concentrar-se, antes de mais nada, nos retratos de classe, a fim de referenciarem aquele rosto acossado. Mas donde vinham os perseguidores? E quem eram?

 

Karim interrogou Braseiro júnior:

A rapariguinha falou-te alguma vez de diabos?

O jovem feirante ainda manipulava o seu bastão.

 

- De diabos? Não. Os diabos... - apontou para os seus colegas na risota - só podíamos ser nós. E Jude não falava muito. já te disse: éramos miúdos. Só a ensinei a cuspir o fogo...

- Interessava-se por isso?

 

- Era um verdadeiro fascínio. Dizia que desejava aprender... para se defender. E para defender também a mamã... Era uma franguinha... realmente bizarra.

 

- Sobre a mãe, não te disse nada?

 

- Não. Nem sequer a vi alguma vez... Jude ficava uma hora ou duas comigo e depois, de repente, desaparecia... O gênero Gata Borralheira. Eclipsou-se assim várias vezes, e por fim nunca mais voltou...

 

- Não te recordas de nada? De um pormenor que possa ajudar-me, de um facto singular?

 

- Não.

 

- O seu nome próprio, por exemplo... Nunca te disse como se chamava... a valer?

 

- Não. Mas agora que penso no assunto, havia uma coisa em que ela teimava...

 

O quê?

 

- Eu comecei logo a chamar-lhe “Jiude>, com o sotaque inglês, como na canção dos Beatles. Mas ela ficava brava. Queria que lhe chamasse Ju-de, com a pronúncia francesa. Ainda estou a ver a sua boquinha: “Ju-de”.

 

O feirante teve um sorriso que vinha de longe; pareceram cristalizar-se névoas nas suas pupilas. Karim pressentiu que o dragão devia ter-se apaixonado loucamente pela menina. O homem indagou por seu turno:

 

- Estás a fazer um inquérito? Porquê? O que é que se passa com ela? Hoje, deve ter uns vinte e tal anos...

 

Karim já não escutava. Pensava na pequena jude, que fizera dois anos de escolaridade sob uma falsa identidade. Como é que a mãe pudera falsificar os documentos de identidade da filha por ocasião da inscrição escolar? Como pudera fazê-la passar por um rapazinho aos olhos de todos, em particular de uma professora que convivia diariamente com a criança?

 

De súbito, teve uma ideia. Ergueu os olhos e perguntou ao homem-archote:

 

- Há aqui um telefone?

 

- Por quem nos tomas? Por uns vagabundos? Vem comigo. Karim seguiu-o.

 

O feirante deixou-o numa pequena casota de madeira pintada ao fundo da pista de areia. Havia um telefone pousado sobre uma mesinha. O chui marcou o número da directora da escola jean-jaurès. O vento soprava furiosamente por baixo da tenda. Viam-se ao longe os expelidores de fogo. Soaram três toques, depois respondeu uma voz masculina.

 

- Quero falar com a senhora directora - explicou Karim, dominando a sua excitação.

 

- Da parte de quem?

 

- Tenente Karim Abduf.

 

Poucos segundos mais tarde, a voz esbaforida da mulher ressoava no auscultador. O polícia começou sem mais preâmbulos:

 

- Lembra-se da professora de quem me falou, a que abandonou Sarzac no fim do ano de 82?

 

- Com certeza.

 

- Disse-me que ela supervisionou o CM1 em 81, depois o CM2 em 82

 

- Isso mesmo.

 

- Em suma, ela acompanhou jude Itero de uma classe para a outra, é assim?

 

- Exactamente. Podemos apresentar as coisas dessa maneira. Mas, como lhe disse, é frequente uma professora primária...

- Qual era o nome dela?

 

- Espere aí, vou consultar os meus apontamentos... A directora remexeu nos seus papéis.

 

- Fabienne Pascaud.

 

Evidentemente, este nome nada dizia a Karim. E não tinha qualquer ponto comum, qualquer ressonância com o pseudónimo da criança. O espírito do chui esbarrava contra uma parede a cada nova informação. Perguntou:

 

- Sabe o nome de solteira dela?

- Mas o nome de solteira é este.

- Não era casada?

 

- Era viúva. Pelo menos, é o que vejo na ficha. É estranho. Ela parece ter retomado o seu primeiro apelido.

 

- Qual era o seu nome de casada?

 

- Um momento... aqui está: Hérault. H-É-R-A-U-L-T. Novo impasse. Karim, mais uma vez, não acertava.

 

- Bom. Obrigado, eu...

 

Teve então um lampejo. Uma fulgurância. Se o seu raciocínio estava correcto, se aquela mulher era de facto a mãe de Jude, o apelido da rapariguinha devia ser, inicialmente, Hérault. E o seu nome próprio...

 

Karim ouviu de novo o reparo do feirante sobre a pronúncia do nome próprio da menina. Ela insistia em que o pronunciassem como se escrevia, à francesa. Porquê? Não seria porque lhe recordava o seu verdadeiro nome? O seu nome de rapariga? Karim balbuciou no auscultador:

 

- Espere um minuto.

 

Ajoelhou-se e escreveu na areia, com mão nervosa, os dois nomes um por baixo do outro, em letras maiúsculas:

 

FABIENNE HÉRAULT JUDEITERO

 

Havia uma mesma consonância, uma mesma tonalidade nas duas últimas sílabas. Reflectiu alguns instantes, depois apagou com a mão o que acabava de inscrever no pó. Escreveu em seguida, separando as sílabas:

 

E logo após:

 

JU-DI-TE-Ro

 

JUDITH HÉRAULT

 

Quase soltou um rugido de triunfo. Jude Itero chamava-se, na realidade, Judith Hérault. O rapaz era uma menina. E a mãe era de facto a professora. Tinha retomado o seu apelido de solteira a fim de baralhar melhor as pistas, adaptando o nome da filha ao masculino, sem dúvida para não perturbar mais a cachopinha, ou não correr o risco de ela cometer lapsos no tocante à sua nova identidade.

 

Karim cerrou os punhos. Estava certo de que as coisas se haviam organizado desta maneira. A mulher pudera alterar a identidade da filha na escola porque ela própria se encontrava

ali colocada. Esta hipótese explicava tudo: a facilidade com que a mulher iludira toda a gente em Sarzac, a discrição com que subtraíra os documentos oficiais. Numa voz trémula, pediu à directora:

 

- É capaz de obter informações mais precisas sobre essa professora, na academia?

 

- Esta noite?

 

- Sim, é importante.

 

- Eu... Está bem, conheço pessoas lá. É possível. O que deseja saber?

 

- Quero saber onde Fabiene Pascaud-Hérault se instalou depois da sua saída de Sarzac. Também quero saber onde ela ensinou antes de vir para esta cidade. Procure igualmente pessoas que a tenham conhecido. Possui um telemóvel?

 

A mulher confirmou e deu o número. Parecia levemente confusa. Karim prosseguiu:

 

- De quanto tempo precisa para ir pessoalmente à academia recolher estas informações?

 

- Duas horas, mais ou menos.

 

- Leve o telemóvel. Ligo para si dentro de duas horas. Karim saiu da casota e saudou com a mão os Braseiros, que haviam recomeçado a sua dança de São Vito.

 

Duas horas a secar.

 

Karim ajeitou a boina e encaminhou-se para o seu

 

chaço. A sombra era varrida por um vento carregado de miasmas marinhos que parecia fender a terra e o asfalto. Duas horas para matar. Disse consigo que talvez aquela região ainda não lhe houvesse dado tudo.

 

Tentou imaginar Fabienne e Judith Hérault, os dois seres solitários que iam ali todos os domingos de Verão. Imaginou a cena com precisão, estudando cada aspecto, cada pormenor que talvez pudesse murmurar-lhe um novo trilho a seguir. Distinguia a mãe e a filha, à luz da manhã, caminhando com todo o recato numa região onde ninguém as conhecia. A mulher, determinada, obcecada pelo rosto da criança. E ela, a rapariguinha andrógina, fechada a sete chaves no seu medo.

 

Não saberia dizer porquê, mas imaginava este esquivo par enclausurado na mesma aflição. Via-as de mãos dadas, caminhando em silêncio... Como vinham até aqui? De comboio? Pela estrada?

 

Decidiu visitar todas as estações ferroviárias das redondezas, os serviços de auto-estrada, os gendarmes, em busca de um rastro, de uma demanda, de uma recordação...

 

Duas horas a secar: era isto ou nada.

 

Arrancou sob o céu que se avermelhava nos derradeiros ardores do poente. As noites de Outubro já se retraíam na sua obscuridade precoce.

 

Encontrou uma cabina telefónica e começou por chamar o SRPJ de Rodez, à procura de um carro registado em nome de Fabienne Pascaud ou de Fabienne Hérault na região do Lot, em 1982. Não havia título de propriedade com estes nomes. Meteu-se novamente no automóvel e centrou as suas investigações nas gares circundantes sem abandonar completamente a possibilidade de um veículo pessoal.

 

Visitou quatro estações de caminho de ferro. Para obter quatro vezes zero. Karim devorava os quilómetros, em círculos concêntricos à volta do mosteiro e do parque de atracções. Só vislumbrava altas figuras fantasmagóricas no halo dos seus faróis: árvores, penedos, túneis... Sentia-se bem. A adrenalina aquecia-lhe os membros, e a excitação mantinha todas as suas faculdades despertas. Reencontrava as sensações que apreciava, as da noite, do medo. Essas sensações descobertas no coração dos parques de estacionamento quando limava as suas primeiras chaves atrás dos pilares. Karim não receava as trevas: eram o seu mundo, o seu manto, as suas águas profundas. Sentia-se aqui em serenidade, tenso como uma arma, poderoso como um predador.

 

Na quinta gare, só avistou uma zona de frete, atravancada de vagões velhos e de turbinas azuladas. Tornou a partir no mesmo instante, mas travou logo a seguir. Estava sobre uma ponte, por cima da auto-estrada, à saída de Sète-Oeste. Esquadrinhou a pequena estação de portagem, a trezentos metros dali. O seu instinto ordenou-lhe que efectuasse uma verificação.

 

Apostar tudo, sempre.

 

Seguiu pela via de acesso e virou imediatamente à direita, transpondo um renque de alfenas. Havia ali vários edifícios pré-fabricados: os serviços da estação da auto-estrada. Nenhuma luz. No entanto, enxergou um homem perto dos hangares contíguos às barracas. Andou mais um bocado, arrumou o carro e caminhou direito à silhueta,que se afadigava ao pé de um alto camião.

 

O vento acre redobrava. Tudo era seco, mate, poeirento, como que envolvido num sopro salino. Galgou placas de sinalização rodoviária, pás, toldos de plástico. Bateu na caixa do camião - ajoujado de sal - e produziu um fragor metálico.

 

O homem sobressaltou-se; a sua cogula só deixava um espaço para olhos. As suas sobrancelhas grisalhas franziram-se.

- O que há? Quem é você?

 

- O Diabo.

- Hem;

 

Karim sorriu, apoiando-se contra a caixa.

 

- Estou a brincar. É a polícia, avozinho, Preciso de umas informações.

 

- Informações? Não há aqui ninguém até amanhã de manhã, eu...

 

- As estações de auto-estrada funcionam vinte e quatro horas por dia.

 

- O cobrador está na cabina dele, e eu trabalho neste posto...

 

- Foi o que eu acabei de dizer. Vamos os dois para o escritório. Tu bebes um cafezinho, enquanto eu deito uma olhadela ao PCI.

 

-O PCI? Mas... afinal o que procura?

 

- Explico-te tudo ali no quentinho.

 

Os escritórios eram à imagem do conjunto: exíguos e provisórios. Paredes estreitas, portas inacabadas, secretárias de fôrmica. Estava tudo apagado, tudo morto, excepto um computador que vibrava na penumbra. O PCI - a central de informações que funcionava em circuito ao longo do ano e garantia a transmissão de informações sobre o conjunto da rede rodoviária regional. Cada acidente, cada avaria, cada deslocação dos agentes de viação, eram registados nesta memória.

 

O velho quis manipular pessoalmente o computador. Tirou a cogula. Karim murmurou ao ouvido dele:

 

-Julho de 82. Entra tu agora em acção. Quero saber tudo. Os acidentes. As reparações de avaria. O número de utentes. O mais pequeno episódio. Tudo.

 

O velho descalçou as luvas e soprou nos dedos para os aquecer. Martelou nas teclas durante uns segundos. Surgiu uma listagem, correspondente ao mês de julho de 82. Algarismos, dados, reparações. Nada que sugerisse o que quer que fosse.

 

- Podes efectuar uma pesquisa por nome? - perguntou Karim, debruçado por cima do homem.

 

- Soletra lá.

 

- Tenho vários: Jude Itero, Judith Hérault, Fabienne Pascaud, Fabienne Hérault.

 

- São assim tantas? - resmungou o agente, integrando os nomes na máquina.

 

Mas uma resposta piscou ao cabo de poucos segundos. Karim abeirou-se.

 

- O que aconteceu?

 

- O PCI tem qualquer coisa num dos nomes, Mas não é emJulho de 82

 

- Continua a pesquisa.

 

O homem accionou vários comandos no teclado. As informações patentearam-se em letras fluorescentes no ecrã escuro. O chui sentiu o corpo petrificar-se. A data urrou-lhe na cara:

14 de Agosto de 1982. O dia inscrito no túmulo de Jude. E era de facto este nome que abria o arquivo: Jude Itero.

 

- Não me lembrava do nome - disse baixinho o velhote.

- Mas lembro-me do acidente. Uma coisa atroz, perto do Héron-Cendré. O carro derrapou. Atravessou o separador central e foi esmagar-se contra a esquina de um muro anti-ruído, mesmo defronte. Encontraram a mãe e o filho todos enfeixados no meio das chapas. Mas só o miúdo é que espichou. Ia no banco da frente. A mãe safou-se com umas contusões. Havia um mar de sangue que escorria pelos dois eixos. Duas vezes três faixas, imagina bem.

 

Karim não conseguia dominar as suas tremuras. Acabara assim a fuga de Fabienne e de judith Hérault. A cento e trinta quilómetros à hora, contra um muro anti-ruído. Era tão absurdo quanto isto. E tão simples. Reprimiu um grito de raiva. Não podia convencer-se de que toda a aventura, todas as precauções da mulher se tinham aniquilado numa mera derrapagem.

 

Todavia, ele sabia desde o início: judith morrera em Agosto de 1982, como o seu túmulo o atestava. Agora, só descobria as circunstâncias do finamento. Lágrimas queimaram-lhe as pálpebras, como se acabassem de lhe revelar a morte de um ente querido. De um ente que ele amara, apenas algumas horas, mas com o furor de uma torrente. Para lá das palavras e dos anos. Para lá do espaço e do tempo.

 

- Continua - ordenou. - Como estava o corpo da criança?

- Bem... Estava inteiramente encaixado na caranguejola. Um aglomerado de carne e chapa. Arre! Levaram mais de seis horas a... Enfim... Nunca me hei-de esquecer... O seu rosto estava... enfim... já não havia rosto, nem cabeça, nem nada.

- E a mãe?

 

- A mãe? Não sei se era a mãe. Em todo o caso, não tinha

 

o mesmo nome que...

 

- Eu sei. Estava ferida?

 

- Não. Teve sorte. Só uns hematomas, umas escoriações... Quase nada, a bem dizer. É que o carro deu uma cambalhota sobre si mesmo, estás a perceber? E o muro atingiu em cheio o lado do passageiro. Naquela curva, é o pão nosso de cada dia e... Descreve-ma.

 

- Quem?

- A mulher.

 

- Nunca me esquecerei dela. Uma giganta. Uma morena de cara larga. E uns óculos com lentes grossas. Toda de preto, num vestido franzido. Bastante esquisita. Não chorava. Parecia muito fria. Talvez o estado de choque, não sei bem...

 

- Como era o rosto dela?

- Bonito.

 

- E que mais?

 

- No gênero bochechudo, quer-me parecer... Uma pele muito clara, quase transparente.

 

Karim mudou de direcção.

 

- Conservam um processo para cada acidente, não é? Um balanço, com a certidão de óbito e tudo o resto?

 

O velho hirsuto fitava Karim. As suas pupilas crepitavam como grãos de café.

 

- O que procuras afinal, rapagão?

- Mostra-me o processo.

 

O homem limpou as mãos no seu anoraque e abriu um armário cujas portas eram uma espécie de persianas. Karim via-o ler os nomes dos sinistrados, murmurando as sílabas.

 

-Jude Itero. Aqui tens, é este. Previno-te que é...

 

Karim tirou-lhe o documento das mãos e folheou as diferentes páginas. Testemunhos, certidões, autos, comprovações de seguros. Todas as circunstâncias. Fabienne Pascaud conduzia um automóvel de aluguer, tomado numa agência de Sarzac. O endereço era o mesmo que o Dr. Macé lhe dera - as ruínas isoladas, no valezinho de penedia. Nada de novo, por este lado. O mais espantoso é que a mãe declarara a morte da filha sob o nome de jude Itero, sexo masculino.

 

- Não compreendo - disse o polícia. - A criança era um rapaz?

 

- Pois era... - O velho examinava o processo por cima do braço de Karim. - Pelo menos, foi o que ela disse...

 

- Não te recordas de ter havido algum problema a este propósito?

 

- Um problema? Aonde queres chegar? O chui esforçou-se por dominar a voz:

 

- Ouve, pergunto-te simplesmente se era possível identificar o sexo da criança.

 

- Eu cá não sou médico! Mas, francamente, não creio. O corpo era mais uma massa de fragmentos que outra coisa... Carne esmigalhada... - Passou a mão pelo rosto. - Escuso de dizer mais, rapagão... Há vinte cinco anos que trabalho aqui e estou farto de ver acidentes... sempre a mesma coisa horrível... - Agitou as mãos bem alto, imitando nuvens de bruma.

- Como uma espécie de guerra subterrânea, estás a perceber?, que surgisse de tempos a tempos com uma violência de terror!

 

Karim compreendeu que o estado do corpo permitira que a mulher concluísse a sua mentira para além do túmulo. Mas porquê? Receava mais ameaças? Mesmo estando morta a sua filhinha?

 

Compulsou outra vez o processo e descobriu fotografias do acidente. Sangue. Chapa retorcida. Pedaços de carne, membros esparsos, jorrados da carroçaria. Passou rapidamente adiante. Não tinha ânimo para isto. Surgiu-lhe em seguida a certidão de óbito, a descrição do médico, e obteve a confirmação de que as características do corpo eram da ordem do abstracto.

 

Karim encostou-se à parede, acometido de uma vertigem. Depois olhou para o relógio. Matara efectivamente duas horas. Mas, em compensação, estas horas tinham-no morto a ele. Com esforço, pousou um último olhar nas páginas. Impressões digitais estavam marcadas a tinta azul numa ficha cartonada. Observou os dermatóglifos durante uns momentos, depois perguntou:

 

- São mesmo as suas impressões digitais?

- De quem estás a falar?

 

- Da criança. Estas impressões digitais são realmente dela?

- Não entendo por que fazes tantas perguntas. É claro que são... Eu é que segurei na almofada de tinta. Os restos do corpo estavam num saco. O doutor fez pressão na mãozinha. Uma mão toda ensanguentada. Safa! Tínhamos todos pressa de acabar com aquilo. Escuta bem: ainda hoje estas recordações vêm atormentar as minhas noites, já vês...

 

Karim enfiou o processo por baixo do seu casaco de cabedal.

- Ok. Fico com os documentos.

 

- Muito bem, podes guardá-los. E adeusinho!

 

O tenente saiu do gabinete. Estava aturdido. Dançavam-lhe estrelas sob as pálpebras. Na escadaria do barracão, o velho gritou-lhe:

 

- Tem cuidado contigo!

 

Karim voltou-se. O homem espreitava-o por entre o vento e o cheiro a maresia, retendo a porta envidraçada com o ombro. A sua silhueta era duplicada pelo vidro, num reflexo onde se mesclavam o castanho e o vermelho.

 

- O quê? - volveu o chui.

 

- Repito: tem cuidado contigo. E nunca tomes outra pessoa pela tua sombra.

 

Karim tentou sorrir?

- Porquê?

 

O homem tornou a descer a cogula.

 

- Porque eu sei, eu sinto: caminhas entre os mortos.

 

O QUE o tenente me obriga a fazer... Fui ter com o meu colega, à academia... A voz da mulher vibrava de uma excitação cheia de jovialidade. Karim parara diante de uma nova cabina a fim de ligar para o telemóvel da directora. Ela prosseguia:

 

- O guarda bem quis impedir-nos...

- O que encontrou?

 

- Os dados completos sobre Fabienne Hérault, em solteira Pascaud. Mas estamos mais uma vez num impasse. Após os dois anos passados em Sarzac, a mulher desapareceu. Parece ter deixado o ensino.

 

- Não há um meio de saber onde se instalou em seguida?

- Não, nenhum. julgo que terminou o seu contrato com

 

a Educação Nacional nesse ano. Não renovou o compromisso. É tudo. A academia nunca mais teve contactos com ela. Karim encontrava-se ao pé de um bloco residencial, nos arredores do Sète. Através do vidro da cabina, via automóveis estacionados cujas carroçarias rutilantes brilhavam sob os candeeiros. A informação da mulher não o espantava. Fabienne Pascaud fechara a porta atrás de si, vedando o seu mistério, a sua tragédia, os seus diabos.

 

- E donde vinha essa mulher, antes de Sarzac?

 

- De Guernon, uma cidade universitária no Isère, acima de Grenoble. Só ensinou aí durante uns meses. Antes disso, era responsável por uma pequena escola primária em Taverlay, uma aldeia situada no alto do Pelvoux, uma montanha ali perto.

 

- Recolheu elementos pessoais? Ela retorquiu, num tom mecânico:

 

- Fabienne Pascaud nasceu em 1945, em Corivier, num vale do Isère. Casa-se com Sylvain Hérault, em 1970, e ganha no mesmo ano um primeiro prémio do Conservatório de piano, em Grenoble. Neste sentido, poderia ter optado por dar aulas de música e...

 

- Continue, por favor.

 

- Em 1972, ingressa na escola normal. Dois anos mais tarde, é colocada na escola primária de Taverlay, sempre no Isère. Ensina aqui durante seis anos. Em 1980, a escola de Taverlay fecha, pois uma nova estrada permite que as crianças se dirijam a uma escola maior, numa aldeia vizinha, mesmo no Inverno. Fabienne é então mudada para Guernon. Uma sorte: é a cinquenta quilómetros de Taverlay. E é uma cidade célebre no meio docente. Uma cidade universitária, muito agradável, muito intelectual.

 

- Disse-me que ela era viúva: sabe quando o marido morreu?

 

- Calma, moço, calma! Em 1980, ao chegar a Guernon, Fabienne dá o apelido do esposo; parece não haver qualquer problema neste aspecto. Em contrapartida, seis meses depois, em Sarzac, apresenta-se como viúva. Quer dizer que o homem faleceu durante o período de Guernon.

 

- Nos dados que coligiu, há alguma coisa sobre ele? A idade? A profissão?

 

- É uma academia da Educação Nacional. Não é uma agência de detectives.

 

Karim suspirou.

- Continue.

 

- Pouco tempo após a chegada a Guernon, ela pede a transferência. Para qualquer sítio, desde que seja longe dessa cidade. Esquisito, não acha? Obtém logo um lugar em Sarzac. Não há aqui nada de espantoso: ninguém quer vir para a nossa bela região... Bom, em Sarzac, retoma o nome de solteira. Dir-se-ia que pretendeu de facto virar a página.

 

- Ainda não falou no filho.

 

- Com efeito, tinha uma filha. Nascida em 1972. Era portanto uma menina.

 

É o que está escrito? Sim, pode crer...

 

Qual é o nome indicado?

 

-Judith Hérault. Mas, também neste caso, não aparecem mais referências a ela em Sarzac.

 

Cada informação confirmava com exactidão a história conjecturada por Karim. Ele voltou à carga:

 

- Conseguiu contactar com pessoas que a conheceram em Sarzac?

 

- Sim. Falei com a directora da época: Mathilde Sarman. Lembra-se muito bem de Fabienne. Uma mulher estranha, segundo parece. Misteriosa. Reservada, Muito bela. E muito forte. Um metro e oitenta. Uns ombros larguíssimos... Tocava frequentemente piano. Uma virtuosa. Estou a repetir-lhe o que me contaram...

 

- Em Sarzac, Fabienne Pascaud vivia sozinha?

 

- No dizer de Mathilde, sim, vivia sozinha. Num vale isolado, a dez quilómetros da cidade.

 

- E ninguém sabe o motivo por que se foi bruscamente embora de Sarzac?

 

- Não, ninguém.

 

- Nem de Guernon, dois anos antes?

 

- Não. Talvez seja aconselhável recuar até a esse período, eu... - A mulher hesitou, depois ousou perguntar: - No fim de contas, tenente... É capaz de me explicar, pelo menos, a relação entre este inquérito e o roubo na minha escola...

 

- Mais tarde. Vai voltar para casa?

- Ora... está claro que sim...

 

- Leve consigo tudo o que diz respeito a Fabienne Pascaud e aguarde o meu telefonema.

 

- Eu... Está bem. Combinado. Quando tenciona telefonar-me?

 

- Não sei. Em breve. Depois explico-lhe tudo.

 

Karim desligou e observou de novo os carros do parque de estacionamento. Havia Audis, BMWs, Mercedes, brilhantes, rápidos - e repletos de alarmes. Olhou para o relógio: já passava das vinte e uma. Era tempo de enfrentar a velha fera. Discou o número directo de Henri Crozier. A voz berrou logo:

 

- Mas que porra vem a ser esta? Por onde é que andas?

- Prossigo o meu inquérito.

 

- Espero que estejas a caminho da esquadra.

 

- Não. Tenho de efectuar um último desvio. Pela montanha.

 

- Pela montanha?

 

- Sim, vou a uma pequena cidade universitária, perto de Grenoble. Em Guernon.

 

Houve um silêncio, depois Crozier insistiu:

 

- Espero que me apresentes uma boa razão para...

 

- A melhor, comissário. A minha pista orienta-se para esta cidade. julgo que descobrirei aí o rastro dos profanadores. Crozier nada acrescentou. O arrojo de Karim parecia cortar-lhe a respiração. Tirando partido da vantagem, o tenente atacou:

 

- Alguma novidade sobre o veículo?

 

O comissário hesitou. Karim elevou o tom:

- Tem elementos novos? Sim ou não?

 

- Localizámos o veículo e o seu proprietário.

- Como?

 

- Uma testemunha, na estrada D143. Um camponês que regressava a casa no seu tractor. Viu passar um Lada branco, por volta das duas horas da madrugada. Só memorizou o número da região. Verificámos: acaba de ser registado lá um Lada. No controlo técnico, ainda levava os pneus eslavos. É o nosso carro. Digamos que há uma certeza de oitenta por cento.

 

Karim reflectiu. Esta informação parecia-lhe suspeita, chegava no momento demasiado oportuno.

 

- Por que razão se manifestou a testemunha? Crozier gargalhou.

 

- Porque Sarzac está em ebulição. Os rapazes do SRPJ apareceram aqui com a sua habitual discrição. Actuam à maneira de Carpentras, como se estivéssemos perante uma profanação em larga escala. - Crozier rogou uma praga. - Os meios de comunicação social também por cá andam. É uma barafunda.

 

Karim cerrou os maxilares.

 

- Dê-me o nome e a cidade, depressa.

 

- Não admito que me falem assim, Karim, eu...

 

- O nome, comissário. Não compreende que é o meu inquérito? Que sou o único que está na posse das verdadeiras raízes deste caos?

 

Crozier ficou uns instantes calado, sem dúvida o bastante para recobrar o sangue-frio. Quando falou, a sua voz estava impassível:

 

- Karim, em toda a minha carreira, ninguém me falou COMO tu. Por isso mesmo, quero que me faças o ponto sobre o “teu” inquérito. E é já. Caso contrário, prego com um mandado de captura em cima de ti.

 

O timbre da voz indicava que já não era tempo de negociar. Karim resumiu em poucas palavras os resultados das suas investigações. Contou a história de Fabienne e Judith Hérault, usurpadoras em fuga. Descreveu a sua corrida absurda, a sua mudança de identidade, o acidente de viação que custara a vida à criança. Crozier concluiu, perplexo:

 

- Isso parece um romance.

 

- A morte é um romance, comissário.

 

- Pois sim... De qualquer modo, não vejo a relação entre a tua história e o nosso caso desta noite...

 

- Eis o que penso, comissário. Fabienne Hérault não estava louca. Era realmente perseguida por uns homens. E julgo que estes mesmos homens é que voltaram de noite a Sarzac.

- Hem?

 

Karim inspirou profundamente.

 

- Penso que eles voltaram para verificar qualquer coisa. Qualquer coisa que já sabiam, mas que um acontecimento súbito tornou a pôr em causa, noutro lugar.

 

- Aonde vais buscar tudo isso? E antes de mais, quem seriam os tais homens?

 

- Não faço a mínima ideia. Mas, para mim, os diabos estão de regresso, comissário.

 

- É pura efabulação.

 

- Talvez, mas não pode negar os factos: houve realmente arrombamento na escola JeanJaurès e a sepultura de Jude Itero foi violada. Sendo assim, por favor, dê-me o nome do profanador e a cidade dele, comissário. Quero saber se vive em Guernon. Para mim, a chave do pesadelo encontra-se lá e...

 

- Toma nota. O nome é: Filipe Sertys. Rua Maurice Blasch, n 7.

 

A voz de Karim vibrou:

 

- E a cidade, comissário? Guernon? Crozier não respondeu logo.

 

- Sim, é Guernon. Não sei por que milagre tiraste essa conclusão, mas, com mil raios!, és tu que segues a pista mais escaldante.

 

As imagens da fotógrafa alemã tinham tomado corpo. Os atletas de têmporas rapadas corriam no estádio de Berlim do anteguerra. Ligeiros. Pujantes. Hieráticos.

 

A sua corrida adoptara a cadência de um velho filme sacudido, de textura mineral, pigmentado como a superfície de um túmulo. Via os homens correr. Ouvia os seus calcanhares sobre a pista. Pressentia a sua respiração, rouca, batendo a contratempo de cada um dos seus passos.

 

Mas não tardavam a imiscuir-se pormenores dúbios. Os rostos eram demasiado sombrios, demasiado fechados. As arcadas demasiado fortes, demasiado proeminentes. O que escondiam estes olhares? Enquanto um clamor grave e histérico se elevava das bancadas, os atletas exibiam de repente as suas órbitas arrancadas, os seus olhos sem globos, que não os impediam de ver, nem sequer de correr. Pelo contrário, no fundo destas chagas vivas parecia agitar-se um novo formigamento... estalos de língua... fulgores animais...

 

Niémans acordou, coberto de uma transpiração gelada. A luz branca do computador encandeou-o logo, como num arremedo de interrogatório. Recompôs-se discretamente e aconchegou o pescoço no colarinho. Lançou um olhar a toda a volta: ninguém notara que ele cochilara e que o terror lhe roubara logo os seus sonhos, tomando a forma das fotografias

vistas em casa de Sophie Caillois. As imagens dessa realizadora nazi, cujo nome esquecera.

 

Vinte e uma e trinta.

 

Só dormira quarenta e cinco minutos. Depois da visita ao entreposto, Niémans enviara sem demora os seus achados (o pequeno caderno, as malhas de metal e as parcelas de pó esbranquiçado) ao engenheiro de Grenoble, Patrick Astier, via Marc Costes, que ainda aguardava a chegada do cadáver dos gelos ao hospital.

 

Em seguida, Niémans viera aqui, à biblioteca da universidade, para efectuar uma pesquisa, um pouco à sorte, sobre os vocábulos “rios” e “púrpura”. Começara por observar mapas, em busca de uma rede hidrográfica que tivesse este nome. Depois consultara o índice informático, procurando um livro, um catálogo, um documento que contivesse estes termos. Mas nada encontrara e adormecera inopinadamente durante a leitura. Estava há cerca de quarenta horas sem ir à cama e os nervos tinham fraquejado, como um bonifrate ao qual se cortassem os cordéis.

 

Deitou outra olhadela à grande sala de leitura. Espalhados pelas mesas e compartimentos envidraçados, uma dezena de polícias à paisana continuavam as suas pesquisas, decifrando os livros que evocavam o mal, a pureza ou os olhos... Dois deles estabeleciam a lista dos estudantes que haviam consultado frequentemente alguns destes livros, tidos por suspeitos. Um outro continuava a ler a tese de Rémy Caillois.

 

Mas Niémansjá não acreditava na pista literária, o mesmo sucedendo com estes polícias, que esperavam agora pelos colegas que os vinham render. Toda a gente sabia, desde há duas horas, que o SRPj de Grenoble voltava a chamar a si a direcção do inquérito, atendendo aos escassos resultados da associação Niémans/Barnes/Vermont.

 

Na realidade, o inquérito não trouxera à luz um único indício, apesar da multiplicação das forças em acção. Para ajudar as equipas do capitão Vermont a esquadrinhar os terrenos da ponta do Muret e depois o flanco ocidental da montanha

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de Belledorme, haviam sido requisitados trezentos militares acantonados na base de Romans. Tinham chegado em camiões por volta das dezanove horas e começaram imediatamente o trabalho de busca nocturna, sob as ordens de Vermont. Além destes soldados, o capitão também requisitara duas companhias de CRS aquarteladas em Valence.

 

Mais de trezentos hectares já haviam sido explorados. Por ora, este esquadrinhamento sistemático nada dera - e nada daria, Niémans bem o sabia. Se o homicida tivesse deixado alguns indícios, já deveriam ter sido descobertos. No entanto, o comissário continuava em ligação VHF com Vermont e traçara ele próprio, num mapa do IGN, os diferentes pontos cruciais do inquérito: os locais de descoberta do primeiro e do segundo corpo, o sítio da faculdade, o entreposto de Sertys, a localização de cada refúgio...

 

Também a vigilância da rede viária se intensificara. De oito barragens, o conjunto passara a vinte e quatro. Cobria agora uma superfície muito ampla em redor de Guernon. Todas as cidades e aldeias, as entradas e saídas de auto-estrada, as nacionais e as regionais estavam sob controlo.

 

Quanto à papelada, ia-se amplificando a actividade, igualmente sob a responsabilidade do capitão Barnes. As grandes opções de investigação prolongavam-se. Os faxes não paravam de cair: testemunhos, respostas aos questionários, comentários... Partiam outros formulários endereçados às estações de esqui das redondezas. Enviavam-se mensagens, circulares, ao mesmo tempo que a central da brigada era equipada com vários novos telecopiadores.

 

Também se procedia, desde o início da tarde, ao interrogatório de todos os que haviam estado em contacto com a primeira vítima nas últimas semanas. Uma outra equipa ainda ouvia os melhores alpinistas da região, designadamente os que já tinham percorrido o glaciar de Vallernes. Homens ariscos que não viviam em Guernon, mas nas aldeias das alturas, agarrados ao flanco de fraguedo sobranceiro à cidade universitária. A brigada estava sempre a abarrotar de gente.

 

Outra equipa ainda, desta vez pertencente às fileiras de Vermont, reconstituía com minúcia o eventual itinerário de Rémy Caillois na sua derradeira expedição, ao mesmo tempo que outras já investigavam o itinerário da segunda vítima, bem como o do assassino, até ao cimo do glaciar. Os traçados eram numerizados e postos em memória para comparação por meios informáticos.

 

No cerne desta febre, deste rumor de guerra, Niémans obstinava-se nas motivações íntimas. Mais do que nunca, estava convencido de que encontraria o assassino se descobrisse o seu móbil. E o seu móbil talvez fosse a vingança. Contudo, devia tomar precauções extremas com esta hipótese. Nem as autoridades nem o grande público apreciavam os paradoxos em matéria criminal. Oficialmente, um assassino matava inocentes. Ora, Niémans procurava agora demonstrar que as vítimas eram também culpadas.

 

Como avançar neste terreno? Caillois e Sertys haviam urdido a teia da sua existência sobre os seus segredos. Sophie Caillois não diria uma palavra e, até ao momento, seguir os passos dela não conduzira a qualquer resultado. Quanto à mãe de Sertys ou aos colegas do enfermeiro-aJudante,já interrogados, só conheciam a imagem convencional de Filipe Sertys. A mãe nem sequer estava ao corrente de que ele possuía um entreposto que no entanto pertencera ao seu marido, Renê Sertys.

 

Então? Então, Niémans já só pensava, neste instante, num outro mistério que começava a suplantar todos os outros na sua consciência. Ligou o telefone e marcou o número de Barnes:

 

- Alguma novidade sobre Joisneau?

 

O jovem tenente, o polícia impecável que ansiava por adquirir o saber do “mestre”, ainda não reaparecera.

 

- Ouça - rouquejou Barnes -, mandei um dos meus rapazes ao instituto dos cegos para saber onde ele se dirigiu em seguida.

 

- Vá, desembuche.

 

O capitão articulou numa voz cansada:

 

-Joisneau saiu do instituto cerca das dezassete horas. Parece que partiu para Annecy a fim de visitar um oftalmologista. Um professor da faculdade de Guernon que cuida dos pacientes do instituto.

 

- Telefonou-lhe?

 

- Com certeza. Tentámos contactá-lo no consultório e em casa. Nenhum dos números responde.

 

- Tem os endereços?

 

Barnes ditou a Niémans um só nome de rua: o consultório do médico estava instalado na própria residência.

 

- Vou lá ver o que se passa - concluiu Niémans.

- Mas... porquê?Joisneau há-de acabar por...

 

- Sinto-me responsável.

- Responsável?

 

- Se o moço fez um disparate, se correu um risco inútil, estou certo de que foi para me espantar, para me comer as papas na cabeça, compreende?

 

O gendarme redarguiu, num tom tranquilizador:

 

- O Joisneau não tarda a aparecer. É um jovem. Deve ter-se inebriado com alguma pista falhada...

 

- Acredito. Mas talvez esteja em perigo. Sem sequer o saber.

 

- Em... perigo?

 

Niémans não respondeu. Houve uns segundos de silêncio. Barnes dava a impressão de não ter captado o sentido das palavras do comissário. Acrescentou de súbito:

 

- Ah, é verdade: Joisneau também telefonou para o hospital. Queria passar pelos arquivos.

 

- Os arquivos?

 

- Umas imensas galerias subterrâneas sob o CHRU que contêm toda a história da região, através dos seus nascimentos, das suas doenças e dos seus mortos.

 

O polícia sentia a angústia apertar-lhe o coração: queria então dizer que o lourinho avançava por um trilho solitário. Um trilho que se iniciara no instituto, que o conduzira junto do oftalmologista e, por fim, aos arquivos do centro hospitalar. Inquiriu:

 

- Mas ninguém o viu lá no hospital?

 

Barnes respondeu pela negativa. Niémans desligou. Logo a seguir ressoou uma nova chamada. já não se pensava em mensagens cifradas, em nome de código, em precauções. Todos os investigadores trabalhavam agora cheios de urgência. A voz de Costes vibrava:

 

- Acabo de receber o corpo.

- é Sertys?

 

- É ele, sem sombra de dúvida.

 

O comissário ficou aliviado. Todos os elementos colhidos nas últimas três horas sobre Filipe Sertys entravam assim no âmbito do inquérito. E ele ia poder lançar uma equipa oficial numa busca minuciosa ao entreposto. Costes prosseguia:

 

- Há uma enorme diferença relativamente às primeiras mutilações.

 

- Qual?

 

- O assassino arrancou os olhos, mas também as mãos. Seccionou os dois punhos. O senhor não viu por causa da posição de feto do corpo: os cotos estavam metidos entre os joelhos.

 

Os olhos. As mãos. Niémans discernia um laço oculto entre estes elementos anatómicos. Mas não saberia dizer em que lógica infernal estas duas mutilações se integravam.

 

É tudo? - volveu ele.

 

Por enquanto, sim. Vou iniciar a autópsia. Quanto vai demorar?

 

Duas horas, no mínimo.

 

Começa pelas órbitas e telefona-me assim que apurares alguma coisa. Tenho a certeza de que há um indício para nós.

- Sinto-me como se fosse um mensageiro do inferno, comissário.

 

Niémans atravessou a sala da biblioteca. Perto da porta, reparou no polícia espadaúdo, debruçado sobre a tese de Rémy Caillois. Fez um pequeno desvio e sentou-se em frente dele, num dos compartimentos envidraçados de leitura.

 

- Como é que isso vai? O OPj ergueu os olhos.

- Estou a foçar.

 

O comissário sorriu, apontando para o espesso documento.

- Nada de novo?

 

O polícia encolheu os ombros.

 

- É sempre a Grécia, as Olimpíadas, as provas desportivas e este gênero de coisas: corrida, dardo, pancrácio... Caillois fala do carácter sagrado da prova física, do recorde, veja bem. - O oficial fez uma boquinha, em sinal de incredulidade. - Uma espécie de... de comunhão com forças superiores. Na opinião dele, um recorde físico era considerado, naquela época, uma verdadeira ponte para comunicar com os deuses... Por exemplo, o athlon, o atleta originário, podia, ao superar os seus próprios limites, desencadear as forças da Terra... a fertilidade, a fecundidade. É bem verdade que, ao vermos o frenesim de certos desafios de futebol, chegamos à conclusão de que o desporto desencadeia ímpetos surpreendentes e...

- Que mais te chamou a atenção?

 

- Segundo Caillois, durante a Antiguidade, os atletas eram também poetas, músicos, filósofos. E o nosso pequeno bibliotecário insiste bastante neste ponto. Parece sentir saudades do tempo em que o espírito e o corpo estavam unidos, soldados, no próprio interior do ser humano. É o sentido do seu título: “A nostalgia de Olímpia”. A nostalgia do tempo dos homens superiores, simultaneamente cerebrais e robustos, espirituais e desportistas. Caillois opõe a essa época exigente o nosso século actual, em que os intelectuais não levantam um peso e os atletas não têm nada dentro da cachimónia. Vê aqui o sinal de uma decadência e de uma divisão entre o espírito e o corpo.

 

Niémans tornou de repente a ver os atletas do seu pesadelo. Os cegos de realidade mineral. Sophie Caillois explicara-lhe que, no entender do marido, os desportistas de Berlim tinham reatado com essa comunhão profunda entre o físico e O pensamento.

 

O polícia pensou também nos campeões da universidade: os filhos de professores, dos quais lhe falara Joisneau, que alcançavam os melhores resultados em todas as disciplinas, inclusive nas desportivas. À sua maneira, estes sobredotados também se aproximavam do conceito de atleta perfeito. Quando Niémans contemplara as fotografias dos medalhados da faculdade, na antecâmara do gabinete do reitor, surpreendera-o uma perturbante força juvenil estampada naqueles rostos. Como a encarnação de um vigor, mas também de um espírito à parte. De uma filosofia? Sorriu ao jovem polícia que o fitava com um ar inquieto.

 

- Parece-me que topaste bem a coisa - concluiu ele.

 

- Estou a navegar à vista. Compreendo mais ou menos uma frase em cada duas. - O homem deu uma pancadinha na ponta do nariz. - Mas fio-me no meu faro. Reconheço os fachos ao longe.

 

- Achas que Caillois era fascista?

 

- Não sei dizer exactamente... Dá mostras de ser um bocado mais complexo... Todavia, o mito que ele aqui defende do super-homem, do atleta com o espírito puro, faz-me lembrar os eternos delírios de raça superior e esse gênero de salsadas...

 

Uma vez mais, Niémans viu as imagens das Olimpíadas de Berlim no corredor do apartamento dos Caillois. Existia um segredo por detrás destas imagens, e também por detrás dos recordes desportivos de Guernon. Tudo isto formava porventura um conjunto, mas qual?

 

- Não há alusões a rios? - perguntou finalmente. - Rios de púrpura?

 

- O quê?

 

Pierre Niémans levantou-se.

 

- Esquece.

 

O OPJ seguiu com o olhar o homenzarrão de sobretudo azul e declarou:

 

- Francamente, comissário, podia ter entregue isto a um estudante, a um tipo mais qualificado do que eu...

 

- Quero o olhar de um profissional. Quero uma leitura que se adapte ao quadro do inquérito.

 

O oficial fez um novo trejeito circunspecto.

 

-Julga mesmo que todo este parlapié pode desempenhar um papel no caso?

 

Niémans apoiou-se no rebordo do vidro e debruçou o busto.

 

- Num caso, seja ele qual for, todos os elementos desempenham um papel. Não há imprevistos, pormenores inúteis. Tudo funciona como uma estrutura atómica, compreendes? Vá, continua a leitura.

 

Niémans deixou ali o homem, que exibia uma expressão de dúvida intensa.

 

Cá fora, no campus, entreviu os clarões longínquos dos projectores de equipas de televisão. Franziu os olhos e discerniu a magra silhueta de Vincent Luyse, o reitor, de pé nos degraus do edifício, balbuciando uma declaração apaziguadora. Reconheceu igualmente os símbolos característicos das cadeias de televisão regionais, nacionais e até da Suíça romanda... Os jornalistas acotovelavam-se, as perguntas rompiam. Estava disparado o mecanismo: os holofotes dos meios de comunicação social focavam Guernon. A notícia dos homicídios ia propagar-se por toda a França e o pânico concentrar-se-ia na pequena cidade.

 

E isto era apenas o princípio.

 

JÁ na estrada, Niémans telefonou a Antoine Rheims.

- Novidades do inglês?

 

- Estou no hospital de Hôtel Dieri. Ainda não voltou a si. Os médicos mostram-se muito pessimistas. A embaixada do Reino Unido arranjou uma chusma de advogados. Vieram directamente de Londres. Os jornalistas também aqui estão. Imagina o pior e mesmo assim ficarás longe da realidade.

 

A conexão por satélite era perfeita. A voz de Rheims, cristalina.

 

Niémans imaginou o director na ilha da Cité e viu-se a si mesmo em hospitais, interrogando prostitutas vítimas dos seus chulos, com as feições entumecidas, as arcadas rasgadas a golpes de soqueira. Via também os rostos ensanguentados dos suspeitos que ele próprio abanara. Via as mãos algemadas à cama, enquanto piscava e oscilava uma data de tralha luminescente na palidez sepulcral do quarto.

 

Via o adro de Notre Dame, quando saía do hospital de Hôtel Dieti, estafado, abatido, às três horas da madrugada, na límpida quietude da noite. Pierre Niémans era um guerreiro. E as suas recordações emitiam um lampejo de metal, de boldrié, de fulgurações de campos de batalha. Sentiu invadi-lo uma brusca onda de melancolia por esta existência singular, que muito poucos homens teriam aceite, mas que constituía a sua única razão de ser na Terra.

 

- E o teu inquérito? - perguntou Rheims.

 

O tom era menos agressivo que por ocasião do primeiro telefonema: a solidariedade entre colegas, os anos partilhados, o bom velho fluido de outrora, voltavam a prevalecer.

 

- Temos agora dois homicídios. E nem sombra de um indício. Mas continuo o meu caminho. E sei que vou na direcção certa.

 

Rheims nada acrescentou, mas Niémans interpretava este silêncio como uma manifestação de confiança. O polícia de óculos com aros de metal perguntou:

 

- E para mim?

- Para ti o quê?

 

- Quero eu dizer: aí no serviço, não estão a proceder a averiguações por causa do hooligan?

 

Rheims soltou uma risada lúgubre.

 

- Referes-te ao IGS? Há muito tempo que esperam por uma coisa assim. Podem esperar um pouco mais.

 

- Esperar o quê?

 

- Que o bife morra. Para te inculparem de homicídio.

 

Niémans chegou a Annecy cerca das vinte e três horas. Enveredou por compridas e claras artérias, sob a frondescência das árvores. A folhagem, afagada pelas luzes dos candeeiros, assemelhava-se a retalhos de tecido furta-cores. Ao fundo de cada avenida, Niémans distinguia pequenos monumentos, como que surgidos de poços de luz: quiosques, fontes, estátuas. Minúsculas, a várias centenas de metros, estas construções faziam pensar em figurinhas de realejo, e efígies de calandra. Como se a urbe, ao longo das suas praças, dos seus squares, abrigasse tesouros em escrínios de pedra, de mármore e de folhas.

 

Ladeou os canais de Annecy, que alardeavam uns falsos ares de Amsterdão, espraiando-se ao longe sobre o lago e as luzes da outra margem.

 

O polícia tinha dificuldade em convencer-se de que só estava a algumas dezenas de quilómetros de Guernon, dos seus dois corpos, do seu homicida selvagem. Atingiu o bairro residencial da cidade. Avenida dos Ormes. Alameda Vauvert. Beco das Hautes Brises. Nomes que deviam ressoar para os habitantes de Annecy como sonhos de pedra branca, marcas de poder.

 

Estacionou o carro à entrada do beco, de traçado descendente. As altas moradas estavam apertadas umas contra as outras, no seu estilo simultaneamente amaneirado e esmagador, abrindo espaço aqui e além a jardins dissimulados atrás de murozinhos cor de azebre. O número procurado correspondia a uma vivenda em pedra de cantaria, onde avultava um alpendre envidraçado e oblongo. Carregou na campainha em forma de losango, cujo botão imitava uma pupila. Por baixo, a placa de mármore preto indicava: “Dr. Edmond Chernecé. Oftalmologia. Gruroa dos olhos”.

 

Nenhuma resposta. Niémans baixou o olhar. Aquela fechadura não constituía problema e o comissário já não ia no seu primeiro arrombamento. Manipulou os pernos e as linguetas com destreza e penetrou num corredor lajeado de mármore. Placas guarnecidas de uma flecha indicavam a direcção da sala de espera, ao fim do corredor, à esquerda, mas o polícia reparou numa porta forrada de couro, à sua direita.

 

Era o consultório. Rodou a maçaneta e deparou-se-lhe um compartimento comprido, melhor dizendo, uma vasta varanda, cujo tecto e as duas paredes estavam inteiramente atapetados de painéis de vidro. Um rumorejo de água ecoava algures, na obscuridade.

 

Niémans precisou de uns segundos para distinguir, ao fundo da sala, uma silhueta de pé em frente de um lavatório.

- Doutor Chernecé?

 

O homem ergueu o olhar. Niémans aproximou-se. O primeiro pormenor em que atentou com precisão foram umas mãos bronzeadas e brilhantes sob os jorros de água. Velhas raízes, mosqueadas de manchas castanhas, cujas veias subiam em rede até aos punhos poderosos.

 

- Quem é você?

 

A voz era grave, plácida. De pequena estatura, mas bastante entroncado, o homem parecia ter mais de sessenta anos. Cabelos brancos brotavam em vagas vigorosas da sua testa alta e tisnada, também salpicada de manchas castanhas. Um perfil de falésia, um torso de dólmen: o homem assemelhava-se a um monólito. Um rochedo misterioso, tanto mais estranho quanto o médico só envergava uma T-shirt e uns calções brancos.

 

- Pierre Niémans, comissário da polícia. Toquei, mas ninguém respondeu.

 

- Como entrou aqui?

 

Niémans fez revolutear os dedos, como um mágico de circo.

 

- Os meios de bordo.

 

O homem sorriu com elegância, sem se escandalizar com as maneiras indelicadas do polícia. Fechou o comprido manípulo da torneira com o cotovelo e atravessou o compartimento transparente, de antebraços levantados, à procura de uma toalha. Instrumentos binoculares, microscópios, tábuas anatómicas exibindo globos oculares, olhos escorchados, apareciam na sombra. Chernecé declarou num tom neutro:

 

- Esta tarde já cá veio um polícia. O que pretende? Niémans parara a poucos metros do doutor. Compreendeu então que só agora contemplava o traço fundamental do homem - o que o caracterizaria entre milhares de outros: os olhos. Chernecé possuía um olhar incolor: íris cinzentas que lhe incutiam uma vigilância de serpente. Pupilas que pareciam minúsculos aquários onde se tivessem introduzido criaturas mortíferas, ajaezadas de escamas de ferro. Niémans declarou:

 

- Vim fazer-lhe algumas perguntas a respeito dele. O homem sorriu com indulgência.

 

- É original. Agora os polícias investigam sobre os outros polícias?

 

- A que horas veio aqui?

 

-Julgo que por volta das dezoito horas.

 

- Tão tarde? Recorda-se das suas perguntas?

 

- Certamente. Interrogou-me sobre os pensionistas de um instituto situado perto de Guernon. Um instituto que acolhe crianças padecentes de problemas oculares, as quais trato regularmente.

 

- O que desejava ele saber?

 

Chernecé abriu um armário de paredes de mogno. Pegou numa camisa clara, mal dobrada, e enfiou-a em poucos gestos ligeiros.

 

- Queria conhecer a origem das afecções das crianças. Expliquei-lhe que consistiam em doenças hereditárias. Também desejava saber se era possível imaginar uma causa exterior a estas doenças, como um envenenamento ou um erro de prescrição.

 

- O que lhe respondeu?

 

- Que era absurdo. As afecções genéticas estão ligadas ao isolamento dessa cidade, a uma certa consanguinidade nas uniões. Os casamentos são demasiado próximos, as doenças repetem-se, veiculadas pelo sangue. É um gênero de fenómeno vulgar nas comunidades solitárias. A região do lago Saint-jcan, no Quebeque, por exemplo, ou as comunidades amish, nos Estados Unidos. É também o que sucede em Guernon. As pessoas desse vale não são propensas à transumância... Por que se há-de procurar outra explicação para tais fenómenos?

 

Sem fazer a mínima cerimônia com Niémans, o médico vestia agora umas calças azul-marinho. Um tecido levemente ondeado. Chernecé mostrava possuir uma elegância e um requinte raros. O polícia prosseguiu:

 

- Fez-lhe mais perguntas?

 

- Também me falou de enxertos.

 

- De enxertos?

 

O homem abotoava a camisa.

 

- Sim, de enxertos oculares. Não percebi aonde ele queria chegar.

 

- Não lhe explicou o contexto do inquérito?

 

- Não. Mas respondi-lhe de boa vontade. Queria saber se podia existir algum interesse em colher olhos na mira de um enxerto de córnea, por exemplo.

 

Logo, joisneau pensara na pista cirúrgica.

- E então?

 

Chernecé imobilizou-se e passou as costas da mão pelo queixo, como para experimentar a dureza da sua barba nascente. As sombras das árvores dançavam através das paredes de vidro.

 

- Expliquei-lhe que tais operações não tinham razão de ser. As córneas sobresselentes são hoje fáceis de encontrar. E os materiais artificiais efectuaram grandes progressos. Quanto às retinas, ainda não sabemos conservá-las: por conseguinte, não é possível fazer enxertos... - O médico soltou uma breve casquinada. - Acredite que as histórias de tráfico de órgãos se resumem quase sempre a fantasmas populares.

 

- Fez-lhe outras perguntas?

 

- Não. Tinha um ar desiludido.

 

- Aconselhou-o a ir a algum lado? Deu-lhe outro endereço? Chernecé emitiu um riso afável.

 

- Tem piada, dir-se-ia que perdeu o seu colega.

 

- Responda: é capaz de deduzir o sítio para onde ele se dirigiu após o vosso encontro? Ele disse-lhe aonde contava ir em seguida?

 

- Não. De modo nenhum. - O seu rosto fechou-se. Apesar de tudo, gostaria de saber o que está em causa. Niémans tirou do casacão os polaróides do cadáver de

 

Caillois e colocou-os em cima de uma secretária.

- Trata-se disto.

 

Chernecé pôs os óculos, acendeu uma pequena lâmpada disposta num tripé e observou as fotografias. As pálpebras abertas. As órbitas mutiladas.

 

- Meu Deus... - murmurou.

 

Parecia horripilado e ao mesmo tempo fascinado por aquilo que via. Niémans reparou numa colecção de estiletes cromados, reunidos num estojo de canetas chinês assente na borda de uma mesa. Decidiu passar a uma nova série de perguntas -já que estava a interrogar um especialista, mais valia fazer-lhe perguntas de especialista.

 

- Tenho duas vítimas nessas condições. Acha que uma mutilação assim pode ter sido efectuada por um profissional? Chernecé ergueu o rosto. As suas feições cobriam-se de

 

gotinhas de suor. Guardou silêncio durante longos instantes, depois perguntou:

 

- Céus! A que se refere?

 

- Falo da ablação dos olhos. Tenho grandes planos. Niémans estendeu umas fotografias tiradas muito perto das chagas oculares. - Reconhece aqui nas incisões algo que um perito poderia realizar? Golpes específicos? O assassino extraiu os olhos poupando cuidadosamente as pálpebras: é uma prática corrente? Isto requer profundos conhecimentos anatómicos?

 

Chernecé estudava de novo as imagens.

 

- Quem pôde cometer semelhante acto? Haverá algum monstro assim? Onde se passou isto?

 

- Nos arredores de Guernon. Doutor, responda à minha pergunta: foi um profissional que praticou esta operação?

 

O oftalmologista endireitou-se.

 

- Tenho muita pena. Mas... não faço ideia.

- Qual a técnica utilizada, na sua opinião? O médico aproximou as imagens.

 

-Julgo que se enfiou uma lâmina sob os globos... que se cortaram os nervos ópticos e os músculos oculomotores, explorando a maleabilidade da pálpebra. Penso que em seguida se revirou o olho fazendo alavanca com a parte chata da lâmina. Como se fosse uma moeda, compreende?

 

Niémans meteu os polaróides na algibeira. O médico de tez tisnada seguia com o olhar os seus mais pequenos gestos, como se ainda visse as imagens através do tecido do sobretudo. A camisa dele estava maculada por manchas de suor sobre os contrafortes do torso.

 

- Gostaria de lhe fazer uma pergunta de ordem geral murmurou Niémans. - Reflicta o tempo que for preciso antes de me responder.

 

O médico recuou. A varanda envidraçada parecia habitada pelas reverberações dançantes das árvores. Fez sinal ao polícia para continuar.

 

- Que ponto comum vê entre os olhos e as mãos de um homem? Que laço pode imaginar entre estas duas partes do corpo humano?

 

O oftalmologista deu alguns passos. Recuperava a calma, o domínio de si inerente a um homem de ciência.

 

- O ponto comum é evidente - disse finalmente. - O olho e a mão constituem as únicas partes pessoais do nosso corpo.

 

Niémans estremeceu. Desde a revelação de Costes, “sentia” isto mesmo, sem conseguir explicitá-lo claramente no seu espírito. Foi a sua vez de transpirar.

 

- Seja mais claro...

 

- As nossas íris são únicas. Os milhares de fibrilas que as compõem formam um desenho que nos é peculiar. Uma marca biológica, cinzelada pelos nossos genes. A íris constitui uma marca tão significativa como as impressões digitais. Tal é o ponto comum entre os olhos e as mãos: são as únicas partes do nosso corpo que têm uma assinatura biológica. Uma assinatura biométrica, dizem os especialistas. Se privarmos um corpo dos olhos e das mãos, destruiremos as suas assinaturas externas. Ora, o que é um homem que morre sem estes sinais? Ninguém. Um morto anónimo, que perdeu a sua identidade profunda. Talvez a sua alma, quem sabe? Num certo sentido, não se pode imaginar um fim mais terrível. Uma vala comum da carne.

 

Os painéis de vidro ateavam cintilações nas pupilas incolores de Chernecé, reforçando ainda mais o seu aspecto translúcido. Todo o compartimento se assemelhava agora a uma íris de vidro, As tábuas anatómicas, a silhueta a contraluz, as garras das árvores: cada elemento dançava como no fundo de um espelho.

 

O comissário teve uma iluminação: pensou nas mãos de Caillois, cujos dedos estavam desprovidos de impressões e que o assassino não subtraíra. Sem dúvida alguma, o assassino desinteressara-se destas mãos precisamente porque elas eram anónimas.

 

O assassino roubava as assinaturas biológicas das suas vítimas.

 

- Por mim - retomou o médico -, creio mesmo que os olhos permitem uma identificação ainda mais exacta do que as impressões digitais. Os vossos especialistas deveriam pensar nisto, lá na polícia.

 

- Em que baseia a sua teoria?

 

Chernecé sorriu na obscuridade. Recobrara a sua mestria de professor.

 

- Certos cientistas pensam que podemos ler no fundo das íris não só o estado de saúde de um homem, mas também toda a sua história. Estas pequenas palhetas que brilham em volta da nossa pupila trazem a nossa própria gênese... Nunca ouviu falar dos iridólogos?

 

De uma maneira inexplicável, Niémans teve a convicção de que tais palavras faziam incidir uma luz transversal sobre todo o inquérito. Ainda não via bem a tendência final, mas pressentia que o homicida partilhava dos conceitos do oftalmologista. Chernecé prosseguia:

 

- É uma disciplina nascida no final do século passado. Um domador de águias alemão verificou um fenómeno singular. Uma das suas rapaces partira uma pata. O homem apercebeu-se então de que a íris dela apresentava uma marca nova. Um entalho dourado. Como se o acidente se repercutisse no olho da ave. Pode crer que estes ecos físicos existem. Tenho a certeza. Quem sabe? Talvez o assassino, ao tirar os olhos à vítima, quisesse apagar o vestígio de um acontecimento que podia ler-se no fundo das íris...

 

Niémans recuou, deixando a sombra do médico alongar-se à medida que ele se afastava. Fez uma última pergunta:

 

- Por que não respondeu ao telefone, esta tarde?

 

- Porque desliguei a linha - sorriu o doutor. - Não dou consultas à segunda-feira. Queria consagrar a tarde e a noitinha a arrumar o consultório...

 

Chernecé voltou ao armário e pegou num casaco. Vestiu-o num único gesto, amplo, preciso. O conjunto era azul e escuro, aéreo e rectilíneo. Depois prosseguiu, como se entendesse finalmente a razão da visita de Niémans:

 

- Procurou falar comigo? Peço-lhe desculpa. Podia ter-lhe dito isto tudo por telefone. Sinto-me desolado pelo tempo que o fiz perder.

 

O homem não estava a ser sincero. Transpirava egoísmo e indiferença por todos os poros da sua testa bronzeada. já devia mesmo ter-se esquecido das órbitas violentadas de Rémy Caillois.

 

Niémans contemplou as gravuras de globos escorchados, os vasos sanguíneos que dançavam sobre o branco dos olhos, como que acompanhando as sombras das árvores, através dos vidros espessos das paredes e do tecto.

 

- Não perdi o meu tempo - proferiu ele.

 

Cá fora, uma nova surpresa aguardava o comissário Niémans. Um homem parecia estar à espera dele, por detrás do foco de um candeeiro de iluminação pública, apoiado no seu carro. Era tão alto como ele, de tipo magrebíno, usava umas compridas tranças exóticas, uma boina colorida e uma pêra de Lúcifer.

 

Um polícia experiente sabe reconhecer um homem perigoso quando se cruza com algum. E aquele grande pernalta, apesar da sua postura tranquila, pertencia a tal categoria. Fazia-lhe lembrar os dealers que tantas vezes perseguira no seio das noites parisienses. Niémans apostaria mesmo muito alto pela existência de uma arma de fogo enfiada algures. Aproximou-se, com a mão apertada sobre o seu MR 73, e não acreditou no que os seus olhos viam: o árabe sorria-lhe.

 

- Comissário Niémans? - perguntou quando o polícia já só estava a poucos metros.

 

O argelino meteu a mão por baixo do casaco. Niémans sacou logo da arma e apontou-lha.

 

- Não te mexas!

 

O homem com rosto de esfinge sorriu - mistura de segurança e de ironia elevadas a uma potência que Niémans raramente encontrara até mesmo entre os suspeitos mais velhacos. O argelino disse numa voz calma:

 

- Não se enerve, comissário. Chamo-me Karim Abduf. Sou tenente da polícia. O capitão Barnes disse-me que estava aqui.

 

Num ápice, o árabe concluiu o gesto e fez adejar na luz o seu cartão tricolor. Niémans guardou a arma, não sem uma certa hesitação. Sondava o aspecto pasmoso do jovem argelino. Discernia agora a refulgência de vários brincos sob as tranças.

 

- Não és da brigada de Annecy? - perguntou, incrédulo.

- Não. Venho de Sarzac. No Lot.

 

- Nunca ouvi falar. Karim arrecadou o cartão.

 

- Somos muito confidenciais.

 

Niémans sorriu e tornou a medir dos pés à cabeça o trangalhadanças.

 

- Afinal, que gênero de chui és tu?

 

A esfinge deu um piparote na antena do automóvel.

- Sou o chui que lhe falta, comissário.

 

Os DOIS polícias beberam um café num pequeno bar da estrada, já no caminho de regresso. Ao longe, podiam distinguir-se as luzes de uma barragem de gendarmes e os reflexos dos carros, abrandando diante dos obstáculos e dos faróis giratórios.

 

Niémans escutou com atenção o discurso precipitado de Abduf, chui surgido de nenhures e cujo improvável inquérito parecia bruscamente ligar-se ao caso dos homicídios de Guernon. No entanto, a descrição do argelino era incompreensível. Falava de uma mãe misteriosa e da sua fuga, de uma rapariguinha transformada em rapaz, de diabos que procuravam destruir o rosto da criança, considerando uma perigosa prova convincente... Tudo isto parecia não passar de um longo delírio, excepto que, no meio do caos informativo, o tenente de Sarzac lhe proporcionava o testemunho material de que Filipe Sertys, na noite de domingo para segunda-feira, profanara o cemitério de uma cidadezinha na região do Lot.

 

E esta informação mostrava-se crucial.

 

Filipe Sertys era - sem dúvida - um profanador de túmulos. Convinha, decerto, comparar as partículas descobertas próximo do cemitério de Sarzac com os pneus do Lada.

 

Mas se estes dados confirmassem a suspeita do argelino, então, pela primeira vez, Niémans deteria uma prova concreta da culpabilidade da sua vítima.

 

Em contrapartida, o comissário não via como inserir os outros elementos fornecidos por Karim Abduf dentro do seu próprio inquérito: uma autêntica história do arco-da-velha sobre uma menina e a sua mãe perseguidas por “diabos”. Perguntou a Karim:

 

- Qual é a tua conclusão?

 

O jovem argelino revolvia nervosamente uma saqueta de açúcar entre os dedos.

 

- Penso que os diabos despertaram na noite passada, por uma razão que ignoro, e que Sertys veio verificar, na escola e no cemitério do meu lugarejo, um elemento relacionado com a fuga de 1982.

 

- Sertys seria um dos tais diabos?

- Exactamente.

 

- É absurdo - retorquiu Niémans. - Em 1982, Philíppe Sertys tinha doze anos de idade. Imaginas realmente um miúdo a aterrorizar uma mãe de família e a persegui-la através de toda a França?

 

Karim Abduf ficou carrancudo.

 

- Eu sei. Nem tudo se conjuga ainda.

 

Niémans sorriu e mandou vir um segundo café. Não sabia se devia acreditar em tudo o que Karim Abduf lhe contava. Não sabia, tão-pouco, se devia fiar-se num excêntrico com um metro e oitenta e cinco de altura, que usava dreadlocks, uma pistola automática não-regulamentar e que, segundo tudo indicava, andava num Audi roubado. Mas a história dele não era mais louca do que a sua própria hipótese: a culpabilidade das vítimas. E este jovem argelino tinha uma impetuosidade e um entusiasmo tremendamente comunicativos.

 

Por fim, resolveu confiar nele. Deu-lhe a chave do seu gabinete pessoal, na universidade, onde Karim poderia consultar o conjunto da documentação, e depois explicou-lhe a vertente secreta do seu inquérito.

 

Em voz baixa, o comissário revelou-lhe as suas convicções profundas: as vítimas eram culpadas; o assassino satisfazia uma ou várias vinganças, Resumiu os ténues indícios que corroboravam esta hipótese. A esquizofrenia e a brutalidade de Rémy Caillois. O entreposto isolado e o caderno de Filipe Sertys. Também falou dos “rios de púrpura”, sem poder explicar estes termos estranhos; em seguida, condensou a situação presente: a expectativa dos resultados da segunda autópsia, visto que o corpo talvez contivesse uma nova mensagem.

 

E também a vaga esperança de que todas as linhas lançadas na região iriam dar uma indicação decisiva. Por último, num tom mais grave, falou de ÉricJoisneau e evocou as suas inquietudes.

 

Karim fez várias perguntas precisas sobre o desaparecimento do tenente, que parecia ínteressá-lo em alto grau. Niémans perguntou por seu turno:

 

- Tens uma ideia sobre o assunto?

 

O jovem polícia sorriu com um ar lasso.

 

- A mesma que o senhor, comissário. Penso que o rapaz teve um problema. Pôs o dedo nalguma coisa importante e quis actuar sozinho para lhe passar as palhetas a si. Suponho que descobriu uma coisa capital, mas que esta coisa lhe rebentou na cara. Espero enganar-me, mas o seu Joisneau talvez tenha surpreendido a identidade do assassino, e talvez isto lhe haja custado a vida.

 

Fez uma pausa. Niémans perscrutava as luzes da barragem da estrada, ao longe. Sem o confessar a si mesmo, comungava desta certeza desde o seu despertar na biblioteca. Karim continuou:

 

- Não julgue que sou cínico, comissário. Desde esta manhã que saltito de pesadelo em pesadelo. Agora dou comigo aqui, em Guernon, perante um assassino que arranca os olhos das vítimas. Perante si, Pierre Niémans, um cabeça de cartaz, um dos grandes nomes da polícia francesa, que parece tão perdido como eu nesta terriola... Assim, decidi já não me espantar com nada. Para mim, estes homicídios acham-se em ligação directa com o meu próprio inquérito, e acredite que estou pronto a ir até ao fim.

 

Os dois polícias saíram.

 

já passava da meia-noite. Um leve borraceiro enchia a atmosfera. Ao longe, as barragens dos gendarmes continuavam a enfrentar a chuva. Alguns automobilistas esperavam pacientemente para passar. Mais de um deles esticava o rosto pelajanela entreaberta, observando de modo circunspecto as espingardas-metralhadoras que reluziam sob a morrinha.

 

Por mero reflexo, o comissário deitou uma olhadela ao seu receptor de radiomensagens. Houvera uma chamada de Costes. O polícia telefonou logo ao médico.

 

- Que há? Terminaste a autópsia?

 

- Não completamente, mas gostaria de lhe mostrar algo. Aqui, no hospital.

 

- Não podes falar-me nisso pelo telefone?

 

- Não. E estou à espera dos resultados de outras análises, de um instante para o outro. Venha. Quando chegar, ficará a saber tudo.

 

Niémans desligou.

 

- Novidades? - inquiriu Karim.

 

- Talvez. Tenho de ir ver o legista. E tu?

 

- Vim cá para interrogar Filipe Sertys. Ele morreu. Passo à próxima etapa.

 

- Qual é?

 

- Descobrir as circunstâncias da morte do pai de judith. Desapareceu aqui, em Guernon, e tenho quase a certeza de que os meus diabos desempenharam um papel nesta ocorrência.

 

- Estás a referir-te a quê? Um homicídio?

- Por que não?

 

Niémans esboçou um movimento de cabeça dubitativo.

- Espiolhei os arquivos das gendarmarias e das esquadras de toda a região desde há vinte cinco anos. Não deparei com o mínimo traço de um facto desse género. E volto a dizer-te que Sertys era um fedelho quando...

 

- Depois vejo. De qualquer modo, estou certo de ir encontrar um laço entre este óbito e o nome de mais alguma vítima.

- Por onde vais começar?

 

- Pelo cemitério. - Karim sorriu. - Tornou-se a minha especialidade. Uma verdadeira segunda natureza. Quero certificar-me de que Sylvain Hérault está realmente enterrado em Guernon. Telefonei para Taverlay e encontrei a confirmação do nascimento dejudith Hérault, filha única de Fabienne e Sylvain Hérault, em 1972, dada à luz aqui mesmo, no CHRU de Guernon. Isto no que toca a certidão de nascimento. Falta a de óbito.

 

Niémans comunicou-lhe os números do seu telemóvel e das suas radiomensagens.

 

Karim Abduf meteu o papelinho no bolso e declarou num tom meio-doutoral, meio-irónico:

 

- “Num inquérito, cada facto, cada testemunho é um espelho no qual se reflecte uma das verdades do crime ...“.

 

- O quê?

 

- Ouvi uma das suas conferências, comissário, quando andava na escola de inspectores.

 

- E então?

 

Karim levantou a gola do casaco.

 

- E então, em matéria de espelhos, os nossos dois inquéritos díspõem-se assim.

 

Ergueu as duas palmas e orientou-as devagar uma para diante da outra.

 

- Reflectem-se um no outro, está a topar? E num dos ângulos mortos, caramba!, tenho a certeza de que o assassino nos espera.

 

- Como posso entrar em contacto contigo?

 

- Eu ligo-lhe. Pedi um telemóvel, mas o orçamento de Sarzac não mo concedeu.

 

Ojovem chui inclinou-se numa saudação à maneira árabe e sumiu-se, tão furtivo como uma onda.

 

Niémans, por seu turno, voltou ao chaço. Lançou um derradeiro olhar ao Audi rutilante que arrancava no meio de um

nevoeiro aguacento. Sentia-se de repente mais velho, mais gasto, como que embotado pela noite, pelos anos, pela incerteza. Um sabor a nada teimava em não lhe sair da garganta. Mas também se sentia mais forte: possuía agora um aliado.

 

E um aliado de choque.

 

Os CRISTAIS despediam fulgores irisados, cor-de-rosa, azul, verde, amarelo. Prismas variegados. Luzes quebradas, em forma de caleidoscópio, sob a transparência das lamelas. Niémans ergueu os olhos do microscópio e interrogou Costes:

 

- O que é isto?

 

O médico respondeu, num tom ainda incrédulo:

 

- Vidro, comissário. O assassino colocou desta vez partículas de vidro.

 

- Em que parte do corpo?

 

- Também no fundo das órbitas. No interior das pálpebras. Como pequenas lágrimas petrificadas, coladas sobre os tecidos.

 

Os dois homens estavam na morgue do hospital. O jovem doutor envergava uma bata ensanguentada. Era a primeira vez que Niémans o via vestido desta maneira postado no seu bloco de faiança branca. O traje e o lugar conferiam-lhe uma espécie de autoridade glacial. O médico legista sorriu por detrás dos óculos.

 

- A água, o gelo, o vidro. O parentesco dos materiais é evidente

 

- Ainda sei reparar nas evidências - rabujou Niémans, acercando-se do corpo que pontificava no centro do compartimento, sob um lençol. - O que significa isso? Quero eu dizer: para que tipo de sítio nos encaminha? Estes detritos de vidro têm alguma particularidade?

 

- Estou à espera dos resultados de Astier. Meteu-se no laboratório para realizar um estudo aprofundado e determinar a origem exacta do vidro. Deve trazer também as análises do pó e das farpas que o senhor descobriu no entreposto. já tem a resposta para a tinta do caderno, e é um tanto decepcionante. Trata-se, nem mais nem menos, de uma tinta vulgar. Só isto. Quanto às páginas de algarismos, enquanto não possuirmos outros elementos... Só verificámos a caligrafia dos algarismos: é de facto a de Sertys.

 

Niémans passou a mão a contrapêlo sobre o seu corte à escovinha: quase se tinha esquecido dos indícios do entreposto. O silêncio estendia-se. Levantou os olhos e distinguiu no rosto de Costes um clarão de inteligência, como uma equação matemática resolvida que brilhasse nas suas pupilas. O comissário perguntou, irritado:

 

- O que foi?

 

- Nada. Simplesmente... A água, o gelo, o vidro. Aparecem sempre cristais.

 

-já te disse que sei verificar as...

 

- mas que correspondem a temperaturas diferentes.

- Não compreendo,

 

Costesjuntou as mãos.

 

- As estruturas destes materiais situam-se a graus diferentes de uma escala de temperatura, comissário. O frio do gelo. A temperatura ambiente da água. O abrasamento extremo da areia para se transformar em vidro.

 

Niémans arredou esta ilação com um gesto de cólera.

- E então? O que nos ensina isso sobre os homicídios? Costes meteu os ombros para dentro, como se recuasse de

 

novo para a sua concha de timidez.

 

- Nada. Era apenas uma observação...

- Fala-me antes das mutilações do corpo.

 

- Exceptuando a amputação das mãos, o corpo está igual ao de Calllois. Menos as marcas de tortura.

 

- Sertys não foi torturado?

 

- Não. Visivelmente, o assassino já sabia o que pretendia saber. Passou logo aos actos. Mutilação dos olhos e das mãos. Estrangulamento. Mas, mesmo assim, os sofrimentos devem ter sido intoleráveis porque o assassino começou provavelmente pelas mutilações. Seccionou as mãos, depois extirpou os olhos, e só então acabou com a sua presa.

 

- A técnica de estrangulamento?

 

- A mesma, comissário. Utilizou um cabo metálico, com o qual amarrou inicialmente a vítima. Tal como da primeira vez. As incisões nos membros são idênticas.

 

- E as mãos? De que modo cortou os punhos?

 

- É difícil dizer. Tenho a impressão de que utilizou uma vez mais o cabo. Como um fio de cortar manteiga, está a ver?, com o qual terá envolvido os punhos e apertado de uma maneira prodigiosa. Procuramos um colosso, comissário. Uma força da natureza.

 

Niémans reflectiu. Apesar destes elementos que facultavam uma relativa precisão, não conseguia visualizar o homicida. Nem sequer uma silhueta. Algo o coarctava neste terreno. Pensava antes no assassino em termos de entidade, de potência, de energia global.

 

A hora do crime? - volveu ele.

 

Impossível de calcular. Com o frio dos gelos, não há qualquer meio de tirar a mínima conclusão a tal respeito.

 

A porta da morgue abriu-se abruptamente. Surgiu um pau de virar tripas muito alto, de rosto anémico, nariz achatado e olhar cheio de limpidez. Os olhos eram salientes, vastos como arcos-íris. Costes fez as apresentações. Tratava-se de Patrick Astier. O químico afirmou logo, depondo um pequeno saco de Plástico sobre a banca:

 

- Tenho a composição do vidro. Areia de Fontainebleau, soda, chumbo, potassa, bórax. Segundo a repartição destes componentes, podemos deduzir a sua origem. É aquele com que se esculpem os painéis. Sabem, como os que vemos nas Piscinas. Ou nas casas dos anos 30. O assassino guia-nos para um lugar assim, atapetado de painéis e...

 

Niémans acabava de virar costas. Num lampejo ofuscante, recordara-se subitamente do tecto e das paredes do consultório do oftalmologista. Praguejou mentalmente. Não podia ser uma coincidência: Edmond Chernecé era a terceira vítima.

 

Marc Costes interpelou o polícia quando este já abria a porta:

 

- Aonde vai?

 

Niémans lançou por cima do ombro:

 

- julgo saber onde o assassino vai actuar. Se não for já demasiado tarde.

 

O polícia ia a sair quando Astier o apanhou no corredor. Agarrou-o pela manga.

 

- Comissário, também tenho a composição do pó do entreposto..

 

Pierre Niémans encarou o químico através dos seus óculos perlados de condensação.

 

- O quê?

 

- Sim, os resíduos que recolheu no entreposto...

- E então?

 

- Trata-se de ossadas, comissário. Ossadas de animais.

- Que animais?

 

- Em princípio, ratos. Parece idiota, mas o seu gajola, o Sertys, julgo que se limitava a criar roedores e...

 

Um novo arrepio. Uma nova febre.

 

- Mais tarde - bufou Niémans. - Mais tarde. Volto já.

 

Niémans enchia o seu volante de murros, enquanto sulcava a estrada nacional a mais de cento e cinquenta quilómetros à hora.

 

Se o Dr. Edmond Chernecé fosse a próxima vítima, isto significava que era ele o terceiro culpado.

 

Depois de Rémy Caillois. Depois de Filipe Sertys.

 

E se Chernecé fosse culpado, isto significava que o assassino do jovem ÉricJoisneau era ele.

 

Carago! O comissário mordia os lábios para não urrar. Ruminava os seus próprios erros desde o início. Fazia o balanço da sua própria incompetência. Não quisera ir ao instituto dos cegos por causa daquela parvoíce dos cães. Falhara então o primeiro indício autêntico.

 

Daí a sua completa deriva.

 

Enquanto avançava como um caranguejo no inquérito, brincava aos aprendizes de alpinistas nos glaciares ou interrogava a mãe de Sertys; Joisneau, por seu lado, correra ao instituto e descobrira um facto relevante. Um facto que o conduzira directamente a casa de Chernecé. Mas o jovem tenente progredia agora a uma velocidade que o ultrapassava a si mesmo. O moço não soubera avaliar as implicações das suas descobertas. Não desconfiara sobejamente do médico e interrogara-o sobre um aspecto crucial do inquérito, sobre uma verdade perigosa para o oftalmologista em pessoa. Eis, sem dúvida, o motivo por que Chernecé o eliminara.

 

Em filigrana, formava-se no cérebro de Niémans uma nova certeza estrondeante e terrificante, sobre a qual ele não possuía uma única prova, a não ser o seu próprio instinto: Caillois, Sertys e Chernecé haviam combinado algo juntos. Partilhavam de uma falta comum.

 

E mortal.

 

SOMOS OS SENHORES, SOMOS OS ESCRAVOS.

ESTAMOS EM TODA A PARTE, ESTAMOS EM PARTE NENHUMA.

SOMOS OS AGRIMENSORES.

DOMINÁMOS OS RIOS DE PÚRPURA.

 

Seria possível que este nós remetesse para os três homens? Seria possível que Caillois, Sertys e Chernecé fossem os senhores dos “rios de púrpura”? Teriam eles tramado uma conspiraÇão contra toda a cidade e este conluio fosse o próprio móbil dos homicídios?

 

Desta vez, a porta estava entreaberta. Niémans bifurcou logo para a direita e penetrou na varanda de vidro. A penumbra. O silêncio. Os instrumentos de óptica, quais silhuetas arrogantes. Puxou da arma e deu a volta ao compartimento empunhando-a. Ninguém. Só as linhas das árvores dançavam ainda no chão, infiltrando-se através dos painéis translúcidos.

 

Regressou à morada propriamente dita. Deitou uma mirada à sala de espera afogada em sombra, em seguida calcorreou um vestíbulo de mármore, onde bastões com punho de marfim ou de chifre se erguiam num bengaleiro. Descobriu um salão pejado de móveis maciços e de pesadas tapeçarias, depois uns quartos antiquados onde imperavam leitos de madeira envernizada. Ninguém. Nenhum vestígio de luta. Nenhum vestígio de fuga.

 

Niémans, empunhando sempre o seu MR 73, meteu pela escada e subiu ao piso superior. Entrou num pequeno gabinete que cheirava a encáustica e a folhas de charuto. Descobriu aqui malas de couro maleável, com cadeados dourados, pousadas sobre um tapete coçado.

 

Continuou a avançar. O local exalava um odor medonho a ameaça, a morte. Por umajanela oval, avistou as altas copas das árvores, ainda sacudidas pelo vento embravecido. Reflectiu e compreendeu que esta lucarna ficava por cima do telhado da varanda coberta, o telhado de painéis de vidro. Abriu secamente ajanela e volveu o olhar para a cumeeira transparente.

 

O sangue petrificou-se nas suas artérias. Ao longo dos quadrados pigmentados de chuva destacava-se o reflexo do corpo de Chernecé, como que encarquilhado pelos relevos do vidro. Braços abertos, pés unidos, numa postura de crucifixão. Um mártir espelhado num lago de guache verdinhento.

 

Niémans, com um urro mudo a embargar-lhe a garganta, observou um pouco mais esta imagem e deduziu o lugar exacto do corpo real. De repente, apreendeu ojogo de óptica e esticou a cabeça pelajanela. Virou-se para o alto da fachada. o corpo estava suspenso mesmo por cima da lucarna.

 

Batido pelo vento desenfreado, Edmond Chernecé aparecia pregado contra a parede, semelhante a um frontispício do terror.

 

o polícia voltou ao interior, saiu do pequeno gabinete, galgou uma segunda escada de estreitos degraus de madeira, tropeçou, alcançou o sótão. Uma novajanela, um novo alizar, e chegou à goteira do telhado, contemplando de tão perto quanto possível o cadáver do defunto Edmond Chernecé.

 

O rosto já não tinha olhos. As suas órbitas rasgadas estavam franqueadas ao vento de chuva. Os seus dois braços, apartados um do outro, só exibiam uns cotos sangrentos. O cadáver era mantido nesta postura por um entrelaçamento cerrado de cabos brilhantes e retorcidos, que laceravam as carnes espessas e tisnadas. Niémans fez as contas, enquanto a bátega lhe fustigava as fontes.

 

Rémy Caillois. Filipe Sertys. Edmond Chernecé.

 

As suas certezas voltavam em tropel. NÃO: os assassinatos não eram cometidos por um perverso homossexual em busca de um físico ou de um rosto. NÃO: não se tratava de um assassino em série que sacrificava vítimas inocentes, ao acaso dos seus furores. Estava-se perante um homicida racional, um ladrão de identidade profunda, de marcas biológicas, que agia sob o efeito de um móbil preciso: o da vingança.

 

Afrouxando a tracção, Niémans introduziu-se outra vez no sótão. Apenas o batimento do seu sangue ressoava na casa do morto. Sabia que não terminara a demanda. Conhecia a derradeira conclusão deste pesadelo: o corpo dejoisneau estava ali, algures naquela casa.

 

Poucas horas antes de ser morto, o próprio Chernecé matara.

 

Niémans visitou cada compartimento, procurou em cada móvel, cada escaninho. Revolveu a cozinha, o salão, os quartos. Escavou o jardim, esvaziou uma cabana, sob as árvores. Por fim, descobriu no rés-do-chão, por baixo da escada, uma porta forrada de papel pintado. Arrancou brutalmente o batente dos gonzos. A cave.

 

Desceu a escada, ao mesmo tempo que reconstituía os acontecimentos com exactidão: se às vinte e três horas encontrara o médico de blusa e calções, era porque o doutor saía da sua operação sangrenta - o homicídio de Joisneau. Por tal razão é que ele desligara o telefone. Pela mesma razão é que arrumava cuidadosamente o consultório, onde devia ter apunhalado o jovem tenente com um dos estiletes cromados em que o comissário reparara, no estojo de canetas chinês. Também por esta razão é que ele envergara um traje novo e preparara as bagagens.

 

Estúpido e cego, Niémans interrogara um carrasco à saída da sua faina funesta.

 

Na cave, desencantou suportes, engradados de metal tecidos de teias de aranha, sustendo centenas de garrafas de vinho. Fundos escuros, lacre vermelho, rótulos cor de ocre. Rebuscou em cada recanto da cave, deslocando tonéis, puxando as malhas de ferro, provocando derrocadas de garrafas. Os recipientes de vinho emanavam eflúvios inebriantes.

 

Banhado em suor, bramindo e escarrando, Niémans descobriu finalmente uma fossa, tapada por duas abas de ferragem inclinadas. Rebentou o cadeado, abriu as portinholas.

 

No fundo do alçapão, o corpo de Joisneau repousava semi-imerso em líquidos negros e corrosivos. As garrafas de plástico verde Destop flutuavam à roda dele. Os miasmas químicos tinham começado o seu apavorante aniquilamento, sugando os gases do corpo, remordendo a carne e metamorfoseando-a em vagarosas fumarolas, abolindo gradualmente a entidade física que havia sido ÉricJoisneau, tenente do SRPJ de Grenoble. Os olhos abertos do mocinho, que pareciam fixar o comissário, brilhavam lá da fundura deste túmulo atroz.

 

Niémans recuou e soltou um grito frenético. Sentiu as suas costelas soerguerem-se e afastarem-se como as varetas de um guarda-chuva. Vomitou as suas tripas, o seu furor, os seus remorsos, aferrando-se às garrafeiras, numa cascata de tinidos e dejorramentos de vinho.

 

Não soube exactamente quanto tempo passou assim. Nos eflúvios do álcool. Nas lentas volutas dos ácidos. Mas em breve se elevou nas profundezas do seu espírito, devagarinho, como uma maré negra e venenosa, uma última verdade, que nada tinha a ver com a execução de joisneau, mas que lançava uma nova luz sobre a série dos homicídios de Guernon.

 

Marc Costes pusera em realce o parentesco entre os três materiais que assinalavam cada um dos três crimes: a água, o gelo, o vidro. Niémans compreendia agora que o importante não era isto.

 

O importante era o contexto de descoberta dos corpos. Rémy Caillois fora encontrado através do seu reflexo no rio.

 

Filipe Sertys através do seu reflexo no glaciar.

 

Edmond Chernecé através do seu reflexo no telhado de vidro.

 

O assassino encenava os homicídios a fim de se deparar antes de mais com o reflexo do corpo e não com o corpo real. O que significava isto?

 

O que levava o assassino a esforçar-se tanto para organizar esta multiplicação das aparências?

 

Niémans não sabia explicar as motivações de semelhante estratégia, mas adivinhava um elo entre estes duplos, estes espelhamentos, e o roubo das mãos e dos olhos, que privava o corpo de toda a identidade profunda, de todo o carácter único. Pressentia aqui os dois movimentos convergentes de uma mesma sentença, proclamada por um tribunal sem recurso: a destruição total do SER dos condenados.

 

Afinal, o que tinham feito estes homens para acabarem reduzidos ao estado de reflexos, para que a sua carne fosse privada de qualquer marca distintiva?

 

O CEMITÉRIO de Guernon não se parecia com o de Sarzac. As estelas de mármore branco erguiam-se como pequenos icebergues simétricos sobre escuros relvados. As cruzes destacavam-se como silhuetas curiosas, em bicos dos pés. Só algumas folhas secas vinham derramar aqui umas tantas notas irregulares - pinceladas amarelas sobre a esmeralda da relva. Karim Abduf palmilhava cada vereda, metodicamente, pacientemente, lendo os nomes e os epitáfios gravados no mármore, na pedra ou no ferro.

 

Por enquanto, ainda não encontrara o túmulo de Sylvain Hérault.

 

Ao caminhar, reflectia no seu inquérito e na brutal viragem das últimas horas. Viera a esta cidade o mais depressa possível, não hesitando para tanto em “desviar” um soberbo Audi. Pensava então prender um profanador de sepulturas e vira-se mergulhado num caso de homicídios em série. Agora que lera e memorizara a documentação completa do inquérito de Niémans, tentava convencer-se do cunho articulado do seu próprio inquérito. O arrombamento da escola e a violação do jazigo de Sarzac tinham revelado o destino trágico de uma família. E este destino abria-se agora para a série dos crimes de Guernon. O personagem de Sertys desempenhava o papel de eixo entre os dois casos e Karim estava decidido a seguir o seu próprio trajecto até descobrir outros pontos de contacto, outros laços.

 

Mas não era esta espiral abismosa que o fascinava mais. Era a circunstância de se encontrar agora ao lado de Pierre Niémans, o comissário que o marcara tanto por ocasião dos seminários de Cannes-ÉCLUSE. O chui dos reflexos de espelhos e das teorias atómicas. Um homem de terreno, violento, colérico, pertinaz. Um investigador brilhante que ganhara fama de fera no mundo da bófia e acabara posto na prateleira por causa do seu carácter indomável e dos seus acessos de sanha psicótica. Karim não cessava de pensar nesta nova associação. Estava orgulhoso, já se vê. E sobreexcitado. Mas sentia-se também perturbado por se ter lembrado deste fulano no próprio dia, exactamente algumas horas antes de o encontrar.

 

Karim chegara ao fim da última álea do cemitério. Nenhum Sylvain Hérault. Só lhe restava visitar um edifício com ar de capela, sustentado por duas colunas danificadas: o crematório. Em poucos passos rápidos, alcançou o edifício. Apostar sempre tudo. Abria-se diante dele um corredor iluminado por frestas e em cujas paredes se encafuavam pequenos cofres com nomes e datas gravados. Encaminhou-se para a Sala das Cinzas, lançando breves olhares à esquerda e à direita. Portinhas que se assemelhavam a caixas do correio escalonavam-se por enfiadas, apresentando escritas e motivos variados. Por vezes, um ramalhete murcho fazia lembrar um arlequim colorido ao fundo de um nicho. Depois a litania monocórdica reatava-se lá no fim, uma parede de mármore talhado exibia o texto de uma prece.

 

Aproximou-se mais. Um vento húmido, incerto, como que distraído, assobiava entre as paredes. Finas colunas de gesso rodeavam as pernas do chui, misturando-se com as pétalas secas.

 

Foi então que ele a avistou.

 

A placa funerária. Abeirou-se e leu: “Sylvain Hérault. Nascido em Fevereiro de 1951. Falecido em Agosto de 1980”. Karim não esperava que o pai de Judith tivesse sido incinerado. Esta

técnica não se enquadrava com as convicções religiosas de Fabienne.

 

Mas não era isto o que o espantava mais. Eram as flores, vermelhas, viçosas, cheias de suco e de orvalho, colocadas ao fundo da lucarna. Karim apalpou as pétalas: o ramo estava muito fresco. Fora deposto nesse mesmo dia. O polícia rodopiou, suspendeu o gesto e fez estalar os dedos.

 

Ojogo de pista nunca mais acabaria.

 

Saiu do cemitério e contornou o muro de vedação, à procura de uma casa, de uma barraca, ocupada por um guarda qualquer. Enxergou um pequeno pavilhão mórbido, mesmo à esquerda do santuário. Uma claridade exangue transluzia numajanela.

 

Abriu o portão sem fazer barulho e penetrou num jardim cercado por um alto gradeamento que lhe dava a aparência de umajaula gigante. Ecoavam algures uns arrulhos. Que outro delírio vinha a ser este?

 

Deu alguns passos - os arrulhos acentuaram-se, batimentos de asas fenderam o silêncio, como delicados corta-papéis. Karim franziu os olhos para um muro de nichos que lhe lembrava o crematório. Pombos. Centenas de pombos cinzentos que dormitavam em pequenas arcadas de um verde escuro. Subiu os três degraus e tocou à porta, que se abriu quase imediatamente.

 

- O que pretendes, mariola?

 

O homem empunhava uma espingarda de mola apontada para ele.

 

- Sou da polícia - declarou Karim numa voz calma. Deixe-me mostrar-lhe o cartão e...

 

- Pois sim, árabe duma figa. E eu sou o Espírito Santo. Não te mexas!

 

O chui desceu os degraus às arrecuas. O insulto electrizara-o. E não precisava de uma coisa assim para ter ganas de matar alguém.

 

- Não te mexas, já te disse! - berrou o coveiro esticando a espingarda para a cara do chui.

 

Espumava saliva pelas comissuras dos lábios.

 

Karim recuou mais, devagar. O homem tremia. Desceu por sua vez um degrau. Brandia a arma como um camponês fanfarrão a esgrimir a sua forquilha contra um vampiro num filme de série B. Alguns pombos batiam as asas atrás deles como se houvessem captado a tensão do ar.

 

- Vou arrefecer-te o céu da boca, eu...

 

- Vais o tanas, avozinho. A tua arma está vazia. O babado chasqueou:

 

- Achas? Carreguei-a esta noite, pedaço de asno.

 

- Talvez, mas esqueceste-te de meter uma bala no cano. O homem deitou uma breve mirada à espingarda. Karim aproveitou-se. Pulou os dois degraus e afastou o cano untado com a mão esquerda, ao mesmo tempo que segurava no seu Glock com a direita. Propulsou o homem contra o umbral e esmagou-lhe o punho contra uma esquina.

 

O coveiro urrou e largou a espingarda. Quando ergueu o olhar, foi para ver o orifício negro do automático assestado a poucos centímetros da sua testa.

 

- Escuta-me, palerma - silvou Karim. - Preciso de informações. Se responderes às minhas perguntas, ponho-me a andar sem mais problemas. Se te armares em carapau de corrida, a coisa torna-se complicada. Muito complicada. Sobretudo para ti. Então, concordas?

 

O guarda aquiesceu, de olhos arregalados. Toda a agressividade se sumira do seu rosto, dando lugar a uma rubidez de fornalha. Era o “vermelho pânico” tão bem conhecido por Karim. Apertou ainda mais a garganta engelhada:

 

- Sylvain Hérault. Agosto de 1980. Cremado. Conta lá.

- Hérault? - balbuciou o coveiro. - Não conheço. Karim puxou-o contra si e encostou-o de novo à esquina do

 

umbral. O guarda fez um esgar. Esguichou sangue para a pedra, ao nível da nuca. O pânico contaminara os nichos. Alguns pombos esvoaçavam agora em todos os sentidos, prisioneiros das grades. O chui sussurrou:

 

- Sylvain Hérault. A mulher dele é muito alta. Morena.

 

Encaracolada. Usa óculos. E é muito bonita. Como a filhinha. pensa bem.

 

o babado meneou a cabeça em pequenos movimentos nervosos.

 

- Pronto, eu lembro-me... foi um enterro muito esquisito... Não havia ninguém.

 

O quê? Ninguém?

 

É como te digo: nem sequer a cara-metade veio. Pagou-me adiantado, pela incineração, e nunca mais a vimos em Guemon. Cremei o corpo. Eu... estava sozinho.

 

- De que morreu o homem?

 

- Um... um acidente... Um acidente de automóvel.

 

O argelino recordava-se da auto-estrada e das fotografias aflitivas do corpo da criança. A violência da estrada: um novo estribilho, um novo elemento recorrente. Abduf largara o coveiro. Voltejavam pombos em parafuso, magoando-se contra as malhas do telhado.

 

- Quero as circunstâncias. O que sabes sobre o assunto?

- Ele... foi atropelado por um aselha, na estrada que vai ter ao Belledone. Ia de bicicleta... Para o trabalho... O motorista devia estar com os copos... Eu...

 

- Houve algum inquérito?

 

- Não sei... Pelo menos, nunca se soube quem tinha sido... Encontraram o corpo na estrada, completamente esborrachado.

 

Karim estava aturdido.

 

- Dizes que ia para o trabalho; que gênero de trabalho?

- Trabalhava nas aldeias da montanha. Era cristaleiro...

- O que é isso?

 

- Os gajos que vão pesquisar cristais preciosos, no alto dos píncaros... Parece que era o melhor, mas arriscava-se muito... Karim mudou o rumo à conversa:

 

- Por que motivo não veio ninguém de Guernon ao funeral?

 

O homem esfregava o pescoço, contuso como o de um enforcado. Deitava olhares assustados aos pombos feridos.

 

- Eles eram novos aqui... Vinham de uma aldeola... Taverlay... Nas montanhas... Ninguém se lembraria de ir ao funeral... Não estava ninguém, repito!

 

Karim fez uma última pergunta:

 

- Há um ramo de flores diante da porta da urna: quem vem depô-las?

 

O guarda revolvia os olhos, espavorido. Uma ave moribunda caiu-lhe sobre os ombros. Reprimiu um grito, depois tartameleou:

 

- Há sempre flores ali...

 

- Quem vem depô-las? - insistiu Karim. - É uma mulher muito alta? Uma mulher com uma grenha preta? É a própria Fabienne Hérault?

 

O velho negou energicamente.

- Então quem é?

 

O babado hesitou, como se receasse pronunciar as palavras que fremiam nos seus lábios por entre um fio de saliva. As penas planavam como uma neve.cinzenta. Por fim, murmurou:

 

- É Sophie... Sophie Caillois.

 

O chui pareceu ficar hipnotizado. De repente, diante dele, desdobrava-se um novo vínculo entre os dois casos. Um maldito garrote que se estreitava a ponto de lhe fazer estalar o coração. Inquiriu, a poucos milímetros do homem:

 

- QUEM?

 

- Sim - arfou o outro. - A... mulher de Rémy Caillois. Vem todas as semanas. Algumas, até mais de uma vez... Quando soube do assassínio, pela telefonia, quis dizer aos gendarmes... juro-lhe... Queria dar a informação... Talvez esteja relacionado com o crime... Eu...

 

Karim atirou o velho contra o gradeamento e os voláteis. Empurrou o portão de ferro e correu para o carro. O coração batia-lhe como um gongo.

 

KARIM rodou até ao edifício central da universidade. Reparou logo no polícia que vigiava a entrada principal. Sem dúvida o oficial incumbido de vigiar Sophie Caillois. Continuou o caminho, com ar de quem não quer a coisa, contornou a construção e descobriu uma entrada anexa: duas obscuras portas envidraçadas, sob um alpendre de betão escalavrado, mais ou menos atamancado com um toldo de plástico. Estacionou a cem metros dali e consultou a planta da universidade que fora buscar ao QG de Niémans - uma planta anotada onde estava indicado o apartamento dos Caillois: o n’

 

A peou-se debaixo de chuva e dirigiu-se para as portas. Colocou as mãos junto às têmporas e encostou-as ao vidro a fim de olhar lá para dentro. As portas achavam-se acorrentadas uma à outra por uma cadeia anti-roubo de motocicleta, um modelo velho em forma de arco. A chuva aumentava e fustigava o toldo a um ritmo techno tonitruante. Semelhante ruído anulava todos os complexos em matéria de arrombamento. Karim recuou e partiu o vidro com uma grande sapatada.

 

Engolfou-se num estreito corredor, depois avistou um átrio imenso e sombrio. Olhando de relance através dos vidros, tornou a lobrigar o plantão que tiritava lá fora. Esgueirou-se para o vão da escada, à sua direita, e em seguida subiu os degraus a quatro e quatro. As luzinhas de socorro permitiam-lhe andar sem acender os néons. Karim esforçava-se por não fazer ressoar os degraus suspensos nem as lâminas de metal verticais que se erguiam no centro dos lanços.

 

No oitavo andar, ocupado pelos quartos dos internos, reinava o silêncio. Karim embrenhou-se ao longo do corredor, sempre guiado pela planta anotada de Niémans. Avançou e distinguiu os nomes garatujados por cima das campainhas. Sentia sob os seus passos a indolência das placas de linóleo.

 

Mesmo às duas horas da madrugada, esperaria ouvir ali música, uma telefonia, qualquer coisa que evocasse a solidão confinada dos internos. Mas não, nada... Talvez os estudantes se encovassem nas suas alcovas, aterrados pela ideia de que o assassino viria arrancar-lhes os olhos. Continuou a avançar. Finalmente, encontrou a porta que procurava. Hesitou em utilizar a campainha, depois bateu levemente com o nó dos dedos. Nenhuma resposta.

 

Bateu outra vez, também de mansinho. Não houve resposta. Nenhum ruído no interior. Nem o mais pequeno frémito. Esquisito: a presença da sentinela, lá em baixo, levava a crer que Sophie Caillois estava em casa.

 

Movido por um reflexo, Karim sacou do seu Glock e examinou as fechaduras. A porta não estava aferrolhada. Calçou as luvas de látex e tirou do casaco um sortido de peças de polímero. Enfiou uma sob a lingueta da fechadura principal e exerceu ao mesmo tempo uma pressão contra a porta, enquanto a puxava para o alto. Ela abriu-se em poucos segundos. Karim entrou, sem fazer mais barulho que um simples bafo.

 

Visitou todas as divisões do apartamento. Ninguém. Um sexto sentido advertia-o de que a mulher se pisgara. Sem regresso. Retomou a busca, de uma maneira mais atenta. Viu imagens estranhas ao longo das paredes - atletas com fuças de fachos, a preto e branco, pendurados em argolas ou correndo num estádio. Procurou sobre os móveis, nas gavetas. Nada. Sophie Caillois não deixara qualquer mensagem, qualquer pormenor que traísse a sua abalada - mas Karim pressentia que a donzela se pusera a milhas. E ele não era capaz de abandonar aquele apartamento. Um pormenor, cuja natureza ainda não discernia:, impedia-o de se ir embora. Rodou, virou, viravolteou, para deslindar o pequeno grão de areia que entravava a lógica do instante presente.

 

Por fim, descobriu.

 

Pairava ali um intenso cheiro a cola. Grude de papéis pintados ainda mal seco. Karim precipitou-se ao longo das paredes a fim de observar cada secção. Os Caillois teriam simplesmente

mudado de decoração poucos dias antes da irrupção de violência? Seria um mero acaso? Karim rejeitou a ideia: nos factos que estava a investigar não havia acaso, nem o mais pequeno elemento que não pertencesse ao pesadelo geral.

 

Cedendo a um impulso, arredou alguns móveis e descolou uma primeira folha da parede. Nada. Karim parou: estava fora da suajurisdição, não tinha mandato e devassava o apartamento de uma mulher que ia tornar-se uma suspeita de primeira ordem. Hesitou uns instantes, suspirou, depois descolou outra folha de papel. Nada. Deu meia volta e introduziu os dedos sob uma nova parte do papel pintado. Puxou o retalho, deixando à mostra uma larga superfície.

 

Inscrito na parede, podia ler o fim de uma inscrição acastanhada. A única palavra que distinguia era: PúRPURA. Arrancou logo a porção vizinha da palavra, à esquerda. A mensagem apareceu na totalidade, sob os traços de cola.

SUBIREI ATÉ À NASCENTE DOS RIOS DE PÚRPURA JUDITH

 

A escrita era a de uma criança e a tinta utilizada era sangue. A inscrição estava gravada no gesso, como que insculpida à faca. O assassínio de Rémy Caillois. Os “rios de púrpura”. Judith. já não se tratava de laços, de relações, de ecos. De ora avante, os dois casos fundiam-se num único.

 

De súbito, um leve rumor vibrou atrás dele. Num gesto maquinal, Karim voltou-se. já assestava o seu Glock empunhado com ambas as mãos. Só teve tempo de entrever uma sombra que desaparecia pela porta entreaberta. Soltou um berro e correu para o exterior.

 

A silhueta acabava de eclipsar-se à esquina do corredor. Os ruídos de passos precipitados já haviam lançado o pânico na longa galeria que parecia espreitar o mínimo sinal de perigo para se animar. As portas abriam-se sub-repticiamente patenteando olhares assustados.

 

Em passo de corrida, o chui atingiu a primeira esquina e deu a curva impulsionando os ombros. Partiu através da nova linha recta. já ouvia as ressonâncias graves da escada suspensa.

 

Irrompeu por seu turno no primeiro lanço. As lamelas de metal tangiam de alto a baixo, à medida que a sombra descia de escantilhão os degraus de granito. Karim ia-lhe no encalço. As suas solas cardadas só pousavam uma vez por cada lanço de degraus.

 

Os andares ficavam para trás. Karim ganhou terreno. já só estava à distância de alguns ofegos da sua presa. Desciam agora o mesmo andar; de ambos os lados do separador de lamelas verticais. O chui avistou, mais abaixo, à sua esquerda, o dorso preto e brilhante de um impermeável. Estendeu a mão por entre a simetria metálica e agarrou a manga da sombra, pelo ombro. Não com força suficiente. O seu braço resvalou e ficou entalado em esquadria no tornilho das lâminas. A silhueta escapou-se. Karim retomou a corrida. Perdera alguns segundos.

 

Chegou ao átrio imenso. Totalmente deserto. Totalmente silencioso. Karim viu a sentinela, lá fora, ainda no mesmo sítio. Deslizou na direcção da porta anexa pela qual entrara. Ninguém. Uma cortina de chuva tapava-lhe todo o horizonte no exterior.

 

Karim praguejou. Passou pelo vidro partido e perscrutou o campus, turvado pelo cinzento ondeante da bátega. Nem uma presença, nem um carro. Só o estrépito do toldo de plástico que batia com furor. Karim baixou a arma e voltou costas, crispado numa derradeira esperança: a sombra talvez estivesse ainda lá dentro.

 

De repente, uma vaga impetuosa catapultou-o contra os batentes envidraçados. Por breves instantes, não soube o que lhe acontecia e largou a arma. Submergiu-o um fluxo gelado. Fincado no solo, Karim desfechou um olhar para cima e compreendeu que o toldo do alpendre acabava de ceder sob o peso da chuva acumulada.

 

Julgou ter sido uma casualidade.

 

No entanto, atrás da tela de plástico, ainda suspensa do telhado por duas cordas, surgiu a sombra, negra e reluzente. Impermeável preto, pernas guarnecidas de umas calças justas, de policarbono, rosto escondido num passa-montanhas e encimado por um capacete de ciclista, cintilante como a cabeça de um zangão vitrificado, apertando entre as suas mãos o Glock de Karim, bem apontado ao rosto dele.

 

O chui abriu a boca, mas não emitiu qualquer som.

 

De repente, a sombra carregou no gatilho e esvaziou o carregador num fragor desmultiplicado de vidros. Karim contraiu-se, protegendo o rosto com as mãos. Urrava, numa voz de cana rachada, enquanto o estampido das detonações se misturava com o do vidro quebrado e da chuvada que caía em volta.

 

Instintivamente, Karim contou as dezasseis balas e arranjou forças para erguer os olhos quando as últimas cápsulas ressaltavam no chão. Só teve tempo de ver uma mão nua largar a arma e desaparecer na cortina de chuva. Era uma mão trigueira, dúctil como uma liana, onde apareciam arranhões, um penso e unhas curtas.

 

Uma mão de mulher.

 

O chui contemplou durante uns momentos o seu Glock que ainda fumegava pela câmara da culatra. Em seguida fixou a coronha entalhada por minúsculos losangos. No seu espírito ainda ecoavam múltiplas detonações. As suas narinas respiravam o odor violento a cordite. Poucos segundos depois, o polícia que vigiava a entrada principal chegou finalmente, de arma em punho.

 

Mas Karim não ouvia as suas intimações nem os seus berros suscitados pelo pânico. Sob o apocalipse, possuía agora duas verdades.

 

Uma: a assassina poupara-lhe a vida.

 

A outra: detinha as suas impressões digitais.

 

O QUE fazia em casa de Sophie Caillois? Está fora da sua jurisdição, infringiu as leis mais elementares, poderíamos... Karim observava o capitão Vermont fora de si: crânio calvo e rosto escarlate. Anuía lentamente e esforçava-se por adoptar um rosto contrito. Pronunciou:

 

-já expliquei tudo ao capitão Barnes, Os assassinatos de Guernon relacionam-se com um caso que estou a investigar... Um caso sobrevindo na minha cidade, Sarzac, na região do Lot.

 

- Primeira novidade. Isso não explica a sua presença em casa de uma testemunha importante nem a violação do domicílio,

 

- Combinei com o comissário Niémans que...

 

- Esqueça o Niémans. Retiraram-lhe a alçada deste caso.

- Vermont lançou uma carta precatória para cima da secretária. - Os rapazes do SRPJ de Grenoble acabam de chegar.

 

- A sério?

 

- O comissário está em apuros. Desancou na noite passada um hooligan inglês à saída de um desafio no Parque dos Príncipes. A coisa é grave. Chamaram-no a Paris.

 

Karim compreendia agora por que motivo Niémans investigava naquela cidade. O chuí de ferro quisera sem dúvida fazer-se esquecer após um enésimo atropelo, bem ao seu estilo. Mas não acreditava que ele regressasse a Paris nessa noite. Não. Não o via abandonar o caso - e ainda por cima para prestar contas ao IGS ou ao Palácio Bourbon. Pierre Niémans desencantaria primeiramente o assassino e o móbil dos crimes. E Karim estaria ao lado dele. Todavia, fingiu seguir o gendarme no seu terreno:

 

- Os gajos do SRPJ já chamaram a si o inquérito?

 

- Ainda não - respondeu Vermont, - Temos que os por ao corrente da situação.

 

- Quer-me parecer que não vai sentir a falta de Niémans.

- Engana-se. É um doente, mas ao menos conhece o mundo do crime. De cor e salteado. Com os chuis de Grenoble, vamos ter de recomeçar tudo a partir do zero. E pergunto a mim mesmo qual será o resultado...

 

Karim pousou os dois punhos sobre a secretária e inclinou-se para o capitão.

 

- Telefone ao comissário Henri Crozier, na esquadra da polícia de Sarzac. Verifique as minhas informações. Com jurisdição ou sem ela, o meu inquérito está ligado aos crimes de Guernon. Uma das vítimas, Filipe Sertys, profanou o cemitério da minha cidade a noite passada, pouco antes de morrer. Vermont fez um trejeito céptico.

 

- Redija um relatório. Vítimas que profanam um cemitério. Chuis que chegam de todos os lados. Se pensa que esta história não é já suficientemente complicada...

 

- Eu...

 

- O assassino tornou a actuar.

 

Karim voltou-se: Niémans erguia-se no vão da porta. Tinha o rosto lívido, as feições transtornadas. O argelino pensou nas esculturas dos mausoléus junto das quais passara nas últimas horas.

 

- Edmond Chernecé - prosseguiu Niémans. - Oftalmologista em Annecy. - Aproximou-se da secretária e fitou Karim, depois Vermont. - Estrangulamento por cabo. já não tem os olhos. Nem as mãos, A série não pára.

 

Vermont fez balouçar a sua cadeira contra a parede. Ao cabo de uns instantes, resmungou, num tom queixoso:

 

- Bem lhe dissemos... Toda a gente lhe disse...

 

- O quê? O que é que me disseram? - berrou Niémans.

- Trata-se de um assassino em série, de um criminoso psicopata. À americana! Temos de utilizar os métodos que se usam lá, Chamar especialistas. Traçar um perfil psicológico... não sei... Até eu, um gendarme de província, eu...

 

Niémans vociferou:

 

- É uma série, mas não é um assassino em série! Não é um demente. Realiza uma vingança. Possui um móbil racional, que abrange as vítimas. Existe um laço entre estes três homens que explica hoje a sua morte! Raios me partam. É isto que devemos descobrir.

 

Vermont calou-se e esboçou um gesto de cansaço. Karim aproveitou o silêncio:

 

- Comissário, deixe-me que...

- Não é o momento.

 

Niémans endireitou-se e alisou com um gesto nervoso as abas do seu sobretudo. Esta coqueteria não se ajustava ao seu aspecto de chui hermético. Karim insistiu:

 

- Sophie Caillois deu o cavanço.

 

Os olhos, atrás dos círculos de vidro, volveram-se para ele.

- O quê? Colocámos lá um homem...

 

- Não viu nada. E, no meu entender, ela já vai longe. Niémans observava Karim. Como um animal inédito, geneticamente improvável.

 

- Que nova trapalhada vem a ser essa? - indagou. - Por que razão terá fugido?

 

- Porque o senhor viu bem desde o início. - Karim dirigia-se ao comissário, mas olhava para Vermont. - As vítimas partilham um segredo. E este segredo está ligado aos homicídios. Sophie Caillois fugiu porque conhece o vínculo entre tudo. E talvez seja ela a próxima vítima do assassino.

 

- Chiça!...

 

Niémans ajeitou os óculos. Pareceu reflectir por uns instantes; depois, fazendo um gesto que se assemelhava à esquiva de queixo de um pugilista, incitou Karim a continuar.

 

- Tenho novidades, comissário. Descobri em casa dos Caillois uma inscrição gravada numa das paredes. Uma inscrição assinada “judith” e que fala de “rios de púrpura”. O senhor andava à procura de um ponto comum entre as vítimas, e eu proponho-lhe pelo menos um, entre Caillois e Sertys: Judith. A minha rapariguinha, o meu rosto apagado. Foi Sertys quem profanou a sepultura dela. E foi Caillois quem recebeu uma mensagem assinada com o seu nome.

 

O comissário dirigiu-se para a porta.

 

- Vem comigo.

 

Vermont levantou-se cheio de cólera.

 

- Isso mesmo, ponham-se na alheta! Continuem com os vossos mistérios!

 

já Niémans empurrava Karim lá para fora. A voz do capitão esganiçava-se:

 

- Acabou a sua participação no inquérito, Niémans! Retiraram-lhe a confiança! Ouviu bem? já não pesa nada... Nada! Não tem voto na matéria, é um verbo de encher! É melhor escutar os delírios desse excêntrico... Uma ovelha ranhosa e um marginal. Que linda equipa! Eu cá...

 

Niémans acabava de penetrar num gabinete vazio, a poucas portas dali. Puxou Karim por uma manga, acendeu a luz e fechou a porta, fazendo orelhas moucas ao discurso do gendarme. Pegou numa cadeira e ofereceu-a ao argelino. A sua voz murmurou simplesmente:

 

- Conta lá.

 

KARIM não se sentou e principiou num tom frenético.

- Na parede, a inscrição dizia precisamente: “Subirei até à nascente dos rios de púrpura”. Com sangue à laia de tinta. E uma lâmina à laia de buril. Uma coisa capaz de nos encher de cagaço para o resto das nossas noites. Tanto mais que a mensagem está assinada “Judith”. Sem sombra de dúvida: “Judith Hérault”. O nome de uma morta, comissário. Falecida em 1982.

 

- Não percebo nada.

 

- Eu também não - ciciou Karim. - Mas posso imaginar alguns factos que assinalaram este fim de semana.

 

Niémans ficara de pé. Meneou a cabeça devagar. O argelino continuou.

 

- Aqui tem. O assassino elimina primeiro Rémy Caillois, talvez durante o dia de sábado. Mutila o corpo e depois encaixa-o na falésia. Qual o motivo de todo este teatro, disso é que não faço a mínima ideia. Mas, logo no dia seguinte, posta-se algures no campus. Espreita os movimentos e gestos de Sophie Caillois. Primeiro, a rapariga não dá sinal de si. Depois acaba por sair: digamos, a meio da manhã. Talvez vá em busca de Caillois nas montanhas, não sei bem. Entretanto, o assassino entra em casa dela e assina o seu crime na parede: “Subirei até à nascente dos rios de púrpura”.

 

- Continua.

 

- Mais tarde, Sophie Caillois regressa a casa e descobre a inscrição. Entende o significado de tais palavras. Dá-se conta de que o passado está a despertar e que o marido foi decerto morto. Atemoriza-se, viola o sigilo e telefona a Filipe Sertys, que é ou foi cúmplice do seu marido.

 

- Mas aonde foste buscar tudo isso?

 

Karim debruçou-se. Em voz ainda mais baixa:

 

- A minha ideia é que Caillois, Sertys e a mulher dele são amigos de infância e cometeram um acto culposo quando eram miúdos. Um acto que está relacionado com os termos “rios de púrpura” e a família de Judith.

 

- Karim, volto a dizer-te: nos anos, 80, Caillois e Sertys tinham uns dez anos de idade. Como podes tu imaginar...

 

- Deíxe-me terminar. Filipe Sertys chega a casa dos Caillois. Descobre por sua vez a inscrição. Compreende igualmente a alusão aos “rios de púrpura” e fica com o credo na boca. Mas trata do mais urgente: esconder a inscrição que faz referência a algo, a um segredo que eles devem absolutamente ocultar. Tenho a certeza disto: apesar da morte de Caillois, apesar da ameaça de um homicida que assina o seu crime “Judith”, Sertys e Sophie Caillois só pensam nesse instante em dissimular a marca da sua própria culpabilidade. O ajudante de enfermagem vai então procurar rolos de papel pintado para os colar sobre a mensagem gravada. Assim se explica que haja um cheiro a cola por todo o apartamento.

 

O olhar de Niémans brilhou. Karim percebeu que o chui também devia ter notado este pormenor, sem dúvida por ocasião do interrogatório da moça. Prosseguiu:

 

- Durante todo o domingo, eles esperam. Ou tentam uma nova pesquisa, não sei... Por fim, à tardinha, Sophie Caillois decide-se a prevenir os gendarmes. Na mesma altura, descobre-se o cadáver na falésia.

 

- E depois?

 

- A noite passada, Sertys aproveita a escuridão para ir a Sarzac.

 

- Porquê?

 

- Porque o homicídio de Rémy Caillois é assinado por Judith, morta e enterrada há cerca de quinze anos em Sarzac. E Sertys sabe-o.

 

É um bocado forçado.

 

Talvez. Mas, na noite passada, Sertys esteve na minha cidade com um cúmplice que talvez fosse a nossa terceira vítima: Chernecé. Vasculharam os arquivos da escola. Foram ao cemitério e abriram ojazigo dejudith. Quando se procura um morto, aonde se vai? Ao seu túmulo.

 

- Continua.

 

- Não sei o que Sertys e o outro encontraram em Sarzac. Não sei se abriram o caixão. Não pude aprofundar a inspecção do jazigo. Mas pressinto que nada descobriram que os tranquilizasse verdadeiramente. Regressam então a Guernon com amargos de boca. Caramba!, é capaz de imaginar uma coisa destas? Um fantasma que ciranda por aí e se apresta a eliminar todos os que lhe fizeram mal...

 

- Não tens a mínima prova do que dizes. Karim esquivou-se ao reparo.

 

- Estamos na madrugada de segunda-feira, Niémans. Ao regressar, Sertys é surpreendido pelo fantasma. Dá-se o segundo homicídio. Não há tortura nem suplício. O espectro sabe agora o que pretendia saber. Basta-lhe realizar a sua vingança. Mete-se no teleférico, sobe o corpo até às montanhas. É tudo premeditado: já deixou uma mensagem na sua primeira vítima.

 

Deve deixar outra na segunda. E já não se deterá mais. A sua tese de vingança está a eclodir, Niémans.

 

O comissário sentou-se, sentindo as costas derreadas. Estava banhado em suor.

 

- A vingança de quê? E quem é o assassino?

 

- Judith Hérault. Ou melhor: alguém que se toma por Judith.

 

O comissário permanecia silencioso, cabisbaixo. Karim aproximou-se mais.

 

- Encontrei a sepultura de Sylvain Hérault, Niémans, no crematório do cemitério. Sobre a morte propriamente dita, nada apurei de especial. Hérault morreu atropelado por um aselha. Talvez seja bom investigar a ocorrência, ainda não sei... Mas, esta noite, foi a própria sepultura que me ofereceu um novo elemento. Diante da lucarna, havia um ramo de flores muito frescas. Informei-me: sabe quem vai depor flores todas as semanas, desde há anos? Sophie Caillois.

 

Niémans abanava agora a cabeça, como que apanhado no torniquete de uma vertigen.

 

- Que outra explicação é que me vais arranjar?

- Na minha opinião, ela age por remorso.

 

O comissário não se deu ao trabalho de responder. Karim entesou-se, gritando.

 

- Tudo coincide, valha-me Deus! Não consigo imaginar Sophie Caillois na pele de uma verdadeira culpada. Mas ela partilha um segredo com o marido e sempre o calou, por amor, por medo, ou por qualquer outra razão. No entanto, à sorrelfa, há muitos anos que depõe flores diante da urna de Sylvain Hérault, por respeito para com essa pequena família que o seu mânfio perseguiu.

 

Karim ajoelhou-se à distância de uma trança do comissário.

- Níémans - ordenou ele -, reflicta. O corpo do marido acaba de ser descoberto. Este homicídio assinado “Judith” constitui a vingança evidente de uma cachopinha de outrora. E, apesar de tudo isto, a mulher vem hoje depor flores no túmulo do pai. Os assassínios não engendram o ódio no coração de Sophie Caillois. Reforçam as suas recordações. E o seu arrependimento. Apre! Niémans, estou certo de que tenho razão. Antes de se volatilizar, esta moça quis prestar uma derradeira homenagem aos Hérault.

 

O chui de cabelo à escovinha não respondeu. Os seus traços haviam-se acentuado a ponto de projectarem sombras profundas, sulcadas. Os segundos estiraram-se. Finalmente, Karim levantou-se e prosseguiu, num tom rouco:

 

- Niémans, li com atenção os seus apontamentos de inquérito. Encontrei neles outros indícios, outros pormenores que convergem parajudith Hérault.

 

O comissário suspirou.

 

- Diz lá, sou todo ouvidos. Não sei o que ganho com isso, mas podes falar.

 

O tenente argelino pôs-se a percorrer o compartimento como uma fera numajaula.

 

- Dos seus papéis, conclui-se que só tem uma certeza sobre o homicida: as aptidões de alpinista. Ora, qual era o ofício de Sylvain Hérault? Cristaleiro. Palmilhava os cimos para arrancar cristais à pedra. Era um alpinista de excepção. Passou a vida toda no flanco das falésias, ao longo dos glaciares. No próprio sítio onde o senhor encontrou os dois primeiros corpos.

 

- Como ele, há várias centenas de alpinistas encartados na região. É tudo?

 

- Não. Há também o fogo.

- O fogo?

 

- Notei um pormenor no primeiro relatório de autópsia. Uma observação bizarra, que ressoa dentro da minha cabeça desde que a li. O corpo de Rémy Caillois apresentava vestígios de queimaduras. Costes notou que o assassino pulverizou gasolina sobre as chagas da vítima. Refere-se a um aerossol adulterado, a um Kãrcher.

 

- E então?

 

- Então, existe outra explicação. O homicida poderia ser um expelidor de fogo que vaporizasse a essência com a sua própria boca.

 

- Troca lá isso em miúdos.

 

- A verdade é que ignora um pormenor particular: judith Hérault sabia expelir lume. É incrível, mas é assim mesmo. Encontrei um saltimbanco que lhe ensinou esta técnica, poucas semanas antes de ela morrer. Uma técnica que a fascinava. Dizia que pretendia usá-la como uma arma para proteger a sua “mamã”.

 

Niémans esfregava a nuca.

 

- Santo Deus, Karim, judith está morta!

 

- Há um último sinal, comissário. Ainda mais vago, mas que pode integrar-se na meada. No primeiro relatório de autópsia, a propósito da técnica de estrangulamento, o legista escreveu: “Fio metálico. De tipo cabo de travão ou corda de piano”, Sertys foi morto da mesma maneira?

 

O comissário confirmou. Karim continuou:

 

- Talvez não queira dizer nada, mas Fabienne Hérault era pianista. Uma virtuosa. Imagine, por instantes, que foi uma autêntica corda de piano que matou as três vítimas; não poderíamos ver aqui um laço simbólico? Um verdadeiro fio estendido para o tempo passado?

 

Desta vez, Niémans ergueu-se aos berros:

 

- Aonde queres chegar, Karim? O que procuramos afinal? Um fantasma?

 

Karim retorceu-se no seu casaco de cabedal como um gaiato enleado.

 

- Não sei.

 

Niémans começou por seu turno a andar de um lado para o outro e perguntou:

 

- Pensaste na mãe?

 

- Sim, é claro - respondeu Karim. - Mas não é ela. Baixou a voz. - Ouça-me um pouco mais, comissário. Guardei-lhe o melhor para o fim. Quando estava em casa dos Caillois, o fantasma surpreendeu-me. Um fantasma que persegui, mas que me escapou.

 

- O quê?

 

Karim esboçou um sorriso pesaroso.

 

- Estou cheio de vergonha.

 

- Qual era o aspecto dele? - volveu logo Niémans.

 

- O aspecto dela: era uma mulher. Vi as suas mãos. Ouvi o seu arquejo. Não tenho dúvidas a este respeito. Mede cerca de um metro e setenta. Pareceu-me bastante fortalhaça, mas não é a mãe de Judith. A mãe é um colosso. Mede mais de um metro e oitenta, com uns ombros de estivador. Vários testemunhos concordam neste ponto.

 

- Então quem é?

 

- Não sei. Envergava um impermeável de oleado preto, um capacete de ciclista, uma cogula. É tudo o que posso dizer. Niémans levantou-se novamente.

 

- Temos que difundir os seus sinais. Karim agarrou-lhe no braço.

 

- Que sinais? Uma ciclista na noite? - Karim sorriu. Talvez possua coisa melhor do que isso.

 

Tirou do bolso o seu Glock embrulhado num invólucro transparente:

 

- Estão aqui as suas impressões digitais.

- Ela empunhou a tua fusca?

 

- Até esvaziou o carregador acima da minha cabeça. É uma assassina original, comissário. Assume uma vingança de psicopata, mas estou certo de que só quer mal às suas presas e a mais ninguém.

 

Niémans abriu a porta brutalmente.

 

- Sobe ao primeiro andar. Os rapazes do SRPJ trouxeram um comparador de impressões digitais. Um CMM novinho em folha, directamente ligado à MORPHO. Mas eles não sabem pô-lo a funcionar. Um tipo da polícia científica está a ajudá-los: Patrick Astier. Vai procurá-lo; deve andar acompanhado de Marc Costes, o médico legista. Estes dois gajos estão do meu lado. Chama-os de parte, explica-lhes e compara as impressões com as fichas dactilares de moRpHo.

 

- E se as impressões não nos disserem nada?

 

- Nesse caso, tenta encontrar a mãe. O seu testemunho é capital.

 

- Não tenho feito outra coisa há mais de vinte horas, Niémans. A fulana esconde-se. E esconde-se bem,

 

- Analisa outra vez todo o inquérito. Talvez deixasses passar algum indício.

 

Karim abespinhou-se:

 

- Não deixei passar coisa nenhuma.

 

- Deixaste, sim. Tu próprio mo disseste. Na tua terriola, o túmulo da miúda está perfeitamente conservado. Sendo assim, alguém vem ocupar-se dele regularmente. Quem? Por certo que não é Sophie Caillois. Responde então a esta pergunta, e encontrarás a mãe.

 

- Interroguei o guarda. Nunca a viu.

 

- Talvez ela não vá em pessoa. Talvez haja delegado a tarefa numa agência funerária, não sei... Procura, Karim. De qualquer modo, deves voltar lá para abrir o caixão.

 

O chui árabe arrepiou-se.

- Abrir o...

 

- Temos de saber o que os profanadores procuravam. Ou o que encontraram. Descobrirás também no féretro a morada do cangalheíro - Niémans fez uma piscadela macabra. - Um caixão é como uma camisola: a marca está no interior.

 

Karim engoliu em seco. A ideia de voltar ao cemitério de Sarzac, a ideia de atravessar a noite para mergulhar de novo no jazigo, fazia-lhe fraquejar os membros. Mas Niémans recapitulou numa voz sem apelo:

 

- Primeiro, as impressões digitais. Em seguida, o cemitério. Temos até ao alvorecer para resolver este caso. Tu e eu, Karim. E ninguém mais. Depois, teremos de regressar ao redil e prestar contas.

 

O outro levantou a gola.

- E você?

 

- Eu? Subo à nascente dos rios de púrpura, seguindo a pista do meu pequeno chui, ÉricJoisneau. Só ele tinha descoberto uma parte da verdade.

 

- Tinha?

 

O rosto de Niémans alterou-se.

 

- Foi morto por Chernecé, antes de este ser ele próprio morto pelo nosso assassino, ou assassina. Encontrei o seu corpo numa fossa química, no fundo da cave do médico. Chernecé Caillois e Sertys eram uns safados, Karim. Possuo agora esta convicção. E creio que Joisneau descobrira uma pista que ia no mesmo sentido. Foi o que lhe custou a vida. Encontra-me a identidade do assassino, e eu encontrarei o seu móbil. Encontra-me quem se esconde atrás do fantasma de Judith, e eu encontrarei o significado dos rios de púrpura.

 

Os dois homens embrenharam-se no corredor sem um olhar para os outros gendarmes.

 

CORRIDOS, rapazes. Fomos corridos.

 

-   De qualquer modo, não dispomos da sombra de uma impressão digital, portanto...

 

No limiar de um pequeno compartimento, no primeiro andar, vários chuis contemplavam com ar desanimado um computador encimado por uma lupa móvel e ligado a um scanner por uma rede de cabos.

 

No interior do cubículo, sentado em frente do ecrã, de olhos escancarados comojanelas, um tipo alto e louro esforçava-se por regular os parâmetros de uma função. Karim informou-se: Patrick Astier em pessoa. A seu lado, de pé, um sujeito Moreno, arqueado, desfigurado por umas lentes grossas: Marc Costes.

 

Os chuis saíam do local, acotovelando-se e rosnando algumas reflexões filosóficas sobre a falta de fiabilidade das novas tecnologias. Não deitaram sequer um olhar a Karim.

 

Este acercou-se e apresentou-se a Costes e a Astier. Em poucas palavras, os três interlocutores compreenderam que estavam no mesmo comprimento de onda. jovens e apaixonados, viravam costas ao seu próprio medo concentrando-se neste inquérito. Depois de o chui argelino ter explicado precisamente o que o trazia, Astier não pôde reprimir a sua excitação, Exclamou:

 

- Ena! As impressões digitais do assassino, será possível? Vamos submetê-las imediatamente ao CNIM.

 

Karim espantou-se:

- Funciona?

 

O engenheiro sorriu. Uma ténue racha na porcelana do rosto.

 

- É claro que funciona. - Designou os OPJ, já ocupados noutro sítio. - Eles é que não funcionam da mioleira...

 

Em poucos gestos rápidos, Astier abriu uma das maletas niqueladas que Karim descortinara a um canto do compartimento. Kits sobresselentes de impressões digitais latentes e de moldagens de traços. O engenheiro retirou um pincel magnético. Calçou luvas de látex, em seguida mergulhou o instrumento imanizado num continente de pó de óxido de ferro. Logo as ínfimas partículas se agruparam numa pequena bola rósea, na extremidade da ponta magnética.

 

Astier pegou no Glock e afagou a coronha com o pincel. Pespegou depois sobre a arma um filme adesivo transparente, o qual colou seguidamente sobre um suporte cartonado. Apareceram então as cristas digitais prateadas, brilhantes sob a película translúcida.

 

- Soberbas - sussurrou Astier.

 

Introduziu a ficha dactilar no scanner, depois tornou a sentar-se diante do ecrã. Afastou a lupa rectangular e tamborilou no teclado. Quase instantaneamente, as tramas digitais surgiram no monitor. Astier comentou:

 

- As impressões são de excelente qualidade. Temos o suficiente para numerizar vinte e um pontos: o máximo... Sinais carmesins, ligados entre si por linhas oblíquas, apareciam em sobreimpressão sobre as cristas digitais, coincidindo com pequenos bips sonoros de sala de urgência. Astier continuava, como que falando para si mesmo:

 

- Vejamos o que MORPHo nos diz.

 

Era a primeira vez que Karim observava o sistema em acção- Num tom doutoral, Astier formulava os seus comentários:   MORPHo era um imenso registo informático que conservava as impressões digitais dos criminosos da maioria dos países europeus. Por modem, o programa era capaz de comparar qualquer nova impressão, quase em tempo real. Os discos rígidos zuniam.

 

Por fim, o computador forneceu a resposta: negativa. As impressões digitais da “sombra” não correspondiam a nenhum sulco do ficheiro dos delinquentes conhecidos. Karim endireitou-se e suspirou. já esperava por esta conclusão: a suspeita não pertencia à corporação dos criminosos vulgares.

 

De súbito, o chui teve outra ideia. Um joker. Tirou de dentro do seu casaco de cabedal a ficha cartonada que incluía as impressões digitais dejudith Hérault, colhidas logo após o seu acidente de viação, catorze anos antes. Dirigiu-se a Astier:

 

- Também podes explorar estas impressões e compará-las?

 

Astier rodou no seu assento e pegou na ficha.

- É muito fácil.

 

O engenheiro mantinha-se tão direito que parecia ter engolido um tubo de néon. Lançou um breve olhar aos novos dermatóglifos. Pareceu reflectir uns segundos, depois ergueu os olhos cor de miosótis para Karim.

 

- Onde arranjaste estas impressões?

 

- Numa estação de auto-estrada. São as de uma rapariguínha falecida num acidente de automóvel, em 1982. Nunca se sabe. Uma parecença ou...

 

O cientista interrompeu-o:

 

- Custa-me a acreditar que tenha morrido.

- O quê?

 

Astier meteu a ficha sob o ecrã-lupa. Os sulcos cinzelados surgiram em transparência, irisados e ampliados a uma escala exponencial.

 

- Não preciso de analisar estas impressões para te dizer que são iguais às da coronha da fusca. Mesmas cristas subdigitais transversais. Mesmo turbilhão, logo acima das cristas.

 

Karim estava banzado. Patrick Astier aproximou a lupa móvel do ecrã do computador, de modo a que os dois dermatóglifos ficassem colocados um ao lado do outro.

 

- As mesmas impressões - repetiu ele -, em duas idades diferentes. A tua ficha tem as da criança, a coronha as do adulto.

 

Karim fixava as duas imagens e persuadia-se do impossível. Judith Hérault morrera em 1982, no meio da chapa de um carro espatifado.

 

Judith Hérault, envergando um impermeável preto e um capacete de ciclista, acabava de esvaziar um carregador de Glockjunto à sua cabeça.

 

Judith Hérault estava simultaneamente morta e viva.

 

Era altura de entrar em contacto com os velhos compinchas do passado. Fabrice Mosset. Virtuoso da polícia científica de Paris. Um especialista de dermatóglifos que Karim conhecera por ocasião de um caso intrincado, na época do seu estágio na esquadra da 14ª circunscrição, avenida do Maine. Um sobredotado que afirmava ser capaz de identificar gémeos observando simplesmente as suas impressões digitais. Um método que, na opinião dele, era tão fiável quanto o dos sinais genéticos.

 

- Mosset? Fala Abduf. Karim Abduf

 

- Olá, como vais? Sempre no teu buraco? A voz era cantante. A anos-luz do pesadelo.

 

- Sempre - murmurou Karim. - A não ser que viajo de buraco em buraco.

 

O técnico deu uma gargalhada.

- Como as toupeiras?

 

- Sim, como as toupeiras. Mosset, venho colocar-te um problema aparentemente insolúvel. Peço o teu parecer não oficial. E tenho pressa, Ok?

 

- Estás a fazer uma investigação? Não há problema. Diz lá.

- Disponho de impressões digitais idênticas. Por um lado, as de uma menina falecida há catorze anos. Por outro, as de uma suspeita desconhecida, que datam de hoje. O que achas?

- Tens a certeza de que a menina morreu?

 

- Absoluta. Interroguei o homem que estendeu o braço do cadáver por cima da almofada de tinta.

 

- Então houve decerto um erro de protocolo. Tu ou os teus colegas efectuaram uma falsa manipulação no levantamento das impressões, no local do crime. É impossível que duas pessoas distintas possuam as mesmas impressões digitais, impossível.

 

- Não pode tratar-se de membros de uma mesma família? De gémeos? Lembro-me do teu programa e...

 

- Só as impressões de gémeos homozigóticos comportam pontos de semelhança. E as leis genéticas são infinitamente complexas: existem milhares de parâmetros que influem no desenho final dos sulcos dactilares. Seria necessário um grande acaso para que os desenhos se assemelhassem a ponto de... Karim interrompeu-o:

 

- Tens um fax em casa?

 

- Não estou em casa. Ainda estou no laboratório. - Suspirou. - Ninguém tem piedade dos cientistas.

 

- Posso enviar-te as minhas fichas?

- Nada mais te direi.

 

O tenente ficou em silêncio. Mosset tornou a suspirar:

 

- Ok Vou pôr-me ao pé da telecópia. Telefona-me logo a seguir.

 

Karim saiu do pequeno gabinete onde se isolara, enviou os dois faxes e, em seguida, voltou à saleta e carregou na tecla R do seu telefone. Andavam gendarmes de um lado para o outro. No meio da barafunda, ninguém lhe prestava atenção.

 

- Impressionante - murmurou Mosset. - Tens a certeza de que a primeira ficha apresenta as impressões digitais de uma morta?

 

Karim viu de novo as fotografias a preto e branco do acidente. Os membros frágeis da pequenita a despontar do caos da carroçaria desfeita. Viu de novo o rosto do velho agente rodoviário que conservara a ficha dactilar.

 

- Tenho - retorquiu.

 

- Deve haver um engano nas identidades, na colheita das impressões. Acontece frequentemente, sabes, nós...

 

- Não deves estar a topar - murmurou Karim. - Pouco importa a identidade inscrita na ficha. Pouco importam os nomes e as caligrafias. O que eu quero dizer-te é que a mão da criança esmagada tem as mesmas marcas que a mão que apertou a arma esta noite. É tudo. Valha-me Deus, estou-me nas tintas para a sua identidade. Trata-se simplesmente da mesma mão!

 

Sobreveio um silêncio. Uma pausa na noite eléctrica, depois Mosset desatou a rir.

 

- A tua história é impossível. É tudo o que posso dizer-te. -já te conheci mais inspirado. Deve haver uma solução.

- Há sempre uma solução. Ambos o sabemos. E estou certo de que irás encontrá-la. Telefona-me quando o teu caso ficar esclarecido. Gosto dos enredos que acabam bem. Com uma explicação racional.

 

Karim prometeu e desligou. Rodagens obstinadas não paravam de girar em falso dentro do seu crânio.

 

Nos corredores da brigada, cruzou-se outra vez com Marc Costes e Patrick Astier. O médico legista trazia uma sacola de couro, com recortes quadrados, e a sua tez estava lívida.

 

- Vou ao CHU de Annecy - explicou. Lançou um olhar incrédulo ao companheiro. - Nós... acabamos de saber que há dois corpos. Merda! O chui novinho também espichou... Éric joisneau... já não é um inquérito. é uma carnificina.

 

- Estou ao corrente. Quanto tempo demoras?

 

- Até ao amanhecer, pelo menos. Mas já lá têm outro legista. O caso adquire amplitude.

 

Karim fixava o doutor de feições afiladas, ao mesmo tempo juvenis e fugidias. O homem tinha medo, mas Abduf sentia que a sua própria presença lhe incutia confiança.

 

- Costes, pensei numa coisa... Gostava de saber a tua opinião sobre um pormenor.

 

- Qual?

 

- No teu primeiro relatório, a propósito dos fios metálicos utilizados pelo assassino, falas de cabo de travão ou de corda de piano. julgas que foi o mesmo cabo que matou Sertys?

 

- O mesmo, sim. Mesma fibra. Mesma espessura.

 

- Se porventura se tratasse de uma corda de piano, eras capaz de deduzir a nota?

 

- A nota?

 

- Sim. A nota de música. Medindo o diâmetro de uma corda, podes deduzir a nota exacta a que ela corresponde na escala das oitavas?

 

Costes sorriu com cepticismo.

 

- Percebo aonde queres chegar. Possuo o diâmetro. Queres que eu...

 

- Tu ou um assistente. Mas essa tonalidade interessa-me.

- Estás a seguir uma pista?

 

- Não sei...

 

O médico legista remexia nos óculos.

 

- Para onde posso ligar-te? Tens um telemóvel?

- Não.

 

- Toma lá.

 

Astier acabava de depositar na mão de Karim um telemóvel, um modelo minúsculo, preto e cromado. O argelino não compreendeu. O engenheiro sorriu.

 

- Possuo dois. Creio que precisarás dele nas próximas horas. Karim e Costes deram os números um ao outro. O legista sumiu-se. O tenente voltou-se para Astier:

 

- E tu, o que vais fazer?

 

- Pouca coisa. - Abriu as suas manápulas vazias. -já não tenho nada para pôr na dentuça das minhas máquinas.

 

Acto contínuo, Karim propôs ao engenheiro que o ajudasse no seu próprio inquérito e lhe efectuasse duas missões.

 

- Duas missões? - repetiu Astier, entusiasta. - Todas as que desejares.

 

- A primeira, é ir consultar os registos de nascimento no ClIR de Guernon.

 

- Para apurar o quê?

 

- Na data de 23 de Maio de 1972 encontrarás o nome de Judith Hérault. Vê se ela tinha uma irmã ou um irmão gémeo.

- É a menina das impressões digitais?

 

Karim confirmou. Astier volveu:

 

- Estás a pensar noutra criança que possuísse as mesmas impressões digitais?

 

O chui teve um sorriso embaraçado.

 

- Eu sei. É um absurdo. Mas fá-lo, apesar de tudo.

- E a outra missão?

 

- O pai da miúda morreu num acidente de viação.

- Também ele?

 

- Sim, também. Excepto que ia de bicicleta e foi atropelado. Em Agosto de 80. O nome é Sylvain Hérault. Procura aqui, na brigada. Estou certo de que encontrarás o processo.

- E o que devo extrair?

 

- As circunstâncias exactas do acidente. O tipo foi colhido por um aselha que se volatilizou. Estuda todos os pormenores. Talvez alguma coisa não bata certo.

 

- Do gênero: acidente voluntário?

- Sim, isso mesmo.

 

Karim virou costas. Astier chamou-o:

- E tu, aonde vais?

 

Ele rodopiou, leve, solto, quase irónico face ao terror dos momentos vindouros.

 

- Eu? Regresso à casa de partida.

 

O INSTITUTO dos cegos era uma construção clara, não um vestígio de claridade como as casas de Guernon, mas um edifício resplendente sob o aguaceiro, no sopé do maciço dos Sept Laux. Niémans encaminhou-se para o portão.

 

Eram três horas da madrugada. Nenhuma luz estava acesa. Tocou, enquanto reparava nos compridos relvados em declive à roda do prédio. Distinguiu células fotoeléctricas, fixadas em pequenos marcos no limite do recinto. Fios invisíveis formavam assim um entrançado de alarmes, sem dúvida menos por causa dos ladrões do que para prevenir os cegos quando se afastavam do redil.

 

Tocou outra vez.

 

Um guarda assarapantado veio finalmente abrir-lhe e escutou as explicações, sem que nenhum claror se alumiasse sob as suas pálpebras. No entanto, o homem mandou entrar o polícia para uma grande sala e foi acordar o director.

 

O comissário ficou à espera. O compartimento só estava iluminado pela lâmpada do vestíbulo. Quatro paredes de cimento branco, um chão nu, igualmente branco. Uma escada dupla, ao fundo, que se elevava em pirâmide, ao longo de um corrimão de madeira em bruto e clara. Lâmpadas integradas no tecto de tela esticada. janelas envidraçadas sem sistema de

abertura, que davam a ver as montanhas lá fora. Tudo isto evocava um sanatório de uma nova idade, límpido e vivificante, desenhado por arquitectos de humor evanescente.

 

Niémans descortinou novos acessórios fotoeléctricos: logo, os invisuais deslocavam-se sempre num espaço demarcado. Em cada parede desenhavam-se nesse instante as infinitas miríades da chuvada, correndo sobre os vidros. Odores a mastique e a cimento pairavam no ar; o lugar, pouco seco, carecia singularmente de calor.

 

Deu alguns passos. Um pormenor intrigou-o: uma parte do espaço era ocupada por cavaletes, sobre os quais se desdobravam desenhos com sinais enigmáticos. De longe, estes bosquejos assemelhavam-se às equações de um matemático. De perto, reconheciam-se efígies finas e primitivas, rematadas por semblantes assombrados. O polícia admirava-se de descobrir um estúdio de desenho num centro para crianças invisuais. Experimentava sobretudo um alívio profundo; podia quase sentir as fibras da sua pele a distenderem-se: desde que estava naquele lugar, não ouvira um latido nem um frémito animal. Seria possível que não houvesse qualquer cão ali, num centro para cegos?

 

Subitamente estalejaram passos no mármore. O polícia compreendeu a razão da nudeza dos solos: era uma arquitectura sonora, para seres que utilizavam cada ruído como referência. Virou-se e descobriu um homem vigoroso, de barba branca. Uma espécie de patriarca, com faces rosadas e olhos empapados de sono, vestindo um cardigão cor de areia. Sentiu imediatamente uma intuição positiva frente a este homem: podia confiar nele.

 

- Sou o Dr. Champelaz, o director do instituto - declarou o latagão numa voz baixa. - Que diacho quer de mim a esta hora?

 

Niémans estendeu o seu cartão com faixas tricolores.

 

- Comissário principal Pierre Niémans. Venho falar-lhe a respeito dos homicídios de Guernon.

 

- Outra vez?

 

- Sim, outra vez. Desejo justamente interrogá-lo sobre essa primeira visita, a do tenente Éric Joisneau. julgo que lhe deu informações capitais para o inquérito.

 

Champelaz parecia apoquentado. Os reflexos de chuva, em minúsculas cordas, serpenteavam nos seus cabelos imaculados. O homem observava as algemas e a arma presas à cintura. Ergueu a cabeça.

 

- Meu Deus... Limitei-me a responder às perguntas dele.

- As suas respostas levaram-no a casa de Edmond Chernecé.

 

- Sim, com certeza. E depois?

 

- E depois, os dois homens morreram.

 

- Morreram? Como? Não é possível... Isso...

 

- Lamento, mas não tenho tempo para lhe explicar. Proponho-lhe que retome em pormenor as suas palavras. Sem o saber, o senhor detinha informações muito importantes sobre este caso.

 

- Mas o que pretende...

 

O homem calou-se abruptamente. Esfregou as mãos num gesto seco, mesclado de frio e apreensão.

 

- Pois bem... Não perco nada em acabar de despertar do sono, não é assim?

 

- De facto, julgo que é melhor.

- Quer um café?

 

Niémans aceitou. Seguiu atrás do patriarca, por um corredor no qual se abriam altas janelas. De quando em quando, um relâmpago lançava bruscos jorros de luz, depois a penumbra impunha-se novamente, apenas listrada pelos veios de chuva.

 

O comissário teve a impressão de que avançava numa floresta de lianas fosforescentes. Nas paredes, diante das janelas, voltou a reparar noutros desenhos. Desta vez, eram paisagens. Montanhas de contornos caóticos. Rios esquissados a pastel. Animais gigantes de escamas grosseiras, vértebras excessivas, que pareciam provir de uma idade de pedra, de desmesura, uma idade em que o homem se tornava mais pequeno.

 

- Julgava que o vosso centro só cuidava de crianças cegas. O director virou-se e abeirou-se.

 

- Não só. Tratamos toda a espécie de afecções oculares.

- Por exemplo?

 

- Retinite pigmentar. Cegueira das cores...

 

O homem apontou os seus dedos poderosos para uma das imagens.

 

- Estes desenhos são estranhos. As nossas crianças não vêem a realidade como o senhor e eu, nem sequer, aliás, os seus próprios desenhos. A verdade, a verdade delas, não está na paisagem real nem neste papel. Está no seu espírito. Só elas sabem o que pretenderam exprimir, e nós só o podemos entrever através dos seus esboços, com a nossa visão vulgar. É perturbante, não é?

 

Niémans fez um gesto vago. Não conseguia desviar os olhos daqueles desenhos singulares. Lineamentos empoados, como que esmoídos de matéria. Cores vivas, incisivas, acentuadas. Tal qual um campo de batalha de traços e de tonalidades, mas que exalasse uma certa doçura, uma melancolia de antigas modinhas.

 

O homem bateu-lhe amistosamente nas costas.

 

- Venha. O café vai fazer-lhe bem. Não parece estar nos seus dias.

 

Penetraram numa vasta cozinha cujo mobiliário e utensílios eram todos de ácido inoxidável. As paredes brilhantes lembraram a Niémans as paredes de morgues ou de câmaras mortuárias.

 

O director deitou em duas canecas o café proveniente de uma máquina reluzente, que suportava um globo de vidro permanentemente aquecido. Estendeu uma delas ao polícia e sentou-se numa das mesas de inox. Niémans pensou outra vez nos cadáveres autopsiados, no rosto de Caillois, de Sertys. órbitas vazias, acastanhadas, como buracos negros no instante que passa. Champelaz declarou, num tom incrédulo:

 

- Não há meio de acreditar no que me diz... Esses dois homens, mortos? Mas como?

 

Pierre Niémans furtou-se à pergunta.

- O que disse a Joisneau?

 

O médico encolheu os ombros e começou a rodar o café

 

na caneca.

 

- Ele interrogou-me sobre as afecções que tratamos aqui. Expliquei-lhe que são quase sempre doenças hereditárias, e que a maior parte dos meus pacientes provêm de famílias de Guernon.

 

- Fez-lhe perguntas mais precisas?

 

- Sim. Perguntou-me como se podiam contrair estas afecções. Descrevi-lhe brevemente o sistema dos genes recessivos.

 

- O que é isso?

 

O director suspirou, depois declarou sem irritação:

 

- É muito simples. Alguns genes são portadores de doenças. São genes deficientes, erros de ortografia do sistema, que todos nós possuímos, mas que felizmente não bastam para provocar a doença. Em contrapartida, se os dois progenitores são portadores do mesmo gene, as coisas pioram. A afecção pode manifestar-se nos filhos. Os genes fundem-se e transmitem a doença, como duas tomadas, macho e fêmea, que fizessem passar corrente, compreende? Diz-se assim que a consanguinidade altera o sangue. É uma maneira de falar, para significar que dois progenitores de sangue próximo têm probabilidades mais elevadas de transmitir à sua prole uma afecção que partilham de modo latente.

 

Chernecé já referira estes fenômenos. Niémans volveu: -As afecções hereditárias de Guernon estão ligadas a uma certa consanguinidade?

 

- Sem dúvida alguma. Muitas crianças que são tratadas no Meu instituto, externas ou internas, vêm desta cidade. Pertencem, em particular, às famílias dos professores e dos investigadores da universidade, que constituem uma sociedade muito selecta, e por conseguinte muito isolada.

 

- Importa-se de ser mais preciso?

 

Champelaz cruzou os braços, como se tomasse balanço:

- Existe uma antiquíssima tradição universitária em Guernon. A faculdade data do séculoXVIII, se não me engano. Foi fundada em associação com os suíços. Outrora, localizava-se nas construções do hospital... Em resumo, há perto de três séculos que os professores e os investigadores do campus vivem juntos e casam-se entre si. Deram origem a estirpes de intelectuais muito dotados, mas actualmente empobrecidas e esgotadas do ponto de vista genético. Guernon ja era uma cidade solitária, como todos os burgos perdidos no fundo dos vales. Mas a universidade criou uma espécie de isolamento dentro do isolamento, compreende? Um autêntico microcosmo.

 

- Esse isolamento basta para explicar a ressurgência de doenças genéticas?

 

- Acho que sim.

 

Niémans não via como estas informações podiam integrar-se no seu inquérito.

 

- Que mais disse ajoisneau?

 

Champelaz olhou o comissário de soslaio e em seguida revelou, sempre num timbre grave:

 

- Também lhe referi um facto particular. Um pormenor bizarro.

 

- Conte-me lá.

 

- Há cerca de uma geração, apareceram crianças muito diferentes no seio destas famílias de sangue empobrecido. Alunos brilhantes, mas também possuidores de um vigor físico inexplicável. A maioria deles ganham todos os torneios desportivos e atingem facilmente, em cada prova, os mais altos níveis.

 

Niémans recordou-se dos retratos na antecâmara do reitor: esses jovens campeões sorridentes que arrebanhavam todas as taças, todas as medalhas. Acudiram-lhe também à memória as fotografias dos jogos Olímpicos de Berlim e o pesado calhamaço de Caillois sobre a nostalgia de Olímpia. Poderia dar-se o caso de tais elementos tecerem realmente uma verdade específica?

 

O polícia comentou, armando-se em cândido:

 

- Todos esses jovens deveriam em princípio ser uns doentes, não é assim?

 

- A coisa não é tão sistemática, mas digamos que, logicamente, esses garotos deviam comungar de uma fraqueza de constituição, de algumas taras recorrentes, como as crianças do instituto, por exemplo. Ora, não é o que acontece. Pelo contrário, tudo se passa como se estes pequenos sobredotados tivessem bruscamente açambarcado todos os dons físicos da comunidade, deixando para os outros as fraquezas genéticas.

- Champelaz deitou um olhar crispado a Niémans. - Não bebe o café?

 

Niémans lembrou-se da caneca que segurava na mão. Bebeu uma golada bem quente; mal se apercebeu da sensação. Como se todo o seu corpo já não fosse mais que uma máquina tendida para o mínimo sinal, a mínima parcela de luz. Quis saber:

 

- Deve ter estudado esse fenômeno com minúcia...

 

- Há uns dois anos, efectuei um pequeno inquérito. Primeiro, verifiquei se os campeões eram de facto oriundos das mesmas famílias, das mesmas pátrias. Fui ao registo civil, ao município... Todos estes jovens pertencem às mesmas linhagens. Em seguida, explorei com mais rigor a sua árvore genealógica. Analisei a sua ficha médica na maternidade. Consultei, inclusivamente, as fichas dos pais, dos avós, à procura de sinais, de indícios particulares. Nada encontrei de crucial. Ao invés, alguns dos antepassados eram portadores de taras hereditárias, como nas outras famílias que trato... Era deveras esquisito.

 

Niémans incorporava estas informações sem descurar um único pormenor: pressentia novamente, sem ainda o esclarecer, que tais dados o aproximavam de um aspecto essencial do caso.

 

Champelaz calcorreava agora a cozinha, provocando ondulações lampejantes no inox. Prosseguiu:

 

- Também interroguei os médicos, os obstetras do CHRU, e inteirei-me então de um outro facto que ainda me espantou mais. Há cerca de cinquenta anos, parece que as famílias dos aldeões, as que vivem a maior altitude, em torno do vale, registam uma taxa de mortalidade infantil anormal. Uma mortalidade súbita, logo após o nascimento. Ora, por tradição, estas crianças até costumam ser muito vigorosas. Assiste-se a uma espécie de inversão, está a perceber? Algumas crianças enfezadas da universidade tornaram-se, como por magia, muito robustas, enquanto a prole dos camponeses vai estiolando... Estudei igualmente as fichas desses filhos de criadores de gado ou de cristaleiros, acometidos de morte súbita. Não apurei qualquer resultado. Abordei o assunto com o pessoal do hospital e certos investigadores do CHRU, especialistas em Genética. Ninguém sabe explicar estes fenómenos. Por meu lado, acabei por desistir, cheio de uma impressão de mal-estar. Como hei-de dizer? Somos levados a crer que as crianças da universidade roubaram a energia vital dos seus pequenos vizinhos de maternidade.

 

- Céus! Aonde quer chegar?

 

Champelaz recuou imediatamente neste terreno, para ele inconcebível.

 

- Esqueça o que acabo de lhe afirmar: não é muito científico. É de todo em todo irracional.

 

Talvez fosse irracional, mas a certeza de Niémans arreigara-se: o mistério das crianças sobredotadas não podia derivar de um acaso. Tratava-se de um dos elos do pesadelo. Inquiriu numa voz sumida:

 

- É tudo?

 

O médico hesitou. O comissário repetiu num tom mais forte:

 

É mesmo tudo?

 

- Não - retorquiu Champelaz com um ar desassossegado.

- Há ainda outra coisa. No Verão passado, todo este entrecho se adensou com uma estranha peripécia, simultaneamente anódina e perturbante... No mês de julho, houve uma actualização geral no hospital de Guernon, o que implicava a informatização dos seus arquivos. Uns especialistas foram visitar os subsolos, onde se acumulam velhos papéis poeirentos, a fim de avaliar o trabalho de selecção que se devia realizar. Nesta ordem de ideias, levaram a cabo pesquisas noutros subterrâneos do hospital: as caves da antiga universidade, designadamente da biblioteca anterior aos anos 70.

 

Niémans contraiu-se. Champelaz continuava:

 

- Durante tais pesquisas, os peritos fizeram uma descoberta curiosa. Encontraram fichas de nascimento, as primeiras páginas da documentação interna de bebés, que se espraiavam por uns cinquenta anos. Estas páginas estavam sozinhas, sem o resto dos documentos clínicos, como se... como se tivessem sido sonegadas.

 

- Onde foram descobertos esses papéis? Quero eu dizer: o sítio exacto.

 

Champelaz atravessou novamente a cozinha. Esforçava-se por manter uma atitude desprendida, mas a angústia transparecia na sua voz:

 

- Isso é que se afigura francamente esquisito... As fichas estavam guardadas nos cacifos pessoais de um único homem, um empregado da biblioteca.

 

Niémans sentiu o sangue acelerar-se nas suas veias.

- O nome do empregado?

 

Champelaz deitou um olhar receoso ao comissário. Os lábios tremiam-lhe.

 

- Caillois. Étienne Caillois.

- O pai de Rémy?

 

- Exactamente.

 

O polícia pôs-se de pé.

 

- E só agora é que o diz? Apesar do corpo descoberto ontem?

 

O director fez-lhe frente.

 

- Não aprecio o seu tom, comissário. Não me confunda com os seu suspeitos, por favor. E, acima de tudo, estou a falar-lhe de um pormenor administrativo, de uma ninharia. Como pode ver aqui uma relação com os homicídios de Guernon?

 

- Quem decide as relações entre os elementos sou eu.

 

- Pois seja. Mas, de qualquer forma, eu já disse tudo isto ao seu tenente. Por conseguinte, acalme-se. Além do mais, não lhe revelo nada de secreto. Todos os habitantes da cidade poderiam contar-lhe esta história. É do conhecimento geral. Até os jornais regionais a divulgaram.

 

Neste preciso instante, Niémans não gostaria de ter encontrado um espelho diante de si. Sabia que a sua expressão era tão dura, tão tensa, que o próprio espelho o não reconheceria. O polícia passou a mão pela testa e disse mais serenamente:

 

- Desculpe. Este caso é um autêntico vespeiro. O assassino já matou três vezes e vai continuar. Cada minuto, cada informação, têm um grande valor. Onde estão agora essas fichas antigas?

 

O director arqueou as sobrancelhas, desanuviou-se levemente e apoiou-se outra vez na mesa de inox.

 

- Foram reintegradas nos subsolos do hospital. Enquanto a informatização não estiver terminada, os arquivos continuam intactos.

 

- E suponho que, entre essas fichas, algumas dizem respeito aos pequenos sobredotados, não é assim?

 

- Não a eles directamente; datam de antes dos anos 70. Mas certas fichas são as dos seus pais ou dos seus avós. Foi este pormenor que me impressionou. Porque eu próprio já havia consultado as fichas por ocasião do meu inquérito. Ora, elas não faltavam na documentação oficial, compreende?

 

- Caillois teria simplesmente furtado cópias?

 

Champelaz recomeçou a caminhar. A singularidade da sua história parecia electrizá-lo.

 

- Cópias... ou originais. É possível que Caillois tenha substituído as verdadeiras fichas de nascimento por outras falsas no conjunto da documentação. Desde logo, as verdadeiras, as originais, seriam as encontradas nos seus cacifos.

 

- Ninguém me falou dessa ocorrência. Os gendarmes não efectuaram um inquérito?

 

- Não. Era um simples episódio. Um pormenor administrativo. Ainda por cima, o eventual suspeito, Étienne Caillois, já falecera há três anos. No fundo, só eu é que devo ter-me interessado por essa história.

 

-Justamente. Não se sentiu tentado a ir consultar as novas fichas? A compará-las com as que havia consultado na documentação oficial?

 

Champelaz esforçou-se por sorrir.

 

- Sim. Mas acabei por não dispor de tempo. Parece não entender bem o gênero de documentos em questão. Algumas colunas fotocopiadas sobre uma folha solta, indicando o peso, a altura ou o grupo sanguíneo do recém-nascido... Aliás, estas informações são inscritas um dia depois no boletim de saúde da criança. As fichas só constituem um primeiro elo na papelada do bebé.

 

Niémans lembrou-se de Joisneau, que pretendera visitar os arquivos do hospital. As fichas, mesmo insignificantes, interessavam-lhe na mais alta medida. O comissário mudou bruscamente o rumo da conversa:

 

- Qual é a relação entre Chernecé e todo este enredo? O que levouJoisneau a ir directamente a casa dele ao sair daqui? A agitação do director ressurgiu imediatamente.

 

- Edmond Chernecé mostrava muito empenho nas crianças de que lhe falei ...

 

- Porquê?

 

- Chernecé é   ... enfim, era o médico oficial do instituto. Conhecia a fundo as afecções genéticas dos nossos pensionistas. Estava, pois, bem colocado para se admirar do facto de outras crianças, primas em primeiro ou segundo grau dos seus jovens pacientes, serem tão diferentes. Além disso, a genética era a sua paixão. Pensava que certos elementos genéticos podem ser notados através da pupila dos seres humanos   ... Sob determinados aspectos, era um médico muito especial     ...

 

O polícia voltou a ver o homem de fronte mosqueada. “Especial”: o termo convinha-lhe perfeitamente. Recordou-se igualmente do corpo de joisneau, devorado pelas torrentes ácidas. Redarguiu então:

 

- Não lhe pediu um parecer médico?

 

Champelaz torceu-se de uma forma bizarra, como se o seu cardigão o fizesse sentir coceira.

 

- Não. Eu... não me atrevi. Não conhece o contexto da nossa cidade. Chernecé pertence à nata da universidade, compreende? É um dos oftalmologistas mais reputados da região. Um grande professor. Ao passo que eu não passo do guardião destas paredes...

 

- Acha que Chernecé pôde consultar os mesmos documentos que o senhor: as fichas oficiais de nascimento?

 

- Sim.

 

-Julga que ele ainda as pôde consultar primeiro?

- Talvez, sim.

 

O director baixava os olhos. As suas feições estavam escarlates, inundadas de suor. Niémans insistiu:

 

- julga que ele pôde descobrir que essas fichas tinham sido falsificadas?

 

- Ah... não sei! Não entendo o alcance das suas palavras. Niémans não ateimou. Acabava de compreender outra faceta da história: Champelaz não tornara a examinar as fichas roubadas por Caillois porque receava descobrir uma informação sobre os professores da universidade. Professores que reinavam a seu bel-prazer na cidade e decidiam da sorte de homens como ele.

 

O comissário levantou-se:

 

- Que mais disse ajoisneau?

 

- Nada. Contei-lhe exactamente o que acabo de lhe dizer.

- Pense bem.

 

- É tudo. Garanto-lhe.

 

Niémans postou-se diante do médico.

 

- O nome de judith Hérault diz-lhe alguma coisa?

- Não.

 

- E o de Filipe Sertys?

 

- É o nome da segunda vítima?

 

- Nunca o ouvira anteriormente?

- Não.

 

- O termo “rios de púrpura” desperta em si alguma recordação?

 

- Não. A sério, eu...

- Obrigado, doutor.

 

Niémans saudou o médico aturdido e desandou. já transpunha a soleira da porta quando deitou um olhar por cima do ombro:

 

- Só um último pormenor, doutor: não vi nem ouvi aqui um único cão. Não os há?

 

Champelaz estava atarantado.

- Há?!... Cães?

 

- Sim. Cães para cegos.

 

O homem compreendeu e arranjou forças dentro de si para sorrir.

 

- Os cães são úteis aos cegos que vivem sozinhos, que não beneficiam de qualquer ajuda exterior. O nosso centro está equipado com sistemas domóticos muito elaborados. Os nossos pacientes são prevenidos do mais pequeno obstáculo, orientados, guiados... Não há necessidade de cães.

 

Cá fora, Niémans virou-se para o edifício claro, que cintilava debaixo da chuva. Desde a manhã, evitara este instituto em nome de perros que não existiam. Enviara Joisneau para ali devido a um puro cagaço, em nome de espectros que só ladravam no seu cérebro.

 

Abriu a porta do carro e cuspiu no chão antes de entrar. Os seus próprios fantasmas é que tinham custado a vida ao jovem tenente.

 

NiÉmans descia as elevações alcantilosas dos Sept Laux. A chuvada redobrava. À luz dos faróis, o asfalto rebrilhava numa emanação cristalina. De vez em quando rasgava-se uma poça de lodo que esparrinhava sob as rodas num barulho de catarata. Niémans, aferrado ao volante, tentava dominar o veículo que derivava constantemente para a beira do precipício.

 

De súbito, o seu pager ressoou dentro do bolso. Com uma mão, o oficial acendeu o ecrã: uma mensagem de Antoine Rheims, de Paris. No mesmo gesto, pegou no telefone e solicitou o número posto em memória. Assim que reconheceu a voz, Rheims anunciou:

 

- O inglês morreu, Pierre.

 

Totalmente imerso no seu inquérito, Niémans concentrou-se para avaliar as consequências desta notícia. Mas não conseguiu. O director de serviço continuou:

 

- Onde estás?

 

- Nos arredores de Guernon.

 

- Considera-te sob prisão. Em teoria, devias constituir-te prisioneiro, entregar a arma e pagar o patau.

 

- Em teoria?

 

- Falei ao Terpentes. O vosso caso marca passo e a coisa começa a ficar muito feia. Todos os meios de comunicação social estão aí no lugarejo. Amanhã de manhã, Guernon será a cidade mais célebre de França. - Rheims fez uma pausa. E toda a gente te procura.

 

Niémans mantinha-se em silêncio. Perscrutava a estrada, cheia de curvas, como se quisesse trespassar os turbilhões de chuva que pareciam rodar em sentido contrário. Ronda contra ronda. Coluna contra coluna. Foi Rheims quem reatou a conversa.

 

- Pierre, falta muito para prenderes o assassino?

 

- Não sei. Mas repito-te que estou no bom caminho, tenho a certeza.

 

- Então ajustaremos contas mais tarde. Finge que não falámos um com o outro. Estás incomunicável, inacessível... Concedo-te mais uma hora ou duas para pôr fim a esse imbróglio. Depois, já nada poderei fazer por ti. Excepto arranjar-te umadvogado.

 

Niémans resmoneou umas frases e desligou o telefone. Foi neste instante que o automóvel irrompeu no foco dos faróis, guinando para a sua direita. O polícia levou um segundo a mais a reagir. O veículo bateu em cheio no lado direito. o volante escapou-lhe das mãos. O chaço chocou com um rochedo da falésia. Urrou e tentou voltar à estrada. Num ápice, logrou novamente o comando do carro, lançando um olhar furibundo ao outro automóvel. Um 4x4 escuro, com os faróis apagados, que atacava outra vez.

 

Niémans recuou. O veículo maciço sacolejou por seu turno e em seguida virou à esquerda, forçando-o a travar de chofre. Niémans acelerou de novo. O 4x4 estava agora na sua frente e rodava a toda a velocidade, impedindo-o sistematicamente de passar. Crostas de lama recobriam a sua matrícula, Com a cabeça esvaída, tentava acelerar e ultrapassar o 4x4 por fora. Em vão. O bloco negro cerceava o mínimo espaço, atingindo o lado esquerdo do chaço quando ele avançava, impelindo Niémans para a morte do precipício.

 

O que pretendia afinal este tresloucado? De repente, Niémans abrandou, deixando várias dezenas de metros entre si e o veículo homicida. Logo, o 4x4 abrandou por sua vez, forçando o chaço a aproximar-se. Mas o oficial de polícia tirou partido de tal mudança de ritmo. Bruscamente, acelerou em força e enfiou-se desta feita pela esquerda. Conseguiu passar in extremis.

 

O comissário duplicou a potência, carregando no prego. No retrovisor, viu o veículo todo-o-terreno diluir-se nas trevas, Sem reflectir, manteve o rumo e percorreu vários quilómetros, Estava novamente sozinho na estrada.

 

Seguia agora a toda a velocidade o sinuoso e confuso traçado do asfalto, através das cordas de chuva e sob as abóbadas de coníferas. O que sucedera? Quem o atacara? E porquê? O que sabia ele agora para valer a pena eliminá-lo? O assalto havia sido tão rápido que não pudera sequer distinguir a silhueta ao volante do veículo.

 

No fim de uma curva, Niémans enxergou a estrada suspensa daJasse: seis quilómetros de ponte betonada, em equilíbrio sobre pilares de mais de cem metros de altura. Só estava, portanto, a dez quilómetros de Guernon, o redil.

 

Acelerou ainda mais.

 

Embrenhava-se no passadiço quando um resplendor branco o encandeou, banhando de súbito o vidro da retaguarda. Faróis no máximo. O 4x4 encontrava-se outra vez junto ao seu pára-choques. Niémans baixou o retrovisor ofuscante e fixou o trilho de betão, suspendido na noite. Pensou distintamente: “Não posso morrer. Não assim”. E assentou o pé a fundo no pedal do acelerador.

 

Os faróis continuavam atrás de si. Debruçado sobre o volante, atentava exclusivamente nas barras de protecção que brilhavam sob as suas próprias luzes, cingindo a estrada numa espécie de beijo louco, de halo rumorejante, fulgurante nos vapores de água.

 

Metros ganhos ao tempo. Segundos roubados à Terra.

 

Niémans experimentou uma ideia estranha, por assim dizer uma convicção inexplicável: enquanto rodasse naquela ponte, enquanto voasse no meio da tempestade, nada lhe aconteceria. Estava vivo. Estava leve. Invulnerável.

 

A colisão bloqueou-lhe a respiração.

 

A sua cabeça disparou num movimento de funda e esbarrou com o pára-brisas. O retrovisor desfez-se em estilhas. A armação do espelho rasgou a têmpora de Niémans como um gancho. O chui corcovou-se com um grunhido, de mãos enlaçadas acima da cabeça. Sentiu o carro derrapar para a esquerda, depois para a direita, tornando a girar... O sangue inundava metade do seu rosto.

 

Um novo sobressalto e, de súbito, o bofetão acerado da chuva. A frescura sem limite da noite.

 

Houve um silêncio. Tudo negro. O intervalo de uns segundos.

 

Quando Niémans abriu os olhos, não pôde acreditar no que via: céu e relâmpagos ao contrário. Voava, sozinho, no vento e na chuvada.

 

O carro, ao embater no parapeito, expulsara-o e catapultara-o no vazio, por cima da ponte. Estava a despenhar-se, lentamente, silenciosamente, agitando devagar os braços e as pernas, interrogando-se, de uma maneira absurda, sobre a sensação última de que se revestiria a sua morte.

 

Respondeu-lhe sem demora um desencadeamento de sofrimentos. Chicotes de agulhas. Ramos estalados. E a sua carne a explodir em mil chispas de dor, por entre as epíceas, os lárices...

 

Houve dois choques, quase simultâneos.

 

Primeiro, o seu próprio contacto com o solo, amortecido pela ramaria inumerável das árvores. Depois um estrondo de apocalipse. Um embate radical. Como uma enorme tampa que se abatesse de uma só vez sobre o seu corpo. O instante fragmentou-se num caos de sensações contraditórias. Mandíbulas de frio. Escaldões de vapor. Água. Pedra. Trevas.

 

Transcorreu tempo. Um eclipse.

 

Niémans reabriu os olhos. Por detrás das pálpebras, outras pálpebras o acolheram - as da obscuridade, as da floresta. Aos poucos, tal qual uma ressaca de além-túmulo, voltou-lhe a lucidez. Gradualmente, extirpou esta conclusão das profundezas do seu espírito: vivo, estava vivo.

 

Reuniu alguns farrapos de consciência e reconstituiu o que sobreviera.

 

Abatera-se através das árvores e, por sorte, engastara-se numa vala de escoamento cheia de águas da chuva, junto a um dos pilares. No mesmo ímpeto, seguindo exactamente a mesma trajectória, o seu próprio carro saltara do passadiço e despedaçara-se, semelhante a um enorme tanque de guerra, mesmo acima dele. Sem o atingir: o chassis da carripana, demasiado largo, ficara bloqueado nos rebordos da canalização. Um milagre.

 

Niémans fechou os olhos. Múltiplos ferimentos torturavam o seu corpo, mas uma sensação mais ardente, uma fluidez de lume, palpitava na região da têmpora direita. Adivinhou que a haste do retrovisor lhe retalhara as carnes em profundidade, por cima da orelha. em qompensação, pressentia que o seu corpo fora relativamente poupado pela queda.

 

De queixo colado ao torso, observou por sobre si a maquinaria fumegante do seu carro. Estava aprisionado por baixo de um telhado de chapas ainda ferventes, no côncavo de um sarcófago de cimento. Voltou a cabeça da direita para a esquerda e apercebeu-se de que um pedaço de pára-choques o retinha no conduto.

 

Num esforço desesperado, exerceu um movimento lateral dentro do rego. As dores que formigavam ao longo do seu corpo jogavam agora a favor dele: anulavam-se umas às outras, mergulhando a sua carne numa espécie de indiferença mortificada.

 

Conseguiu esgueirar-se sob o pára-choques e sair daquele sepulcro. já com os braços libertos, levou logo a mão à têmpora e sentiu um fluxo espesso que escorria das suas carnes abertas. Gemeu ao aperceber-se do doce calor do sangue a derramar-se entre dedos doridos. Pensou num bico de pássaro enviscado, a vomitar alcatrão, e as lágrimas afloraram aos seus olhos.

 

Soergueu-se, apoiando-se com um braço no rebordo do conduto, depois rolou para o solo, enquanto através da sua consciência vacilante um outro pensamento o angustiava.

 

O assassino ia voltar. Para acabar com ele.

 

Agarrando-se à carroçaria, logrou pôr-se de pé. Com um murro, abriu a mala amolgada e tirou de lá a sua espingarda de mola, bem como um punhado de cartuchos, espalhados no interior. Apertando a arma sob o braço esquerdo - continuava a estancar o sangue da ferida com a mão deste lado -, conseguiu encher a câmara da espingarda servindo-se da mão direita. Efectuava os gestos às apalpadelas, sem praticamente ver coisa alguma: perdera os óculos e a noite estava impenetrável como o mais fundo dos pélagos.

 

Com o rosto salpicado de sangue e de lama, o corpo zurzido de sofrimentos, o comissário virou-se e varreu o espaço com a arma. Nem um ruído. Nem um movimento. Acometeu-o uma vertigem. Deslizou ao longo do carro, depois caiu de novo na vala de cimento. Sentiu desta vez a mordedura da água fria e despertou. já caracolava contra as paredes de cimento, na direcção de um rio.

 

Por que não, afinal de contas?

 

Estreitou a espingarda contra o peito e deixou-se derivar a caminho de águas mais amplas, como um faraó em viagem para o rio dos mortos.

 

Niémans flutuou durante muito tempo, ao sabor da corrente. De olhos abertos, avistava por entre as nesgas da folhagem os blocos cor de mate do céu sem estrelas. À esquerda e à direita, via aluimentos de greda vermelha, amontoamentos de ramos e raízes, formando uma amálgama inextrincável.

 

Não tardou que o regato se encrespasse, ganhando força e fragor. O homem deixava-se levar, com a cabeça tombada para trás. A água gelada provocava uma vasoconstrição ao longo da têmpora e evitava que ele perdesse demasiado sangue. Transportado através dos meandros, esperava agora que o curso de água o fizesse chegar a Guernon e à universidade.

 

Em breve compreendeu que a sua esperança era baldada. Aquele ribeiro não tinha saída: não descia para o campus. O afluente enrodilhava-se em esses cada vez mais apertados, no próprio seio da floresta, e perdia novamente a força e o ímpeto.

 

A corrente imobilizou-se.

 

Niémans nadou para a margem e soltou-se das águas a arfar. O caudal estava tão carregado de partículas, tão pejado de limos, que não reenviava nenhum reflexo. Esbarrondou-se no solo encharcado atapetado de folhas caídas. As suas narinas encheram-se de odores fétidos, esse cheiro característico, levemente fumado, da terra íntima misturada com fibras e vergônteas, húmus e insectos.

 

Assentou as costas no chão e lançou um olhar às frondescências da floresta. Não era uma mata densa, intrincada, mas antes um bosquezinho de árvores esguias, espaçadas, onde reinava uma espécie de vacuidade, de liberdade vegetal. No entanto, a escuridão era tão profunda que se tornava impossível lobrigar sequer as massas negras das montanhas acima de si. E não sabia durante quanto tempo derivara, nem em que direcção.

 

Apesar da dor, apesar do frio, arrastou-se, encolhido, e encostou-se a um tronco. Esforçou-se por reflectir. Procurava lembrar-se do mapa da região no qual inscrevera os lugares assinaláveis do inquérito. Pensava mais precisamente na posição da universidade de Guernon, situada a norte dos Sept Laux.

 

O Norte.

 

Na ausência de qualquer referência sobre a sua própria posição, como havia de encontrar o Norte? Não dispunha de bússola nem de qualquer instrumento magnético. De dia, poderia orientar-se pelo sol, mas de noite?

 

Tornou a reflectir. Com o sangue que recomeçava a escorrer-lhe do crânio e o frio que já lhe tolhia a extremidade dos membros, só tinha umas escassas horas diante de si.

 

Subitamente, algo clareou no seu espírito. Mesmo nesse instante podia discernir a orientação do sol. Graças aos vegetais. O comissário nada conhecia no domínio da flora, mas sabia o que toda a gente sabe: certas espécies de musgos e de líquenes, desejosas de humidade, só brotam à sombra e fogem de toda a exposição ao sol. Logo, estas plantas obscuras deviam crescer exclusivamente a norte, ao pé das árvores.

 

Niémans ajoelhou-se, ao mesmo tempo que procurava no seu casacão empapado o estojo antichoque onde guardava um par de óculos sobresselentes. Intactos. Através das novas lentes, divisou com precisão o meio circundante.

 

Pôs-se à cata, junto às coníferas, ao longo dos taludes. Ao cabo de poucos minutos, com os dedos enregelados e enfarruscados de terra, compreendeu que tinha razão. Perto dos troncos, uns pequenos bosquetes de esmeralda, novelos de frescura, apareciam sempre de acordo com a mesma orientação. O polícia sentia as cúpulas tamanhinhas, as superfícies filandrosas, as texturas macias - toda uma selva em miniatura que lhe indicava agora o caminho do Norte.

 

Endireitou-se com dificuldade e seguiu a rota dos musgos. Cambaleava, esmagando torrões, sentindo o coração bater em latejos cavos. Os charcos, as cascas e os ramos de agulhas desfilavam. Os seus pés calcavam cascalho, terrenos de sílex, tufos de espinhos eriçados de ervas altas: ele continuava a seguir a senda dos líquenes. Outras vezes, enterrava-se em pântanos rangentes de gelo, que semeavam manchas salobres na encosta dos morros. Apesar da fadiga, apesar dos ferimentos, ele adquiria velocidade e colhia forças nos perfumes turbilhonantes do ar. Parecia-lhe caminhar no meio do próprio bafejo do aguaceiro, que acabava de cessar para tomar fôlego. Por fim, surgiu uma estrada.

 

O asfalto reluzente, o trilho da salvação. Niémans sondou novamente os boibos friorentos ao longo do chão pedregoso, para definir o rumo certo. Mas, de repente, uma carrinha da gendarmaria apareceu numa curva, com os faróis lá no alto.

 

O veículo parou logo. Apearam-se homens para ajudar Niémans, que desfalecia, ainda aferrado à espingarda.

 

O polícia exangue sentiu que os gendarmes o amparavam. Ouviu murmúrios, gritos, roçagares de oleados. Os faróis dançavam na oblíqua. Dentro da camioneta, um dos homens berrou ao motorista:

 

- Para o hospital, depressa! Niémans, meío-consciente, balbuciou:

- Não. Para a universidade.

 

- O quê? Está muito maltratado e...

 

- Para a universidade. Eu... tenho encontro marcado.

 

A     PORTA abriu-se e deixou ver um sorriso.

 

Pierre Niémans baixou os olhos. Vislumbrou os punhos poderosos e sombreados da mulher. Mirou, um pouco acima, as malhas apertadas da camisola grossa, depois subiu até à gola, perto da nuca, onde os cabelos eram tão finos sob o volume do carrapicho que só desenhavam um halo, uma bruma. Pensou na magia daquela pele, tão bela, tão lisa, que transformava cada matéria, cada peça de roupa, num privilégio. Fanny bocejou:

 

- Vem atrasado, comissário. Niémans tentou sorrir.

 

- Não... não estava a dormir?

 

Ajovem acenou negativamente com a cabeça e afastou-se. Ele avançou para a luz. O rosto de Fanny contraiu-se: acabava de ver as feições ensanguentadas do polícia. Recuou, englobou num único olhar a silhueta devastada. Sobretudo azul a pingar. Gravata rota. Tecidos desfeitos.

 

- O que lhe aconteceu? Um acidente? Niémans confirmou com um breve meneio.

 

Deitou um olhar circular ao compartimento principal do pequeno apartamento. Através da febre, através dos sacões das artérias, sentia-se feliz por descobrir este lugar. Paredes imaculadas, cores suaves. Uma secretária atafulhada sob um computador, livros, papéis. Pedras e cristais em prateleiras.

 

Material de alpinismo. Fatos fluorescentes empilhados. Uns aposentos de solteira, ao mesmo tempo sedentária e desportista, caseira e apreciadora de aventuras. Num instante, toda a expedição aos glaciares lhe passou pelas veias. Uma recordação sob a forma de brilho de geada.

 

Niémans desabou sobre uma cadeira. Lá fora, chovia outra vez. Ouvia-se o martelar das gotas, algures no telhado, e também os ruídos abafados da vizinhança. Uma porta que rangia. Passos. Uma noite no mundo dos estudantes, inquietos e confinados.

 

Fanny ajudou o oficial a despir o sobretudo, depois observou com atenção a ferida aberta ao longo da têmpora. Não parecia experimentar a mínima repulsa face ao sangue petrificado, às carnes esgarçadas e acastanhadas. Assobiou mesmo por entre os dentes.

 

- Está muito ferido, Espero que a artéria temporal não tenha sido atingida. É difícil saber: o crânio continua a gotejar sangue e... Como é que isto aconteceu?

 

- Tive um acidente - respondeu Niémans laconicamente. - Um acidente de viação.

 

- Vou levá-lo ao hospital.

 

- Nem pense nisso. Devo prosseguir o inquérito.

 

Fanny ausentou-se para outro compartimento, voltando depois com os braços carregados de compressas, medicamentos, saquetas sob vácuo dentro das quais se viam agulhas e soro. Abriu vários invólucros com dentadinhas apressadas. Em seguida, atarraxou uma agulha no corpo de uma seringa plastificada. Niémans deitou um olho à ampola. Fanny aspirara o seu conteúdo subindo o êmbolo da seringa. Ele inteiriçou-se e pegou na embalagem do produto.

 

- O que é?

 

- Um anestesiante. Vai acalmá-lo. Não tenha medo. Niémans agarrou-lhe no pulso.

 

- Espere.

 

O polícia leu as características do produto. Xilocaína. Um anestesiante adrenalinado que, sem sombra de dúvida, iria contribuir para atenuar as suas dores sem o pôr grogue. Em sinal de concordância, Niémans deixou cair o braço.

 

- Nada receie - murmurou Fanny. - Este produto vai igualmente reduzir a hemorragia.

 

Cabisbaixo, Niémans não podia espreitar os gestos da mulher. Mas parecia-lhe que ela picava repetidamente os bordos da chaga. Ao fim de poucos segundos, o sofrimento recuava já. Tem material para coser? - murmurou ele.

 

É claro que não. Convém ir ao hospital. Não tarda a sangrar de novo e...

 

- Faça um garrote. Seja o que for. Devo continuar o inquérito, manter o espírito claro.

 

Fanny encolheu os ombros, depois humedeceu vârias compressas com um aerossol. Niémans lançou um olhar na sua direcção. As coxas retesavam-lhe os Jeans, as curvas bombeavam-se em linhas de força que suscitavam nele uma surda excitação, mesmo no estado em que se achava. Interrogava-se sobre os contrastes da jovem. Como podia ser ao mesmo tempo tão diáfana e tão concreta? Tão doce e tão brutal? Tão próxima e tão longínqua? Reencontrava a mesma contradição no seu olhar: fulgor agressivo dos olhos, infinita brandura das sobrancelhas. Perguntou, respirando o odor acre dos curativos anti-sépticos:

 

- Vive aqui sozinha?

 

Fanny limpava a ferida em pequenos manejos enérgicos. O polícia mal sentia a ardência, sob o crescente efeito do analgésico. Ela recobrou o sorriso:

 

- Não perde pitada.

 

- Des... desculpe... Estou a ser indiscreto?

 

Fanny concentrava-se no seu trabalho, muito chegada a ele.

 

Bichanou-lhe ao ouvido:

 

- Vivo sozinha. Não tenho namorado, se é isso que pretende saber.

 

- Eu... Mas... por que mora na faculdade?

- Fico perto dos anfiteatros, das salas de TP...

 

Niémans voltou a cabeça. Ela tornou logo a colocá-la na mesma posição, repreendendo-o. O polícia pronunciou, com o rosto inclinado:

 

- É verdade, agora me lembro... A mais jovem diplomada de França. Filha e neta de professores eméritos. Pertence, portanto, a esses moços que...

 

Fanny interrompeu logo a frase:

- Que moços?

 

Niémans rodou ligeiramente:

 

- Não... Quero eu dizer: os sobredotados do campus, que são igualmente campeões...

 

O rosto da rapariga endureceu. A sua voz traduzia uma desconfiança brutal.

 

- O que anda a procurar?

 

O polícia não respondeu, apesar de um premente desejo de interrogar Fanny sobre as suas origens. Mas alguém pode perguntar a uma mulher aonde foi buscar a sua força genética, onde reside a fonte dos seus cromossomas? A interlocutora é que acrescentou:

 

- Comissário, não sei por que motivo, no seu estado, se obstinou em vir a minha casa. Mas se tem perguntas precisas já engatilhadas, faça-as.

 

O tom da injunção era contundente. Niémans deixara de sentir qualquer dor, mas preferia o alanceamento da chaga ao daquela voz. Sorriu, confuso:

 

- Só queria falar-lhe do magazine da faculdade, no qual colabora...

 

- Tempo?

 

- Esse mesmo.

- E então?

 

Niémans fez uma pausa, Fanny guardou as compressas numa das saquetas plastificadas, depois apertou uma ligadura em volta da cabeça de Niémans. O polícia prosseguiu, sentindo a pressão aumentar em torno do seu crânio:

 

- Perguntava a mim mesmo se redigiu algum artigo sobre um facto estranho, sobrevindo nos subsolos do hospital, em Julho passado...

 

- Que facto?

 

- Descobriram fichas de nascimento em cacifos de Étienne Caillois, o pai de Rémy.

 

Fanny adoptou um tom desapagado:

- Oh, essa história...

 

- Redigiu algum artigo?

 

- Umas linhas, sim, quer-me parecer.

- Por que não me falou no assunto?

 

-julga que... pode haver um laço entre essa ocorrência e os homicídios?

 

Niémans elevou o tom, endireitando a cabeça:

- Por que não me falou desse roubo?

 

Fanny fez acompanhar a sua resposta com um vago movimento dos ombros; ainda enfaixava as têmporas do polícia.

- Nada prova que tenha havido realmente roubo... Com o desarrumo em que estão os arquivos, tudo se extravia, tudo se reencontra. É assim tão importante?

 

- Viu pessoalmente essas fichas?

 

- Sim, fui aos arquivos onde se acham armazenadas as pastas.

- Não notou nada de curioso nesses documentos?

 

- O quê, por exemplo?

 

- Não sei... Não os comparou com as fichas originais? Fanny recuou. O tratamento terminara. Ela declarou:

 

- Eram apenas umas folhas soltas, rabiscadas por enfermeiras. Nada de verdadeiramente palpitante.

 

- Quantas havia?

 

- Várias centenas. Não vejo o que...

 

- No seu artigo, citou os nomes das fichas, das famílias em causa?

 

-já lhe disse que só redigi umas linhas.

- Posso ver o seu artigo?

 

- Nunca os guardo.

 

Ela postava-se de braços cruzados, de pé, arqueada. Niémans continuou:

 

julga que certas pessoas podem ter ido consultar as fichas? Gente susceptível de encontrar o seu próprio nome, ou o dos pais, nestes documentos?

 

- Repito-lhe que não citei qualquer nome.

 

- Pensa que é possível que algumas pessoas tenham ido lá?

- Não creio, não. Agora está tudo fechado... Mas não vejo a importância... Qual a relação com o seu inquérito?

 

Niémans não respondeu imediatamente. Evitando encarar Fanny, atacou por meio de uma nova pergunta, que parecia mais um golpe baixo:

 

- E você? Consultou as fichas em pormenor?

 

O silêncio foi a única resposta. O polícia ergueu os olhos: Fanny não mudara de lugar, mas de repente deu-lhe a impressão de estar muito longe. Respondeu finalmente:

 

-já lhe disse que sim. O que pretende saber? Niémans hesitou um tudo-nada, mas adiantou logo:

 

- Quero saber se encontrou nas fichas o nome dos seus pais. Ou dos seus avós.

 

- Não, não encontrei nada. Por que me pergunta isso?

 

O comissário levantou-se, sem dar resposta. Estavam agora os dois em pé, inimigos, como pólos invertidos. Niémans entreviu a sua cabeça ligada num espelho situado ao fundo do compartimento. Virou-se para a jovem e ciciou, num tom contrito.

 

- Obrigado. E desculpe as minhas perguntas. Pegou no sobretudo e articulou:

 

- Por muito incrível que possa parecer, julgo que essas fichas custaram a vida a um dos polícias que trabalhavam no inquérito. Um jovem tenente, um principiante. Queria estudar a papelada. E penso que o mataram para o impedir de o fazer.

- É ridículo.

 

- Depois veremos. Vou aos arquivos comparar as fichas com os documentos oficiais.

 

Enfiava a sua farpela encharcada quando a moça o deteve:

- Não ponha essa horrível fatiota! Espere aí.

 

Fanny afastou-se e reapareceu ao cabo de uns segundos trazendo nos braços um colete, uma camisola, um casaco forrado de fibra polar e umas sobrecalças estanques.

 

- Não é a sua medida - esclareceu -, mas pelo menos são roupas secas e quentes. E, antes de tudo, ponha isto...

 

De um só gesto, enfiou-lhe na cabeça ligada uma cogula de poliéster, cujas bordas arregaçou acima das orelhas. Niémans, a princípio surpreendido, acabou por fazer uns olhinhos cómicos sob semelhante resguardo. Desataram bruscamente a rir os dois em uníssono.

 

Por instantes, a sua cumplicidade regressou, como que arrancada ao tecido da obscuridade. Mas o polícia disse numa voz grave:

 

- Tenho de ir. Continuar o inquérito. Consultar os arquivos.

 

Niémans nem teve tempo de reagir: Fanny, de um ímpeto, enlaçou-o e beijou-o. Ele contorceu-se todo. De novo o inundou um calor. Não soube se eram as febres que reincidiam ou a doçura daquela pequena língua que se insinuava entre os seus lábios, escaldando-o como uma brasa. Fechou os olhos e sussurrou:

 

- O inquérito. Devo continuar o inquérito. Mas já tinha os dois ombros pregados no chão.

 

KARIM arrancou o cordão que vedava a passagem e ajoelhou-se junto da porta do jazigo, ainda entreaberta. Calçou as luvas, introduziu os dedos na falha e puxou com violência. O batente deu de si. Sem hesitar, acendeu a sua lanterna e esgueirou-se para dentro do sepulcro. Curvado sob o nicho, desceu os degraus. O foco ricocheteou numa longa superfície de água negra: uma autêntica represa. A chuva insinuara-se pela porta e enchera o túmulo até a meio.

 

Disse com os seus botões: “Não resta outra escolha”. Reteve a respiração e penetrou na água. Segurando a lanterna na mão esquerda, avançou dando algumas braçadas, deitado de costas. O feixe de halogéneo rasgava a escuridão. À medida que se embrenhava nojazigo, os rumorejos de chuva desciam para a tonalidade grave, os cheiros a mofo e a turfa intensificavam-se. De cara virada para o tecto, cuspia, chafurdava, entalado entre a água e a abóbada.

 

De súbito, a sua cabeça bateu no caixão. Deu um berro, tomado de pânico, depois rodou, moderando os movimentos, fazendo por acalmar. Viu então, a pequena sepultura que balouçava sobre a água como um batel.

 

Repetiu para si mesmo: “Não resta outra escolha”. Contornou o féretro, a nadar, observou cada um dos seus ângulos. Vários parafusos fechavam a tampa e ele notou, com a lanterna entre os dentes, um pormenor em que não tivera tempo de reparar, nessa mesma manhã, quando o guarda o surpreendera. Em volta dos parafusos, a madeira clara encrespara-se de farpas mais escuras; a tinta estalara. Tinham - talvez - aberto o caixão. “Não.resta outra escolha”. Karim tirou do casaco um alicate dobrável, cujas duas extremidades reunidas formavam uma chave de fendas, e atacou asjunturas da tampa.

 

Aos poucos, a tábua de madeira cedeu. Por fim, a última fixação saltou. Batendo com a cabeça contra a abóbada - a água não parava de subir, chegando-lhe até aos ombros -, Karim conseguiu levantar a tampa. Enxugou os olhos com uma manga e contemplou o fundo do caixão, pronto a reter a respiração.

 

Foi inútil: pareceu-lhe que ele próprio já estava morto.

 

O caixão não continha o esqueleto de uma criança. Ainda menos o vazio de um embuste - ou os vestígios de uma profanação. O leito deste sepulcro estava cheio até acima de ossadas minúsculas, pontiagudas e esbranquiçadas. Algo como um santuário de roedores. Milhares de esqueletos ressequidos. Focinhos gredosos, aguçados como punhais. Caixas torácicas, aduncas como garras. Uma infinidade de fustes, tão ténues como fósforos, correspondentes a fémures, tíbias, úmeros em miniatura.

 

De músculos tremulantes, sempre apoiado no rebordo, Karim estendeu a mão para o ossário. As miríades de esqueletos, refractando a luz da lanterna, pareciam luzir de reflexos pré-históricos.

 

Foi então que uma voz se elevou atrás dele e venceu o martelamento da chuva:

 

- Não devias ter vindo, Karim.

 

O chui não precisou de voltar-se para saber quem falava. Cerrou os punhos e baixou a cabeça, encostado às ossadas. Murmurou:

 

- Crozier, não me diga que está metido no caso. A voz replicou:

 

- Fiz mal em deixar que te ocupasses deste inquérito. Karim olhou num breve relance para o vão de entrada do jazigo: a silhueta de Henri Crozier recortava-se com toda a nitidez. Empunhava um Manhu7in, modelo MR 73 - a arma usada por Niémans. Seis balas no barrilete. Carregadores rápidos nas algibeiras. Escassos segundos para esvaziar as cápsulas e substituí-las, sem nenhum risco de encravamento. Uma verdadeira escola. O tenente insistiu:

 

- Qual é o seu papel nesta embrulhada?

 

O homem não respondeu. Karim acrescentou, erguendo os cotovelos encharcados:

 

- Posso ao menos sair deste aguaçal? Crozier esboçou um gesto com a arma.

 

- Avança na minha direcção. Mas lentamente. Muito, muito lentamente.

 

Karim deslizou na água e rumou para os degraus, abandonando o caixão profanado. A sua lanterna, que tornara a colocar entre os maxilares, projectava varredelas de luz instável no tecto de pedra. Flashes que voltejavam como raios de loucura.

 

O tenente alcançou a escada e içou-se para os degraus. À medida que ele trepava, Crozier recuava, cada vez mais perto da saída e mantendo a arma apontada. A chuva crepitava em rajadas. O árabe endireitou-se, ensopado até à medula, frente ao comissário. Voltou a perguntar:

 

- Qual é o seu papel no meio de tudo isto? O que sabe ao certo?

 

Crozier pronunciou finalmente:

 

- Estávamos em 1980. Quando ela chegou, não me passou despercebida. É a minha cidade, rapaz. O meu território. E, na época, eu era quase o único chui de Sarzac. Aquela fulana, demasiado bela, demasiado alta, que vinha para o lugar de professora primária... Adivinhei logo que algo a apoquentava...

 

O argelino mangou:

 

- “Crozier, o olho de Sarzac”.

 

- Sim. Levei a cabo o meu pequeno inquérito. Descobri que trazia uma criança... Soube conquistar a confiança dela. Contou-me tudo. Dizia que os diabos queriam matar-lhe o filho.

 

- Sei tudo isso.

 

- O que não sabes é que eu resolvi proteger aquela família. Arranjei-lhes papéis falsos, eu...

 

Karim teve a sensação de sondar um precipício.

- Quem eram os diabos?

 

- Um dia apareceram dois homens. Procuravam, supostamente, velhos livros de estudo nas escolas. Estes tipos vinham de Guernon, a cidade donde chegara igualmente Fabienne. Compreendi sem demora que os diabos eram eles...

 

- Os seus nomes?

- Caillois e Sertys.

 

- Não brinque comigo: nessa época, Rénry Caillois e Filipe Sertys tinham uns dez anos!

 

- Não se chamavam assim. Havia Étienne Caillois e Renê Sertys. Deviam andar pelos quarenta anos. Umas fronhas ossudas, com olhos de fanáticos.

 

Um gosto ácido queimou a garganta de Karim. Como não pensara nisto? A “falta” dos rios de púrpura datava de há várias gerações. Antes de Rémy Caillois, houvera Étienne Caillois. Antes de Filipe Sertys, houvera René Sertys. Karim sibilou:

- E depois?

 

- Armei-me em chui inquiridor. Controlo de identidade e tudo. Mas não encontrei nada digno de reparo. Mais normal do que aquilo, só o Código Civil. Foram-se embora, sem terem tempo de localizar Fabienne e o filho, Era pelo menos o que eu julgava. Mas Fabienne, ao saber que estes gajos rondavam em Sarzac, quis fugir logo. Uma vez mais, não fiz perguntas. Destruímos a papelada, arrancámos as páginas das cadernetas, tudo apagado... Fabienne mudara a identidade do filho mas...

 

Karim interrompeu-o. Uma cortina de chuva separava os dois homens.

 

- O filho de Sertys voltou na noite de domingo: faz alguma ideia do que procurava neste jazigo?

 

- Não.

 

Karim indicou a entrada do jazigo.

 

- Aquele malvado caixão está cheio de ossos de roedores. Um autêntico pesadelo. Como se explica uma coisa assim?

 

- Não sei. Não devias ter aberto o caixão. Não respeitas os mortos...

 

- Qual morto? Onde está o corpo de Judith Hérault? Ela morreu a valer?

 

- Morreu e sepultaram-na, rapaz. Eu é que tratei do funeral. O argelino estremeceu.

 

- E é o senhor que cuida do túmulo?

- Sou eu. De noite.

 

Karim berrou brutalmente, acercando-se do cano da arma:

- Onde está ela? Onde está agora Fabienne Hérault?

 

- Ninguém deve fazer-lhe mal.

 

- Comissário, este caso vai muito além de uma profanação de cemitério. Trata-se de homicídios.

 

- Eu sei.

- Sabe?

 

- Disseram em todos os canais de televisão. Nas últimas edições.

 

- Então sabe que estamos perante uma tremenda série de crimes, com mutilações, encenações macabras e o diabo a quatro... Crozier, diga-me onde posso encontrar Fabienne Hérault!

 

Os traços de Crozier estavam afogados em sombra, como um rosto fraudulento. Ele continuava a apontar a arma contra o peito do árabe.

 

- Ninguém deve fazer-lhe mal.

 

- Crozier, não quero fazer-lhe mal. Fabienne Hérault é hoje a única pessoa capaz de me dar esclarecimentos sobre esta salgalhada. Tudo acusa a filha dela, está a topar? Tudo acusajudith Hérault, que deveria repousar neste túmulo!

 

Ficaram mais alguns segundos diante da bátega; depois, devagar, Crozier baixou a arma. O argelino sabia que se devia calar o bico uma única vez na sua vida, era justamente agora. Por fim, a voz do comissário elevou-se:

 

- Fabienne vive a vinte quilómetros daqui, na colina Herzine. Vou contigo. Se lhe fizeres mal, mato-te.

 

Karim sorriu e recuou. Depois rodopiou bruscamente e desferiu um golpe de calcanhar nas goelas do comissário. Crozier foi propulsado contra as estelas de mármore.

 

O argelino debruçou-se logo sobre o velhote inanimado. Atou-lhe o capuz e puxou-o para o abrigo de um túmulo de granito. Mentalmente pediu-lhe desculpa.

 

Mas tinha de permanecer livre para os seus actos.

 

Está quente, Karim. Está a escaldar!

 

A voz de Patrick Astier atravessava uma tempestade E

 

de interferências. O telemóvel tocara quando Karim sulcava uma verdadeira estepe, mineral e cinzenta. O chui sobressaltara-se e evitara por pouco a berma da estrada. Astier prosseguia num tom febril:

 

- As tuas duas missões eram autênticas bombas de retardador. E explodiram-me em cheio nas trombas.

 

Karim sentiu os nervos num feixe debaixo da pele.

 

- Conta-me tudo - declarou, estacionando à beira da estrada, com os faróis apagados.

 

- Primeiro, o acidente de Sylvain Hérault. Encontrei os autos. E obtive a confirmação das tuas próprias informações, Sylvain Hérault morreu quando seguia de bicicleta, ao longo da D 17, atropelado por um chaço que nunca seria identificado. Um caso lúgubre. Um caso arquivado. Os gendarmes da época efectuaram um inquérito de rotina. Não havia testemunhas, nem qualquer móbil que pudesse motivar uma outra interpretação...

 

O tom da voz solicitava uma pergunta. Dócil, Karim deu a deixa:

 

- Mas...

 

- Mas - encadeou o químico -, desde essa época longínqua, demos passos de gigante em matéria de tratamento de imagens...

 

Karim já via perfilar-se um novo discurso tecnológico. Atalhou:

 

- Por piedade, Astier, vai direito ao assunto.

 

- Encontrei fotografias nos autos. Retratos a preto e branco tirados pelo fotógrafo de umjornaleco local. Vêem-se aí traços de pneus da bicicleta entrecruzados com marcas do chaço. É tudo tão minúsculo e tão fluido que nos interrogamos sobre a razão que os terá levado a darem-se ao trabalho de conservar tais fotografias.

 

- E então?

 

O cientista guardou silêncio para realçar o efeito das suas palavras:

 

- E então, possuímos no campus de Grenoble um instituto de óptica altamente especializado.

 

- Irra! Astier, não vais outra vez...

 

- Espera aí. Aqueles tipos são capazes de tratar as imagens a um nível que nem imaginas. Por numerização, ampliam, contrastam, apagam as escórias, mudam as tramas... Em suma, podem pôr em evidência alguns pormenores invisíveis a olho nu. Conheço bem esses engenheiros. Pensei de mim para comigo que talvez valesse a pena acordá-los e mostrar-lhes os autos. Utilizei o CMM à laia de scanner e enviei-lhes as fotografias. Mesmo acabados de saltar da cama, esses gajos são geniais. Trataram logo as imagens e...

 

- E ENTÃO?

 

Nova pausa, novo efeito de Astier:

 

- Os resultados deles contam uma história muito diferente da que aparece no relatório da gendarmaria. Ampliaram os traços de pneus da bicicleta e do carro. Puderam, por contraste, estudar com exactidão o sentido dos rastros no asfalto. A primeira conclusão é que Hérault não ia para o seu trabalho nas montanhas, como os autos mencionam. A direcção dos rastros é oposta: Hérault seguia na direcção da faculdade. Verifiquei num mapa.

 

- Mas... o que disse a sua mulher, Fabienne?

 

- Fabienne Hérault mentiu. Li o seu testemunho: limitou-se a confirmar o que os gendarmes conjecturaram: que o cristaleiro ia para o pico de Belledone. Não há nada de mais falso.

 

Karim cerrava os maxilares. Uma nova mentira, um novo mistério. Astier continuava:

 

- Não é tudo. Os ópticos também se concentraram nas marcas dos pneus do automóvel. - O engenheiro fez um novo intervalo e depois: - Elas inscrevem-se nos dois sentidos, Karim. O condutor passou uma primeira vez por cima do corpo, em seguida recuou e esmagou a vítima uma segunda vez. É um homicídio descarado. Tão frio como a serpente no seu ovo.

 

Karim já nem escutava. O dobre do coração batia-lhe de mansinho no peito. Discernía, finalmente, o móbil de uma vingança exercida pelos Hérault. Além da fuga das duas mulheres, além daquela existência de medo e de cerco, que provocara indirectamente a morte de Judith, houvera em primeiro lugar um assassinato. O de Sylvain Hérault. Os diabos haviam começado por eliminar o “homem forte” da família, perseguindo depois as mulheres.

 

Fabienne Hérault. Judith Hérault. Os pensamentos de Karim carambolavam uns nos outros.

 

- E o hospital? - perguntou.

 

- É a bomba número dois. Consultei o registo dos nascimentos de 1972. A página de 23 de Maio foi arrancada. Karim sentia invadi-lo um sentimento de coisa já vista – a ressaca de uma outra vida que se tivesse concentrado numa mancheia de horas.

 

- Mas não é isto o mais esquisito - prosseguiu Astier. Também consultei os arquivos onde está guardada a documentação clínica das crianças. Um autêntico labirinto, e que mete água por todos os lados. Desta vez, encontrei a papelada de Judith. Sem dificuldade. Percebes o que isto significa, não é? Tudo se passa como se tivesse sobrevindo algo de diferente nessa noite, um acontecimento que fosse exarado no registo geral, mas não nos documentos pessoais da criança. Rasgaram a página para apagar este acontecimento misterioso, não para ocultar o nascimento da menina. Interroguei algumas enfermeiras sobre o assunto, mas apetecia-lhes mais ir dormir e eram demasiado novas para ouvir as histórias do tio Astier...

 

Karim sabia-o: o técnico armava-se em fanfarrão para enganar o medo. Mesmo através das longínquas interferências, Karim notava-o. Agradeceu-lhe e desligou.

 

já avistava o maciço herboso da colina Herzine, que se desenhava a quatrocentos metros dali.

 

Neste morro de sombra aguardava-o a verdade.

 

CASA de Fabienne Hérault.

 

O cimo de uma colina. Paredes de pedra. janelas rústicas.

 

Nuvens pálidas desfilavam no céu denso, ao passo que a chuva cessara. Lençóis de nevoeiro esvoaçavam devagar ao longo das encostas cor de esmeralda. Em volta, o horizonte desértico desdobrava-se. Um sinal de suspensão feito de pedras. Nada, nem ninguém, a mais de vinte quilómetros em redor.

 

Karim estacionou o carro e subiu a vertente de ervas. A morada fazia-lhe lembrar a casa que a mulher ocupara, perto de Sarzac - as suas enormes pedras davam-lhe o ar de um santuário celta. Reparou, perto do casinhoto, numa avantajada antena parabólica branca. Sacou da arma. E tomou consciência de que já estava uma bala no cano. Este pensamento serenou-o.

 

Antes de se encaminhar para a porta, dirigiu-se à garagem, a qual abrigava um Volvo escondido sob uma capa clara. O carro não estava trancado. Karim abriu o capot e destruiu a caixa de fusíveis em poucos gestos de peritos. Se a coisa desse para o torto, Fabienne Hérault ficaria de qualquer modo impossibilitada de sair dali.

 

Percorreu o espaço que o separava da entrada e bateu umas pancadas abafadas. Afastou-se da ombreira empunhando a arma. Após alguns instantes furtivos, a porta abriu-se. Sem estalido. Sem deslizar de linguetas. Fabienne Hérault já não vivia sob o signo da desconfiança.

 

Karim insinuou-se no campo visual de quem estivesse na soleira, dissimulando a arma.

 

Deparou-se-lhe uma silhueta tão alta como ele, cujo olhar se media com o seu. Ombros em arco, um rosto diáfano e muito regular, aureolado de uma grenha escura frisada quase encarapinhada. Óculos com aros tão espessos como bambus. Karim não saberia descrever este rosto, docemente sonhador, quase ausente.

 

Dominou a voz:

 

- Tenente Karim Abduf. Polícia.

 

Nenhum sinal de espanto por parte da mulher. Fitava Karim por sobre os óculos, oscilando ligeiramente a cabeça. Depois baixou os olhos para a mão que disfarçava o Glock. Karim, através das lentes,julgou distinguir um clarão de malícia.

- O que deseja? - perguntou ela numa voz quente.

 

Karim permanecia imóvel, petrificado no silêncio nocturno dos campos.

 

- Entrar. Para começar. A mulher sorriu e recuou.

 

As portadas estavam fechadas e a maior parte dos móveis revestidos de coberturas pintalgadas. Uma televisão exibia o seu ecrã negro, e um piano as suas teclas lacadas. Karim viu uma partitura aberta por cima do teclado: uma sonata em si bemol menor, de Frédéric Chopin. Estava tudo mergulhado na penumbra vacilante de dezenas de velas.

 

Surpreendendo os olhares do polícia, Fabienne Hérault murmurou:

 

- Subtraí-me ao mundo e ao tempo. Esta casa é feita à minha imagem.

 

Karim pensou na irmã Andrée, no seu retiro de trevas.

- E a antena parabólica, lá fora?

 

- Tenho de manter um contacto. Preciso de saber quando é que a verdade vai explodir.

 

- Está prestes a explodir, minha senhora.

 

A mulher concordou, sem mudar de expressão. O polícia não esperava uma coisa assim: esta calma, estes sorrisos, esta voz reconfortante. Assestou a arma e envergonhou-se de ameaçar aquela mulher.

 

- Minha senhora - suspirou -, disponho de muito pouco tempo. Quero ver fotografias de Judith, a sua filha.

 

- Fotografias de...

 

- Por favor. Há mais de vinte horas que ando no seu encalço. Todo este tempo a reconstituir a sua história, a procurar compreender o motivo por que organizou um autêntico conluio e tentou apagar o rosto da sua filha. Por ora, só conheço dois factos. Judith não era monstruosa, como a princípio julguei. Pelo contrário, penso que era deslumbrante, encantadora. O outro facto é que, apesar de tudo, o seu rosto denunciava as chaves de um pesadelo. Um pesadelo que a levou, a si, a fugir há muito tempo, e que acaba de despertar como um vulcão malfazejo. Portanto, mostre-me as fotografias e conte-me a história toda. Quero ouvir as datas, os pormenores, as explicações, tudo. Quero entender como e porquê uma menina morta há catorze anos está agora a massacrar uma cidade universitária, no sopé dos Alpes!

 

A mulher permaneceu imóvel durante uns momentos, depois enveredou por um corredor no seu passo de giganta. Karim foi atrás dela, com os dedos crispados na arma. Lançava olhares da direita para esquerda. Outros compartimentos, outras coberturas, outras cores. A casa hesitava entre as mortalhas e o carnaval.

 

Ao fundo de um quartinho, Fabienne Hérault abriu um armário e tirou de lá uma caixa de metal. Karim segurou-lhe na mão, travou o seu gesto e abriu ele próprio a caixa.

 

Fotografias. Só fotografias.

 

A mulher, depois de ter interrogado Karim com o olhar, fez ondear estas superfícies brilhantes como se mergulhasse a mão em água pura. Por fim, estendeu uma imagem ao polícia.

 

Mesmo sem querer, ele sorriu.

 

Mirava-o uma rapariguinha de rosto oval, pele mate e caracóis castanhos, cortados bem curtos, em jeito de moldura. Uns olhos altos e claros encimavam este triângulo de beleza no interior de órbitas sombreadas, desenhadas por longas sobrancelhas, um tanto espessas em demasia. Este ligeiro toque masculino equilibrava o brilho dos olhos azuis, quase violento em excesso.

 

Karim contemplava a imagem. Parecia-lhe conhecer este rosto desde há muito tempo. Desde sempre.

 

Mas o milagre não se consumava. O chui esperara que estas feições lhe revelassem, de uma maneira ou de outra, o caminho da luz. Fabienne ciciou, na sua voz calorosa:

 

- Esta fotografia foi tirada poucos dias antes da sua morte. Em Sarzac. Tinha o cabelo curto, nós...

 

Karim ergueu o olhar.

 

- Não bate certo. Esta imagem, este rosto, deveriam fornecer-me um indício, uma explicação. E só vejo uma bonita cachopinha.

 

- Porque a fotografia está incompleta.

 

Ele estremeceu. A mulher estendia-lhe agora um outro retrato.

 

- Eis a última fotografia escolar de Guernon. Escola Lamartine, Cm2. Pouco antes de abalarmos para Sarzac.

 

O chui observou os rostos sorridentes das crianças. Descortinou o de Judith, depois apreendeu a verdade assombrosa. Já contava com isto. Era a única explicação possível. Todavia, não compreendia. Sussurrou:

 

-Judith não era filha única?

 

- Sim e não.

 

- Sim e não? O que é que está para aí a dizer? Explique-me.

 

- Nada posso explicar-lhe, jovem. Só posso contar-lhe como o inexplicável destroçou a minha vida.

 

A saída subterrânea dos arquivos abrigava um verdadeiro oceano de papel. Um dilúvio de documentos comprimidos, atados, túrgidos, que alastrava até às paredes mais próximas em vagas coléricas. No chão, pacotes a granel obstruíam a maioria das áleas. Mais adiante, sob a claridade dos néons, desdobravam-se muralhas de papelada que se esbatiam em pálidas linhas de fuga.

 

Niémans galgou as pilhas e encaminhou-se para o primeiro corredor. Os milhares de pastas eram retidas por compridos fios laterais, como que na mira de impedir o desabamento destas falésias de escrita. Ao seguir ao longo dos registos, o polícia não podia coibir-se de pensar em Fanny, na hora imaterial que acabava de viver. O rosto da jovem, sorridente, na penumbra. A sua mão escoriada a apagar o candeeiro. Nesgas de pele escurecida. Duas chamazinhas azuladas a brilhar nas trevas - os olhos de Fanny. Todo um retábulo discreto e íntimo, arabescos delicados, gestos e murmúrios, instantes e eternidades.

 

Quanto tempo passara nos braços dela? Niémans não saberia dizê-lo. Mas conservara nos lábios, na sua pele magoada, uma espécie de tatuagem, de marca antiga, que a si mesmo espantava. Fanny soubera desencovilar dentro dele impulsos esquecidos, cuja ressurgência o transtornava. Seria possível que tivesse encontrado, nas funduras do horror, nos confins de tão medonho inquérito, esta centelha de cálix, este dulçor de círio?

 

Concentrou-se. Sabia onde se encontrava o conjunto das fichas reencontradas - falara por telefone com o arquivista que, apesar de ensonado, lhe dera indicações precisas. Caminhou, virou, tornou a caminhar. Por fim, desencantou uma pasta de cartão fechada, depositada num recanto gradeado e vedado por um sólido cadeado. O guarda do hospital dera-lhe a chave. Se de facto “não tinham importância”, qual a razão de proteger assim estes velhos papéis?

 

Penetrou no recanto e sentou-se em cima dos velhos maços que jaziam por terra. Abriu a pasta, pegou num punhado de fichas e começou a ler. Nomes. Datas. Relatórios de enfermeiras consagrados a recém-nascidos. Nestas páginas estavam inscritos o apelido, o peso, a altura, o grupo sanguíneo de cada bebé. O número de biberões e alguns nomes de produtos, de ressonância médica, sem dúvida vitaminas ou qualquer outra substância do mesmo tipo.

 

Folheou cada ficha - havia centenas delas, cobrindo mais de cinquenta anos. Nem um só nome que lhe lembrasse algo. Nem uma data que despertasse no seu espírito o mínimo vislumbre.

 

Levantou-se e decidiu comparar estas fichas com as da documentação original dos recém-nascidos, que devia achar-se algures naqueles arquivos. Ao longo das paredes, descobriu e retirou umas cinquenta pastas. O seu rosto estava banhado em suor. Sentia o calor do casaco polar exalar-se em pesadas lufadas contra o seu torso. Agrupou as pastas numa mesa de metal e em seguida espalhou-as de modo a ler bem o apelido da capa. Começou a abrir cada pasta e a comparar a primeira página com as fichas.

 

Falsificações. Comparando os documentos, era manifesto que as fichas incluídas nas pastas tinham sido falsificadas. Étienne Caillois imitara a caligrafia das enfermeiras, de uma forma aceitável, mas que não aguentava a comparação com as fichas reais. Porquê?

 

Colocou lado a lado as duas primeiras fichas. Comparou cada coluna, cada linha, e não viu nada de especial. Duas cópias conformes. Comparou outras fichas. Também nada viu. Estas páginas eram as mesmas. Ajeitou os óculos, limpou escorrências de suor sob as lentes, depois percorreu algumas outras ainda com mais assiduidade.

 

E, desta feita, viu.

 

Uma diferença, ínfima, que dividia cada par de documentos, o verdadeiro e o falso. A DIFERENÇA. Niémans ainda não sabia o que isto significava, mas pressentia que acabava de deslindar uma das chaves. O seu rosto ardia como uma caldeira e, ao mesmo tempo, um frio de gelo trespassava-o de lado a lado. Verificou esta diferença noutras páginas, depois meteu todos os documentos na pasta de cor kraft, os processos clínicos completos e as fichas roubadas por Caillois.

 

Recolheu o seu despojo e bateu os chispes para fora da sala de arquivos.

 

Guardou a pasta na mala do seu novo carro - um Peugeot azul de gendarme - e depois voltou ao recinto do hospital, dirigindo-se desta vez ao serviço de maternidade.

 

Às seis horas da manhã, o local parecia entorpecido de silêncio e de sono, apesar dos néons ofuscantes que se reflectiam no chão. Desceu ao bloco, cruzou-se com enfermeiras, parteiras, todas elas envergando batas brancas, toucas e sapatos apantufados de papel. Algumas tentaram suster Niémans, que não vestia roupas assepsiadas. Mas o seu cartão tricolor e o seu ar façanhudo dissuadiram qualquer comentário.

 

Finalmente, encontrou um obstetra que saía nesse instante da sala de operações. O homem trazia toda a fadiga do mundo estampada no rosto. Niémans apresentou-se em poucas palavras e fez a pergunta - a única que se podia fazer:

 

- Doutor, existe alguma razão lógica para que os lactentes mudem de peso durante a sua primeira noite de existência?

 

Não percebo...

 

É frequente um bebé perder ou ganhar umas centenas de gramas nas horas subsequentes ao seu nascimento?

 

O médico respondeu, atentando no gorro às três pancadas e nas roupas demasiado curtas do polícia:

 

- Pode acontecer. Mas se a criança perder demasiado peso, devemos efectuar logo um exame médico aprofundado. Porque é o sinal de um problema e...

 

- E se aumenta? Se a criança adquire repentinamente peso numa só noite?

 

O parteiro, sob o seu chapéu de papel, volvia um olhar incrédulo.

 

- Isso nunca acontece. Não vejo aonde quer chegar. Niémans sorriu.

 

- Obrigado, doutor.

 

Sem parar de caminhar, o oficial de polícia fechou os olhos. Sob as membranas sanguíneas das pálpebras, entrevia finalmente o móbil dos homicídios de Guernon.

 

A inaudita maquinação dos rios de púrpura. Só lhe restava verificar um último pormenor. Na biblioteca da faculdade.

 

DAQui para fora! Todos!

 

A sala da biblioteca estava abundantemente iluminada. Os OPj ergueram o nariz dos livros. Ainda havia ali cinco a estudar obras mais ou menos consagradas ao mal e à pureza. Outros continuavam a desemaranhar listas de estudantes que tinham frequentado a biblioteca durante o Verão ou no começo do Outono. Pareciam soldados esquecidos, no cerne de uma guerra deslocada para outras frentes sem que ninguém os prevenisse.

 

- Vão-se embora! - repetiu Niémans. - O inquérito terminou aqui.

 

Os polícias trocaram entre si umas olhadelas de toupeiras. Tinham, sem dúvida, ouvido dizer que o comissário principal Niémans já não superintendia no inquérito. E, por certo, não compreendiam por que motivo o célebre chui tinha a cabeça envolvida numa espécie de meia e levava debaixo do braço uma pasta de cartão castanha e húmida. Mas alguém se atreveria a fazer frente a Niémans - sobretudo quando ele olhava daquela maneira?

 

Levantaram-se e enfiaram os blusões. Um deles, ao cruzar-se com o comissário junto da porta, interpelou-o em voz baixa. O polícia reconheceu o tenente espadaúdo que estudara a tese de Rémy Caillois.

 

- Acabei o calhamaço, comissário. Queria dizer-lhe... Talvez não sirva de nada, mas a conclusão de Caillois é verdadeiramente espantosa. Lembra-se do athlon, do homem que reunia a inteligência e a força, o espírito e o corpo, na Antiguidade? Pois bem, o Caillois evoca um gênero de... projecto, para organizar o retorno de uma fusão do mesmo tipo. Um projecto deveras bizarro. Não fala de instaurar novos programas de educação nas escolas ou nas faculdades. Não imagina uma nova formação para os professores ou sei lá que mais. Ele pensa numa solução...

 

- Genética.

 

- Também folheou o livro dele? É doido. No seu espírito, a inteligência corresponde a uma realidade biológica. Uma realidade genética que é preciso associar a outros genes, correspondentes à força física, para recobrar a perfeição do athlon...

 

Estas palavras turbilhonavam no espírito de Niémans. Conhecia agora a natureza do conluio dos rios de púrpura. E não desejava ouvir a sua descrição canhestra da boca de um polícia simplório. O horror devia permanecer latente, implícito, silencioso. Impresso em cunho abrasador nas paredes da sua alma.

 

- Deixa-me, rapaz - resmungou ele. Mas o OPj continuava entusiasmado:

 

- Nas últimas páginas, Caillois fala de selecção dos nascimentos, de uniões racionalizadas, uma espécie de sistema totalitário... Coisas de tonto, comissário. Sabe, é como nos livros de ficção científica dos anos 60... Bolas! Se o gajo não tivesse morrido naquelas circunstâncias, até dava vontade de rir.

 

- Põe-te a milhas!

 

O polícia encorpado olhou para Niémans, hesitou e finalmente desapareceu.

 

O comissário atravessou a grande sala de leitura, completamente vazia. Sentia as febres a avassalá-lo de novo, quais raízes de lume a apertar-lhe a cabeça como entre eléctrodos ardentes. Dirigiu-se para a secretária do estrado central: a secretária de Rémy Caillois, bibliotecário-chefe da universidade.

 

Tamborilou no teclado do computador. O ecrã iluminou-se imediatamente. De súbito, o polícia caiu em si: as informações que ele procurava datavam de antes dos anos 70; logo, não podiam encontrar-se no programa do computador.

 

Agitado, buscou nas gavetas da secretária os registos que continham as listas que lhe interessavam.

 

Não as listas dos livros. Tão-pouco as listas de estudantes.

 

Simplesmente a lista dos cubículos envidraçados, ocupados ao longo dos anos por milhares de leitores.

 

Por mais absurdo que pudesse parecer, era na lógica intrínseca destes compartimentos, cuidadosamente organizados pelos Caillois, pai e filho, que Niémans esperava descortinar uma correspondência com o que acabava de saber na maternidade.

 

O comissário encontrou finalmente os registos dos lugares. Abriu a sua pasta e espalhou, uma vez mais, os documentos dos recém-nascidos. Calculou os anos até estas crianças se terem tornado estudantes e passarem os fins de dia na biblioteca; depois procurou os nomes deles na lista dos lugares, rigorosamente apontados pelos bíbliotecários-chefes.

 

Não tardou a descobrir plantas dos pequenos cubículos, com o nome dos estudantes inscrito em cada casa. Não se poderia conceber sistema mais lógico, mais meticuloso, mais adaptado à conspiração de que ele suspeitava. Cada uma das crianças mencionadas nas fichas, ao tornar-se estudante uns vinte anos mais tarde, fora sempre colocada na biblioteca, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, não só no mesmo compartimento, mas sempre em frente do mesmo aluno, de sexo oposto.

 

Niémans sabia agora que dera no vinte!

 

Repetiu a consulta por vários outros estudantes, escolhendo-os voluntariamente a decênios de distância. Invariavelmente, descobria que o aluno fora instalado diante da mesma pessoa, da mesma idade e de sexo oposto, por ocasião das suas consultas diárias na biblioteca de Guernon.

 

O comissário apagou o computador com as mãos a palpitar. A vasta sala de leitura ressoava de todo o seu silêncio enfático. Ainda sentado à secretária de Caillois, ligou o telefone e marcou desta feita o número do vigilante nocturno do edifício da câmara de Guernon. Foi o cabo dos trabalhos para convencer o homem a descer sem demora aos arquivos, a fim de consultar os registos dos casamentos de Guernon.

 

Por fim, o guarda obedeceu e o oficial pôde, servindo-se do telemóvel, efectuar as consultas que pretendia levar a cabo. Niémans ditava os nomes e o vigilante verificava. O comissário desejava saber se os nomes que ele enunciava correspondiam de facto a pessoas que tinham casado uma com a outra. Niémans acertava em setenta por cento dos casos.

 

- É um jogo ou quê? - rabujou o guarda.

 

Depois de verificados uns vinte exemplos, o comissário achou suficiente e desligou.

 

Pôs ponto final na pesquisa e desandou.

 

Niémans atravessou o campus em passadas curtas. InstintiVamente, procurou com o olhar asjanelas de Fanny e não as encontrou. Nos degraus de um dos edifícios, um grupo de jornalistas parecia esperar. Por toda a parte, polícias fardados e gendarmes palmilhavam os relvados e as escadarias das várias dependências.

 

Entre os plantões e os repórteres, o comissário preferiu defrontar os seus. Transpôs várias barragens exibindo o cartão. Não reconheceu qualquer rosto. Tratava-se, sem dúvida, de reforços vindos de Grenoble.

 

Penetrou no edifício administrativo e deu consigo num vasto átrio demasiado iluminado onde pessoas de tez pálida, quase todas idosas, andavam de um lado para o outro. Provavelmente, professores, doutores, sábios. O estado de alerta era geral. Niémans passou por eles sem um simples olhar e não quis saber das miradas insistentes que lhe deitavam.

 

Subiu até ao último andar e encaminhou-se directamente para o gabinete de Vincent Luyse, o reitor da universidade. O polícia atravessou a antecâmara e arrancou das paredes os retratos dos jovens desportistas medalhados da faculdade. Abriu a porta sem bater.

 

- O que é que...

 

O reitor acalmou assim que reconheceu o comissário. Com um breve sinal de cabeça, mandou embora as sombras que ocupavam o seu gabinete e dirigiu-se a Niémans:

 

- Espero que traga novidades! Estamos todos...

 

O polícia pousou as molduras em cima da secretária, depois tirou as fichas da pasta. Luyse agitou-se.

 

- Com franqueza, eu...

- Um momento.

 

Niémans acabava de dispor as molduras e as fichas no eixo de visão do reitor. Assentou as duas mãos na secretária e perguntou:

 

- Compare as fichas e os nomes dos seus campeões: trata-se das mesmas famílias?

 

- Não entendo.

 

Niémans ajustou as folhas diante do interlocutor.

 

- Os homens e as mulheres destas fichas casaram entre si. julgo que pertencem à famosa confraria da universidade: devem ser professores, investigadores, intelectuais... Atente nos nomes e diga-me se são realmente, em pormenor, pais ou avós desta geração de sobredotados que arrebanham hoje em dia todas as medalhas desportistas.

 

Luyse pôs os óculos e baixou os olhos.

 

- Sim, é verdade, reconheço a maioria destes nomes...

- Confirma-me que os filhos destes casais possuem aptidões excepcionais, simultaneamente intelectuais e físicas?

 

Os traços crispados de Luyse abriram-se num largo sorriso, como que a contragosto. Um insuportável sorriso de satisfação vaidosa que Niémans tinha vontade de o fazer engolir.

 

- Mas... é claro, perfeitamente. Esta nova geração é muito brilhante. Acredite que estes moços não nos irão desiludir... Aliás, na geração antecedente, já se contavam alguns perfis do mesmo tipo. Para a nossa faculdade, tais resultados são particularmente...

 

Num repente, Niémans compreendeu que não era desconfiança o que ele sentia perante os intelectuais, mas ódio. Detestava-os do mais fundo da sua própria carne. Odiava a atitude pretensiosa e distanciada que eles alardeavam, a aptidão para descrever, analisar, aferir a realidade de que davam mostras em qualquer circunstância. Estes pobres diabos entravam na vida como quem vai a um espectáculo e saíam dela mais ou menos decepcionados, mais ou menos enfadados. Sabia, porém, que não se podia desejar-lhes o que lhes sucedera sem o saberem. Não se podia desejar uma coisa assim a ninguém. Luyse concluía:

 

- Esta jovem geração vai reforçar ainda mais o prestígio da nossa universidade e...

 

Niémans, interrompendo Luyse, guardou as fichas e as molduras na sua pasta. Proferiu então numa voz surda:

 

- Alegre-se, porque estes nomes vão contribuir ainda mais para a sua celebridade.

 

O reitor lançou-lhe um olhar atónito. O oficial abriu a boca, mas deteve-se logo a seguir: a expressão de Luyse denunciava terror. O reitor murmurou:

 

- Mas, o que tem? Está... está a sangrar...

 

Niémans baixou os olhos e reparou numa poça negra que lustrava a superfície da secretária. A febre que lhe queimava o crânio era afinal o sangue do ferimento que se reabrira. Cambaleou, fixou o seu próprio rosto na poça escura, lisa como um verniz, e perguntou de súbito a si mesmo se não estaria a contemplar o derradeiro reflexo da série dos homicídios.

 

Não teve tempo de responder a esta pergunta. Um instante mais tarde, jazia desmaiado, de joelhos, com o rosto pespegado na secretária. Como um medalhão que alguém houvesse cunhado com a sua efígie, no visco sombrio do seu próprio sangue.

 

Luz. Burburinho. Calor.

 

Pierre Niémans não compreendeu logo onde se encontrava. Depois viu um rosto aureolado de uma touca de papel. Uma bata branca. Néons. O hospital. Quanto tempo passara assim, inanimado? E qual a razão daquela fraqueza no seu corpo, como se um líquido houvesse substituído os seus membros, os seus músculos, os seus ossos? Quis falar, mas o esforço morreu-lhe na garganta. A fadiga pregava-o no côncavo do seu leito plastificado e rangente.

 

- Está a sangrar muito. Temos de fazer a hemóstase da têmpora.

 

Abriu-se uma porta. Chiaram rodas. Lâmpadas demasiado brancas passaram diante dos seus olhos. Uma explosão ofuscante. Um esguicho de luz que lhe dilatou as pupilas. Ressoou uma outra voz.

 

- Comecem a transfusão.

 

O polícia ouviu tinidos, sentiu matérias frias a roçar-lhe o corpo. Virou a cabeça e avistou tubos ligados a uma pesada bolsa suspensa que parecia respirar, sob o efeito de um sistema de ar pressurizado.

 

Ia então derivar aqui, na inconsciência e por entre os odores assepsiados? Vazar-se naquela luz agora que possuía o móbil dos homicídios e conhecia finalmente o segredo da série de crimes? Os traços do seu rosto crisparam-se num ricto. De súbito, uma voz:

 

- Injectem o Diftrívan, vinte centímetros cúbicos. Niémans compreendeu e soergueu-se. Agarrou no punho do médico que já brandia um bisturi eléctrico e balbuciou:

 

- Não quero anestesia!

 

O doutor parecia estupefacto.

 

- Não quer anestesia? Mas... está aberto ao meio, meu amigo. Tenho que o coser.

 

Niémans arranjou forças para sussurrar:

- Local... Só uma anestesia local...

 

O homem suspirou e recuou o seu banco numa chiadeira de rodinhas. Ordenou ao anestesista:

 

- Ok. Faça-lhe antes uma xilocaína. A dose máxima. Vá até aos quarenta centímetros cúbicos.

 

Niémans distendeu-se. Colocaram-no diante de lâmpadas com múltiplas facetas. A sua nuca repousava num recosto, de modo a que a cabeça ficasse o mais perto possível das luzes. Viraram-lhe o rosto, depois um campo de papel obstruiu-lhe a vista.

 

O polícia fechou os olhos. À medida que o médico e as enfermeiras se afadigavam em torno da sua têmpora, os pensamentos dele perdiam nitidez. O coração abrandava, a cabeça já não o torturava. Um entorpecimento geral parecia prestes a submergi-lo.

 

O segredo... O segredo dos Caillois e dos Sertys... Até isto se tornava flutuante, estranho, longínquo... O rosto de Fanny substituiu todos os pensamentos... O seu corpo, a um tempo trigueiro, musculoso e redondo, doce como pedras vulcânicas

recamadas de patina pelo fogo, a espuma e o vento... Fanny... As visões dele, sob as paredes das têmporas, pareciam murmurejos, frufrus de tecidos, sopros de elfos.

 

- Stop

 

A ordem ecoara na sala de operações. Tudo se imobilizou. Uma mão arrancou o campo de papel e Niémans vislumbrou no jorro de luz um diabo com tranças compridas que brandia um cartão tricolor nas ventas do médico e das enfermeiras estupefactos.

 

Karim Abduf.

 

Niémans deitou uma olhadela à direita: os tubos escuros ainda se derramavam sob a sua pele, dentro das suas veias. Os elixires de vida. O suco das artérias.

 

O médico esgrimiu a tesoura.

 

- Não toquem neste chui - arfou Karim.

 

O doutor susteve-se outra vez. Karim aproximou-se, observou a ferida de Níémans, agora atada como um rosbife. O doutor encolheu os ombros.

 

- Tenho de cortar os fios...

 

Karim lançou miradas desconfiadas em redor.

- Como é que ele está?

 

- Aguenta-se. Perdeu muito sangue, mas efectuámos uma transfusão abundante. Cosemos as carnes. A operação ainda não chegou ao fim e...

 

- Deram-lhe coisas?

- Coisas?

 

- Para o adormecer.

 

- Só uma anestesia local e...

 

- Arranje umas anfetaminas. Uns excitantes. É preciso acordá-lo.

 

Karim cravava os olhos em Niémans, mas dirigia-se ao médico.

 

Acrescentou:

- É uma questão de vida ou de morte.

 

O doutor levantou-se e tirou de uma gaveta extraplana umas pequenas pilulas envolvidas em plástico. Karim sorriu para Niémans.

 

- Tome - disse o médico. - Com isto, ele fica rijo dentro de meia hora, mas...

 

- Agora, desapareçam.

 

O chui argelino berrou ao pequeno rancho de bata branca:

Ponham-se a mexer! Tenho de falar com o comissário. O médico e as enfermeiras eclipsaram-se.

 

Niémans sentiu as agulhas das transfusões a sair do seu braço, ouviu os campos de papel a roçagar. Em seguida, Karim estendeu-lhe o seu casaco de fibra polar enegrecido de sangue. Na outra mão, sopesava o punhado de pílulas coloridas.

 

- As suas anfetaminas, comissário. - Breve sorriso. Uma vez não são vezes.

 

Mas Niémans não se ria. Puxou pelo casaco de cabedal de Karim e sussurrou, enlividecido:

 

- Karim... Eu... conheço o conluio deles.

- O conluio?

 

- O conluio de Sertys, Caillois e Chernecé. O conluio dos rios de púrpura.

 

- O QUÊ?

 

-Eles... trocam os bebés.

 

Oito horas da manhã. A paisagem era negra, movediça

- irreal. A chuva recomeçara a cair ainda com mais força: dir-se-ia que desejava polir uma última vez a montanha antes do nascer do dia. Colunas translúcidas esburacavam as trevas como berbequins de vidro.

 

Sob a copa de uma imensa conífera, Karim Abduf e Pierre Niémans estavam frente a frente, um deles apoiado no Audi, o outro encostado à árvore. Tinham um ar concentrado, hirto, tenso até mais não. O chui argelino observava o comissário, que recobrava gradualmente as forças, ou melhor, os nervos, sob o efeito das anfetaminas.

 

Acabava de explicar o ataque mortífero do 4x4. Mas Abduf instava-o agora a revelar-lhe a inteira verdade.

 

Por entre as cordas do aguaceiro, Pierre Niémans atacou:

- Ontem à noite, fui ao instituto dos cegos.

 

- Na esteira de Éric Joisneau, já sei. O que encontrou?

- Champelaz, o director, explicou-me que tratava crianças acometidas de afecções hereditárias. Crianças oriundas todas elas das mesmas famílias, as do escol da universidade. Champelaz comentou assim o fenómeno: esta comunidade intelectual, em resultado do isolamento, esgotou o seu próprio sangue e provocou um empobrecimento genético. As crianças que nascem actualmente têm tudo para se tornar muito brilhantes, muito cultas, mas os seus corpos estão depauperados, exauridos. Ao longo das gerações, o sangue da faculdade degenerou.

- Qual a relação com o inquérito?

 

-À primeira vista, nenhuma. Joisneau foi lá por causa das afècções oculares, das doenças que podiam estar relacionadas com a mutilação dos olhos. Mas não era isto. Nem por sombras. Quando o visitei, Champelaz assinalou-me que essa comunidade alterada gera igualmente, desde há uns vinte anos, estudantes fisicamente muito vigorosos. Moços inteligentes, mas também capazes de arrebanhar todas as medalhas nos campeonatos desportivos. Ora, este pormenor não se adequa ao resto da situação. Como é que a mesma confraria pode produzir linhagens de crianças taradas e espécies de super-homens resplandecentes? Champelaz investigou a origem destes miúdos sobredotados. Consultou os seus registos médicos na maternidade. Pesquisou a sua filiação através dos arquivos. Até consultou as fichas de nascimento dos pais, dos avós, à procura de sinais, de particularidades genéticas. Mas nada encontrou. Absolutamente nada.

 

- E então?

 

- Esta história veio a público no Verão passado. Em julho, um banal estudo nos arquivos do hospital permitiu reencontrar velhos papéis, esquecidos nos subterrâneos da antiga biblioteca. De que se tratava? Das fichas de nascimento pertencentes, justamente, aos pais ou avós dos garotos sobredotados.

- O que se concluiu?

 

- Que estas fichas tinham sido editadas em duplicado. Ou, mais provavelmente, que os documentos consultados por Champelaz, nos registos originais, eram falsos, que as fichas autênticas eram as acabadas de descobrir, escondidas nas pastas pessoais do bibliotecário-chefe da faculdade: Étienne Caillois, o pai de Rémy.

 

- Carago!

 

- Sim, é como dizes. De acordo com a lógica, Champelaz devia ter então comparado as fichas que consultara e as que acabavam de ser reencontradas. Mas não o fez. Por falta de tempo. Por laxismo. E também por medo de descobrir uma verdade malsã sobre a comunidade de Guernon. Quanto a mim, fi-lo.

 

- O que descobriu?

 

- As fichas oficiais eram falsas. Étienne Caillois imitara as caligrafias e mudara sempre um pormenor com respeito ao original.

 

- Que pormenor?

 

- O mesmo, em todos os casos: o peso da criança, o seu peso à nascença. A fim de que o número se harmonizasse com as outras páginas do processo, aquelas onde as enfermeiras haviam anotado o resultado das outras pesagens, nos dias seguintes.

 

- Não compreendo.

 

Niémans debruçou-se; falava num tom surdo:

 

- Presta atenção, Karim. Étienne Caillois falsificava as primeiras fichas para dissimular um facto inexplicável: nestes documentos, o peso do recém-nascido nunca correspondia ao seu peso do dia seguinte. Os bebés ganhavam ou perdiam várias centenas de gramas numa única noite. Fui à maternidade e informei-me junto de um obstetra. Soube que era impossível as crianças evoluírem a tamanha velocidade. Compreendi então a evidência: não era o peso que, numa só noite, mudava, mas a criança. Era esta verdade assombrosa que o Caillois pai procurava dissimular. Ele, ou melhor, o seu cúmplice, o Sertys pai, enfermeiro-ajudante do turno da noite no CHRU de Guernon, mudava as crianças de lugar na sala da maternidade.

- Mas... por que razão?

 

Niémans teve um sorriso que mais parecia um esgar. A bátega, impelida pelo vento, espicaçava-lhe a face como um chicote de pregos. A sua voz desgastava-se contra a dureza das suas certezas:

 

- Para regenerar uma comunidade esgotada, para insuflar sangue novo, pujante, vigoroso, nas fileiras dos intelectuais, A técnica dos Caillois e dos Sertys era simples: substituíam certos bebés, oriundos de famílias universitárias, por crianças das montanhas, seleccionadas segundo o perfil Físico dos seus pais. Desta forma, corpos sadios e desempenados integravam, uns atrás dos outros, a sociedade intelectual de Guernon. Diluía-se sangue novo no sangue antigo, no único sítio onde inacessíveis universitários se cruzavam com bscuros camponeses: a maternidade. Uma maternidade que caldeava todos os miúdos da região e permitia este tráfico. Tal era o sentido dos misteriosos dizeres do caderno de Sertys: “Dominamos os rios de púrpura”. Estes termos não designavam um livro ou uma rede hidrográfica, mas o sangue dos habitantes de Guernon. As veias das crianças do vale. Os Caillois e os Sertys dominam, de pai para filho, o sangue da sua cidade. Praticam a manipulação genética mais simples de todas: a interversão dos bebés. Adivinhei então que os Caillois e os Sertys buscavam um fito mais preciso: queriam não só regenerar o sangue precioso dos professores, mas também criar seres perfeitos, super-homens. Seres tão belos como os que transpiravam nas fotografias dos jogos Olímpicos de Berlim que eu vira em casa do Caillois. Seres tão inteligentes como os mais célebres investigadores de Guernon. Compreendi que estes tresloucados queriam unir, justamente, os cérebros de Guernon e os corpos das aldeias da montanha, aliar as capacidades cerebrais dos professores e as aptidões físicas dos autóctones: cristaleiros ou criadores de gado. Se eu não estivesse enganado, eles tinham por conseguinte afinado o seu sistema a ponto de organizarem não só os nascimentos mas também as uniões, os casamentos entre crianças eleitas.

 

Karim assimilava uma a uma estas informações que pareciam encontrar ressonâncias no fundo do seu silêncio. O solilóquio febricitante de Niémans continuou:

 

- Como organizar estes encontros? Como programar estes casamentos? Reflecti nos afazeres dos Caillois e dos Sertys, no escasso poder que estas tarefas lhes conferiam. Sabia que era através das suas funções apagadas que eles tinham podido levar a cabo o seu grande projecto. Lembra-te das frases gravadas no caderno: “Somos os senhores, somos os escravos.

Estamos em toda a parte, estamos em parte nenhuma”. Estes termos deixavam entender que, apesar do seu estatuto insignificante, e até graças a ele, tais homens haviam dominado o destino de toda uma região. Eram lacaios. Mas eram igualmente senhores. Assim, os Sertys não passavam de obscuros ajudantes de enfermagem, mas transformavam a existência das crianças da região intervertendo os bebés. E os Caillois, graças ao seu trabalho, organizavam a sequência do programa: o capítulo casamento. Mas como? De que modo agiam para concretizar estas uniões? Recordei-me dos registos pessoais dos Caillois, na biblioteca. Verificáramos lá dentro os livros consultados. Também estudámos os nomes dos moços que tinham requisitado tais livros. Só não examináramos uma coisa: os lugares dos leitores, os pequenos cubículos envidraçados onde os rapazes e as raparigas liam. Dirigi-me à biblioteca e comparei as listas destes lugares com as fichas de nascimento falsificadas. Isto datava de há trinta, quarenta, cinquenta anos, mas tudo coincidia, exceptuando o patronímico. Os petizes trocados tinham sido sistematicamente colocados, durante os seus estudos, na sala de leitura, diante da mesma pessoa, uma pessoa do sexo oposto, oriunda das famílias mais brilhantes do campus. Verifiquei então no município. Isto não se materializava todas as vezes, mas a maioria de tais pares, que se haviam conhecido na biblioteca, atrás dos vidros dos cubículos, acabaram em seguida por casar-se. Logo, eu vira bem a coisa. Os “senhores”, depois de terem trocado as identidades, organizavam cuidadosamente os encontros. Colocavam diante de jovens intervertidos (as crianças montanhesas) moços de espírito notável, progenitura efectiva dos professores. Davam assim origem a uma fusão superior, unindo as “crianças-corpo” às “crianças-cérebro”. E o processo funcionou, Karim: os campeões da faculdade não são outros senão os filhos destes casais programados.

 

Abduf não comentou. Os seus pensamentos pareciam cristalizar-se, tão penetrantes como os espinhos de lárices que se misturavam com a chuva.

 

Niémans continuou:

 

- Combinei estes elementos e, aos poucos, reconstituí o puzzle. Compreendi que, nesse instante, caminhava precisamente na peugada do assassino, que o episódio das fichas reencontradas, objecto de artigos nos jornais regionais, lhe pusera o cérebro em brasa, Devia, tal como eu, ter comparado os dois grupos de documentos. Já possuía, por certo, alguma dúvida sobre as origens dos “campeões” de Guernon. É natural que seja ele próprio um destes campeões. Uma das criaturas suscitadas pelos lunáticos. Adivinhou então o princípio da conspiração. Seguiu o filho do ladrão de fichas, Rémy Caillois, e descobriu os laços secretos existentes entre ele, Sertys e Chernecé... No meu entender, este último não passava de uma peça acrescentada, um médico com pancada na mola que, ao tratar os miúdos cegos, desvendara a verdade e preferírajuntar-se aos manipuladores, em vez de os denunciar. Em suma, o assassino identificou-os e decidiu sacrificá-los. Torturou a sua primeira vítima, Rémy Caillois, e tomou conhecimento da história completa. Contentou-se, seguidamente, em mutilar e matar os dois outros cúmplices.

 

Karim endireitou-se. Todo o seu torso trepidava dentro do casaco de cabedal.

 

- Só por terem trocado bebés e favorecido casamentos?

- Há um último facto que tu ignoras: os montanheses das aldeias em redor sofrem uma alta mortalidade dos seus recém-nascidos. Um fenómeno inexplicável, tanto mais que se trata ainda aqui de famílias cheias de saúde. Agora, imagino a razão desta mortalidade. Os Sertys não só trocavam os bebés, como ainda asfixiavam os lactentes que faziam passar por filhos dos montanheses - em realidade, filhos de intelectuais, de menor envergadura. Assim, tinham a certeza de que os casais das altitudes, privados de Progenitura, engendrariam novos filhos e lhes forneceriam mais sangue novo para injectar no vale, entre os membros da intelectualidade. Estes homens eram uns fanáticos, Karim. Uns doentes, homicidas, de pai para filho, prontos a tudo para criar a sua raça superior.

 

Karim titubeou, numa voz destimbrada:

 

- Se os assassínios correspondem a uma vingança, qual o motivo de tão minuciosas mutilações?

 

- Possuem um valor simbólico. Visam aniquilar a identidade biológica das vítimas, destruir os sinais da sua origem profunda. De igual modo, os corpos foram encenados de maneira a descobrir-se primeiro o seu reflexo, e não o corpo em si mesmo. Uma outra forma de desmaterializar as vítimas, de as desencarnar. Caillois, Sertys e Chernecé eram ladrões de identidade. Pagaram na mesma moeda aquilo que fizeram. É uma espécie de pena de talião.

 

Abduf inspirou fundo e abeirou-se de Niémans. O vento carregado de chuva fustigava-lhes os rostos fantasmagóricos. A condensação formava uma bruma esbranquiçada em volta das suas cabeças, uma de cabelo cortado à escovinha e ossuda, a de Niémans, a outra com longas tranças espiraladas e encharcadas, a de Abduf.

 

- Niémans, o senhor é um chui genial.

 

- Não, Karim. Porque agora conheço o móbil do assassino, mas ainda não a sua identidade.

 

O argelino soltou uma risada seca, gélida.

- Eu cá sei a identidade dele.

 

- O quê?

 

- A partir daqui, tudo se ajusta. Lembre-se do meu próprio inquérito: os diabos que pretendiam destruir o rosto de Judíth porque ele constituía um testemunho, uma prova convincente. Os diabos não eram outros senão Étienne Caillois e René Sertys, os pais das vítimas, e sei a razão pela qual deviam imperiosamente apagar o rosto de judith. Porque este rosto podia trair a sua conspiração ao revelar a natureza dos rios de púrpura e o princípio da troca dos bebés.

 

Foi a vez de Niémans ficar estupefacto:

- PORQUÊ?

 

- Porquejudith Hérault tinha uma irmã gémea, que eles haviam trocado.

 

DESTA feita, quem falou foi Karim. Tom grave, voz neutra, por entre a chuva que parecia agora recuar face às primícias do dia. Os seus dreadlocks destacavam-se como os tentáculos de um polvo contra a corola da arma.

 

- Disse-me que os conspiradores seleccionavam as crianças destinadas à troca, estudando o perfil dos seus pais. Procuravam, sem dúvida, os seres mais fortes e mais ágeis das encostas. Buscavam feras dos cumes, leopardos das neves. Não podiam, portanto, deixar de reparar em Fabienne e Sylvain Hérault, jovem casal que vivia em Taverlay, nas alturas do Pelvoux, a mil e oitocentos metros de altitude. Ela com um metro e oitenta, colossal, magnífica. Uma professora primária aplicada. Uma pianista virtuosa. Silenciosa e dócil, pujante e poética. Garanto-lhe: Fabienne era uma verdadeira criatura ambivalente.

 

- Disponho de muito menos informações sobre o marido, Sylvain - continuou Karim. - Vivia exclusivamente no éter dos cimos, a extrair cristais raros da rocha. Também um autêntico gigante que não hesitava em medir-se com as montanhas mais escarpadas, mais inacessíveis. Comissário, se os conspiradores tivessem de roubar uma única criança, em toda a região, nesse caso deveria ser o rebento deste casal espectacular, cujos genes encerravam os segredos diáfanos dos altos píncaros. Estou certo de que eles aguardavam com avidez o nascimento do garoto, tal qual uns genuínos vampiros genéticos. Enfim, a 22 de Maio de 1972, sobrevém a noite fatídica. Os Hérault chegam ao CHRU de Guernon; a alta e bela jovem está prestes a parir. Ao cabo de apenas sete meses de gravidez. A criança será prematura, mas, segundo as parteiras, não há aqui nada de insuperável. Todavia, os acontecimentos não se desenrolam como se previra. A criança estava mal posicionada. Intervém um obstetra. Os bip-bip dos aparelhos de vigilância descambam na vertigem. São duas horas da madrugada do dia 23 de Maio. Em breve, o médico e a parteira deslindam o enigma de todo este caos. Fabienne Hérault está a dar à luz não uma criança, mas duas - duas gémeas homozigóticas apertadas no útero como duas amêndoas filipinas. Anestesiam Fabienne. O médico pratica uma cesariana e consegue tirar as criancinhas. Duas meninas, minúsculas, seladas na sua identidade como uma palavra de homem no seu juramento. Apresentam dificuldades respiratórias. São tomadas a cargo por um enfermeiro que tem de levá-las para a incubadora com a máxima urgência. Niémans, estou a ver como se lá estivesse, umas luvas de látex a arrebatar as miúdas. Caramba! São as mãos de René Sertys, o pai de Filipe. O mânfio está completamente desorientado. A sua missão, nessa noite, era trocar o filho dos Hérault, mas ele não podia prever que afinal depararia com duas rapariguinhas. Que fazer? O patife tem suores frios enquanto leva as duas meninas prematuras - autênticas obras-primas, condensados perfeitos de sangue novo para o povo novo de Guernon. Finalmente, Sertys coloca as meninas na incubadora e resolve só trocar uma. Ninguém distinguiu claramente o rosto delas. Ninguém pôde ver, na barafunda escarlate do bloco, se as duas rapariguinhas se pareciam ou não. Então Sertys tenta o golpe. Subtrai uma das gémeas à incubadora e troca-a por uma menina descendente de uma família de professores, cujo aspecto corresponde mais ou menos às filhas do casal Hérault: mesmo tamanho, mesmo grupo sanguíneo, mesmo peso aproximativo. já uma certeza desabrocha no seu espírito: deve matar este bebé de substituição. Deve matá-lo porque não pode deixar viver uma falsa gémea que não terá o mais leve ponto comum com a sua irmã. Asfixia por conseguinte a criança, depois chama em alta gritaria os pediatras e as enfermeiras, Desempenha o seu papel: o pânico, o remorso. Não compreende o que terá acontecido, a sério, não sabe. Nem o obstetra nem os pediatras emitem um parecer claro. É outra vez uma dessas mortes súbitas como as que atingem misteriosamente as famílias de montanheses nos últimos cinquenta anos. O pessoal clínico consola-se pensando que uma das duas crianças sobreviveu. Sertys rejubila lá no íntimo: a outra pequena Hérault está doravante integrada no clã de Guernon, através da sua nova família de adopção.

 

- Tudo isto, Niémans - frisa Karim -, imagino-o eu graças às suas descobertas. Porque a mulher que me falou esta noite, Fabienne Hérault, ignora tudo, ainda hoje, sobre o conluio dos lunáticos. E naquela noite, ela nada viu, nada ouviu; estava adormentada pela anestesia. Ao acordar, no dia seguinte de manhã, explicam-lhe que deu à luz duas meninas, mas que só uma delas sobreviveu. Pode-se porventura chorar um ser de cuja existência nem sequer se suspeitava? Fabienne aceita a notícia com resignação - ela e o marido estão totalmente desnorteados. Ao fim de uma semana, a mulher é autorizada a sair do hospital e a levar a filhinha, que rapidamente se constituiu em força de vida. Algures, no hospital, Renê Sertys observa o casal que se afasta. Transportam nos braços o duplo de uma menina trocada, mas ele sabe que este casal selvagem, residente a cinquenta quilómetros dali, jamais terá qualquer razão para voltar a Guernon. Sertys, ao deixar viver esta segunda criança, assumiu um risco, mas tal risco é mínimo. Pensa então que o rosto da gémea nunca há-de vir denunciar a conspiração deles. Engana-se. Muitos anos mais tarde, a escola de Taverlay, onde Fabienne ensina, fecha as portas. Ora, a mulher é transferida - será o único acaso de toda a história

- para a cidade de Guernon, indo exercer na prestigiosa escola Lamartíne, o estabelecimento escolar reservado aos filhos dos professores da faculdade. É assim que Fabienne descobre um facto alucinante, impossível. Na classe de CM2, a que pertence Judith, há uma outra Judith. Uma menina que e a réplica exacta da sua filha. Passada a primeira surpresa - o fotógrafo da escola tem tempo de tirar um retrato da classe onde as duas sósias são visíveis -, Fabienne analisa a situação. Só pode haver uma explicação, Esta criança idêntica, este duplo, não é outro senão a irmã gémea de Judith, que sobreviveu ao parto e foi, por alguma razão misteriosa, intervertida com outro bebé. A professora díríge-se à maternidade e explica o seu caso. Recebem-na com frieza e suspeição. Fabienne é uma mulher sólida, nada do género de se deixar intimidar seja por quem for. Insulta os médicos, chama-os de ladrões de crianças, promete voltar. Sem dúvida alguma, René Sertys assiste à cena e apercebe-se do perigo. Mas Fabienne já está longe: decidiu visitar a família dos universitários, os pretensos pais da sua segunda filha, os usurpadores. Vai de bicicleta, com Judith, em direcção ao campus. Mas, de repente, surge o terror. Anoitece e um carro tenta atropelá-las. Fabienne e a filha rebolam pela berma, no flanco de uma falésia. A professora primária, escondida numa ravina, com a filha nos braços, avista os assassinos, Homens saídos de um veículo, empunhando espingardas. Alapada, esgazeada, Fabienne não compreende. Qual o motivo deste súbito desencadear de violência? Os assassinos acabam por ir-se embora, decerto convencidos de que as duas mulheres morreram no fundo do precipício. Na mesma noite, Fabienne vai ter com o marido, em Taverlay, onde ele ainda reside durante a semana. Conta-lhe a história toda. Conclui que é absolutamente necessário prevenir os gendarmes. Sylvain não concorda. Quer ajustar pessoalmente contas com os malandros que tentaram matar-lhe a mulher e a filha. Pega numa espingarda, salta para a sua bicicleta, desce até ao vale. Aqui, encontra os assassinos muito mais cedo do que desejaria. Porque os assassinos ainda rondam, cruzam-se com ele numa estrada regional e deitam-no ao chão com o automóvel. Passam várias vezes sobre o corpo e fogem. Entretanto, Fabienne refugiou-se na igreja de Taverlay. Espera toda a noite por Sylvain. De manhãzinha, informam-na de que o marido foi morto por um motorista anónimo. A professora compreende então que as suas filhas foram vítimas de uma manipulação e que os homens que eliminaram o seu marido a mandarão desta para melhor se ela não se puser imediatamente ao fresco. Para ela e para a filha, começa a fuga.

 

-já conhece o resto. - E reata: - A debandada da mulher e da filhinha, até Sarzac, a mais de trezentos quilómetros de Guernon. A sua nova escapada, quando Etienne Caillois e René Sertys encontram o seu rastro, os esforços de Fabienne para exorcizar o rosto da filha, persuadida de que ela é vítima de uma maldição, depois o acidente de automóvel que custará finalmente a vida a Judith. Desde essa época, a mãe vive em oração. Oscilou sempre entre várias hipóteses. Mas a principal era a de que os pais adoptivos da sua segunda filha, individualidades poderosas e diabólicas da faculdade, haviam urdido toda esta história para substituir a filha morta e que eles estavam prontos a eliminá-las, a ela e ajudith, simplesmente para não perturbarem e existência que levavam. A mulher nunca lobrigou a verdade: a natureza da autêntica manipulação. A dos conspiradores que procuraram as duas mulheres por toda a França, receando que elas divulgassem a sua horrenda maquinação e que o rosto da criança servisse de prova convincente. Agora, Niémans, os nossos dois inquéritos juntam-se como os dois carris da morte. A sua hipótese corrobora a minha. Sim: o assassino leu este Verão as fichas roubadas. Sim: ele seguiu Caillois, depois Sertys e Chernecé. Sim: descobriu a manipulação e resolveu vingar-se da mais sangrenta das maneiras. E este assassino não é outro senão a irmã gémea dejudith. Uma gémea homozigótica que agiu como Judith teria feito, porque conhece agora a verdade sobre a sua própria origem. É por isso que utiliza uma corda de piano, para lembrar os talentos virtuosos da sua mãe verdadeira. É por isso que sacrifica os manipuladores nos cocurutos da penedia, no sítio onde o seu próprio pai arrancava os cristais. É por isso, enfim, que as suas impressões digitais puderam ser confundidas com as de Judith em criança... Procuramos a irmã de sangue, Niémans.

 

- Quem é ela? - explodiu Niémans. - Sob que nome cresceu?

 

- Não sei. A mãe recusou-se a dar-mo. Mas tenho aqui o seu rosto.

 

- O seu rosto?

 

- A fotografia de Judith, aos onze anos de idade. O mesmo é dizer, o rosto da homicida, visto que elas são perfeitamente idênticas. julgo que com este retrato, nós...

 

Niémans tremia convulsivamente.

- Mostra-mo. Depressa.

 

Karim tirou a fotografia do bolso e estendeu-lha.

 

- É ela que mata, comissário. Vinga a irmã desaparecida. Vinga o pai assassinado. Vinga os bebés asfixiados, as famílias manipuladas, todas essas gerações traficadas desde... Niémans, sente-se mal?

 

O retrato vibrava entre os dedos do comissário, que observava o rosto da criança e cerrava os dentes até quase os fazer estalar. De súbito, Karim compreendeu e inclinou-se para ele. Apertou-lhe o ombro.

 

- Santo Deus, conhece-a? Quer dizer que a conhece? Niémans deixou cair a fotografia na lama. Parecia derivar até aos confins da pura loucura. A sua voz, tal qual uma corda quebrada, ressoou:

 

- Viva. Temos de a apanhar viva.

 

Os DOIS chuis desembestaram debaixo de chuva.já não falavam, mal respiravam. Transpuseram várias barragens policiais; as sentinelas da alvorada deitavam-lhes olhares suspeitosos. Nem um nem o outro emitiram nessa altura a ideia de pedir o reforço de uma secção. Niémans estava arredado do caso, Karim não se encontrava no seu território. E, no entanto, ambos o sabiam: era o seu inquérito, inegavelmente, deles e só deles.

 

Chegaram ao campus. Percorreram as ruas de asfalto, as superfícies de ervas brilhantes, depois estacionaram e subiram ao último andar do edifício principal. Caminharam de um só ímpeto até ao fundo do corredor e bateram à porta, encostados cada qual a uma ombreira. Nenhuma resposta. Rebentaram a fechadura e entraram no aposento.

 

Níémans assestava a sua espingarda de mola Remington, com o carregador cheio, que fora buscar ao posto central, Karim empunhava o seu Glock, engatilhado na mão, e a sua lanterna. Convergência dos feixes, morte e luz.

 

Ninguém. Iniciavam uma busca rápida quando o pager de Niémans tocou. Era preciso telefonar a Marc Costes com toda a urgência. O comissário ligou logo. As mãos ainda lhe tremiam, umas dores aflitivas lanceavam-lhe o ventre. A voz do jovem médico soou:

 

- Niémans, estou com o Barnes. É só para lhe dizer que encontraram Sophie Caillois.

 

- Viva?

 

- Sim, viva. Ia a fugir na direcção da Suíça, no comboio de...

 

- Declarou alguma coisa?

 

- Diz que é a próxima vítima. E sabe quem é o assassino.

- Indicou o nome?

 

- Só quer falar consigo, comissário.

 

- Mantenham-na sob alta vigilância. Ninguém deve falar com ela. Nem chegar-lhe ao pé. Estarei no posto dentro de uma hora.

 

- Uma hora? Está a seguir... uma pista?

- Adeus.

 

- Espere! O Abduf está consigo

 

Niémans passou o telemóvel aojovem tenente e prosseguiu a sua busca apressada. Karim concentrou-se na voz do médico:

- já apurei a tonalidade da corda de piano - disse o legista.

 

- Si bemol?

 

- Como sabes?

 

Karim não respondeu e desligou. Olhou para Niémans, que o fitava por detrás dos seus óculos salpicados de chuva.

- Aqui não encontraremos nada - largou ele caminhando para a porta. - Vamos ao ginásio. É o antro dela.

 

A porta do ginásio, construção isolada numa das extremidades do campus, não resistiu um segundo. Os dois homens penetraram lá, desdobrando-se em arco de círculo. Karim ainda apontava o seu Glock acima do raio da lanterna. Niémans também accionara a lâmpada fixada na sua espingarda, em coincidência com o eixo do cano.

 

Ninguém. Galgaram os tapetes de solo, passaram sob as barras paralelas, perscrutaram as negras alturas onde balouçavam argolas e cordas com nós. O silêncio, qual soturna carapaça. O cheiro a suor rançoso e borracha velha. A sombra, dardejada de formas simétricas, de módulos de madeira, de articulações de metal. Niémans tropeçou num trampolim, Karim voltou-se acto contínuo. Tensão aguda. Breve olhar. Ambos podiam sentir a angústia do outro. Faíscas a friccionarem-se entre si como silex. Niémans segredou:

 

- É aqui. Tenho a certeza de que é aqui.

 

Karim continuou a esquadrinhar com os olhos, depois focou as canalizações do aquecimento. Prosseguiu ao longo dos tubos presos à parede, escutando a ténue chiada da caldeira. Passou por cima de halteres, de bolas de couro, e chegou a um entrelaçamento de barras untuosas, apoiadas de esguelha contra tapetes de espuma erguidos lés a lés da parede. Sem se dar ao trabalho de ser discreto, abateu os aparelhos e arrancou os tapetes. A “barragem” dissimulava a porta do local da caldeira.

 

Disparou uma única bala no orifício estriado que servia de fechadura. A porta saltou dos gonzos, libertando uma revoada de esquírolas e de filamentos de metal, Finalizou a passagem derrubando o batente à sapatada.

 

No interior, escuridão.

 

Esticou a cabeça e tirou-a logo, pálido. Os dois homens engolfaram-se desta vez num único movimento.

 

O odor acobreado bateu-lhes na cara. Sangue.

 

Sangue nas paredes, nos tubos de ferro fundido, nos discos de bronze pousados no chão. Sangue no solo, enxugado por punhados de talco, embebido em poças granulosas e negruscas. Sangue nas paredes abauladas da caldeira.

 

Os dois homens não tinham vontade de vomitar; o seu espírito estava como que desprendido do corpo, suspenso numa espécie de pavor alucinado. Aproximaram-se, varrendo o mínimo pormenor com a lanterna. Enroscadas em volta dos tubos, brilhavam cordas de piano. Bidões de gasolina jaziam por terra, tapados com trapos sanguinolentos. Barras de halteres exibiam filamentos de carne ressequida, crostas castanhas. Cúteres embotados apareciam aglutinados nos charcos petrificados de hemoglobina.

 

À medida que avançavam no pequeno compartimento, os feixes das lâmpadas tremulavam, traindo o medo que acossava os seus membros. Niémans distinguiu uns objectos coloridos debaixo de um banco. Ajoelhou-se. Geladeiras. Puxou uma e abriu. Sem tugir nem mugir, iluminou o fundo para que Karim pudesse ver.

 

Uns olhos.

 

Gelatinosos e esbranquiçados, cintilando de um orvalho cristalizado dentro de um ninho de gelo.

 

já Niémans se apoderava de outra geladeira, contendo desta vez um par de mãos crispadas, com reflexos azulados. As unhas estavam embaciadas de sangue, os punhos marcados de incisões. O comissário recuou. Karim contraiu os ombros e gemeu.

 

Sabiam ambos que já não se encontravam numa casa da caldeira. Acabavam de penetrar no cérebro da homicida. No seu covil subterrâneo - onde achara por bem sacrificar os assassinos de bebés.

 

A voz de Karim, subitamente demasiado aguda, sussurrou:

- Ela pisgou-se. Para longe de Guernon.

 

- Não - retorquiu Niémans, endireitando-se. Quer apanhar Sophie Caillois. É a última da lista. Sophie acaba de chegar ao posto central. Tenho a certeza de que ela irá sabê-lo, oujá o sabe, e encaminhar-se-á para lá.

 

- Com as barragens nas estradas? Não poderá dar um único passo sem ser identificada e...

 

Karim calou-se de chofre. Os dois homens olharam-se, com os rostos iluminados de baixo para cima pelas lâmpadas. Em uníssono os seus lábios ciciaram:

 

- O rio.

 

Tudo se desenrolou nas imediações do campus. Ali mesmo onde o corpo de Caillois tinha sido encontrado. No sítio onde o rio se apaziguava num pequeno lago antes de retomar o seu curso em direcção à cidade.

 

Os dois polícias seguiram à desfilada, derrapando nos declives de erva. Tomaram por aquele cuja última curva dava acesso à margem. De repente, quando Karim guiava ao longo da parede de pedra, avistaram, à luz dos faróis, uma silhueta de impermeável preto, chamejante de reflexos, levando uma pequena mochila. O rosto virou-se e empederniu-se no foco branquejante. Karim reconheceu o gorro e o passa-montanhas. A jovem desamarrou uma embarcação vermelha e insuflada, em forma de salsicha, e aproximou-a de si puxando pela corda, do mesmo modo que faria com uma montada respingona. Niémans murmurou:

 

- Não dispares. Não te abeires. Eu prendo-a sozinho. Antes que Karim pudesse responder, já o comissário se lançara para fora do carro, descendo a pé os últimos metros do declive. O jovem tenente parou, cortou o contacto e ficou à espreita. Por entre o jorro dos faróis, viu o chui a correr em grandes pernadas, gritando:

 

- Fanny!

 

Ajovem punha um pé no esquife. Niémans agarrou-a pela gola e puxou-a a si num único movimento. Karim permanecia estático, parecendo hipnotizado por aquelas duas silhuetas enredadas num bailado incompreensível.

 

Viu-as enlaçarem-se - pelo menos assim julgou. Viu a mulher deitar a cabeça para trás e arquear-se desmedidamente. Viu Niémans inteiriçar-se, curvar-se e sacar da arma. Um esguicho de sangue transbordou dos seus lábios e Karim percebeu que ajovem acabava de lhe rasgar as entranhas com um golpe de cúter. Distinguiu o ruído das detonações abafadas, o MR 73 de Niémans que aniquilava a sua presa, enquanto estes dois seres continuavam estreitados num beijo de morte.

 

- NÃO!

 

O grito de Karim estrangulou-se na garganta. Correu de arma em punho para o par que cambaleava à beira do lago. Quis gritar de novo. Quis acelerar, fazer recuar o tempo. Mas não pôde impedir o inevitável: Pierre Niémans e a mulher caíram no meio de um rumorejo glauco.

 

Só alcançou a borda da água para enxergar os dois corpos arrastados pela débil corrente para os confins. Formas aladas e soltas, os cadáveres enlaçados não tardaram a ultrapassar as rochas e desapareceram no rio que se perdia a caminho da cidade.

 

O jovem chui ficou imóvel, aturdido, a mirar o curso de água, a ouvir o crepitar de espuma, que murmurava atrás dos rochedos, para além do lago. Mas sentiu repentinamente, pesadelo quejamais terminaria, a lâmina de um cúter que lhe picava a garganta a ponto de lhe entalhar a carne.

 

Uma mão furtiva passou sob o seu braço e apossou-se do Glock, enfiado à esquerda no boldrié.

 

- Folgo muito em tornar a ver-te, Karim.

 

A voz era doce. De uma doçura de pedrinhas pousadas em círculo sobre uma sepultura. Karim voltou-se devagar. No ar átono reconhece logo o rosto oval, a tez trigueira, os olhos claros, marejados de lágrimas.

 

Ele sabia que estava diante de Judith Hérault, o duplo perfeito da mulher a quem Niémans chamara “Fanny”. A rapariguinha que tanto procurara.

 

A menina transformada em mulher. Bem viva.

 

Eramos duas, Karim. Fomos sempre duas.

 

O chui teve de recobrar alento para falar. Finalmente, sussurrou:

 

- Conta, Judith. Conta-me tudo. Se devo morrer, quero ao menos saber.

 

Ajovem não parava de chorar, com as duas mãos apertadas em volta do Glock de Karim. Envergava um impermeável de oleado preto, umas calças de mergulhador e um capacete escuro vitrificado e com abertos, semelhante a uma mão de laca pousada sobre a sua guedelha em remoinhos.

 

A voz dela elevou-se de súbito, cheia de precipitação:

 

- Em Sarzac, quando a mamã compreendeu que os diabos nos tinham reencontrado, deduziu logo que nunca mais nos livraríamos deles... Que os diabos andariam sempre no nosso encalço e acabariam por matar-me... Ocorreu-lhe então uma ideia de gênio... Pensou de si para consigo que o único esconderijo aonde nunca iriam procurar-me era na sombra da minha irmã gémea, Fanny Ferreira... No próprio cerne da sua vida... Disse com os seus botões que a minha mana e eu devíamos viver uma única existência, mas partilhada por nós as duas, sem ninguém saber.

 

- Os outros pais estavam... najogada?

 

Judith deu uma leve gargalhada por entre as lágrimas.

 

- Claro que não, imbecil... Fanny e eu tivéramos tempo de nos conhecer, na pequena escola Lamartine... já não queríamos separar-nos... íamos viver ambas a vida de uma só, no mais completo segredo. Mas, primeiro, era necessário desembaraçarmo-nos dos assassinos, para todo o sempre. Urgia persuadi-los de que eu morrera. A mamã encenou tudo para os levar a acreditar que tentávamos fugir de Sarzac... Quando afinal não fazia mais do que orientá-los para a sua esparrela: o acidente de viação...

 

Karim compreendeu que também ele caíra na esparrela, catorze anos mais tarde. A sua mesquinha pretensão de chui fulgurante estalara-lhe como uma castanha na boca. Se pudera seguir, em poucas horas, a pista de Fabienne ejudith Hérault, fora simplesmente porque enveredara por um percurso forjado. Um percurso que já servira para iludir os velhos Caillois e Sertys em 1982.

 

Judith continuava, como se lesse nos seus pensamentos:

- A mamã iludiu-vos a todos. Todos! Nunca foi uma louca de Deus... Nunca acreditou em diabos... Nunca quis exorcizar o meu rosto... Se escolheu uma religiosa para recuperar as fotografias, foi para se descobrir melhor o seu rastro, percebes? Fingia apagar a nossa pista, mas, na realidade, cavava um sulco profundo, evidente, para que os assassinos nos seguissem até à nossa encenação final... Foi também por isso que ela envolveu na tramóia o Crozier, que era tão discreto como um blindado numjardim inglês...

 

Karim viu de novo cada indício, cada pormenor que lhe permitira seguir a pista das duas mulheres, O médico dilacerado pelo remorso, o fotógrafo corrompido, o padre bêbedo, a freira, o expelidor de fogo, o velho da auto-estrada... Todas estas personagens eram os “seixos brancos” de Fabienne Hérault. As balizas que deviam conduzir os pais Caillois e Sertys ao falso acidente. E que tinham guiado Karim, em poucas horas, até à estação da auto-estrada, ponto final do destino dejudith.

 

Karim tentou rebelar-se contra a manipulação:

 

- Caillois e Sertys não seguiram o vosso rastro. Ninguém me falou deles durante o meu inquérito.

 

- Eram mais discretos do que tu! Mas seguiram a nossa pista. E cortámos prego, podes crer... Porque na altura em que montámos o acidente, Caillois e Sertys tinham-nos localizado e iam matar-nos.

 

- O acidente... Como é que fizeram?

 

- A mamã levou mais de um mês a prepará-lo. Principalmente a destreza para destruir a carripana contra o muro e sair ilesa...

 

- Mas... o... corpo? Quem era?

 

Judith soltou um risinho sardónico; Karim lembrou-se das barras de ferro ensanguentadas, dos bidões de gasolina, das poças de hemoglobina. Compreendeu que Fanny devia ter apenas apoiado a irmã na vingança, mas que a verdadeira torcionária era ela -Judith. Uma louca. Uma fúria a precisar de camisa-de-forças, que provavelnente também tentara matar Niémans na ponte de betão.

 

- A mamã lia todos os jornais da região: as crónicas, os acidentes, as notícias necrológicas... Batia os hospitais, os cemitérios. Necessitava de um corpo que correspondesse ao meu tamanho e à minha idade. Na semana anterior ao acidente, exumou uma criança enterrada a cento e cinquenta quilómetros da nossa casa. Um rapazinho. Estava tudo irrepreensível. A mamã já decidira declarar oficialmente a minha morte em nome de “Jude”, para rematar a sua estratégia da mentira. E, de qualquer modo, ela iria esmagar o corpo a toda a brida. A criança já não seria reconhecível. Nem sequer o seu sexo.

 

Teve um riso absurdo, embargado por soluços, depois continuou:

 

- Karim, convém que saibas... Desde sexta-feira até domingo, vivemos com o corpo dentro de casa. Um rapazinho morto num acidente de motocicleta, já bastante maltratado. Pusemo-lo numa banheira cheia de gelo. E esperámos.

 

Uma questão atravessou o espírito de Karim.

- Crozier ajudou-vos?

 

- De fio a pavio, Parecia possuído pela beleza da mamã. E ele pressentia que toda esta manobra macabra era para nosso bem. Assim, durante dois dias, esperámos. Na nossa casinha de pedra. A mamã tocava piano. Tocava sem parar... Sempre a sonata de Chopin. Como se quisesse abolir este pesadelo... Eu começava a perder a cabeça por causa daquele corpo que apodrecia na banheira. As lentes de contacto magoavam-me os olhos. As teclas de piano afundavam-se na minha cabeça como pregos. O meu cérebro rebentava, Karim... Tinha medo, tanto medo...

 

- E as impressões digitais? As impressões digitais na ficha de óbito: como conseguiram?

 

Judith, esfuziante de caracóis e de frescura, sorriu por entre as lágrimas:

 

- Nada de mais simples, Eu e o Crozier fizemos uma nova ficha e trocámo-la pela que havia sido efectuada na auto-estrada. A mamã não queria deixar nada ao acaso, não fossem os diabos voltarem a verificar este pormenor...

 

O polícia fechou os punhos. Nada de mais simples, com efeito, e amaldiçoou-se por não ter pensado nisso. De repente, teve uma intuição. A mão com um penso que empunhava o seu Glock, debaixo de chuva...

 

- Esta noite, eras tu?

 

- Sim, minha esfingezinha - troçou ela. - Fora lá para sacrificar Sophie Caillois, essa putéfia, louca de amor pelo seu gajo e que nunca ousara denunciar Rémy e os outros... Devia ter-te morto... - Borbulharam-lhe lágrimas nas pálpebras. Se o houvesse feito, Fanny ainda estaria viva... Mas não pude, não fui capaz...

 

Judith fez uma pausa, pestanejando sob o capacete de ciclista. Em seguida retomou o seu chilreio precipitado:

 

- Logo após o acidente, fui ter com a Fanny, em Guernon. Ela pedira aos pais para viver em internato, no último andar da escola Lamartine... Só tínhamos onze anos, mas pudemos viver imediatamente em uníssono... Eu vivia nas águas-furtadas. já era uma sobredotada em alpinismo   ... Iajuntar-me à minha irmã através das caleiras, das janelas ... Uma autêntica aranha... E nunca ninguém me viu... Os anos passaram, Substituímo-nos uma à outra em todas as situações, nas aulas, na família, com os amigos, as amigas. Partilhávamos a comida, permutávamos os dias. Levávamos exactamente a mesma vida, mas cada uma por sua vez. Fanny era a intelectual: iniciava-me nos livros, nas Ciências, na Geologia. Eu ensinava-lhe alpinismo e a conhecer a montanha, os rios. Em conjunto, compúnhamos uma personagem incrível... Uma espécie de dragão com duas cabeças. Por vezes, a mamã vinha ver-nos, na montanha.

 

Trazia-nos provisões. Nunca nos falava das nossas origens, ou dos dois anos vividos em Sarzac. Pensava que esta impostura era para nós a única maneira de vivermos felizes... Mas, por mim, não esquecera o passado. Andava sempre com uma corda de piano. E não parava de escutar a sonata em si bemol. A sonata do pequeno cadáver na banheira... Era frequente acometerem-me furores selvagens... Só de apertar a corda de piano, fazia cortes profundos nos dedos. Recordava-me então de tudo. Do meu medo, em Sarzac, quando desempenhava o papel de rapazinho, dos domingos, perto de Sète, onde aprendi a expelir fogo, da última noite, enquanto esperava que a mamã se fosse embora com a criança morta. Ela nunca quis revelar-me o nome dos assassinos, esses malvados que nos perseguiam e tinham esborrachado o meu pai. Eu metia-lhe medo, até a ela... julgo que compreendera que eu mataria, mais cedo ou mais tarde, aqueles assassinos... A minha vingança só aguardava uma pequena centelha... Lamento simplesmente que essa história das fichas tenha levado tanto tempo a aparecer, quando os velhos Sertys e Caillois já estavam mortos...

 

Judith calou-se e apontou a arma com mais firmeza. Karim guardava silêncio, e este silêncio era uma interrogação. De repente, a jovem desatou a gritar:

 

- Que mais queres que te diga? Que o Caillois confessou tudo, suplicando-nos? Que a demência deles durava há gerações? Que ainda continuavam a trocar bebés? Que contavam casar-nos, a mim e à Fanny, com um desses degenerados em fim de raça lá da faculdade? Não passávamos de criaturas deles, Karim...

 

Judith inclinou-se.

 

- Eram uns maníacos... Uns tarados sem emenda, que julgavam agir em prol da humanidade gerando estirpes genéticas perfeitas... Caillois tinha-se na conta de Deus, com o seu povo em marcha... Sertys, esse, criava ratos aos milhares no entreposto... Ratos que representavam a população de Guernon... Cada roedor recebia o nome de uma família, acredita no que te digo! Compreendes até que ponto estes tratantes eram loucos? E Chernecé completava o quadro... Afirmava que as íris do povo superior brilhariam com um fulgor particular, e que ele seria a sentinela absoluta, no limiar do mundo, aquele que brandiria à face da humanidade os fachos em forma de pupila...

 

Judith pousou um joelho no solo, com o Glock sempre assestado na direcção de Karim, e baixou a voz.

 

- Borraram-se todos quando os apanhámos, eu e a Fanny, podes crer... No primeiro dia sacrificámos o Caillois filho, antes de mais ninguém. Queríamos uma vingança à altura da sua conspiração... Fanny teve a ideia das mutilações biológicas... Dizia que era preciso destruí-los em profundidade, como eles haviam destruído a identidade das crianças de Guernon... Dizia também que devíamos estilhaçar os seus corpos em vários reflexos, tal como se quebra uma garrafa em muitos cacos... Eu cá tive a ideia dos lugares: a água, o gelo, o vidro. E fui eu que fiz o trabalho mais sujo... Fui eu que fiz falar o primeiro biltre, a golpes de barra, de fogo, de cúter... Em seguida, incrustámos o corpo na rocha e fomos desmanchar tudo no entreposto de Sertys... Depois gravámos uma mensagem em casa do bibliotecário... Uma mensagem assinada Judith, para encher de cagaço aqueles patifes, para que entendessem bem que o fantasma regressara... Fanny e eu sabíamos que os outros conspiradores iriam a Sarzac para verificar o que julgavam saber desde 1982: que eu estava morta e enterrada naquela terriola de merda... Fomos então lá e esvaziámos o meu caixão... Atulhámo-lo com os ossos de roedores que havíamos encontrado no entreposto - Sertys guardava-os rotulados, esse maldito fetichista amante de cadáveres...

 

Judith deu uma gargalhada e pôs-se outra vez a berrar:

 

- Imagino as fuças deles quando abriram a caixa! - Não tardou a ficar de novo grave. - Era indispensável que eles soubessem, Karim... Tinham de perceber que chegara o tempo da vingança e que iam bater a bota... Iam pagar todo o mal que haviam feito à nossa cidade, à nossa família, a nós, as duas irmãzinhas, e a mim, a mim, a mim...

 

A sua voz extinguiu-se. O dia despedia coruscações de madrepérola.

 

Karim murmurou:

 

- E agora? O que vais fazer?

- Vou para o pé da mamã.

 

O chui pensou na mulher colossal rodeada pelas suas capas e os seus tecidos variegados. Pensou em Crozier, o homem solitário, que devia ter ido ao encontro dela nas últimas horas da noite. Seriam ambos engaiolados, mais dia menos dia.

 

- Tenho que te prender, Judith. A moça escarneceu.

 

- Prender-me? Mas a tua arma está aqui, minha esfingezinha! Se te mexes, faço-te num passador.

 

Karim aproximou-se e tentou sorrir.

 

- Acabou-se tudo, Judith. Vamos cuidar de ti, nós... Quando a rapariga carregou no gatilho já Karim sacara da Beretta que trazia sempre enfiada nas costas, a Beretta que lhe permitira vencer os skins, a arma da derradeira hipótese.

 

As suas balas cruzaram-se e ecoaram duas detonações no alvorecer. Karim não foi atingido, masJudith recuou num gesto gracioso. Como se a transportasse um ritmo de dança, cambaleou uns instantes, o peito tingido de púrpura.

 

Ajovem largou o automático, esboçou um breve movimento de marcha, depois baqueou no vazio. Karim julgou ver perpassar um sorriso no seu rosto.

 

Ele urrou, repentinamente, e precipitou-se para a beira dos rochedos a fim de contemplar o corpo de Judith, a pequenita a quem amara - sabia-o agora - mais que tudo no mundo, durante vinte e quatro horas.

 

Discerniu a silhueta ensanguentada que derivava a caminho do rio. Viu o corpo afastar-se para ir juntar-se aos de Fanny Ferreira e Pierre Niémans.

 

Ao longe, rasgando o leito das montanhas, um sol incandescente erguia-se no horizonte,

 

Karim não reparou em nada.

 

Não vislumbrava que gênero de sol podia iluminar as trevas que aprisionavam o seu coração.

 

                                                                                Jean Christophe Grange  

 

                      

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