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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RITOS DE ADEUS / Hannah Kent
RITOS DE ADEUS / Hannah Kent

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

RITOS DE ADEUS

 

Disseram que eu devo morrer. Disseram que roubei o fôlego dos homens, e agora eles devem roubar o meu. Então imagino que todos sejamos chamas de velas, brilhantes e untuosas, tremulando na escuridão e no vento que uiva; e na imobilidade do quarto eu ouço passos, passos medonhos que se aproximam, que se aproximam para me soprar e retirar a vida de mim em uma espiral de fumaça cinza. Vou desaparecer no ar e na noite. Eles nos soprarão a todos, um por um, até que só vejam sua própria luz. Onde estarei então?

Algumas vezes acho que a vejo novamente, a fazenda, queimando na escuridão. Algumas vezes posso sentir a dor do inverno em meus pulmões, e acho que vejo as chamas espelhadas no oceano, a água tão estranha, tão trêmula de luz. Houve um momento naquela noite em que olhei para trás. Olhei para trás para ver o fogo, e se lambo minha pele ainda posso sentir o gosto de sal. A fumaça.

Não era sempre tão frio.

Eu ouço passos.

 

                   Aviso público

Haverá um leilão no dia 24 de março de 1828, em Illugastadir, dos valores que o fazendeiro Natan Ketilsson deixou para trás. Há uma vaca, alguns cavalos, um volume considerável de ovelhas, feno, móveis, sela, arreio e muitos pratos e panelas. Tudo isso será vendido caso uma oferta à altura seja feita. Todos os bens serão dados ao lance mais alto. Se o leilão não for possível devido ao mau tempo, será cancelado e realizado no dia seguinte, desde que o clima permita.

 

Comissário distrital

Björn Blöndal

20 de março de 1828

Ao respeitável reverendo Jóhann Tómasson,

Obrigado por sua distinta carta do dia 14, na qual desejou ser informado de como cuidamos do enterro de Pétur Jónsson, de Geitaskard, de quem se diz ter sido assassinado e queimado na noite entre os dias 13 e 14 deste mês, com Natan Ketilsson. Como o reverendo tem conhecimento, houve algum debate sobre se seus ossos deveriam ser enterrados em solo consagrado. Sua condenação e punição por assalto, roubo e receptação de propriedade roubada iria se seguir ao processo na Corte Suprema. Contudo, não recebemos nenhuma correspondência da Dinamarca. O juiz do Tribunal Regional condenou Pétur no dia 5 de fevereiro do ano passado e o sentenciou a quatro anos de trabalhos forçados em Rasphus, Copenhague, mas na época de seu assassinato ele ainda estava "livre". Portanto, em resposta à sua pergunta, seus ossos foram enterrados segundo os ritos cristãos, junto a Natan, já que ele não poderia ainda ser considerado um dos que abandonaram o caminho cristão. Essas pessoas são expressamente indicadas na carta de Sua Majestade o rei, de 30 de dezembro de 1740, que relaciona todos aqueles que não deverão merecer ritos fúnebres cristãos.

Comissário distrital, Björn Blöndal

 

30 de maio de 1829

Rev. T. Jónsson

Breidabólstadur, Vesturhóp

Ao reverendo assistente Thorvardur Jónsson,

Espero que esta carta o encontre bem e com sucesso em sua realização da obra do Senhor em Vesturhóp.

 

Em primeiro lugar, gostaria de lhe transmitir minhas congratulações, embora atrasadas, pela conclusão bem-sucedida de seus estudos no Sul da Islândia. Seus paroquianos dizem que é um jovem diligente, e aprovo sua decisão de retornar ao Norte para começar sua capelania sob a supervisão de seu pai. É para mim considerável alegria saber que restam homens justos dispostos a cumprir com suas obrigações para com o homem e Deus.

 

Em segundo lugar, em minha posição de Comissário Distrital, escrevo para lhe pedir préstimos. Como deve saber, nossa comunidade foi recentemente obscurecida pela sombra do crime. Os assassinatos de Illugastadir, cometidos no ano passado, simbolizaram em sua hediondez a corrupção e a impiedade deste país. Como comissário distrital de Húnavatn, não posso permitir desvios sociais e, após a esperada autorização da Corte Suprema de Copenhague, pretendo executar os assassinos de Illugastadir. É com isso em mente que peço sua ajuda, reverendo assistente Thorvardur.

 

Como se lembra, relatei o caso dos assassinatos em carta enviada ao clero há quase dez meses, com ordens de que sermões de censura fossem feitos. Permita-me repetir o que aconteceu, dessa vez para lhe dar uma compreensão mais ampla do crime.

 

No ano passado, na noite entre os dias 13 e 14 de março, três pessoas cometeram um ato grave e execrável contra dois homens que talvez conheça: Natan Ketilsson e Pétur Jónsson. Pétur e Natan foram encontrados nas ruínas calcinadas na fazenda de Natan, Illugastadir, e um exame atento dos cadáveres revelou ferimentos de natureza intencional. Essa descoberta levou a uma investigação, à qual se seguiu um julgamento. No dia 2 de julho do ano passado, as três pessoas acusadas dos assassinatos - um homem e duas mulheres - foram consideradas culpadas no Tribunal Distrital, presidido por mim mesmo, e condenadas à decapitação: "Aquele que agride um homem de modo que ele morra certamente deve ser condenado à morte". As sentenças de morte foram mantidas em 27 de outubro do ano passado no Tribunal Regional, que se reuniu em Reykjavík. O caso está sendo atualmente julgado na Corte Suprema em Copenhague, e é provável que meu julgamento original também seja mantido ali. O nome do homem condenado é Fridrik Sigurdsson, filho do fazendeiro de Katadalur. As mulheres são criadas, chamadas Sigrídur Gudmundsdóttir e Agnes Magnúsdóttir.

 

Esses condenados estão sendo mantidos atualmente sob custódia aqui no Norte e assim permanecerão até o momento de sua execução. Fridrik Sigurdsson foi levado para Thingeyrar pelo reverendo Jóhann Tómasson, e Sigrídur Gudmundsdóttir foi transferida para Midhóp. Agnes Magnúsdóttir seria mantida em Stóra-Borg até sua execução, mas, por razões que não tenho liberdade para revelar, será transferida para um novo local em Kornsá, no vale de Vatnsdalur, no mês que vem. Ela está insatisfeita com seu atual assistente espiritual, e usou um de seus poucos direitos restantes para solicitar outro padre. Ela o requisitou, reverendo assistente Thorvardur.

 

É com alguma insegurança que o procuro para a tarefa. Estou consciente de que até o momento suas responsabilidades se limitaram à educação espiritual dos membros mais jovens de sua paróquia, o que sem dúvida alguma é valoroso, mas isso tem pouca importância política. Você mesmo pode admitir que tem muito pouca experiência para saber como levar essa mulher condenada ao Senhor e Sua infinita misericórdia, e nesse caso eu não questionaria seu desinteresse. É um peso que eu hesitaria em depositar sobre os ombros de um clérigo experiente.

 

Contudo, caso aceite a responsabilidade de preparar Agnes Magnúsdóttir para seu encontro com nosso Senhor, estará obrigado a visitar Kornsá regularmente quando o tempo o permitir. Deve transmitir a palavra de Deus e inspirar arrependimento e reconhecimento da justiça. Por favor, não permita que lisonjas influenciem sua decisão, nem parentesco, caso haja algum entre você e a condenada. Em todo o caso, reverendo, se não conseguir chegar às suas próprias conclusões, busque as minhas.

 

Vou esperar sua resposta. Por favor, transmita-a a meu mensageiro.

Comissário distrital, Björn Blöndal

 

O reverendo assistente Thorvardur Jónsson estava dentro da pequena casa de fazenda, adjacente à igreja de Breidabólstadur, consertando o braseiro com pedras novas quando ouviu o pai pigarrear no umbral.

 

- Há um mensageiro de Hvammur lá fora, Tóti. Está perguntando por você.

 

- Por mim? - perguntou, surpreso, deixando cair uma pedra. Ela tombou no chão de terra batida, por pouco não acertando seu pé. O reverendo Jón mordeu os lábios incomodado, encolheu a cabeça sob a moldura da porta e tirou Tóti do caminho gentilmente.

 

- Sim, por você. Ele está esperando.

 

O mensageiro era um criado, vestindo um casaco gasto. Olhou demoradamente para Tóti antes de falar.

 

- Reverendo Thorvardur Jónsson?

 

- Sou eu. Saudações. Bem, sou reverendo assistente.

 

O criado deu de ombros.

 

- Tenho uma carta para o senhor do comissário distrital, o honorável Björn Blöndal - disse, tirando uma pequena folha de papel do lado de dentro do casaco e entregando-a a Tóti. - Tenho ordens de esperar enquanto a lê.

 

A carta, guardada em meio às roupas do criado, estava quente e úmida. Tóti rompeu o lacre e, percebendo que havia sido escrita naquele mesmo dia, sentou-se no cepo junto à porta e começou a ler.

 

Quando terminou a carta de Blöndal, ergueu os olhos e percebeu o criado a observá-lo.

 

- E então? - perguntou o criado com uma sobrancelha erguida.

 

- Perdão?

 

- Sua resposta para o comissário distrital? Não tenho o dia todo.

 

- Posso conversar com meu pai?

 

O criado suspirou.

 

- Então vá.

 

Ele encontrou o pai no badstofa, a sala comum, alisando lentamente os cobertores em sua cama.

 

- Sim?

 

- É do comissário distrital - disse Tóti, oferecendo ao pai a carta desdobrada e esperando que a lesse, inseguro quanto ao que fazer.

 

O rosto do pai estava impassível quando dobrou a carta e a devolveu. Não disse nada.

 

- O que devo dizer? - perguntou Tóti finalmente.

 

- A escolha é sua.

 

- Eu não a conheço.

 

- Não.

 

- Ela não é de nossa paróquia?

 

- Não.

 

- Por que ela me escolheu? Sou apenas um reverendo assistente.

 

O pai se virou de novo para a cama.

 

- Talvez você devesse fazer essa pergunta a ela.

 

O criado estava sentado no cepo de partir madeira, limpando as unhas com uma faca.

 

- Bem, qual resposta do reverendo assistente devo dar ao comissário distrital?

 

Tóti respondeu antes de se decidir.

 

- Diga a Blöndal que vou me encontrar com Agnes Magnúsdóttir.

 

O criado arregalou os olhos.

 

- Então é esse o assunto?

 

- Serei o conselheiro espiritual dela.

 

O criado o encarou e deu uma risada repentina.

 

- Bom Deus - murmurou. - Eles escolhem um rato para domar um gato.

 

E com isso montou em seu cavalo e desapareceu atrás das colinas, deixando Tóti em pé, imóvel, segurando a carta afastada do corpo como se estivesse prestes a pegar fogo.

 

Steina Jónsdóttir estava empilhando estrume seco no pátio diante da casa de turfa da família quando ouviu o ligeiro estalido de cascos de cavalo. Esfregando a lama da saia, ela se levantou e olhou pela lateral da pequena cabana para ver melhor a trilha que percorria o vale. Um homem em um lustroso casaco vermelho se aproximava. Ela o viu virar na direção da fazenda e, lutando contra um instante de pânico ao se dar conta de que teria de cumprimentá-lo, contornou a cabana até os fundos, onde cuspiu apressadamente nas mãos para limpá-las e enxugou o nariz na manga. Quando voltou ao pátio, o cavaleiro esperava.

 

- Olá, jovem - disse o homem, baixando os olhos com ar de incerteza para Steina e sua saia suja. - Vejo que a interrompi em suas tarefas.

 

Steina o viu desmontar, passando a perna graciosamente sobre o cavalo. Para um homem grande, ele pisava com leveza.

 

- Sabe quem eu sou? - perguntou, olhando para ela e esperando um brilho de reconhecimento.

 

Steina balançou a cabeça.

 

- Sou o comissário distrital, Björn Audunsson Blöndal - disse, anuindo levemente e ajeitando o casaco que, Steina percebeu, era decorado com botões de prata.

 

- O senhor é de Hvammur - murmurou ela.

 

Blöndal sorriu pacientemente.

 

- Sim. Sou o supervisor de seu pai. Vim falar com ele.

 

- Ele não está em casa.

 

Blöndal franziu o cenho.

 

- E sua mãe, Margrét?

 

- Eles estão visitando pessoas ao sul do vale.

 

- Entendo.

 

Ele olhou para a jovem, que se contorceu e voltou os olhos para os campos, nervosa. Um punhado de sardas no nariz e na testa interrompia o que era, afora isso, uma pele branca. Seus olhos eram castanhos e separados, e os dentes da frente muito espaçados. Havia algo desajeitado nela, Blöndal decidiu. Ele notou grossas crostas de terra sob suas unhas.

 

- O senhor terá de voltar mais tarde - sugeriu Steina finalmente.

 

Blöndal ficou tenso.

 

- Posso pelo menos entrar?

 

- Ah. Se quiser... Pode amarrar seu cavalo ali.

 

Steina mordeu o lábio enquanto Blöndal prendia as rédeas em um poste no pátio, depois se virou e quase correu para dentro.

 

Blöndal a seguiu, curvando-se sob a entrada baixa da cabana.

 

- Seu pai voltará hoje?

 

- Não - foi a resposta seca.

 

- Lastimável! - reclamou Blöndal, tropeçando no corredor escuro enquanto Steina o levava ao badstofa. Ele ficara corpulento desde que fora nomeado comissário distrital e estava acostumado à moradia mais espaçosa dada a ele e à sua família em Hvammur, feita de madeira importada. Os barracos dos camponeses e fazendeiros haviam começado a incomodá-lo com seus aposentos lotados feitos de placas de turfa que liberavam nuvens de poeira no verão, irritando seus pulmões.

 

- Comissário...

 

- Comissário distrital.

 

- Desculpe-me, comissário distrital. Mamãe e papai, quero dizer, Margrét e Jón, voltam amanhã. Ou depois de amanhã. Vai depender do clima - disse Steina, apontando para o canto mais próximo do aposento estreito, onde uma cortina de lã cinza servia de divisória entre o badstofa e uma pequena sala. - Sente-se, caso queira. Vou procurar minha irmã.

 

Lauga Jónsdóttir, irmã mais moça de Steina, estava limpando a pobre horta de vegetais a uma pequena distância da cabana. Curvada e mergulhada na tarefa, não vira o comissário distrital chegar, mas ouviu a irmã chamá-la muito antes que aparecesse.

 

- Lauga! Onde você está? Lauga!

 

Lauga se levantou e limpou as mãos sujas no avental. Não gritou para a irmã, esperando pacientemente até que Steina, correndo e tropeçando na saia comprida, a visse.

 

- Procurei você por toda parte! - gritou Steina, sem fôlego.

 

- O que há de errado com você?

 

- O comissário está aqui!

 

- Quem?

 

- Blöndal!

 

Lauga encarou a irmã.

 

- O comissário distrital Björn Blöndal? Limpe o nariz, Steina, está escorrendo.

 

- Ele está sentado na sala de estar.

 

- Onde?

 

- Você sabe, atrás da cortina.

 

- Você o deixou lá sozinho? - perguntou Lauga, arregalando os olhos.

 

Steina fez uma careta.

 

- Por favor, entre e converse com ele.

 

Lauga olhou feio para a irmã, depois soltou rapidamente o avental sujo e o jogou ao pé do levístico.

 

- Às vezes não consigo entender o que passa pela sua cabeça, Steina - murmurou enquanto andavam rapidamente na direção da cabana. - Deixar um homem como Blöndal brincando com os polegares em nosso badstofa.

 

- Na sala de estar.

 

- Que diferença faz? Imagino que também tenha lhe dado o soro de leite dos criados para beber.

 

Steina virou-se para a irmã com uma expressão de pânico.

 

- Não dei nada a ele.

 

- Steina! - disse Lauga, começando a correr. - Ele vai achar que somos camponeses!

 

Steina viu a irmã abrir caminho por entre os tufos de relva.

 

- Nós somos camponeses - murmurou.

 

Lauga lavou rapidamente o rosto e as mãos e pegou um novo avental de Kristín, a criada da família, que se escondera na cozinha ao ouvir a voz de um estranho. Lauga encontrou o comissário distrital sentado à pequena mesa de madeira na sala, lendo um pedaço de papel. Desculpou-se pela recepção pouco educada da irmã e ofereceu um prato de carneiro frio picado, que ele aceitou alegremente, embora com um ar levemente ofendido. Ela se colocou de lado em silêncio enquanto ele comia, vendo seus lábios carnudos envolverem a carne. Talvez seu pai fosse promovido de oficial distrital para um título ainda superior. Talvez recebesse um uniforme ou um estipêndio da Coroa dinamarquesa. Talvez pudessem ter novos vestidos. Uma nova casa. Mais criados.

 

Blöndal raspou a faca no prato.

 

- Gostaria de um pouco de skyr[1] e creme, comissário distrital? - ofereceu, pegando o prato vazio.

 

Blöndal gesticulou diante do peito como se fosse recusar, então parou.

 

- Sim, por favor. Obrigado.

 

Lauga corou e se virou para pegar o queijo macio.

 

- E não recusaria um café - disse a ela, que enfiava a cabeça do outro lado da cortina.

 

- O que ele quer? - perguntou Steina, encolhida junto ao fogo na cozinha. - Não consigo ouvir nada além de você batendo os pés de um lado para o outro no corredor.

 

Lauga empurrou o prato sujo para ela.

 

- Ainda não disse nada. Quer skyr e café.

 

Steina trocou olhares com Kristín, que olhou para o teto.

 

- Não temos café - disse Steina em voz baixa.

 

- Sim, temos. Vi um pouco na despensa semana passada.

 

Steina hesitou.

 

- Eu... Eu bebi.

 

- Steina! O café não é para nós! Nós o guardamos para ocasiões especiais!

 

- Ocasiões especiais? O comissário nunca nos visita!

 

- Comissário distrital, Steina!

 

- Os empregados logo voltarão de Reykjavík. Então teremos mais.

 

- Isso será depois. O que vamos fazer agora?

 

Exasperada, Lauga empurrou Kristín na direção da despensa.

 

- Skyr e creme! Rápido.

 

- Eu queria saber qual era o gosto - explicou Steina.

 

- Agora é tarde. Em vez disso leve um pouco de leite fresco para ele. Leve tudo quando estiver pronto. Na verdade, não; deixe Kristín. Você parece ter rolado na terra com os cavalos - disse Lauga, lançando um olhar crítico para o estrume na roupa de Steina, depois voltando pelo corredor.

 

Blöndal esperava por ela.

 

- Minha jovem. Acredito que esteja imaginando o que me levou a fazer uma visita à sua família.

 

- Meu nome é Sigurlaug. Ou Lauga, se preferir.

 

- Certo. Sigurlaug.

 

- É algum assunto com meu pai? Ele está...

 

- No Sul, sim, eu sei. Sua irmã me disse, e... Ah, veja, aí está ela.

 

Lauga se virou e viu Steina sair do outro lado da divisória carregando o queijo macio, creme e frutas com uma mão suja, e o leite com outra. Lauga lançou um olhar irritado para a irmã quando Steina acidentalmente arrastou a beirada da cortina sobre o skyr. Felizmente o comissário distrital pareceu não perceber.

 

- Senhor - grunhiu Steina. Ela colocou a tigela e a xícara na mesa diante dele, depois fez uma mesura desajeitada. - Espero que esteja bom.

 

- Obrigado - respondeu Blöndal. Ele avaliou o skyr, depois ergueu os olhos para as duas irmãs e deu um leve sorriso. - Quem é a mais velha?

 

Lauga empurrou Steina em estímulo, mas ela permaneceu calada, olhando boquiaberta para o vermelho brilhante do uniforme do homem.

 

- Sou a mais moça, comissário distrital - disse Lauga finalmente, sorrindo para revelar as covinhas. - Por um ano. Steinvör faz vinte e um este mês.

 

- Todos me chamam de Steina.

 

- Ambas são muito bonitas - disse Blöndal.

 

- Obrigada, senhor - disse Lauga, empurrando Steina novamente.

 

- Obrigada - disse Steina entredentes.

 

- Ambas têm os cabelos claros do pai, embora eu veja que você tem os olhos azuis de sua mãe - ele disse, fazendo um gesto de cabeça para Lauga. Empurrou a tigela intocada na direção dela e pegou o leite. Cheirou-o e o recolocou na mesa.

 

- Por favor, senhor, coma - disse Lauga, fazendo um gesto para a tigela.

 

- Obrigado, mas de repente me sinto saciado - disse Blöndal, enfiando a mão no bolso do casaco. - Bem, eu teria preferido discutir isto com o senhor da casa, mas, como o oficial distrital Jón não está aqui e isto não pode esperar seu retorno, entendo que tenho de contar às filhas dele.

 

Ele sacou sua folha de papel e a desdobrou na mesa para que lessem.

 

- Creio que têm conhecimento dos acontecimentos em Illugastadir no ano passado? - perguntou ele.

 

Steina se encolheu.

 

- Refere-se aos assassinatos?

 

Lauga anuiu, seus olhos azuis arregalados com uma repentina solenidade.

 

- O julgamento aconteceu em sua casa.

 

Blöndal anuiu.

 

- Sim. Os assassinatos do herborista Natan Ketilsson e de Pétur Jónsson. Como essa infeliz e hedionda tragédia aconteceu no distrito de Húnavatn, que como devem saber está sob minha jurisdição, era minha responsabilidade trabalhar com o magistrado e o Tribunal Regional em Reykjavík para chegar a algum acerto relativo às pessoas acusadas.

 

Lauga pegou o papel e caminhou até a janela para ler sob a claridade.

 

- Então está tudo acabado.

 

- Ao contrário. Em outubro, os três acusados foram considerados culpados de assassinato e incêndio criminoso no tribunal deste país. O caso agora seguiu para a Corte Suprema em Copenhague, Dinamarca. - O rei... - disse Blöndal, fazendo uma pausa dramática - ...o próprio rei precisa tomar conhecimento do crime e concordar com minha sentença de execução. Como vocês mesmas podem ler, todos receberam pena capital. É uma vitória para a justiça, estou certo de que concordarão.

 

Lauga anuiu, distante, ainda lendo.

 

- Eles não serão mandados para a Dinamarca?

 

Blöndal sorriu e reclinou na cadeira de madeira, erguendo do chão o calcanhar das botas.

 

- Não.

 

Lauga olhou para ele, confusa.

 

- Então, senhor, desculpe minha ignorância, mas onde eles vão ficar... - disse, a voz murchando.

 

Blöndal devolveu a cadeira à posição e se levantou, colocando-se ao lado dela à janela, ignorando Steina. Olhou através da bexiga de ovelha seca que havia sido esticada para servir como vidro, percebendo uma pequena veia retorcida em sua superfície fosca. Ele estremeceu. A casa dele tinha janelas de vidro.

 

- Eles serão executados aqui - disse ele finalmente. - Na Islândia. No Norte da Islândia, para ser mais preciso. Eu e o magistrado que presidiu em Reykjavík decidimos que seria... - disse e fez uma pausa, refletindo. - Mais econômico.

 

- É mesmo?

 

Blöndal franziu o cenho para Steina, que o olhava desconfiada. Ela esticou a mão e tirou a folha de papel da mão de Lauga.

 

- Sim, embora não negue que a execução seja uma oportunidade para nossa comunidade testemunhar as consequências de delitos graves. Como deve saber, inteligente Sigurlaug, criminosos desse porte normalmente são levados para ser punidos no exterior, onde há cadeias e coisas assim. Como foi decidido que os três serão executados na Islândia, no mesmo distrito onde cometeram o crime, necessitamos de uma espécie de casa de custódia, até que sejam definidos data e local da execução.

 

- Como bem sabem, não temos fábricas nem prédios públicos em Húnavatn que possamos usar para acomodar prisioneiros - disse Blöndal, virando e acomodando-se novamente na cadeira. - Por isso decidi que eles devem ser colocados em fazendas, na casa de cristãos honrados que lhes inspirem arrependimento pelo bom exemplo e que possam se beneficiar do trabalho desses prisioneiros enquanto aguardam o julgamento.

 

Blöndal se inclinou sobre a mesa na direção de Steina, que olhava para ele, uma das mãos sobre a boca e a outra agarrando a carta.

 

- Islandeses capazes de cumprir seus deveres como funcionários do governo fornecendo essa acomodação.

 

Lauga olhou perturbada para o comissário distrital.

 

- Eles não podem ser colocados em propriedades de Reykjavík? - ela sussurrou.

 

- Não. Há custos - disse, fazendo um gesto de mão no ar.

 

Steina apertou os olhos.

 

- O senhor vai colocá-los aqui? Conosco? Por que o tribunal em Reykjavík quer evitar o custo de mandá-los ao exterior?

 

- Steina! - alertou Lauga.

 

- Sua família será compensada - disse Blöndal, franzindo o cenho.

 

- O que devemos fazer? Acorrentá-los ao pé das camas?

 

Blöndal ergueu-se lentamente, empertigando-se.

 

- Não tenho escolha - ele disse, a voz de repente baixa e amedrontadora. - O título de seu pai implica certas responsabilidades. Estou certo de que ele não me questionaria. Kornsá tem muito poucas mãos para trabalhar nela, e há a questão do estado financeiro de sua família.

 

Ele se aproximou de Steina, baixando os olhos para seu pequeno rosto sujo sob a luz fraca.

 

- Ademais, Steinvör, não farei você e sua família sofrer abrigando a todos os três condenados. É apenas uma das mulheres - disse, colocando a mão pesada sobre seu ombro e ignorando o modo como ela se encolheu. - Você não está com medo de outra mulher, está?

 

Depois que Blöndal partiu, Steina retornou à sala e pegou a tigela de skyr não consumido. O creme solidificara na beirada. Ela tremeu de frustração e raiva e apertou a tigela com força na mesa, mordendo o lábio inferior. Gritou em silêncio, desejando que a tigela se quebrasse, até a onda de raiva passar. Então voltou à cozinha.

 

Há momentos em que penso se já não estou morta. Isto não é vida; esperar na escuridão, no silêncio, em um lugar tão imundo que esqueci o cheiro do ar fresco. O urinol está de tal maneira cheio de meus excrementos que ameaça transbordar caso alguém não venha e o esvazie logo.

 

Quando eles vieram pela última vez? Tudo agora é uma longa noite.

 

No inverno era melhor. No inverno, as pessoas em Stóra-Borg estavam tão presas quanto eu; todos dividíamos o badstofa quando a neve açoitava o campo. Eles tinham lamparinas para as horas de vigília, e, quando o óleo terminava, velas para afastar a escuridão. Então a primavera chegou, e eles me transferiram para o depósito. Eles me deixaram sem luz, e não havia como contar as horas, como diferenciar o dia da noite. Agora só tenho a companhia dos grilhões em meus pulsos, do chão de terra, um tear desmontado abandonado no canto e uma velha roca de fiar.

 

Talvez já seja verão. Posso ouvir os passos dos criados pelo corredor, o rangido de uma porta enquanto eles vão de um lado para o outro. Algumas vezes ouço o riso alto e agudo de criadas conversando do lado de fora e sei que o clima melhorou, que o vento perdeu força. Fecho os olhos e imagino o vale durante os longos dias de verão, o sol aquecendo os ossos da terra até os cisnes se reunirem no lago, e as nuvens se dissipando para revelar o céu lá no alto: brilhante, azul brilhante, tão brilhante que você poderia chorar.

 

Três dias após Björn Blöndal ter visitado as filhas de Kornsá, o pai delas, oficial distrital de Vatnsdalur, Jón Jónsson, e sua esposa Margrét retornaram para casa.

 

Jón, um homem musculoso ligeiramente curvado de cinquenta e cinco invernos, com cabelos louro-neve e grandes orelhas que o faziam parecer pouco inteligente, caminhava à frente do cavalo deles, conduzindo-o pelas rédeas e passando pelo terreno irregular com experiência e habilidade. Sua esposa, montada na égua preta, sentia-se cansada da viagem, embora nunca fosse admitir isso. Estava sentada com o queixo ligeiramente levantado, a cabeça sustentada por um pescoço fino e trêmulo. Seus olhos pesados se moviam de fazenda em fazenda enquanto passavam pelas pequenas propriedades do vale de Vatnsdalur, fechando-os apenas quando tinha acessos de tosse. Quando terminavam, ela se curvava sobre o cavalo para cuspir, depois limpava a boca com a ponta do xale, murmurando uma breve prece. O marido, quando ela fazia isso, eventualmente inclinava a cabeça em sua direção, parecendo preocupado que ela pudesse cair do cavalo, mas afora isso eles continuavam a viajar sem interrupções.

 

Margrét, exausta com outra tosse arrasadora, cuspiu na grama e pressionou a palma das mãos sobre o peito até recuperar o fôlego. Quando falou, sua voz era rouca.

 

- Olhe agora, Jón, o pessoal de Ás tem outra vaca.

 

- Ahn? - reagiu o marido, perdido em pensamentos.

 

- Eu disse que o pessoal de Ás tem outra vaca - observou Margrét, pigarreando.

 

- É mesmo?

 

- Fico surpresa que você não tenha notado.

 

- Certo.

 

Margrét piscou sob a luz poeirenta e percebeu a forma indefinida da cabana de Kornsá a distância.

 

- Quase em casa.

 

O marido concordou com um resmungo.

 

- Isso faz pensar, não é, Jón? Poderíamos ter outra vaca.

 

- Poderíamos ter muitas coisas mais.

 

- Mas outra vaca seria bom. Manteiga extra. Poderíamos ter outro ajudante para a colheita.

 

- Na hora certa, Margrét, meu amor.

 

- Na hora certa eu estarei morta.

 

As palavras soaram mais amargas do que ela pretendia. Jón não respondeu; apenas murmurou para o cavalo deles, estimulando-o a avançar, e Margrét franziu o cenho para as costas do chapéu de montaria dele, esperando que se virasse. Quando ele continuou a avançar, respirou fundo e novamente olhou para Kornsá.

 

Era final de tarde, e a luz diminuía sobre os campos de feno, apagada do céu por nuvens baixas que se formavam a leste. Trechos com neve velha na cordilheira pareciam alternadamente cinzentos e foscos e, quando as nuvens se deslocavam, chocantemente brancos. Pássaros de verão disparavam sobre os campos de feno para apanhar os insetos que zumbiam acima deles, e os balidos queixosos das ovelhas podiam ser ouvidos enquanto garotos as conduziam vale abaixo na direção das propriedades.

 

Em Kornsá, Lauga e Steina saíram da cabana para pegar água no córrego das montanhas, Lauga esfregando os olhos ao sol e Steina distraidamente balançando o balde ao lado do corpo no ritmo dos passos. Elas não diziam nada.

 

As duas irmãs haviam trabalhado durante os últimos dias em silêncio completo, só se dirigindo uma à outra para pedir a pá ou perguntar qual barril de bacalhau salgado devia ser aberto primeiro. O silêncio, que começara após uma discussão que se seguiu à visita do comissário distrital, enchia o ar de raiva e ansiedade. O esforço de falar o mínimo possível uma com a outra esgotara as duas. Lauga, frustrada com a teimosia e a falta de jeito da irmã mais velha, não conseguia deixar de pensar no que os pais iriam dizer sobre a visita de Blöndal. A reação antipática de Steina à notícia dada por Blöndal poderia afetar a posição social da família. Björn Blöndal era um homem poderoso e não toleraria ser desafiado por uma adolescente. Steina não sabia o quanto sua família dependia de Blöndal? Que eles estariam apenas cumprindo o seu dever?

 

Steina tentava não pensar na assassina. O crime a deixara nauseada, e lembrar o modo rude como o comissário empurrara a criminosa para elas fazia sua garganta travar de fúria. Lauga era a mais jovem; não seria ela a lhe dizer o que devia ou não fazer. Como poderia saber os caminhos das gentilezas sociais que a pessoa era obrigada a cumprir para com homens gordos de casaco vermelho? Não. Era melhor nem pensar nisso.

 

Steina deixou que o peso do balde puxasse seu ombro para baixo e deu um grande bocejo. Ao seu lado, Lauga não conseguiu evitar bocejar também, e por um breve instante seus olhos se encontraram e uma consciência de fadiga compartilhada se passou entre elas, até o lembrete seco de Lauga para cobrir a boca fez Steina olhar para o chão com raiva.

 

Os fachos suaves da luz da tarde aqueciam o rosto de ambas enquanto seguiam na direção do riacho. Não havia vento, e o vale estava tão parado que as duas jovens involuntariamente começaram a andar mais devagar. Estavam quase chegando à projeção rochosa que cercava o córrego quando Lauga, virando-se para puxar a saia que prendera em um arbusto espinhoso, notou um cavalo a distância.

 

- Ah! - engasgou.

 

Steina virou-se.

 

- O que é agora?

 

Lauga fez um gesto de cabeça na direção do cavalo.

 

- Mamãe e papai - disse, sem fôlego. - Eles voltaram.

 

Ela apertou os olhos para ver através da luz enevoada sobre os campos.

 

- Sim, são eles - disse, como para si mesma. Repentinamente agitada, Lauga empurrou seu balde para Steina e acenou para que continuasse a avançar na direção do riacho. - Encha os dois. Você dá conta dos dois, não? Será melhor se eu... Eu vou. Para acender o fogo.

 

Ela empurrou Steina pelo ombro com mais força do que pretendia, depois deu meia-volta.

 

Os arbustos ao longo da trilha se agarravam às meias de Lauga enquanto ela voltava apressada para a cabana, tomada de alívio. Agora papai poderia lidar com Agnes Magnúsdóttir e o comissário distrital.

 

Abrindo a porta da casa da fazenda, Lauga percorreu o corredor escuro e virou à esquerda para a cozinha. Kristín, na ausência da senhora, tirara a tarde para visitar a família, mas o braseiro ainda soltava fumaça do fogo da manhã. Lauga o encheu rapidamente com esterco seco, com tanta pressa que quase sufocou as chamas, que se ergueram. Como seu pai iria reagir à notícia da visita do comissário distrital? Quanto tempo Agnes seria mantida em Kornsá? Ela nem sequer tinha a carta que ele lhes mostrara; Steina a jogara no fogo durante a discussão.

 

Ainda assim, pensou Lauga, colocando uma panela no gancho acima das chamas, tão logo papai soubesse, assumiria o comando.

 

Ela mexeu no braseiro para que o ar pudesse entrar por baixo e, depois, passou rapidamente pelo corredor e enfiou a cabeça para fora da porta. Outro surto de pânico percorreu sua coluna. O que ele iria fazer? Ela recuou a cabeça e foi à despensa ver o que poderia reunir para uma sopa. Só restava um pouco de cevada. Eles ainda esperavam que os ajudantes voltassem dos comerciantes do Sul.

 

Lauga passou pelo umbral, quase tropeçando no degrau, e entrou no depósito para pegar um pouco de cordeiro. Não fazia sentido cortar cordeiro defumado naquela época do ano, porém restavam uma ou duas fatias de chouriço do inverno, muito azedas, mas boas.

 

Vamos comer juntos no badstofa e eu contarei a eles, Lauga decidiu. Ela ouviu o som dos cascos do cavalo na terra do pátio do lado de fora.

 

- Komið þið sæl! - disse Lauga saindo da cabana, espanando o pó de esterco das mãos e rapidamente recolocando os cabelos sob a touca. - Bom vê-los de volta em segurança.

 

Jón, seu pai, fez o cavalo parar e sorriu para ela sob o chapéu de montaria. Ergueu a mão nua em saudação e avançou para dar um beijo rápido e formal na filha.

 

- Pequena Lauga. Como se saiu? - perguntou, virando-se para o cavalo de modo a descarregar alguns pacotes presos no dorso.

 

- Olá, mamãe.

 

Margrét lançou um olhar rápido e caloroso para Lauga, embora seus lábios mal se movessem.

 

- Olá, Sigurlaug - disse.

 

- A senhora parece bem.

 

- Ainda estou viva - retrucou.

 

- Está cansada?

 

Margrét ignorou a pergunta e deslizou desajeitadamente em direção ao chão. Lauga abraçou a mãe de maneira contida, depois passou a mão sobre o focinho da égua e sentiu as narinas tremendo, o hálito quente e úmido na palma.

 

- Onde está sua irmã?

 

Lauga olhou para a projeção onde ficava o córrego, mas não conseguiu ver movimento.

 

- Pegando água para o jantar.

 

Margrét ergueu as sobrancelhas.

 

- Achei que ela estaria aqui para nos receber.

 

Lauga virou-se novamente para o pai, que colocava no chão os pequenos pacotes da sela. Respirou fundo.

 

- Papai, há uma coisa que tenho de lhe contar depois.

 

Ele começou a soltar a corda dura da égua.

 

- Uma morte?

 

- Como?

 

- Perdemos algum animal?

 

- Ah. Ah, não, nada assim - respondeu, acrescentando depois: - Graças ao Senhor.

 

Ela se aproximou do pai e falou em voz baixa:

 

- Preciso lhe contar isso a sós.

 

A mãe a ouviu.

 

- O que você tem a dizer pode ser dito a nós dois, Lauga.

 

- Não quero perturbá-la, mamãe.

 

- Ah, eu estou sempre perturbada - disse Margrét, de repente sorrindo. - É o resultado de ter de cuidar de filhos e criados.

 

Depois, dizendo ao marido para ter o cuidado de não depositar os pacotes restantes nas poças, Margrét pegou alguns dos embrulhos e foi para dentro, seguida por Lauga.

 

Jón havia entrado no badstofa e se acomodado junto à esposa quando Lauga trouxe as tigelas de sopa.

 

- Achei que uma refeição quente poderia ser reconfortante - disse ela.

 

Jón olhou para Lauga, que estava em pé diante dele, segurando a bandeja.

 

- Posso trocar de roupa primeiro?

 

Lauga hesitou e, colocando a bandeja na cama ao lado da mãe, ajoelhou-se e começou a tirar as botas de Jón.

 

- Há algo que tenho de contar a ambos.

 

- Onde está Kristín? - perguntou Margrét secamente, enquanto Jón reclinava sobre os cotovelos e deixava a filha tirar a meia molhada de seu pé.

 

- Steina deu a ela meio dia de folga - respondeu Lauga.

 

- E onde está Steina?

 

- Ah, não sei. Em algum lugar por aí - disse Lauga, sentindo o estômago revirar de pânico, consciente do escrutínio dos pais.

 

- Papai, o comissário distrital Blöndal fez uma visita quando estavam fora - sussurrou.

 

Jón sentou-se e baixou os olhos para a filha.

 

- O comissário distrital? - repetiu.

 

Margrét cerrou os punhos.

 

- O que ele queria? - perguntou.

 

- Ele tinha uma carta para você, papai.

 

Margrét olhou para Lauga.

 

- Por que ele não mandou um criado? Tem certeza de que era Blöndal?

 

- Mamãe, por favor!

 

Jón estava em silêncio.

 

- Onde está a carta? - perguntou.

 

Lauga arrancou a bota do outro pé e a deixou cair no chão. Lama desgrudou do couro.

 

- Steina a queimou.

 

- Por quê? Deus do céu!

 

- Mamãe! Está tudo bem. Eu sei o que dizia. Papai, fomos obrigados a...

 

- Papai! - soou a voz de Steina no corredor. - Você não pode adivinhar quem teremos de trancar em nossa casa!

 

- Trancar? - perguntou Margrét, virando-se para questionar a filha mais velha, que acabara de entrar no aposento. - Ah, Steina, você está encharcada.

 

Steina baixou os olhos para o avental encharcado e deu de ombros.

 

- Eu derrubei os baldes e tive de voltar e enchê-los novamente. Papai, Blöndal nos obrigará a ficar com Agnes Magnúsdóttir em nossa casa!

 

- Agnes Magnúsdóttir? - perguntou Margrét, virando-se para Lauga, horrorizada.

 

- Sim, a assassina, mamãe! - exclamou Steina, desamarrando o avental molhado e jogando-o na cama ao lado. - A que matou Natan Ketilsson!

 

- Steina! Eu estava prestes a explicar a papai...

 

- E Pétur Jónsson, mamãe.

 

- Steina!

 

- Ah, Lauga, só porque você queria contar a eles.

 

- Você não devia interromper...

 

- Garotas! - exclamou Jón levantando-se, os braços esticados. - Chega. Comece do começo, Lauga. O que aconteceu?

 

Lauga respirou fundo e contou aos pais tudo de que se lembrava da visita do comissário distrital, o rosto ficando afogueado enquanto repetia o que recordava ter lido na carta.

 

Antes que tivesse terminado, Jón se levantou e começou a se vestir novamente.

 

- Nós certamente não seremos obrigados a fazer isso!

 

Margrét puxou a manga do marido, mas Jón se soltou, recusando-se a olhar para o rosto perturbado da esposa.

 

- Jón - sussurrou Margrét. Ela olhou para as filhas, sentadas com as mãos no colo, observando os pais em silêncio.

 

Jón calçou as botas novamente, dando os laços no tornozelo. O couro rangeu quando ele apertou.

 

- Está muito tarde, Jón - disse Margrét. - Você vai a Hvammur? Eles estarão dormindo.

 

- Então os acordarei - disse, pegando o chapéu de montaria no prego, tomando a esposa pelos ombros e gentilmente tirando-a do caminho. Deu adeus às filhas com um gesto de cabeça, saiu a passos largos do aposento, desceu o corredor e fechou a porta atrás de si.

 

- O que vamos fazer, mamãe? - veio a voz pequena de Lauga de um canto escuro do aposento.

 

Margrét fechou os olhos e respirou fundo.

 

Jón voltou a Kornsá algumas horas depois. Kristín, que voltara tarde da folga e recebera uma áspera censura de Margrét, olhava feio para Steina. Margrét parou seu tricô e estava pensando se deveria ou não promover as pazes entre as garotas quando ouviu a porta da cabana abrir com um rangido e o som dos passos pesados do marido no corredor.

 

Jón entrou e imediatamente olhou para a esposa. Ela trincou os dentes.

 

- Está tudo bem? - inquiriu Margrét, levando o marido para a cama.

 

Jón se atrapalhou com os laços das botas.

 

- Por favor, papai - disse Lauga, ajoelhando-se. - O que Blöndal disse? Ela ainda virá para cá? - perguntou, jogando-se para trás enquanto arrancava as botas dele.

 

Jón confirmou.

 

- É como Steina disse. Agnes Magnúsdóttir será transferida de sua detenção em Stóra-Borg e trazida para nós.

 

- Mas por quê, papai? O que fizemos de errado? - perguntou Lauga em voz baixa.

 

- Não fizemos nada errado. Sou um oficial distrital. Ela não pode ser colocada com qualquer família. Ela é responsabilidade das autoridades, e eu sou uma delas.

 

- Há muitas autoridades em Stóra-Borg - disse Margrét em tom amargo.

 

- Ainda assim ela será transferida. Houve um incidente.

 

- O que aconteceu? - perguntou Lauga.

 

Jón baixou os olhos para o rosto suave da filha mais nova.

 

- Tenho certeza de que não é nada com que se preocupar.

 

Margrét deu um breve sorriso.

 

- E vamos simplesmente aceitar isso? Ser tratados como um cachorro? - reagiu, a voz tornando-se um sibilo. - Essa Agnes é uma assassina, Jón! Temos nossas meninas, nossos trabalhadores. Mesmo Kristín! Somos responsáveis por outras pessoas!

 

Jón dirigiu um olhar significativo para a esposa.

 

- Blöndal pretende nos compensar, Margrét. Há uma remuneração pela custódia dela.

 

Margrét parou e olhou para ele. Quando falou, a voz era contida.

 

- Talvez devêssemos mandar as meninas embora.

 

- Não, mamãe! Não quero ir embora! - gritou Steina.

 

- Seria para sua própria segurança.

 

Jón pigarreou.

 

- As meninas ficarão bastante seguras com você, Margrét - disse, suspirando. - Há outra coisa. Björn Blöndal pediu minha presença em Hvammur na noite em que a mulher chega aqui.

 

Margrét abriu a boca, desalentada.

 

- Você quer que eu a receba?

 

- Papai, você não pode deixar mamãe sozinha com ela! - gritou Lauga.

 

- Ela não estará sozinha. Todas vocês estarão aqui. Haverá oficiais de Stóra-Borg. E um reverendo. Blöndal organizou isso.

 

- E o que há de tão importante em Hvammur que Blöndal o quer lá exatamente na noite em que vai enfiar uma criminosa em nossa casa?

 

- Margrét...

 

- Não, eu insisto. Isso é injusto!

 

- Vamos discutir quem será o carrasco.

 

- Carrasco!

 

- Todos os oficiais distritais estarão presentes, incluindo os de Vatnsnes, que viajarão com os cavaleiros de Stóra-Borg. Passaremos a noite lá e voltaremos no dia seguinte.

 

- E nesse meio-tempo sou deixada sozinha com a mulher que matou Natan Ketilsson?

 

Jón olhou calmamente para a esposa.

 

- Você terá suas filhas.

 

Margrét abriu a boca como se fosse dizer mais alguma coisa, mas mudou de ideia. Olhou duro para o marido, pegou seu tricô e começou a trabalhar furiosamente com as agulhas.

 

Steina observou a mãe e o pai sob o cenho franzido e pegou seu jantar, sentindo náuseas. Segurou a tigela de madeira com as mãos e olhou para os nacos de cordeiro nadando no caldo gorduroso. Pegando a colher lentamente, levou um bocado aos lábios e começou a mastigar, a língua encontrando um pedaço de cartilagem dentro da carne. Ela lutou contra o instinto de cuspir e a esmagou com os dentes, engolindo silenciosamente.

 

Após decidirem que tenho de partir, os homens de Stóra-Borg amarram algumas vezes minhas pernas juntas à noite, como fazem com as patas dianteiras de cavalos, para garantir que não fujam. Parece que cada dia que passa eu me torno um animal para eles, outra fera de olhos embotados a ser alimentada com o que puder ser misturado, e a ser mantida ao abrigo do clima. Eles me deixam no escuro, me negam luz e ar, e quando preciso ser deslocada, me amarram e levam para onde querem.

 

Eles nunca falam comigo. No inverno no badstofa, eu podia ouvir minha própria respiração, e temia engolir por medo de que o aposento inteiro escutasse. Os únicos sons que faziam companhia ao meu corpo eram o virar das páginas da Bíblia e sussurros. Eu percebia meu nome nos lábios dos outros e sabia que não era em bênção. Agora, quando são forçados por lei a ler as palavras de algum decreto, falam por cima de mim, como se dirigindo a alguém atrás de meu ombro. Eles se recusam a me olhar nos olhos.

 

Você, Agnes Magnúsdóttir, foi considerada culpada de cumplicidade em assassinato. Você, Agnes Magnúsdóttir, foi considerada culpada de incêndio criminoso e conspiração de assassinato. Você, Agnes Magnúsdóttir, foi sentenciada à morte. Você, Agnes. Agnes.

 

Eles não me conhecem.

 

Eu permaneço em silêncio. Estou determinada a me fechar para o mundo, apertar o coração e me aferrar ao que ainda não foi tomado de mim. Não posso me permitir sumir. Vou manter o que sou por dentro e manter as mãos apertadas em todas as coisas que vi, ouvi e senti. Os poemas compostos enquanto eu lavava, ceifava e cozinhava até minhas mãos estarem em carne viva. As sagas que conheço de cor. Afundo tudo o que me resta e vou para debaixo d'água. Se eu falar, as palavras sairão como bolhas de ar. Eles não conseguirão ficar com minhas palavras. Eles verão a prostituta, a louca, a assassina, a fêmea pingando sangue na grama e rindo com a boca cheia de terra. Eles dirão "Agnes" e verão a aranha, a bruxa apanhada na teia de sua própria trama fatal. Poderão ver o carneiro cercado por corvos, balindo por uma mãe perdida. Mas não me verão. Eu não estarei lá.

 

O reverendo Thorvardur Jónsson suspirou ao deixar a igreja e penetrar o frio ar úmido da tarde. Pouco mais de um mês se passara desde que aceitara a oferta de Blöndal de visitar a mulher condenada, e por todo esse tempo questionara sua decisão. A cada manhã ele se sentia perturbado, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo. Mesmo em sua caminhada diária até a pequena igreja de Breidabólstadur para rezar e se sentar no silêncio, seu estômago revirava e o corpo tremia, como se exausto pela incerteza de sua mente. Não era diferente naquele dia. O tempo que permaneceu sentado no banco duro, olhando para as mãos, viu-se desejando estar doente, gravemente doente, para ser dispensado e não ter de cavalgar até Kornsá. A relutância e a disposição de sacrificar sua abençoada saúde o horrorizavam.

 

Agora é tarde demais, pensou consigo mesmo enquanto caminhava pelo deplorável jardim do cemitério da igreja. Você deu sua palavra ao homem e a Deus, e não há como voltar atrás.

 

Quando sua mãe era viva, o cemitério da igreja era cheio de plantinhas que davam botões roxos nas beiradas dos túmulos no verão. Ela dizia que os mortos faziam as flores balançar para receber os fiéis depois do inverno. Mas quando ela morreu, seu pai arrancara as flores silvestres, e os túmulos haviam ficado nus desde então.

 

A porta da cabana de Breidabólstadur estava entreaberta. Quando Tóti entrou, o calor pesado da cozinha e o cheiro da gordura derretendo na vela no corredor o deixaram enjoado.

 

O pai dele estava curvado sobre a panela fervente, testando algo com uma faca.

 

- Tenho de partir agora, acho - anunciou Tóti.

 

O pai ergueu os olhos do peixe fervendo e anuiu.

 

- Esperam minha chegada no começo da noite para conhecer a família de Kornsá e estar presente quando... Bem, quando a criminosa chegar.

 

O pai franziu o cenho.

 

- Então vá, filho.

 

Tóti hesitou.

 

- Acha que estou pronto?

 

O reverendo Jón suspirou e ergueu a panela de seu gancho acima do carvão.

 

- Você conhece seu próprio coração.

 

- Estava rezando na igreja. Fico pensando no que mamãe teria achado de tudo isso.

 

O pai de Tóti piscou lentamente e desviou os olhos.

 

- O que o senhor acha, pai?

 

- Um homem deve manter sua palavra.

 

- Mas será que é a decisão certa? Eu... Eu não quero descontentá-lo.

 

- Você deveria buscar contentar o Senhor - murmurou o reverendo Jón, tentando pegar o peixe na água quente com a faca.

 

- Vai rezar por mim, pai?

 

Tóti esperou uma resposta, mas não recebeu nenhuma. Talvez ele se ache mais preparado para encontrar assassinas, Tóti pensou. Talvez esteja com inveja por ela ter me escolhido. Ele observou o pai lamber um fragmento de peixe que grudara na lâmina. Ela escolheu a mim, repetiu para si mesmo.

 

- Não me acorde quando voltar - disse o reverendo Jón, enquanto o filho se virava e deixava o aposento.

 

Tóti deslizou uma sela sobre o cavalo e montou.

 

- Então é isso - sussurrou. Apertou os joelhos suavemente para fazer o cavalo avançar e olhou para a cabana. Uma fina espiral de fumaça vinda da cozinha dissipava-se na brisa suave da tarde.

 

Viajando por entre o mato alto do vale que cercava a igreja, o reverendo assistente tentou pensar no que deveria dizer. Deveria ser gentil e simpático, ou rígido e impenetrável, como Blöndal? Enquanto cavalgava, ensaiou vários tons de voz, bem como diferentes cumprimentos. Talvez fosse melhor esperar até ver a mulher. De súbito, um pequeno arrepio percorreu seu corpo. Ela era apenas uma criada, mas era uma assassina. Havia matado dois homens. Abatera-os como animais. Ele disse a palavra para si mesmo silenciosamente. Assassina. Morðingi. Escorregou por sua boca como leite.

 

Enquanto atravessava a península norte com sua fina faixa de oceano no horizonte, as nuvens começaram a se abrir, e a suave luz vermelha do sol de fim de junho banhou a passagem. Gotas de água cintilaram no chão, e as colinas pareciam rosadas e calmas, com sombras movendo-se lentamente através delas à medida que as nuvens se deslocavam. Pequenos insetos abriam caminho pelo ar, acesos como partículas de poeira ao passar pelos raios de sol, e o cheiro doce e úmido de capim, quase pronto para ser colhido, pairava no ar frio dos vales. O forte temor que Tóti sentira até então cobrindo seu estômago deixou-o em paz quando mergulhou na silenciosa contemplação da paisagem.

 

Somos todos filhos de Deus, pensou. Essa mulher é minha irmã em Jesus, e eu, como seu irmão espiritual, devo guiá-la para casa. Ele sorriu e levou seu cavalo a um tölt.

 

- Vou salvá-la - sussurrou.

 

3 de maio de 1828

Undirfell, Vatnsdalur

A condenada Agnes Magnúsdóttir nasceu em Flaga, na paróquia de Undirfell, em 1795. Foi crismada em 1809 e, nessa idade, registrada como tendo "um excelente intelecto e forte conhecimento e compreensão do cristianismo".

Isso é o que está anotado no livro de registros de Undirfell.

  1. Bjarnason

 

Eles me tiraram do aposento e me amarraram a ferros novamente. Dessa vez enviaram um funcionário do tribunal, um jovem com pele marcada de varíola e um sorriso nervoso. É um criado de Hvammur, reconheci o rosto dele. Quando os lábios se abriram, pude ver que os dentes apodreciam na boca. Seu hálito é medonho, mas não pior do que o meu; sei que estou fedendo. Estou coberta de terra e do choro acumulado em meu corpo: sangue, suor, gordura. Não consigo lembrar quando me lavei pela última vez. Meus cabelos parecem uma corda engordurada; tentei mantê-los trançados, mas eles não me permitem fitas, e imagino que ao funcionário eu pareça uma criatura monstruosa. Talvez por isso tenha sorrido.

 

Ele me tirou daquele lugar medonho, e outros homens se juntaram a nós enquanto me conduzia pelo corredor escuro. Estavam em silêncio, mas eu os sentia atrás de mim; sentia seus olhares como se fossem apertos frios em meu pescoço. Então, após meses reclusa em um aposento tendo como companhia apenas o meu próprio hálito fétido e o fedor do urinol, fui levada pelos corredores de Stóra-Borg até o pátio enlameado. E chovia.

 

Como posso descrever a sensação de respirar novamente? Eu me senti recém-nascida. Cambaleei à luz do mundo e respirei fundo o ar marinho fresco. Era tarde: a boca molhada da tarde estava toda em meu rosto. Minha alma floresceu naquele breve momento em que eles me levavam para fora. Eu caí, a saia na lama, e virei o rosto para cima como em prece. Poderia ter chorado pelo alívio da luz.

 

Um homem estendeu a mão e me puxou do chão como quem arranca um cardo que enraizou no lugar errado. Foi então que notei a multidão reunida. Inicialmente não sabia por que aquelas pessoas estavam ali, homens e mulheres, criados e crianças da vizinhança, todas imóveis e olhando em silêncio. Depois entendi que não era para mim que elas olhavam. Entendi que aquelas pessoas não me viam. Eu era dois homens mortos. Era uma fazenda em chamas. Era uma faca. Eu era sangue.

 

Não sabia o que fazer diante daquelas pessoas. Então vi Rósa, olhando a distância, agarrando a mão da filhinha. Foi um alívio ver alguém conhecido e eu sorri. Mas o sorriso caiu mal. Libertou a fúria da multidão. Os rostos das criadas ficaram distorcidos, e o silêncio foi rompido por um repentino e breve grito agudo de uma criança: Fjandi! Demônio! A palavra reverberou no ar como a explosão de água de um gêiser. O sorriso sumiu do meu rosto.

 

Ao som do insulto, a multidão pareceu despertar. Alguém deu um riso nervoso, e a criança foi silenciada e levada embora por uma mulher mais velha. Todos voltaram para dentro de casa ou para suas obrigações, até que eu ficasse só com os oficiais no chuvisco, em pé, as meias duras de suor seco, o coração queimando sob a pele imunda. Quando olhei novamente, Rósa havia desaparecido.

 

Agora estamos cavalgando pelo norte da Islândia, cruzando esta ilha negra que se banha em suas águas, soturna em seu oceano. Caçando nossas sombras através das montanhas.

 

Eles me amarraram à sela como um cadáver sendo levado ao local do enterro. Aos seus olhos, eu já sou uma mulher morta, destinada ao túmulo. Meus braços estão presos à frente do corpo. Enquanto seguimos nesse desfile medonho, os ferros apertam minha pele até ela escurecer diante de meus olhos. Agora passei a esperar agressão. Alguns dos vigias de Stóra-Borg envolveram meu corpo com pequenas violências, fizeram a crônica de seu ódio a mim, uma marca aqui, hematomas desabrochando como aglomerados de estrelas sob a pele, fumaça preta e amarela presa sob a membrana. Imagino que alguns deles tenham conhecido Natan.

 

Mas agora eles me levam para o leste, e, embora esteja amarrada como uma ovelha conduzida ao matadouro, sou grata por retornar aos vales onde pedras dão lugar a grama, mesmo que seja para morrer.

 

Enquanto os cavalos se embrenham pelo mato, fico pensando em quando vão me matar. Fico imaginando onde vão me guardar, estocar como manteiga, como carne defumada. Como um cadáver, esperando que o solo descongele antes que possam me colocar dentro da terra como uma pedra.

 

Eles não me contam essas coisas. Em vez disso, me colocam grilhões de ferro e andam comigo, e como uma vaca eu vou para onde sou levada, e não há como reagir, ou é a faca. É a corda e um triste fim. Abaixo a cabeça, vou para onde me levam e espero que não seja a cova - não ainda.

 

As moscas são ruins. Elas rastejam pelo meu rosto e entram em meus olhos, e sinto as cócegas de suas pernas e asas. É o suor que as atrai. Esses ferros são pesados demais para que eu as afaste. Foram feitos para um homem, embora apertem com bastante força a minha pele.

 

É um alívio ter movimento, ter o calor de um cavalo sob minhas pernas: sentir a vida em algo que não está tão frio. Eu quase congelei por tanto tempo que é como se o inverno tivesse feito moradia em minha medula. Aqueles dias intermináveis de interiores escuros e olhares de ódio seriam capazes de produzir uma camada de gelo nos ossos de qualquer um. Então, sim, é melhor estar do lado de fora. Mesmo com o ar infestado de moscas é melhor ir para algum lugar do que apodrecer lentamente em um aposento como um corpo em um caixão.

 

Além do zumbido dos insetos e do ritmo dos passos dos cavalos, ouço um rugido distante. Talvez seja o oceano - o ribombar constante de ondas quebrando na areia de Thingeyrar. Ou talvez eu esteja imaginando coisas. O mar entra na cabeça da gente. Como Natan costumava dizer, assim que você o deixa entrar, ele não o deixa só. - Como uma mulher - ele disse. O mar é uma megera.

 

Foi naquela primeira primavera em Illugastadir. A luz chegara como uma caça, olhos arregalados e tremendo. O mar estava impassível - Natan empurrou o barco sobre sua tez prateada, enfiou os remos nas laterais.

 

- Quieto como um cemitério - ele dissera sorrindo, os braços inchando com o peso da água. Eu ouvi o ranger de madeira e o praguejar sussurrado dos remos estapeando a superfície do lago. - Seja boa quando eu tiver partido.

 

Não pense nele.

 

Há quanto tempo estamos cavalgando? Uma hora? Duas? O tempo escorrega como óleo. Mas não pode ter sido mais do que duas horas. Eu conheço a região. Sei que estamos indo para o sul, talvez na direção de Vatnsdalur. Estranho como meu coração agarra minhas costelas em um instante. Quanto tempo se passou desde que vi pela última vez essa região do país? Alguns anos? Mais? Nada mudou.

 

Isso é o mais perto de casa que jamais estarei.

 

Estamos passando pelas montanhas estranhas na boca do vale, e ouço o crocitar dos corvos. Suas formas escuras parecem presságios destacados contra o azul brilhante do céu. Durante todas aquelas noites em Stóra-Borg, naquela cama escura infeliz, imaginei estar do lado de fora, alimentando os corvos em Flaga. Pássaros cruéis, os corvos, mas sábios. As criaturas deviam ser amadas por sua sabedoria se não podem ser amadas pela gentileza. Quando criança, observava os corvos reunindo-se no telhado da igreja de Undirfell, tentando descobrir quem ia morrer. Eu sentava no muro, esperando que um deles soltasse suas penas, esperando para ver em qual direção o bico se virava. Aconteceu uma vez. Um corvo se acomodou no frontão de madeira e apontou o bico na direção de Bakki, e um garotinho se afogou naquela semana, o corpo inchado e cinzento encontrado tempos depois rio abaixo. O corvo sabia.

 

Sigga não sabia de pesadelos e fantasmas. Certa noite, tricotando juntas em Illugastadir, ouvimos vir do mar o guincho de um corvo que nos deu arrepios. Disse a ela para nunca chamar nem alimentar um corvo à noite. - Pássaros crocitando no escuro são espíritos - disse -, e eles o matam assim que olham para você. - Eu a assustei, tenho certeza, ou ela não teria dito as coisas que disse depois.

 

Fico pensando em onde Sigga poderia estar agora. Por que eles se recusaram a deixá-la comigo em Stóra-Borg. Eles a levaram embora certa manhã quando eu estava presa a ferros, sem me contar onde ela era mantida, embora eu tenha perguntado mais de uma vez. - Longe de você, e isso é suficiente - disseram.

 

- Agnes Magnúsdóttir!

 

O homem cavalgando ao meu lado tinha uma expressão dura no rosto.

 

- Agnes Magnúsdóttir. Eu a estou informando de que será mantida em Kornsá até o momento de sua execução - disse, lendo algo, os olhos baixando para as luvas. - Como criminosa condenada pelo tribunal desta região, você perdeu seu direito à liberdade.

 

Ele dobra o pedaço de papel e o enfia na luva.

 

- Melhor tirar essa expressão de raiva do rosto. São pessoas gentis em Kornsá.

 

Aqui, homem. Eis aqui seu sorriso. É um bom sorriso? Você vê meus lábios esticando? Vê meus dentes?

 

Ele passa pela minha égua, e as costas da camisa dele estão encharcadas de suor. Eles fizeram isso de propósito? Entre tantos lugares, escolheram Kornsá.

 

Ontem, quando eu estava no depósito escuro de Stóra-Borg, Kornsá teria parecido o céu. Um lugar da infância, o rio, a grama brilhante, os montes de turfa suando água na primavera. Mas agora vejo que será uma humilhação. As pessoas no vale me reconhecerão. Elas se lembrarão de como eu era - quando bebê, quando criança, como mulher correndo de uma fazenda para outra - e então pensarão nos assassinatos, e aquela criança, aquela mulher, será esquecida. Não suporto olhar para mim. Olho para a crina do cavalo, para os piolhos se arrastando pela crina, e não sei se são da égua ou meus.

 

O reverendo Tóti se curvou no umbral baixo e apertou os olhos para o tom rosado do sol da meia-noite. Podia ver, no ponto mais baixo do campo norte da fazenda, uma tropa de cavalos se aproximando. Procurou a mulher entre os cavaleiros. Contra o mar de feno dourado que as cercava, as figuras pareciam pequenas e escuras.

 

Margrét passou pela porta e ficou em pé atrás dele.

 

- Espero que deixem alguns homens para trás, para garantir que ela não nos mate enquanto dormimos.

 

Tóti se virou e olhou para o rosto duro de Margrét. Ela também apertava os olhos para ver os cavaleiros, e a testa estava marcada por rugas. Os cabelos grisalhos haviam sido presos em duas tranças firmes e enroladas, e ela usava sua melhor touca preta. Tóti percebeu que tirara o avental sujo com o qual o recebera mais cedo naquela noite.

 

- Suas filhas vão se juntar a nós aqui fora?

 

- Estão cansadas demais para ficar em pé. Eu as mandei para a cama. Não vejo por que a criminosa tem de ser trazida no meio da noite.

 

- Imagino que para evitar perturbar seus vizinhos - observou o reverendo com tato.

 

Margrét mordeu o lábio inferior, e um rubor se espalhou pelas bochechas.

 

- Não gosto de partilhar minha casa com os filhos do Diabo - ela disse, a voz tornando-se quase um sussurro. - Reverendo Tóti, devemos deixar claro que não queremos a companhia dela. Que a mulher seja transferida para uma ilha se não quiserem mantê-la em Stóra-Borg.

 

- Todos temos de cumprir nossas obrigações - murmurou Tóti, observando a tropa virar e seguir na direção do campo da família. Ele pegou um chifre de rapé no bolso do peito e tomou uma pitada. Colocando-o com cuidado na depressão ao lado do nó do polegar esquerdo, ele curvou a cabeça e fungou.

 

Margrét tossiu e cuspiu.

 

- Mesmo que isso signifique que estamos presos como porcos na noite, reverendo Tóti? O senhor é homem, um homem jovem, sim, mas um homem de Deus. Não acho que ela o mataria. Mas nós? Minhas filhas? Senhor, como vamos dormir em paz?

 

- Eles deixarão um oficial com vocês - murmurou Tóti, voltando sua atenção para um cavaleiro destacado que agora corria na direção deles.

 

- Eles precisam. Do contrário eu a levarei pessoalmente de volta a Stóra-Borg.

 

Margrét retorceu as mãos sobre a barriga e voltou o olhar para um bando de corvos voando silenciosamente sobre a cordilheira de Vatnsdalsfjall. Pareciam cinzas negras rodopiando no céu.

 

- É um homem de tradições, reverendo Tóti? - perguntou Margrét.

 

Tóti virou-se para ela, pensando na pergunta.

 

- Se elas forem nobres e cristãs.

 

Margrét apertou os lábios.

 

- Sabe o nome certo para um bando de corvos?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Uma conspiração, reverendo. Uma conspiração - disse, erguendo uma sobrancelha, desafiando-o a discordar.

 

Tóti viu os corvos pousando nos beirais do estábulo.

 

- É mesmo, senhora Margrét. Pensei que podiam ser chamados de crueldade.

 

Antes que Margrét tivesse tempo para responder, o cavaleiro que corria até eles chegou ao limite do campo.

 

- Komið þið sæl og blessuð - gritou.

 

- Drottin blessi yður. E que o Senhor o abençoe - responderam em uníssono. Margrét e Tóti esperaram o homem desmontar antes de se aproximar dele. Trocaram beijos formais habituais. O homem estava encharcado de suor e cheirava fortemente a cavalo.

 

- Ela está aqui - disse sem fôlego. - Acredito que a achará cansada da viagem. Não creio que dará problemas - disse, fazendo uma pausa para tirar o chapéu e correr a mão pelos cabelos suados.

 

Margrét bufou.

 

O homem deu um sorriso frio.

 

- Recebemos ordens de ficar aqui esta noite para garantir isso. Vamos nos instalar no campo.

 

Margrét anuiu solenemente.

 

- Desde que não destruam a relva. Querem um pouco de leite? Soro e água?

 

- Obrigado - respondeu o homem. - Nós a reembolsaremos por sua gentileza.

 

- Não é necessário - disse Margrét apertando os lábios. - Apenas garanta que a vadia fique longe das facas na minha cozinha.

 

O homem deu uma risada e se virou para acompanhar Margrét até a casa de turfa. Tóti agarrou o braço dele ao passar.

 

- A prisioneira pediu que eu falasse com ela. Onde está?

 

O homem apontou para o cavalo mais distante da cabana.

 

- É aquela com a boca azeda. A criada mais jovem permaneceu em Midhóp. Dizem que está esperando o resultado de uma apelação.

 

- Uma apelação? Achei que elas estavam condenadas...

 

- Muita gente em Vatnsnes tem esperança de que Sigga receba o perdão do rei. Jovem e doce demais para morrer - disse o homem, fazendo uma careta. - Não é como esta. Ela fica temperamental quando quer.

 

- Ela está esperando uma apelação?

 

O homem riu.

 

- Não acho que tenha chances. Blöndal está atrás da mais moça. Dizem que ela o faz lembrar da esposa. Esta... Bem, Blöndal quer que sirva de exemplo.

 

Tóti olhou para os cavalos reunidos no limite do campo. Os homens haviam começado a desmontar e a cuidar de suas coisas. Só uma figura permanecia montada. Ele se inclinou mais perto do homem.

 

- Ela tem um nome? Como devo chamá-la?

 

- Apenas Agnes - interrompeu o homem. - Ela atende por Agnes.

 

Chegamos. Os homens de Stóra-Borg estão desmontando a pouca distância da casa torta de Kornsá. Há duas figuras em pé fora da cabana, uma mulher e um homem, e o cavaleiro que anunciou o confisco de meus direitos está caminhando até eles. Ninguém vem soltar meus ferros. Talvez tenham se esquecido de mim. A mulher inclina a cabeça para voltar para dentro, tossindo e cuspindo como uma bruxa, mas o homem fica para falar com o oficial de Stóra-Borg.

 

À minha esquerda ouço risos - dois oficiais estão urinando no chão. Posso sentir o cheiro no ar quente. Como de hábito, ninguém percebeu que não comi nem tomei um gole de água o dia todo; meus lábios estão rachados como lenha de fogo. A mesma sensação de quando era pequena e tinha fome, como se meus ossos estivessem aumentando dentro do corpo, como se meu esqueleto estivesse prestes a se livrar de mim. Parei de sangrar. Não sou mais uma mulher.

 

Um dos homens caminha em minha direção, dando longos passos rápidos sobre o campo. Não olhe para ele.

 

- Olá, Agnes. Meu... Meu nome é reverendo Thorvardur Jónsson. Sou o reverendo assistente de Breidabólstadur, em Vesturhóp. - Ele está sem fôlego.

 

Não erga os olhos. É ele. A mesma voz.

 

Ele tosse, depois se curva, como para me beijar seguindo o costume, mas hesita, recuando e quase tropeçando em uma touceira de capim. Ele certamente sente o cheiro de urina seca em minhas meias.

 

- Você me chamou? - pergunta, com incerteza na voz.

 

Ergo os olhos.

 

Ele não me reconhece. Não sei se fico aliviada ou desapontada. Os cabelos dele são tão vermelhos quanto antes, vermelhos como o sol da meia-noite. É como se seus cachos tivessem absorvido a luz tal qual um novelo de lã absorve a tinta. Mas seu rosto está mais velho. E ele emagreceu.

 

- Você me chamou? - pergunta novamente.

 

Quando o olho nos olhos, ele desvia o olhar, depois limpa o suor do lábio superior com nervosismo, deixando uma trilha de pontos escuros. Rapé? Ele não quer estar aqui.

 

Minha língua incha na boca e não consegue se movimentar para formar palavras. De qualquer forma, o que eu lhe diria, agora que cheguei a este ponto? Brinco com as escaras em meus pulsos onde os ferros feriram a pele, e o sangue sobe à superfície. Ele percebe.

 

- Bem. Eu preciso... Estou contente de conhecê-la, mas... Está tarde. Você deve estar... Ahn, voltarei em breve.

 

Ele se curva desajeitado, vira-se e parte, tropeçando na pressa. Sai antes que eu possa dizer que compreendo. Esfrego o sangue fresco sobre meu braço enquanto o vejo cambalear até seu cavalo.

 

Agora estou sozinha. Observo os corvos e ouço os cavalos pastarem.

 

Assim que os homens de Stóra-Borg comeram e se recolheram às suas barracas para dormir, Margrét pegou as tigelas de madeira sujas e voltou para dentro. Alisou os cobertores sobre as filhas adormecidas e caminhou lentamente pelo pequeno aposento, curvando-se para pegar os tufos de grama seca que haviam caído das placas dispostas entre as vigas. Ela ficava desesperada com a poeira no aposento. Um dia as paredes haviam sido revestidas de madeira norueguesa, mas Jón havia retirado as tábuas para pagar uma dívida com um fazendeiro do outro lado do vale. Agora as paredes feitas de forragem derrubavam terra e grama sobre as camas no verão e ficavam encharcadas no inverno, produzindo um mofo que se alastrava pelos cobertores de lã e infestava os pulmões dos moradores. No ano anterior, dois criados haviam morrido de doenças causadas pela umidade.

 

Margrét pensou em sua própria tosse e instintivamente levou a mão à boca. Desde a novidade levada pelo comissário distrital seus pulmões haviam produzido putrefação com regularidade crescente. Toda manhã ela se levantava com um peso no peito. Margrét não sabia dizer se era medo da chegada da criminosa ou o refugo que se acumulara nos pulmões durante a noite, mas o peso a fazia pensar no túmulo. Está tudo desmoronando por dentro, pensou.

 

Um dos oficiais fora pegar Agnes onde a haviam deixado amarrada com os cavalos. Margrét só tivera um vislumbre distante da mulher quando saíra dos aposentos escuros da fazenda para levar o jantar dos homens - uma leve mancha azul, uma saia borrada sendo tirada de um cavalo. Agora seu coração batia forte. Logo a assassina estaria diante dela. Veria o rosto da mulher, sentiria seu calor no espaço apertado. O que fazer? Como se comportar diante de tal mulher?

 

Se ao menos Jón estivesse aqui, pensou. Ele poderia me dizer o que lhe falar. É necessário um homem, um bom homem, para saber lidar com uma mulher que fez sua cama entre pedras.

 

Margrét sentou e ficou brincando distraída com a grama em sua mão. Ela lidara com os criados que haviam passado pela casa do marido por quase quatro décadas, por outras tantas fazendas, porém agora se sentia sem vigor, tomada pela incerteza e apreensão. Aquela mulher, aquela Agnes, não era uma criada, certamente não uma convidada, tampouco uma indigente. Ela não merecia caridade, mas ainda assim estava condenada a morrer. Margrét estremeceu. A luz da lamparina projetava sua sombra sobre as tábuas do piso.

 

Passos abafados soaram à porta. Margrét se levantou rapidamente, os pedaços de grama caindo no chão quando ela abriu os punhos cerrados. A voz do oficial ribombou na escuridão do corredor:

 

- Senhora Margrét de Kornsá? Estou com a prisioneira. Podemos entrar?

 

Margrét respirou fundo e se empertigou.

 

- Por aqui! - ordenou.

 

O oficial entrou na frente no badstofa, abrindo um largo sorriso para Margrét, que estava em pé, rígida, as mãos agarradas ao tecido do avental. Olhou para onde suas filhas dormiam e sentiu o sangue latejar na garganta.

 

Houve um momento de silêncio enquanto o oficial piscava para acostumar os olhos à luz fraca, e então, de repente, ele puxou a mulher para o quarto.

 

Margrét não estava preparada para a sujeira e o estado lamentável da mulher. A criminosa trajava o que parecia ser o vestido de trabalho comum de uma criada, de lã tecida grosseiramente, porém tão sujo e enlameado que o tingimento azul original mal podia ser visto sob a gordura escura que se espalhava por colarinho e braços. Um torrão grosso de lama seca afastava o tecido desajeitadamente do corpo da mulher. Margrét não via nenhuma muda de roupa, e a mulher não tinha um avental. As meias azul-escuras estavam encharcadas, caídas nos tornozelos, uma delas rasgada, expondo um pedaço de pele branca. Os sapatos, aparentemente de pele de foca, haviam se partido na costura, mas tão cobertos de lama que era impossível ver quão danificados estavam. Os cabelos não eram cobertos por touca e estavam emaranhados de gordura. Pendiam em duas tranças escuras às costas. Vários cachos haviam se soltado e caíam sem firmeza sobre o pescoço da mulher. A Margrét ela parecia ter sido arrastada desde Stóra-Borg. O rosto da mulher estava oculto; ela olhava para o chão.

 

- Olhe para mim.

 

Agnes levantou a cabeça lentamente. Margrét se encolheu com a mancha de sangue seco sobre a boca da mulher e a sujeira entranhada em faixas sobre a testa. Havia uma contusão amarelada que ia do queixo até o lado do pescoço. Os olhos de Agnes passaram do piso para os de Margrét, e ela ficou assombrada com a intensidade deles, sua cor tornada mais clara e distinta pela sujeira no rosto. Margrét virou-se para o oficial.

 

- Esta mulher foi agredida.

 

O oficial buscou deleite no rosto de Margrét e, não encontrando nenhum, baixou os olhos.

 

- Onde estão as coisas dela?

 

- Apenas as roupas que veste - disse o oficial. - Os meirinhos tomaram o que ela tinha para pagar suas provisões.

 

Revigorada por um súbito surto de raiva, Margrét apontou para os ferros nos pulsos da mulher.

 

- É necessário mantê-la presa como uma ovelha pronta para o abate? - perguntou a ele.

 

O oficial deu de ombros e procurou uma chave. Com alguns giros hábeis, ele libertou Agnes das algemas. Os braços dela caíram ao lado do corpo.

 

- Você pode ir agora - Margrét disse ao oficial. - Um de vocês poderá entrar quando eu me recolher para dormir, mas quero um tempo a sós com ela.

 

O oficial arregalou os olhos.

 

- Tem certeza? Não é seguro.

 

- Como disse, eu o avisarei quando me recolher. Pode esperar do lado de fora da porta, e chamarei caso seja necessário.

 

O oficial hesitou, depois aquiesceu e saiu com um cumprimento. Margrét voltou-se para Agnes, que estava em pé, imóvel, no centro do aposento.

 

- Siga-me - disse.

 

Margrét não queria tocar na mulher, mas a falta de luz do lado de dentro a obrigou a agarrar o braço de Agnes de modo a levá-la ao lugar certo. Ela podia sentir os ossos em seu punho, sangue seco sob a ponta dos dedos. A mulher cheirava a urina azeda.

 

- Por aqui - disse Margrét, entrando lentamente na cozinha, curvando a cabeça sob o umbral baixo.

 

A cozinha era iluminada pelas brasas do fogo que morriam no braseiro elevado de pedra e por um pequeno buraco no teto de palha que servia de chaminé. Ele lançava uma fraca luz rosada sobre o piso de terra batida e iluminava a fumaça que pairava no aposento. Margrét conduziu Agnes para dentro, depois virou-se e encarou-a.

 

- Tire suas roupas. Você precisa de um banho se vai dormir nos meus cobertores. Não quero que infeste esta casa com mais carrapatos além dos que já vivem neste lugar.

 

O rosto de Agnes estava impassível.

 

- Onde está a água? - grunhiu ela.

 

Margrét hesitou, depois se virou para uma grande chaleira sobre o carvão. Tirou a louça que havia sido deixada de molho e depois a colocou no chão.

 

- Ali - disse. - E está quente. Agora rápido, já passa da meia-noite.

 

Agnes olhou para a chaleira e, de repente, jogou-se no chão. A princípio Margrét pensou que tivesse desmaiado, mas percebeu o equívoco rapidamente. Agnes curvava a cabeça acima da beirada da chaleira e levava água gordurosa à boca com as mãos, engasgando e bebendo com a mesma urgência de um animal em um cocho. Água escorria por queixo e pescoço, pingando nas dobras rígidas de seu vestido. Sem pensar, Margrét se curvou e afastou a testa de Agnes da chaleira.

 

A mulher caiu sobre os cotovelos e soltou um grito, a água gorgolejando em sua boca. O coração de Margrét deu um pulo com o som. Os olhos de Agnes estavam semicerrados, a boca estava aberta. Ela parecia aquelas pessoas que Margrét vira perdendo a cabeça pela bebida, ou pelo medo ou pela dor que se instala quando a morte se abate pesadamente em uma casa.

 

Agnes gemeu e esfregou as costas da mão sobre a boca, depois sobre o vestido. Ela se levantou do chão e tentou ficar em pé.

 

- Estou com sede.

 

Margrét anuiu, o coração ainda acelerado no peito. Engoliu em seco.

 

- Da próxima vez peça um copo - disse.

 

Quando o reverendo Tóti voltou à cabana de seu pai perto da igreja de Breidabólstadur, estava encharcado de suor. Havia cavalgado vigorosamente desde Kornsá, enfiando os calcanhares nos flancos do cavalo enquanto o vento batia em seu rosto deixando suas bochechas afogueadas.

 

Diminuindo o ritmo, guiou seu animal atarracado, espuma pingando da boca, até um degrau perto da entrada da cabana. Desmontou com as pernas trêmulas. O vento aumentara, e, enquanto penetrava na malha apertada de suas roupas, ele sentiu a pele encharcada de suor ficar fria e começar a coçar. Tinha o maxilar trincado. As mãos tremiam enquanto prendia as rédeas no degrau.

 

Nuvens pesadas haviam chegado do mar, e a luz sumia rapidamente, apesar de não ter se passado muito tempo desde o solstício de verão. Tóti ergueu mais seu colarinho molhado junto ao pescoço e enfiou o chapéu com firmeza na cabeça. Dando um tapinha nas ancas do cavalo, começou a subir a pequena rampa até a igreja. Ele se sentia como um trapo molhado torcido e deixado estendido a secar no chão. Aqueles dias do Norte, com seus dedos de luz resistentes, o crepúsculo constante, o perturbavam. Ele não conseguia adivinhar a hora do dia como fazia na escola no Sul.

 

Começou a chover, e o vento ficou mais forte. Ele açoitava o capim alto, colando-o no chão antes de jogá-lo para cima novamente. O capim parecia prateado à luz fraca.

 

Tóti subiu a colina a passos largos, estendendo os músculos ao caminhar, pensando em seu encontro com a mulher. A mulher. A criminosa. Agnes.

 

Ele inicialmente percebera como, amarrada à sela, ela esticara as pernas sobre o cavalo para não escorregar. Depois sentira seu cheiro; a pungência de um corpo negligenciado, de roupas sujas e suor fresco, sangue seco e algo mais que vinha daquelas pernas abertas. Um fedor específico das mulheres. Ele corou ao pensar.

 

Mas não fora seu cheiro que o enojara. Ela parecia um cadáver novo, recém-retirado da cova. Cabelos negros desgrenhados e ensebados, e a terra marrom acinzentada cobrindo os poros da pele. Cores leprosas.

 

Ele quisera dar as costas, fugir ao vê-la. Como um covarde.

 

Encolhido para se proteger da chuva e do vento, Tóti censurou-se internamente. Que tipo de homem é você se quer correr à visão de carne ferida? Que tipo de padre você será se não puder suportar a aparência de sofrimento?

 

Havia sido um hematoma particularmente vívido sobre o queixo que mais o perturbara. Uma cor amarela madura, como gema de ovo seca. Tóti ficou pensando na força que o teria produzido. A mão grossa de um homem, agarrando-a pela garganta. Uma corda prendendo-a a travas. Uma queda.

 

Havia muitas formas pelas quais uma pessoa podia se ferir, Tóti pensou. Ele chegou ao cemitério e se atrapalhou com o portão.

 

Poderia ter sido um acidente. Ela poderia ter se ferido sozinha.

 

O reverendo desceu apressado o passeio de pedra até a igreja, tentando não olhar para os túmulos escuros e suas cruzes de madeira. Tirando do bolso uma chave simples, ele entrou. Ficou aliviado ao fechar a porta de madeira e deixar do lado de fora o uivo baixo do vento. Do lado de dentro, tudo estava completamente imóvel. O único som era o tamborilar leve da chuva na única janela da igreja, um buraco coberto com pele de peixe.

 

Tóti tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos. As tábuas do piso rangeram quando ele caminhou até o púlpito. Ficou parado um momento, apertando os olhos para o mural pintado atrás do altar. A última ceia.

 

O mural era feio: uma mesa enorme com um Jesus acocorado. Judas, nas sombras, parecia um anão, cômico. O artista era filho de um comerciante local que tinha uma esposa dinamarquesa e ligações no governo. Certo domingo, após a cerimônia, Tóti ouvira o comerciante conversar com o reverendo Jón, reclamando da tinta descascada do mural anterior. O comerciante mencionara o filho, o talento artístico que garantira ao garoto uma bolsa em Copenhague. Se o reverendo Jón permitisse que ele expressasse sua singular devoção à paróquia, ficaria contente de comprar todo o material necessário e doar o trabalho do filho sem que a igreja tivesse nenhuma despesa. Naturalmente, o pai de Tóti, sendo um homem com preocupações econômicas, permitira que a velha pintura fosse coberta.

 

Tóti sentia falta dela. Era uma bela ilustração do Velho Testamento de Jacó lutando com o anjo, o rosto do homem enfiado no ombro do anjo, seu punho cheio de penas sagradas.

 

Tóti suspirou e colocou-se de joelhos lentamente. Pousou o chapéu no chão, levando as mãos ao peito com força, e começou a rezar em voz alta.

 

- Ó, Pai Celestial, perdoe meus pecados. Perdoe minha fraqueza e meu medo. Ajude-me a combater minha covardia. Fortaleça minha capacidade de suportar a visão do sofrimento, para que possa fazer Sua obra e dar alívio aos que padecem.

 

- Senhor, rezo pela alma dessa mulher que cometeu um terrível pecado. Por favor, me dê palavras para que consiga inspirá-la a se arrepender.

 

- Confesso ter medo. Não sei o que dizer a ela. Não me sinto à vontade, Senhor. Por favor, proteja meu coração do... Do horror que essa mulher me inspira.

 

Tóti permaneceu de joelhos por algum tempo. Somente a ideia de seu cavalo em pé arreado na chuva e no vento o levou a finalmente se levantar e trancar a porta da igreja atrás de si.

 

Margrét acordou cedo no dia seguinte. O oficial que dormira na cama oposta para protegê-la da criminosa estava roncando. A respiração gargarejada penetrara em seus sonhos e a despertara.

 

Margrét se virou na cama na direção da parede e enfiou as pontas do cobertor nas orelhas, mas o ronco entrecortado do homem enchia sua cabeça. Ela perdera o sono. Ficou deitada de costas e olhou para onde o oficial estava, do outro lado do quarto escuro. Os cabelos louros descuidados projetavam-se em cachos ensebados, e a boca estava aberta sobre o travesseiro. Margrét notou espinhas no maxilar do homem.

 

Então é assim que eles me protegem de uma assassina, pensou. Mandam um garoto que dorme pesado.

 

Ela olhou para a prisioneira, deitada em uma das camas reservadas aos criados no final do aposento. A mulher estava imóvel, adormecida. Suas filhas também dormiam. Margrét se apoiou nos cotovelos para ver melhor.

 

Agnes.

 

Margrét pronunciou a palavra em silêncio.

 

Parece errado chamá-la pelo nome cristão, Margrét pensou. Como eles a teriam chamado em Stóra-Borg? Prisioneira? Acusada? Condenada? Talvez fosse pela ausência de um nome, o silêncio onde deveria haver um nome, que eles a convocassem.

 

Margrét estremeceu e ajeitou o cobertor. Os olhos de Agnes estavam fechados, assim como a boca. A touca que Margrét lhe dera soltara-se durante a noite, e os cabelos escuros caíam livres, cobrindo o travesseiro como uma mancha.

 

Estranho finalmente ver a mulher após um mês de espera, Margrét pensou. Também um mês de medo. Um medo esticado, como uma linha de pesca, enganchado em algo que inevitavelmente teria de ser arrastado das profundezas.

 

Nos dias e noites depois de Jón ter retornado de sua reunião com Blöndal, Margrét tentara imaginar como se comportaria com a assassina e qual seria sua aparência.

 

Que tipo de mulher mata homens?

 

As únicas assassinas que Margrét conhecera eram as mulheres das sagas, e mesmo então era apenas com palavras que haviam matado homens; ordens dadas a criados para assassinar amantes ou vingar a morte de um parente. Aquelas mulheres matavam a distância e mantinham as mãos limpas.

 

Mas estes não eram tempos de saga, Margrét pensara. Esta mulher não é a personagem de uma saga. Ela é uma criada sem terras que cresceu em um mingau de musgo e pobreza.

 

Deitada de costas na cama, Margrét pensou em Hjördis, sua criada preferida, agora morta e enterrada no cemitério de Undirfell. Tentou imaginar Hjördis como assassina. Tentou imaginar Hjördis esfaqueando-a durante o sono, assim como Natan Ketilsson e Pétur Jónsson haviam sido mortos. Aqueles dedos esguios fechados com força sobre uma empunhadura, os passos silenciosos na noite.

 

Era impossível.

 

Lauga perguntara a Margrét se achava que haveria um indício exterior do mal que leva uma pessoa ao assassinato. Uma evidência da maldade: um lábio leporino, um dente desalinhado, uma marca de nascença, algum pequeno defeito externo. Devia haver um alerta, algum modo de descobrir, para que as pessoas honestas pudessem ficar de guarda. Margrét dissera que não, achava tudo isso superstição, mas Lauga não se convencera.

 

Em vez disso, Margrét pensava se a mulher seria bonita. Ela sabia, como todo mundo no Norte, que Natan Ketilsson tinha talento para descobrir a beleza. As pessoas o consideravam um feiticeiro.

 

A vizinha de Margrét, Ingibjörg, ouvira que fora Agnes que levara Natan a encerrar seu caso com Poet-Rósa. Elas se perguntavam se isso significava que a criada seria mais bonita que ela. Para Margrét, não era tão difícil acreditar que uma mulher bonita fosse capaz de assassinar. Como é dito nas sagas, Opt er flagð í fögru skinni. Uma bruxa muitas vezes tem pele clara.

 

Mas aquela mulher não era nem feia nem bela. Talvez impressionante, porém não do tipo que provoca olhares de cobiça dos moços. Era muito magra, magra como um elfo, como diriam os sulistas, e com altura mediana. Na cozinha, na noite anterior, Margrét achara o rosto da mulher bastante comprido, notara os malares altos e o nariz reto. Afora os hematomas, sua pele era clara, ainda mais realçada pelos cabelos escuros. Cabelos incomuns. Raro uma mulher ter cabelos assim por ali, pensou Margrét. Tão compridos, tão escuros: um marrom-escuro, quase preto.

 

Margrét levou as cobertas ao queixo enquanto os roncos do oficial continuavam sem parar. Parecia que uma avalanche se aproximava, pensou, aborrecida. Ela se sentia cansada, e seu peito estava pesado de muco.

 

Imagens da mulher se sobrepunham atrás das pálpebras fechadas de Margrét. O modo animal como Agnes bebera a água da chaleira. Sua incapacidade de se despir sozinha. As mãos atrapalhando-se com os laços; os dedos estavam inchados e não se dobravam. Margrét fora obrigada a ajudá-la, usando a ponta dos dedos para esmagar a lama do vestido de modo que os laços pudessem ser soltos. No interior da pequena cozinha, por mais enfumaçada que fosse, o fedor das roupas e do corpo azedo de Agnes havia sido suficiente para dar ânsia de vômito em Margrét. Ela prendera a respiração enquanto tirava a lã fétida da pele de Agnes, e virara a cabeça quando o vestido escorregou dos ombros magros e caiu no chão, levantando nuvens de lama seca.

 

Margrét se lembrou das omoplatas de Agnes. Afiadas, elas se projetavam do tecido grosseiro de suas roupas de baixo, amareladas no colarinho e com uma mancha de sujeira marrom sob as axilas.

 

Margrét teria de queimar todas as roupas da mulher antes do café da manhã. Ela as deixara em um canto da cozinha na noite anterior, não querendo levá-las para o badstofa. Pulgas se arrastavam pela trama.

 

De algum modo, ela conseguira lavar a maior parte da sujeira e da terra do corpo da criminosa. Agnes tentara se lavar sozinha, passando o trapo encharcado pelos membros fracamente, mas a sujeira tinha tanto tempo em sua pele que parecera ter se cravado nos poros. No final, Margrét, arregaçando as mangas e trincando os dentes, arrancara dela os trapos e a esfregara até o tecido ficar preto. Enquanto a lavava, Margrét havia - contra a vontade - procurado os sinais que Lauga achava que seriam evidentes, um sinal da assassina. Apenas os olhos da mulher davam algum indício. Pareciam diferentes, pensou Margrét. Muito azuis e cristalinos, mas um tanto claros demais para ser considerados bonitos.

 

O corpo da mulher era um campo de agressões. Mesmo Margrét, acostumada a ferimentos, aos males causados por trabalho duro e acidentes, ficara chocada.

 

Talvez tivesse esfregado a pele de Agnes com força demais, pensou Margrét, e enfiou a cabeça sob o travesseiro em um esforço de apagar o ronco intermitente do oficial. Alguns dos ferimentos da mulher se abriram e purgaram. A visão de sangue fresco dera a Margrét uma satisfação secreta.

 

Ela também fizera Agnes molhar os cabelos. A água da chaleira estava cheia demais de lama e espuma, então Margrét pedira que um oficial pegasse mais no córrego da montanha. Enquanto esperavam, ela cobrira os ferimentos da mulher com um unguento de enxofre e banha.

 

- Esse é o remédio do próprio Natan Ketilsson - dissera ela, olhando para ver a reação da mulher. Agnes não dissera nada, mas Margrét achou ter visto os músculos do pescoço dela se contraindo.

 

- Deus tenha piedade de sua alma - murmurara.

 

Com os cabelos de Agnes lavados o melhor possível na água gelada e a maior parte dos ferimentos abertos coberta com banha, Margrét lhe dera a roupa de baixo e de cama de Hjördis. Ao morrer, Hjördis vestia os trajes de baixo com os quais Agnes agora dormia. Margrét suspeitava que não fazia diferença se restasse algum ácaro contagioso. Sua nova dona também logo estaria morta.

 

Estranho imaginar que em pouco tempo a mulher que dormia em uma cama a menos de três metros dela estaria debaixo da terra.

 

Margrét suspirou e voltou a sentar-se na cama. Agnes ainda não se movera. O oficial roncava. Margrét o viu levar uma mão à virilha e coçá-la sonoramente. Desviou os olhos, divertida e um pouco incomodada por aquele homem ser sua única proteção.

 

Ela pensou que poderia muito bem se levantar e começar a preparar algo para o café da manhã dos oficiais. Talvez skyr. Ou peixe seco. Ficou pensando se teriam manteiga suficiente para desperdiçar e quando os criados voltariam de Reykjavík com suprimentos.

 

Depois de soltar o gorro noturno, Margrét deu uma última espiada na mulher adormecida.

 

Seu coração foi parar na boca. No canto escuro do badstofa, Agnes estava deitada de lado, observando Margrét calmamente.

 

Foi dito sobre o crime que Fridrik Sigurdsson, com a ajuda de Agnes Magnúsdóttir e Sigrídur Gudmundsdóttir, entrou na casa de Natan Ketilsson perto da meia-noite e esfaqueou e levou à morte Natan e Pétur Jónsson, que era um convidado lá, com uma faca e um martelo. Depois, por causa dos cortes e da sujeira nos corpos, que eram evidentes, queimou-os incendiando a fazenda de modo que seu trabalho malévolo não ficasse evidente. Fridrik cometeu essa maldade por ódio a Natan e desejo de roubar. O assassinato acabou revelado. O comissário distrital desconfiou e, quando os corpos parcialmente incinerados foram encontrados, concluiu que aqueles três formavam uma gangue.

 

Dos julgamentos da Corte Suprema de 1829.

 

Eu não sonhei no depósito de Stóra-Borg. Encolhida sobre as placas de madeira, tendo um couro de cavalo mofado para me aquecer, o sono chegava a mim como uma fina corrente de água. Batia em meu corpo, mas nunca me submergia no esquecimento. Havia algo para me despertar - sons de passos, ou o urinol raspando no chão quando uma criada entrava para esvaziá-lo, o fedor intoxicante de urina. Algumas vezes, se ficasse deitada imóvel com os olhos bem fechados e expulsasse todos os pensamentos da cabeça, o sono retornava. Minha mente entrava e saía da consciência, até que a menor luz penetrasse no aposento e os criados me jogassem um pedaço de peixe seco. Acho que não dormi de verdade desde o incêndio e, talvez, a falta de sono seja uma punição de Deus. Ou mesmo de Blöndal: meus sonhos tomados junto com meus bens para pagar minha custódia.

 

Mas na noite passada, aqui em Kornsá, sonhei com Natan. Ele estava fervendo ervas para um remédio, e eu o observava e passava as mãos sobre a parede de turfa da oficina. Era verão, e a luz tinha um tom rosa. As ervas para o remédio tinham um perfume forte, que me cercava enquanto eu estava ali em pé. Respirei o cheiro agridoce, sentindo uma lenta onda de alegria lançar-se sobre mim. Eu finalmente estava fora do vale. Natan se virou e sorriu. Segurava uma pipeta cheia da espuma que recolhera das ervas ferventes, e um vapor se erguia dela. Ele parecia um feiticeiro em suas meias pretas grossas e em meio à fumaça que lhe subia da mão. Natan passou pelo facho de luz solar, e abri os braços para ele, rindo, sentindo como se pudesse morrer de amor, mas quando fiz isso a pipeta escorregou da mão dele, quebrou-se no chão, e a escuridão tomou o aposento como óleo.

 

Não tenho certeza de que cheguei a dormir desde esse sonho.

 

Natan está morto.

 

Eu acordo toda manhã com uma angústia no coração.

 

A única coisa a fazer é empurrar minha mente de volta para debaixo da água, de volta para o sonho, de volta para o momento dourado que me envolveu antes que a pipeta quebrasse. Ou imaginar Brekkukot, quando mamãe estava comigo. Se me concentrar, consigo vê-la dormindo na cama em frente à minha, e Jóas, o pequeno Jóas, coçando as picadas de pulga. Vou usar a unha para esmagá-las contra o polegar.

 

Mas as lembranças que eu desperto são frias. Sei o que vem depois de Brekkukot. Sei o que acontece com mamãe e com Jóas.

 

Quando abro os olhos, vejo Margrét deitada na cama, porém acordada. Ela se revira e brinca distraída com o cobertor. A touca de dormir está um pouco solta, e posso ver seus cabelos grisalhos esticados sobre a cabeça numa trança apertada, mesmo enquanto descansa. Quase posso ver os contornos de seu crânio.

 

Seu rosto é uma mancha, semiescondido pelo cobertor que puxou sobre ele. Está virada para olhar para o oficial dormindo no catre em frente.

 

O oficial ronca, e a senhora da fazenda estala a língua, em desaprovação. Eu ouço você, velha. Já está farta? Tente um ano deles e de suas mãos duras, seus olhares duros.

 

A alga seca no travesseiro chacoalha quando ela vira a cabeça. Ela me vê. Dá um suspiro e leva a mão ao coração.

 

Eu deveria ter mais cuidado. Nunca ser apanhada encarando ninguém. Eles vão pensar que você quer algo deles.

 

- Você está acordada. Bom.

 

A senhora da fazenda alisa os cabelos sobre o crânio e me encara por um momento, talvez insegura sobre quanto tempo passei olhando para ela.

 

- Levante-se - diz.

 

Eu obedeço. As tábuas estão frias sob meus pés.

 

Margrét me dá um traje de criada de lã azul, e nos vestimos em silêncio. Ela continua a olhar nervosamente para o oficial roncando. Passo o tecido grosseiro sobre a cabeça e olho ao redor do aposento. Há duas outras pessoas adormecidas nas camas. Criados, talvez. Não há tempo para descobrir quem podem ser - Margrét me leva pelo corredor úmido da cabana, parando apenas para puxar um pedaço de turfa que se soltou e pende em farrapos por sobre uma viga.

 

- Caindo aos pedaços - murmura.

 

Ela anda rápido demais para que eu possa olhar dentro dos outros cômodos da cabana. Não é uma moradia grande, mas lembro, de minha primeira vez aqui, que tinha um depósito para barris, e aquele quartinho ali com baldes, panelas e bandeja de ordenha deve ser a queijaria, ou talvez o tenham transformado em despensa. Passamos pela cozinha. Minhas roupas de Stóra-Borg estão em uma pilha no canto.

 

Já faz um belo dia do lado de fora. A grama está molhada da chuva noturna, e as folhas parecem brilhar à luz do sol nascente. Um vento forte produz ondas nas poças do pátio. Agora noto as pequenas coisas.

 

- Como você pode ver - começa Margrét, parando ao tropeçar em um pedaço de madeira que caiu da pilha do lado de fora da cabana. - Como você pode ver, há muito trabalho a fazer neste lugar.

 

Foi a primeira coisa que ela disse desde que mandou me vestir. Não digo nada e mantenho os olhos baixos. Percebo que a barra da saia dela tem uma mancha escura de anos raspando no chão.

 

Margrét se empertiga e coloca as mãos no quadril, como se tentasse parecer maior. As unhas estão roídas até o sabugo.

 

- Não vou esconder meu desprazer com você. Não a quero na minha casa. Não a quero perto de minhas filhas.

 

Aqueles corpos adormecidos eram as filhas dela.

 

- Fui obrigada a mantê-la aqui, e você... - diz, falhando um pouco. - Você é obrigada a ficar aqui.

 

Nossos ombros estão contraídos contra o vento da manhã, que empurra nossos vestidos sobre as pernas. Quando eu era pequena minha mãe adotiva, Inga, me mostrou como esticar o tecido de minha saia ao vento e fingir que tinha asas. Era uma sensação de voar. Ela me disse que um dia o vento iria me erguer e eu seria soprada pelo caminho, e todos no vale iriam olhar para cima e ver meus movimentos. Eu costumava rir disso.

 

- Meu marido Jón está em Hvammur, mas voltará agora de manhã. Os criados da fazenda voltarão a qualquer momento para começar a produzir feno. Não será suficiente. Não sei o que você fazia em Stóra-Borg, mas vou lhe dizer: você não terá oportunidade de tirar vantagem de nós aqui.

 

Ela não sabe de nada.

 

- Agora - diz, apertando as mãos com força sobre a cintura. - Pelo que entendo, você ocupava uma posição de criada antes... - diz, e se interrompe.

 

Antes de quê? Antes de Natan Ketilsson e Pétur Jónsson terem seus crânios martelados?

 

- Sim, senhora.

 

Fico assustada de ouvir minha voz. Parece ter passado uma vida desde que falei livremente.

 

- Uma criada?

 

Ela não me ouviu em meio ao vento.

 

- Sim, uma criada. Desde que tinha quinze anos. Antes disso prestava serviços.

 

Ela está aliviada.

 

- Sabe fiar e tricotar, cozinhar e cuidar dos animais?

 

Poderia fazer isso dormindo.

 

- Sabe usar uma faca?

 

Meu estômago se revira.

 

- Perdão, senhora?

 

- Sabe cortar feno? Sabe usar uma foice? Deus sabe que muitos empregados nunca cortaram capim em toda a vida; sei que atualmente não é prática comum mulheres ceifando, mas somos uma fazenda com poucas pessoas, e...

 

- Eu sei usar uma foice.

 

- Bom. No que me diz respeito, você vai trabalhar para se manter. Sim, você vai pagar pela minha inconveniência. Não tenho emprego para uma criminosa, só para uma criada.

 

Criminosa. A palavra paira no ar. Pesada, inabalável até para o sopro do vento.

 

Quero balançar a cabeça. Quero dizer que aquela palavra não pertence a mim. Não se encaixa em mim ou naquilo que sou. É outra palavra e pertence a outra pessoa.

 

Mas de que adianta protestar contra a linguagem?

 

Margrét pigarreia.

 

- Não vou tolerar violência. Não aceitarei corpo mole. Qualquer atrevimento, qualquer desvio, qualquer preguiça, qualquer roubo ou qualquer trama e eu a expulsarei. Eu a arrastarei para fora desta fazenda pelos cabelos caso precise. Estamos entendidas?

 

Ela não espera uma resposta. Sabe que não tenho escolha.

 

- Vou lhe mostrar a criação - diz, respirando fundo. - Vou ordenhar as ovelhas e a vaca, enquanto você...

 

Os olhos dela desviam dos meus para a fazenda seguinte no vale. Algo chamou sua atenção.

 

Snæbjörn, o fazendeiro de Gilsstadir, subia a colina do vale. Ao lado dele estava um de seus sete filhos, Páll, naquele verão responsável por pastorear as ovelhas de Kornsá. Lutando para acompanhá-los vinha a esposa de Snæbjörn, Róslín, puxando duas das filhas mais moças.

 

- Que Deus me ajude. Aí vem a horda - murmurou Margrét. Ela despertou de repente e agarrou o braço de Agnes. - Vá para dentro - sussurrou. Ela levou Agnes de volta para a cabana e a empurrou com urgência na direção da porta. - Para dentro! Agora.

 

Agnes hesitou à porta, olhando para Margrét antes de desaparecer na escuridão da casa.

 

- Sæl og blessuð! - gritou Snæbjörn. Era um homem corpulento e alto, com bochechas vermelhas e cabelos louros sem brilho caídos sobre os olhos. - Tempo bom!

 

- Não é mesmo? - retrucou Margrét, tensa. Esperou que ele chegasse mais perto. - Vejo que você e Páll me trouxeram visitas.

 

Snæbjörn deu um sorriso constrangido.

 

- Róslín insistiu em vir. É que ela ouviu falar sobre sua, ahn, situação infeliz. Disse que gostaria de ter certeza de que estavam bem.

 

- Gentil da parte dela - murmurou entredentes trincados.

 

Róslín chegou perto.

 

- Que belo tempo! - gritou, como uma criança, lançando um braço no ar. - Vamos torcer para que continue assim para o feno. Bom dia, Margrét!

 

A esposa de Snæbjörn estava em adiantada fase de gravidez do décimo primeiro filho; sua barriga se projetava adiante, erguendo a frente do vestido e revelando tornozelos inchados, molhados de sereno. Seu rosto redondo estava vermelho pelo esforço de andar, e ela ofegava, os seios subindo e descendo sobre a barriga rotunda.

 

- Pensei em vir com Snæbjörn e Páll fazer uma visita - disse, a filha de cinco anos tropeçando em um pequeno monte de grama e oferecendo um prato coberto a Margrét. - Pão de centeio. Achei que poderia gostar - disse ela.

 

- Obrigada.

 

- Ah, Deus, estou sem fôlego. Velha demais para estar neste estado, mas eles continuam vindo - disse Róslín, alegremente dando tapinhas na barriga.

 

- De fato - observou Margrét, amarga.

 

Snæbjörn tossiu e desviou o olhar de Róslín para Margrét.

 

- Bem, nós, homens, temos o que fazer. Jón está por aí, Margrét?

 

- Em Hvammur.

 

- Está certo. Bem, colocarei Páll para trabalhar e darei uma olhada naquela foice, se não se incomoda que eu remexa na oficina - disse, virando-se para esposa e filhas. - Não afaste Margrét de suas tarefas por muito tempo, hein, Róslín?

 

Ele lançou um breve sorriso para elas, deu meia-volta e começou a se afastar a passos longos e suaves, empurrando o garoto delicadamente para a frente.

 

Róslín riu assim que ele se afastou.

 

- Homens, hein? Não conseguem ficar parados. Vá brincar com sua irmã, Sibba. Não se afaste. Fique por perto.

 

Róslín tirou as filhas do caminho e olhou ao redor da fazenda enquanto falava, como se procurasse alguém. Margrét apoiou o prato de pão de centeio no quadril. A fragrância doce combinada com o cheiro quente e úmido de Róslín a deixou enjoada. Teve um acesso de tosse que sacudiu seu corpo de tal forma que Róslín teve de agarrar o prato de pão antes que caísse na grama.

 

- Calma, Margrét. Respire devagar. Ainda não melhorou?

 

Margrét esperou que o acesso passasse, depois cuspiu uma massa viscosa na grama.

 

- Já estou bem. É só uma tosse de inverno.

 

Róslín deu um risinho nervoso.

 

- Mas estamos no auge do verão.

 

- Estou bem - cortou Margrét.

 

Róslín olhou para ela com pena exagerada.

 

- Claro, se você diz. Mas na verdade foi por isso que vim hoje. Estou um pouco preocupada com você.

 

- Mesmo? - murmurou Margrét. - Por quê?

 

- Bem, seu peito ruim, claro, mas também ouvi alguns rumores nas últimas semanas. Tudo absurdo, tenho certeza, mas ainda assim... - disse Róslín, a cabeça inclinada para o lado e o rosto gordo se abrindo em um sorriso com covinhas. - Mas aqui estou eu me adiantando sem sequer pensar em perguntar se está ocupada.

 

Ela olhou por sobre o ombro de Margrét na direção da cabana, levando a mão à testa para proteger os olhos do sol.

 

- Espero não estar interrompendo. Você parecia estar aqui com alguém. Uma mulher de cabelos escuros. Visitante? - perguntou Róslín, fazendo uma expressão de educada indiferença.

 

Margrét suspirou, incomodada.

 

- Você tem olhos bons, Róslín.

 

- Ah. Ingibjörg, talvez? - perguntou Róslín, erguendo uma sobrancelha. - Então vou embora e deixarei as duas amigas em paz.

 

Margrét lutou contra a vontade de erguer os olhos para o céu.

 

- Não.

 

- Claro que não, cedo demais para uma visita dela - disse Róslín, piscando. - Uma nova criada? Você precisa de toda ajuda que conseguir para o feno.

 

- Bem, não exatamente...

 

- Uma parenta, então? - continuou Róslín, avançando um passo.

 

Margrét suspirou. Pigarreou, percebendo que não havia como evitar o interrogatório de Róslín.

 

- A mulher que você viu foi instalada comigo pelo comissário distrital Björn Audunsson Blöndal.

 

- Mesmo? Que estranho. Para quê?

 

- A mulher se chama Agnes Magnúsdóttir. É uma das criadas condenadas pelo assassinato de Natan Ketilsson e Pétur Jónsson e foi colocada sob custódia conosco até a data de sua execução - contou Margrét, cruzando os braços firmemente sobre o peito e olhando de maneira desafiadora para Róslín.

 

Róslín colocou o pão no chão de modo a poder demonstrar melhor seu horror e exclamou:

 

- Agnes! Você está se referindo a Agnes e Fridrik? Os assassinos de Natan Ketilsson! - disse, levando as mãos às bochechas coradas e fitando Margrét com olhos arregalados. - Mas Margrét! Essa é exatamente a razão pela qual vim. Ósk Jóhannsdóttir disse que esteve com Soffia Jónsdóttir, cujo irmão Jóhann é ajudante em Hvammur, e ela contou que Blöndal decidiu tirar Agnes de Stóra-Borg por não poder se arriscar a ter uma família importante sendo massacrada...

 

Róslín parou, percebendo o equívoco. Margrét apertou os lábios e olhou com raiva para ela.

 

- Ah, Margrét, eu não quis... - disse, as bochechas redondas enrubecendo.

 

- Sim, Róslín. É verdade que Blöndal colocou a assassina conosco e que nem eu nem Jón pudemos dar nossa opinião sobre isso. Mas as razões para a decisão só são conhecidas pelo próprio Blöndal.

 

Róslín anuiu enfaticamente.

 

- Claro. Ósk é uma terrível fofoqueira.

 

- Sim.

 

Róslín continuou a anuir, depois deu um passo à frente e colocou a mão no ombro de Margrét.

 

- Lamento muito por você, Margrét.

 

- Por quê?

 

- Por quê? Por ter de manter uma assassina sob o teto de sua família! Por ser obrigada a olhar para seu rosto medonho todos os dias! Pelo medo que deve inspirar em você, por si mesma e por seu marido e suas pobres filhas!

 

Margrét fungou.

 

- O rosto dela não é tão medonho - disse, mas Róslín não estava escutando.

 

- Na verdade, eu sei muito sobre o caso, Margrét, e deixe-me alertá-la: ouvi coisas diabólicas sobre os três indecentes que tiraram a vida dos bons Natan Ketilsson e Pétur Jónsson!

 

- Acho que "bons" não é uma palavra que muitos escolheriam para Natan e Pétur.

 

- Ah! Mas eles eram bons! Cometeram erros, claro...

 

- Pétur cortou a garganta de trinta ovelhas, Róslín. Ele era um ladrão.

 

- Mas ainda assim eram nobres islandeses. Ah, e pensar na família de Natan! Seu irmão Gudmundur, a esposa e os filhinhos. Você sabe que eles foram para Illugastadir consertar a cabana e a oficina de Natan.

 

- Róslín, se ouvi bem, Natan passava mais tempo na cama de mulheres casadas que em sua oficina em Illugastadir!

 

Róslín ficou chocada.

 

- Margrét?

 

- É só que... - começou Margrét, hesitando e virando-se para olhar em direção à entrada escura da cabana. - Nada é simples - murmurou finalmente.

 

- Você acredita que eles mereciam morrer?

 

Margrét bufou.

 

- Claro que não.

 

Róslín a olhou com cautela.

 

- Você sabe que ela é culpada, não sabe?

 

- Sim, eu sei que ela é culpada.

 

- Bom. Então deixe-me dizer, é melhor ficar atenta... Como é mesmo o nome dela?

 

- Agnes - respondeu Margrét suavemente. - Você sabe disso, Róslín.

 

- Sim. Agnes Magnúsdóttir, é ela. Tome cuidado. Sei que não há muito que possa fazer, mas peça ao comissário distrital um guarda para vigiá-la. Mantenha as mãos dela amarradas! As pessoas dizem que Agnes é a pior dos três condenados. O garoto, Fridrik, estava sob o encanto dela, e ela obrigou a outra garota a ficar vigiando e a amarrou ao batente da porta para ter certeza de que não escaparia! - disse Róslín, dando um passo à frente e colando seu rosto no de Margrét. - Ouvi que foi ela quem esfaqueou Natan dezoito vezes. Uma depois da outra.

 

- Dezoito vezes, tudo isso? - murmurou Margrét. Ela queria desesperadamente que Snæbjörn voltasse para pegar a esposa.

 

- No estômago e na garganta - disse Róslín, o rosto corado de excitação. - E... Ah, e o Senhor nos abençoe, até no rosto! Ouvi que ela cravou a faca na órbita dele. Furou-a como uma gema de ovo.

 

Róslín agarrou o ombro de Margrét com força.

 

- Se eu fosse você, não iria nem cochilar com ela no mesmo aposento! Preferiria dormir no estábulo a correr esse risco. Ah, Margrét, não consigo acreditar que os rumores eram verdadeiros! Assassinos na nossa porta! A paróquia degenerou. Pior do que as coisas que você ouve falar sobre Reykjavík. E ela, agora há pouco, em pé no mesmo lugar em que minhas filhas brincam. Isso me dá arrepios. Olhe meus braços, estou toda arrepiada! Minha pobre Margrét, como você vai dar conta?

 

- Eu dou um jeito - disse Margrét secamente, pegando o prato de pão de centeio de Róslín.

 

- Mas como? E onde está Jón para protegê-la?

 

- Em Hvammur, com Blöndal. Como eu já disse.

 

- Margrét! - exclamou Róslín, lançando as mãos no ar. - É maldade de Blöndal deixar você e as meninas sozinhas com essa mulher! Vou lhe dizer, eu devia ficar com você.

 

- Você não fará tal coisa, Róslín, mas obrigada por sua preocupação - disse Margrét com firmeza. - Agora, detesto deixá-la, porém as ovelhas não vão se ordenhar sozinhas.

 

- Posso ajudá-la? - perguntou Róslín. - Aqui, deixe que eu pegue o pão e o leve para dentro para você.

 

- Adeus, Róslín.

 

- Talvez se eu pudesse vê-la, conseguiria avaliar seu risco. Nosso risco! O que fazer para impedir que ela espreite à noite?

 

Margrét pegou Róslín pelo cotovelo e virou-a na direção de onde viera.

 

- Obrigada por sua visita, Róslín, e obrigada pelo pão de centeio. Cuidado com o terreno.

 

- Mas...

 

- Adeus, Róslín.

 

Róslín deu um olhar em direção à cabana, ensaiou um sorriso e se arrastou pesadamente colina abaixo, na direção de Gilsstadir. Suas garotinhas a seguiram. Margrét ficou em pé, braços cruzados sobre o peito, e as observou partir até que não fossem mais do que pontos a distância, depois se agachou e tossiu até a língua ficar escorregadia. Cuspiu na grama. Em seguida levantou devagar, virou-se e caminhou de volta à cabana.

 

Quando entro no badstofa vejo que o oficial que dormia partiu. Deve ter se reunido aos amigos; posso ouvir homens conversando em uma mistura de dinamarquês e islandês do lado de fora da janela. Eles não devem ter visto a senhora da fazenda me empurrar de volta para dentro. As duas filhas adormecidas também partiram. Estou só.

 

Estou só.

 

Não há olho vigilante, nenhum guarda à porta, nada de corda, algemas, trancas, e estou sozinha e solta. Fico paralisada com a ideia. Certamente alguém está olhando pelo buraco da fechadura. Certamente alguém se escondeu em uma rachadura na parede e está esperando para ver o que farei, esperando para invadir o aposento com um dedo apontando para minha garganta como uma faca.

 

Mas não há ninguém. Nem uma alma.

 

Estou em pé no centro do aposento e deixo que meus olhos se acostumem ao escuro. Sim, estou sozinha, e um tremor de empolgação percorre minha pele, como o tremer na superfície de uma panela de água prestes a ferver. Nesse minuto posso fazer qualquer coisa: posso examinar a cabana, deitar, falar em voz alta ou cantar. Posso dançar, praguejar ou rir, e ninguém saberá.

 

Eu poderia escapar.

 

Uma bolha de medo percorre minha coluna. É a mesma sensação de ficar em pé no gelo e de repente ouvi-lo rachar sob seu peso - ao mesmo tempo excitante e aterrorizante. Em Stóra-Borg eu sonhava em escapar. Em encontrar a chave de meus ferros e fugir - nunca pensava para onde poderia ir. Nunca havia uma oportunidade. Mas aqui, agora, poderia sair para o pátio e descer correndo até o final do vale, para longe das fazendas, esperar e escapar à noite para as montanhas, onde o céu me cobriria com sua mão cinzenta e áspera. Poderia fugir para os campos. Mostrar a eles que não podem me manter trancada, que sou uma ladra do tempo e vou roubar as horas negadas a mim!

 

Partículas de poeira vagam à luz do sol que penetra pela membrana seca presa à janela. Enquanto olho para elas, a excitação da fuga é sugada, como água descendo por um gêiser. Eu estaria apenas trocando uma sentença de morte por outra. Nas montanhas, nevascas uivam como viúvas de pescadores, e o vento queima a pele de seu rosto. O inverno surge como um soco no escuro. Os lugares desabitados são tão cruéis quanto qualquer carrasco.

 

Meus joelhos fraquejam quando cambaleio até minha cama. De olhos fechados, o silêncio do aposento me pressiona como uma mão pesada.

 

Quando meu coração desacelera, olho para onde o oficial dormiu, o lençol retorcido e o colchão gasto exposto. Talvez, se a cama ainda estiver quente, ele esteja por perto. Parece invasivo tocar no colchão nu, mas está frio. Ele partiu. Minha cama está feita. Passo as mãos sobre o cobertor fino que o uso deixou liso. Quantos outros corpos deitaram aqui antes de mim? Quantos pesadelos foram produzidos sob esse tecido?

 

O piso é coberto de tábuas, mas as paredes e o teto, não, e a turfa precisa de conserto. Placas de vegetação seca desgastadas caíram, deixando fissuras na parede e o aposento exposto a correntes de ar. Será frio no inverno.

 

Mas eu poderei estar morta antes disso.

 

Rápido! Afaste esse pensamento.

 

Grama morta pende sinistramente do teto inclinado, como cabelos sujos. Alguns poucos ornamentos esculpidos foram dispostos nas vigas, e há uma cruz pregada no frontão acima da entrada.

 

Será que eles cantam hinos no inverno aqui? Talvez em vez disso recitem sagas - eu prefiro uma história a uma prece. Eles me açoitaram por isso uma vez nesta fazenda, Kornsá, quando era jovem e responsável por cuidar do campo. O fazendeiro Björn não gostou que eu conhecesse as sagas melhor que ele. Você fica melhor na companhia das ovelhas, Agnes. Livros escritos pelo homem e não por Deus são amigos traiçoeiros, não é coisa para você.

 

Eu teria acreditado nele, não fosse por minha mãe adotiva Inga e as lições que ela me dava aos sussurros enquanto ele cochilava à noite.

 

Perto da entrada, junto à cama da senhora, há uma cortina de lã cinza que foi pregada em um beiral. Suponho que sirva de porta para o cômodo adiante. A cortina é curta, e no espaço acima do piso é possível ver as pernas de uma mesa. Estão levemente lascadas, como se alguém as tivesse mastigado.

 

O badstofa está quase tão nu quanto era anos atrás, embora pequenas tábuas tenham sido pregadas entre as vigas inclinadas e os apoios de parede que servem de prateleiras. Elas guardam as coisas habituais - potes de madeira, chifres de carneiro, um cachimbo, ossos de peixe, luvas e agulhas de tricô. Há uma pequena arca pintada sob uma das camas. Um chinelo abandonado aguarda conserto. A familiaridade das coisas cotidianas pode ser reconfortante. Eu um dia tive coisas assim. Meu saco branco com as flores secas. A pedra que mamãe me deu antes de partir. Isso lhe dará sorte, Agnes. É uma pedra mágica. Coloque embaixo da língua e conseguirá falar com os pássaros.

 

Aquela pedra passou dias em minha boca. Se os pássaros entenderam minhas perguntas, nunca se importaram em responder.

 

Kornsá, do distrito de Húnavatn. Fui deixada nesta porta com um beijo e uma pedra da mamãe e agora, vinte e três invernos depois, sou arrastada novamente para cá por causa de dois homens mortos e um incêndio. Trabalhei em mais fazendas do Norte do que seria a minha cota. Mas a pobreza desgasta essas casas até que pareçam todas iguais, e todas têm em comum a ausência de coisas que deveriam estar ali. Eu poderia muito bem ter passado a vida toda em um lugar só.

 

Então é isso. Kornsá, meu último canto escuro. A última cama, o último teto, o último piso. O último de tudo causa dor, como se não restasse mais nada além da fumaça de fogueiras abandonadas. Devo fingir que ainda sou uma criada e que estes são meus novos alojamentos, e devo pensar em todas as tarefas que executarei e como farei minha senhora comentar a destreza de meus dedos. Eu costumava pensar que se trabalhasse duro poderia um dia ser a senhora. Mas não aqui. Não em Kornsá.

 

Kornsá. A palavra fica revirando em minha cabeça, de modo que preciso dizê-la em voz alta discretamente e sentir o som. Digo a mim mesma que é apenas outra fazenda e canto suavemente o nome de todos os lugares onde vivi. É como um encanto: Flaga, Beinakelda, Litla-Giljá, Brekkukot, Kornsá, Gudrúnarstadir, Gilsstadir, Gafl, Fannlaugarstadir, Búrfell, Geitaskard, Illugastadir.

 

De todos os nomes, um é um equívoco. Um é um pesadelo. O degrau que você não percebe na escuridão.

 

O nome é tudo o que deu errado. Illugastadir, a fazenda junto ao mar, onde o ar suave soa com o clangor da oficina de ferreiro, as gaivotas gritam, e focas rolam sobre sua gordura. Illugastadir, onde a noite é iluminada por fogo, onde a fumaça surge no começo da manhã para engolir as estrelas, e em ruínas, sempre Illugastadir, embalando corpos mortos em sua gaiola de vigas queimadas.

 

Do lado de fora os oficiais caem na gargalhada. Um deles fala sobre seu primo rico de Helgavatn.

 

- Temos de ir até lá ajudá-lo a se livrar de todo aquele brandy! - sugere um.

 

- Sim! E de sua esposa e filhos! - grita outro. Eles riem novamente.

 

Alguém vai ficar para garantir que eu não fuja? Para garantir que eu não acenda as lamparinas, caso queira espalhar a chama pelo chão? Para garantir que eu tenha as mãos limpas e a língua parada, e as pernas juntas, e os olhos baixos?

 

Agora sou propriedade da Coroa.

 

Espero que todos partam hoje.

 

Enquanto me esforço para escutar a conversa dos oficiais, percebo que algo foi escondido sob a cama à minha frente, algo brilhante. É um broche de prata, uma coisa estranha em um aposento tão despido de luxos. Teria sido roubado? Não seria tão estranho neste vale, onde as pessoas pegam ovelhas e cortam as marcas de suas orelhas antes que o rebanho se espalhe e homens deixam crescer as unhas para pegar moedas. Há muitos fazendeiros e empregados ladrões que sentiram o açoite da lei nesta região. Mesmo Natan tinha as cicatrizes de seu encontro juvenil com a vara de bétula.

 

Pego o broche. É inesperadamente pesado.

 

- Largue isso! - Uma jovem esguia está em pé com as pernas separadas, os braços levantados ao lado do corpo. - Isso é meu!

 

Largo o broche, e ambas nos encolhemos quando ele cai no chão. A garota tem ossos pequenos e é baixa, com cílios claros destacando-se contra o azul-escuro dos olhos. A cabeça está coberta com um lenço. Há um pequeno calombo no nariz.

 

- Steina!

 

A garota não se move, apenas olha do umbral para mim. Está com medo de mim, acho.

 

Outra garota passa pela porta. Deve ser a irmã, mas é mais alta, com olhos escuros, e a pele do nariz é salpicada de sardas.

 

- Róslín e sua cria estão...

 

Ela para quando me vê.

 

- Ela estava tocando no meu presente de crisma.

 

- Achei que mamãe a tivesse levado para fora.

 

- Eu também.

 

Elas me encaram.

 

- Mamãe! Mamãe! Venha aqui!

 

Margrét entra com dificuldade, limpando a boca. Vê o broche de prata no chão junto aos meus pés, e o sangue some do seu rosto. A boca se abre.

 

- Ela estava tocando nele, mamãe. Eu a flagrei.

 

Margrét fecha os olhos e passa a mão sobre os lábios, como se sentisse dor. Quero tocar o braço dela. Quero tranquilizá-la. Ela vem na minha direção, agora furiosa, e ouço o tapa antes de senti-lo. Um estalo seco. Uma onda de dor ardente.

 

- O que eu lhe disse? - grita ela. - Você não vai tocar em nada nesta casa! - diz, respirando pesado e apontando com a mão para meu rosto. - Considere-se com sorte por eu não relatar esse incidente.

 

- Não sou ladra - digo.

 

- Não, é uma assassina.

 

A garota de olhos azuis cospe as palavras, e covinhas surgem em suas bochechas. O lenço escorregou, e um cacho de cabelos muito louros cai sobre a testa. O rosto está afogueado.

 

- Lauga, pegue Steina e vão para a cozinha.

 

Elas partem. Margrét agarra minha manga.

 

- Siga-me! - diz, arrastando-me para fora do aposento. - Você pode provar que se penitencia trabalhando como um cão.

 

O reverendo Tóti acordou bem cedo e não conseguiu voltar a dormir. Era esperado novamente em Kornsá. Levantou-se e vestiu-se com relutância, saindo para o ar fresco revigorante da manhã, e começou a fazer as tarefas da fazenda e da igreja. Reuniu o pequeno rebanho de ovelhas do pai e as ordenhou com cuidado exagerado, sussurrando o nome delas e passando os dedos pelas orelhas peludas.

 

O meio da manhã chegou e passou, e o sol avermelhou o céu. Tóti deu comida e água para a vaca, Ýsa, depois começou a tirar a roupa do muro de pedra da igreja onde o pai a colocara para secar.

 

- Você não precisa fazer isso - disse o reverendo Jón, caminhando da cabana em sua direção.

 

- Eu não me importo - disse Tóti sorrindo. Tirou uma semente de grama de uma meia.

 

Seu pai deu de ombros.

 

- Achei que estivesse a caminho de Vatnsdalur.

 

Tóti fez uma careta.

 

- Por que está mexendo com a roupa quando tem de ir vê-la?

 

Tóti parou e olhou para Jón, que sacudia uma calça ao vento.

 

- Não sei o que dizer - falou, fazendo uma pausa antes de continuar. - O que o senhor lhe diria?

 

Seu pai deu um tapa em seu ombro com a mão grossa e olhou feio para ele.

 

- Vá - falou. - Quem disse que você terá de dizer algo? Vá.

 

Margrét me leva através do pátio para me mostrar o pequeno canteiro de levísticos e angélicas, depois vou ajudá-la a ordenhar as ovelhas. Imagino que ela não confie em me deixar sozinha de novo. O garotinho que chegou mais cedo já havia reunido os animais. Margrét o identifica como Páll, mas não nos apresenta, e ele não chega perto de mim, embora me encare, boquiaberto.

 

Depois queimamos meu vestido.

 

Eu o fiz há dois anos. Sigga e eu fizemos um cada uma - um vestido de trabalho, azul e simples -, com o tecido que Natan nos dera.

 

Ah, se soubesse que o vestido que fizera seria meu único aquecimento em um aposento que fedia a pele azeda. Se soubesse que o vestido seria um dia colocado no escuro, apressadamente, para ser encharcado de suor enquanto eu corria na hora das bruxas[2] até Stapar, com berros de acordar os mortos.

 

Margrét me dá um pouco de leite quente do balde para beber, e então entramos na cozinha, onde as filhas estão preparando o fogo com estrume. Elas se encolhem junto à parede quando entro.

 

- Tire a chaleira do gancho, Steina - diz Margrét para a garota sem graça. Depois pega minhas roupas imundas do canto e as joga no fogo sem cerimônia. - Isso - diz, soando satisfeita.

 

Observamos o vestido de lã queimar lentamente até nossos olhos se encherem de água por causa da fumaça e Margrét tossir, então somos obrigadas a sair e trabalhar em outro lugar enquanto minhas roupas queimam. As filhas entram na despensa.

 

Aquele vestido era meu último bem. Agora não há nada no mundo que eu possua; mesmo o calor que meu corpo produz é tomado pela brisa de verão.

 

O canteiro de ervas em Kornsá está descuidado e cheio de mato, cercado por um muro de pedra grosseiro que desabou em uma das pontas. A maioria das plantas deu sementes, as raízes queimadas pelo gelo apodrecem no clima mais quente, mas há tanacetos e pequenas ervas amargas de que me lembro da oficina de Natan em Illugastadir, e a angélica tem um cheiro doce.

 

Retiramos ervas daninhas e, ao encontrarmos os tufos de mato que crescem ao redor das plantas mais saudáveis, os arrancamos da terra. Gosto de sentir as raízes cedendo e a goma em meus dedos quando os caules estalam, embora meus pulmões queimem. Eu enfraqueci. Mas não me rendo.

 

Há um prazer em estar acocorada com a saia embolada ao redor de mim e o cheiro da fumaça do fogo de estrume em meus cabelos. Margrét trabalha furiosamente e respira pesado. No que estará pensando? Suas unhas estão pretas de terra, e ela mexe no solo com urgência. Os olhos estão vermelhos por causa da fumaça na cozinha; quando ela pigarreia, ouço barulho de catarro.

 

- Volte à cabana e peça a minhas filhas que venham aqui - diz ela de repente. - Depois tire as cinzas do braseiro e as enterre.

 

Os oficiais estão selando os cavalos no pátio quando retorno à casa desacompanhada. Eles estão em silêncio.

 

- Está tudo bem? - pergunta um deles a Margrét, que o tranquiliza com um gesto da mão suja.

 

A porta da cabana está aberta, provavelmente para deixar sair a fumaça fedorenta. Passo o pé sobre a soleira.

 

Encontro as filhas na despensa, tirando a nata do leite do dia anterior. A mais jovem me vê primeiro e avisa a irmã. As duas recuam alguns passos.

 

- Sua mãe quer que se juntem a ela - digo com um aceno, ficando de lado para que passem. A mais jovem sai do aposento imediatamente, sem desviar os olhos de mim.

 

A mais velha hesita. Qual o apelido dela? Steina. Pedra.[3] Ela me lança um olhar peculiar e abaixa o rodo lentamente.

 

- Acho que conheço você - diz ela.

 

Não falo nada.

 

- Você trabalhou neste vale antes, não foi?

 

Confirmo num gesto.

 

- Conheço você. Quero dizer, nos vimos uma vez. Você estava saindo de Gudrúnarstadir exatamente quando vínhamos para cá assumir a propriedade. Nós nos encontramos na estrada.

 

Quando teria sido isso? Maio de 1819. Que idade ela teria então? Não mais de dez.

 

- Tínhamos um cachorro conosco. Um preto e branco. Lembro-me de você porque ele começou a latir e a pular, e papai o afastou de você, depois dividimos nosso jantar.

 

A garota examina meu rosto atentamente.

 

- Você era a mulher que encontramos no caminho para Gudrúnarstadir. Lembra-se de mim? Você trançou os cabelos da minha irmã e deu um ovo a cada uma de nós.

 

Duas garotinhas chupando ovos na estrada, bainhas encharcadas de lama. A mancha de um cachorro magro caçando seu reflexo na água e o céu azul irregular e imenso. Três corvos voando em linha. Um bom presságio.

 

- Steina!

 

A caminhada de Gudrúnarstadir para Gilsstadir em uma primavera gelada. 1819. Cem pequenas baleias encalharam perto de Thingeyrar. Um mau presságio.

 

- Steina!

 

- Já vou, mamãe - diz Steina, virando-se para mim. - Estou certa, não estou? Era você.

 

Dou um passo na direção dela.

 

A senhora da fazenda entra apressada.

 

- Steina! - diz, olhando para mim, depois para a filha. - Fora!

 

Ela agarra o braço da garota e a arranca da sala.

 

- As cinzas. Agora!

 

Do lado de fora, a brisa levanta da pá um punhado de cinzas do meu vestido e as joga contra o azul do céu. Os flocos cinzentos flutuam e mergulham, dissolvendo-se no ar. Isso é alegria, esse calor em meu peito? Como a mão de alguém colocada ali?

 

Talvez consiga fingir que meu antigo eu está aqui.

 

- Vamos começar com uma prece? - perguntou o reverendo assistente Thorvardur Jónsson.

 

Ele e Agnes estavam sentados do lado de fora da entrada da cabana, em um pequeno monte de turfa cortada que havia sido preparada e estocada para restaurações. O reverendo tinha o Novo Testamento em uma das mãos e uma fatia de pão de centeio bastante murcho com manteiga na outra, que Margrét lhe dera. Pelo de cavalo caíra de suas roupas no pão.

 

Agnes não respondeu à pergunta do reverendo. Ficou sentada com os dedos no colo, levemente curvada, olhando a fila de oficiais de partida. Havia cinzas em seus cabelos. O vento diminuíra, e de vez em quando um grito ou risada dos oficiais podiam ser ouvidos, interrompendo os sons suaves produzidos por Margrét e as filhas arrancando ervas daninhas do canteiro. A mais velha erguia a cabeça para espiar o pastor e a criminosa.

 

Tóti olhou para o livro que tinha nas mãos e pigarreou.

 

- Acha que devemos começar com uma prece? - perguntou novamente, mais alto, achando que Agnes não havia escutado.

 

- Começar o que com uma prece? - retrucou ela em voz baixa.

 

- Be-bem - gaguejou Tóti, apanhado desprevenidamente. - Sua absolvição.

 

- Minha absolvição? - repetiu Agnes. Balançou a cabeça levemente.

 

Tóti enfiou o pão na boca depressa e o mastigou, engolindo-o ruidosamente. Limpou as mãos na camisa, depois folheou as páginas de seu Novo Testamento, acomodando-se nas placas de turfa. Ainda estavam molhadas da noite anterior, e ele podia sentir a umidade penetrando em sua calça. Um lugar idiota para sentar, pensou. Ele deveria ter permanecido do lado de dentro.

 

- Recebi uma carta do comissário distrital Blöndal há pouco mais de um mês, Agnes - disse ele, fazendo uma pausa. - Posso chamá-la de Agnes?

 

- É meu nome.

 

- Ele me informou que você estava infeliz com o reverendo em Stóra-Borg e desejava que outro religioso passasse o tempo com você antes... Antes, bem, antes... - disse Tóti, a voz murchando.

 

- Antes de eu morrer? - sugeriu Agnes.

 

Tóti anuiu levemente.

 

- Ele disse que você me escolheu.

 

Agnes respirou fundo.

 

- Reverendo Thorvardur...

 

- Pode me chamar de Tóti. Todo mundo chama - interrompeu ele, corando, imediatamente lamentando a intimidade.

 

Agnes fez uma pausa, incerta.

 

- Reverendo Tóti, então. Por que acha que o comissário distrital quer que eu passe tempo com um religioso?

 

- Bem... Suponho que, quero dizer, nós queremos, Blöndal e o clero, e eu... Queremos que você retorne a Deus.

 

A expressão de Agnes endureceu.

 

- Acho que estarei retornando a Ele muito em breve. Por intermédio de um golpe de machado.

 

- Isso não é o que eu... Eu não quis dizer nesse sentido... - Tóti suspirou. Estava indo tão mal quanto ele esperara. - Mas você me escolheu? Tive tempo de dar uma olhada no livro de registros de Breidabólstadur, e você não está registrada lá.

 

- Não - respondeu Agnes. - Eu não estaria.

 

- Nunca foi minha paroquiana ou de meu pai?

 

- Não.

 

- Então por que me escolheu, se nunca nos encontramos?

 

Agnes o encarou.

 

- Não se lembra de mim, não é mesmo?

 

Tóti ficou chocado. Certamente havia algo familiar na mulher, mas, enquanto sua mente percorria as imagens das mulheres que havia conhecido ou encontrado - criadas, mães, esposas, crianças -, ele não conseguia localizar Agnes.

 

- Lamento - disse ele.

 

Agnes deu de ombros.

 

- Você me ajudou uma vez.

 

- Ajudei?

 

- A cruzar um rio. No seu cavalo.

 

- Onde foi isso?

 

- Perto de Gönguskörd. Eu trabalhava em Fannlaugarstadir e estava saindo de lá.

 

- Então você é do distrito de Skagafjördur?

 

- Não. Sou deste vale. Vatnsdalur. Distrito de Húnavatn.

 

- E eu a ajudei a cruzar um rio?

 

- Sim. A passagem estava inundada, e você apareceu a cavalo no momento em que eu estava prestes a cruzar a água a pé.

 

Tóti ficou pensando. Ele passara muitas vezes por Gönguskörd, mas não conseguia se lembrar de ter encontrado uma mulher.

 

- Quando foi isso?

 

- Há seis ou sete anos. Você era jovem, mas usava o colarinho de padre.

 

- Sim, já usava - disse Tóti, a seguir ficando um tempo em silêncio. - Foi por causa daquela gentileza que você me escolheu agora?

 

Ele olhou atentamente para o rosto dela. Ela não parece uma criminosa, pensou. Não desde que tomou um banho.

 

Agnes apertou os olhos e fitou o vale. Sua expressão era inescrutável.

 

- Agnes... - disse Tóti, suspirando. - Sou apenas reverendo assistente. Minha formação não foi concluída. Talvez você precise de um clérigo qualificado, ou quem sabe alguém de seu próprio distrito, que a conheça? Com certeza outras pessoas foram gentis com você, não? Quem era seu reverendo aqui?

 

Agnes enfiou um cacho de cabelos escuros atrás da orelha.

 

- Não conheci muitos religiosos com os quais me importe, e certamente nenhum que eu diria que me conhece - falou.

 

Alguns corvos passaram pelo vale, pousando na cerca de pedra, e Tóti e Agnes viram a cabeça de Margrét se erguer por trás deles.

 

- Que estorvo! - gritou ela. Um torrão de terra voou sobre o muro, e os pássaros levantaram voo. Tóti olhou para Agnes e sorriu, mas ela tinha uma expressão pétrea.

 

- Eles não vão gostar disso - murmurou para si mesma.

 

- Bem - disse Tóti, respirando fundo. - Se você precisa de um conselheiro espiritual, vou considerar meu dever visitá-la. Como o comissário distrital Blöndal assim deseja, virei guiá-la em suas orações, para que possa seguir com fé e dignidade em direção ao que a espera. Vou considerar responsabilidade minha dar a você consolo espiritual e esperança.

 

Tóti ficou em silêncio. Ele ensaiara esse discurso enquanto cavalgava para a fazenda, e estava satisfeito por ter conseguido se lembrar de dizer "consolo espiritual". Soava paternalista e arrogante, como se ele estivesse em um estado elevado de certeza espiritual: um estado em que achava que deveria estar, mas tinha uma sensação vaga e desconfortável de que não estava.

 

Ainda assim, não estava acostumado a falar tão formalmente, e suas mãos suavam sobre o papel-bíblia do Testamento. Fechou o livro com cuidado, preocupando-se em não dobrar nenhuma página, e limpou a palma das mãos nas coxas. Agora seria um bom momento para citar as Escrituras, como seu pai tenderia a fazer, mas ele só conseguia pensar no repentino anseio por seu porta-rapé.

 

- Talvez eu tenha cometido um engano, reverendo - disse Agnes, a voz contida, calma.

 

Tóti não sabia o que dizer. Olhou para os hematomas no rosto dela e mordeu o lábio.

 

- Talvez fosse melhor se você tivesse ficado em Breidabólstadur. Eu lhe agradeço, mas... Você realmente acha...

 

Ela cobriu a mão com a boca e balançou a cabeça.

 

- Minha querida criança, não chore! - exclamou ele, levantando-se das placas de turfa.

 

Agnes afastou as mãos.

 

- Não estou chorando - disse secamente. - Eu cometi um engano. Você me chama de criança, reverendo Thorvardur, mas você mesmo é pouco mais que uma criança. Eu me esquecera de quão jovem é.

 

Tóti não tinha resposta para isso. Ele a encarou, anuiu soturnamente e recolocou o chapéu na cabeça com destreza. Desejou-lhe um bom dia.

 

Agnes o viu passar pelo muro de pedra para se despedir de Margrét e das meninas. O pastor e a mulher ficaram juntos alguns minutos, conversando e olhando para ela. Agnes tentou ouvir o que diziam, mas o vento começara a soprar e levava as palavras para longe. Só quando Tóti cumprimentou Margrét com o chapéu e começou a caminhar até o poste de amarração para pegar seu cavalo, Agnes ouviu Margrét dizer:

 

- Mais fácil arrancar sangue de uma pedra, eu diria!

 

Passamos o resto do dia no trabalho, arrancando ervas daninhas e cuidando das plantas em estado lamentável. Escuto o balido distante das ovelhas. As pobres coitadas parecem magras e disformes com a lã do inverno recém-tirada de suas costas. Depois que o padre partiu, as filhas, Margrét e eu jantamos peixe seco e manteiga. Cuidei de mastigar cada pedaço vinte vezes. Depois voltamos ao jardim, e agora tento consertar o muro, retirando as pedras que deslizaram, separando-as no chão e depois fixando-as no lugar certo, gostando da sensação da massa pesada em minhas mãos.

 

A sensação de irrealidade é tão frequente que sentir o peso das pedras é um modo de me lembrar da própria existência.

 

Margrét e eu trabalhamos em silêncio; ela só fala comigo para me dar ordens. É como se nossa mente estivesse em outro lugar, e penso como é estranho que o acaso tenha me levado de volta a Kornsá, onde morei quando criança. Onde pela primeira vez aprendi o que era sofrer. Penso nos caminhos que escolhi e penso no reverendo.

 

Thorvardur Jónsson, que pede para ser chamado de Tóti, como um filho de fazendeiro. Ele parece imaturo demais para essa posição. Tem maciez na voz e nas mãos. Não são compridas nem manchadas de tintura como eram as de Natan, nem carnudas como as mãos de um ajudante de fazenda, mas pequenas, magras e limpas. Ele as pousara na Bíblia enquanto falava comigo.

 

Cometi um equívoco. Eles me condenam à morte, e peço um garoto para me guiar a ela. Um garoto ruivo que engole seu pão com manteiga e caminha para seu cavalo com o fundilho da calça molhado; esse é o jovem que, eles esperam, vai me colocar de joelhos, prenhe de orações. Esse é o jovem que, eu espero, será capaz de me ajudar, embora não consiga pensar em que nem como.

 

A única pessoa que entenderia o que sinto é Natan. Ele me conhecia como se conhecem as estações, as marés, o cheiro de fumaça; conhecia o que eu era, o que eu queria. E agora ele está morto.

 

Talvez eu devesse dizer a ele: pobre garoto, volte para a casa paroquial e seus preciosos livros. Eu estava errada: não há nada que você possa fazer por mim. Deus teve sua oportunidade de me libertar e por razões que apenas Ele conhece, me prendeu à má sorte, e, embora eu tenha lutado, sou marcada pelo infortúnio; e tenho esse destino cravado em mim até o fundo da alma.

 

Ao vice-governador do Nordeste da Islândia,

 

Obrigado pela ilustre missiva de Sua Excelência de 10 de janeiro deste ano referente às acusações de assassinato, incêndio criminoso e outros crimes feitas contra os réus Fridrik, Agnes e Sigrídur, pelas quais eles foram sentenciados à morte. Em resposta à sua carta, permita-me informá-lo de que B. Henriksson, o ferreiro a quem foi encomendada a feitura do machado a ser usado na execução, estimou em cinco dólares do reino o custo de seu trabalho e materiais, após minhas sugestões sobre a produção e o tamanho do machado em 30 de dezembro do ano passado. Contudo, depois de receber a carta de Sua Excelência, eu pensei, concordando com Sua Excelência, que seria melhor comprar um machado maior de Copenhague pelo mesmo preço, e por isso desde então pedi a Simonsen, o comerciante, para fazer isso por mim.

 

Neste verão, o homem citado, Simonsen, veio a mim com o machado, e, embora tenha sido feito exatamente como pedido, fiquei surpreso ao tomar conhecimento por Simonsen de que custou vinte e cinco dólares do reino. Ao examinar a nota, descobri que a quantia estava correta e fui compreensivelmente obrigado a pagar a fatura de Herr Simonsen com os fundos destinados a este caso por Sua Excelência.

 

Agora, ousando explicar o estado depauperado desses fundos, humildemente pergunto se essa despesa na verdade não deveria ser paga com o dinheiro alocado para este caso, que, entre outras coisas, serve para pagar pela custódia dos prisioneiros. Também pergunto humildemente à Sua Excelência o que deveremos fazer com esse machado depois de ter sido usado para as execuções.

 

O humilde e obediente servo de Sua Excelência.

Comissário Distrital de Húnavatn

Björn Blöndal

 

Tóti deixara Kornsá com a clara intenção de escrever a Blöndal e desistir de sua promessa de acompanhar Agnes em seus últimos momentos. Sua segunda conversa com a criminosa fora um fracasso; ele nem mesmo conduzira uma simples oração. Mas a ideia de que precisaria explicar por que voltara atrás após apenas duas visitas o enchia de temor e constrangimento, e, então, abandonou a redação da carta. Farei isso amanhã, prometera a si mesmo a cada novo dia em Breidabólstadur, mas duas semanas haviam se passado, os camponeses estavam se preparando para a colheita de meados de julho, e ele não tomara da pena.

 

Certa noite, Tóti estava sentado com o reverendo Jón, lendo em silêncio, quando o pai ergueu a cabeça grisalha e perguntou:

 

- A assassina reza?

 

Tóti hesitou antes de responder.

 

- Não estou certo.

 

- Hummm - murmurou o reverendo Jón. - Certifique-se disso.

 

Ele olhou para o filho com olhos remelentos, até Tóti sentir um rubor nas bochechas e no pescoço.

 

- Você é um servo do Senhor. Não se desgrace, rapaz - disse, antes de retornar às Escrituras.

 

Na manhã seguinte, Tóti se levantou para ordenhar Ýsa. Ele apoiou a testa no flanco quente da vaca e escutou o ritmo regular do leite caindo no balde de madeira. A imagem de Agnes sentada ao lado dele surgiu em sua mente. Seu pai sabia que ele não estava visitando Agnes. Ficaria envergonhado de saber que seu filho não podia suportar a responsabilidade da redenção de uma mulher. Mas o que ele poderia fazer com uma mulher nada disposta a se redimir? O que Agnes dissera? Não conhecera um religioso com o qual se importasse. Não parecia ser religiosa, e aquele discursinho idiota que ele redigira sobre consolo espiritual, todas aquelas palavras grandiosas, foram ignoradas. O que então ela queria dele? Por que chamá-lo se não queria falar de Deus? De morte e céu e inferno, e da palavra do Senhor? Porque ele a ajudara a cruzar um rio? Era enervante. Por que não requisitar um amigo ou parente que a ajudasse a aceitar o fim de sua vida?

 

O comissário distrital Blöndal provavelmente não aprovaria.

 

Talvez ela não tivesse nenhum amigo no mundo. Talvez quisesse falar de outras coisas. Como cruzar a passagem de Gönguskörd em uma primavera inundada. De como deixara o vale de Vatnsdalur para trabalhar no leste, ou por que não se interessava por clérigos. Tóti fechou os olhos, sentindo Ýsa, inquieta, deslocar seu peso quente de um lado para o outro sob a testa dele. Para acalmá-la, recitou Hallgrímur Pétursson: "O caminho para Tua Paixão desejo tomar, De minha fraqueza um caráter de fogo criar". Ele abriu os olhos e repetiu o último verso.

 

Quando o balde encheu, decidira retornar a Kornsá.

 

Uma névoa cobria o vale, dificultando que Tóti visse as montanhas enquanto cavalgava pelas espirais fantasmagóricas que pairavam sobre a grama. Ele estremeceu com o frio e enfiou as mãos no calor da crina do cavalo. Hoje eu ajeitarei as coisas com Agnes, pensou.

 

Quando Tóti conteve seu cavalo, passando pelas três estranhas colinas de Thrístapar na boca do vale em direção à garganta verde de Vatnsdalur, o sol da manhã perfurava as nuvens. Seria outro dia claro. Logo as famílias e seus criados estariam espalhados pelos campos, foice na mão, colocando o capim cortado para secar e fazendo o cheiro do feno cortado sufocar o vale. Mas agora, no começo da manhã, Tóti só podia ver os pontos mais altos das montanhas, suas formas marrons ainda escondidas pela faixa de névoa que se dissipava lentamente. Ele ouviu um grito repentino e percebeu Páll, o garoto pastor de Kornsá, conduzindo as ovelhas pela encosta da montanha, um pouco escondido pela névoa. Tóti impeliu seu cavalo para a margem do rio que percorria o vale e passou por Kornsá a distância, seguindo para a cabana inclinada de Undirfell.

 

Um grande fazendeiro com barba por fazer apareceu à porta.

 

- Blessuð. Saudações. Sou Haukur Jónsson.

 

- Saell, Haukur. Sou o reverendo Thorvardur Jónsson. O reverendo de Undirfell está aqui?

 

- Pétur Bjarnason? Não, ele não mora aqui. Mas não fica longe. Entre.

 

Tóti seguiu a forma grandiosa do fazendeiro para dentro da cabana. A moradia era maior que muitas que vira. Havia pelo menos oito pessoas no badstofa, vestindo-se e conversando. Uma menina com olhos grandes segurava no colo um bebê de rosto vermelho que chorava, e duas criadas tentavam enfiar roupas em um garoto mais interessado em seu jogo de pedrinhas no chão. Tão logo viram o reverendo, pararam de falar.

 

- Por favor, sente-se aqui - disse Haukur, apontando para um espaço em uma cama ao lado de uma mulher muito velha, cujo rosto enrugado olhava vazio para o de Tóti. - Essa é Gudrún. É cega. Vou buscar o reverendo caso não se importe de esperar.

 

- Obrigado - disse Tóti.

 

O fazendeiro saiu, e uma jovem de rosto saudável logo entrou no badstofa.

 

- Olá! Então é de Breidabólstadur? Posso oferecer algo para beber? Sou Dagga.

 

Tóti balançou a cabeça, e Dagga tirou o bebê dos braços da garotinha e o apoiou sobre o ombro.

 

- Pobrezinha, passou a noite toda gritando a ponto de acordar os mortos.

 

- Não está passando bem?

 

- Meu marido diz que é cólica, mas temo que seja algo mais grave. Conhece alguma coisa de medicina, reverendo?

 

- Eu? Ah, não. Não mais do que você mesma, lamento.

 

- Deixe para lá. Que pena que Natan Ketilsson esteja morto, que Deus abençoe sua alma.

 

Tóti a encarou.

 

- Perdão?

 

A garota no canto falou:

 

- Ele me curou de coqueluche.

 

- Ele era amigo da família? - perguntou Tóti.

 

Dagga retorceu o nariz.

 

- Não. Não um amigo, mas era um homem útil a quem mandávamos buscar quando as crianças estavam doentes ou precisavam de uma sangria. Quando a pequena Gulla - disse, apontando para a garotinha que havia falado - teve coqueluche, ele passou uma ou duas noites misturando suas ervas e olhando livros em uma língua estrangeira. Sujeito estranho.

 

- Ele era um feiticeiro - disse a mulher velha ao lado dele. A família olhou para ela. - Ele era um feiticeiro - repetiu ela. - E sabia o que ia lhe acontecer.

 

- Gudrún... - disse Dagga, sorrindo nervosa na direção de Tóti. - Temos um convidado. Você vai assustar as crianças.

 

- Natan Satã era o nome dele. Nada do que ele fazia vinha de Deus.

 

- Fique quieta, Gudrún. Isso é só uma história.

 

- Qual é a história? - perguntou Tóti.

 

Dagga passou o bebê chorando para o outro lado do quadril.

 

- Nunca ouviu?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Não, eu estava estudando no Sul. Em Bessastadir.

 

Dagga ergueu as sobrancelhas.

 

- Bem, é só uma coisa que as pessoas falam no vale. Há gente aqui que alega que a mãe de Natan Ketilsson tinha visões; ela sonhava coisas, e elas aconteciam, entende? Quando estava grávida de Natan, sonhou que um homem ia até ela e dizia que teria um menino. O homem no sonho perguntou se daria ao menino seu nome, e quando ela concordou, o homem disse que seu nome era Satã.

 

- Ela entrou em pânico - interrompeu Gudrún, franzindo o cenho. - O padre mudou para Natan, e eles acharam que era decente. Mas todos nós sabíamos que aquele garoto nunca daria nada de bom. Ele era um gêmeo, porém seu irmão nunca viu a luz de Deus: um para cima, um para baixo - disse ela, movendo-se lentamente na cama e levando o rosto para mais perto do de Tóti. - Ele nunca estava sem dinheiro. Ele lidava com o Diabo - sussurrou.

 

- Ou ele era apenas um herborista ganancioso, que cobrava mais do que deveria - Dagga sugeriu alegremente. - Como falei, é apenas algo que as pessoas dizem.

 

Tóti anuiu.

 

- Seja como for, o que o traz a Vatnsdalur, reverendo?

 

- Sou o padre de Agnes Magnúsdóttir.

 

O sorriso sumiu do rosto da mulher.

 

- Ouvi dizer que ela foi levada a Kornsá.

 

- Sim.

 

Tóti viu as duas criadas trocando olhares. Ao seu lado, Gudrún tossiu violentamente. Ele sentiu a saliva respingar em seu pescoço.

 

- O julgamento aconteceu em Hvammur - continuou Dagga.

 

- Sim.

 

- O senhor sabe que ela é deste vale.

 

- Por isso estou aqui - disse Tóti. - Em Undirfell, quero dizer. Quero descobrir no livro de registros algo sobre a vida dela.

 

A expressão da mulher se tornou amarga.

 

- Eu poderia lhe contar algo sobre a vida dela - disse, hesitando e depois ordenando que as criadas levassem as crianças para fora, em seguida esperando que deixassem o aposento antes de voltar a falar. - Ela sempre teve aquilo dentro dela.

 

Dagga falou em voz baixa, lançando um olhar para Gudrún, que recostara na parede e parecia cochilar.

 

- O que quer dizer? - perguntou Tóti.

 

A mulher fez uma careta e se aproximou.

 

- Odeio dizer isso, mas Agnes Magnúsdóttir nunca se importou com ninguém além dela mesma, reverendo. Tinha uma espécie de fixação em subir na vida. Queria ir acima de sua posição.

 

- Ela era pobre?

 

- Era uma bastarda miserável com um espírito conspirativo que você nunca veria em uma verdadeira criada.

 

Tóti estremeceu com as palavras da mulher.

 

- Vocês não tinham boas relações.

 

Dagga riu.

 

- Não exatamente. Agnes era de um tipo diferente.

 

- E que tipo é esse?

 

Dagga hesitou.

 

- Há algumas pessoas que se contentam com seu lugar no mundo, e dou graças a Deus por elas. Porém não ela.

 

- Mas você a conhecia?

 

A mulher transferiu a criança choramingando para o outro lado do quadril.

 

- Nunca partilhamos um badstofa, mas eu a conheço, reverendo. Todo mundo se conhece neste vale. Costumava haver um poema sobre ela por aqui, quando era mais jovem. As pessoas então gostavam dela e a chamavam de Búrfell-Agnes. Mas ela se tornou amarga ao envelhecer. Algo nela não lhe permitia prender um homem. Não conseguia se aquietar. Este vale é pequeno, e ela tinha fama de língua afiada e saia solta.

 

Alguém pigarreou no umbral. O fazendeiro havia voltado com outro homem, que bocejava e coçava a barba por fazer no pescoço.

 

- Reverendo Thorvardur Jónsson, por favor, conheça o reverendo Pétur Bjarnason.

 

A igreja de Undirfell era uma pequena casa de adoração com não mais de seis bancos e um espaço para ficar de pé nos fundos. Não era grande o bastante para todos os fazendeiros do vale, pensou Tóti enquanto o reverendo Pétur distraidamente empurrava os óculos de aro de metal para o alto do nariz.

 

- Ah, eis a chave - disse o padre, curvando-se sobre uma arca no altar e mexendo no cadeado. - Disse que está em Kornsá?

 

- Não, apenas de visita - disse Tóti.

 

- Melhor você do que eu, imagino. Como está a família lá?

 

- Não os conheço bem.

 

- Não, quero dizer, como eles estão aceitando o fato de terem de ficar com a assassina?

 

Tóti pensou nas palavras raivosas de Margrét na noite em que Agnes chegou de Stóra-Borg.

 

- Um pouco aborrecidos, talvez.

 

- Eles cumprirão seu dever. Uma família bastante agradável. A filha mais nova é uma beleza. Aquelas covinhas. Conscienciosa e rápida como um açoite.

 

- Lauga, não é?

 

- Isso. Supera em muito a irmã.

 

O padre levou um grande livro encadernado em couro para o altar.

 

- Aqui estamos. Agora, qual a idade dela?

 

- Da filha? Não saberia dizer.

 

- Não, da assassina, meu garoto.

 

Tóti enrijeceu de desprazer ao ser chamado de garoto.

 

- Não estou certo. Mais de trinta anos, eu diria. Não a conhece?

 

O padre fungou.

 

- Só passei aqui um inverno.

 

- Isso é uma pena. Esperava descobrir com o senhor algo sobre o caráter dela.

 

O padre debochou.

 

- Certamente o corpo morto de Natan Ketilsson é um bom indício do seu caráter.

 

- Talvez. Mas eu gostaria de saber um pouco da vida dela antes do incidente em Illugastadir.

 

O reverendo Pétur Bjarnason baixou os olhos para Tóti.

 

- Você é extremamente jovem para ser o padre dela.

 

Tóti corou.

 

- Ela me chamou.

 

- Bem, se há algo que mereça ser sabido sobre seu caráter, estará no livro de registros - disse o reverendo Pétur, virando cuidadosamente as páginas amarelas com caligrafia quase ilegível. - Aqui está. 1795. Nascida de Ingveldur Rafnsdóttir e Magnús Magnússon, na fazenda de Flaga. Não casados. Filha ilegítima. Nascida em 27 de outubro e batizada no dia seguinte. O que mais gostaria de saber?

 

- Os pais não eram casados?

 

- É o que está escrito aqui. Diz "o pai vive em Stóridalur. Nada mais que seja digno de nota". E agora, o que mais deseja? Quer que olhemos sua crisma? Está aqui. O comissário distrital Blöndal me fez mandar os detalhes para ele há alguns meses - disse o padre, fungando e empurrando os óculos para o alto do nariz. - Eis a notícia. Você mesmo pode ler.

 

Ele saiu do caminho para deixar Tóti se inclinar sobre a página.

 

- Em 22 de maio de 1809 - leu Tóti em voz alta. - Crismada aos catorze com - disse, fazendo uma pausa para contar. - Cinco outros. Mas ela deveria ter treze.

 

- Como é? - perguntou o padre, virando-se da janela pela qual estava olhando.

 

- Aqui diz que ela tinha catorze. Mas em maio ela teria treze.

 

O padre deu de ombros.

 

- Treze, catorze. Que diferença faz?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Nenhuma. O que diz aqui?

 

O padre se inclinou sobre o livro. Tóti sentiu seu hálito. Cheirava a brandy e peixe.

 

- Vamos ver. Três dessas crianças, Grímur, Sveinbjörn e Agnes, aprenderam todo o Kverið. Depois prossegue. Você sabe, os comentários habituais.

 

- Ela se saiu bem?

 

- Diz que ela tinha "um intelecto excelente e forte conhecimento e compreensão do cristianismo". Uma vergonha não ter seguido esses ensinamentos.

 

Tóti ignorou o último comentário.

 

- Um intelecto excelente - repetiu.

 

- É o que diz. Agora, reverendo Thorvardur, vai nos manter aqui no frio estudando árvores genealógicas por mais algum tempo ou podemos retornar à bela esposinha de Haukur para comida e café da manhã, caso seja possível?

 

- Reverendo Tóti! - exclamou Margrét, abrindo a porta menos de três segundos após o jovem ter batido com força em sua superfície. - Gentileza sua nos visitar. Achamos que poderia ter voltado para o Sul. Entre.

 

Ela tossiu e escancarou a porta, e Tóti percebeu que estava equilibrando um saco pesado no quadril.

 

- Deixe que pego isso para a senhora - ofereceu ele.

 

- Não se preocupe, não se preocupe - grunhiu Margrét, chamando-o para o corredor. - Sou totalmente capaz. Os trabalhadores voltaram de Reykjavík carregados de mercadorias - falou, virando-se para ele com um pequeno sorriso.

 

- Entendo. Dos comerciantes - disse Tóti.

 

Margrét anuiu.

 

- Não foi ruim. Sem carunchos na farinha, diferente do ano passado. Sal, e também açúcar.

 

- Fico contente em saber.

 

- Gostaria de um café?

 

- Você tem café? - reagiu Tóti, surpreso.

 

- Vendemos todas as coisas de lã e um pouco de carne curada. Jón está lá fora, amolando as foices para a colheita. Quer um pouco? - disse, conduzindo o reverendo ao badstofa e puxando a cortina de lado para que entrasse na sala. - Espere aqui - disse, saindo desajeitadamente, o saco ainda no quadril.

 

Tóti sentou-se na cadeira e começou a passar o dedo pelos veios da madeira da mesa. Podia ouvir Margrét ter um acesso de tosse na cozinha.

 

- Reverendo Tóti? - murmurou uma voz do outro lado da cortina. Tóti se levantou e puxou a cortina de lado com cuidado. Agnes espiou pela abertura e acenou para ele.

 

- Agnes. Como está?

 

- Desculpe-me. Eu só precisava pegar... - disse, apontando para um novelo de lã que estava na outra cadeira da sala. Tóti colocou-se de lado e ergueu a cortina para que ela entrasse.

 

- Por favor, fique - disse ele. - Vim para vê-la.

 

Agnes pegou o novelo.

 

- Margrét me pediu para...

 

- Por favor. Sente-se, Agnes.

 

Ela obedeceu e sentou-se bem na beirada da cadeira.

 

- Aqui está! - disse Margrét, voltando animada para a sala com uma bandeja de café e um prato com manteiga e pão de centeio. Até que notou Agnes.

 

- Espero que não se importe de se privar de Agnes por um momento - disse Tóti, levantando-se. - É que eu vim falar com ela. Ordens de Blöndal - brincou ele, dando um pequeno sorriso para Margrét, que o encarava.

 

Margrét apertou os lábios e sinalizou concordância.

 

- Faça o que quiser com ela, reverendo Tóti. Tire-a de minhas mãos.

 

Ela colocou a bandeja na mesa com estrépito, depois virou-se e passou pela cortina. Agnes e Tóti escutaram seus passos pesados no piso de terra do corredor. Uma porta bateu.

 

- E então - disse Tóti, sentando-se à mesa e fazendo uma careta para Agnes. - Gostaria de um pouco de café? Só há uma xícara, mas tenho certeza de que...

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Então coma o pão. Eu acabei de fazer uma visita a Undirfell, e a dona da casa me encheu de skyr.

 

Ele empurrou o prato para Agnes, depois serviu uma xícara de café, colocando um pouco de açúcar. Com o canto do olho, viu Agnes arrancar o canto do pão e enfiá-lo na boca. Ele sorriu.

 

- Pelo visto os criados cuidaram bem dos negócios de seus senhores em Reykjavík.

 

Tóti sentiu o café quente escaldando a língua enquanto bebia. Sua reação automática seria cuspir, mas ele estava consciente dos olhos claros de Agnes vigiando-o e se forçou a engolir o líquido fervente, engasgando um pouco.

 

- O que está achando daqui, Agnes?

 

Agnes engoliu o pão e o encarou. Seu rosto ganhara viço, e o hematoma no pescoço desaparecera quase por completo.

 

- Você parece bem.

 

- Eles me alimentam melhor do que em Stóra-Borg.

 

- E está se dando bem com a família?

 

Ela hesitou.

 

- Eles me toleram.

 

- O que acha de Jón, o oficial distrital?

 

- Ele se recusa a falar comigo.

 

- E as filhas?

 

Agnes não disse nada, e Tóti continuou:

 

- Lauga parece ser a favorita do reverendo de Undirfell. Diz que é extremamente inteligente para uma mulher.

 

- E a irmã?

 

Tóti tomou outro gole do café e fez uma pausa.

 

- É uma boa menina.

 

- Uma boa menina - repetiu Agnes.

 

- Sim. Coma mais.

 

Agnes pegou o resto do pão. Comeu rapidamente, mantendo os dedos perto da boca e lambendo deles a manteiga ao terminar. Tóti não pôde deixar de olhar para o rosa engordurado de seus lábios.

 

Ele se obrigou a olhar para a xícara de café à sua frente.

 

- Suponho que esteja se perguntando por que voltei.

 

Agnes usou a unha do polegar para arrancar uma migalha dos dentes e ficou em silêncio.

 

- Você me chamou de criança - disse Tóti.

 

- Eu o ofendi - disse ela, parecendo desinteressada.

 

- Eu não me ofendi - mentiu Tóti. - Mas você estava errada, Agnes. Sim, eu sou jovem, porém passei três longos anos na escola de Bessastadir, no Sul; falo latim, grego e dinamarquês, e Deus me escolheu para guiá-la à redenção.

 

Agnes o encarou sem piscar.

 

- Não. Eu o escolhi, reverendo.

 

- Então deixe-me ajudá-la!

 

A mulher ficou em silêncio por um momento. Continuou a limpar os dentes, depois enxugou as mãos no avental.

 

- Se você vai falar comigo, fale normalmente. O reverendo em Stóra-Borg falava como se fosse o próprio bispo. Ele esperava que eu chorasse aos seus pés. Não escutava.

 

- O que você queria que ele escutasse?

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Sempre que eu dizia algo, eles mudavam minhas palavras e as devolviam a mim como um insulto ou uma acusação.

 

Tóti assentiu.

 

- Você gostaria que eu lhe falasse normalmente. E talvez gostasse que a escutasse?

 

Agnes o encarou com cuidado, inclinando-se para a frente na cadeira, de modo que Tóti de repente percebeu a curiosa cor de seus olhos. As íris azuis eram claras como gelo, com pintas cinzentas nas pupilas, mas limitadas por um fino círculo preto.

 

- O que você quer ouvir? - perguntou ela.

 

Tóti recostou na cadeira.

 

- Passei esta manhã na igreja de Undirfell. Fui lá procurá-la no livro de registros. Você disse que era deste vale.

 

- E eu estava lá?

 

- Encontrei os registros de nascimento e crisma.

 

- Então sabe qual a minha idade - disse, dando um sorriso frio.

 

- Talvez você pudesse me contar um pouco mais de sua história. Sobre sua família.

 

Agnes respirou fundo e começou a enrolar a lã do novelo nos dedos.

 

- Não tenho família.

 

- Isso é impossível.

 

Ela apertou a lã nos nós dos dedos, e as pontas ficaram arroxeadas com a compressão.

 

- O senhor pode ter visto o nome deles no seu livro, reverendo, mas eu poderia muito bem ter sido registrada como órfã.

 

- Por que isso?

 

Houve uma tossida do outro lado da cortina, e dois sapatos de pele de peixe puderam ser vistos movendo-se sob a bainha.

 

- Entre - disse Tóti. Agnes rapidamente soltou a lã dos dedos, enquanto a cortina era puxada para o lado e o rosto sardento de Steina aparecia.

 

- Lamento incomodar, reverendo, mas mamãe está chamando por ela - disse, fazendo um gesto apressado para Agnes, que começou a se levantar da cadeira.

 

- Estamos conversando - disse Tóti.

 

- Lamento, reverendo. É a colheita. Quero dizer, estamos no meio de julho, então precisamos começar a colher o feno de hoje em diante. Bem, pelo menos enquanto houver sol.

 

- Steina, eu andei toda esta...

 

Agnes pôs a mão de leve no ombro dele e deu um olhar duro que o calou. Ele olhou para a mão dela, os dedos compridos e brancos, a bolha rosa no polegar. Percebendo seu olhar, Agnes retirou a mão tão rapidamente quanto havia colocado ali.

 

- Volte amanhã, reverendo. Caso queira. Podemos conversar enquanto o orvalho seca no feno.

 

Talvez seja uma vergonha que eu tenha jurado manter meu passado trancado dentro de mim. Em Hvammur, durante o julgamento, eles arrancaram minhas palavras como se fossem pássaros. Pássaros assustadores, vestidos de vermelho com botões de prata no peito, cabeças inclinadas e bocas penetrantes, procurando culpa como frutas em um arbusto. Eles não me deixaram contar do meu modo o que havia acontecido, pegaram minhas lembranças de Illugastadir, de Natan, e as teceram em algo sinistro; arrancaram meu depoimento naquela noite e fizeram com que parecesse malvada. Tudo o que eu disse foi tirado de mim e modificado a tal ponto que a história não fosse mais minha.

 

Achei que poderiam acreditar em mim. Quando rufaram o tambor naquela salinha e Blöndal anunciou "culpada", a única coisa em que consegui pensar foi: se você se mover, vai desmoronar. Se respirar, vai desaparecer. Eles querem acabar com você.

 

Depois do julgamento, o padre de Tjörn me disse que eu iria queimar se não repassasse os pecados da minha vida e rezasse por perdão. Como se uma prece pudesse simplesmente eliminar o pecado. Mas qualquer mulher sabe que uma trama, assim que tecida, não se desmancha; a única maneira de reparar um erro é deixar que tudo se desfaça.

 

Natan não acreditava em pecado. Ele dizia que era a falha de caráter que fazia a pessoa, e que até mesmo a natureza desafia suas próprias regras pelo bem da beleza. Pelo bem da criação. Para manter seu próprio sangue quente. Você entende, Agnes.

 

Ele me disse isso depois que a ovelha de duas cabeças nasceu em Stapar. Um dos criados havia corrido até Illugastadir para contar a nova, mas quando Natan e eu chegamos a ovelha estava morta. O fazendeiro a matara, por achar que estava amaldiçoada. Natan pediu para levar o corpo e aprender como havia sido formado, mas, enquanto desenterrava a ovelha, uma das mulheres foi até ele e cuspiu: "Deixe que o Diabo cuide dos seus". Eu vi quando ele riu na cara dela.

 

Nós levamos a coisa estranha para a oficina, e, coberta de sangue e terra e totalmente nauseada, deixei Natan estripá-la sozinho. Sigga e eu não comemos os pedaços de carne que tirou dela, e, embora nos chamasse de ingratas, embora nos lembrasse do número de moedas que havia trocado pelo cadáver disforme, o apetite dele também não era grande. Usamos a carne como isca para raposas. Ele manteve o crânio gêmeo em sua oficina, o osso da cor de creme novo.

 

Fico pensando se o reverendo me vê como aquela ovelha. Uma curiosidade. Amaldiçoada. Como os homens veem mulheres como eu?

 

Mas o padre não é de modo algum um homem. Ele é frágil como uma criança, sem a presunção e a idiotice da juventude. Eu me lembrava dele como sendo mais alto do que é. Mal sei o que pensar dele.

 

Talvez apenas tenha talento para mentir. Deus sabe que conheci homens o suficiente para saber que uma vez desmamados eles começam a mentir.

 

Terei de pensar no que lhe dizer.

 

A névoa se dispersara no azul do dia, e a umidade na grama havia secado quando a família de Kornsá se reuniu na beirada do campo para começar a cortar o feno. O oficial distrital Jón estava de um lado com os dois trabalhadores que haviam acabado de voltar de Reykjavík - Bjarni e Gudmundur -, ambos com barba e cabelos louros compridos, e, do outro, Kristín, Margrét e Lauga. Todos esperavam silenciosamente que Steina e Agnes se juntassem ao círculo. Steina passou cambaleando pelo pátio, seguida por Agnes, que amarrava um lenço sobre os cabelos trançados.

 

- Estamos aqui - disse Steina alegremente. Agnes anuiu para Jón e Margrét. Os empregados olharam para ela e, depois, um para o outro.

 

Jón curvou a cabeça.

 

- Bom Senhor, agradecemos o bom tempo que enviou para nossa colheita. Oramos para que nos considere merecedores dele preservando-o, nos protegendo de perigos e acidentes e nos dando o feno de que necessitamos para viver. Em nome de Jesus, amém.

 

Os empregados murmuraram seus améns e pegaram as foices de cabo longo. Haviam sido recentemente marteladas e amoladas, e as lâminas de ferro brilhavam. Gudmundur, um homem baixo musculoso de vinte e oito anos, testou o gume da foice nos pelos do pulso e então, satisfeito que estivesse suficientemente afiada, colocou-se rapidamente na posição certa e raspou a foice na grama, a seus pés. Ergueu os olhos e notou Agnes a observá-lo.

 

- Gudmundur e Bjarni - dizia o oficial distrital. - Vocês cortarão com Kristín e...

 

Jón hesitou e olhou rapidamente para Agnes. Os trabalhadores acompanharam seu olhar e o encararam.

 

- Você vai dar uma foice a ela? - perguntou descontraidamente Bjarni, um homem de aparência doentia. Riu nervoso.

 

Margrét pigarreou.

 

- Agnes e Kristín cortarão com vocês e Jón. Steina, Lauga e eu vamos juntar e virar a grama.

 

Ela olhou feio para Gudmundur, que sorria para Bjarni, e cuspiu no chão perto dos pés dele.

 

- Dê foices a elas - disse Jón em voz baixa, e Gudmundur largou a dele no chão. Virou-se e pegou duas outras foices, dando uma a Kristín, que fez uma mesura confusa, e depois se esticou para dar a outra a Agnes. Ela estendeu o braço para pegá-la, mas Gudmundur se recusou a soltar. Por um breve momento ambos ficaram ali, segurando juntos o cabo da foice, antes que Gudmundur o soltasse de repente. Agnes tropeçou para trás, e a foice raspou em seu tornozelo. Bjarni conteve o riso.

 

- Vão pegar os ancinhos, garotas - disse Jón, ignorando o riso dos trabalhadores e de Lauga, que não conseguiu evitar o sorriso ao ver Agnes olhar em pânico para a perna.

 

- Está ferida? - Steina sussurrou para Agnes ao passar por ela. Agnes balançou a cabeça, maxilar cerrado.

 

Margrét olhou para a filha e franziu o cenho.

 

Deixo meu corpo entrar no ritmo. Balanço para a frente e para trás e deixo a gravidade levar a foice para baixo e pela grama, até eu balançar com firmeza. Até sentir que não estou me movendo e que o sol me impele. Até ser uma marionete do vento, e da foice, e dos compridos golpes lentos que impelem meu corpo para a frente. Até não conseguir parar, mesmo que quisesse.

 

É uma sensação boa, não estar no controle. De ser suavemente balançada para a frente e para trás, até esquecer o que é estar imóvel. Como estar com Natan naqueles primeiros meses, quando meu coração estremecia através de mim e eu poderia ter morrido, tão feliz estava de ser desejada. Quando o cheiro dele, de enxofre e de ervas esmagadas, de suor de cavalo e da fumaça de sua forja me deixavam tonta de prazer. De possibilidades.

 

Eu me sentia embriagada de verão e luz do sol. Queria apanhar punhados de céu e comê-los. Enquanto as foices passavam seus dedos afiados pelos ramos, a grama cortada fazia um som ofegante.

 

De repente me dou conta de que o criado, o de nome Gudmundur, está me observando. Ele virou a cabeça para me encarar. Talvez ache que não percebo.

 

Eu tinha catorze anos quando os homens começaram a olhar para mim desse jeito. Criada em Gudrúnarstadir, cheguei em março com meus pertences em um saco branco, e minha cabeça doía por causa dos cabelos em tranças apertadas. Meu primeiro emprego de verdade. Também havia um jovem criado. Um homem alto, com pele ruim e um jeito de olhar para as criadas - Ingibjörg, Helga e eu - que nos fazia evitá-lo. Eu o ouvia se tocar no escuro - um farfalhar apressado sob o cobertor, depois um grunhido ou, de vez em quando, um gemido.

 

Deixo meu corpo balançar, deixo os braços cair. Sinto os músculos de meu estômago se contraindo e retorcendo. A foice sobe, desce, sobe, desce, captura o sol em sua lâmina e lança a luz sobre meus olhos - uma piscadela brilhante de Deus. Eu a observo, diz a foice, avançando pelo mar verde, capturando o sol e devolvendo-o para mim. O criado expira, balança sua foice, olha de soslaio para meus braços nus. Eu golpeio a grama e a luz pelo ar. Eu a observo, diz a foice.

 

Como prometido, o reverendo Tóti voltou a Kornsá na manhã seguinte cedo, bem antes de o sol ter se erguido de seu ponto de descanso no horizonte do mar. Seu corpo doía do primeiro dia de colheita em Breidabólstadur, e ele apreciava o ar frio batendo em seu rosto e a névoa fina do hálito de sua égua enquanto seguiam pela trilha para o vale de Vatnsdalur. Todos os assentamentos do distrito haviam começado a colheita do feno no dia anterior, e a visão de campos derrubados pela metade, o capim reunido em cones para impedir que o sereno encharcasse o feno, contribuía para uma sensação de ordem e prosperidade. O Norte opulento, era assim que o chamavam. Por toda parte passarinhos mergulhavam em meio ao restolho, pegando os insetos deixados vulneráveis pela colheita, e espirais de fumaça se erguiam do teto inclinado das cabanas do vale.

 

Na grande fazenda de Hvammur, onde Tóti sabia que Björn Blöndal morava com família e criados do outro lado do rio e que podia ser vista de Kornsá, várias chaminés soltavam fumaça. A fachada de madeira lisa das cabanas de grama anexas exibia janelas de vidro que cintilavam, mesmo à fraca luz amarelada da manhã. Como olhos, pensou Tóti, sentindo-se fantasioso. Ele ouvira falar que grande parte do julgamento de Illugastadir acontecera na sala de visitas da fazenda, que dava para o rio sinuoso e sua beirada de grama dourada do pântano.

 

Fico pensando no que passava pela cabeça dela ao olhar para a fazenda do outro lado do rio, especulou Tóti. Sentada lá naquela sala, quando lhe diziam que tinha de morrer. Será que olhou pela janela e viu o gelo flutuando no rio? Possivelmente o mundo estava escuro demais para ver algo. Possivelmente cobriram as janelas com uma cortina para bloquear a luz.

 

O oficial distrital estava fora de casa com outro homem - algum tipo de funcionário, pensou Tóti -, amolando as foices. Jón ergueu sua pedra de amolar em cumprimento e recolocou o gorro antes de se adiantar.

 

- Reverendo Thorvardur. Deus o abençoe.

 

- E você também - disse Tóti alegremente.

 

- Está aqui para vê-la.

 

Tóti assentiu.

 

- O que acha de Agnes?

 

Jón deu de ombros.

 

- A vida segue.

 

- É boa trabalhadora?

 

- É boa trabalhadora, mas... - começou, interrompendo-se.

 

Tóti sorriu gentilmente.

 

- É apenas temporário, Jón - disse, dando um tapinha tranquilizador nas costas do homem e virando-se para entrar na casa.

 

- Jón Thórdarson se ofereceu para matá-los - disse Jón de repente.

 

Tóti se virou.

 

- Perdão?

 

- Jón Thórdarson. Ele veio a cavalo até Hvammur há algumas semanas e disse que seria o carrasco de Fridrik, Sigga e Agnes. Dispôs-se a brandir o machado por uma libra de tabaco - disse, balançando a cabeça. - Uma libra de tabaco.

 

- O que Blöndal disse?

 

Jón fez uma careta.

 

- O que acha que ele disse? Thórdarson é um ninguém. Ele tem outra pessoa em mente, embora alguns sejam contra isso.

 

Tóti olhou para o trabalhador, que estava apoiado na parede da oficina de ferreiro, escutando.

 

- E quem seria essa pessoa? -perguntou Tóti.

 

Jón balançou a cabeça, incomodado. Foi o trabalhador quem falou:

 

- Gudmundur Ketilsson - disse em voz alta. - Irmão de Natan.

 

- Podemos nos sentar lá dentro, caso prefira - disse Tóti, quase tropeçando nas pedras próximas ao caudaloso córrego que corria junto à fazenda Kornsá.

 

- Gosto de olhar para a água - retrucou Agnes.

 

- Muito bem - disse Tóti, limpando a umidade de uma grande pedra e acenando para que Agnes se sentasse. Ele se acomodou ao lado dela.

 

O córrego Kornsá tinha uma boa vista para o outro lado do rio. Era bonito, mas Tóti só conseguia pensar no que Jón comentara mais cedo a respeito do carrasco. Ele deu uma espiada no pescoço branco de Agnes em contraste com a pedra cinza e o imaginou cortado.

 

- Como foi a colheita ontem? - perguntou, tentando esvaziar a cabeça.

 

- Muito quente.

 

- Bom - retrucou Tóti.

 

Agnes levou a mão ao xale, tirou um novelo de lã e várias finas agulhas de tricô.

 

- Queria me perguntar sobre minha família?

 

Tóti pigarreou e viu os dedos dela se movendo enquanto começava a tricotar.

 

- Sim. Você nasceu em Flaga.

 

Agnes inclinou a cabeça para a fazenda em questão, uma cabana torta à esquerda do limite de Kornsá. Era suficientemente perto para que as vozes dos criados, chamando uns aos outros do lado de fora, pudessem ser ouvidas com o vento.

 

- Lá mesmo.

 

- Sua mãe não era casada.

 

- Soube disso pelo livro de registros? - perguntou Agnes, dando um pequeno sorriso. - Os padres sempre se preocupam em escrever as coisas importantes.

 

- E seu pai, Magnús?

 

- Magnús também não era casado, se é o que quer dizer.

 

Tóti hesitou.

 

- Então com quem você viveu quando criança?

 

Agnes olhou para o vale.

 

- Eu vivi na maioria dessas fazendas.

 

- Sua família se mudava?

 

- Eu não tenho família. Minha mãe me deixou quando eu tinha seis anos.

 

- Como ela morreu? - perguntou Tóti gentilmente. Ficou chocado quando Agnes riu.

 

- Minha vida parece esse tipo de tragédia? Não, ela me deixou para que outros cuidassem de mim, mas imagino que ainda esteja viva. Não tenho como saber. Alguém me disse que ela havia sumido. Simplesmente se levantou um dia e foi embora. Já faz alguns anos.

 

- O que quer dizer?

 

- Não sei nada sobre minha mãe. Não a reconheceria se a visse.

 

- Porque você só tinha seis invernos quando ela a deixou?

 

Agnes parou de tricotar e olhou diretamente para Tóti.

 

- O senhor precisa compreender, reverendo, que as únicas coisas que sei sobre minha mãe são as que as pessoas me contaram. Principalmente o que ela fez, que, entenderá, elas não aprovaram.

 

- Poderia me dizer o que lhe contaram?

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Saber o que uma pessoa fez e saber quem uma pessoa é são coisas muito diferentes.

 

Tóti insistiu.

 

- Mas, Agnes, ações dizem mais do que palavras.

 

- Ações mentem - retrucou Agnes rapidamente. - Há casos em que as pessoas nunca têm uma chance no começo, ou podem ter cometido um equívoco. Quando os outros começam a dizer coisas sobre como ela devia ser uma mãe ruim por causa daquele equívoco...

 

Quando Tóti não disse nada em resposta, ela continuou:

 

- Não é justo. As pessoas alegam lhe conhecer por intermédio das coisas que você fez, e não por se sentar e escutar você falando de si mesma. Não importa quanto você tente levar uma vida de Deus; se cometer um equívoco neste vale, isso nunca será esquecido. Não importa o quanto tenha tentado fazer o que era melhor. Não importa se seu eu mais interior sussurre "Eu não sou como vocês dizem!"; o que as outras pessoas pensam de você é que determina quem você é.

 

Agnes parou para tomar fôlego. Ela começara a erguer a voz, e Tóti ficou pensando o que teria provocado aquela avalanche de palavras.

 

- Isso foi o que aconteceu à minha mãe, reverendo - continuou Agnes. - Quem ela realmente era? Provavelmente não o que as pessoas dizem que era, mas cometeu erros, e os outros chegaram a conclusões sobre ela. As pessoas aqui não deixam que você esqueça seus erros. Acham que são as únicas coisas que merecem ser escritas.

 

Tóti pensou um momento.

 

- Qual foi o erro de sua mãe?

 

- Disseram que cometeu muitos, reverendo. Mas pelo menos um desses erros fui eu. Ela não teve sorte.

 

- O que quer dizer?

 

- Ela fez o que muitas mulheres fazem sem problemas em segredo - disse Agnes, amarga. - Mas foi uma das poucas infelizes cujo segredo ficou claro para todos.

 

Tóti podia sentir seu rosto corar e queimar. Baixou os olhos para as mãos e tentou pigarrear.

 

Agnes olhou para ele.

 

- Eu o ofendi novamente - disse.

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Fico contente por me falar do seu passado.

 

- Meu passado ofende suas sensibilidades.

 

Tóti se remexeu na pedra.

 

- E quanto ao seu pai? - tentou.

 

Agnes riu.

 

- Qual deles? - disse, parando de tricotar para estudá-lo. - O que seu livro diz sobre meu pai?

 

- Que o nome dele era Magnús Magnússon e que vivia em Stóridalur na época de seu nascimento.

 

Agnes continuou a tricotar, mas Tóti notou que ela contraía o maxilar.

 

- Se conversar com certas pessoas por aqui, poderá ouvir uma história diferente.

 

- Como assim?

 

Agnes olhou para o outro lado do rio, para as fazendas no lado oposto do vale, contando silenciosamente com o dedo os pontos na agulha.

 

- Suponho que não importa se sou honesta com o senhor ou não - disse ela friamente. - Eu poderia lhe dizer qualquer coisa.

 

- Na verdade espero que confie em mim - disse Tóti, sem entender bem. Ele se inclinou mais para perto, esperando o que ela diria.

 

- Seu livro em Undirfell deveria ter dito Jón Bjarnason, o fazendeiro de Brekkukot. Disseram que ele é meu verdadeiro pai, e Magnús Magnússon, um empregado infeliz que não sabia de nada.

 

Tóti estava perplexo.

 

- Por que sua mãe lhe daria o nome de filha de Magnús se isso não fosse verdade?

 

Agnes virou-se para ele com um meio sorriso.

 

- O senhor não tem ideia de como o mundo funciona, reverendo? Jón de Brekkukot é um homem casado, com filhos legítimos o suficiente. Ah, e muitos como eu, pode estar certo. Mas, aparentemente, criar um filho de um homem solteiro é um crime menor que de um já ligado por carne e alma a outra mulher. Então suponho que minha mãe escolheu um cretino diferente para ter a honra de ser meu pai.

 

Tóti pensou nisso por um tempo.

 

- E você acredita nisso porque as pessoas lhe disseram?

 

- Se acreditasse em tudo o que todos me disseram sobre minha família, eu seria um pouco mais infeliz do que sou agora, reverendo. Mas não é necessário estudar em Copenhague ou no Sul para descobrir quais filhos pertencem a que pais por aqui. É difícil manter segredos neste lugar.

 

- Você algum dia perguntou a ele?

 

- Jón Bjarnason? E o que poderia sair de bom disso?

 

- Conseguir a verdade com ele, suponho - sugeriu Tóti. Ele se sentia desapontado com a conversa.

 

- A verdade não existe - disse Agnes, levantando-se.

 

Tóti também se levantou e começou a esfregar os fundilhos da calça.

 

- Há verdade em Deus - disse sinceramente, identificando uma oportunidade de cumprir seu dever espiritual. João, capítulo oito, versículo trinta e dois. - Conheça...

 

- Conheça a verdade, e a verdade o libertará. Sim, eu sei, eu sei - disse Agnes. Ela juntou o material de tricô e começou a voltar para a fazenda. - Não no meu caso, reverendo Thorvardur. Eu contei a verdade, e o senhor pode ver por si próprio de que isso me serviu.

 

Não fará nenhum bem ao reverendo ler livros de registros, ou qualquer outro livro - o que vai aprender neles sobre mim? Apenas as coisas que outros homens consideram importantes a meu respeito.

 

Quando o reverendo viu meu nome e a data de nascimento no livro da igreja, viu apenas a escrita e compreendeu apenas a data? Ou viu a névoa daquele dia e ouviu os corvos crocitando pelo cheiro de sangue? Ele imaginou meu nascimento como eu o imaginei? Minha mãe chorando, me apertando contra o calor grudento de sua pele. Evitando os olhares das mulheres de Flaga para as quais trabalhava, já sabendo que teria de partir e encontrar trabalho em outro lugar. Sabendo que nenhum fazendeiro iria contratar uma criada com um recém-nascido.

 

Se ele quer saber da minha família, terá dificuldades. Dois pais e uma mãe que a mim parecem tão indistintos quanto estranhos partindo em uma tempestade de neve. Tenho poucas lembranças claras dela. Uma é do dia em que me deixou. Outra é de quando eu era nova, observando-a à luz da lamparina em uma noite de inverno. É uma lembrança silenciosa e, como as outras, uma em que não posso confiar muito. Lembranças mudam como neve ao vento, ou são um coral de fantasmas falando um acima do outro. Sempre há uma sensação de que o que é real para mim não é real para os outros, e partilhar uma lembrança com alguém é arriscar escurecer minha crença em algo que realmente aconteceu. O reverendo é a pessoa da minha lembrança ou outro totalmente diferente? Eu fiz aquilo ou foi outro? Magnús ou Jón? É o brilho do gelo sobre a água, frágil demais para confiar.

 

Minha mãe olhou para seu bebê e pensou: Um dia eu a deixarei? Ela olhou para meu rosto amassado esperando que eu morresse ou silenciosamente me impeliu a me aferrar à vida como um carrapicho? Talvez tenha olhado para o vale, a névoa e a imobilidade e pensado no que poderia me dar. Uma mentira como pai. Uma cabeça de cabelos escuros. Uma manjedoura com feno na qual dormir. Um beijo. Uma pedra, para que eu pudesse aprender a compreender os pássaros e nunca ficar sozinha.

 

Poema de Poet-Rósa a Agnes Magnúsdóttir, junho de 1828

 

Undrast þarftu ei, baugabrú

 

þó beiskrar kennir þínu:

 

Hefir burtu hrífsað þú

 

helft af lífi mínu.

 

Não se surpreenda com a tristeza em meus olhos

 

nem com as pontadas amargas de dor que sinto:

 

Pois com seu ardil você roubou

 

aquele que deu sentido à minha vida

 

e jogou sua vida aos cuidados do Diabo.

 

Resposta de Agnes Magnúsdóttir a Rósa, junho de 1828

 

Er mín klára ósk til þín,

 

angurs tárum bundin:

 

Ýfðu ei sárin sollin mín,

 

solar báru hrundin.

 

Sorg ei minnar sálar herð!

 

Seka Drottin náðar,

 

af því Jésus eitt fyrir verð

 

okkur keypti báðar.

 

Este é meu único desejo para você,

 

atado com raiva e angústia:

 

Não esfole minhas feridas abertas,

 

estou cheia de descrença.

 

Minha alma está tomada de sofrimento!

 

Busco a graça do Senhor.

 

Lembre-se, Jesus comprou a ambas

 

e pelo mesmo valor.

 

- Como é tê-la aqui, neste mesmo aposento que você? Eu teria dificuldade de dormir - disse Ingibjörg Pétursdóttir.

 

Margrét olhou para onde os ceifadores de Kornsá cortavam o capim mais perto do rio.

 

- Ah, não acho que ela ousaria fazer algo errado.

 

As duas mulheres descansavam na pilha de madeira do lado de fora da cabana de Kornsá. Ingibjörg, uma mulher pequena e sem graça de uma fazenda próxima, fizera uma visita a Margrét, tendo ouvido que a tosse da amiga a impedia de participar da colheita de feno. Embora Ingibjörg não tivesse nada da acidez ou da franqueza de Margrét, as duas mulheres fizeram amizade logo e, com frequência, se visitavam quando o rio que separava suas fazendas estava baixo o bastante para ser cruzado.

 

- Róslín parece pensar que todos serão estrangulados durante o sono.

 

Margrét deu um sorriso repentino.

 

- Não consigo deixar de pensar que é exatamente o que Róslín deseja.

 

- O que quer dizer?

 

- Isso daria àquela boca nervosa algo mais sobre o que tagarelar.

 

- Margrét... - censurou Ingibjörg.

 

- Ah, Inga. Ambas sabemos que ter todos aqueles filhos mexeu com a cabeça dela.

 

- O menor tem crupe.

 

Margrét ergueu as sobrancelhas.

 

- Então não vai demorar para que todos tenham. Nós os ouviremos gemendo a noite inteira.

 

- Ela também está ficando grande.

 

Margrét hesitou.

 

- Você planeja ajudar no nascimento? Ela teve tantos que seria de crer que poderia fazê-lo sozinha.

 

Ingibjörg suspirou.

 

- Não sei. Estou com uma sensação ruim.

 

Margrét estudou a expressão grave da amiga.

 

- Você teve um sonho?

 

Ingibjörg abriu a boca como se fosse dizer algo, depois estremeceu, mudando de ideia.

 

- Estou certa de que não é nada. De qualquer forma, não vamos ser soturnas. Conte sobre a assassina!

 

Margrét riu a contragosto.

 

- Aí está! Você é tão má quanto Róslín.

 

Ingibjörg sorriu.

 

- Mas como ela realmente é? O caráter. Sente medo dela?

 

Margrét pensou por um momento.

 

- Ela não é nada como eu imaginara uma assassina - disse finalmente. - Ela dorme, trabalha, come. Mas tudo em silêncio. Seus lábios poderiam estar costurados a depender de tudo o que diz a mim. Aquele jovem, o reverendo Thorvardur, começou a visitá-la novamente nas últimas semanas, e sei que ela conversa com ele, mas ele não me conta o que se passa. Talvez nada - falou Margrét, olhando para o campo. - Muitas vezes queria saber o que ela está pensando.

 

Ingibjörg seguiu o olhar de Margrét, e as duas mulheres olharam juntas para a figura curvada de Agnes em meio ao feno, cortando a grama com a foice. A lâmina reluzia quando ela a balançava.

 

- Quem sabe? - murmurou Ingibjörg. - Estremeço ao pensar no que se passa dentro daquela cabeça escura.

 

- O reverendo diz que a mãe dela era Ingveldur Rafnsdóttir.

 

Ingibjörg parou.

 

- Ingveldur Rafnsdóttir. Eu conheci uma Ingveldur. Uma mulher libertina.

 

- Não saem pombos de ovos de corvos - concordou Margrét. - Estranho pensar em Agnes como uma filha. Não consigo imaginar minhas filhas sequer pensando em algo tão sinistro e pecaminoso quanto assassinato.

 

Ingibjörg anuiu.

 

- E como estão suas meninas?

 

Margrét se levantou e limpou a terra da saia.

 

- Ah, você sabe - disse, começando a tossir novamente, e Ingibjörg esfregou suas costas.

 

- Calma.

 

- Estou bem - grunhiu Margrét. - Sabe, Steina acha que a conhece.

 

Ingibjörg lançou um olhar intrigado para a amiga.

 

- Ela acha que a conhecemos quando estávamos a caminho de Gudrúnarstadir.

 

- Steina está inventando histórias novamente.

 

Margrét estremeceu.

 

- Só o bom Senhor sabe. Eu não me lembro. De fato, estou um pouco preocupada com ela. Steina sorri para Agnes.

 

Ingibjörg riu.

 

- Ah, Margrét! Desde quando um sorriso colocou alguém em apuros?

 

- Muitas vezes, eu diria! - cortou Margrét. - Basta olhar para Róslín. Ademais, são outras coisas também. Eu flagrei Steina fazendo perguntas sobre Agnes e notei que ela corre para chamá-la para tarefas e coisas assim. Olhe; ela a está seguindo agora, mesmo quando passa o ancinho - disse, apontando para Steina, que vira o feno perto de Agnes. - Não sei, só fico pensando naquela pobre garota Sigga e temo que o mesmo aconteça a ela.

 

- Sigga? A outra criada de Illugastadir?

 

- E se Agnes tiver o mesmo efeito sobre Steina? Se a fizer passar para o lado ruim. Encher a cabeça dela de impiedades.

 

- Você acabou de dizer que Agnes mal diz uma palavra.

 

- Sim, comigo. Mas não consigo deixar de sentir que é outro caso com... Ah, deixe para lá.

 

- E Lauga? - perguntou Ingibjörg, pensativa.

 

Margrét deu um riso nervoso.

 

- Ah, Lauga detesta tê-la aqui. Todos detestamos, mas Lauga se recusa a dormir na cama ao lado. Ela a vigia como um falcão. Censura Steina por olhar na direção de Agnes.

 

Ingibjörg pensou na filha menor, juntando o feno em linhas arrumadas. Perto das filas de Lauga, as de Steina parecem tão disformes quanto a caligrafia de uma criança.

 

- O que Jón diz?

 

Margrét bufou.

 

- O que Jón sempre diz? Se eu levanto o assunto, ele começa a falar sobre sua obrigação para com Blöndal. Mas percebo que ele está atento. Pediu que mantivesse as garotas afastadas.

 

- Difícil fazer isso em uma fazenda.

 

- Exatamente. Posso mantê-las tão afastadas quanto Kristín mantém o leite do creme.

 

- Ah, querida.

 

- Kristín é uma inútil - disse Margrét, constatando.

 

- Então é bom que você tenha mais um par de mãos femininas no lugar - disse Ingibjörg praticamente. As duas mulheres mergulharam em um silêncio confortável.

 

Sonhei com o cepo do carrasco na noite passada. Sonhei que estava sozinha e me arrastava pela neve na direção do toco escuro. Minhas mãos e meus joelhos estavam dormentes pelo gelo, mas eu não tinha escolha.

 

Em meu sonho eu me arrastei para cima e coloquei a cabeça sobre ele. Começou a nevar, e pensei comigo mesma: Esse é o silêncio antes da queda. Então pensei no toco que estava lá, a árvore que poderia ter sido, quando árvores não crescem aqui. Há silêncio demais, pensei em meu sonho. Pedras demais.

 

Então me dirigi à madeira em voz alta. Eu disse: "Eu a regarei como se você ainda vivesse". E com essa última palavra, acordei.

 

O sonho me assustou. Desde a colheita do feno eu de certa maneira retornei à minha antiga vida aqui e esqueci de sentir raiva. O sonho me lembrou do que vai acontecer, de como os dias passam rápido por mim, e agora, deitada e desperta em uma sala cheia de estranhos, olhando para o padrão de varas e turfa no teto, sinto meu coração revirar sem parar até minhas entranhas se retorcerem.

 

Preciso me aliviar. Tremendo, saio da cama e procuro o urinol no chão. Está sob a cama de um dos trabalhadores e quase cheio, mas não há tempo de esvaziá-lo. Minhas meias estão soltas e deslizam para os tornozelos sem dificuldade, me agacho e aponto um jorro de urina quente para o balde, sentindo-a respingar em minha coxa. Suor brota em minha testa.

 

Espero que ninguém acorde e me veja. Estou tão ansiosa para terminar e tirar o urinol de vista que puxo as meias para cima antes de ter terminado totalmente. Um filete quente escorre pelo lado de dentro da minha perna enquanto empurro o balde para longe.

 

Por que estou tremendo assim? Meus joelhos estão fracos como geleia de mocotó, e é um alívio deitar. Meu coração chacoalha. Natan sempre acreditou que os sonhos significavam algo. Estranho um homem que podia rir tão facilmente da palavra de Deus confiar na escuridão fervente de suas horas de sono. Ele construíra sua igreja com superstições e a linguagem secreta do clima; via o olho de Deus piscando nas ondulações do mar, no ataque das aves de rapina, no ranger dos dentes de suas ovelhas. Quando ele me flagrou tricotando no umbral, me acusou de prolongar o inverno. "Não pense que a natureza não nos vigia", me alertou. "Ela está tão desperta quanto você e eu." Sorriu para mim. Passou a palma suave da mão pela minha testa. "E igualmente cheia de segredos."

 

Pensei que poderia ser uma criada aqui. Mais de um mês se passou em Kornsá, e já esqueci o que será feito de mim. Os dias de trabalho me aplacaram, deram ao meu corpo motivo para descansar, de modo que tenho dormido profundamente, sob a superfície de sonhos tomados por presságios. Até agora.

 

É verdade que não sou um deles. Todos, exceto o reverendo e Steina, se recusam a falar comigo a não ser rapidamente. Mas em que isso é diferente de antes, quando eu era um tipo inferior de criada esvaziando o urinol, como pedirão que eu faça em algumas horas? Comparada com Stóra-Borg, essa família tem sido gentil.

 

Mas logo o inverno chegará, como uma estranha onda quebrando no litoral - de repente, com rapidez, apagando o sol e o calor e deixando a terra congelada até o cerne. Tudo terminará rapidamente. E o reverendo: como ele é jovem e como eu ainda não sei o que dizer a ele. Achei que poderia me ajudar, como me ajudou a cruzar o rio. Mas conversar com ele apenas me lembra de como tudo em minha vida se voltou contra mim e como não fui amada.

 

Esperei que ele me entendesse desde o início. Quero que ele me entenda, mas sou uma tola de achar que falamos a mesma língua. Eu posso muito bem falar com ele com uma pedra na boca, tentando descobrir uma linguagem que ambos possamos entender.

 

O reverendo não chegará de Breidabólstadur nas próximas horas - está cedo demais para se levantar. Cruzo as mãos sobre o cobertor e digo às fibras de meu coração para relaxar, pensando no que vou dizer a ele.

 

Tóti quer ouvir sobre minha família. Mas o que contei a ele não era o que queria ouvir. Ele não deve estar acostumado às árvores genealógicas retorcidas que crescem neste vale, onde os galhos se enrolam uns nos outros, cheios de espinhos.

 

Não contei a ele sobre Jóas, nem Helga. Ele poderia estar interessado em ouvir que tenho irmãos. Posso imaginar as perguntas dele: "Onde estão agora? Por que eles não a visitam, Agnes?".

 

Porque, reverendo, eu diria, o laço de sangue não é forte: cada um tem um pai diferente, e Helga está morta e enterrada. Jóas? Bem, ele não é um homem que pode ser obrigado a algo, mesmo a uma visita a uma irmã condenada.

 

Ah, Jóas. Não consigo ligar o homem de olhos baços com a vaga lembrança do doce garoto que um dia pude amar.

 

Fomos arrastados juntos pelos braços de uma mesma mãe. Para quais fazendas? Inúmeros badstofas pertencentes a outros homens e suas esposas de olhos vermelhos, gentis ou desesperadas o suficiente para contratar uma mulher com três bocas, duas das quais gritavam de fome à noite por não saberem que era inútil.

 

Primeiro, Beinakelda. Até eu ter três anos, eles me dizem. Apenas mamãe e eu. Não me lembro de nada. É tudo escuridão.

 

Depois, Litla-Giljá. Não me lembro da fazenda, mas sim do homem. Illugi, o Negro, como o chamavam, irmão do meu pai. Sentada no chão, esfregando as mãos na terra, e de repente o homem ao meu lado, os olhos revirando para trás na cabeça e o corpo se retorcendo no chão como um peixe na terra, e todas as mulheres gritando ao verem a espuma em sua boca. Então, depois, os gemidos que vinham da cama dele, e sua esposa de pele ruim puxando meu rosto para seu pescoço ossudo e dizendo: "Reze por ele. Reze por ele". Onde estava minha mãe? Sem dúvida, acocorada sobre um urinol procurando o sangue que não viria.

 

Lembro dos gritos. Illugi, novamente saudável, seu grande rosto de urso rugindo com a esposa, que não parava de chorar, e em meio a eles minha mamãe de saias compridas vomitando no chão.

 

Illugi morreu daquela doença de tremer quando estava pescando. Dizem que estava bebendo, teve um ataque, virou o barco e se afogou nas redes. Outros dizem que foi uma punição adequada para um homem que pescava em poços de elfos, mas essas eram pessoas que tinham estado do lado errado da bebedeira e das brigas dele.

 

O que o reverendo pensaria de tudo isso?

 

Jóas Illugason, nascido em Brekkukot, a terceira fazenda. Aos cinco anos, pude levar o trapo encharcado em leite até suas pequenas gengivas cor de salmão. As pessoas casadas de lá queriam ficar com ele e criá-lo com seus próprios dois filhos, e mamãe explicou que eu também ficaria com eles, que isso seria o melhor. Durante o ano seguinte, nós sete fomos uma família e ajudamos a dar vida ao pequeno garoto com cabelos tão claros quanto os meus eram escuros. Ele cheirava a neve derretida e creme fresco.

 

Eles devem ter mudado de ideia. Certa manhã fui acordada às sacudidas por mamãe, que olhava para mim com olhos inchados. Perguntei por que estava chorando, mas ela não disse nada. Subiu na cama com Jóas e eu, e adormeci junto à curva quente de seu corpo até o crocitar dos corvos da casa me acordar e eu ver meus pertences dentro de um saco no chão.

 

Naquela manhã, saímos a pé e retornamos ao vale em um dia feio, cheio de espasmos de neve. Achei que iria desmaiar de fome. Paramos no pátio de Kornsá, e, antes que eu pudesse terminar o soro de leite que a mulher me dera, mamãe sussurrou no meu ouvido, apertou uma pedra em minha luva e partiu com Jóas às costas.

 

Tentei segui-la. Gritei. Não queria ser deixada para trás. Mas enquanto corria, tropecei e caí. Quando consegui me levantar, minha mãe e meu irmão haviam desaparecido, e tudo o que eu podia ver eram dois corvos, suas penas pretas venenosas em contraste com a neve.

 

Durante muito tempo pensei que aqueles dois pássaros eram minha mãe e meu irmão. Mas eles nunca responderam às minhas perguntas, mesmo quando eu punha a pedra debaixo da língua. Anos depois soube que mamãe me deu uma nova meia-irmã, Helga, do fazendeiro de Kringla, e que Jóas agora era um indigente, uma criança da paróquia. Mas naquela época eu havia me convencido de que não os amava mais. Achei ter encontrado uma família melhor, minha família adotiva: Inga e Björn, os inquilinos de Kornsá.

 

- Como você dormiu, Agnes? - perguntou Steina, que encontrara a mulher junto ao canteiro de levístico, onde despejava o conteúdo do urinol no fosso de cinzas.

 

- Você vai ficar molhada aqui fora - disse Agnes sem olhar para ela. Estivera usando uma pedra para retirar o conteúdo mais grudado do urinol, e agora a limpava na grama. - Vai chover.

 

- Não ligo. Pensei em lhe fazer companhia - disse Steina, colocando o xale sobre a cabeça. - Está vendo? Seca como um rato.

 

Agnes olhou para ela e deu um pequeno sorriso.

 

- Olhe, Agnes - disse Steina, apontando para a boca do vale, onde uma massa de nuvens cinzentas baixas chegava do Norte.

 

Agnes ergueu a mão para o céu.

 

- Está piorando. Será ruim para o feno.

 

- Eu sei. Papai está de mau humor. Deu um tapa em Lauga por queimar seu café da manhã, e ele nunca faz isso com ela.

 

Agnes se virou para encarar Steina.

 

- Ele sabe que você está aqui fora comigo?

 

- Acho que sim.

 

- Acho que você deveria entrar - disse Agnes.

 

- E fazer o quê? Deixar Lauga me culpar por fazer um fogo alto demais? Não, obrigada. Fico mais feliz do lado de fora.

 

- Mesmo na chuva?

 

- Mesmo na chuva - disse Steina, bocejando e olhando para o campo, o feno amarrado em fardos para evitar a umidade. - Todo aquele trabalho por nada.

 

- O que quer dizer com "por nada"? No próximo dia bom vamos prosseguir e terminar tudo - disse Agnes, olhando para a cabana. - Acho que você deveria voltar para sua mãe - completou.

 

- Ah, ela não se importa.

 

- Ela se importa. Não gosta que fique sozinha comigo - disse Agnes com cuidado.

 

- Você já está aqui há semanas.

 

- Ainda assim - disse Agnes, começando a seguir lentamente na direção do rio, e Steina se virou para acompanhá-la.

 

- Acha que o reverendo virá hoje?

 

Agnes não respondeu.

 

- Sobre o que ele fala com você?

 

- Isso é da minha conta - disse com rispidez.

 

- O quê?

 

- Eu disse que isso é da minha conta. Não tem nada a ver com você ou sua família.

 

Steina ficou chocada e parou enquanto Agnes marchava colina abaixo, segurando o urinol rigidamente ao lado do corpo.

 

- Eu a irritei? - perguntou.

 

Agnes parou e se virou para Steina.

 

- Como uma jovem como você poderia me irritar?

 

Steina ficou com raiva.

 

- Porque minha família a está mantendo prisioneira e meu pai não quer que ninguém fale com você.

 

- Ele disse isso? - perguntou Agnes.

 

- Ele acha que deveríamos deixar você com suas tarefas.

 

- Ele está certo.

 

Steina foi até Agnes e segurou seu braço gentilmente.

 

- Você sabe que Lauga tem medo de você. Ela escutou Róslín e suas mentiras. Mas não acredito em uma palavra dessas fofocas. Eu me lembro de você de antes. Lembro como foi gentil, nos dando comida daquele jeito - disse Steina, recostando-se nela. - Não acho que você os matou - sussurrou, e o corpo de Agnes ficou rígido sob o aperto dela. Steina sugeriu rapidamente: - Talvez eu possa ajudá-la.

 

- Como? - perguntou Agnes. - Você me ajudaria a fugir?

 

Steina soltou o braço.

 

- Pensei talvez em uma petição - murmurou.

 

- Uma petição?

 

Steina tentou novamente:

 

- Talvez um apelo. Você sabe, como o que conseguiram para Sigga.

 

Os olhos de Agnes brilharam.

 

- Como?

 

- Um apelo. Blöndal conseguiu um para a outra - gaguejou Steina.

 

- A outra quem?

 

- Sigga... Você sabe, a outra criada de Illugastadir. A namorada de Fridrik.

 

O rosto de Agnes ficou pálido. Ela depositou o urinol lentamente na grama molhada, depois foi na direção de Steina.

 

- Blöndal fez um apelo por Sigrídur Gudmundsdóttir? - perguntou seriamente.

 

Steina confirmou, um pouco temerosa. Baixou os olhos para a pedra que Agnes ainda segurava.

 

- Ouvi papai dizer a mamãe - explicou. - Os oficiais distritais estavam discutindo isso em Hvammur, com Blöndal. No mesmo dia em que você chegou.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Achei que você soubesse - murmurou Steina.

 

Os olhos de Agnes se afastaram dos de Steina, e ela cambaleou sobre os pés.

 

- Blöndal? - murmurou baixo. Steina notou que ela apertava a pedra com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.

 

- Lamento ter contado.

 

Agnes cambaleou para trás e depois continuou a caminhar desequilibrada na direção do rio.

 

- Talvez possamos convencê-lo também a apelar ao rei por você! - gritou Steina. - Dizer a eles o que realmente aconteceu em Illugastadir!

 

Agnes caiu ao chão junto à margem do rio, as saias se acumulando ao redor dela. Pensando que tivesse desmaiado, Steina correu até ela, mas ao chegar mais perto viu que Agnes olhava para o rio com olhos vazios. Tremia. Naquele momento as nuvens escuras se abriram, e as duas mulheres foram engolfadas por um repentino temporal gelado.

 

- Agnes! - chamou Steina, apertando mais o xale na cabeça. - Levante! Temos de sair da chuva.

 

O som da chuva afogou suas palavras.

 

Agnes não respondeu. Ela via as gotas caindo no rio que corria com força, rompendo a superfície, de modo que o reflexo das montanhas ficou totalmente distorcido. Ainda segurava a pedra.

 

- Agnes! - gritou Steina. - Lamento! Pensei que você soubesse!

 

O xale estava encharcado, e ela podia sentir o vestido pesado com a água. Ela hesitou junto ao rio, depois se virou e começou a subir a colina, correndo até a cabana. O terreno ficara encharcado, e ela escorregou na lama. Na metade do caminho virou-se e viu que Agnes continuava onde a deixara. Chamou mais uma vez e então continuou a tropeçar na trilha enlameada até a fazenda.

 

- Pelos céus, Steina! Onde na terra de Deus você estava? - disse Margrét, seguindo apressada pelo corredor para censurar a filha mais velha, que batera a porta atrás de si. - Parece que você se afogou!

 

- É Agnes - disse Steina, engasgando e jogando o xale encharcado no chão.

 

- Ela a machucou? Ah, Senhor amado, nos proteja! Eu sabia - disse Margrét, passando os braços em volta da filha, que tremia de frio, e puxando-a para si.

 

- Não, mamãe! - berrou Steina, empurrando a mãe. - Ela precisa de ajuda, está junto ao rio.

 

- O que aconteceu? - perguntou Lauga, saindo da cozinha. - Ah, Steina! Você enlameou meu xale.

 

- Não ligo! - gritou Steina, virando-se para a mãe. - Eu contei a ela sobre o apelo para Sigrídur Gudmundsdóttir, e ela ficou estranha e branca, e agora não se levanta!

 

Margrét se virou para Lauga.

 

- Do que ela está falando?

 

- Agnes! - bradou ela. Limpou a chuva do rosto com a manga e começou a correr pela passagem. - Preciso contar a papai.

 

Jón estava no badstofa, remendando os sapatos.

 

- Steina? - perguntou, erguendo os olhos do trabalho.

 

- Papai! Por favor, você tem de buscar Agnes. Contei-lhe sobre o apelo que Blöndal fez para a outra criada de Illugastadir, e ela enlouqueceu.

 

Jón imediatamente empurrou os sapatos do colo e se levantou.

 

- Onde? - perguntou em voz baixa.

 

- Junto ao rio - disse Steina, tentando conter as lágrimas. Jón pegou as botas de sob a cama e as amarrou grosseiramente.

 

- Lamento, papai, achei que ela soubesse! Eu queria ajudá-la.

 

Jón se levantou e agarrou a filha pelos ombros. A face vermelha de raiva.

 

- Eu lhe disse para ficar longe dela - repreendeu ele, olhando feio para a filha, depois tirando-a do caminho e saindo do aposento, chamando Gudmundur, que estava deitado na cama. O trabalhador levantou com relutância. Steina sentou-se e começou a chorar.

 

Alguns momentos depois, Lauga entrou no badstofa com Kristín ao lado.

 

- O que papai disse? - perguntou em voz baixa, e a seguir, vendo onde Steina se sentara, protestou: - Ah! Levante-se, está molhando minha cama.

 

- Me deixe em paz! - berrou Steina, fazendo Kristín ganir e fugir do aposento. - Me deixe sozinha!

 

Lauga sorriu e balançou a cabeça.

 

- Você está de mau humor, Steina. O que estava tentando fazer lá fora? Amizade?

 

- Vá para o inferno, Lauga!

 

Lauga ficou boquiaberta. Olhou para a irmã como se prestes a chorar, depois apertou os olhos.

 

- Melhor tomar cuidado - sibilou. - Se continuar assim, será tão imoral quanto ela - disse, virando-se para ir embora, em seguida detendo-se. - Rezarei por você - disse fungando, e deixou o aposento. Steina pôs a cabeça nas mãos e chorou.

 

Eu me sento na cama e espero enquanto Margrét, Jón e as filhas conversam sobre mim atrás da cortina cinza da sala. Embora Margrét esteja cochichando, capto as palavras que deslizam pelo espaço entre este aposento e o outro. Minhas mãos tremem, e posso sentir o coração latejar. É como se tivesse corrido para salvar minha vida. A mesma sensação do tribunal, quando me senti alheia a tudo.

 

Eu poderia ter sido uma indigente; poderia ter sido a criada deles, até aquelas palavras! Sigga! Illugastadir! Elas me ancoram a uma lembrança que me tira o fôlego. São as palavras mágicas, a maldição que me transforma em um monstro, e agora sou Agnes de Illugastadir, Agnes do incêndio, Agnes dos corpos mortos com o sangue não queimado ainda grudado nas roupas que fiz para ele. Eles vão libertar Sigga, mas não vão me libertar porque sou Agnes - a sanguinária e astuta Agnes. E estou tão assustada que achei que poderia funcionar, achei que poderia fingir, mas vejo que nunca, jamais, vou escapar disso - não posso escapar.

 

A carta era pequena e escrita com uma letra cursiva apertada em um pedaço de papel minúsculo, as linhas sobrepondo-se na tentativa do autor de poupar espaço. Tóti a levou para ler no badstofa, onde estivera fazendo a refeição do meio-dia.

 

- Blöndal novamente? - perguntou seu pai sem erguer os olhos da carne.

 

- Não - respondeu Tóti, passando os olhos rapidamente pela mensagem. - Venha rápido, é Agnes Magnúsdóttir. Não quero contar a Blöndal. Seu irmão em Cristo, Jón Jónsson. - É de Kornsá.

 

- Eles não sabem que está chovendo? E que é domingo? - murmurou o padre mais velho.

 

Tóti sentou-se à mesa e olhou para o pai. Sua barba tinha restos de mingau seco.

 

- Preciso ir - disse.

 

O reverendo Jón bufou pesado.

 

- É domingo! - repetiu.

 

- Sim, o dia do Senhor - retrucou Tóti, acrescentando. - Para o trabalho do Senhor.

 

O reverendo Jón tirou da boca um pedaço de cartilagem, examinou-o e recomeçou a mastigar.

 

- Pai?

 

- Espero que Blöndal saiba como você é escravo da vontade dele.

 

- Vontade do Senhor - disse Tóti gentilmente. - Obrigado, pai. Voltarei à noite. Ou amanhã, caso o tempo esteja ruim.

 

Tóti estava encharcado até os ossos quando chegou à passagem que leva ao vale de Vatnsdalur. Viu o mensageiro que lhe entregara o bilhete cavalgando à frente e esporeou sua égua para alcançá-lo.

 

- Ei, você! - gritou Tóti, olhando em meio à lâmina de chuva.

 

O homem se virou na sela, e Tóti o reconheceu como sendo um dos criados de Kornsá. Vestia peles de peixe para se manter seco.

 

- Você veio! - gritou ele de volta. - Então são dois de nós cavalgando nesse clima lamentável.

 

- Ruim para o feno - disse Tóti para puxar assunto.

 

- Nem precisa dizer - bufou o homem, erguendo a mão. - Sou Gudmundur. E você é o reverendo que está tentando salvar nossa assassina.

 

- Bem, eu...

 

- Um trabalho medonho - interrompeu o homem. - Ela me dá arrepios.

 

- O que quer dizer?

 

O criado riu.

 

- Ela é selvagem.

 

Tóti esporeou o cavalo para manter o ritmo.

 

- O que aconteceu? Aquele bilhete...

 

- Ah, ela teve um ataque. Lutou contra Jón e eu, arranhou e agarrou, gritando o tempo todo, encharcada, deitada na lama como uma louca. Está vendo isto? - perguntou, apontando para um machucado na testa. - Foi obra dela. Tentei levantá-la, e ela tentou arrancar meus miolos com uma pedra. Berrando coisas sobre Blöndal. A mesma cena que dizem ter feito em Stóra-Borg, que a fez ser transferida.

 

- Tem certeza?

 

A Tóti, Agnes parecia muito contida.

 

- Achei que ela iria me matar ali mesmo.

 

- O que a aborreceu?

 

O homem fungou e limpou o nariz com um dedo enluvado.

 

- O diabo é que não sei. Uma das garotas disse algo. Mencionou a outra garota, a criada que apanharam. Sigga.

 

Tóti se virou e olhou para as poças na trilha diante deles. Ele se sentia doente.

 

- Não tem má aparência - disse Gudmundur, virando-se para Tóti com um brilho no olho.

 

- Perdão?

 

- Agnes. Belos cabelos e tudo o mais - disse o criado. - Mas alta demais para mim. Precisa ser mais ou menos uma cabeça mais baixa, sabe? - falou, piscando para Tóti e rindo.

 

Tóti ajeitou o chapéu de montaria mais apertado na cabeça. A chuva diminuiu por um minuto, depois voltou a cair enquanto eles entravam no vale, lâminas cinzentas lavando a terra curvada à frente e água escorrendo dos precipícios rochosos das montanhas.

 

Agnes estava na cama quando Tóti entrou no badstofa. Kristín, a criada, levou um tamborete para ele, e a filha mais jovem começou a cuidar de suas roupas molhadas. Quando Lauga se curvou para soltar suas botas, Tóti espiou o canto escuro onde Agnes estava sentada, em posição assustadoramente imóvel.

 

Lauga retirou sua segunda bota com um puxão repentino que quase o derrubou do banco.

 

- Eu agora os deixarei - disse ela, e saiu do quarto, segurando as botas à frente com os braços esticados.

 

Tóti foi até Agnes com as meias encharcadas. Ele se apoiou na coluna de madeira junto à cama e, enquanto se aproximava, viu que havia sido algemada.

 

- Agnes?

 

Agnes abriu os olhos e o encarou inexpressiva.

 

Tóti sentou-se na beirada da cama. A pele dela parecia cinza à luz fraca, e seu lábio estava cortado e ensanguentado.

 

- O que aconteceu? - perguntou gentilmente. - Por que a prenderam de novo?

 

Agnes baixou os olhos para os pulsos, como se surpresa de ver os ferros ali. Engoliu em seco.

 

- Sigga vai ter uma apelação. Blöndal está apelando ao rei para reduzir a sentença que deu a ela - disse, a voz falhando. - Sentem pena dela.

 

Tóti sentou-se e aquiesceu.

 

- Eu sabia.

 

Agnes ficou chocada.

 

- Você sabia?

 

- Eles também têm pena de você - acrescentou, tentando consolá-la.

 

- Você está errado - sibilou ela. - Eles não têm pena de mim; eles me odeiam. Todos eles. Especialmente Blöndal. E quanto a Fridrik? Também estão apelando da sentença dele?

 

- Acredito que não.

 

Os olhos de Agnes brilharam nas sombras. Tóti achou que estaria chorando, mas quando se inclinou para a frente viu que os olhos dela estavam secos.

 

- Vou lhe dizer uma coisa, reverendo Tóti. Por toda a minha vida as pessoas acharam que eu era inteligente demais. Astuta, elas diziam. E quer saber, reverendo? É exatamente por isso que não sentem pena de mim. Porque acham que sou esperta demais, sei demais para estar metida nisso por acaso. Mas Sigga é idiota, bonita e jovem, e por isso não querem vê-la morrer - disse, recostando-se na coluna e apertando os olhos.

 

- Tenho certeza de que não é verdade - disse Tóti, tentando acalmá-la.

 

- Acha que se eu fosse jovem e obtusa, todos estariam apontando o dedo para mim? Não. Eles iriam pôr a culpa em Fridrik, diriam que ele nos dominou. Que nos forçou a matar Natan porque queria seu dinheiro. Que Fridrik desejava um pouco do que Natan tinha não é nenhum segredo. Mas eles veem que eu tenho uma cabeça sobre os ombros e acreditam que não é possível confiar em uma mulher que pensa. Acreditam que não há espaço para a inocência. E, goste disso ou não, reverendo, esta é a verdade.

 

- Achei que você não acreditava na verdade - provocou Tóti.

 

Agnes ergueu a cabeça da coluna e o encarou, os olhos mais claros que nunca. Fez uma careta.

 

- Por falar em verdade, tenho uma pergunta para o senhor. Diz que Deus fala a verdade?

 

- Sempre.

 

- E Deus disse "não matarás"?

 

- Sim - respondeu Tóti com cautela.

 

- Então Blöndal e o resto estão indo contra Deus. São hipócritas. Dizem que estão executando a lei de Deus, mas estão apenas fazendo a vontade dos homens!

 

- Agnes...

 

- Eu tento amar a Deus, reverendo. Tento. Mas não posso amar a esses homens. Eu... Eu os odeio.

 

Ela disse as últimas palavras lentamente, entre dentes trincados, agarrando a corrente que ligava os ferros em seus pulsos.

 

Houve uma batida na porta do badstofa, e Margrét entrou com suas filhas e Kristín.

 

- Desculpe-me, reverendo. Não nos dê atenção. Vamos trabalhar e falar entre nós.

 

Tóti assentiu, soturno.

 

- Como vai a colheita?

 

Margrét bufou.

 

- Com todo esse clima úmido de agosto... - respondeu, voltando-se para seu tricô.

 

Tóti olhou para Agnes, que deu um sorriso fraco.

 

- Eles agora sentem ainda mais medo de mim - sussurrou.

 

Tóti pensou. Ele se virou para o grupo de mulheres.

 

- Margrét, não seria possível remover esses ferros?

 

Margrét olhou para os pulsos de Agnes e baixou as agulhas. Saiu do aposento e voltou pouco depois com uma chave. Destrancou os ferros.

 

- Eu vou deixá-los aqui, reverendo - disse ela, rígida, erguendo as algemas para a prateleira acima da cama. - Caso precise.

 

Tóti esperou que Margrét voltasse para o outro lado do aposento e então olhou para Agnes.

 

- Você não deve agir assim novamente - disse em voz baixa.

 

- Não era eu mesma - falou.

 

- Você diz que a odeiam? Não lhes dê mais motivos.

 

Ela anuiu.

 

- Fico contente que esteja aqui - disse, fazendo uma pausa antes de continuar. - Tive um sonho na noite passada.

 

- Um bom sonho, espero.

 

Ela balançou a cabeça.

 

- Sonhou com o quê?

 

- Morrer.

 

Tóti engoliu em seco.

 

- Está com medo? Gostaria que eu rezasse por você?

 

- Faça como quiser, reverendo.

 

- Então vamos rezar.

 

Ele olhou para o grupo de mulheres antes de pegar a mão fria e úmida de Agnes.

 

- Senhor Deus, rezamos nesta noite com o coração triste. Dê-nos força para suportar os fardos que devemos carregar e coragem para encarar nosso destino.

 

Tóti parou e olhou para Agnes. Estava consciente de que as outras mulheres o escutavam. Continuou.

 

- Senhor, agradeço pela família de Kornsá, que nos abriu sua casa e seus corações - rezou, e ouviu Margrét pigarrear. - Eu rezo por eles. Rezo para que tenham compaixão e piedade. Esteja sempre conosco, ó Senhor, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

 

Tóti apertou a mão de Agnes. Ela olhou para ele, a expressão impenetrável.

 

- Acha que é meu destino estar aqui?

 

Tóti pensou um momento.

 

- Nós traçamos nosso próprio destino.

 

- Então isso não tem nada a ver com Deus?

 

- Está além de nossa compreensão - disse Tóti. Ele gentilmente colocou a mão dela de volta no cobertor. A sensação de sua pele fria o perturbava.

 

- Estou muito sozinha - disse Agnes em uma constatação.

 

- Deus está com você. Eu estou aqui. Seus pais estão vivos.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Podem muito bem estar mortos.

 

Tóti lançou um olhar rápido para as mulheres tricotando. Lauga pegara a meia pela metade do colo de Steina e soltava a lã para corrigir um erro.

 

- Tem algum ente querido que eu pudesse convocar? - perguntou a Agnes, sussurrando. - Alguém dos velhos tempos?

 

- Tenho um meio-irmão, mas apenas Jesus sabe em qual badstofa ele está neste momento. Também uma meia-irmã. Helga. Está morta. Uma sobrinha. Morta. Todos estão mortos.

 

- E quanto a amigos? Algum amigo a visitou em Stóra-Borg?

 

Agnes deu um sorriso amargo.

 

- A única visita em Stóra-Borg foi Rósa Gudmundsdóttir de Vatnsendi. E não acho que possa descrevê-la como uma amiga.

 

- Poet-Rósa.

 

- Primeira e única.

 

- Dizem que fala em versos.

 

Agnes respirou fundo.

 

- Ela foi me procurar em Stóra-Borg com um poema.

 

- Um presente?

 

Agnes se empertigou e aproximou.

 

- Não, reverendo. Uma acusação - disse objetivamente.

 

- Do que ela a acusou?

 

- De tornar sua vida sem sentido - disse Agnes, fungando. - Entre outras coisas. Não foi seu melhor poema.

 

- Ela devia estar aborrecida.

 

- Rósa me culpou quando Natan morreu.

 

- Ela amava Natan.

 

Agnes parou e olhou para Tóti.

 

- Ela era uma mulher casada! - exclamou, um tremor de raiva na voz. - Ela não podia amá-lo!

 

Tóti percebeu que as outras mulheres haviam parado de tricotar. Estavam olhando para Agnes, cuja última frase havia chegado nitidamente ao outro lado do aposento. Ele se levantou para pegar o banco extra diante de Kristín.

 

- Temo que estejamos perturbando vocês - disse a elas.

 

- Tem certeza de que não quer usar os ferros? - perguntou Lauga, nervosa.

 

- Acho que estamos melhor sem eles - disse, voltando para junto de Agnes. - Talvez devêssemos falar de outra coisa.

 

Ele estava ansioso para que ela permanecesse calma na frente da família de Kornsá.

 

- Elas ouviram? - sussurrou Agnes.

 

- Vamos falar sobre seu passado - sugeriu Tóti. - Fale mais sobre seus meios-irmãos.

 

- Eu mal os conheci. Tinha cinco anos quando meu irmão nasceu, e nove quando soube de Helga. Ela morreu quando eu tinha vinte e um. Só a vi algumas vezes.

 

- E não é íntima do seu irmão?

 

- Fomos separados quando ele só tinha um inverno.

 

- Quando sua mãe a deixou?

 

- Sim.

 

- Então você se lembra dela de antes?

 

- Ela me deu uma pedra.

 

Tóti lançou um olhar interrogativo para ela.

 

- Para colocar debaixo da língua. É uma superstição - explicou Agnes, franzindo o cenho. - Os funcionários de Blöndal a tomaram.

 

Tóti percebeu Kristín se levantando para acender as velas - o clima ruim deixara o aposento bastante escuro, e o dia terminava rapidamente. Diante dele, só podia ver os brancos braços nus de Agnes acima das cobertas. Seu rosto estava nas sombras.

 

- Acha que elas me deixarão tricotar? - sussurrou Agnes, inclinando a cabeça na direção das mulheres. - Gostaria de fazer algo enquanto converso com você. Não suporto ficar parada.

 

- Margrét? - chamou Tóti. - Tem algum trabalho para Agnes?

 

Margrét parou, depois esticou a mão e pegou o tricô das mãos de Steina.

 

- Aqui. Está cheio de furos. Precisa ser desfeito - disse, ignorando a expressão de constrangimento no rosto de Steina.

 

- Lamento por ela - disse Agnes, lentamente puxando fios de lã retorcida.

 

- Steina?

 

- Disse que queria fazer uma petição por mim.

 

Tóti hesitou. Viu Agnes enrolar a lã solta em uma bola frouxa e não falou nada.

 

- Acha que é possível, reverendo Tóti? Organizar um apelo ao rei?

 

- Não sei, Agnes.

 

- Pediria a Blöndal? Ele o escutaria, e Steina poderia falar com o oficial distrital Jón.

 

Tóti pigarreou, pensando no tom paternalista de Blöndal.

 

- Prometo fazer o possível. Agora, por que não conversa comigo?

 

- Sobre minha infância de novo?

 

- Caso queira.

 

- Bem - disse Agnes, empertigando-se na cama para poder tricotar com mais liberdade. - O que devo lhe dizer?

 

- Fale do que se lembra.

 

- Não iria achar interessante.

 

- Por que pensa assim?

 

- É um padre - respondeu Agnes com firmeza.

 

- Gostaria de ouvir sobre sua vida - retrucou Tóti gentilmente.

 

Agnes se virou para ver se as mulheres estavam escutando.

 

- Eu lhe contei que morei na maioria das fazendas deste vale.

 

- Sim - concordou Tóti, acenando com a cabeça.

 

- Inicialmente como filha adotiva, depois como indigente.

 

- É lastimável.

 

A boca de Agnes tornou-se uma linha fina.

 

- É bastante comum.

 

- Quem a adotou?

 

- Uma família que vivia onde estamos agora. Meus pais adotivos se chamavam Inga e Björn e alugavam a cabana de Kornsá na época. Até Inga morrer.

 

- E você foi deixada com a paróquia?

 

- Sim - anuiu Agnes. - As coisas são assim. A maioria das pessoas boas logo está debaixo da terra.

 

- Lamento ouvir isso.

 

- Não há motivo para lamentar, reverendo, a não ser, claro, que o senhor a tenha matado - disse Agnes olhando para ele, e Tóti percebeu um breve sorriso passar pelo rosto. - Eu tinha oito quando Inga morreu. Seu corpo nunca serviu para produzir crianças. Cinco bebês morreram sem respirar antes que meu irmão adotivo nascesse. O sétimo a levou para o céu.

 

Agnes fungou e começou a refazer cuidadosamente os pontos soltos. Tóti escutou os estalos leves das agulhas de osso e olhou sub-repticiamente para as mãos de Agnes, que se moviam rápido sobre a lã. Seus dedos eram compridos e finos, e ele ficou impressionado com a velocidade com que trabalhavam. Lutou contra um desejo irracional de tocá-los.

 

- Oito invernos - repetiu ele. - E você se lembra bem da morte dela?

 

Agnes parou de tricotar e olhou novamente para as mulheres. Haviam ficado em silêncio e escutavam.

 

- Se eu lembro? - repetiu, um pouco mais alto. - Gostaria de conseguir esquecer.

 

Ela soltou o dedo indicador da trama de lã e o levou à testa.

 

- Aqui dentro. Posso chegar àquele dia como se fosse uma página de um livro. Está escrito tão fundo em minha mente que quase posso sentir o gosto da tinta.

 

Agnes olhou diretamente para Tóti, o dedo ainda na testa. Ele estava nervoso com o brilho nos olhos dela, o lábio ensanguentado, e pensou se a notícia do apelo de Sigga não a havia de fato deixado um pouco louca.

 

- O que aconteceu? - perguntou ele.

 

Neste ano de 1828, em 29 de março, nós, os funcionários lotados em Stapar, Vatnsnes - transcrevendo a descrição oral do comissário distrital Blöndal -, registramos o valor dos bens das prisioneiras Agnes Magnúsdóttir e Sigrídur Gudmundsdóttir, ambas criadas em Illugastadir. São os seguintes os bens, registrados como pertencentes aos indivíduos mencionados, e seus respectivos valores:

 

Agnes Magnúsdóttir

rbl.

rbsk

 

  1. Um xale feminino simples tecido de lã azul.

48

 

  1. Saia azul velha com corpete azul de lã simples, tecido com colarinho vermelho e oito botões de prata.

1

64

 

  1. Camisa azul de lã simples tecida com colarinho verde, com seis ornamentações de estanho.

20

 

  1. Um chapéu azul velho e os restos de outro preto, queimado.

10

 

  1. Duas saias pretas compridas.

20

 

  1. Uma combinação velha e desbotada azul.

80

 

  1. Avental listrado de tecelagem islandesa.

10

 

  1. Uma medida de lã branca simples tecida.

16

 

  1. Um livro evangélico: no 33-38.

16

 

  1. Quatro medidas de tecido verde com borda sarte, danificadas.

10

 

  1. Um copo pequeno e uma xícara.

16

 

  1. Um volume de índigo e aproximadamente duas folhas de papel.

20

 

  1. Duas agulhas de tricô e um par de tesouras velhas.

6

 

  1. Sete botões de cobre e dois de prata, aproximadamente vinte outros botões e alguns ganchos e uma presilha de cobre.

24

 

  1. Um saco branco com objetos inúteis dentro.

20

 

  1. Dois pares de meia, um azul, outro branco, e palmilha amarelada.

12

 

  1. Um estojo de agulhas, dedal e um par de luvas brancas.

8

 

  1. Uma caixa pequena, uma tigela de madeira pequena e várias caixinhas.

20

 

Sigrídur Gudmundsdóttir

rbl.

rbsk

 

  1. Dois xales amarelados danificados.

80

 

  1. Uma saia azul de má qualidade tecida de lã simples.

40

 

  1. Uma saia azul com corpete danificado.

24

 

  1. Um velho tecido listrado fino.

24

 

  1. Um velho chapéu azul com pala de seda verde, danificado.

8

 

  1. Uma pequena camisola com seda verde gêmea.

10

 

  1. Uma ovelha, atualmente em Illugastadir, e feno.

2

 

Selamos e certificamos que os bens acima compõem todos os pertences das prisioneiras mencionadas.

 

Testemunhado por:

  1. Sigurdsson, G. Gudmundsson

 

Isso é o que digo ao reverendo.

 

A morte aconteceu, e da forma habitual que acontece, mas foi diferente de tudo.

 

Começou com as luzes do Norte. Aquele inverno estava tão frio que eu acordava toda manhã com uma fina camada de gelo em meu cobertor formada por meu hálito congelado, que caía enquanto eu dormia. Eu morava então em Kornsá, havia dois ou três anos. Kjartan, meu irmão adotivo, tinha três anos. Eu era apenas cinco anos mais velha.

 

Certa noite, nós dois estávamos trabalhando no badstofa com Inga. Na época, eu a chamava de mamãe, pois é o que era para mim. Ela notou que eu aprendia rápido e me ensinou o que sabia o melhor que pôde. O marido, Björn, eu também tentava chamar de papai, mas ele não gostava. Também não gostava que eu lesse ou escrevesse, e não hesitava em arrancar o estudo de mim a chicotadas se me apanhasse nisso. "Vulgar para uma garota", dizia. Inga era matreira; esperava que ele dormisse e então me acordava, e líamos os salmos juntas. Ela me ensinou as sagas. Durante o kvöldvaka, ela as contava de cor e, quando Björn adormecia, me fazia recitar as histórias para ela. Björn nunca soube que a esposa traía suas ordens em meu benefício, e duvido que tenha entendido por que sua esposa adorava as sagas daquele modo. Ele aceitava suas histórias de sagas com o ar de um homem aceitando o capricho incompreensível de uma criança. Quem sabe como eles acabaram me adotando. Talvez fossem parentes de mamãe. Talvez precisassem de mais duas mãos.

 

Naquela noite Björn saíra para alimentar o gado e quando voltou estava de bom humor.

 

- Vejam vocês, apertando os olhos junto à lamparina quando do lado de fora o céu está em chamas - disse, rindo. - Venham ver as luzes.

 

Então coloquei a roca de lado, peguei a mão de Kjartan e o levei para fora. Mamãe Inga estava grávida e não nos acompanhou. Apenas acenou e continuou a bordar. Fazia uma nova colcha para minha cama, mas nunca a terminou, e até hoje não sei o que aconteceu com ela. Talvez Björn a tenha queimado. Ele queimou muitas das coisas dela mais tarde.

 

Mas naquela noite Kjartan e eu saímos para o ar frio, nossos pés esmagando a neve no chão, e logo entendemos por que Björn tinha nos chamado. O céu inteiro estava tomado por cores como eu nunca tinha visto. Grandes cortinas de luz se moviam como se sopradas por um vento, rolando acima de nós. Björn estava certo - parecia que o céu noturno queimava lentamente. Havia manchas violeta que inchavam na escuridão da noite, e as estrelas se espalhavam sobre ela. As luzes cresciam, como ondas, depois eram subitamente interrompidas por novas faixas de um verde violento que penetravam no céu como se despencando de grande altura.

 

- Veja, Agnes - disse meu pai adotivo, virando-me pelos ombros para que eu pudesse ver como o brilho das luzes do Norte destacava com precisão a cordilheira. Apesar do adiantado da hora, eu podia ver o conhecido horizonte irregular.

 

- Veja se consegue tocar - disse Björn, e joguei meu xale na neve para poder erguer os braços para o céu. - Você sabe o que isso significa - acrescentou. - Significa que haverá uma tempestade. As luzes do Norte sempre anunciam tempo ruim.

 

Ao meio-dia do dia seguinte, o vento começou a açoitar a cabana, levantando a neve que caíra durante a noite e lançando-a contra as peles secas que havíamos esticado sobre as janelas para barrar o frio. Era um som sinistro - o vento arremessando neve sobre nossa casa.

 

Inga não se sentia bem naquela manhã e permaneceu na cama, então preparei nossa refeição. Estava na cozinha, colocando a chaleira no braseiro, quando Björn veio do depósito.

 

- Onde está Inga? - perguntou.

 

- No badstofa - respondi. Vi Björn tirar seu capuz e sacudir o gelo no braseiro. A água caiu nas pedras quentes.

 

- O fogo está soltando fumaça demais - disse, franzindo o cenho, depois me deixou com meus afazeres.

 

Quando havia fervido um pouco de musgo e feito um mingau, levei-o ao badstofa. Estava bastante escuro no aposento, e assim que servi a refeição a Björn corri para o depósito para pegar mais óleo para a lamparina. O depósito ficava perto da porta da cabana, e tão logo me aproximei dela ouvi o vento uivando, cada vez mais alto, e soube que uma tempestade se aproximava rapidamente.

 

Não estou certa de por que abri a porta para olhar do lado de fora. Suponho que estava curiosa. Mas alguma estranha compulsão tomou conta de mim, e soltei a trava para espiar o tempo.

 

Era uma visão sinistra. Nuvens escuras desciam sobre a cordilheira, e, sob seu negror enfumaçado, neve cinza rodopiava até onde era possível ver. O vento era feroz, e uma grande rajada gelada de repente se chocou contra a porta com tal força que me arrancou do chão. A vela na parede do corredor se apagou, e de dentro da cabana Björn perguntou aos berros que diabos eu achava que estava fazendo para deixar a nevasca entrar na casa dele.

 

Joguei o peso contra a porta para fechá-la, mas o vento estava forte demais. Minhas mãos endureceram com a rajada de ar frio. Era como se o vento fosse alguma forma de espírito exigindo entrar. Então, de repente, o vento parou, e a porta se fechou com uma batida. Como se o espírito tivesse finalmente entrado e fechado a porta atrás de si.

 

Voltei ao badstofa com óleo e enchi as lamparinas. Björn estava com raiva de mim por deixar o ar frio entrar com Inga em estado tão delicado.

 

A nevasca se abateu sobre nossa cabana naquela tarde e durou três dias. No segundo, Inga começou a ter seu bebê.

 

Era cedo demais.

 

Mais tarde naquela noite, em meio ao som produzido por vento, neve e gelo, Inga começou a sentir dores terríveis. Ela parecia temer que também aquele bebê chegasse antes da hora.

 

Quando Björn se deu conta de que o bebê estava vindo, mandou Jón, seu criado, à fazenda do irmão buscar sua cunhada e a criada deles. Meu pai adotivo mandou Jón contar às mulheres o que estava acontecendo, para que pudessem pelo menos dar conselhos caso não conseguissem voltar com ele. Jón protestou, dizendo que a nevasca estava tão forte que não se podia esperar que ele fizesse aquilo, porém Björn era um homem exigente. Então Jón vestiu roupas grossas e saiu, mas voltou pouco depois, coberto de gelo e neve, e disse a meu pai adotivo que não conseguia ver dois passos à frente e que não seria obrigado a ir além do curral quando o clima só prometia morte. Mas Björn o obrigou a tentar de novo, e quando Jón voltou, parcialmente congelado de frio, dizendo que mal podia ficar em pé no vento e que não conseguira andar mais de dois metros, meu pai adotivo o pegou pelo colarinho do casaco e o empurrou para fora. Mas acho que ao abrir a porta, viu como o clima estava perigoso, pois quando Jón voltou para dentro alguns minutos depois, tremendo de frio e raiva, Björn não disse nada, permitindo que ele se despisse e entrasse na cama para se recuperar.

 

Tenho certeza de que nesse momento Björn também ficou assustado.

 

Inga permanecera na cama e gemia de dor, branca como leite e tomada por um tremor que a deixava coberta de suor. Björn a carregou do badstofa para o sótão - nessa época havia um sótão nessa cabana -, para que ela pudesse ter alguma privacidade, mas quando a ergueu sua camisola e o lençol da cama estavam encharcados, e gritei de surpresa. Pensei que ela tivesse se urinado.

 

- Não a mova, Björn! - pedi, porém ele me ignorou e carregou minha mãe adotiva escada acima, pedindo que eu fervesse água e levasse um pano grosso para ele. Fiz como foi pedido, levando o novo tecido que eu mesma havia feito. Perguntei se podia ver mamãe, mas ele me mandou cuidar de Kjartan, então retornei ao badstofa.

 

Kjartan deve ter percebido que havia algo errado, pois choramingava quando eu retornei. Enquanto eu me sentava na nossa cama, ele subiu nela com dificuldade, e em meu próprio medo e necessidade de consolo eu o puxei para meu colo, e ficamos sentados, escutando a tempestade e esperando que Björn nos dissesse o que fazer.

 

Esperamos muito tempo. Kjartan adormeceu em meu pescoço, então eu o coloquei na cama e tentei cardar um pouco de lã, separando os emaranhados em finos tufos entre as pás, e selecionando pequenas rebarbas. Mas meus dedos tremiam. O tempo todo eu podia ouvir Inga gritando no sótão. Lembrei a mim mesma que gritar era normal e que logo teria um novo irmão ou irmã adotiva para amar.

 

Após algumas horas Björn desceu do sótão. Entrou no badstofa, e vi que ele segurava um pequeno fardo. Era o bebê. O rosto de Björn estava lívido, e ele estendeu a coisinha e me fez tomá-lo nos braços. Depois saiu do aposento e voltou ao sótão para cuidar da esposa.

 

Eu estava excitada de segurar o bebê. Era muito pequeno e leve e não se mexia muito, mas gemia, franzia olhos e boca, e seu rosto era muito vermelho e de aparência medonha. Eu o desenrolei e vi que era uma menina. A essa altura, Kjartan havia acordado. Ficou gelado ali dentro; o vento penetrava por alguma rachadura, e uma rajada de repente apagou a maioria das velas de sebo que havíamos acendido e colocado na mesa. Restou apenas uma vela, e, em sua luz bruxuleante, nossas sombras dançavam sobre a parede, e Kjartan começou a chorar. Fechou os olhos e enfiou a cabeça em meu ombro.

 

Como ficara muito frio, tentei enfiar o bebê enrolado dentro do meu xale, e usei meu travesseiro para mantê-lo junto ao peito. Mas não tínhamos travesseiros de penas, só de algas, e eles não forneciam muito calor. Então o bebê parou de chorar, e pensei que talvez não estivesse frio demais e tudo ficaria bem. Usei meus dedos para limpar um pouco do fluido grosso da cabeça do bebê, depois Kjartan e eu o beijamos.

 

Ficamos um bom tempo sentados juntos na cama. Horas se passaram. A sensação era de que dias poderiam ter transcorrido. Continuou escuro e frio, e a tempestade rugia sem parar. Pedi a Kjartan que pegasse os cobertores na cama dos pais, e nos enrolamos neles, aninhados para obter calor. Os gemidos de Inga vinham de cima sem parar. Parecia o som de alguém dormindo e tendo um pesadelo terrível: uma linguagem medonha sem palavras, apenas sons, em tom frágil. Enquanto isso, o vento soprava com tanta força que algumas vezes eu não sabia se era Inga gritando ou o vento fazendo a vela tremular em seu castiçal.

 

Eu colocara o braço ao redor de Kjartan e usara o outro para levar o bebê ao meu peito, pedindo que ambos tentassem escutar meu coração para que ignorassem a nevasca.

 

Acho que adormecemos. Digo que acho porque não me lembro de acordar, mas me lembro de, subitamente, ver Björn em pé no badstofa. A última vela morrera, e na escuridão do aposento eu só podia vê-lo em pé imóvel, a cabeça tombada.

 

- Inga está morta - disse, as palavras caindo pesadas no aposento. - Minha esposa está morta.

 

- Björn, o bebê está aqui - disse eu. - Pegue o bebê - pedi, e o tirei de sob os cobertores, oferecendo-o a ele.

 

Ele não quis pegá-lo.

 

- O bebê também está morto - disse.

 

Baixei os olhos para o que tinha nas mãos e vi que o bebê ficara imóvel e não estava mais quente. Os cobertores só estavam quentes porque eu os pressionara em meu corpo. Comecei a chorar. Kjartan viu o pequeno rosto azul do bebê com o sangue ainda grudado na bochecha, viu que não se movia e começou a choramingar. Björn nos observou. Fiquei aborrecida, coloquei o bebê na cama e me joguei no chão com o rosto nas mãos. Lamentando-me, berrei:

 

- Eu também quero morrer!

 

- Talvez morra - retrucou Björn. Foi tudo o que ele disse para me consolar. - Talvez você também morra.

 

Fiquei um longo tempo deitada no chão, aos berros. Lembro que as tábuas - as mesmas aqui agora sob nossos pés - estavam molhadas e sujas das minhas lágrimas e do que escorria do meu nariz. Eu estava com raiva de Björn, sentado na cama no escuro com a cabeça entre as mãos e sem chorar, sem gritar, sem me dizer para acabar com o ataque e me levantar. Ele estava tão congelado quanto o solo do lado de fora. Então gritei e rolei no chão até meus olhos incharem e minhas mãos doerem de socar a madeira. Uivei como a nevasca do lado de fora até lembrar de Inga no sótão, e então me levantei e saí correndo do aposento, tropeçando em minhas saias e caindo de joelhos. Subi a escada e corri para o sótão.

 

Havia uma pequena janela no teto, acima das vigas. Normalmente enchíamos o buraco com tecido para bloquear chuva e neve, mas o tecido caíra e deixava entrar um pouco de luz azul, embora a nevasca continuasse. Estava extremamente frio no quarto. Minha respiração saía flutuando em uma nuvem macia. Muita neve havia sido soprada para dentro e derretera, formando uma grande poça no chão, e primeiro vi essa poça, como ela refletia a luz que entrava pela janela, de modo que o chão brilhava, como um espelho. Depois vi Inga.

 

À luz azul do quarto seu sangue parecia roxo. Estava deitada em um estreito colchão de feno, sobre o tecido que eu dera antes a Björn, com a diferença de que o tecido já não era branco, mas escuro de sangue. Seus olhos estavam abertos e refletiam a luz em cintilações úmidas que me faziam pensar que ainda estava viva. Eu me curvei sobre ela, gritei "mamãe!" e coloquei a mão em seu ombro, mas quando a toquei, soube que estava morta. O corpo endurecera e estava frio ao toque.

 

O sangue dela estava por toda parte. Enegreceu sua camisola, estava sobre suas pernas e a cama, sujava seus ombros nus, e percebi que as mãos, caídas ao lado do corpo com as palmas para cima, também estavam cobertas dele, exatamente como quando ela fazia salsicha, deixando o sangue coagular e passando-o pelo linho. O rosto estava branco, branco demais no quarto escuro, e seus cabelos haviam caído da touca e pendiam duros sobre a testa.

 

Eu nunca me esquecerei do cheiro. Aquele quarto estava tomado pelo cheiro de seu sangue e pelo cheiro seco e limpo da neve nas tábuas do piso. Respirar me deixou nauseada.

 

A camisola de Inga estava enrolada na cintura, então puxei-a sobre as pernas, dura de sangue como estava, para que seu corpo não ficasse tão nu. Então beijei sua boca flácida. Finalmente, tirei a touca e enfiei meu rosto em seus cabelos. Era a única parte dela que ainda cheirava como minha mãe adotiva, e não a sangue. Deitei meu corpo ao lado dela e cobri meu rosto com seus cabelos compridos, respirando, não sei por quantos minutos, até Jón empurrar a cortina do sótão para o lado e me pegar, levando-me de volta para a cama no andar de baixo.

 

E quando acordei novamente a nevasca havia passado.

 

Isso é o que digo ao reverendo. Tento contar a história da melhor forma possível. Deixo que as palavras saiam enquanto tricoto, lançando pequenos olhares para o rosto do reverendo para ver se está comovido.

 

Posso sentir os outros escutando. Posso sentir Steina, Margrét, Kristín e Lauga esticando as orelhas para nós no canto escuro, comendo a história como pão com manteiga fresca. Margrét e Lauga talvez estejam pensando que eu mereci, ou quem sabe sentem pena de mim. Steina deve achar que sou como ela - infeliz, ignorada. Errada.

 

Mas como outros estão escutando, não posso perguntar ao reverendo o que quero. Não posso dizer: "Reverendo, acha que estou aqui porque quando era criança disse que queria morrer? Porque quando disse isso eu falava sério. Proferi como uma prece. Espero morrer. Então escrevi meu próprio destino?".

 

Quero perguntar ao reverendo se acha que matei o bebê. Eu o segurei apertado demais? Mas não há jeito certo de fazer essa pergunta, e não quero colocar mais pensamentos na cabeça daquelas mulheres. Há algumas coisas que elas não devem ouvir.

 

Parece que todas as pessoas que amo são tiradas de mim e enterradas no chão, enquanto eu permaneço só.

 

Então é bom que não reste ninguém para amar. Ninguém para enterrar.

 

- O que aconteceu depois? - perguntou Tóti. Ele se deu conta de que mal havia respirado durante a história de Agnes.

 

- É estranho - disse Agnes, usando o dedinho para enrolar a lã na ponta da agulha. - Na maioria das vezes em que penso no tempo que era mais moça, tudo está enevoado. Como se olhasse para as coisas através de um vidro escurecido. Mas a morte de Inga, e tudo o que aconteceu depois... Quase sinto que foi ontem.

 

Do outro lado do aposento, uma cadeira raspou no chão. Margrét deu uma tossida abafada.

 

- Lembro-me de que depois da morte de Inga, Jón saiu para buscar os parentes de Björn - continuou Agnes. - Lembro-me de estar deitada na minha cama vendo meu pai adotivo sentado no banco que Inga usava para fiar. O traseiro dele mal cabia no assento. Kjartan estava na cama comigo, dormindo quente e pesado em meu ombro. O vento diminuíra, e de repente tudo ficou muito silencioso.

 

- Ouvimos o estalar de arreios no pátio do lado de fora. Então Björn se levantou lentamente e foi na direção de minha cama. Pegou meu irmão com um braço para que eu pudesse sentar e me disse para pegar o bebê morto, enrolar seu rosto em um cobertor e colocá-lo no depósito.

 

- O bebê parecia mais leve morto do que vivo. Eu o mantive longe de mim e segui pelo corredor apenas de meias.

 

- Estava gelado no depósito. Eu podia ver a névoa de meu hálito à minha frente, e minha testa doía com o frio. Cobri o rosto do bebê com uma ponta do pano em que estava enrolado e o coloquei sobre um saco de cabeças de bacalhau secas. Quando voltei para o corredor uma rajada de ar gelado acertou a lateral de meu rosto, e eu me virei para a porta aberta vendo o rosto do irmão e da cunhada de Björn e da criada deles surgindo da escuridão do lado de fora. Suas bochechas estavam molhadas e brilhantes da chuva congelada.

 

- Lembro-me de tio Ragnar e Jón descendo Inga do sótão com cuidado, enquanto Björn permanecia do lado de fora cuidando das ovelhas. Era meu trabalho cuidar para que eles não batessem a cabeça dela nos degraus da escada. Eles a levaram para o badstofa e a colocaram na cama nua. Tia Rósa estava na cozinha esquentando água, e quando perguntei o que fazia, ela disse que iria limpar o corpo de minha pobre mãe adotiva. Ela não me permitiu ver. Deixou que Kjartan ficasse brincando aos pés dela e ordenou que eu subisse ao sótão e ajudasse sua criada, Gudbjörg.

 

- Quando subi a escada, vi Gudbjörg esfregando o chão do piso. O cheiro me deixou nauseada, e comecei a chorar. Gudbjörg me tomou nos braços: Ela agora foi para Deus, Agnes. Está segura.

 

- Eu me sentei no chão com o xale de Gudbjörg ao redor de mim e fiquei observando o sacolejar de seus braços flácidos enquanto ela ajoelhava e esfregava a madeira. Gudbjörg torceu a água rosada do trapo várias vezes. Balançava a cabeça sem parar e algumas vezes fazia uma pausa para secar os olhos.

 

- Contei a Gudbjörg o que Björn dissera quando eu gritara que queria morrer, que dissera que eu talvez fosse a próxima. Gudbjörg me mandou calar e disse que Björn não estava em si e não falara a sério.

 

- Contei a ela sobre como Björn me dera o bebê para cuidar, que eu o segurara apertado e que ele morrera em meus braços e eu nem sequer notara.

 

- Gudbjörg me embalou como se eu mesma fosse um bebê. Disse que a criança não estava destinada a esta terra e que não era culpa minha não ter vivido. Disse que eu era corajosa e que Deus iria tomar conta de mim.

 

- Sabe onde Gudbjörg está hoje? - interrompeu Tóti.

 

Agnes levantou os olhos do tricô.

 

- Morta - disse, inabalável. Puxou o novelo de lã para soltar mais um pouco de fio. - Quando Ragnar, Kjartan e Björn retornaram do estábulo, Rósa chamou Gudbjörg e eu mesma do sótão, e nos sentamos no badstofa ao redor da cama onde Inga estava. Ela parecia limpa, mas imóvel. Assustadoramente imóvel, como quando o vento para e a grama não se move, e você se sente deixado para trás.

 

- Tio Ragnar, silenciosamente, nos passou um frasco de brandy. Era a primeira vez que eu provava álcool, e não gostei muito, mas Jón partira no cavalo de meu pai adotivo para ir buscar o reverendo, e não havia nada a fazer, a não ser esperar e beber. As horas se arrastavam, e me senti enjoada com o brandy, e os ossos de minhas pernas ficaram rígidos de tanto tempo sentada.

 

- Jón só voltou com o padre tarde da noite. Eu os deixei entrar. O reverendo se esqueceu de tirar a neve das botas.

 

- Gudbjörg, tia Rósa e eu servimos comida aos homens, e eles comeram com o prato no colo, Inga na cama diante deles. Tia Rósa havia acendido uma vela e colocou-a perto da cabeça de Inga, e eu verificava para garantir que não tombasse; estava preocupada que seus cabelos pegassem fogo.

 

- Assim que os homens haviam comido, as mulheres levaram a mim e a Kjartan para a cozinha, enquanto o reverendo falava com eles. Tentei escutar o que diziam, mas tia Rósa pegou meu braço, colocou Kjartan no colo e começou a contar uma história para nos distrair. Só parou quando tio Ragnar e Jón passaram pela porta aberta levando o corpo de Inga. Eles haviam coberto seu rosto com um pano. Eu queria saber para onde a estavam levando e me levantei para segui-los, mas tia Rósa apertou mais meu braço e me puxou para ela. Gudbjörg me contou rapidamente que o reverendo dissera que não havia nenhuma chance de fazer um enterro antes da primavera: o solo do cemitério da igreja estava totalmente congelado, e eles iriam manter minha pobre mãe adotiva no depósito até o chão descongelar e alguém poder cavar um túmulo. Fomos até a porta vê-los tirar Inga.

 

- O reverendo seguia meu pai pelo corredor. Eu o ouvi dizer: "Pelo menos isso lhe dá muito tempo para fazer os caixões". Então ele sugeriu que a colocassem no estábulo.

 

- Quente demais - retrucou meu pai adotivo.

 

- Tio Ragnar e Jón baixaram Inga junto ao bebê morto no depósito. Inicialmente a colocaram em um saco de sal, mas tio Ragnar observou que o sal poderia ser necessário antes que conseguíssemos enterrar Inga, então eles trocaram o sal por peixe seco, e pude ouvir os finos ossos secos do bacalhau se partindo no saco sob o peso de seu corpo.

 

- Quando eles a enterraram? - perguntou Tóti. Ele de repente se sentia claustrofóbico no badstofa, cercado pelos estalos abafados das agulhas de tricô e o chiado da lã.

 

- Ah, demorou bastante - disse Agnes. - Inga e o bebê ficaram no depósito até o final do inverno. Sempre que eu tinha de pegar mais óleo para as lamparinas ou ajudar Jón a rolar um barril para a despensa, eu via seus corpos no canto, colocados sobre os sacos de peixe seco.

 

- Kjartan não entendia o que havia acontecido com a mãe. Imagino que tenha se esquecido do bebê, mas sempre gritava chamando por Inga, sentado no chão do badstofa, uivando como um cachorro. Seu pai o ignorava, mas quando tio Ragnar nos visitava, Kjartan recebia um tapa nas orelhas. Logo parou de chorar.

 

- Tio Ragnar parecia estar sempre em Kornsá, conversando com Björn no badstofa ou levando brandy para ele. Björn ficara mais silencioso desde a nevasca. Quando eu servia seu jantar ele já não agradecia, apenas pegava a colher e começava a comer.

 

- E então um dia me disseram que Björn não me queria mais. Deve ter sido no começo da primavera; eu estava de mau humor e me recusara a jantar. Meu pai adotivo não dissera nada, nem mesmo uma palavra dura para me repreender por desperdiçar comida. Ele passava o tempo todo com os animais, que haviam começado a morrer de frio, e eu estava frustrada que ele os amasse e a Kjartan mais que a mim.

 

- O inverno acabara, e naquele dia havia um pouco de luz, então saí da mesa e decidi ir para fora. Ninguém me impediu. Passei rápido pelo corredor, peguei a pá que ficava junto à porta e comecei a cavar uma trilha para sair da cabana, gostando da sensação dos flocos de neve em minhas bochechas quentes. Assim que havia aberto um caminho, joguei a pá de lado e comecei a cavar a neve com as mãos, pegando grandes braçadas e jogando-as o mais longe que conseguia. Trabalhei até ter cavado um buraco bem grande. Quando parei para retomar o fôlego, ergui os olhos e vi uma mancha preta a distância: era tio Ragnar, em mais uma de suas visitas. Ele me cumprimentou e perguntou o que eu fazia coberta de neve. Expliquei que começara a cavar um túmulo para mamãe. Tio Ragnar franziu o cenho e disse que eu não devia chamá-la de mamãe, e perguntou se não me envergonhava de pensar em enterrá-la perto da porta, onde todos iriam pisar nela, e não no solo sagrado de um cemitério de igreja.

 

- Não seria melhor mantê-la aquecida no depósito até que possa repousar em paz em solo sagrado? - ele me perguntou.

 

- Eu balancei a cabeça. - O depósito está tão frio quanto a teta de uma bruxa - disse a ele.

 

- Tio Ragnar disse: "Cuidado com a boca, Agnes. Palavras feias revelam uma mente feia".

 

- Naquela noite, ele me disse que Björn iria desistir do aluguel de Kornsá e partir para Reykjavík, para trabalhar nas estações de pesca. O inverno matara minha mãe adotiva e seu bebê, bem como metade do rebanho de Björn, e sem uma esposa e sem nada para pagar os salários de outro ajudante, Björn não podia me manter. Kjartan foi viver com a tia e o tio, e quando o clima esquentou, fui colocada à misericórdia da paróquia.

 

- E foi assim que você se tornou uma indigente - disse Tóti.

 

Agnes anuiu, fazendo uma pausa no tricô para esticar os dedos. Pousou a meia no colo e ergueu os olhos para ele através da escuridão.

 

- Foi assim que me tornei uma indigente. Deixada à misericórdia dos outros, tenham eles alguma ou não.

 

Acordei cedo, e o badstofa ainda está tomado por sombras. Pensei que alguém estivesse curvado sobre meu ouvido sussurrando "Agnes, Agnes". O sussurro me arrancou dos meus sonhos, mas não há ninguém aqui, e um temor frio de repente invade meu coração.

 

Eu poderia jurar que alguém estava me chamando.

 

Fico deitada imóvel e tento escutar os outros respirando no escuro, para descobrir se alguém está acordado. O reverendo Tóti está na cama mais próxima, tendo decidido dormir em Kornsá por causa do adiantado da hora. Mas sei que não foi ele quem me acordou. Um padre não acordaria uma prisioneira sussurrando em seu ouvido como um amante.

 

Minutos se passam. Por que está tão escuro no aposento? Não consigo ver minhas mãos, embora as coloque acima dos olhos. O negror se entranha em minha mente, e meu coração adeja como um pássaro seguro firmemente na mão. Mesmo quando fecho os olhos com força, a escuridão continua ali, e agora também há tremores medonhos de luz bruxuleante. Meus olhos estão abertos ou fechados? Talvez tenha sido acordada por um fantasma - como posso explicar essas luzes surgindo no breu diante de mim? São como chamas descamando-se de uma parede, e o rosto de Natan está diante de mim, a boca arreganhada em um grito, os dentes ensanguentados e brilhantes, e seu corpo em chamas desprende flocos de carne calcinada em meus cobertores. Tudo cheira a gordura de baleia, a faca de Fridrik está afundada na barriga de Natan, e um grito sai do meu peito como se arrancado de minhas entranhas por uma corda.

 

As luzes desaparecem. Eu estivera sonhando? É como se o tempo tivesse parado.

 

- Reverendo Tóti? - sussurro.

 

Ele se vira no sono.

 

- Reverendo? Posso acender uma lamparina?

 

O reverendo não acorda facilmente - ele resiste, como um homem viciado em bebida. Eu o sacudo com mais força do que gostaria. Acho que está constrangido de acordar e me ver em roupas de baixo.

 

- O que é?

 

- Tive outro sonho.

 

- Como?

 

- Posso acender uma lamparina?

 

- A luz de Jesus é suficiente para qualquer cristão de verdade - disse, a voz arrastada de sono.

 

- Por favor, reverendo.

 

Ele não me ouviu. Começa a roncar.

 

Então volto para minha cama, desconfortável. Sinto cheiro de fumaça.

 

Minha mãe está morta. Inga está morta.

 

Está deitada em trapos no depósito, enquanto a neve e o gelo cravam suas presas sobre a terra e nos impedem de cavar buracos, abrir covas.

 

Tão frio que ela tem de esperar para ser enterrada.

 

Tão solitário que faço amizade com os corvos que espreitam as ovelhas.

 

Fecho meus olhos e me arrasto pela escuridão do corredor com a luz bruxuleante de minha lamparina, e tremo, aterrorizada. Ouço o vento uivar no negror do lado de fora, e parece que ouço minha mãe adotiva arranhar as mãos na porta do depósito onde está enrolada, esperando para ser colocada no caixão e enterrada quando chegar a primavera. Paro de andar e presto atenção, e sob o vento penso escutar algo raspando e depois meu nome sendo chamado - Agnes, Agnes. - É Inga me chamando para deixá-la sair. - Não estou morta, eu voltei, estou viva e preciso ser tirada deste depósito, não mantida como carne abatida, secando no ar estagnado. Guardada com sal e soro e farinha cheia de gorgulhos dinamarqueses.

 

Fico imóvel e tremo, assustada. Então, mamãe, mamãe! Dou um passo na direção do depósito e abro a porta - não há tranca. Abro a porta e estendo a luz fraca de minha lamparina, e vejo a forma escura de seu corpo no chão, a cabeça pousada sobre um saco de cabeças de peixe secas, e choro, porque é pior saber que ela está realmente morta. Ah, minha mãe adotiva está morta, e minha própria mãe partiu. E eu me sento no chão, as pernas fraquejando com a dor lancinante de uma órfã, e o vento grita por mim, porque minha língua não consegue. Ele grita, e eu me sento no chão de terra batida, duro de frio, e sinto o cheiro das cabeças de peixe, nauseantes, misturando ao cheiro insípido do inverno seu fedor de sal e ossos secos.

 

O assassino Fridrik Sigurdsson nasceu em Katadalur, aqui na paróquia de Tjörn, em 6 de maio de 1810, e foi crismado por meu predecessor, o reverendo Sæmundur Oddson, em 1823. Foi descrito então como tendo "um bom intelecto" e um bom conhecimento e compreensão do catecismo. Contudo, seu comportamento não correspondeu a esse conhecimento e essa educação. Ele teve problemas, em desobediência explícita a seus pais, de modo que eles se queixaram a mim no outono de 1825. Foi conversando com eles que soube de seu caráter grandemente inflexível.

 

Como foi sua criação, não posso atestar com certeza suficiente - com exceção de quatro anos, não fui padre nesta paróquia. Contudo, é de minha opinião que ele foi criado com liberdade demais.

 

Depoimento do reverendo Jóhann Tómasson.

 

5 de setembro de 1829

Rev. T. Jónsson

Breidabólstadur, Vesturhóp

Ao reverendo (assistente) Thorvardur Jónsson,

Escrevo para perguntar sobre seu progresso com a criminosa Agnes Magnúsdóttir. Eu me encontrei recentemente com o reverendo Jóhann Tómasson, da paróquia de Tjörn, que foi gentil em me fornecer um relato referente à evolução espiritual e ao comportamento evoluído do criminoso Fridrik Sigurdsson, a quem ele supervisiona. Considero necessário me reunir também com você. Assim que você me der igualmente um relato do que se passou, e continua a se passar, entre você e a criminosa, poderei compreender em que grau a orientação religiosa está coletivamente melhorando os condenados.

 

Por favor, apresente-se a Hvammur na próxima semana, para fazer um relato de sua interação com a criminosa e dos conselhos que lhe ofereceu até o momento.

Comissário distrital

Björn Blöndal

 

- Obrigado por vir, reverendo assistente Thorvardur - disse Björn Blöndal, passando pela porta da fazenda de Hvammur. Usava seus distintivos oficiais, o paletó vermelho aberto para revelar uma camisa creme limpa. Tóti, que só encontrara o comissário distrital em poucas ocasiões, principalmente quando menino viajando com o pai, parou assombrado com o espetáculo do uniforme e sua figura bastante imponente.

 

- Saudações, comissário distrital Blöndal.

 

Tóti desmontou e deu as rédeas do cavalo a um criado. Ele notou que Hvammur estava cheia de gente, todos fazendo suas tarefas no amplo pátio diante da casa. Em uma pedra, à sua esquerda, um homem limpava uma truta, apanhada naquela manhã no rio, e duas mulheres punham roupa para secar no sol minguado que o dia oferecia. Ele notou outra criada, uma jovem vestindo o arranjo de cabeça tradicional de touca e borla, levando quatro ou cinco crianças para fora.

 

- Olá - disseram alegremente, anuindo na direção de Tóti.

 

- O senhor tem uma bela casa - disse Tóti sorrindo, seguindo ao encontro de Blöndal.

 

- De fato. Seja bem-vindo, reverendo. Espero que a viagem não tenha sido árdua demais. Por favor, entre e cuidado com o degrau.

 

Uma criada mais velha conduziu Tóti pelo labirinto de corredores até uma pequena sala de visitas. Blöndal o seguiu, e observou do umbral enquanto ela acomodava Tóti em uma cadeira estofada e habilmente retirava seu chapéu de montaria, casaco e sapatos.

 

- Já esteve aqui antes? - perguntou Blöndal enquanto esperava. Tóti se deu conta de que estava olhando boquiaberto para o que o cercava.

 

- Só quando menino - disse Tóti, corando. - Ótimas acomodações. Vejo que tem várias gravuras.

 

Blöndal fungou e retirou o chapéu emplumado, esfregando distraidamente a pena.

 

- Sim - disse objetivamente. - Somos muito afortunados por desfrutar de luxos normalmente permitidos apenas àqueles no continente. Embora seja meu desejo que, em um século, mais islandeses venham a conhecer as vantagens de janelas de vidro, revestimento de madeira, fornos de ferro e assim por diante. Sou de opinião que uma casa mais seca permite uma circulação de ar mais eficiente, sendo, portanto, melhor para a saúde.

 

- Sei que está certo - disse Tóti, olhando para a criada ocupada em soltar seus laços. Ela o espiou sem sorrir.

 

- Certo, Karitas, agora deixe-o só - disse Blöndal. - Reverendo Thorvardur, por favor, me acompanhe a meu escritório.

 

- Obrigado, Karitas.

 

A criada se levantou, segurando os sapatos dele e olhando como se prestes a dizer algo.

 

- Karitas, saia.

 

Blöndal esperou até que a mulher tivesse saído da sala, antes de fazer um gesto para que Tóti o seguisse.

 

- Por aqui, por favor, reverendo. Meus aposentos são em uma área mais distante do prédio. Isso impede que o barulho dos criados se torne mais que um pequeno incômodo.

 

Tóti seguiu Blöndal por um comprido corredor, pelo qual mais criados e crianças corriam, entrando em outros cômodos. Tóti ficou maravilhado com o tamanho da casa - era diferente de tudo o que já vira.

 

- Por aqui, reverendo, por favor.

 

Blöndal abriu uma porta que dava para um escritório iluminado. As paredes azul-claras eram tomadas por duas estantes sólidas com lombadas encadernadas em couro. Uma grande escrivaninha estava instalada no centro da sala, a superfície brilhando à luz do sol, que penetrava por uma pequena janela com cortina perto do cume do frontão.

 

- É bonito - disse Tóti, engasgando.

 

- Sente-se, reverendo - disse Blöndal, puxando uma cadeira estofada.

 

Tóti fez como ordenado.

 

- Então aqui estamos - disse Blöndal, passando as grandes mãos sobre a superfície lisa da escrivaninha. - Podemos começar?

 

- Claro, comissário distrital - disse Tóti, nervoso. A grandiosidade do escritório o deixava desconfortável. Ele não sabia que pessoas no Norte viviam assim.

 

- Meus homens disseram que a condenada foi levada a Kornsá sem incidentes.

 

- Também foi o que soube - disse Tóti. - E fico contente em relatar que Agnes se acomodou em seu novo local de custódia em Kornsá.

 

- Entendo. Você a chama pelo nome cristão.

 

- Ela prefere assim, comissário distrital.

 

Blöndal recostou na cadeira.

 

- Continue.

 

- Bem, até o momento a prisioneira tem sido incluída em todos os aspectos da produção de feno da casa - continuou Tóti. - E fui informado pelo oficial distrital Jón Jónsson de que ela trabalha com postura humilde, adequada à sua posição inferior.

 

- Eles não a mantêm em ferros?

 

- Não é a prática habitual.

 

- Entendo. E suas obrigações domésticas?

 

- Ela as cumpre com total diligência. A prisioneira parece bastante contente de passar os dias de clima ruim tricotando.

 

- Lembre-os de tomar cuidado ao lhe dar ferramentas.

 

- Eles estão atentos, comissário distrital.

 

- Bom - disse Blöndal, empurrando a cadeira para trás e, abrindo uma gaveta da escrivaninha, tirando cuidadosamente uma folha de papel verde-claro e um canivete. Depois se virou e pegou um pote de vidro cheio de compridas penas brancas de cisne em um canto de uma estante. - Sempre mando as mulheres coletarem estas - disse Blöndal, momentaneamente distraído. - No final do verão. É melhor pegá-las quando os pássaros trocam as penas. Não é preciso arrancá-las.

 

Ele ofereceu a Tóti o pote com as penas.

 

- Ah, não, eu não poderia - disse Tóti, balançando a cabeça.

 

- Eu insisto - disse Blöndal em voz grave. - Um verdadeiro homem se distingue de todos os outros por suas ferramentas de escrita.

 

- Obrigado - disse Tóti, pegando uma pena timidamente.

 

- Um provedor, o cisne - disse Blöndal. - A pele dos pés dá excelentes bolsas.

 

Distraído, Tóti esfregou a beirada leve da pena sobre a mão.

 

- E os ovos são toleráveis. Se cozidos - falou Blöndal, limpando as lascas da pena da mesa, depois destampando uma pequena garrafa de tinta. - Agora, por favor, um breve resumo de suas lições religiosas para a criminosa.

 

- Claro - disse Tóti, consciente do suor brotando na palma das mãos. - Durante a colheita, eu visitei a criminosa intermitentemente, estando, como entenderá, ocupado com a colheita em Breidabólstadur.

 

- De que maneira se preparou para sua comunicação com a condenada?

 

- Eu... Eu estaria mentindo se dissesse que, a princípio, minha responsabilidade para com sua alma imortal não teve grande peso em mim.

 

- Temia isso - disse Blöndal, soturno. Fez uma anotação no papel à sua frente.

 

- Pensei que o único caminho para sua absolvição seria por prece e censura - disse Tóti. - Passei vários dias avaliando os versos, salmos e outros textos que pudessem colocá-la aos pés de Deus.

 

- E o que selecionou?

 

- Passagens do Novo Testamento.

 

- Quais capítulos?

 

- Ahn... - começou Tóti, enervado com a velocidade das perguntas de Blöndal. - João. Coríntios... - gaguejou.

 

Blöndal olhou interrogativo para Tóti e continuou a escrever.

 

- Tentei lhe falar sobre a importância da prece. Ela pediu que eu fosse embora.

 

Blöndal sorriu.

 

- Não estou surpreso. Durante o julgamento, ela me pareceu particularmente ímpia.

 

- Ah, não. Ela parece ser muito versada em literatura cristã.

 

- Assim como o Diabo, estou certo - retrucou Blöndal. - O reverendo Jóhann colocou Fridrik Sigurdsson para ler os hinos da Paixão. Também o Apocalipse. É mais estimulante.

 

- Talvez. Contudo... - disse Tóti, empertigando-se na cadeira. - Ficou evidente para mim que a condenada precisa de outros meios que não a censura religiosa para se acostumar com a morte e se preparar para seu encontro com o Senhor.

 

Blöndal franziu o cenho.

 

- Por quais meios você tem apresentado a condenada a Deus, reverendo?

 

Tóti pigarreou e colocou a pena suavemente na mesa à sua frente.

 

- Temo que possa achar isso heterodoxo.

 

- Por favor, me diga, e então avaliaremos se seu temor é razoável.

 

Tóti fez uma pausa.

 

- Estou certo de que não é a voz dura de um padre fazendo ameaças de danação, mas os tons gentis e perscrutadores de um amigo, que vão abrir as cortinas de sua alma, comissário distrital.

 

Blöndal o encarou.

 

- Os tons gentis de um amigo. Espero estar enganado ao pensar que fala sério.

 

Tóti corou.

 

- Temo que não esteja enganado, senhor. Todas as tentativas de fazer sermões à condenada tiveram efeito adverso. Em vez disso, eu, eu... Eu a encorajei a falar do pecado. Em vez de me dirigir a ela, permito que fale comigo. Eu lhe ofereço uma plateia derradeira para a narrativa de sua vida solitária.

 

- Você reza com ela.

 

- Eu rezo por ela.

 

- Ela reza por si mesma?

 

- Acho impossível acreditar que não o faz na privacidade. Ela vai morrer, senhor.

 

- Sim, reverendo. Ela vai morrer - disse Blöndal, pousando a pena rapidamente e reclinando em sua cadeira. - Ela vai morrer, e por uma boa razão.

 

Ouviu-se uma batida na porta.

 

- Ah - disse Blöndal, erguendo os olhos. - Sæunn. Entre.

 

Uma jovem criada de aparência nervosa entrou na sala trazendo uma bandeja.

 

- Na escrivaninha, por favor - disse Blöndal, observando enquanto a garota colocava café, queijo, manteiga, carne defumada e pão não fermentado diante dele. - Coma se tiver fome.

 

Blöndal imediatamente começou a empilhar fatias de cordeiro no prato.

 

- Obrigado, não tenho - disse Tóti. Ele observou o comissário distrital enfiar na boca um grande bocado de pão e queijo. Mastigou lentamente, engoliu e pegou um lenço para limpar os dedos.

 

- Reverendo assistente Thorvardur. Você pode ser perdoado por achar que amizade colocará essa assassina no caminho da verdade e do arrependimento. Você é jovem e inexperiente. Tenho alguma culpa nisso.

 

O comissário distrital se inclinou lentamente para a frente e apoiou os cotovelos na escrivaninha.

 

- Vou ser direto. No ano passado, em março, Agnes Magnúsdóttir escondeu Fridrik Sigurdsson no estábulo de Illugastadir. Natan Ketilsson havia retornado da fazenda de Geitaskard com um trabalhador de lá, Pétur Jónsson...

 

- Perdoe-me, comissário distrital, mas acredito que sei o que...

 

- Acho que não sabe o suficiente - interrompeu Blöndal. - Natan voltara para casa após visitar Geitaskard para atender Worm Beck, o oficial distrital de lá. Worm estava muito doente. Natan retornou a Illugastadir para consultar seus livros e, pelo que entendi, pegar remédios adicionais, e Pétur o acompanhou. Era tarde, reverendo. Eles decidiram passar a noite na casa de Natan e voltar pela manhã.

 

- Naquela noite Fridrik chegou secretamente de Katadalur, e Agnes o escondeu no estábulo. Eles haviam passado o inverno planejando matar Natan e roubar seu dinheiro, e foi o que fizeram. Agnes esperou que os homens estivessem dormindo antes de chamar Fridrik. Foi um ataque a sangue-frio a dois homens indefesos.

 

Blöndal fez uma pausa para avaliar o impacto de suas palavras em Tóti.

 

- Fridrik confessou o assassinato, reverendo. Confessou que levou um martelo e uma faca recém-amolada para o badstofa e matou primeiro Pétur, esmagando seu crânio com um golpe de martelo. Ou ele acreditou que era Natan ou quis se livrar de uma testemunha, não sei. Mas então certamente tentou matar Natan. Em sua confissão, Fridrik disse que ergueu o martelo e apontou para o crânio de Natan, porém errou. Disse que ouviu osso se partindo, e, reverendo, um exame dos restos revelou que o braço de Natan de fato estava quebrado.

 

- Fridrik me contou que Natan então acordou e pensou, no que provavelmente era um choque de dor, que estava em Geitaskard e que era seu amigo Worm diante dele.

 

- Ele disse: Natan nos viu no aposento, Agnes e eu, e começou a implorar que parássemos, mas continuamos até ele estar morto. Note as palavras dele, reverendo, Agnes e eu. Fridrik disse que Natan foi morto com a faca.

 

- Então Agnes não os matou.

 

- É indiscutível que ela estava no aposento, reverendo.

 

- Mas ela não segurou a arma.

 

Blöndal reclinou em sua cadeira e juntou as pontas dos dedos. Sorriu.

 

- Quando Fridrik confessou os assassinatos, ele não estava arrependido, reverendo. Achava ter feito a vontade de Deus. Achava que fazia justiça por erros passados cometidos por Natan e reivindicou os dois assassinatos como seus. Sou de opinião de que não foi exatamente como ele disse.

 

- Acha que Agnes matou Natan.

 

- Ela tinha motivos para isso, reverendo. Mais motivos que Fridrik. - disse Blöndal, passando o dedo sobre as migalhas em seu prato. - Acredito que Fridrik matou Pétur. O homem foi morto com um golpe, e um martelo é uma ferramenta pesada de brandir.

 

- Fridrik disse que Natan acordou e viu o que estavam fazendo com ele. Acredito que ele perdeu a coragem, reverendo. É fácil esquecer que Fridrik tinha apenas dezessete anos naquela noite. Um menino. Um bandido, certamente, e está bem claro que ele e Natan eram uma espécie de inimigos. Mas pense, reverendo - disse Blöndal, chegando mais perto. - Pense como deve ser matar um homem por seu dinheiro. Imagine que ele implorou por sua vida. E se ele prometeu pagar algum resgate pedido, sem notificar as autoridades, caso o deixasse viver?

 

A garganta de Tóti estava seca.

 

- Não consigo imaginar tal coisa.

 

- Eu preciso - disse Blöndal em voz baixa. - E imaginei. Sou de opinião que, ao ver Natan acordar e implorar por sua vida, Fridrik perdeu a coragem e vacilou. Ele queria dinheiro, e sem dúvida isso lhe teria sido oferecido naquele momento. Sou de opinião que Agnes pegou a faca e matou Natan.

 

- Mas Fridrik não disse isso.

 

- Natan foi esfaqueado até a morte. Fridrik era filho de fazendeiro; ele sabia matar animais com uma faca. A garganta é cortada - disse Blöndal, esticando-se e apontando um dedo para a garganta de Tóti. - Daqui até aqui - falou, arrastando a unha pela pele de Tóti. - Natan não teve a garganta cortada. Ele foi esfaqueado na barriga. Isso indica motivos mais soturnos do que roubo.

 

- Por que não Sigga? - perguntou Tóti em voz engasgada.

 

Blöndal balançou a cabeça.

 

- A criada de dezesseis anos que caiu em lágrimas assim que a convoquei? Sigga nem sequer tentou mentir; ela decididamente é simplória demais, jovem demais para saber como. Ela me contou tudo, como Agnes odiava Natan, como Agnes sentia inveja das atenções dele para com ela. Sigga não é brilhante, porém ela viu isso.

 

- O fato de uma mulher sentir ciúme não faz dela uma assassina, comissário distrital.

 

- Assassinato é incomum, reconheço isso, reverendo. Mas Agnes tinha o dobro da idade de Sigga. Viajou deste vale, onde passou toda a vida, para Illugastadir, uma distância razoável. Por quê? Certamente não por um emprego; ela tinha oportunidades suficientes aqui. Com certeza havia algo mais que a fez ir trabalhar para Natan Ketilsson.

 

- Eu não entendo, comissário distrital - disse Tóti.

 

Blöndal fungou.

 

- Desculpe-me por falar claramente, reverendo. Agnes acreditava merecer mais. Ser pedida em casamento, acho. Natan não era um homem discreto; seus bastardos enchem este vale.

 

- E ele quebrou a promessa?

 

Blöndal deu de ombros.

 

- Quem disse que prometeu algo a ela? Pelo que vejo, Agnes ficara com a impressão de ter tido sucesso em seduzi-lo. Mas Sigga testemunhou que Natan preferia as... atenções dela.

 

- Isso foi dito no tribunal?

 

- Uma questão imoral. Mas julgamentos de assassinato são compostos de questões grosseiras.

 

- Acredita que Agnes planejou matar Natan por ter sido preterida.

 

- Reverendo, temos um ladrão comum de dezessete anos armado com um martelo, uma criada de dezesseis anos temendo pela vida e uma mulher encalhada cujos afetos não correspondidos se transformaram em um ódio amargo. Um deles enfiou uma faca em Natan Ketilsson.

 

A cabeça de Tóti girava. Ele olhou para a pena branca na beirada da escrivaninha diante dele.

 

- Não consigo acreditar nisso - disse finalmente.

 

Blöndal suspirou.

 

- Você não encontrará provas de inocência nas histórias de vida de Agnes, reverendo. Ela é uma mulher emocionalmente desequilibrada e imoral. Como muitas criadas mais velhas, ela é experiente em enganar, e não duvido que tenha inventado uma história de vida capaz de conquistar sua simpatia. Eu não acreditaria em uma palavra do que diz. Ela mentiu na minha cara nesta mesma sala.

 

- Ela parece sincera - disse Tóti.

 

- Posso lhe dizer que não é. Você deve aplicar a palavra do Senhor como um açoite sobre um cavalo teimoso. Não chegará a lugar algum de outra maneira.

 

Tóti engoliu em seco. Pensou em Agnes, seu corpo branco magro nos cantos escuros de Kornsá, descrevendo a morte de sua mãe adotiva.

 

- Investirei minhas energias na redenção dela, comissário distrital.

 

- Permita que eu o reoriente, reverendo. Permita que lhe diga o trabalho que o reverendo Jóhann Tómasson fez com Fridrik.

 

- O padre de Tjörn.

 

- Sim. Eu conheci Fridrik Sigurdsson pessoalmente no dia em que fui prendê-lo. Isso foi em março do ano passado, pouco depois de receber a notícia do incêndio em Illugastadir e de ver pessoalmente os restos de Natan e Pétur.

 

- Cavalguei até a casa da família dele, Katadalur, com alguns dos meus homens, e fomos para os fundos da cabana para surpreendê-lo. Quando bati na porta da fazenda, o próprio Fridrik abriu a portinhola, e imediatamente lancei meus homens sobre ele. Eles o colocaram a ferros. Aquele jovem estava furioso, demonstrando comportamento e linguagem do tipo mais vil e degenerado. Ele lutou com meus homens, e quando o alertei para que não tentasse fugir, ele gritou, para que todos ouvissem, que lamentava não ter levado sua arma para fora, pois seria eu a ter uma bala enfiada na testa.

 

- Fiz meus homens trazerem Fridrik aqui, para Hvammur, e comecei a interrogá-lo, como havia feito antes com Agnes e Sigrídur, que me falou do envolvimento dele. Ele era teimoso e permaneceu em silêncio. Só depois que acertei para que o reverendo Jóhann Tómasson falasse com ele, confessou ter assassinado os homens com a ajuda das duas mulheres. Fridrik não se arrependeu nem sentiu remorso, como seria de esperar de um homem que agiu por impulso. Ele repetidamente declarou sua convicção de que o que fizera a Natan era necessário e justo. O reverendo Jóhann sugeriu que seu comportamento criminoso era consequência direta de ele ter sido criado da maneira errada, e de fato, após ver a mãe de Fridrik histérica quando prendemos o filho, passei a partilhar a opinião dele. Que outro fator poderia fazer um simples garoto de dezessete invernos levar um homem à morte com um martelo?

 

- Fridrik Sigurdsson foi um menino criado em uma casa descuidada da moral e do ensinamento cristão, reverendo. Indolência, ganância, falta de decência e imaturidade produziram nele um espírito fraco e um anseio por ganhos terrenos. Após registrar sua confissão, cheguei à conclusão inabalável de que o caráter dele é intransigente. Sua aparência despertou em mim fortes suspeitas dessa ordem; ele é sardento e, peço seu perdão, reverendo, ruivo, um sinal de natureza traiçoeira. Quando o coloquei em custódia com Birni Olsen, em Thingeyrar, eu tinha pouca esperança de que se reabilitasse. Contudo, o reverendo Jóhann e Olsen felizmente tinham muito mais esperança no rapaz do que eu, e começaram a trabalhar sua alma com o fervor religioso que faz de ambos homens tão necessários para esta comunidade. O reverendo Jóhann me confidenciou que, por intermédio de uma combinação de oração, repreensão religiosa diária e os bons exemplos morais dados por Olsen e sua família, Fridrik se arrependeu de seu crime e viu como agia errado. Ele fala aberta e honestamente de seus erros e reconhece que sua iminente execução é certa, dada a natureza horrenda do crime cometido por suas mãos. Ele reconhece isso como a justiça de Deus. E agora, o que me diz disso?

 

Tóti engoliu em seco.

 

- Eu cumprimento o reverendo Jóhann e herr Birni Olsen por sua conquista.

 

- Assim como eu - disse Blöndal. - Agnes Magnúsdóttir se arrepende de seu crime de modo similar?

 

Tóti hesitou.

 

- Ela não fala dele.

 

- Isso porque ela é reticente, dissimulada e culpada.

 

Tóti ficou em silêncio por um momento. Ele só queria sair correndo da sala e se juntar ao resto das pessoas em Hvammur, cujas conversas podiam ser entreouvidas da porta do escritório de Blöndal.

 

- Não sou um homem cruel, reverendo assistente Thorvardur. Mas sou temente a Deus, e para mim é evidente que este distrito está tomado de criminosos do pior tipo. Ladrões, bandidos e, agora, assassinos. Durante esses anos que se passaram desde minha nomeação como comissário distrital, eu vi os limites morais que haviam mantido as pessoas daqui a salvo da depravação e do vício se desintegrarem. É um constrangimento político e espiritual, e é minha responsabilidade garantir que os criminosos deste distrito, que tanto tempo permaneceram impunes, recebam a justiça aos olhos de seus pares.

 

Tóti anuiu e pegou lentamente a pena de cisne. A penugem da base grudou em seus dedos molhados.

 

- Quer fazer dela um exemplo - disse em voz baixa.

 

- Quero aplicar a justiça de Deus na Terra - disse Blöndal, franzindo o cenho. - Quero honrar as autoridades que me nomearam cumprindo meu dever de manter a lei.

 

Tóti hesitou.

 

- Ouvi falar que nomeou Gudmundur Ketilsson como carrasco - disse ele.

 

Blöndal suspirou e se recostou na cadeira.

 

- Nunca vi línguas tão ligeiras quanto as deste vale.

 

- É verdade que convidou o irmão do homem assassinado?

 

- Não tenho de lhe explicar minhas decisões, reverendo. Não respondo a padres de paróquia. Eu respondo à Dinamarca. Ao rei.

 

- Não disse que desaprovava.

 

- Sua opinião está escrita em seu rosto, reverendo - disse Blöndal, pegando novamente sua pena. - Mas não estamos aqui para discutir meu desempenho. Estamos aqui para discutir o seu, e devo dizer que estou desapontado com ele.

 

- O que quer que eu faça?

 

- Retorne à palavra de Deus. Esqueça a de Agnes, ela não tem nada que você precise ouvir, a não ser que seja uma confissão.

 

O reverendo Tóti deixou o escritório de Björn Blöndal com a cabeça latejando. Não conseguia parar de pensar no rosto pálido de Agnes, em sua voz baixa na escuridão e na imagem do ruivo Fridrik erguendo um martelo acima de um homem adormecido. Ela estivera mentindo para ele? Lutou contra a ânsia de se benzer no corredor diante do bando de criadas ocupadas carregando baldes de leite e urinóis de dejetos. Calçou os sapatos apoiado na parede.

 

Foi um alívio estar do lado de fora. Ficara nublado e escuro, mas o ar frio e o cheiro forte de peixe secando em prateleiras perto do estábulo pareciam combinar com sua confusão. Pensou no dedo engordurado de Blöndal sobre sua garganta. Ossos sendo esmagados. Natan Ketilsson implorando por sua vida. Queria estar doente.

 

- Reverendo! - chamou alguém. Ele se virou e viu Karitas, a criada de Blöndal, correndo em sua direção. - Deixou seu casaco, senhor.

 

Tóti sorriu e estendeu o braço para pegar o traje, mas a mulher não o soltou. Puxou Tóti mais para perto e sussurrou para ele, olhando para o chão:

 

- Preciso falar com o senhor.

 

Tóti ficou surpreso.

 

- Perdão?

 

- Shhh - disse a mulher. Olhou para o criado que limpava o peixe na pedra. - Venha comigo. Ao estábulo.

 

Tóti anuiu e, pegando seu casaco, cambaleou na direção do grande estábulo. Estava escuro do lado de dentro, e havia um cheiro forte de estrume, embora as baias já tivessem sido limpas. Estava vazio - todos os animais haviam sido levados para o pasto. Ele se virou e viu a silhueta de Karitas contra a porta aberta.

 

- Não queria fazer segredo, mas... - disse, aproximando-se, e Tóti viu que estava perturbada. - Não queria agarrá-lo daquele modo, contudo achei que não teria outra oportunidade.

 

Karitas apontou para um banco de ordenha, e Tóti se sentou.

 

- É o reverendo que cuida de Agnes Magnúsdóttir?

 

- Sim - respondeu Tóti, curioso.

 

- Eu trabalhei em Illugastadir. Com Natan Ketilsson. Saí em 1827, pouco antes de Agnes chegar para trabalhar lá. Ela foi assumir minha posição como governanta. Bem, pelo menos foi o que Natan me contou.

 

- Entendo. E o que você queria me dizer?

 

Karitas fez uma pausa, como se tentando encontrar as palavras certas.

 

- A traição de um amigo é pior que a de um inimigo - disse finalmente.

 

- Não entendo.

 

- É da saga de Gisli Sursson - disse Karitas, virando-se para a porta aberta, para conferir se vinha alguém. - Ele não cumpriu a palavra que lhe deu - sussurrou.

 

- Sua palavra?

 

- Natan prometeu a Agnes minha posição, senhor. Só que, antes que ela chegasse, decidiu que Sigga deveria ficar com ela.

 

Tóti estava confuso. Brincou distraído com a pena que Blöndal lhe dera. Ainda a levava na mão.

 

- Sigga era jovem, quinze ou dezesseis, reverendo. Natan sabia que seria um constrangimento para Agnes estar sob a autoridade dela.

 

- Não entendo o que quer dizer, Karitas. Por que Natan iria prometer a Agnes uma posição e depois dá-la a uma garota inexperiente com metade da idade dela?

 

Karitas deu de ombros.

 

- Conheceu Natan, reverendo?

 

- Não, nunca. Embora eu saiba que muitos aqui no vale o conheciam - disse, sorrindo. - Tenho ouvido opiniões muito variadas. Alguns dizem que era um feiticeiro; outros, que era um bom médico.

 

Karitas não devolveu o sorriso.

 

- Mas você acredita que ele enganou Agnes?

 

Karitas esfregou o chinelo na palha do chão.

 

- É só que... As pessoas aqui sujaram o nome dela, e isso não me parece justo.

 

Tóti hesitou.

 

- Por que está me contando isso, Karitas?

 

A mulher se inclinou mais para perto.

 

- Eu saí de Illugastadir porque não suportava mais Natan. Ele... Ele brincava com as pessoas - falou, inclinando-se ainda mais, o lábio tremendo. - Era como se ele fizesse isso para se divertir. Eu nunca sabia como estava em relação a ele. Natan me dizia uma coisa e fazia outra. E se eu tivesse coragem de pedir uma folga para ir à igreja, pronto.

 

A mulher olhou interrogativa para Tóti.

 

- Sou uma boa cristã, reverendo, e juro que nunca ouvi um homem expressar tanta descrença - falou Karitas, fazendo uma careta e olhando para a porta. - Vai dizer a Blöndal que conversei com o senhor?

 

- Claro que não. Mas não vejo que bem faz me dizer isso sobre Natan. Entendo que as opiniões sobre ele são controversas, mas ainda assim, encrenqueiros, mesmo que sejam ímpios, não merecem ser esfaqueados no meio da noite.

 

Karitas ficou atônita.

 

- Encrenqueiro? - perguntou, olhando para ele. - Agnes disse algo sobre Natan?

 

- Não, ela não fala dele.

 

- O que Blöndal disse? - perguntou, apontando com a cabeça para a casa da fazenda.

 

- Ouvi muito pouco em que poderia confiar de qualquer um além de superstições sobre ele ter recebido o nome do Diabo.

 

Karitas deu um sorriso fraco.

 

- Sim, eles dizem isso. Mas Blöndal não falaria mal dele. Natan curou sua esposa.

 

- Não sabia que ela estava doente.

 

- Quase morrendo. Também pagou muito a ele. Mas funcionou. Natan Ketilsson arrancou a esposa dele dos portões do céu.

 

De repente, Tóti sentiu raiva. Levantou e esfregou palha e poeira da calça.

 

- Preciso ir.

 

- Então não vai contar a Blöndal que conversei com o senhor?

 

- Não - disse Tóti, tentando sorrir. - Eu lhe desejo o bem, Karitas. Fique com Deus.

 

- Reverendo, precisa perguntar a Agnes sobre Natan. Acho que eles conheciam melhor um ao outro do que conheciam a si mesmos.

 

Tóti se virou da porta, intrigado.

 

- Você a visitaria pessoalmente?

 

Karitas deu uma risada rouca.

 

- Blöndal me mandaria estripar e penduraria para secar. Ademais, eu já havia partido quando ela chegou a Illugastadir. Estava farta.

 

- Entendo - disse Tóti, olhando para ela por um momento e depois levando a mão rapidamente à aba do chapéu. - Deus a abençoe.

 

Ele parou para pegar seu cavalo no pátio e, uma vez montado, virou-se para dar adeus a Karitas, que estava à entrada do estábulo. Ela não acenou de volta.

 

A colheita foi armazenada e, após tantas semanas de trabalho duro, estão todos ansiosos para finalmente comer, beber e confraternizar. Eu ajudo Margrét na cozinha, preparando carneiro para os convidados que começaram a chegar para a festa da colheita. Não há muito tempo para reflexão pessoal. As filhas não estão aqui - foram enviadas para os campos da montanha para colher frutas silvestres e musgo -, e agora cabe a Margrét e a mim misturar soro de leite e água, bater a manteiga, servir os homens e garantir que toda a roupa colocada para secar seja tirada do pátio antes que algum dos vizinhos veja nossas roupas de baixo. Foi uma surpresa de repente perceber que as meninas não estavam ali; suponho que tenha me acostumado a Lauga revirando os olhos, como um bezerro insatisfeito, e Steina me seguindo como uma sombra. "Eu a conheço", ela me disse antes de partir. "Somos iguais."

 

Eu não sou como Steina. Sim, ela também é infeliz, mas não é como eu. Quando tinha a idade dela, eu trabalhava para ganhar a vida em Gudrúnarstadir, ajudando com as cinco crianças de lá - cada uma mais magra e fraca que a outra - e limpando, cozinhando e servindo até parecer que ia desmaiar. Sempre enfiada em algo - salmoura, leite, fumaça, estrume ou sangue. Quando nasceu Indridi, o mais moço do clã Gudrúnarstadir, eu estava ao lado de sua pobre mãe, segurando sua mão e cortando o cordão enrolado. O que Steina viu do mundo? Quando eu tinha sua idade estava sozinha, de olhos bem abertos durante a noite para impedir que um criado de boca suja erguesse minha roupa de cama achando que eu estava dormindo. Não que ele sempre fosse tão discreto. Certa manhã ele me agarrou junto ao córrego, torceu meus braços às costas e me empurrou para baixo, de modo que meu rosto ficou tão perto da água que tive medo de me afogar enquanto ele se atrapalhava com a calça. Steina teve de lutar sob o peso de um criado como aquele? Teve de decidir se deixava um fazendeiro se meter sob suas saias e enfrentava a ira da esposa, que a obrigaria a fazer trabalhos de bosta, ou recusá-lo e se ver sem teto na neve e no nevoeiro com todas as portas trancadas?

 

Aquele bebê, aquela criança com cabeça de cardo que eu trouxera ao mundo, eles o enterraram alguns anos após eu ter cortado o cordão. Ele tinha idade para falar. Tinha idade para saber que tinha fome. O que Steina sabe sobre crianças mortas? Ela não é como eu. Ela só conhece a árvore da vida. Não viu suas raízes retorcidas agarrando pedras e caixões.

 

Deixei Gudrúnarstadir depois que Indridi morreu, o fazendeiro e a esposa e o restante dos filhos destroçados pela fome. Eles me deram beijos, uma carta de recomendação e dois ovos para a viagem até Gilsstadir. Dei os ovos a uma dupla de garotas de cabelos claros que encontrei no caminho.

 

Eu quase podia rir. Pensar que aquelas meninas de rosto redondo jogando pedaços de terra para que o cachorro pegasse sejam agora minhas carcereiras aqui em Kornsá.

 

Lauga arrumou uma confusão terrível quando Jón disse a elas que iriam perder a festa da colheita para recolher frutas. Ela é uma tremenda ressentida e me lembra um pouco Sigga, embora seja mais inteligente. Jón falou com ela e Steina na noite passada, quando achou que eu estava dormindo. "Ela deve encontrar seu Deus de uma forma feia", disse ele. "O estilo de vida de nossa família deve continuar. Temos de manter vocês em segurança." Ele não quer que tenham pena de mim. Não quer que se aproximem, então mandou-as embora por um tempo, enquanto o clima permite. Um alívio da minha presença.

 

Margrét diz que os convidados comerão do lado de fora hoje, pois é uma bela manhã de setembro, e nos fará bem pegar o que pudermos de luz do sol, porque logo o inverno se lançará sobre nós. A grama da montanha já está ganhando aquela cor de carne defumada, e as noites cheiram a óleo de peixe das lamparinas recém-acesas. Em Illugastadir, logo haverá uma camada de gelo sobre as algas lançadas no litoral. As focas estarão instaladas nas rochas, vendo o inverno descer da montanha. Haverá os gritos dos homens a cavalo reunindo as ovelhas, e então virá o abate.

 

- Saudações a todos em Kornsá! - gritam da entrada da fazenda, e Margrét ergue os olhos, alarmada.

 

- Fique aqui - diz ela.

 

Sai apressada. Há a variação de tom de uma voz feminina, e então uma grande mulher grávida entra no aposento, cercada por um enxame de crianças de cabelos quase brancos com nariz escorrendo. Outra mulher, uma dama magra e grisalha, a acompanha. Ergo os olhos do braseiro, onde estou mexendo a sopa, e vejo que a mulher gorda está me encarando, a mão sobre a boca. As crianças também olham para mim boquiabertas.

 

- Róslín, Ingibjörg, esta é Agnes Magnúsdóttir - diz Margrét, suspirando.

 

Faço uma mesura, sabendo que devo ser uma visão. O vapor fez meus cabelos grudarem em minha testa encharcada, e há sangue de carne em meu avental.

 

- Fora! Crianças, fora agora mesmo!

 

O pequeno rebanho de crianças sai, uma delas dando um espirro violento. Parecem desapontadas. Nem tanto a mãe delas. A mulher, Róslín, se vira para Margrét e a agarra pelo ombro.

 

- Você nos convidou com ela aqui!

 

- Onde mais ela estaria? - retrucou Margrét, olhando para a outra mulher, Ingibjörg, e vejo um brilho de conspiração nos olhos delas.

 

- Passando o dia em Hvammur! Trancada no depósito! - grita Róslín. Seu rosto está corado; ela está gostando do chilique.

 

- Você está histérica, Róslín. Assim vai entrar em trabalho de parto.

 

Eu olho para a barriga inchada da mulher. Parece no fim.

 

- É uma menina - digo sem pensar.

 

As três mulheres me encaram.

 

- O que ela disse? - sussurra Róslín, parecendo horrorizada.

 

Margrét tosse baixo.

 

- O que você disse, Agnes?

 

De repente me sinto desconfortável.

 

- Seu filho será uma menina. Pela forma. O modo como sua barriga se projeta.

 

Ingibjörg me encara interessada.

 

- Bruxa! - grita Róslín. - Mande que ela pare de olhar para mim.

 

Ela sai apressada da cozinha.

 

- Como você adivinhou isso? - pergunta Ingibjörg. Sua voz é gentil.

 

- Rósa Gudmundsdóttir me contou. Ela é parteira no Oeste.

 

Margrét anui lentamente.

 

- Poet-Rósa. Não sabia que eram amigas.

 

A carne está pronta. Eu coloco a colher no tampo de um barril e uso as duas mãos para levantar a panela do gancho.

 

- Não somos - digo.

 

Ingibjörg pega um pequeno prato de manteiga ao meu lado e acena com a cabeça para Margrét.

 

- Espero que sua senhora permita que saia por algum tempo - diz, sorrindo. - Você deve sentir o sol no rosto.

 

Ela e Margrét saem, mas as palavras dela flutuam no ar atrás dela. Você deve sentir o sol no rosto.

 

- Antes de morrer - não consigo deixar de acrescentar em voz alta para as brasas.

 

Os convidados chegam a pé e a cavalo, as mulheres trazendo comida, e os homens timidamente tirando pequenas garrafas de brandy de coletes e casacos. Eu os vejo colocar pratos nas mesas, mas na maior parte do tempo Margrét me mantém ocupada na cozinha, fora da vista dos vizinhos. Eles me encaram e ficam em silêncio quando levo jarras de leite, porções de manteiga fresca.

 

Não quero ficar aqui fora. Haverá pessoas que conheço, talvez fazendeiros para os quais trabalhei, criados com os quais dividi alojamento. Minha testa dói por causa das tranças apertadas, e de repente anseio soltá-las, caminhar com os cabelos soltos, deitar de costas para o sol.

 

Tóti encontrou Agnes na queijaria, batendo a manteiga.

 

- Não vai se juntar à festa, Agnes? - perguntou em voz baixa.

 

Ela não se virou.

 

- Sou mais útil aqui - disse, continuando a levantar o pilão e a empurrá-lo no creme. Tóti achou que era um bom som, o abafado da batida.

 

- Espero que não se importe por interrompê-la.

 

- Não. Mas, caso não se importe, não vou parar até a manteiga ficar no ponto.

 

Tóti se apoiou no umbral, enquanto Agnes continuava a levantar e baixar o batedor. Após um momento, ele tomou consciência da respiração de Agnes, rápida e forte, no pequeno aposento. Parecia algo muito íntimo; o ritmo do batedor e o som da respiração acelerada. Ele se sentiu corar. Finalmente se ouviu um baque dentro do pequeno barril, e Agnes parou e com destreza filtrou a manteiga do soro. Tóti piscou enquanto Agnes a lavava e depois virava e batia com a pá, habilidosamente expulsando o resto do líquido, e pensou no que Blöndal dissera. Alguém enfiou a faca na barriga de Natan Ketilsson.

 

Assim que a manteiga ganhou forma e foi coberta com um pano, Tóti sugeriu que saíssem para tomar ar. Agnes pareceu nervosa, mas, após pegar um tricô no badstofa, seguiu Tóti para fora. Eles se sentaram na pilha de turfa junto à cabana e olharam para o grupo de adultos e crianças, os fazendeiros ficando cada vez mais bêbados de brandy, e as mulheres fofocando em pequenos aglomerados de roupas escuras. Várias se revezavam para segurar um bebê, cacarejando no rosto dele. Ele começou a berrar.

 

- Estive com Blöndal - disse Tóti finalmente.

 

Agnes empalideceu.

 

- O que ele queria?

 

- Ele acha que eu deveria passar mais tempo envolvendo você em preces e sermões, e menos tempo deixando que fale.

 

- Só há uma coisa de que Blöndal gosta mais do que censura religiosa, e é o som de sua própria voz - disse Agnes, a voz irritada.

 

- Verdade que Blöndal contratou Natan para curar a esposa?

 

Agnes olhou desconfiada para ele.

 

- Sim - disse lentamente. - Sim, é verdade. Natan visitou Hvammur há alguns anos, para dar a ela cataplasmas e fazer sangrias.

 

Tóti anuiu.

 

- Blöndal também me falou um pouco sobre Fridrik. Aparentemente ele está indo muito bem sob a proteção de Birni Olsen e os conselhos do reverendo Jóhann.

 

Ele olhou para Agnes para avaliar sua reação. Ela apertou os olhos.

 

- Eles também vão conseguir um apelo para ele? - perguntou.

 

- Ele não disse - falou Tóti, pigarreando. - Agnes, uma criada chamada Karitas manda lembranças. Perguntou se você me falou sobre Natan.

 

Agnes parou de tricotar e contraiu o maxilar.

 

- Karitas? - perguntou, a voz desafinada.

 

- Ela pediu para falar comigo após eu ter me reunido com Blöndal. Queria me contar sobre Natan.

 

- E o que disse sobre ele?

 

Tóti procurou seu chifre de rapé, pôs um pouco na mão e fungou.

 

- Disse que não conseguiu suportar trabalhar para ele. Disse que ele brincava com as pessoas.

 

Agnes não disse nada.

 

- Conheci outros aqui neste vale que dizem que ele era um feiticeiro, que recebeu seu nome de Satã - disse Tóti.

 

- Essa é uma história muito popular. E muitos acreditam nela.

 

- Você acredita?

 

Agnes alisou a meia não terminada sobre os joelhos, depois falou.

 

- Não sei. Natan acreditava em sonhos. A mãe dele tinha antevisões, e seus sonhos com frequência se tornavam realidade. A família é famosa por isso. Ele me fazia contar meus sonhos e lhes dava muito valor.

 

Agnes parou de passar a palma da mão sobre a meia e olhou para a frente.

 

- Reverendo - disse em voz baixa. - Se eu lhe contar algo, promete acreditar em mim?

 

Tóti sentiu o coração dar um pulo no peito.

 

- O que você quer me contar, Agnes?

 

- Lembra-se de quando me visitou aqui pela primeira vez e me perguntou por que o escolhera como meu padre e eu disse que era por causa de um ato de gentileza, porque você me ajudara a cruzar o rio? - falou Agnes, lançando um olhar cauteloso para o grupo de pessoas no limite do campo. - Não estava mentindo. Nós nos encontramos ali. O que não lhe contei foi que havíamos nos encontrado antes.

 

Tóti ergueu as sobrancelhas.

 

- Lamento, Agnes, não me lembro.

 

- Não poderia. Nós nos encontramos em um sonho - disse, encarando Tóti, como se temendo que ele risse.

 

- Um sonho?

 

O reverendo ficou novamente impressionado pelo contraste de seus cílios escuros com os olhos claros. Ela é diferente de todos, pensou.

 

Satisfeita de que ele não iria rir, Agnes retomou o tricô.

 

- Quando eu tinha dezesseis anos, sonhei que caminhava descalça por um campo de lava. Ele estava coberto de neve, e eu estava perdida e com medo; não sabia onde estava e não via ninguém. Em todas as direções só havia pedras e neve, e grandes fissuras e rachaduras no solo. Meus pés sangravam, mas eu tinha de continuar; não sabia para onde, mas caminhava o mais rápido que podia. Quando achei que ia morrer de medo, um jovem apareceu. Tinha a cabeça nua, mas usava um colarinho de padre, e me ofereceu a mão. Continuamos a andar na mesma direção de antes, sem saber para onde mais ir, e, embora eu ainda estivesse aterrorizada, segurava a mão dele, e isso era um consolo.

 

- Então, de repente, no meu sonho, senti o solo ceder sob meus pés, e minha mão foi arrancada da mão do jovem, e caí em uma fissura. Lembro-me de olhar para cima enquanto caía na escuridão e ver o solo se fechar acima de minha cabeça. A luz se apagou, e o rosto do homem sumiu. Fui jogada dentro da terra, enterrada em escuridão e silêncio, e era insuportável, e então acordei.

 

Tóti sentiu a boca seca.

 

- Eu era aquele homem?

 

Agnes anuiu. Tinha lágrimas nos olhos.

 

- Então fiquei aterrorizada quando o vi em Gönguskörd. Eu o reconheci do meu sonho e soube que estava ligado à minha vida de alguma forma, e isso me preocupou - disse Agnes, limpando o nariz na manga. - Depois que nos separamos, eu descobri seu nome. Ouvi que ia ser um padre como seu pai e que seguia rumo ao sul para estudar na escola de lá, e soube então que meu sonho era real e íamos nos encontrar uma terceira vez. Mesmo Natan acreditava que tudo vem em grupos de três.

 

- Mas você não está em uma fissura e ainda não está escuro - disse Tóti.

 

- Ainda não - retrucou Agnes em voz baixa, engolindo em seco. - De qualquer forma, não foi a escuridão da fissura que me assustou. Foi o silêncio.

 

Tóti estava pensativo.

 

- Há muito neste mundo e no outro que não compreendemos. Mas só porque não entendemos, não significa que devamos ter medo. Podemos ter certeza de muito pouco nesta vida, Agnes. E ela é assustadora. Estaria mentindo se dissesse que não fico assustado com o que não conheço. Mas temos Deus, Agnes, e, mais que isso, temos Seu amor, e Ele leva embora nossos medos.

 

- Não tenho tanta certeza assim.

 

Tóti estendeu o braço e pegou a mão dela, incerto.

 

- Confie em mim, Agnes. Estou aqui, como estava em seu sonho. Você pode sentir minha mão na sua - acrescentou.

 

Tóti pressionou os dedos esguios dela, o nó de seus dedos. Tinha consciência de seu cheiro, o cheiro doce de soro fresco, e também um toque azedo. De pele? Da queijaria? Ele lutou contra uma repentina compulsão de levar os dedos dela à boca.

 

Ignorando os pensamentos dele, Agnes sorriu e deu um tapinha no joelho dele com a mão livre.

 

- Tenho certeza de que no final você dará um belo padre.

 

Tóti acariciou a pele das costas da mão dela.

 

- Sabe, Blöndal quase não me deixou voltar a você - falou, sentindo-se um conspirador.

 

- Claro que não.

 

- Quando o vi hoje, temi que me proibisse de vê-la.

 

- E ele fez isso?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Disse que tenho de rezar para você.

 

Agnes puxou a mão suavemente, e ele a soltou com relutância. Observou-a enquanto voltava a tricotar.

 

- Por que não me fala sobre Natan? - perguntou, um pouco irritado.

 

Agnes passou os olhos pelas pessoas diante deles.

 

- Acha que precisam que traga mais comida?

 

- Margrét a teria chamado - disse Tóti, limpando na calça a palma das mãos suadas. - Vamos lá, Agnes. Blöndal não está aqui.

 

- Agradeço ao senhor por isso - disse Agnes, respirando fundo. - O que quer que eu conte sobre Natan? Você sabe que ele era meu empregador em Illugastadir. Obviamente ouviu das pessoas daqui bastante sobre seu caráter. O que mais quer saber?

 

- Quando o conheceu?

 

- Conheci Natan Ketilsson quando trabalhava em Geitaskard.

 

- Onde é isso?

 

- Em Langidalur. Foi minha sexta fazenda como criada. É comandada por Worm Beck. Ele foi bom comigo. Eu trabalhara em Fannlaugarstadir, no Leste, depois Búrfell. Foi quando nos vimos pela primeira vez, reverendo, quando eu estava a caminho de Búrfell e o senhor me ajudou a atravessar o rio. Tinha ido porque ouvira dizer que Magnús Magnússon, o homem identificado como meu pai, estava trabalhando lá, e achei que poderia ficar com ele.

 

- Não fiquei tanto tempo. Magnús foi gentil, mas quando lembrei a ele que meu nome era Magnúsdóttir por sua causa, ficou furioso, disse que minha mãe sujara seu bom nome e nunca veria terminar os problemas que as mulheres haviam lhe causado. Depois disso, eu não quis ficar lá. Magnús me deu uma cama e me deixou ficar com todos ali, mas de tempos em tempos eu o via olhando para mim com uma expressão estranha, e sabia que era porque via semelhanças com minha mãe. Ele me deu algum dinheiro antes que partisse. Foi a primeira vez em minha vida que toquei em dinheiro.

 

- Decidi ir para Geitaskard. Parti de manhã bem cedo a pé, e estava seguindo a corrente do rio Blanda quando vi um grupo de homens vindo de uma passagem na montanha a leste. Eles se juntaram a mim e meus companheiros, a maioria outros criados, nos apresentamos, e não é que um deles era meu irmãozinho, então já crescido? Não havíamos nos reconhecido. Jóas estava emocionado. Apertou minha mão e me chamou de irmã, e os outros debocharam dele quando viram lágrimas em seus olhos. Também fiquei feliz de encontrar Jóas, mas percebi que ele tinha cheiro de brandy e que suas roupas eram desleixadas. Contou que era um criado, porém não levava carta de recomendação, e tinha a expressão nervosa dos vagabundos que se veem por aqui. Algo me disse que as coisas não estavam boas para ele, e isso apertou meu coração. Conversamos o caminho todo até Geitaskard naquela manhã, e soube que a infância de Jóas não havia sido melhor do que a minha. Mamãe o abandonara pouco depois de ter me arrastado para Kornsá, e ele me contou que havia sido jogado de um lado para o outro do vale como carvão quente. Não sabia onde estava Ingveldur, e disse que por ele poderia estar no inferno. Então éramos nós dois, ambos indigentes, só que ele parecia pior. Não sabia ler nem escrever, e quando me ofereci para ensinar, ele ficou irritado e disse que era para eu não me exibir.

 

- Jóas e seus amigos, um bando ensebado sem nenhum rosto limpo entre eles, me disseram que estavam indo a Geitaskard descobrir que tipo de trabalho poderiam conseguir, sendo uma grande fazenda. Jóas não tinha uma posição como eu tinha, mas me responsabilizei por ele perante Worm, e ele também foi aceito. Aqueles foram dias bons, ter uma família perto de mim daquele jeito, embora mal nos conhecêssemos, e uma bela fazenda para trabalhar. Havia muita comida em Geitaskard, não era como Gudrúnarstadir ou Gafl, ou mesmo Gilsstadir. Houve momentos naquelas fazendas em que não havia escolha, a não ser dar aos pequenos velas de sebo para comer, e eu mesma já comi um pedaço de couro fervido. Também os criados de Geitaskard sempre cuidavam de si mesmos. Com todos aqueles cavalos e vacas, manteiga e grama e grossas porções de carne para encher o estômago, não era difícil se sentir bem. Fiz amizade com uma das outras criadas, María Jónsdóttir. Nunca tive muitos amigos, mas ela também havia sido indigente, e imagino que de certo modo nos entendêssemos.

 

- Jóas parecia gostar de Geitaskard, o que me deixava contente. Mas eu não gostava dos amigos dele. Pareciam uma gangue de homens desmazelados e magros, com calças sujas, e tantos piolhos nos cabelos que Jóas chegou a arrancar sangue do couro cabeludo. Worm se livrou de alguns deles em apenas uma semana - ele os flagrara dormindo atrás do estábulo -, e o restante também não durou muito. Não sei se era por ele ser um homem melhor, ou por eu estar ali com ele, mas Jóas deixou que eu o limpasse e tirasse os piolhos dos seus cabelos, e trabalhou duro. À noite, quando tínhamos tempo para nós, conversávamos. Ele me disse que ouvira histórias sobre mim, que fizera perguntas e descobrira que eu fora para Kornsá, e depois Gudrúnarstadir. Disse que tentara me encontrar lá, mas eu havia partido quando ele chegara, e eles não lembravam para onde eu havia ido. Não deixei que ele visse, porém chorei com a ideia de meu irmão tentando me achar. Ele também tivera uma filha. Uma menininha, cuja mãe era uma criada. Mas me contou que o bebê nascera morto e que a criada não ligava para ele. Contei sobre Helga, nossa pobre irmã morta, e ele disse que fora ao funeral dela e que o fazendeiro Jónas, pai de Helga, dera a ele um pouco de dinheiro porque Jóas havia sido abandonado por uma prostituta. Jóas insistiu que nossa mãe não era boa e que poderia ir para o inferno por abandonar dois filhos à misericórdia da paróquia, que de misericordiosa não tinha nada, e a chamou de muitas outras coisas. Falava de mamãe como Magnús havia falado. Certa noite, discutimos por causa disso, e quando acordei Jóas havia sumido. Levara o dinheiro que Magnús me dera. Não o vejo desde então.

 

Veio uma risada alta do grupo no final do campo. Tóti viu que dois dos homens haviam soltado a vaca e os outros tentavam em vão levá-la de volta para o campo.

 

- Eu estava poupando aquele dinheiro - continuou Agnes. - Para quando me casasse; para pagar as licenças e ajudar meu marido a comprar um lote de terra, de forma que pudéssemos ser decentes e independentes.

 

- Você tinha um noivo? - perguntou Tóti.

 

Agnes sorriu.

 

- Ah, havia um criado de Geitaskard, Daníel Gudmundsson. Ele gostava de mim e dizia a todos que íamos ficar noivos e casar. Ele disse isso no julgamento, mas não vejo como poderia falar sério. Nenhum de nós tinha uma só moeda. Eu o deixei pensar o que bem entendesse, desde que continuasse a ser gentil comigo.

 

- Daníel também trabalhou em Illugastadir quando eu estava lá. Ele esteve no julgamento, primeiro como testemunha, depois Blöndal decidiu que ele sabia o que ia acontecer, então foi condenado à prisão em Rasphus, em Copenhague.

 

- E ele sabia o que ia acontecer? - perguntou Tóti.

 

Agnes ergueu os olhos das agulhas e o encarou com frieza.

 

- Se alguém soubesse o que ia acontecer, acha que eu estaria sentada aqui conversando com você? Acha que qualquer um dos outros, Daníel, a família de Fridrik, seria amarrado a um barril e açoitado quase até a morte se soubesse o que ia acontecer?

 

Houve um momento de silêncio.

 

Agnes respirou fundo.

 

- Depois que Jóas partiu, a melhor coisa de trabalhar em Geitaskard era María. Nunca tive muitos amigos enquanto crescia; fui transferida de fazenda em fazenda. Trabalhava para qualquer um na paróquia que precisasse de um serviço ou que quisesse uma garota adolescente para cuidar da grama, das ovelhas ou das panelas. Costumava ficar por conta própria de algum modo. Preferia ler a conversar com os outros. Você gosta de ler? - perguntou Agnes, erguendo os olhos.

 

- Muito.

 

Agnes deu um grande sorriso, e pela primeira vez Tóti se lembrou da criada que ajudara a cruzar o rio. Os olhos eram brilhantes, os lábios abertos revelando dentes alinhados; de repente, ela pareceu mais jovem, diferente. Ele tinha consciência do próprio peito subindo e descendo. É bastante bonita, pensou.

 

- Eu também - disse ela, a voz tornando-se um sussurro. - Gosto mais das sagas. Como eles dizem, blíndur er bóklaus maður. Cego é o homem sem um livro.

 

Tóti sentiu algo crescendo nele, choro ou riso. Olhou para Agnes, o sol da tarde iluminando as pontas de seus cílios, e pensou nas palavras de Blöndal. Agnes matou Natan porque foi rejeitada. Viu a frase escrita em sua mente.

 

- Quando eu era jovem, costumava ser contratada para cuidar dos campos. Algumas vezes as fazendas tinham livros - disse, fazendo um gesto para as colinas rochosas atrás deles. - Eu costumava pegá-los e ler na colina de Kornsá. Podia adormecer ali e ter algum descanso da fazenda e das tarefas. Embora às vezes fosse apanhada e punida.

 

- Seu registro de crisma dizia que você tinha muita leitura.

 

Agnes esticou as costas.

 

- Eu gostei da crisma; a comunhão e todo mundo olhando enquanto você subia a nave e se ajoelhava diante do padre. Os fazendeiros e suas esposas não podiam me proibir de ler, sabendo que eu me preparava para a crisma. Eu podia ir à igreja e estudar com o reverendo lá, caso ele tivesse tempo. Ganhei um vestido branco, e depois houve panquecas.

 

- E quanto à poesia?

 

Agnes pareceu cética.

 

- O que tem ela?

 

- Você gosta? Compõe?

 

- Eu não me vanglorio dos meus poemas. Não como Rósa. Todos conhecem os dela - disse, dando de ombros.

 

- Porque são bonitos.

 

Agnes ficou em silêncio.

 

- Natan adorava isso em Rósa. Adorava o modo como ela sabia construir coisas com palavras. Ela inventou sua própria linguagem para dizer o que os outros só podiam sentir.

 

- Ouvi dizer que Natan também era poeta - falou Tóti, fingindo desinteresse. - Vocês conversavam em poemas, como Rósa e Natan faziam?

 

- Não como Rósa, não. Mas conversávamos um com o outro em uma espécie de poesia - respondeu Agnes, olhando para o campo. - Conheci Natan em um dia como este.

 

- Uma festa da colheita?

 

Ela anuiu.

 

- Em Geitaskard. Eu estava servindo com María. Estávamos levando comida e bebida, e também tendo um tempo para nós. María sabia tudo o que havia para saber sobre uma pessoa, e lembro que ela apontava para a barriga inchada de um dos criados do fazendeiro e dizia coisas que talvez não fossem gentis, mas que me fizeram rir até perder o fôlego. Então me agarrou pelo cotovelo e me arrastou para o estábulo, e disse que acabara de ver Natan Ketilsson chegar a cavalo.

 

- Eu já sabia sobre Natan, claro. Ele era famoso por todo tipo de coisas, dependendo de com quem você falava. Todos sabiam sobre seu caso com Rósa. Todos sabiam que os filhos dela eram de Natan, não de Ólaf. Natan viajara por todo o Norte. Quando jovem, ele circulara fazendo sangrias, e depois fora a Copenhague, e todos disseram que voltou um feiticeiro. Também diziam que fizera amizade com Blöndal, que estudava lá na época, e que por isso nunca foi apanhado pelo que fez depois. Todos achavam que Natan era um ladrão, e é verdade que foi açoitado por isso quando mais novo. Ninguém entendia como tinha tanto dinheiro quando viam pessoalmente quão pouco colocavam nas mãos dele. Alguns juravam que tinha outros que roubavam animais para ele. Tinha muitos inimigos. Mas é difícil dizer se as pessoas estavam erradas ou simplesmente sentiam inveja. As histórias crescem sozinhas, e o próprio Natan gostava de deixar as pessoas na dúvida.

 

- Qual era a sua opinião sobre Natan então?

 

- Ah, eu não tinha nenhuma. Nunca o encontrara antes, embora seu irmão Ketil tivesse tentado me seduzir um dia. No estábulo, María me disse que Natan finalmente deixara Rósa e pegara uma fazenda para ele mesmo. Muitas pessoas falavam sobre isso porque Rósa era estimada, e lamentavam vê-la de coração partido, embora fosse casada. María me contou que Worm era grande amigo de Natan e o ajudara a comprar Illugastadir, uma fazenda junto ao mar com muitas focas, êideres e madeira levada pelo mar, desde que você conseguisse tirar da margem. Ela disse que Natan começara a assumir certos ares, chamando a si mesmo de Lyngdal em vez de Ketilsson, embora nenhuma de nós entendesse por quê; era um nome estranho, nada islandês. María achava que provavelmente era para se fazer passar por dinamarquês, e fiquei pensando como ele havia sido autorizado a mudar de nome. María me disse que os homens podem fazer o que querem e que são todos como Adão, dando o nome a tudo sob o sol.

 

- Nós nos limpamos, e María mordeu os lábios para deixá-los mais vermelhos. Depois saímos do estábulo fingindo ver se os pratos haviam sido esvaziados.

 

- Foi então que vi Natan pela primeira vez. Achava que era um homem grande, um camarada bonito, empertigado, com cabelos compridos, um daqueles homens pelos quais as criadas costumam se empolgar. Mas Natan não era bonito. O homem que vi conversando com Worm não era alto, e tinha um rosto muito fino - ele nunca pareceu forte. Os cabelos eram castanhos avermelhados, e o nariz era grande demais para o rosto. Achei que parecia uma raposa com os cabelos avermelhados e os olhinhos de contas, e disse isso a María. Ela caiu na gargalhada e disse que não era de espantar que alguns no Norte achassem que ele mudava de forma.

 

- Natan então nos notou. Era óbvio que estávamos rindo à custa dele, mas ele não pareceu se importar. Fez algum comentário com Worm e começou a caminhar em nossa direção.

 

- Lembro que sorria, como se já nos conhecesse. Suponho que gostara da atenção. - Boa tarde, meninas - disse. Não era muito mais alto do que eu, mas sua voz era grave. Ele falou: - Posso ter o prazer de saber seu nome? - e respondi por ambas.

 

Natan sorriu e fez uma mesura, e foi então que notei as mãos dele. Eram muito brancas, como as de uma mulher, e os dedos eram finos como ramos de bétula e igualmente compridos. Não é de admirar que o chamassem de dedos longos. Disse que era um prazer nos conhecer, e perguntou se não fazia um belo dia. Começou a nos perguntar se estávamos gostando da festa, mas interrompi e disse que ele ainda não nos dissera seu nome. María debochou, porém Natan sempre gostou daqueles que não tinham medo de falar, como me disse depois. Falou que seu nome era Natan Lyngdal. Havia um brilho em seus olhos.

 

- María perguntou se na verdade não era Ketilsson, e Natan respondeu que sim, de fato ele também era Ketilsson e que tinha muitos outros nomes, embora nem todos fossem adequados a nossos ouvidos delicados. Ele falava com facilidade, reverendo. Sempre soube o que dizer às pessoas, o que as faria se sentir bem. E o que cortaria mais fundo.

 

- Não conversamos muito tempo. Worm convocou Natan, e ele se despediu, não antes de murmurar que esperava nos ver novamente um pouco mais tarde, quando não fosse tão requisitado.

 

O reverendo Tóti correu um dedo pelas gengivas, desalojando um resíduo ou dois de tabaco. Limpou a ponta do dedo na calça e não conseguiu deixar de notar a forma pequena e sem graça de suas próprias mãos rosadas. Sentiu uma pontada de inveja no peito.

 

- Quando viu Natan novamente depois disso?

 

Agnes parou para contar os pontos antes de fazer a última fileira.

 

- Ah, no mesmo dia. María e eu ficamos ocupadas a tarde toda, fazendo coisas para a esposa de Worm e cuidando das crianças, mas ganhamos a noite para festejar a colheita a nosso modo. Era um crepúsculo fino e delicado, e todos os criados se sentaram do lado de fora para ver a noite cair. Um dos trabalhadores contava uma história do povo oculto, quando ouvimos uma tossida e vimos Natan em pé na sombra atrás de nosso grupo. Ele se desculpou por chegar sorrateiro, mas disse que gostava de histórias e perguntou se faríamos uma gentileza com um estranho, permitindo que se juntasse às nossas festividades. Um dos criados disse que Natan Ketilsson não era exatamente um estranho, especialmente entre as mulheres, e a maioria riu. Mas um ou dois dos homens, e também algumas das criadas, desviaram os olhos.

 

- María abriu espaço para Natan ao lado dela. Eu estava mais afastada do grupo, não sendo tão popular por ter certo jeito de falar com as pessoas, mas Natan passou direto por María e sentou perto de mim. - Agora estamos todos prontos - ele disse, e olhou para o homem que falava, convidando-o a continuar com sua história. - Passamos a noite contando histórias e olhando para as estrelas até chegar a hora de dormir, e foi o fim.

 

- Por que acha que Natan escolheu sentar perto de você?

 

Agnes deu de ombros.

 

- Ele me disse depois que passara o dia inteiro me observando e não conseguira me ler. Eu inicialmente não entendi e disse: Bem, isso não me espanta, pois sou uma mulher, não um livro. Ele riu e disse que não, que também podia ler pessoas, embora algumas parecessem estar em uma caligrafia que ele não conseguia compreender.

 

Agnes deu um pequeno sorriso.

 

- Entenda o que quiser disso, reverendo. Mas foi o que ele disse.

 

O reverendo está imaginando o que éramos um para o outro. Eu o observo e sei que pensa em Natan e em mim, deixando o pensamento percorrer sua mente, saboreando, como uma criança sugando o tutano de um osso. Ele poderia muito bem estar sugando uma pedra.

 

Natan.

 

Como posso realmente recordar o momento em que o conheci, quando a mão que senti pressionar a minha era apenas uma mão? Impossível pensar em Natan como o estranho que ele um dia foi para mim. Posso ver como ele parecia, recordar o clima e a luz brincando sobre seu rosto com barba por fazer, mas aquele momento virgem é impossível de recapturar. Não consigo me lembrar de não conhecer Natan. Não consigo pensar em como era não amá-lo. Olhar para ele e reconhecer ter encontrado aquilo que nem sabia que procurava. Uma fome tão profunda, tão capaz de me lançar na noite que me aterrorizava...

 

Não menti para o reverendo. Aquela noite de estrelas e histórias, com a pressão morna da mão dele na minha, aconteceu conforme meu relato. Mas eu não contei o que se seguiu quando os criados foram para a cama. Não contei que María foi com eles também, depois de me lançar um olhar de reprovação. Não disse que fomos deixados a sós e que Natan me incitou a ficar com ele à meia-luz. Para conversar, disse ele. Só para conversar.

 

- Diga-me quem você é, Agnes. Aqui, deixe-me tomar sua mão para que eu possa aprender um pouco sobre você.

 

O calor penetrante de seus dedos traçando o comprimento de minha palma aberta.

 

- São calos, então você é trabalhadora braçal. Mas seus dedos são fortes. Você não apenas trabalha duro, mas faz bem o seu trabalho. Posso ver por que Worm a contratou. Vê isto? Você tem uma palma vazia. Como a minha própria, olhe; sente como não é cheia?

 

A depressão macia, as rugas fantasmas em sua pele, a sugestão de ossos.

 

- Sabe o que significa ter uma palma vazia? Significa que há algo secreto em nós. Este espaço vazio pode se encher de azar se não tomarmos cuidado. Se expusermos a concavidade ao mundo e toda a sua escuridão, todo o seu azar.

 

- Mas como alguém pode esconder a forma da mão? - perguntei, rindo.

 

- Cobrindo-a com a de outra pessoa, Agnes.

 

O peso dos dedos dele nos meus, como um pássaro pousando em um galho. Era o fósforo caindo. Eu não vi que estávamos cercados por combustível até sentir que ele explodia em chamas.

 

Poema de Poet-Rósa para Natan Ketilsson, por volta de 1827

 

Ó, hve sæla eg áleit mig, -

 

engin mun því trúande, -

 

þá fjekk eg líða fyrir þig

 

forsmán vina, en hinna spje.

 

Sá minn þanki sannur er, -

 

þó svik þín banni nýting arðs -

 

Ó, hve hefir orðið þjer

 

eitruð rosin Kiðjaskarðs!

 

Ah, quão feliz eu acreditava ser -

 

ninguém poderia saber quão livre -

 

mesmo quando sofria por você,

 

quando todos debochavam de mim.

 

Traidor, veja sua infelicidade -

 

é o que penso, é verdade -

 

Ah, como essa rosa de Kidjaskard

 

partiu e envenenou você!

 

O outono se abateu sobre o vale num piscar de olhos. Margrét acordada, deitada na penumbra prolongada da manhã de outubro, os pulmões cobertos de muco, pensava em como a luz se tornara tão lenta para chegar; agora a luz parecia cambalear através da janela, como se cansada de viajar distância tão grande. Já parecia uma luta se levantar. Margrét acordava na noite gelada com Jón apertando os dedos dos pés sobre suas pernas para aquecê-los, e os trabalhadores voltavam para dentro, após alimentar a vaca e os cavalos, com nariz e bochechas rosados do gelo no ar. Suas filhas haviam dito que toda manhã encontravam uma camada de gelo em sua jornada para colher frutas, e neve caíra enquanto os animais eram recolhidos. Margrét não fora, não confiando que seus pulmões resistiriam à longa caminhada montanha acima para encontrar e recolher as ovelhas de seu pasto de verão, mas mandara todos os outros. Exceto Agnes. Não podia deixar que ela cruzasse a montanha. Não que fosse fugir. Agnes não era idiota. Ela conhecia aquele vale e sabia que oferecia pouca fuga. Ela seria vista. Todos sabiam quem ela era.

 

O dia do arrebanhamento foi inquieto. Os trabalhadores partiram primeiro, antes do amanhecer, cavalgando para além da montanha de Vididals com outros homens do vale, e algumas das mulheres do distrito haviam seguido a pé pouco depois. Margrét ficara para trás com Agnes, preparando a refeição para o retorno deles. Assim que clareara naquele dia, Margrét se sentiu desconfortável. O céu amanhecera cinzento e sinistro, e ela sabia que algo iria acontecer pelo modo como as nuvens se aproximavam do solo. O cheiro de ferro no ar. Por toda manhã, ela pensou nas pessoas que haviam se perdido na montanha. No ano anterior, uma criada desaparecera em uma nevasca repentina durante o arrebanhamento, e só encontraram seus ossos na primavera seguinte, a quilômetros de onde ela havia sido vista pela última vez. A preocupação dominou Margrét de tal modo que ela se viu conversando com Agnes, simplesmente pelo alívio de poder expressar suas inquietações. Elas relembraram as pessoas que haviam conhecido e que morreram nas montanhas. Uma conversa sinistra, pensou Margrét, mas havia algum consolo em conversar sobre morte em voz alta, como se ao dar nome às coisas fosse possível impedir que elas acontecessem. Talvez por isso Agnes falasse mais com o reverendo do que ele com ela, pensou.

 

Ela estava certa, claro; algo acontecera. Pouco depois do meio-dia, sem que ninguém tivesse retornado da montanha, houve uma batida rápida na porta da fazenda, e Ingibjörg entrara apressada.

 

- É Róslín - dissera.

 

A fazenda em Gilsstadir estava cheia de crianças. Margrét percebera que apesar do caos, da cozinha enfumaçada cheia de panelas e chaleiras de água fervente queimando, a horda de filhos de Róslín parecia entediada com o trabalho de parto da mãe. Depois que as três mulheres entraram, Róslín cambaleara para o badstofa, pálida e suando. Algo está errado, continuava a repetir. Claro que ficou horrorizada ao ver Agnes em pé no umbral, mas como Ingibjörg lhe explicara calmamente, onde Margrét iria deixá-la?

 

O bebê estava se remexendo. Foi Agnes quem disse isso a elas, de repente se adiantando e colocando as mãos na barriga de Róslín. Róslín gritara, exigindo que as outras afastassem Agnes dela, mas nem Margrét nem Ingibjörg se moveram. Mesmo quando Róslín socava suas mãos e arranhava seus braços, Agnes continuou a pressionar gentilmente os dedos magros sobre a protuberância inchada.

 

- Ele está sentado - dissera. Róslín então gemera e parara de lutar. Agnes também não se movera, mas mandara Róslín se deitar no chão, e permaneceu ao lado dela durante todo o suplício. Margrét se lembrava de como Agnes não tirara as mãos da mulher. Durante todo o nascimento, ela acariciara Róslín com suas palmas magras, acalmando-a, mandando que as crianças saíssem do caminho, pegassem panos, fervessem água. Ela mandara uma delas correr até Kornsá para pegar um pouco da angélica que as meninas haviam colhido em sua excursão de coleta de frutas. - Está em uma travessa de areia na despensa - dissera, e Margrét se espantara com quanto Agnes parecia conhecer sua casa. - Não machuque a raiz. Corra de volta com um punhado.

 

Ela pedira a Ingibjörg que preparasse um chá com a raiz, porque faria o bebê sair mais facilmente. Quando o líquido quente foi levado aos seus lábios, Róslín trincou os dentes, recusando-se a beber.

 

- Não é veneno, Róslín - dissera Margrét. - Poupe-nos do teatro.

 

Houve então um momento. Um olhar trocado com Agnes. Um rápido sorriso tenso.

 

O bebê saíra sentado, como Agnes dissera. Primeiro as pernas, os dedos ensanguentados na frente, depois o corpo e finalmente a cabeça, com o cordão enrolado nos braços e no pescoço. Mas estava vivo, e isso era tudo o que Róslín precisava saber.

 

Agnes se recusara a fazer o parto. Pedira a Ingibjörg para ajudá-lo a vir ao mundo, e não o tocou, nem mesmo depois, quando Róslín havia adormecido e o som das ovelhas balindo ao serem conduzidas começou a ecoar pelo vale. Margrét achara isso estranho - o modo como Agnes se recusara a embalar o recém-nascido. O que ela dissera? - Ele merece viver. - Como se fosse morrer, caso Agnes o pegasse nos braços.

 

Houve motivo em dobro para celebrar naquela noite. Snæbjörn estava extasiado, coberto de rum e brandy pelos outros fazendeiros, de modo que, quando subiu no cercado de seleção para arrastar sua ovelha para o curral da família, cambaleou e escorregou na lama, levando uma cabeçada forte de um carneiro. Margrét ouviu Páll contar a história à sua mãe em recuperação, recordando animadamente como Snæbjörn precisara ser arrastado para descansar na grama, enquanto os outros selecionavam o restante dos animais.

 

Elas só comeram bem tarde. As filhas de Margrét haviam resgatado o que era possível da comida negligenciada e servido aos trabalhadores famintos naquela noite.

 

- Estava nevando um pouco - dissera Steina após ouvirem sobre o parto de Róslín. Ela olhara para Agnes. - Deve ter sido um bom sinal.

 

- Eu fiz muito pouco - dissera Agnes. - Ingibjörg fez o parto.

 

- Não - corrigira Margrét. - O chá de raiz de angélica. Onde você aprendeu isso?

 

- É de conhecimento comum - murmurara Agnes.

 

- Provavelmente Natan - sugerira Lauga, amarga.

 

Margrét ficou pensando como, mesmo que só por uma hora, Agnes parecera fazer parte da família. Ela se vira conversando com Agnes no dia seguinte, perguntando-lhe quais tinturas estava acostumada a fazer, e continuaram como senhora e criada até Lauga entrar no aposento e reclamar que estava farta de Agnes olhando para suas roupas e seus pertences. Lauga sabia tão bem quanto Margrét que se Agnes fosse uma ladra, eles já teriam dado falta de alguma coisa. Nem mesmo o broche de prata saíra de seu lugar na poeira de debaixo da cama. Margrét imaginou por um instante se Lauga estaria com inveja de uma mulher que provavelmente estaria morta antes que o clima mudasse novamente. Mas havia uma intensidade em sua repulsa que parecia deflagrada por algo mais que ressentimento.

 

Tirando gentilmente as pernas de sob o grande peso do marido, Margrét saiu da cama, foi em silêncio até a janela e espiou através da pele seca. Havia gelo do lado de fora. Que aborrecimento, pensou. Embora os carneiros e as ovelhas de leite tivessem sido colocados para pastar no campo plantado da família, os carneiros novos ainda estavam presos. Eles iam começar o abate hoje.

 

Margrét voltou o pensamento para a época em que Agnes chegara a Kornsá. Uma parte dela gostara da tensão entre sua família e a criminosa, até ansiara por ela. Isso os unira; fizera-a sentir-se mais próxima das filhas, do marido. Mas agora se dava conta de que o silêncio deles se transformara em algo mais natural e sem problemas. Margrét se preocupava com isso. Estava acostumada demais à presença de Agnes na fazenda. Talvez fosse a utilidade de mais duas mãos para trabalhar. Ter a ajuda de outra mulher já reduzira suas dores nas costas, e sua tosse não parecia perturbar a respiração com a mesma frequência de antes. Evitava pensar no que aconteceria quando fosse anunciado o dia da execução. Não, era melhor não pensar em nada disso, e se ela se sentia mais à vontade com a mulher era por ser mais fácil realizar as tarefas. Não fazia sentido olhar por cima do ombro quando uma tarefa urgente estava diante de você.

 

O abate traz um sentimento de urgência. O clima é ruim, há gelo na chuva, e o vento é como um lobo mordendo seus calcanhares, lembrando a você que o inverno está chegando. Eu me sinto tão para baixo quanto as densas nuvens de neve que se formam.

 

Ninguém quer trabalhar até a noite, então estamos todos envoltos em várias camadas de agasalhos, esperando do lado de fora à meia-luz de outubro que os criados e Jón peguem o primeiro cordeiro. Eles reservaram os animais que acham que vão nos sustentar durante o inverno. Será que fui considerada mais uma boca a alimentar? Contenho um impulso de me oferecer a Jón e sua faca. Por que não me matar aqui e agora, em um dia comum? É a espera que abala. Os cordeiros vasculham a pouca grama que ainda não foi queimada pelo clima. Será que esses animais idiotas conhecem seu destino? Reunidos e separados, eles só precisam esperar com medo uma noite gelada. Eu estou no cercado de abate há meses.

 

Gudmundur pega o primeiro cordeiro, ajoelhando sobre ele para manter a cabeça imóvel. Eu não gosto dele, mas é eficiente - a garganta é cortada até a coluna vertebral, e ele é tão rápido com o balde que quase nenhuma gota é derramada. Alguns poucos minutos, e todo o sangue escorre. Avanço para pegar o balde, mas ele me ignora e o dá a Lauga. Não seja por isso. Também o ignoro. Espero pelo balde de sangue de Jón, que ergueu sua ovelha abatida sobre o cercado para recolher melhor o fluxo vermelho. O sangue sempre transborda e toma direções inesperadas. Uma parte cai no solo enlameado e na carcaça cinza do animal, porque logo o balde está cheio.

 

Volto para dentro, onde Margrét fez o fogo com estrume e turfa. Meus olhos lacrimejam com a fumaça, e Margrét tosse em meio à névoa, mas, como ela me lembra, não teremos motivo de queixa quando comermos a carne defumada que estamos pendurando nos suportes. Deixo meu sangue e volto para fora.

 

Esperamos até que os animais sejam esfolados. A ovelha de Bjarni ainda sangra - ele carece da técnica de um bom magarefe. Mas Gudmundur é hábil com uma faca. Ele me lembra Fridrik, que ia ajudar com os abates em Illugastadir antes que ele e Natan abandonassem qualquer fingimento de amizade. Fridrik sempre pareceu muito ansioso para cortar o animal - um tanto rápido demais com a lâmina. Jón é mais lento, porém mais cuidadoso. Começa a esfolar pelos jarretes traseiros e parte a articulação das patas de trás sem deixar nenhum tendão intacto. Gudmundur esfola o máximo que pode pelos ombros, mas luta para arrancar a pele do peito, e Jón pede a Bjarni que o ajude. Juntos, eles erguem a ovelha sobre o muro, onde o resto da pele é arrancado da carcaça e finalmente tirado. Bjarni fez uma bagunça. Eu gostaria de poder me adiantar e mostrar a ele como se faz. Imagino suas expressões se eu me adiantasse e pedisse uma faca.

 

Pegamos as entranhas com coração, pulmões e esôfago, e depois intestinos e estômago, quando a carcaça é estripada.

 

Naquele outono em Illugastadir, Natan furou a vesícula de uma ovelha. O líquido amargo escorreu sobre a carne, e Fridrik caiu na gargalhada. - E você se diz médico - disse ele a Natan. Estranho como agora esses momentos retornam a minha mente. Com as entranhas em nossos baldes, deixamos os homens cortando a carne em porções e voltamos à cozinha. Parte da fumaça se dissipou, e o fogo é alto. Margrét colocou uma panela com água para ferver no braseiro, e todas começamos a trabalhar no chouriço. Até Lauga ajuda, passando o sangue pelo pano. Ela se encolhe quando gotas acertam seu rosto. Saio para pegar os estômagos para o embutido, e, quando volto, o ar do lado de dentro da cabana está denso com o cheiro animal de gordura e rins fervendo para o café da manhã dos homens. Margrét colocou um pouco de sebo em outra panela e o cobriu de água para cozinhar. Kristín, Margrét, Steina e eu cortamos os estômagos e os costuramos em forma de bolsas, deixando um pequeno buraco para o recheio. Quando Lauga termina de filtrar o sangue, misturo o resto do sebo e da farinha de centeio, e sugiro misturarmos também um pouco de líquen, como costumávamos fazer em Geitaskard. Quando Margrét concorda e manda Lauga pegá-lo no depósito, sinto uma onda de felicidade murmurar em meu coração. É minha vida como costumava ser: enfiada até os cotovelos em entranhas, trabalhando para conseguir alguma espécie de sobrevivência. As garotas tagarelam e riem enquanto enchem as bolsas com a mistura sangrenta. Posso esquecer quem sou.

 

O sebo se dissolve rapidamente. Três de nós arrastam a panela do fogo, para que esfrie até podermos romper a tampa de gordura que esconde o líquido abaixo.

 

Os homens entram para comer os rins fedendo a bosta e lã molhada. Acho que os empregados olham com inveja para nós mulheres jogando sacos de chouriço em uma panela de água fervente na cozinha enfumaçada e quente. Quando sirvo a comida a Jón, ele me olha nos olhos pela primeira vez.

 

- Obrigado, Agnes - diz em voz baixa. É por causa do bebê de Róslín, tenho certeza disso. Ele agora me vê de outro modo.

 

Os homens acabaram de comer e saem para pegar os primeiros pedaços de carne. Começo a medir o salitre e o misturo com sal. Isso me lembra de quando costumava ajudar Natan em sua oficina: medindo enxofre, folhas secas, sementes esmagadas. Eu hoje pensei muito em Illugastadir. O abate no único outono que passei lá. Gostei de reservar provisões para o inverno. Coisas que iríamos comer depois, que sustentariam Natan em suas longas viagens. Naquele dia, ele ficou à porta da cozinha enquanto eu misturava comida com sangue, lendo as sagas para mim e falando sobre seu tempo em Copenhague, onde o blodpølse era fatiado e salpicado com um tipo de fruta seca. Então Fridrik e Sigga entraram na cozinha rindo juntos, com baldes de entranhas do pátio de abate, neve nos cabelos, e Natan me trocou por sua oficina.

 

Meus dedos doem enquanto pressiono camada após camada de carne salgada no tambor de madeira. Uma casca rosa racha entre meus dedos, e minhas costas doem de me curvar dentro do barril. Steina me observa, perguntando quanta água salpicar sobre cada camada, observando o modo como as pontas dos dedos brincam com o sal. Ela lambe a pele e torce o nariz com o gosto.

 

- Não entendo por que não podemos estocar tudo em soro de leite. O sal é muito caro - diz.

 

- Combina com o gosto dos estrangeiros - respondo. Aquele barril será trocado por outros bens. A carne mais gorda será estocada em soro de leite e guardada para a família.

 

- Sal é tirado do mar?

 

- Por que me faz tantas perguntas, Steina?

 

A garota para, as bochechas rosadas.

 

- Porque você me dá respostas - murmura.

 

A seguir são os ossos e as cabeças. Peço a Lauga que esvazie o pote de sebo de cartilagens e água, mas ela finge não me ouvir e continua com os olhos fixos em um ponto à sua frente. Kristín toma o lugar dela. Quando Steina volta para junto de mim, sorrindo timidamente, pensando se haveria algo que eu precisava que fosse feito, peço-lhe que encha a panela com os ossos que não podem ser usados para mais nada. Sal. Cevada. Água. Steina e eu erguemos a panela para perto do chouriço, para que o tutano se dissolva na água fervente, para que o sal e o calor arranquem tudo de macio da carcaça. Ela bate palmas quando prendemos a panela transbordante no gancho e, imediatamente, começa a pôr mais combustível no fogo.

 

- Não tanto, Steina - digo. - Não cubra as brasas.

 

Seguro as cabeças de ovelha perto das chamas do braseiro para queimar pelos e lã. Eles não pegam fogo, mas se retorcem com as labaredas, e sinto minhas narinas queimarem com o fedor.

 

Ah, Deus. Que cheiro...

 

O badstofa em Illugastadir. A gordura de baleia esfregada na madeira e nas camas, depois a chama da lamparina soltando fumaça nos cobertores de lã engordurados. Cabelos queimando.

 

Não posso fazer isso; preciso de ar fresco. Ah, Deus!

 

Não deixe que vejam como isso a perturba. Eu dou as cabeças a Steina, deixo que ela faça. Preciso de ar fresco, e digo a Steina que é a fumaça.

 

Do lado de fora, a garoa cai sobre meu rosto como uma bênção. Mas o fedor de lã chamuscada e pelos queimados permanece em minhas narinas, amargo, nauseando-me até o âmago.

 

É Margrét quem me encontra, agachada no escuro com a cabeça entre os joelhos. Espero que ela me censure. O que está fazendo, Agnes? Volte para dentro. Faça o que mandei. Como ousa deixar Steina fazer tudo sozinha? Ela queimou a carne e a deixou irreconhecível.

 

Mas Margrét fica em silêncio. Ela se agacha junto a mim, e ouço os joelhos dela estalando.

 

- Como a claridade acaba cedo agora.

 

Isso é tudo o que ela vai dizer?

 

Ela está certa. O entardecer azul parece ter se esgueirado do intestino escuro do rio diante de nós.

 

O cheiro das coisas sempre parece mais forte à noite, e sentada ali tenho consciência do odor da cozinha em Margrét. Chouriço. Fumaça. Salmoura. Ela respira pesado, e no silêncio do anoitecer consigo ouvir um chiado em seus pulmões; algo agarrando sua respiração.

 

- Eu precisava de um pouco de ar - digo.

 

Margrét dá um suspiro; pigarreia.

 

- Ninguém nunca morreu de ar fresco.

 

Sentamos e escutamos o rio correndo leve. A garoa para. Começa a nevar.

 

- Vamos ver o que aquelas garotas estão fazendo agora - diz Margrét finalmente. - Não me surpreenderia se Steina tivesse pendurado a si mesma nas varas em vez da carne. Poderíamos encontrá-la defumada.

 

Batidas suaves vêm da oficina. Os homens devem estar esticando as peles de ovelha para secar.

 

- Venha, Agnes. O frio vai matá-la.

 

Baixando os olhos, vejo que Margrét estendeu a mão. Eu a tomo, e sua pele parece papel. Entramos.

 

O fogo na cozinha havia desmoronado em uma pilha de brasas chiando, e a escuridão se abatera pesadamente sobre o sangue derramado nos suportes do lado de fora quando Lauga, dedos inchados, amarrou a última bolsa molhada de chouriço a uma corda para pendurar e secar. Steina, o avental coberto de machas de vísceras e sangue, estava apoiada no batente da porta e observava a irmã.

 

- Está nevando lá fora - disse.

 

Lauga deu de ombros.

 

- Todos foram para a cama - disse ela, fungando. - Está um cheiro bom aqui, não acha?

 

- Não sei desde quando matar tem cheiro bom - disse Lauga, curvando-se e pegando os baldes que haviam recebido as vísceras.

 

- Ah, deixe que sequem. Nós os lavamos de manhã - disse Steina, indo até a irmã e colocando um banco diante do fogo. - Você viu Agnes estocando a carne? Nunca vi ninguém trabalhar tão rápido.

 

Lauga empilhou os baldes junto à parede e sentou-se ao lado de Steina, esticando as mãos sobre as cinzas quentes.

 

- Ela provavelmente envenenou o barril todo.

 

Steina fez uma careta.

 

- Ela não faria tal coisa. Não conosco - disse, molhando uma ponta do avental e começando a limpar a sujeira das mãos. - Queria saber o que a deixou enjoada daquele jeito.

 

- Como, enjoada?

 

- Agnes e eu estávamos sentadas aqui, como estamos agora, cuidando das cabeças, e de repente ela as jogou no meu colo e saiu falando sozinha. Mamãe a seguiu para fora, e eu vi as duas sentadas lá, conversando. Depois elas voltaram para dentro.

 

Lauga franziu o cenho e se levantou.

 

- Engraçado - Steina continuou. - Apesar de tudo o que diz, acho que agora mamãe tem algum afeto por ela.

 

- Steina! - avisou Lauga.

 

- Ela nunca diz isso, mas...

 

- Steina! Em nome dos céus, você tem de falar sempre sobre Agnes?

 

Steina olhou surpresa para a irmã.

 

- O que há de errado em falar sobre Agnes?

 

Lauga debochou.

 

- O que há de errado? Eu sou a única pessoa que a vê como ela é? - perguntou, a voz se reduzindo a um sussurro sibilado. - Você fala dela como se não fosse nada. Como se fosse uma criada.

 

- Ah, Lauga. Gostaria que você...

 

- Gostaria que eu fizesse o quê? O quê? Fizesse amizade, como o restante de vocês?

 

Steina olhou boquiaberta para a irmã. Lauga de repente caminhou até os fundos da cozinha, fechou as mãos em punho e os apertou sobre a testa.

 

- Lauga?

 

A irmã não se virou, pegando lentamente os baldes sujos.

 

- Vou lavar isto - disse, a voz falhando. - Você deveria ir para a cama, Steina.

 

- Lauga? - chamou Steina, levantando-se e dando alguns passos na direção dela. - Qual é o problema?

 

- Nada. Apenas vá para a cama, Steina. Deixe-me sozinha.

 

- Não até me dizer o que fiz para aborrecer você.

 

Lauga balançou a cabeça, o rosto distorcido.

 

- Eu achei que seria diferente - falou por fim. - Quando Blöndal veio, achei que não sofreríamos demais com ela porque haveria oficiais. Achei que iríamos mantê-la trancada! Não pensei que ela estaria sempre conosco, conversando com o reverendo em nosso badstofa. Agora vejo que até mesmo mamãe a está tratando com familiaridade! Ninguém parece se importar que agora todos no vale nos olhem de um modo estranho.

 

- Não olham. Ninguém liga para nós.

 

Lauga apertou os olhos.

 

- Ah, eles olham, Steina. Você não vê, mas agora estamos todos marcados. E não nos faz nenhum bem que nos vejam conversando com ela, dando-lhe de comer em abundância. Nunca vamos nos casar.

 

- Você não sabe isso - falou Steina, acomodando-se no banco junto ao braseiro. - Isto não é para sempre - disse finalmente.

 

- Mal posso esperar que ela parta.

 

- Como pode dizer tal coisa?

 

Lauga respirou fundo, tremendo.

 

- Todos veem o reverendo caminhando em torno de Agnes como um garoto apaixonado, e mesmo papai anui e diz bom-dia a ela, desde que fez o feitiço para o bebê de Róslín. E você, Steina! - disse Lauga virando-se para a irmã, a incredulidade no rosto. - Você a trata mais como irmã do que a mim!

 

- Isso não é verdade.

 

- É. Você anda atrás dela. Você a ajuda. Você quer que ela goste de você.

 

Steina respirou fundo.

 

- Eu... É só que eu me lembro dela de anos atrás. E não consigo deixar de pensar que ela nem sempre foi assim. Ela um dia teve a nossa idade. Ela teve uma mãe e um pai, como nós.

 

- Não - sibilou Lauga. - Não como nós. Ela não é nada como nós. Ela vem para cá, e ninguém sequer vê como tudo mudou. E não foi para melhor.

 

Ela se curvou, pegou os baldes ensanguentados e saiu da cozinha pisando duro.

 

Começara a nevar na maioria dos dias no Norte. Breidabólstadur estava envolta em uma neblina densa e um frio que se recusavam a ir embora, mesmo quando o sol de outubro trouxe ao mundo a pouca luz que podia. A despeito do clima, Tóti relutava em ficar em casa com o pai. Ele sentia que alguma membrana invisível entre Agnes e ele havia sido rompida. Ela finalmente começara a falar de Natan, e a ideia de que poderia se aproximar ainda mais dele, confiar nele o suficiente para falar sobre o que acontecera em Illugastadir, estimulara algo nele.

 

Enquanto envolvia cuidadosamente seu corpo trêmulo no maior número de camadas de roupas de lã que podia encontrar em sua arca, Tóti pensava novamente no primeiro encontro de ambos. Ele conseguia recordar-se vagamente da água correndo em Gönguskörd, do rugido que se ouvia enquanto as águas do degelo da primavera despencavam pela passagem. Podia ver o cascalho molhado brilhando ao sol. E à frente dele, curvando-se à beira da água e desenrolando as meias, uma mulher de cabelos escuros se preparando para cruzar a corrente.

 

Tóti calçou as luvas no badstofa de Breidabólstadur e buscou na mente o rosto dela como o vira naquele primeiro dia. A mulher apertara os olhos contra o sol enquanto olhava para ele, sem sorrir. Seus cabelos estavam grudados de suor na testa e no pescoço pela caminhada. Um saco branco repousava nas pedras do rio ao lado dela.

 

Então, o calor do corpo dela era sentido sobre seu peito enquanto águas espumosas desciam apressadamente em sua égua. O cheiro de suor e capim desprendiam de sua nuca. O pensamento corria por ele como uma febre.

 

- Por que tanta pressa?

 

Tóti ergueu os olhos e viu seu pai a fitá-lo do outro lado do aposento.

 

- Estão esperando por mim em Kornsá.

 

O reverendo Jón pareceu pensativo.

 

- Você passa muito tempo lá - refletiu.

 

- Há muito trabalho a ser feito.

 

- Ouvi dizer que o oficial distrital tem duas filhas.

 

Tóti pegou as luvas, franzindo o cenho.

 

- Sim. Sigurlaug e Steinvör.

 

O pai apertou os olhos.

 

- São bonitas?

 

Tóti pareceu confuso.

 

- Imagino que alguns acham - disse, virando-se para deixar o aposento. - Não espere por mim à noite.

 

- Filho! - chamou o reverendo Jón, dando alguns passos na direção da porta e entregando a Tóti seu Novo Testamento. - Esqueceu isto.

 

Tóti corou, pegou o livrinho e o enfiou dentro do casaco.

 

Do lado de fora da cabana de Breidabólstadur, o frio feriu as bochechas de Tóti e deixou suas orelhas doendo. Ele se esforçou para respirar enquanto selava sua égua sonolenta e a virava na direção de Kornsá. Mesmo quando a névoa deu lugar à neve, derrubando flocos que se emaranhavam na crina do animal, Tóti sentia os membros doendo de tanto tempo no ar penetrante, mas continuava a retornar à mulher que conhecera junto à passagem de Gönguskörd, e a lembrança aquecia seus ossos.

 

- Depois da celebração da colheita não voltei a ver Natan por algum tempo. Então, certo dia, estava em um prédio anexo, cortando carne pendurada em um varal. Estava na escada, a faca na mão, e havia parado para ver a luz azul de novembro do lado de fora. E de repente ele estava ali, apoiado no batente da porta.

 

Agnes se ajeitou na cama para aproveitar ao máximo a luz da lamparina. Tóti olhou rapidamente para o restante da família de Kornsá, sentada do outro lado do badstofa. Tóti desconfiava que eles escutavam, mas Agnes parecia ignorar. Era como se não conseguisse parar de falar, mesmo se quisesse.

 

- Fiquei tão surpresa de vê-lo que quase caí da escada. A carne teria caído na terra se Natan não a pegasse. Ele disse que tinha ido visitar Worm e estivera em Hvammur para curar a esposa de Blöndal e não via sentido em voltar para casa quando não havia nada além de trabalho e focas para recebê-lo. Pelo menos foi o que disse.

 

- Acho que perguntei se gostava de Illugastadir, e ele me contou que precisava de mais criados para ajudar no trabalho. Natan disse que tinha uma empregada doméstica, mas que não era boa da cabeça. Ademais, era muito jovem, e Karitas, sua governanta, estava partindo para o vale de Vatnsdalur em breve.

 

- Depois conversamos mais um pouco. Lembro-me de ter-lhe perguntado sobre suas mãos vazias, algo de que havíamos falado em sua primeira visita, e ele riu e disse que logo estariam cheias de dinheiro caso Blöndal quisesse ver a esposa viva no final do inverno.

 

- A seguir caminhamos de volta até a casa, e alguns dos criados que trabalhavam no pátio nos viram. María estava levando as cinzas para fora e, quando viu Natan, parou e nos encarou. Lá está minha amiga, eu disse, mas Natan a ignorou. Ele começou a dizer que ia nevar, que sentia isso nos ossos; apontando para Pétur, o Matador de Ovelhas, perguntou quem era.

 

- O outro homem morto? - perguntou Tóti.

 

Agnes inclinou a cabeça.

 

- O nome dele era Pétur Jónsson. Fora mandado a Geitaskard no inverno, depois de ter sido acusado de matar animais alguns anos antes. Era um homem estranho. Eu não gostava muito dele. Tinha o hábito de rir quando não havia nada do que rir, e contava seus pesadelos aos criados, o que deixava muitos de nós desconfortáveis.

 

- Ele também tinha visões?

 

Agnes hesitou e olhou para os outros no badstofa. Quando falou novamente, foi em um tom abafado:

 

- Muitas pessoas se lembram de um sonho que Pétur contou em Geitaskard. Ele o tivera mais de uma vez, e sempre me dava arrepios. Sonhara que estava caminhando por um vale quando três das ovelhas que havia matado com Jón Arnarson vieram correndo na direção dele. Contou que o rebanho era liderado por uma das fêmeas que matara e que quando a ovelha se aproximou dele, vomitou sangue, respingando nele. Ele riu do sonho, mas depois algumas pessoas identificaram algo nele.

 

- Uma profecia? Você contou a Natan sobre o sonho de Pétur?

 

- Sim. E então Natan me contou sobre alguns dos sonhos estranhos que tivera ao longo da vida. Mas não são importantes agora.

 

- Eu sei dos sonhos de Natan - disse uma voz sem fôlego do outro lado da sala. Agnes e Tóti se viraram e viram Lauga a encará-los, uma expressão estranha no rosto.

 

- Lauga! - advertiu Margrét.

 

- Róslín me contou sobre eles, mamãe. Acho que você os achará interessantes.

 

- Não queremos ouvir essas coisas - disse Jón, colocando-se em pé lentamente.

 

- Não. Deixe que ela nos conte sobre os sonhos de Natan Ketilsson! - protestou Steina. - Se Lauga acha que sabe sobre eles, estou certa de que todos gostaríamos de ouvir, incluindo Agnes.

 

Jón estava pensativo.

 

- Deixe que o reverendo Thorvardur converse com sua encarregada sem a sua interferência.

 

- Minha interferência! - reagiu Lauga, rindo e jogando seu tricô na cama. - E quanto à interferência dela? Ela está na nossa casa! Sempre respirando por cima do meu ombro na cozinha! Contando mentiras em nosso badstofa! - falou Lauga, virando-se para os pais. - Mamãe, papai, me perdoem, mas vocês mandaram que Steina e eu não déssemos ouvidos a essa mulher. E agora deixam que ela teça histórias a menos de dois metros de nós? "Ah, tenham pena de mim, sou uma indigente!"

 

- Não podemos mandá-la para a neve lá fora com o reverendo Tóti - argumentou Steina.

 

- Muito bem então, papai. Se um de nós pode contar contos de fadas à noite, por que não todos nós?

 

O rosto de Margrét parecia de pedra.

 

- Pegue seu tricô, Lauga.

 

- Sim, pegue seu tricô, Lauga - debochou Steina.

 

- Parem as duas! - rosnou Margrét. - Reverendo Tóti deve saber que não podemos deixar de ouvir...

 

- O que Róslín lhe contou sobre os sonhos de Natan, Lauga? - interrompeu Agnes. Ela parara de tricotar e olhava atentamente para as irmãs.

 

Todos ficaram em silêncio.

 

- Bem - murmurou Lauga, pigarreando. Ela lançou um olhar incerto para Agnes, depois olhou para o pai, que baixou os olhos. - Róslín disse que Natan contou a muita gente sobre um sonho que tivera em que um espírito mau o esfaqueava na barriga. E teve outro em que estava em um cemitério. Ela me disse que nesse sonho ele via um corpo, um cadáver negro, ou algo assim, em uma cova aberta, e três lagartos o comiam. Então, um homem apareceu ao seu lado, e quando Natan lhe perguntou de quem era o cadáver, o homem retrucou: - Não reconhece seu próprio corpo?

 

- Jesus Cristo! - murmurou Kristín.

 

- O que aconteceu então? - perguntou Bjarni, de sua cama.

 

Lauga deu de ombros.

 

- Imagino que tenha acordado. Mas Róslín disse que ele contou a muita gente sobre o sonho, e todos concordam que foi o que aconteceu. Ela ouviu isso de Ósk, que ouviu do irmão, que ouviu do próprio Natan.

 

Os olhos se voltaram para Agnes. A mulher parecia pensativa, então passou as pernas para a lateral da cama para encará-los melhor.

 

- Ele me contou um sonho em que via o próprio corpo em uma cova aberta, e sua alma estava em pé na outra ponta. Então seu corpo chamou sua alma e cantou o salmo do bispo Stein. - A voz de Agnes estalava no silêncio.

 

Ninguém disse nada. Afinal, Tóti pigarreou.

 

- Agnes. Gostaria de continuar com sua história? Você estava falando sobre Pétur.

 

- Posso chegar mais perto da lamparina?

 

Jón olhou para Margrét, depois para o restante da família e balançou a cabeça.

 

Margrét fez uma careta.

 

- Jón - sussurrou em voz baixa. - Que mal pode fazer?

 

Tóti o viu lançar os olhos para as filhas.

 

Margrét suspirou.

 

- Será melhor se mantivermos nossos lugares - disse a Agnes. - Você tem luz suficiente para contar histórias.

 

Uma breve expressão de raiva passou pelo rosto de Agnes, mas quando voltou a falar foi com voz suave:

 

- Pétur tinha má fama em Langidalur, e também em Vatnsdalur, como sabem. Ninguém confia em um homem que matou tantos animais. Fiquei surpresa quando Natan não reconheceu Pétur em Geitaskard, pois imaginara que Natan conhecesse todos os homens, então eu lhe disse que Pétur era um criminoso sob custódia, que cortara a garganta de mais de trinta ovelhas por pura diversão e poderia ser mandado para Copenhague. Natan olhou longamente para o homem, mas não falou mais sobre isso.

 

- Talvez ele quisesse recrutá-lo para roubar algumas ovelhas - disse Lauga rispidamente.

 

- Talvez - respondeu Agnes de seu canto escuro, depois se virando para Tóti. - Naquele dia levei Natan a Worm, depois me juntei a María no campo. Quando contei que Natan me surpreendera no depósito, ela me perguntou o que ele queria. Disse que tinha ido a Geitaskard para visitar Worm. María então me pegou pela mão e me avisou para tomar cuidado.

 

- Por quê? - perguntou Kristín. Gudmundur deu uma gargalhada nas sombras.

 

Agnes os ignorou.

 

- Disse a ela que eu era uma mulher adulta, com raciocínio próprio. María disse que era exatamente isso o que a preocupava.

 

- Reverendo - disse Jón de repente. - Talvez fosse melhor vocês conversarem longe de minha família.

 

- O que há de errado nisso, papai? Quero saber o que aconteceu - disse Steina.

 

- Vá para a cama, Steina.

 

- Desculpe-me Jón - interrompeu Tóti. - Com todo o respeito, estou aqui para ouvir Agnes me contar o que seu coração quiser me dizer. Como sua esposa e filha deixaram bastante claro, nossa grande proximidade significa que nossa discussão não pode deixar de ser ouvida por sua família e seus criados.

 

- Sua discussão? - reagiu Gudmundur franzindo o cenho. - Você a deixa falar como se estivesse contando uma história de ninar.

 

Antes que Tóti pudesse pensar no que dizer, Margrét interrompeu:

 

- Cale sua boca, Gudmundur. Deixe Agnes conversar com o reverendo. E que diferença isso faz, meu Jón? Ambas sabem o que aconteceu, e o que elas não sabiam antes, Róslín enfiou evidentemente em seus ouvidos desde então.

 

- Você não tem nada a temer - disse Tóti.

 

- Espero que assim seja - retrucou Jón. Ele apertou os lábios e voltou a remendar sua meia.

 

Tóti se voltou para Agnes.

 

- Sua amiga. Por que ela lhe disse isso?

 

- Achei que sentia ciúme. Para começar, ela queria muito conhecer Natan. A questão era que sabíamos que ele precisava de uma governanta.

 

- E daí? - perguntou Tóti.

 

- Uma nova posição com um homem que nunca estava sem dinheiro? Uma posição melhor, na qual você podia ser mais que uma criada? Comandar uma fazenda e fazer o que quiser sem uma senhora de fazenda a quem responder? - disse Agnes, lançando um olhar para Margrét.

 

- Continue, Agnes - murmurou Margrét.

 

- A notícia de uma oportunidade dessas não fica em segredo, reverendo. Todas as garotas de Geitaskard sabiam que Natan não era casado, precisava de uma governanta e talvez de algo mais, e María estava tão ansiosa para melhorar de vida quanto eu, reverendo - disse, encarando a todos. - Eu queria o lugar de Karitas mais do que tudo. Não me desonrei.

 

Gudmundur bufou, e os olhos de Agnes faiscaram.

 

- A verdade é que Natan e eu nos tornamos amigos porque gostávamos de conversar um com o outro. Ele ia a Geitaskard a intervalos de poucas semanas, e conversávamos - falou, olhando feio para Lauga. - Ele me ofereceu amizade, e fiquei contente por isso, pois tinha poucos amigos. María logo me ignorou, e quanto mais Natan me via, menos amigáveis ficavam todos os outros. Mas eles eram apenas criados - acrescentou Agnes, cuspindo as palavras na direção dos trabalhadores relaxados no canto do badstofa. - Natan era um homem inteligente, um médico, conhecia aritmética e era generoso com seu dinheiro. Curou mais de uma tosse entre os trabalhadores de Geitaskard naquele outono, e eles foram gratos? De modo algum. Sabiam que, muitas vezes, ele os visitava apenas para me ver, e me puniam por isso. Que culpa eu tinha daquilo? Quando lhes contei que Natan finalmente me convidara para trabalhar com ele em Illugastadir, achei que ficariam contentes por mim. Mas me acusaram de me vangloriar, de me achar melhor do que a indigente que eu realmente era. E naquele inverno veio um novo tipo de solidão, e fiquei grata pela diversão que Natan trazia. Fiquei contente por estar deixando Geitaskard. Meu irmão partira. María me rejeitara. Não havia nada que me prendesse lá.

 

Agnes ficou em silêncio e tricotou furiosamente. Tóti percebeu que Lauga e Gudmundur trocavam pequenos olhares furtivos. Foram vários momentos de silêncio desconfortável, quebrado apenas pelo estalo das agulhas de tricô e um risinho abafado de Kristín. Finalmente, com o vento ganhando força do lado de fora, Jón se levantou e sugeriu que fossem dormir. Tóti, de repente cansado, aceitou a oferta de uma cama vaga. Um desconforto se instalara nele enquanto Agnes falava sobre Natan, e a garganta parecia apertada e dolorida. Enquanto a lamparina era apagada, pensou que estava certo em deixá-la falar.

 

Algumas vezes, depois de conversar com o reverendo, minha boca dói. Minha língua se sente muito cansada; ela desaba em minha boca como um pássaro morto, as penas encharcadas entre as pedras de meus dentes.

 

O que eu disse a ele? O que os outros acharam do que falei? Não importa. Ninguém poderia entender como era conhecer Natan. Naquelas primeiras visitas, era como se estivéssemos construindo algo sagrado. Juntávamos as palavras cuidadosamente, empilhando uma sobre a outra, sem deixar espaços. Ambos criamos torres, dois faróis, como os que são construídos ao longo das estradas para indicar o caminho quando o tempo fecha. Víamos um ao outro através do nevoeiro, a sufocante repetição da vida.

 

Em Geitaskard caminhávamos pela noite sobre a neve, e ela rangia sob nossos passos. Certa vez, quando escorreguei no gelo, agarrei seu braço, e ele perdeu o equilíbrio. Caímos juntos, rindo, e no chão ele me empurrou para que olhássemos as estrelas. Ele me disse o nome das constelações.

 

- Acha que é para onde vamos quando morremos? - perguntei.

 

- Não acredito em céu - disse Natan.

 

Fiquei chocada.

 

- Como pode não acreditar no céu?

 

- É uma mentira. O homem criou Deus por medo de morrer.

 

- Como pode dizer tal coisa?

 

Ele virou a cabeça, cristais de gelo presos no cabelo.

 

- Agnes. Não finja que discorda. Isto é tudo o que existe, e você sabe disso. A vida, aqui, em nossas veias. Existe a neve, o céu, as estrelas e as coisas que nos dizem, e é tudo. Todos os outros são cegos. Não sabem se estão vivos ou mortos.

 

- Eles não são tão ruins.

 

- Agnes. Você finge que não me entende, mas entende. Somos do mesmo tipo - disse Natan, erguendo-se sobre os cotovelos, o luar banhando seu rosto, e apontou com a cabeça para a casa da fazenda. - Somos melhores que isto. Esta vida de lama e luta. Aceitar tudo como é.

 

Ele se inclinou mais perto e me beijou suavemente.

 

- Você não pertence a este vale, Agnes. Você é diferente. Não sente medo de tudo.

 

Eu ri.

 

- Certamente não de você.

 

Natan sorriu.

 

- Tenho uma pergunta a lhe fazer.

 

Meu coração se acelerou.

 

- É mesmo? Qual seria?

 

Ele deitou novamente na neve.

 

- Qual o nome do espaço entre as estrelas?

 

- Não existe um nome.

 

- Invente um.

 

Eu pensei naquilo.

 

- O asilo da alma.

 

- Essa é outra forma de dizer céu, Agnes.

 

- Não, Natan. Não é.

 

Só depois sucumbi sob o peso de seus argumentos, e seus pensamentos mais sombrios se organizaram. Só depois nossas línguas produziram deslizamentos, fomos apanhados nas fissuras entre o que dizíamos e o que queríamos dizer, até que não podíamos encontrar um ao outro, não podíamos confiar nas palavras de nossa própria boca.

 

Naquela noite fomos ao estábulo. Eu enchi o vazio de suas mãos com minha boca, meus seios; conheci o corpo dele contra o meu. Suas mãos juntaram o tecido de minha saia e a ergueram, e senti o vento fresco tocar minha pele. Eu tinha medo de que fôssemos descobertos; medo de que me chamassem de prostituta. Então houve o primeiro toque de pele com pele, e isso foi o golpe final, a queda livre. As beiradas de minhas meias estavam soltas nos joelhos enquanto a maciez de seus cabelos acariciava meu pescoço.

 

Então ansiei pelo peso dele. Ansiei pelo seu hálito: a inalação acelerada e a pressão quente de sua boca. Seu cheiro, a pele escorregadia de seu corpo. Ele não era nem um pouco como os outros. Curvei o pescoço até meu rosto estar molhado com a umidade que nos envolvia. Eu podia senti-lo, o calor dele, sua própria essência. Ele gemeu, e o som permaneceu no ar como uma nuvem de cinzas acima de um vulcão.

 

Depois eu quis chorar. Era real demais. Eu sentia demais para ver as coisas como realmente eram.

 

Natan sorriu enquanto ajeitava a camisa. Seus cabelos desgrenhados estavam iluminados nas pontas com pequenas gotas de água. Acariciou minha bochecha, perguntou se havia me machucado, se sangrara. Riu quando disse a ele que não. Ficara aliviado? Aborrecido?

 

- Você não precisa ir já.

 

- Levante-se da palha, Agnes. Vá para a cama.

 

- Você voltará?

 

Ele voltou. Voltou a mim repetidamente por todo aquele longo inverno. Havia noites tremendo na neve macia e noites no estábulo enquanto os outros dormiam, no escuro. E, embora a neve suavizasse o vale e o leite congelasse na queijaria, minha alma descongelava. Uma nevasca se abatia na esteira de seus lábios, o vento uivava do lado de fora. Quando tudo congelou, nós nos encontramos no depósito, com uma constelação de carne secando acima de nossa cabeça. O cheiro de palha nos mergulhava no perfume do verão. Lembro-me de me sentir repleta de sangue. O famoso Natan Ketilsson, um homem que podia sangrar a essência da doença dos membros dos doentes, que estivera com a famosa Poet-Rósa, que ouvira os sinos de Copenhague e ensinara latim a si mesmo - um homem extraordinário, um homem que parecia saído de uma saga -, havia me escolhido. Pela primeira vez em minha vida alguém me vira, e eu o amava porque ele me fazia sentir que era suficiente.

 

Pensar em como deslizei a mão pelas dobras da minha saia para encontrar e apertar os hematomas que ele deixara lá, sentir o princípio de dor na pele. Hematomas como ecos de seu toque, prova de suas mãos nas minhas, seus lábios sobre os meus: a exalação exultante, o movimento desajeitado de nossos membros no escuro. Durante todo um embotado ciclo de trabalho, noites dormindo sozinha, acordando para nada além de tarefas, aqueles hematomas ocultos sugeriam algo mais - o fim da banalidade sufocante da existência.

 

Odiei quando sumiram. Eles eram tudo o que eu tinha dele para guardar até que voltasse novamente. Todas aquelas semanas, todas aquelas noites, fui consumida pela fome. No estábulo, minha cabeça dura contra o chão, Natan partiu a gema de minha alma. Escondi meus verdadeiros sentimentos dos criados. Toda aquela força de vontade para conter o que queria gritar ao vento, e raspar na terra e queimar na grama.

 

Havíamos combinado que eu ia morar com ele. Ele ia me tirar do vale, da casca de minha vida infeliz sem amor, e tudo seria novo. Ele me daria a primavera.

 

E durante todo esse tempo havia Sigga.

 

Handar-vagna-Freyjum fljóð

Flytur sagnir ljóða.

Kennd við Magnús, blessað blóð,

Búrfells-Agnes góða.

Abrindo o caminho para as mulheres

Uma poeta, com o nome de Magnús.

Seu sangue abençoado corre nas veias dela:

A boa Búrfell-Agnes.

Anônimo, por volta de 1825

 

- Já esteve em Illugastadir, reverendo?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Não tenho muita necessidade de viajar ao norte de Breidabólstadur.

 

O dia seguinte nascera com mais neve e clima úmido, e Margrét persuadira Tóti a postergar sua volta para casa até que o céu clareasse. Ele ficou aliviado. Seus sonhos haviam sido agitados, e acordara com dor de cabeça.

 

Com as ovelhas recolhidas, o abate concluído e o feno levado para casa, as pessoas de Kornsá passavam o dia dentro de casa, fiando, tricotando e fazendo cordas.

 

Agnes estava sentada na cama, tentando encontrar os pontos que Steina perdera em uma luva.

 

- Illugastadir é quase na beirada do mundo - disse, inclinando a cabeça, como se apontasse para onde ficava a fazenda. - Eu não sabia o caminho, e todos me diziam como seria solitário, como era diferente do vale, no qual há pessoas conhecidas para onde quer que você olhe. Mas eu queria trabalhar para Natan.

 

- Quando você foi para lá?

 

- Assim que pude, no final de maio.

 

- Em que ano foi isso? - perguntou Tóti.

 

- 1827. Passei o Natal e o Ano-Novo em Geitaskard, depois esperei que a tarambola-dourada[4] chegasse e cantasse o fim da neve. Juntei minhas coisas e parti a pé. Havia muitos criados subindo e descendo o vale, mas nenhum ia para Vatnsnes, tampouco para Illugastadir. Quando comecei a caminhar para o Norte pela península, baixou uma forte neblina e tive medo de me perder. Mas podia ouvir o mar a distância e sabia que estava indo na direção certa. Quando a neblina clareou, vi que não estava longe da igreja de Tjörn. Pedi para passar a noite lá, e no dia seguinte o padre me indicou o caminho de Illugastadir.

 

- Não demorei a chegar à fazenda partindo de Tjörn. Aquela manhã foi a primeira vez em que vi o mar tão grande. O vento vinha do Norte, soprando o vapor de água das ondas que quebravam no litoral, e havia centenas de aves marinhas gritando e circulando acima da superfície. Eu podia até mesmo ver os fiordes do Oeste acima da água cinzenta. Como uma sombra deles mesmos.

 

- Isso me causou grande impressão. O padre de Tjörn me dissera para procurar uma cabana junto a uma baía rochosa, e logo cheguei ao lugar. Havia um pequeno barco no litoral e roupas de cama amarradas a prateleiras de secar peixe, que sacudiam loucamente ao vento. Na época considerei isso um bom sinal; achei que pareciam acenar em boas-vindas.

 

- Não tinha descido muito a encosta quando alguém saiu da cabana e começou a subir a colina na minha direção. À medida que a figura se aproximava, vi que era uma jovem, não mais de quinze invernos. Acenava para mim e parecia animada. Quando cheguei mais perto, ela gritou boas-vindas e correu até mim. De perto pareceu ainda mais jovem, reverendo. Tinha nariz arrebitado e lábios muito vermelhos, e os cabelos eram claros e emaranhados ao vento. Era bonita demais para uma simples camponesa, e lembro de pensar se não seria uma filha de Natan. As roupas eram boas demais para que fosse uma criada.

 

- A garota pegou o saco com meus pertences e me beijou. Perguntou se eu era Agnes Magnúsdóttir e se apresentou como Sigrídur, mas disse que todos a chamavam de Sigga.

 

- Era a jovem criada que Natan mencionara em Geitaskard?

 

Agnes anuiu.

 

- Sigga exclamou que estivera esperando por mim a semana toda, perguntou se eu estava com fome, se vinha de muito longe e se não tivera medo de bandoleiros e foras da lei ao andar sozinha pelas trilhas na montanha. Ela falava tão rápido que eu mal tinha tempo de dar respostas, e, antes que eu percebesse, ela me colocara para dentro e mostrara minha cama, que só fizera naquela manhã. O badstofa era muito pequeno, com apenas quatro camas e mais nenhum espaço. Havia uma pequena janela acima de uma das camas, mas imaginei que Sigga tivesse pegado aquela para ela. Illugastadir era mais apertada e suja do que eu imaginara. Mas me tranquilizei pensando que era melhor ser a senhora de uma cabana do que uma criada na casa do governador. Sigga disse que me daria um tempo para que arrumasse minhas coisas, e foi fazer café para nós. Quando eu disse que não precisava ter aquela despesa, que soro de leite e água seriam suficientes, ela sorriu e assegurou que Natan gostava de café, e eles tomavam o tempo todo. Isso me pareceu um grande luxo.

 

- Esperei até Sigga deixar o aposento antes de olhar ao redor. Apenas duas camas estavam feitas - a dela e a minha -, e fiquei pensando onde Natan dormia, e se havia um sótão que eu não tivesse notado.

 

- Quando Sigga voltou, perguntei onde Natan estava. Eu esperava que ele estivesse ali para me receber. Sigga corou, parecendo constrangida, e disse que Natan estava fora.

 

- Era domingo, então perguntei se Natan estava na igreja, mas Sigga balançou a cabeça. Natan não era um homem de igreja. Disse que era o único homem que conhecera que se recusava a ler as bênçãos noturnas, e que se eu tivesse um saltério deveria escondê-lo sob o travesseiro, do contrário Natan poderia alimentar o braseiro com ele. Não, Natan estava caçando raposas na montanha, ela disse, mas me mostraria a fazenda no lugar dele.

 

- Não consigo lembrar qual foi minha primeira impressão da fazenda, reverendo. Eu estava cansada de minha viagem e esmagada de ver tanta água no horizonte. Mas certamente posso lhe dizer como é Illugastadir após passar mais ou menos um ano presa naquele canto da terra de Deus.

 

- Gostaria de ouvir sua descrição - estimulou Tóti.

 

- Não é muito mais do que a base da montanha e o litoral do mar. É uma comprida linha de solo pedregoso, com um ou dois campos suaves onde é plantada forragem de inverno, e todo o resto é capim, crescendo ao redor das pedras. A praia é de cascalho, e enormes emaranhados de algas flutuam na baía parecendo cabelos de afogados. Madeira à deriva surge da noite para o dia, como por mágica, e êideres fazem ninhos sobre rochas próximas perto de colônias de focas. Em um dia claro é bonito, e nos outros é tão desolador quanto cavar túmulos na chuva. A neblina marinha toma o lugar, e a fazenda mais próxima é Stapar, que fica a uma boa distância.

 

- Há várias ilhotas rochosas que se estendem em direção ao fiorde, e em uma delas fica a oficina de Natan. É preciso caminhar sobre um leito de rochas estreito para chegar até ela. Lembro de pensar que era um lugar estranho para construir uma oficina, longe da cabana e cercada pelo mar, mas Natan planejara assim. Mesmo a janela da cabana era voltada para a terra em vez de para o mar, porque Natan queria observar quem poderia viajar pela montanha. Ele tinha alguns inimigos.

 

- Sigga disse que não sabia onde ficava a chave da oficina, mas que a pequena cabana era onde ele tinha a oficina de ferreiro e onde fazia seus remédios, e que provavelmente guardava muito dinheiro ali. Ela me disse isso com um risinho selvagem, e lembro de pensar nela como sendo tão idiota quanto Natan me dissera que era.

 

- Sigga me contou que Natan caçava focas e haveria sapatos de couro de foca se eu quisesse, e que eles tinham colchões de penas de êider como os dos comissários distritais da Islândia, e que eu dormiria como morta de tão macios que eram. Sigga disse que fora criada em Stóra-Borg, mas que a mãe não vivia mais e ela era nova no serviço e nunca tinha sido governanta, mas que Natan falara muito bem de mim e ela esperava que eu pudesse ensiná-la.

 

- Fiquei surpresa de ouvi-la se chamando de governanta. Perguntei: - Ah, você é a senhora aqui? Assumiu a posição de Karitas? - E ela anuiu e disse que sim, que antes trabalhava apenas como simples criada, mas quando Karitas avisara que iria partir, Natan pedira que fosse sua governanta. Ela então me agradeceu por eu ter aceitado ser sua criada, me tomou pelo braço e disse que teríamos de nos dar bem, pois Natan estava fora com frequência e ela se sentia sozinha.

 

- Achei que devia haver algum engano. Achei que talvez Natan só tivesse lhe pedido que fosse sua governanta até que eu chegasse, ou que ela talvez fosse mentirosa. Não achei que Natan iria mentir para mim.

 

- Então tomamos café, e falei um pouco a Sigga sobre onde trabalhara antes. Tomei o cuidado de mencionar o número de fazendas onde havia vivido, e Sigga pareceu bastante impressionada, e não parava de dizer como estava satisfeita por eu estar em Illugastadir para ajudá-la e que eu iria ensiná-la a fazer um xale decorado como o que eu estava usando, então no final fiquei mais à vontade.

 

- Logo nossa conversa se voltou para Natan, e Sigga disse que o esperava para depois do jantar. Mas ele só chegou tarde.

 

- Você perguntou a ele sobre sua posição? - perguntou Tóti.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Eu estava dormindo quando ele entrou.

 

Talvez tenha sido naquela primeira manhã em Illugastadir que eu compreendi a natureza das coisas. Talvez não.

 

Acordei tarde com os sons agudos e queixosos das gaivotas e ao sair vi Natan caminhando rumo ao córrego. Junto à praia, suas roupas de cama ainda sacudiam à brisa. Então achei que ele só havia voltado naquela manhã.

 

Mesmo quando Sigga me contou que ele voltara à meia-noite com três raposas mortas sobre os ombros, não pensei em perguntar em que cama passara o resto da noite.

 

Naquela manhã eu estava tão contente de ver Natan que me esqueci de perguntar por que Sigga se considerava a senhora de Illugastadir. Apenas mais tarde naquele dia, quando seguia Natan sobre as pedras até sua oficina, puxei o assunto com ele.

 

Eu não queria ser grosseira, então só perguntei, aparentando despreocupação, se ele gostava de ter Sigga como governanta. Mas como sempre Natan viu além da pergunta. Ele parou e ergueu as sobrancelhas.

 

- Ela não é minha governanta - disse.

 

Fiquei aliviada de ouvi-lo dizer isso, mas expliquei que ao chegar Sigga me dissera que assumira a posição de Karitas.

 

Natan riu, balançou a cabeça e me lembrou de ter alertado sobre quão jovem e simplória ela era. Então abriu o cadeado de sua oficina, e entramos. Eu nunca vira um aposento como aquele. Havia a bigorna e os foles habituais e tudo o mais, mas também grandes ramos de flores e ervas secas ao longo das paredes, e potes cheios de líquidos, alguns turvos, outros límpidos. Havia um grande balde do que parecia ser gordura, agulhas e bisturis e um jarro de vidro com um pequeno animal, branco e encarquilhado como um estômago fervido.

 

- Que horrível! - murmurou Steina do outro lado do badstofa. Agnes ergueu os olhos da luva, como se tivesse esquecido que a família estava ali.

 

Ouviu-se uma batida repentina na entrada da fazenda.

 

- Lauga - disse Margrét. - Por favor, vá ver quem é.

 

A filha foi atender a porta. Logo voltou com um homem velho espanando neve dos ombros. Era o reverendo Pétur Bjarnason, de Undirfell.

 

- Saudações a todos em nome de Deus - resmungou o homem, limpando os óculos na camisa interna. Respirava pesado da caminhada no gelo e no vento. - Vim para inscrevê-los no registro de almas da paróquia de Undirfell - anunciou o homem. - Ah, olá, reverendo assistente Thorvardur. Vejo que ainda está no vale. Ah, claro, Blöndal o colocou...

 

- Esta é Agnes - interrompeu Tóti. Agnes se adiantou.

 

- Sou Agnes Jónsdóttir - disse. - E sou uma prisioneira.

 

Margrét imediatamente se levantou surpresa, olhando para Jón, sentado na cama, a boca arreganhada de horror.

 

- Como?! Ela não é nossa... - começou Lauga, mas Tóti a cortou.

 

- Agnes Jónsdóttir é minha responsabilidade espiritual. Como lhe contei antes.

 

Ele estava consciente de que a família o encarava, chocada por ele ter concordado com tal nome. Houve um longo momento de silêncio desconfortável.

 

- Devidamente registrado - disse o reverendo Pétur, sentando-se em um banco sob a lamparina bruxuleante e tirando um livro pesado sob o casaco. - E como está a família de Kornsá? Abate concluído?

 

Margrét encarou Tóti com uma expressão estranha e depois sentou-se lentamente.

 

- Ah, sim. Apenas o estrume para espalhar sobre o tún, e então vamos fazer produtos de lã para negociar.

 

O velho padre anuiu.

 

- Uma família laboriosa. Oficial distrital Jón, poderia conversar comigo primeiro?

 

O padre conversou com cada membro da família, um a um, examinando sua capacidade de leitura e a habilidade de recitar o catecismo. Também lhes fez perguntas para avaliar o caráter daqueles com os quais viviam. Depois que todos os criados tiveram um tempo com o padre, Agnes foi convocada. Tóti tentou escutar a conversa deles, mas Kristín, aliviada por seu teste de leitura ter terminado, começara a rir com Bjarni, e ele não conseguiu ouvir nada com o riso deles. O padre não se demorou com Agnes, logo anuindo para ela.

 

- Agradeço a todos por seu tempo. Talvez os veja logo em uma cerimônia - disse o reverendo Pétur.

 

- Não ficará para o café? - perguntou Lauga, fazendo uma bela mesura.

 

- Obrigado, minha querida, mas tenho o resto do vale para percorrer, e o clima só vai piorar.

 

Ele pôs o chapéu e enfiou cuidadosamente o livro de volta no casaco grosso.

 

- Eu o acompanharei - disse Tóti, antes que Lauga pudesse se oferecer.

 

No corredor, Tóti perguntou ao padre o que ele registrara sobre Agnes.

 

- Por que deseja saber? - retrucou o homem, curioso.

 

- Ela é minha responsabilidade - disse. - É minha obrigação saber como se comporta. Quão bem ela lê. Estou dedicado ao seu bem-estar.

 

- Muito bem - disse o padre, tirando novamente o livro de registros do casaco e abrindo nas novas páginas. - Pode ler você mesmo.

 

Tóti levou o livro até uma vela instalada na parede do corredor e apertou os olhos sob a luz fraca até compreender as palavras: Agnes Jónsdóttir. Pessoa condenada. Sakapersona. 34 anos.

 

- Ela lê muito bem - disse o padre, enquanto esperava que Tóti terminasse.

 

- O que foi isto que escreveu sobre seu caráter? - perguntou, mal conseguindo identificar as palavras, os olhos boiando na penumbra.

 

- Ah, isso quer dizer blendin, reverendo. Conflitante.

 

- E como chegou a essa resposta?

 

- Foi a opinião do oficial distrital. E da esposa.

 

- Qual a sua opinião sobre Agnes, reverendo?

 

O velho enfiou o livro de volta no casaco e deu de ombros.

 

- Fala muito bem. Educada, eu diria. Surpreendente, considerando ser ilegítima. Bem-criada. Mas quando falei com o oficial distrital, ele disse que seu comportamento era... imprevisível. Ele mencionou histeria.

 

- Agnes encara uma sentença de morte - disse Tóti.

 

- Tenho consciência disso - retrucou o padre, abrindo a porta. - Tenha um bom dia, reverendo Thorvardur. Eu lhe desejo o melhor.

 

- E eu ao senhor - murmurou Tóti enquanto a porta batia em sua cara.

 

Agnes Jónsdóttir. Nunca achei que podia ser tão fácil escolher o próprio nome. A filha de Jón Bjarnasson, de Brekkukot, não do criado Magnús Magnússon. Que todos saibam de quem eu realmente sou bastarda.

 

Agnes Jónsdóttir. Soa como a mulher que eu deveria ter sido. Uma governanta em uma cabana debruçada sobre o vale, com um marido ao lado e um bando de crianças para ajudar a chamar as ovelhas para casa ao crepúsculo. Para ensinar e assustar com histórias de fantasmas. Para amar. Ela poderia até ser a irmã de Sigurlaug e Steinvör Jónsdóttir. Filha de Margrét. Nascida abençoada em um casamento. Nascida em uma família que não seria dissolvida pela pobreza.

 

Agnes Jónsdóttir não teria sido tão tola de amar um homem que passava a vida abrindo veias, bocas, pernas. Um homem pago para tirar sangue. Ela teria sido uma avó. Teria tido uma série de rostos reunidos ao redor de sua cama quando estivesse morrendo. Teria garantido um lugar no céu. Ela teria acreditado no céu.

 

É quase impossível acreditar que eu era feliz em Illugastadir, mas devo ter sido um dia. Fui feliz naquele primeiro dia, quando Natan e eu passamos a tarde em sua oficina. Ele me mostrara duas peles de raposa. Estavam secando do lado de dentro, o ar marinho úmido demais naquela manhã para que ficassem penduradas com os peixes.

 

Tomou minhas mãos e as passou sobre o pelo branco da raposa.

 

- Sente isso? Essas renderão um belo dinheiro em Reykjavík neste verão.

 

Ele me contou como apanhara as raposas nas montanhas.

 

- O truque é você encontrar e pegar um filhote de raposa. E o filhote tem de chamar pelos pais, do contrário é quase impossível atraí-los para fora do buraco. As raposas são astutas. Espertas. Elas o farejam chegando.

 

- E como você faz o filhote de raposa gritar?

 

- Eu quebro as patas da frente. Então ele não pode fugir. Os pais ouvem o gemido e saem correndo da toca e são apanhados facilmente. Eles não abandonariam um dos seus.

 

- O que você faz com o filhote após matar os pais?

 

- Alguns caçadores o deixam lá para morrer. Eles não servem para o mercado, as peles são pequenas demais.

 

- O que você faz?

 

- Eu esmago sua cabeça com uma pedra.

 

- É a única coisa decente a fazer.

 

- Sim. Abandoná-los é crueldade.

 

Ele me mostrou seus livros. Achou que poderia gostar deles.

 

- Sigga não se interessa por palavras - disse. - Uma péssima leitora. É como tentar fazer uma vaca falar.

 

Passei os dedos sobre as folhas de papel e tentei ler as novas palavras que ofereciam.

 

- Doenças cutâneas - disse ele, corrigindo minha língua desajeitada. - Cochlearia officinalis.

 

- Diga novamente.

 

- Cetraria islandica. Angelica archangelica. Achilla millefolium. Rumex digynus.

 

Era uma linguagem que eu não compreendia, então parei o riso dele com beijos e senti sua língua pressionar levemente a minha. O que todas essas palavras significavam? Eram os nomes das coisas em sua oficina? Nos jarros, garrafas e potes de argila? Natan beijou meu pescoço, e meus pensamentos se perderam em um crescente enxame de lascívia. Ele me ergueu até a mesa, e nos atrapalhamos com nossas roupas antes que ele se enfiasse em mim, antes que eu soubesse o que estávamos fazendo, antes que estivesse pronta. Engasguei. Senti os papéis embaixo de mim e imaginei as palavras se levantando da página e afundando em minha pele. Minhas pernas estavam apertadas ao redor dele, e eu sentia o ar marinho frio me agarrando pela garganta.

 

Mais tarde fiquei em pé, nua, meu quadril apertado sobre a beirada da mesa dele. Os livros de Natan estavam diante de mim, os papéis amassados, provas de nosso turbulento amor.

 

- Veja todas estas doenças, Natan. Livros e mais livros sobre doença e horror.

 

- Agnes.

 

Ele disse meu nome suavemente, deixando o "s" permanecer em sua língua, como a sentir seu gosto.

 

- Natan. Se há tanta doença no mundo... Se há tanto que pode dar errado com uma pessoa, como algum de nós permanece vivo?

 

Sigga devia ter sabido sobre nós. Naquelas primeiras noites em Illugastadir, esperávamos até ela adormecer. Eu ouvia a caminhada cuidadosa de Natan nas tábuas do chão do badstofa e sentia o puxão suave nas cobertas. Tentava muito ficar quieta. Nós nos amarrávamos como se nunca fôssemos desatar, mas a primeira lâmina de luz da manhã que passava pela janela cortava nossos laços como se fosse uma faca. Ele sempre retornava à sua cama antes que Sigga acordasse.

 

Agnes parecia perdida em pensamentos. Apenas quando Tóti colocou uma mão gentil em seu ombro, ela teve um sobressalto e percebeu que ele voltara ao aposento.

 

- Desculpe tê-la assustado - disse.

 

- Ah, não - retrucou Agnes, um pouco sem fôlego. - Estava apenas contando os pontos.

 

- Podemos continuar? - perguntou.

 

- O que eu estava dizendo?

 

- Estava me contando sobre seu primeiro dia em Illugastadir.

 

- Ah, sim. Natan estava feliz por me ver e garantiu que eu me acomodasse, e contou histórias sobre as pessoas e fazendas dali. Nada muito marcante aconteceu naquelas primeiras semanas. Eu trabalhei todos os dias com Sigga de manhã à noite, e passávamos todas as noites juntas, contando histórias ou rindo de uma coisa ou outra. No total, meus primeiros meses em Illugastadir foram felizes. Sigga me contou que era incomum Natan passar tanto tempo em casa, e pensei que era minha companhia que o mantinha conosco. Ele passava a maioria dos dias em sua oficina, preferindo preparar e consertar ferramentas a cuidar da fazenda. Contratava homens para cuidar da grama ou dos cavalos, em vez de fazer isso ele mesmo. Não que fosse preguiçoso. Ele me mostrou como fazia sangrias e contou sobre todas as doenças que podiam afetar uma pessoa. Acho que gostava de ter alguém interessado em seu trabalho; Sigga era bonita, boa lavando roupa, tinha habilidade com a faca de estripar e limpava os peixes que pegávamos, mas não se interessava pelo que Natan chamava de coisas do intelecto. Ele me permitia ler o quanto quisesse e descobrir algo do estudo da ciência. Sabe, reverendo, que uma pessoa com manchas nas pernas e gengivas sangrando deve comer repolho?

 

Tóti sorriu.

 

- Não, não sabia.

 

- Inicialmente achei que ele estava brincando, mas vi com meus próprios olhos como algo simples como um chá feito de folhas, um emplastro de banha e enxofre, goma retirada de raízes ou mesmo um repolho podiam curar uma pessoa.

 

- Eu achava que havia sido sorte me mudar para Illugastadir. Natan fez para mim sapatos novos de pele de foca, me deu um xale, e sempre havia tantos ovos de pato quanto coubessem em seu estômago. Quando ele deixava a fazenda, sempre voltava com presentes para Sigga e eu. Foi por isso que quando vi Sigga pela primeira vez pensei que era filha dele. Natan a mantinha muito bem-vestida, e, quando cheguei, ele também me deu presentes. Renda, seda e um pequeno lenço que disse ter vindo diretamente da França. Parecia uma existência luxuosa, a despeito do isolamento, a despeito do espaço pequeno e apertado. Não costumávamos ter visitantes. Mas eu tinha Natan e Sigga, e não era insuportável demais - disse Agnes, depois baixando a voz. - O senhor a viu, reverendo? O apelo foi atendido?

 

Tóti balançou a cabeça lentamente.

 

- Ainda não sei.

 

Agnes ficou pensativa.

 

- Ela provavelmente mudou. Provavelmente tornou-se tão devota quanto os outros. Mas, em Illugastadir, Sigga tinha modos impertinentes quando lhe interessava. Estava sempre especulando sobre as pessoas, e Natan lhe perguntava quem achava que deveria se casar com quem, qual seria a aparência dos filhos e assim por diante. Para ele era um esporte inofensivo; achava a simplicidade dela divertida. Eu nem me importei quando Sigga continuou a chamar a si mesma de governanta ou mandou que eu fizesse tarefas que ela mesma deveria fazer - esvaziar o urinol, limpar o estábulo, secar os peixes que Natan pegava. Como Natan dizia, ela era apenas uma criança, com um modo infantil de pensar.

 

- Fridrik Sigurdsson visitou Illugastadir pouco depois de minha chegada. Eu nunca o encontrara antes, mas Sigga me falara dele, dizendo que ele e Natan eram conhecidos. Ela sempre ficava rosa como um carneiro esfolado quando falava dele. Mas Fridrik me perturbava. Havia algo desequilibrado nele. E também em Natan. Os dois mudavam de humor facilmente, e o clima em um aposento podia passar de animado para sombrio em um instante. E era contagioso. Com eles, toda pequena injustiça se tornava um grande problema. Eu achava Fridrik um garoto impetuoso, desesperado para provar que era homem. Ele se ofendia facilmente. Imagino que achasse que o mundo todo estava contra ele, e se enfurecia com isso. Eu não gostava disso, do modo como procurava razão para sentir raiva. Gostava de brigar. De manter os nós dos dedos esfolados.

 

- Natan era diferente. Não achava que tinha de se afirmar para alguém. Mas superstições o perturbavam. E aquilo que eu admirava nele, seu modo de ver o mundo e ansiar por conhecimento e sua facilidade com aqueles de quem gostava, tinha uma faceta mais soturna. A solução era aproveitar ao máximo os dias brilhantes, de modo a suportar o pântano quando chegasse.

 

Agnes parou, enquanto Tóti fazia uma careta e esfregava o pescoço com a mão.

 

- Algo o perturba? - perguntou.

 

O reverendo pigarreou.

 

- O ar está muito abafado aqui dentro, só isso. Continue. Daqui a pouco vou pegar um gole de água.

 

- Parece pálido.

 

- É só um arrepio, por ir de um lado para o outro sob esse clima.

 

- Talvez não devesse retornar a Breidabólstadur esta noite.

 

Tóti balançou a cabeça sorrindo.

 

- Já me senti pior. Não queria interrompê-la. Por favor, continue.

 

Agnes o encarou cuidadosamente, depois anuiu.

 

- Certo, então. Na primeira vez em que vi Fridrik Sigurdsson estava pegando água no riacho. Ouvi um grito e vi um jovem ruivo trotando com seu cavalo pela trilha da montanha. Também havia uma mulher. Natan espiou pela janela da oficina ao ouvir o barulho e não perdeu tempo em sair e trancar a porta atrás de si. Não havia muita gente que visitasse Illugastadir, e Natan parecia preferir assim.

 

- Natan me apresentou o garoto como Fridrik, e Fridrik me disse que era filho do fazendeiro Sigurdur, de Katadalur, uma fazenda do outro lado da montanha. Disse que passara o inverno fora e depois apresentou sua companheira, Thórunn, uma criada com dentes muito ruins que sorria para todos. Percebi que Sigga ficou ansiosa ao ver Thórunn. Vou lhe dizer uma coisa, reverendo, não gostei de nenhum dos dois à primeira vista. Achei que Fridrik era brigão e exibido. Era cheio de rodeios e ficava dizendo como ia tornar o pai um homem rico e como lutara com três homens em Vesturhóp e deixara os três com olhos roxos e tudo o mais. Todas as mentiras banais que se espera ouvir de um garoto daquela idade. Não entendo por que Natan se dava ao trabalho de ouvir as fanfarronadas de Fridrik - ele não costumava se interessar por aquele tipo de conversa, embora não tivesse pudores em anunciar sua própria sorte. Mas imaginei que ele era um mentor de Fridrik, como me dissera que tentava fazer com Sigga.

 

- Naquele dia, Natan convidou Fridrik e Thórunn para entrar. Eu não estava particularmente interessada em meus novos vizinhos, mas soube que a família de Fridrik era bastante pobre. Ele engoliu seu peixe como um faminto. Achei estranho que ele fosse amigo de Natan.

 

- Quando Fridrik partiu, com Thórunn a segui-lo como um animalzinho, Natan desapareceu. Quando o encontrei novamente e perguntei onde estivera, ele sorriu e disse que tinha ido conferir seus pertences. Quando perguntei por quê, disse que Fridrik tinha dedos compridos e de vez em quando aparecia para tentar descobrir onde ele guardava seu dinheiro.

 

- Perguntei a Natan por que então deixara Fridrik pôr os pés em sua casa se era assim, e Natan riu e respondeu que de qualquer modo nunca deixaria seu dinheiro na cabana e, ademais, gostava do jogo. A relação deles não era uma amizade de verdade, mas uma estranha rivalidade, nascida do tédio. Fridrik achava que Natan era rico e queria tirar um pouco do que ele tinha, e Natan o encorajava para uma espécie de diversão particular, o tempo todo sabendo que Fridrik nunca encontraria seu dinheiro. Na época, avisei a Natan que era perigoso provocar um homem como aquele, mas Natan riu e disse que Fridrik não era um homem, apenas um garoto impetuoso. Porém aquilo me perturbou. Argumentei que Fridrik tinha o dobro do seu tamanho e poderia subjugá-lo facilmente se a coisa chegasse a esse ponto. Natan não gostou disso. Então tivemos nossa primeira briga.

 

- O que Natan disse?

 

- Ah, ele me agarrou pelo braço, levou-me para fora e disse para nunca falar dele dessa maneira diante de Sigga. Falei que só dissera a verdade e não quisera constrangê-lo, e que Sigga tinha a melhor imagem dele, assim como eu. Isso o acalmou um pouco, mas fiquei com medo pela rapidez com que seu humor se alterou. Depois aprendi que ele podia mudar como o oceano, e que Deus ajudasse a quem visse a expressão dele mudar e escurecer. Num dia, ele podia chamá-lo de amigo e, no seguinte, ameaçar jogá-lo na rua à noite se deixasse cair um balde de água no chão. Como dizem as pessoas, para cada montanha existe um vale.

 

- Se soubesse disso talvez nunca tivesse concordado em ser criada dele? - sugeriu Tóti.

 

Agnes fez uma pausa, depois balançou a cabeça.

 

- Eu queria sair de Vatnsdalur - disse em voz baixa.

 

- Conte-me sobre Sigga - sugeriu Tóti gentilmente.

 

- Bem, naquela noite, após a visita de Fridrik, Sigga começou a falar de casamento. Perguntei a ela se não achava Fridrik Sigurdsson um homem atraente com tantas boas perspectivas. Eu estava brincando, claro. Fridrik é sardento, tem cabelos vermelhos e a pele manchada como uma salsicha, e a família é tão pobre que eles poderiam ser chamados de miseráveis. Mas quando perguntei isso a Sigga, suas bochechas ficaram brilhantes como sangue novo, e ela me perguntou se eu achava que Fridrik estava envolvido com aquela Thórunn. Foi então que soube que ela nutria alguma esperança nele.

 

- Continuei a provocar Sigga. - Sabe o trabalho que é para se casar? -, perguntei. Sigga respondeu: - O trabalho não pode ser mais duro do que este -, e eu ri e falei que não me referia a trabalho de fazenda, mas o trabalho que uma criada como ela teria apenas pelo privilégio de desperdiçar a vida. Lembrei a ela que o padre precisava dar permissão, assim como o oficial distrital, e que o comissário distrital também precisava estar do lado dela, e que Natan devia consentir, pois todos olham para o senhor em busca da palavra final.

 

- Você precisa de mais de um homem dizendo sim - falei a ela. Sigga recebeu mal a notícia. Ficou pálida quando mencionei que Natan tinha de aprovar qualquer compromisso, e não disse mais nada sobre o assunto, nem mesmo quando tentei alegrá-la contando o que Natan me dissera, sobre seu joguinho com Fridrik.

 

- Você realmente acha que Fridrik é ladrão? - perguntou ela, e respondi que não, que tinha certeza de que ele era um sujeito corretíssimo.

 

- Natan caiu na gargalhada quando falei sobre a reação de Sigga à notícia de que ele teria de aprovar qualquer casamento que ela tivesse em mente. Disse que era bom que soubesse. Contei que achava Sigga leniente com Fridrik e mencionei a preocupação de que Natan o achasse um ladrão. Natan disse que aquilo era o que acontecia quando se colocavam duas criaturas juntas em um lugar, e não falamos mais sobre isso na época.

 

- Tudo isso aconteceu por ocasião do nascimento das ovelhas. O clima estava bom, e Natan aproveitou a oportunidade de ganhar dinheiro viajando para o Norte, visitando pessoas e vendendo seus remédios. Então Natan estava fora quando começaram os nascimentos em Illugastadir. Quando Sigga e eu saímos para alimentar a vaca, vimos que uma das ovelhas estava parindo. Nenhuma das duas era suficientemente forte para sacudir qualquer animal que pudesse nascer imóvel, e estávamos preocupadas que Natan retornasse em algumas semanas e não encontrasse um número de ovelhas tão alto quanto esperado. Disse a Sigga que corresse até um vizinho e pedisse um trabalhador emprestado, embora Natan tivesse dito que não deveríamos deixar ninguém entrar em sua fazenda. Sigga voltou com Fridrik.

 

- Eu, de início, fiquei preocupada em recebê-lo, considerando o alerta de Natan, mas precisávamos de ajuda, e quando ele chegou outras ovelhas haviam entrado em trabalho de parto. Ele era um verdadeiro filho de fazendeiro, ajudando a puxar os filhotes e a sacudi-los para que começassem a respirar. Quando descobrimos que uma das ovelhas tinha tetas grandes demais para alimentar o filhote, Fridrik improvisou uma teta com coisas que tínhamos no lugar e deixou que o alimentássemos. Gostei um pouco mais dele depois disso, mas ainda não queria que entrasse na casa. Fiz uma cama para ele no estábulo.

 

- Fridrik passou uma semana conosco durante a temporada de partos. Garanti que ele não colocasse um dedo em nada dentro da casa, pois notei que parecia obcecado em dar o preço de tudo. Calculou até mesmo o valor dos cordeiros nascidos, de suas mães, da vaca que tínhamos lá, da terra, e mesmo da fita de seda que Sigga usava nos cabelos. Atribuí isso a ele ter sido criado na pobreza. Ainda assim fiquei de olho nele, especialmente quando o flagrei cavando buracos junto à porta da frente da cabana. Quando perguntei o que estava fazendo, ele riu e disse que não era nada, apenas pedira que Natan guardasse um dinheiro para ele e este surpreendentemente esquecera onde o havia enterrado, e ele nunca mais voltara a vê-lo. Sabia que ele estava mentindo. Fridrik Sigurdsson não tinha de seu nem uma só moeda, e eu sabia que estivera procurando o dinheiro de Natan.

 

- Mas Sigga parecia cega ao caráter transgressor do garoto. Naquela primavera, notei a paixão dela por Fridrik, levando isso e aquilo para ele enquanto trabalhava do lado de fora e rindo de suas histórias de brigas e ousadias. À noite, ela costumava ir ao estábulo levar-lhe um pouco de leite e dizer boa-noite, passando algum tempo com ele. Como eu disse, ela é uma coisinha bonita e esperava que Fridrik logo se esquecesse da Thórunn de dentes marrons. Ele é um bom cavaleiro e açoitava seu pônei quase até a morte em um esforço para impressionar Sigga. Mesmo quando aquele bom animal o derrubou por causa do modo como deixava seu traseiro sangrando, Sigga levou jantar para ele e sentou ao seu lado enquanto ele devorava a comida, limpou sua têmpora inchada e curvou-se para lhe dar um beijo curativo quando achou que eu não podia ver.

 

- Quando Natan voltou, viu que a maioria das ovelhas dera à luz e nos deu os parabéns por ter feito um trabalho tão bom. Sigga contou a ele que não teríamos conseguido sem Fridrik. E Natan nos perguntou por que em nome do demônio havíamos deixado aquele garoto ladrão ali quando ele não estava em casa para vigiar. Sigga começou a chorar - ela não tinha estômago para brigas -, e quando Natan continuou a atacá-la por sua falta de cuidado, interferi e aleguei que havia sido ideia minha chamá-lo.

 

- Disse a Natan que entendia que Illugastadir não era sua única responsabilidade, mas que sem outro homem não poderia esperar que Sigga e eu déssemos conta de certas tarefas. Disse que nenhuma de nós era suficientemente forte para balançar os filhotes, e que havíamos nos esforçado para fazer muitas outras coisas. Contei que, apesar da implicância que tinha com Fridrik, aquele garoto salvara um grande número dos seus animais, e que havíamos tomado o cuidado de não deixar que dormisse do lado de dentro da casa. Não contei a Natan que Fridrik estivera vasculhando o pátio da frente em busca de dinheiro.

 

- Natan acabou se acalmando, e as coisas voltaram ao normal em Illugastadir. Ele disse que iria a cavalo até Geitaskard e contrataria Daníel Gudmundsson para a colheita. Disse que queria outro homem conosco em sua ausência, mas que não fosse Fridrik.

 

                   13 de abril de 1828

Rósa Gudmundsdóttir, de Vatnsendi, foi convocada ao tribunal. Ela se recusou a dar qualquer informação sobre o caso, mas disse que Agnes a procurara em algum momento daquele inverno e falara bem de seu senhor, Natan. O bebê que estava provisoriamente sob cuidados em Illugastadir está agora em casa com Rósa, e é sua filha. Ela disse que a criança tem três anos. Ela não acredita que a criança tenha sido de alguma forma afetada pelo assassinato, mas o bebê sempre diz que Natan está "no alto das colinas". Foi o que disseram à criança depois do assassinato. Rósa disse que não há nada incomum que possa declarar sobre Agnes ou Sigrídur, já que não as conhece bem. Disse que Natan deixou Vatnsendi no verão de 1825, após ter permanecido dois anos ali com ela e seu marido. Afirmou saber que naquele momento Natan tinha um volume de dinheiro considerável. Recebera dele cinquenta spesiurs pela guarda, mas disse que Natan lhes deixara uma quantia consideravelmente maior.

 

Na primavera após a partida de Natan, Fridrik, de Katadalur, foi a Vatnsendi e a chamou para uma conversa particular no estábulo. Rósa, então, disse que ele começou a expressar como a desejava e pediu que permitisse passar a noite ali e ir à sua cama. Disse que rejeitou Fridrik, se afastou dele e pediu ao marido que não permitisse sua entrada, embora ele tenha solicitado isso novamente mais tarde. Em seguida, disse que o marido, Ólaf, foi até ela e contou que Fridrik pedira para examinar o depósito para poder procurar o dinheiro que achava que Rósa guardava para Natan. Contou que Natan lhe dissera que poderia ficar com o dinheiro se um dia conseguisse dormir na casa de Rósa. Fridrik oferecera ao marido dois ou quatro spesiurs, e dissera a Ólaf que a mãe tivera um sonho no qual o dinheiro estava guardado sob um barril no depósito. Rósa, então, contou ter dito ao marido que o dinheiro guardado de Natan definitivamente não estava no depósito e que Fridrik poderia procurar lá quanto quisesse. Depois disso, o marido saiu, e, embora ela e a criada estivessem dormindo, Fridrik foi ao depósito, tirou tudo do barril, mas nada encontrou. Ele disse que "a mãe deveria sonhar melhor". Falou que encontrara um objeto pesado que não conseguira mover e voltaria depois que recebesse da mãe mais informações sobre onde deveria procurar. Mas não voltou.

 

Depois disso, acreditou-se que Fridrik odiava Natan por não ter conseguido encontrar o dinheiro. Rósa falou que dera a Natan o dinheiro que havia guardado na primavera após a vinda de Fridrik, mas que não tivera notícias dele havia muito tempo. Também contou que enquanto vivia com ela Natan com frequência mantinha seu dinheiro enterrado no chão dentro ou fora da fazenda. Não foi possível conseguir com essa mulher mais evidências ou informações, e ela se recusou a confirmar que o que está registrado aqui é correto.

 

Funcionário anônimo, 1828

 

Tóti acordou no badstofa escuro de Breidabólstadur lutando para respirar. Ao sentar-se, sentiu uma onda de sangue febril na cabeça, os braços tremeram e fraquejaram. Tentou tossir, mas a língua ficou colada no céu da boca.

 

Do outro lado do aposento, seu pai dormia, o ronco intermitente, a respiração parando por alguns segundos angustiantes e depois recomeçando com uma exalação rouca. Por que ele ainda dorme?, pensou Tóti. Já deve ter amanhecido. Preciso de um gole de água.

 

Sentindo tontura, Tóti tentou firmar as pernas no chão, colocando vagarosamente os pés nus nas tábuas. Devo ter tido um pesadelo, pensou, sentindo o coração saltar no peito. Vou pegar um pouco de água.

 

O ar da despensa estava deliciosamente frio sobre sua pele suada. Talvez eu devesse dormir aqui, pensou Tóti, desabando no chão. Está quente demais no badstofa, alguém acendeu uma fogueira debaixo de nós.

 

Ele acordou novamente com o toque das mãos ásperas do pai erguendo-o pelas axilas.

 

- Está tentando pegar um resfriado? Sonambulando como um louco!

 

- Mãe?

 

Houve uma pausa.

 

- Não, filho, sou eu.

 

O reverendo Jón cambaleou para trás e então conseguiu erguer o filho apoiado na lateral do corpo.

 

- Agora ande! - ordenou, curvando-se para pegar a vela. - Ainda está dormindo?

 

Tóti balançou a cabeça.

 

- Não, não. Não estou dormindo. Eu me senti mal e quis um pouco de água. Acho que apaguei aqui.

 

Ele agarrou o braço oferecido pelo pai, e ambos cambalearam juntos de volta ao badstofa.

 

- Sente-se em sua cama agora - disse o pai. Ele recuou alguns passos, observando Tóti oscilar desconfortavelmente sobre os pés. Os olhos estavam atipicamente brilhantes, os cabelos grudados de suor à luz da vela.

 

- Você está exausto, filho. São todas essas viagens a Kornsá nesse clima ruim. Isso acabou com você.

 

Tóti ergueu os olhos para ele.

 

- Pai?

 

O reverendo Jón o segurou enquanto caía.

 

Os dias agora estão menores. Há tempo para tudo, tempo demais, então a família de Kornsá foi à igreja para passar as horas infelizes que se arrastam em uma manhã de domingo. As montanhas estão cobertas de gelo, e a água no estábulo congelou na noite passada. Jón mandou que Bjarni a quebrasse com um martelo, e agora somos apenas nós três, Bjarni, Jón e eu, esperando que os outros voltem.

 

Fico pensando onde o reverendo estará. Não o vejo há muitos dias. Achei que viria para meu aniversário, já que sabe a data pelo livro de registros, mas o dia chegou e passou, e não ousei dizer nada à família. Os dias de novembro agora se arrastam e ele não vem; nenhuma carta, nenhuma mensagem para me dar apoio. Steina me perguntou se achava que o clima poderia ter afastado Tóti: há uma semana, houve uma nevasca que quase nos soterrou. Talvez ele esteja ocupado demais com deveres pastorais, viajando por sua própria paróquia com os registros de almas, anotando inúmeros nomes para que a história não os esqueça. Ou talvez tenha se fartado de minhas histórias; talvez eu tenha dito algo e ele agora está convencido de que sou culpada, então devo ser abandonada e punida. Sou ímpia demais. Eu o estou distraindo de sua dedicação ao pensamento cristão. Eu o fiz duvidar de sua crença em um Senhor amoroso. Talvez Blöndal o tenha convocado novamente, mandado que parasse de me escutar. De qualquer forma, parece cruel me abandonar sem aviso, sem uma garantia de que voltará. Sem suas visitas, os dias parecem mais longos, mesmo quando a luz foge deste lugar como um cão açoitado. Tenho cada vez menos a fazer, e a espera por ele me deixa com os nervos à flor da pele. Cada bota derrubando a neve, cada tossida no corredor, me faz pensar que ele voltou. Mas nunca é ele. Apenas os criados, voltando depois de alimentar os animais à noite. Apenas Margrét cuspindo em seu lenço.

 

A espera me faz querer adoecer. Por que não agora? Por que não pegar o machado e resolver o problema aqui, na fazenda? Bjarni poderia fazer isso. Ou Gudmundur. Qualquer um dos homens. Deus sabe que eles provavelmente gostariam de enfiar meu rosto na neve e arrancar minha cabeça sem cerimônia, sem padre nem juiz. Se vão me matar, por que não matar agora e acabar com isso?

 

Deve ser Blöndal. Ele quer me consumir com a espera antes de esticar meu pescoço. Quer que eu desmorone; ele tira o único consolo que me resta neste mundo porque é um bárbaro. Ele tira Tóti e me obriga a ver o tempo passar. Foi um presente cruel me dar tanto tempo para me despedir de tudo. Por que não me dizem quando tenho de morrer? Poderia ser amanhã - e o reverendo não está aqui para ajudar. Por que não vem?

 

Estou ansiosa para que tudo termine. É como um soco no coração o fato de minha sentença se cumprir junto à banalidade dos dias na fazenda. Talvez tivesse sido melhor eu continuar em Stóra-Borg. Eu poderia ter morrido de fome. Estaria coberta de lama, as entranhas cheias de frio e desamparo, e meu corpo poderia saber que estava condenado e desistir sozinho. Teria sido melhor do que enrolar lã preguiçosamente em um dia de neve esperando que alguém me mate.

 

Talvez no próximo domingo eu possa pedir para ir à igreja com Margrét. Para o que mais serve Deus que uma distração do atoleiro em que nos encontramos? Somos todos restos encalhados. Estamos atolados em um pântano de pobreza. Qual foi a última vez em que fui à igreja? Não enquanto estava em Illugastadir. Deve ter sido em Geitaskard, com as outras criadas. Fomos até lá e colocamos nossas melhores roupas atrás do muro da igreja, sentindo o arrepio do vento em nossas pernas nuas enquanto nos enfiávamos em roupas de domingo sem pelo de cavalo. Sinto falta do calor abafado de tantos corpos em um lugar, as fungadas e tossidas, os bebês choramingando. Quero que o som da voz de um pastor se abata sobre mim, apenas para ouvir sua música. Como quando eu era pequena, trabalhando em fazendas arruinadas para limpar a bosta do traseiro de crianças e lavar as roupas com cinzas e gordura; escapando para a igreja de modo a me sentir envolvida em algo, parte de algo. Pura.

 

Talvez as coisas tivessem sido diferentes se Natan deixasse que eu fosse à igreja em Tjörn. Poderia ter feito amigos lá. Poderia ter conhecido uma família a quem apelar quando tudo virou pelo avesso. Outros fazendeiros para os quais poderia ter trabalhado. Mas ele não me deixava ir, e não havia outro amigo, nenhuma luz para a qual seguir naquela paisagem de inverno.

 

Talvez Rósa e eu pudéssemos ter sido amigas caso nos conhecêssemos de outra maneira. Natan sempre disse que éramos parecidas como um cisne e um corvo, mas estava errado. Para começar, ambas o amávamos. E não importa o que eu diga ao reverendo, a poesia de Rósa acendia as raspas da minha alma e me iluminava por dentro. Natan nunca deixou de amá-la. Como poderia? Sua poesia iluminava a todos.

 

Nunca chegamos a um entendimento, embora isso tivesse sido tanto culpa dela quanto minha. Assim que Rósa me conheceu, deixou claro que estávamos em um campo de batalha. Ela apareceu no badstofa de Illugastadir certa noite de verão, como um fantasma. Ninguém a ouviu chegar nem abrir a porta. Ela simplesmente apareceu, com a menininha nos braços. Estava vestida de preto, e a cor escura destacava tanto sua pele que ela parecia brilhar. Sigga sempre disse que Rósa parecia um anjo. Mas naquela noite achei que ela parecia cansada, esgotada do mundo.

 

Eu sabia mais sobre Rósa do que ela sobre mim. - É uma mulher maravilhosa -, Natan disse certa vez, e um pequeno anzol de ciúme penetrou nas fibras de meus pulmões. - É uma bela parteira, uma grande poeta. - Ele era o pai da filha dela! Aquela menina tinha o mesmo olhar afiado dele, nunca perdendo nada. Mas ele me tranquilizou. - Ela me sufoca - disse. - Queria que eu vivesse para sempre com ela e o marido. Mas eu precisava ter minha própria vida. E aqui eu a tenho. Minha própria fazenda. Minha independência.

 

Ele me convenceu de que lhe escrevera cartas dizendo que já não a queria. Que seu amor por mim eclipsara o que sentira por ela. Natan gostava do fato de que eu era bastarda, indigente, criada. - Você teve de lutar por tudo - disse. - Você agarra a vida com os dentes, Agnes. Você não é como Rósa.

 

Então, naquela noite de verão, ela apareceu junto à porta com a filha, e o rosto de Natan se iluminou. Rósa não disse nada. Seu olhar pousou em mim, os olhos se estreitaram. Ela poderia muito bem ter colocado uma arma em meu rosto.

 

- Você deve ser Agnes Magnúsdóttir. Rosa de Kidjaskard. Rosa das terras do vale.

 

A mão dela, fora da luva, era gelada sobre a minha.

 

- Poet-Rósa. Estou contente por finalmente conhecê-la.

 

Rósa olhou para Sigga, depois ergueu as sobrancelhas para Natan.

 

- Feliz de ver que você se deu uma bela familiazinha.

 

Não deixei passar a acusação em sua voz. Eu sabia o que estava fazendo quando me coloquei ao lado de Natan. Ele é meu agora.

 

- Esta deve ser Thóranna - falei. A criança sorriu ao som de seu nome.

 

Rósa a pegou nos braços.

 

- Sim. Minha filha e de Natan.

 

- Vamos lá, meninas - disse Natan, parecendo se divertir. - Vamos ser amigos. Sigga, pegue café para todos. Rósa, tire suas roupas de frio.

 

- Não, obrigada - disse Rósa, colocando Thóranna em um canto, longe de mim. - Vim apenas trazê-la.

 

- O quê?

 

Natan não havia me contado que a filha de Rósa vinha para ficar. Sussurrei para Natan, perguntando por que não me dissera aquilo antes. Por que não me alertara que Rósa faria uma visita. Eu não sabia que eles ainda se falavam.

 

- É o mínimo que posso fazer por Rósa - disse. - Thóranna também ficou conosco no inverno passado. Ela é minha filha, e é certo que venha viver conosco parte do ano.

 

As palavras de Rósa foram afiadas como uma faca.

 

- Não sabia que você a consultava para tudo, Natan. Não sabia que você estava tão sob o controle dela. É claro que ela não quer nossa filha na casa dela.

 

Natan estava rindo.

 

- Casa dela? Rósa, Agnes é minha criada.

 

- Apenas sua criada, é mesmo? - falou, erguendo as sobrancelhas. - Não quero que ela cuide de nossa filha.

 

- Fico feliz de cuidar de Thóranna - disse. Estava mentindo.

 

- O que a deixa feliz não me interessa, Agnes.

 

Natan não deve ter gostado de ver suas amantes, a antiga e a atual, se chocando.

 

- Vamos lá, Rósa. Vamos tomar um café juntos.

 

O riso dela foi agudo.

 

- Ah, sim, você gostaria disso! Todas as suas putas jantando juntas sob seu teto. Não, obrigada.

 

Rósa soltou o braço do aperto dele e se virou para partir. Mas me disse algo antes de cruzar o umbral.

 

- Seja boa com Thóranna.

 

Eu anuí, e Rósa de repente se aproximou. Eu senti a mão dela de leve em meu braço.

 

- Brennt barn forðast eldinn - disse, com uma voz suave, cuidadosa. - A criança queimada tem medo do fogo. - Partiu sem se virar.

 

A garotinha começou a berrar pela mãe, e Sigga a consolou. Natan olhou para a porta, como se Rósa pudesse voltar.

 

- O que você contou a ela sobre nós? - sussurrei para Natan.

 

- Não contei nada a Rósa.

 

- O que foi aquilo de Rosa de Kidjaskard? O que foi aquilo sobre todas as suas putas?

 

Ele deu de ombros.

 

- Rósa costuma dar nome às pessoas. Espero que ela a ache bonita.

 

- Não pareceu um cumprimento.

 

Natan me ignorou.

 

- Estarei na oficina.

 

- Sigga vai fazer café para nós.

 

- Maldição, Agnes. Apenas por uma vez, deixe para lá.

 

- Você vai atrás de Rósa?

 

Ele saiu sem responder.

 

Certa noite, com febre, Tóti viu Agnes aparecer à entrada do badstofa.

 

- Eles a deixaram vir aqui - disse ao pai, que estava curvado sobre a cama, silenciosamente envolvendo em cobertas o filho trêmulo. - Entre - disse Tóti. Seus braços abriram caminho para fora das cobertas e se estenderam para ela no ar abafado do aposento. - Venha aqui. Vê como nossas vidas estão enredadas? Deus quis assim.

 

Em seguida, ela estava ajoelhada junto a ele, sussurrando. Tóti sentiu os escuros cabelos compridos dela roçando sua orelha, e um tremor de anseio o percorreu.

 

- Está muito quente aqui - disse, e ela se inclinou para beijar o suor em sua pele, mas sua língua era áspera, e as mãos se fechavam ao redor de sua garganta, a ponta dos dedos pressionando sua pele.

 

- Agnes, Agnes! - disse, lutando contra ela, chiando com o esforço. Mãos fortes pegaram as dele e as apertaram de volta sobre os cobertores ao lado do corpo.

 

- Não lute - disse ela. - Pare.

 

Tóti gemeu. Chamas lambiam sua pele, fumaça penetrava em sua boca. Ele tossiu, arfando sob o peso de Agnes, que montava nele, erguendo a faca.

 

- Não acredito nisso - argumentou Steina, esfregando o badstofa e fazendo a poeira se levantar do piso de tábuas e flutuar no ar.

 

- Steina! Você está deixando tudo mais bagunçado que antes.

 

Steina continuou a esfregar furiosamente.

 

- É uma história cruel, e eu não ficaria surpresa caso Róslín a tivesse inventado.

 

- Mas ela não foi a única pessoa que escutou isso - disse Lauga, em seguida espirrando. - Viu, você está piorando tudo.

 

- Certo, então faça você - disse Steina, jogando o esfregão para a irmã e sentando-se na cama.

 

- Por que as duas estão brigando? - perguntou Margrét, entrando no aposento e olhando desalentada para o chão. - Quem fez isto?

 

- Steina - disse Lauga em tom de censura.

 

- Não é minha culpa se o teto está caindo! Olhem, está por toda parte - disse Steina, levantando-se novamente. - E a umidade está entrando. Está pingando no canto - falou, tremendo.

 

- Você está de mau humor - disse Margrét, virando-se depois para Lauga. - Por que ela está aborrecida?

 

Lauga olhou para o teto.

 

- Eu ouvi uma história sobre Agnes. Steina não acredita que seja verdade.

 

- Mesmo? - reagiu Margrét tossindo e afastando a poeira do rosto. - Qual é a história?

 

- As pessoas lembram de quando ela era pequena, e alguns dizem que houve um viajante que profetizou que um machado cairia sobre sua cabeça.

 

Margrét torceu o nariz.

 

- Você ouviu isso de Róslín?

 

Lauga fez cara feia.

 

- Não só de Róslín. Dizem que quando Agnes era jovem o trabalho dela era cuidar do tún, e um dia encontrou um viajante acampado na grama. O cavalo dele estava arruinando o campo, e quando ela o mandou partir, ele a amaldiçoou e gritou que um dia seria decapitada.

 

Margrét bufou e teve um acesso de tosse. Lauga largou o esfregão e conduziu a mãe gentilmente à cama. Steina ficou onde estava e observou, obstinada.

 

- Aqui, aqui, mamãe. Ficará bem - disse Lauga, esfregando as costas da mãe e segurando um grito quando um coágulo de sangue brilhante saiu de sua boca.

 

- Mamãe! Está sangrando! - disse Steina, adiantando-se e tropeçando no esfregão.

 

Lauga empurrou a irmã para longe.

 

- Deixe que ela respire!

 

Elas observaram ansiosas enquanto Margrét continuava a tossir.

 

- Tentou uma geleia de líquen? - disse Agnes, em pé no umbral, olhando para Lauga.

 

- Estou bastante bem - rosnou Margrét, levando a mão ao peito.

 

- Alivia os pulmões.

 

Lauga se virou para a porta, expressão fechada.

 

- Poderia nos deixar?

 

Agnes a ignorou.

 

- Tentou essa geleia?

 

- Não precisamos de suas poções - cortou Lauga.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Acho que precisam.

 

Margrét parou de tossir e olhou diretamente para ela.

 

- O que quer dizer com isso? - sussurrou Lauga.

 

Agnes respirou fundo.

 

- Ferva um pouco de musgo picado em água por algum tempo. Muito tempo. Quando esfriar, formará uma geleia cinza. O gosto não é bom, mas pode impedir que sangre nos pulmões.

 

Houve um momento de silêncio enquanto Margrét e Lauga encaravam Agnes.

 

Steina sentou-se na cama novamente.

 

- Natan Ketilsson ensinou isso a você? - perguntou em voz baixa.

 

- Dizem que ajuda - repetiu Agnes. - Posso fazer para você.

 

Margrét limpou a boca lentamente com a ponta do avental e anuiu.

 

- Faça isso - disse. Agnes hesitou, deu meia-volta e desceu o corredor rapidamente.

 

Lauga se virou para a mãe.

 

- Mamãe, não sei se deveria tomar qualquer coisa que ela...

 

- Chega, Lauga! - interrompeu Margrét. - Chega.

 

O reverendo ainda não veio. Mas o inverno chegou. O outono foi empurrado para longe por um vento que lança nuvens de neve contra a cabana e o ar está fino como papel. Cada respiração paira diante de mim como um fantasma, e brumas descem das montanhas para se acumular no chão congelado. Chega a escuridão, ela se instalou por aqui como um hematoma na carne da terra, mas o reverendo não.

 

Por que ele não vem?

 

Se o reverendo viesse esta noite, eu lhe contaria que Natan e eu éramos como marido e mulher? Depois poderia contar a ele sobre o que começou a mudar entre nós. Talvez ele mesmo adivinhe isso.

 

O que eu diria a Tóti?

 

Reverendo, Natan começou a deixar Illugastadir no final do verão, e cada vez que voltava, era como se estivesse mais distante de mim. Ele me pegava sozinha na queijaria, tirava o escovão de minha mão e me puxava para ele apenas para perguntar se mantivera Daníel quente em sua cama enquanto ele estava fora, ganhando a vida atraindo a morte para fora das entranhas de seus patrícios. Até me acusou de amar Fridrik! Aquele garoto idiota, agitando os punhos e fedendo a lã suja. As acusações de Natan me pareciam cômicas. Será que ele não conseguia ver como eu sentia sua falta? Como ele era diferente de qualquer outro homem que eu havia conhecido?

 

Imagino o rosto de Tóti corando. Eu o imagino esfregando as palmas das mãos suadas sobre o tecido de sua calça. O lento anuir. A luz da vela no badstofa tremeluzindo sobre seu rosto enquanto me encara, olhos arregalados.

 

Reverendo, eu contaria, disse a Natan que Daníel não era nada para mim. Que Fridrik estava apaixonado por Sigga. Disse que era dele desde que me tivesse, que seria sua esposa caso ele desejasse.

 

Foi aquele mau humor que o levou embora. Eu encontrava Natan na oficina medindo caldos, retirando a espuma suja de raízes em fervura. Oferecia ajuda, como o ajudara quando cheguei. Ele começou a me tirar do caminho. Disse que não me queria. Não queria minha ajuda ou minha presença? Ele me levou à porta.

 

- Vá. Não quero você aqui. Estou ocupado.

 

Algumas vezes eu ia para o barracão e martelava as cabeças de bacalhau com uma tíbia de vaca. Apenas para bater e atacar alguma coisa. Ele está deixando de amar você, eu disse a mim mesma. E comecei a pensar se algum dia ele me amou.

 

Mas ainda havia horas em que ele me encontrava sozinha na praia, recolhendo penas de êider. Ele me pegava entre os ninhos dos pássaros, as mãos em meus cabelos, o rosto desesperado como o de um homem se afogando. Precisava de mim como precisava de ar. Sentia isso no olhar dele, no modo como se agarrava ao meu corpo como a uma boia na água.

 

Reverendo, traga seu banco mais para perto. Vou lhe contar como realmente era.

 

Odiava ser sua criada. Numa noite eu era sua amante, com o ritmo duro de sua respiração igual ao meu. E então, na seguinte, era Agnes, a criada. Nem sequer a governanta! E suas ordens frias começaram a parecer reprimendas.

 

- Chame as ovelhas do pasto. Ordenhe a vaca. Ordenhe as ovelhas. Pegue água. Retire as cinzas e espalhe sobre a terra. Alimente Thóranna. Faça com que pare de chorar. Faça-a parar de chorar! Esta panela ainda está suja. Peça que Sigga lhe mostre como lavar direito as pipetas.

 

Entende o que estou dizendo, reverendo? Ou para o senhor o amor é constante? Já amou uma mulher? Uma pessoa que você ama tanto quanto odeia o poder que tem sobre você?

 

Odiava o modo como minha mente voltava para Natan durante o dia todo, até eu me sentir enjoada com o martelar de meus pensamentos. Odiava a náusea que vinha com a ideia de que ele não ligava para mim. Odiava o modo como continuava a seguir por aquelas pedras até sua oficina, repetidamente, para levar a ele coisas que já não queria.

 

Foi preciso que Daníel me dissesse como as coisas realmente eram.

 

O criado esperava por mim certo dia em que Natan não estava em casa. Eu saí da oficina, tranquei a porta e vi Daníel em pé na praia, a foice em uma das mãos, o chapéu na outra.

 

- O que está fazendo aqui? - perguntou ele.

 

- Não é da sua conta.

 

- Não podemos entrar ali. Onde você achou a chave?

 

- Natan me deu. Ele confia em mim.

 

- Ah, sim - disse Daníel. - Esqueci que vocês, as criadas, recebem tratamento especial.

 

- E o que você quer dizer com isso?

 

Daníel riu.

 

- Onde estão meus sapatos de pele de foca? Onde estão minhas roupas novas?

 

Natan era generoso quando queria.

 

- Você não está aqui há muito tempo - eu disse a Daníel. - Estou certa de que receberá um presente quando Natan voltar.

 

- Eu não quero nada de Natan.

 

- Não? Você acabou de reclamar de nosso tratamento especial.

 

- Quero algo de você.

 

Então o tom de Daníel mudou. Sua voz ficou mais suave.

 

- Agnes, você deve saber que gosto de você.

 

Eu ri.

 

- Gosta de mim? Você disse a todos em Geitaskard que estávamos juntos!

 

- Eu tinha esperança, Agnes. Tenho esperança. Você não será de Natan para sempre, Agnes.

 

As palavras dele me deixaram gelada. Uma tontura repentina tomou conta de mim.

 

- O que você disse?

 

- Não pense que não sabemos. Sigga, eu, Fridrik. Todos sabemos. Todos em Geitaskard. Eles sabiam que você estava indo ao depósito à noite - disse com um sorriso afetado.

 

- Se você passasse menos tempo espalhando fofocas e mais tempo espalhando grama, todos estaríamos melhor. Vá cuidar de suas obrigações, Daníel.

 

O rosto dele se contorceu de raiva.

 

- Acha que é melhor que nós por ter encontrado outro fazendeiro que a deixa compartilhar de sua cama?

 

- Não seja vulgar.

 

- Não seja tola. Só porque você está brincando de esposa, não significa que seja uma mulher casada, Agnes.

 

- Sou a senhora da casa dele, só isso.

 

Daníel riu.

 

- Ah, sim, é claro, senhora.

 

Então perdi a paciência. Arranquei a foice de sua mão e a enfiei no peito dele.

 

- E o que você é, Daníel? Um trabalhador que fala mal de seu senhor? Que insulta a mulher que gostaria que fosse sua? Você me enoja.

 

Eu diria isso ao reverendo caso ele estivesse aqui? Talvez ele tenha chegado às suas próprias conclusões. Talvez por isso não venha.

 

Contaria a ele sobre outro dia, o dia das ondas mortas. Sigga me mandara sair para pegar pedras para consertar a parede da fornalha, e enquanto estava lá fora ouvi a batida de remos na água. Era um dia parado, o tipo de dia em que o mundo está prendendo a respiração. O mar estava agitado.

 

Daníel e Natan haviam ido pescar, mas era cedo demais para que voltassem. Podia ver Daníel remando e Natan sentado imóvel e empertigado no barco. Quando chegaram mais perto, pude ver que o rosto de Natan estava soturno, as mãos agarrando o barco de madeira como se estivesse prestes a enjoar.

 

Assim que chegaram à praia, Natan saltou do barco e começou a cruzar os baixios. Chutou a terra com as botas, e o cascalho subiu em nuvem ao redor dele.

 

Eu morava com Natan havia tempo suficiente para saber que nada podia aplacar o mau humor que tomava conta dele, então quando o vi subindo a praia pisando duro, água pingando das roupas, fiquei em silêncio. Ele não me olhou ao passar, marchando na direção da fazenda.

 

Quando Daníel havia arrastado o barco para cima, desci para perguntar o que havia acontecido. Tinham brigado? Perdido uma rede?

 

Daníel parecia se divertir com o destempero do mestre. Começou a tirar redes do barco e me deu algumas para levar de volta a Illugastadir.

 

- Natan acha que fomos atingidos por ondas da morte - disse. Havia sal grudado em sua barba. Ele disse que não achava que Natan era um desgraçado tão supersticioso.

 

Eles estavam recolhendo as redes e, do nada, foram atingidos por três grandes ondas. Daníel disse que tiveram sorte de o barco não virar. Conseguira salvar a linha e, felizmente, impedira que tudo caísse, mas ao erguer os olhos Natan estava branco como um fantasma. Quando Daníel perguntou qual era o problema, Natan o encarou como se tivesse perdido a razão.

 

- Essas foram ondas da morte, Daníel.

 

Daníel disse a Natan que ondas da morte eram histórias de velha e que não achava que um homem instruído como ele seria enganado por tal coisa. Daníel disse que então Natan surtou, o agarrou pela manga e disse que não iria rir quando estivesse enterrado no fundo do oceano.

 

Daníel contou que se soltou do aperto de Natan e se ofereceu para baldear a água que as ondas haviam jogado no barco, mas que Natan disse apenas:

 

- Maldito seja, Daníel. Acha que vou ficar sentado aqui e esperar que outra onda me afogue? Vamos voltar.

 

Daníel considerou possível que Natan o afogasse em um ataque apenas para provar a verdade da superstição, portanto remou de volta à praia.

 

Depois que Daníel me contou tudo isso decidi conversar com Natan, embora Daníel tivesse me pedido para deixá-lo em paz. Falou que Natan enfiara na cabeça que estava condenado e que deveríamos deixá-lo voltar a si no momento certo. Mas segui Natan até a cabana, onde o encontrei gritando com Sigga. Ela tentava retirar suas roupas molhadas, e a camisa encharcada prendera no rosto.

 

Vendo que Sigga estava aborrecida com as duras palavras dele, eu lhe pedi que saísse e comecei a despir Natan, mas ele me empurrou e chamou Sigga de volta.

 

- Você se esquece de seu lugar, Agnes - disse Natan.

 

Mais tarde, segui Natan até sua oficina, levando uma lamparina apagada que achei que ele poderia precisar. Os dias haviam encurtado rapidamente ao longo das semanas, e a luz estava quase terminando. O oceano parecia incomodado.

 

Quando Natan tentou a porta da oficina, descobriu que já estava aberta. Exigiu saber se eu estivera lá sem sua permissão, e respondi que ele sabia que eu estivera cuidando do fogo enquanto ia pescar. Provavelmente me esquecera de trancar a porta, mas ele começou a me acusar de mexer em suas coisas, tentar encontrar seu dinheiro ou tirar vantagem dele.

 

Tirar vantagem dele! Então minha língua não resistiu, e eu disse que fora ele quem me atraíra para aquela fazenda isolada com uma mentira. Ele me dissera que eu era sua governanta, mas o tempo todo era Sigga. Perguntei se lhe pagava salários maiores que a mim e por que, para começar, havia tentado me enganar quando sabia que o teria seguido de qualquer maneira!

 

Natan começou a verificar seus pertences. Fiquei magoada por ele pensar que eu poderia ter tirado algo dele. O que iria querer com suas moedas, seus remédios ou o que mais tivesse escondido ali?

 

Permaneci na oficina. Ele não podia me fazer sair. Quando ficou seguro de que nada faltava, pegou algumas peles de foca que precisavam ser curtidas e se recusou a me dirigir a palavra. Mas era final de tarde, e o céu do lado de fora estava apagado e cinzento, uma luz ruim para trabalhar. Eu me acomodei junto ao braseiro e o observei, esperando que se virasse para mim, me tomasse nos braços, se desculpasse.

 

Talvez Natan tivesse esquecido que eu estava lá, ou não ligasse, mas após algum tempo pôs a faca no chão e limpou as mãos em um trapo. Depois saiu da oficina e ficou em pé no limite mais distante do campo, olhando para o mar. Eu o segui.

 

Passei os braços pela cintura dele para consolá-lo e disse que lamentava.

 

Natan não se soltou do meu abraço, mas senti seu corpo enrijecer ao tocá-lo. Enterrei meu rosto nas dobras engorduradas de sua camisa e beijei suas costas.

 

- Não - murmurou ele. O rosto ainda estava virado para o mar. Apertei as mãos sobre sua barriga e pressionei meu corpo sobre o dele.

 

- Pare, Agnes!

 

Ele agarrou minhas mãos e me afastou. Seus músculos se moviam enquanto trincava e soltava os maxilares.

 

Começou uma ventania que arrancou o chapéu da cabeça de Natan e o levou para o mar.

 

Perguntei o que havia de errado. Perguntei se alguém o ameaçara, e ele riu. Seus olhos eram de pedra. Seus cabelos, não mais contidos pelo chapéu, sacudiam ao redor da cabeça em uma massa escura.

 

Ele disse que via os sinais de morte ao seu redor.

 

No silêncio que se seguiu eu tomei fôlego.

 

- Natan, você não vai morrer.

 

- Então explique as ondas da morte - pediu, a voz baixa, tensa. - Explique as premonições. Os sonhos que tenho tido.

 

- Natan, você ri desses sonhos - falei, tentando me manter calma. - Você os conta a todo mundo.

 

- Está me vendo rir, Agnes?

 

Ele veio na minha direção e agarrou meus ombros, levando o rosto tão perto do meu que nossas testas se tocaram. Ele sibilou:

 

- Toda noite sonho com morte. Eu a vejo por toda parte. Vejo sangue por toda parte.

 

- Você tem esfolado animais...

 

Natan apertou meus ombros com mais força.

 

- Eu vejo sangue no chão, em grandes poças viscosas - disse, lambendo os lábios. - Sinto o gosto, Agnes. Acordo com gosto de sangue na boca.

 

- Você morde a língua no sono...

 

Ele deu um sorriso inamistoso.

 

- Vi você e Daníel conversando sobre mim junto ao barco.

 

- Me solte, Natan.

 

Ele me ignorou.

 

- Me solte! - disse, me libertando da pressão. - Você deveria se escutar. Parece uma velha tagarelando sobre sonhos e premonições.

 

Estava frio. Uma grande nuvem escura viera do mar, apagando quase todos os vestígios de luz do céu. Mas mesmo na quase escuridão eu podia ver os olhos de Natan reluzindo. Seu olhar me enervava.

 

- Agnes, tenho sonhado com você.

 

Eu não disse nada, de repente ansiando por voltar à cabana e acender as lamparinas. Tinha consciência do oceano a menos de dois passos de nossos pés.

 

- Sonho que estou na cama e posso ver sangue escorrendo pelas paredes. Pinga em minha cabeça, e as gotas queimam minha pele.

 

Ele deu um passo na minha direção.

 

- Estou amarrado à cama, e o sangue sobe ao redor de mim até estar coberto. Então, de repente, some. Posso me mover e me sento e olho ao redor, e o espaço está vazio.

 

Apertou minha mão, e senti a ponta afiada de sua unha se cravar na carne de minha palma.

 

- Mas então vejo você. Caminho até você. E enquanto me aproximo vejo que está pregada na parede pelos cabelos.

 

Quando ele disse isso, uma forte rajada de vento soprou a touca de minha cabeça, e meu cabelo se soltou. Sem tranças, os cachos compridos foram de imediato açoitados pelo vento. Natan rapidamente esticou a mão e agarrou um punhado, usando-o para me puxar para mais perto.

 

- Natan! Você está me machucando!

 

Mas Natan estava distraído.

 

- O que é isso? - sussurrou ele.

 

De repente, pude sentir no vento o fedor pesado de decomposição, escuro e pútrido.

 

- São algas. Ou uma foca morta. Solte meus cabelos.

 

- Shhh!

 

Eu estava farta do humor dele.

 

- Ninguém vai pegar você, Natan. Você não é tão importante assim.

 

Arranquei meus cabelos da mão dele e me virei para voltar à cabana, mas Natan me agarrou pela manga da blusa, me virou e me socou em cheio no rosto. Engasguei e imediatamente levei a mão à bochecha, porém Natan agarrou meus dedos e os segurou com força, obrigando-me a agachar junto a ele. Mesmo sob o frio do vento eu podia sentir o sangue subindo até onde ele me acertara.

 

- Nunca mais fale comigo assim - disse Natan, com a boca apertada sobre minha orelha. A voz era baixa e dura. - Não deveria ter chamado você para cá.

 

Ele me segurou por mais algum tempo, torcendo meus dedos até eu gritar de dor, e então soltou o aperto e me empurrou para longe.

 

Cambaleei pelo campo e subi a colina até a cabana no escuro, tropeçando nas saias, o vento doendo em minhas orelhas. Eu chorava, mas mesmo acima do som do vento e de minha própria respiração irregular, ouvi Natan gritar de onde estava no morrote junto ao mar:

 

- Lembre-se do seu lugar, Agnes!

 

Esperei que Natan voltasse à cabana naquela noite e mantive uma lamparina acesa, na esperança de que quando ele retornasse pudéssemos resolver nossa briga. Mas as horas se arrastaram, a meia-noite chegou e passou, e ele não voltou. Sigga e Daníel haviam se despido e adormecido em suas camas muito antes, mas permaneci desperta e vi a chama da lamparina dançar no pavio. Minha cabeça doía. Compreendi que esperava que algo ruim acontecesse.

 

Várias vezes achei ter ouvido passos do lado de fora da cabana, mas quando abri a porta havia apenas a escuridão e o som de ondas quebrando na praia. Uma neblina densa baixara, e eu não podia dizer se Natan tinha uma luz queimando na oficina. Voltei à minha cama que esfriava e continuei a esperar.

 

Devo ter adormecido. Acordei nas sombras; a lamparina se apagara, mas eu sabia que Natan ainda não fora para a cama. Então reconheci os passos dele no corredor - o barulho da tranca da porta deve ter me acordado. Prendi a respiração e esperei sentir suas mãos quentes erguendo as cobertas de minha cama. Sentiria seu corpo enquanto ele o acomodava junto ao meu, e em meu ouvido sua voz suave iria murmurar, cheia de desculpas.

 

Porém Natan não foi à minha cama. Por olhos entreabertos eu o vi sentar em um banco e tirar as botas. Baixou a calça e ergueu a camisa lentamente acima da cabeça. Suas roupas ficaram espalhadas pelo chão. Ele se levantou novamente, e por um momento pensei vê-lo vindo em minha direção. Mas então ele deu dois passos leves na direção da janela, e sob a luz fraca eu o vi erguer as cobertas da cama de Sigga.

 

Então entendi o que Rósa quisera dizer quando nos chamara de suas putas. Meu corpo estava rígido com o esforço de não chamar atenção, de não me denunciar, quando ouvi as palavras sussurradas dele e a resposta abafada de Sigga. Mordi a carne da mão enquanto uma sensação de náusea tomava meu estômago. Meu coração parou. Engasguei nas batidas interrompidas.

 

Podia ouvi-lo grunhir ao se enfiar nela. Fechei os olhos e prendi a respiração, pois sabia que se expirasse sairia um gemido, e torci as unhas na pele do braço até sentir uma viscosidade e saber que era sangue.

 

Esperei até Natan sair da cama de Sigga e ir para a dele. Esperei até a respiração de Sigga ficar calma e regular e Natan começar a roncar. Esperei até saber que estavam dormindo antes de me sentar e olhar para os cobertores à minha frente. Minha garganta travou de dor e algo mais, algo duro e provocante, e negro como piche. Eu não me permiti chorar. A raiva correu por mim até minhas mãos e costas ficarem rijas. Eu poderia ter reunido meus pertences em silêncio e partido antes que clareasse, mas para onde teria ido? Eu só conhecia o vale de Vatnsdalur; sabia onde tinha pedras, conhecia as montanhas de picos brancos e o lago cheio de cisnes, e a turfa enrugada junto ao rio. E os corvos, os constantes corvos dando voltas. Mas Illugastadir era diferente. Eu não tinha amigos. Não entendia a paisagem. Apenas as línguas de pedra projetadas feriam o perfeito beijo de mar e céu - não havia ninguém e mais nada. Não havia nenhum lugar para onde ir.

 

Ali, em pé diante do tribunal em 19 de abril, estava novamente Bjarni Sigurdsson, irmão de Fridrik, de Katadalur, um garoto de dez anos de idade que parecia ser esperto e inteligente. Após um longo tempo de interrogatório, ele continuou sem dar nenhuma informação até finalmente dizer que Fridrik cortara a garganta de duas ovelhas leiteiras e um cordeiro no outono passado, quando seu pai não estava em casa. Bjarni Sigurdsson lembrou que essas ovelhas eram de Natan. Falou que por muito tempo sua mãe lhe dissera que deveria dizer que não sabia disso e mandou não falar nada a respeito no julgamento. Depois, por mais que tentássemos, com dureza ou gentileza, não conseguimos arrancar mais informações dele.

 

Funcionário anônimo, 1828

 

Margrét acordou com o som de um choramingo. Espiou na escuridão na direção das filhas. Estavam dormindo.

 

Agnes.

 

Margrét pousou a cabeça no travesseiro ao lado do marido e escutou. Sim, a criminosa estava chorando; um choro fino e firme que deu um nó na garganta de Margrét. Deveria ir até ela? Talvez fosse uma armadilha. Margrét gostaria de conseguir ver melhor na penumbra. O choro parou, depois recomeçou. Ela soava como uma criança.

 

Margrét saiu da cama com cuidado e encontrou o caminho até a porta, depois desceu o corredor até poder ver as brasas morrendo no braseiro da cozinha. Pegando uma vela em seu suporte, ela produziu uma chama nas brasas e acendeu o pavio. Antes de deixar o calor da cozinha, Margrét parou. Ainda podia ouvir o choro melancólico. Percebeu que estava com medo, sem compreender por quê.

 

A luz da vela dançou sobre as paredes e as vigas do badstofa. Todos estavam adormecidos, a cabeça enfiada sob os cobertores para espantar o frio de dezembro que deixava gelo nas paredes. Margrét colocou a mão ao redor da chama para protegê-la de rajadas de vento e caminhou lentamente até Agnes. A mulher estava dormindo, mas seus olhos disparavam sob as pálpebras, e os cobertores haviam sido empurrados até o pé da cama. Agnes tremia, os cotovelos apertados ao lado do corpo, as mãos fechadas em punho como se prestes a lutar com os nós dos dedos nus.

 

- Agnes?

 

A mulher gemeu. Margrét estendeu a mão livre para pegar os cobertores e começou a puxá-los sobre o corpo exposto da mulher, mas enquanto os levava ao peito, Agnes agarrou o pulso de Margrét.

 

Margrét abriu a boca para gritar, mas nenhum som saiu. Ela ficou paralisada com o aperto repentino dos dedos frios de Agnes.

 

- O que você está fazendo? - perguntou Agnes com uma voz tão inamistosa quanto o aperto. A vela vacilou.

 

- Nada. Você estava tremendo.

 

- Você estava me observando.

 

Margrét tossiu e sentiu gosto de sangue. Engoliu, não querendo pousar a vela.

 

- Eu não estava observando. Você me acordou. Estava chorando.

 

Agnes encarou Margrét por um momento, depois soltou a mão. Margrét olhou enquanto Agnes examinava as lágrimas que limpara das bochechas.

 

- Eu estava chorando?

 

Margrét anuiu.

 

- Você me acordou.

 

- Eu estava sonhando - disse Agnes, fitando as vigas.

 

Margrét tossiu novamente, mas dessa vez de repente demais para levar a mão à boca. As duas mulheres olharam para as cobertas e viram uma pequena mancha de sangue. Agnes passou os olhos da mancha para Margrét.

 

- Quer se sentar? - perguntou, encolhendo as pernas, e Margrét se acomodou na beirada da cama. - Duas mulheres morrendo - murmurou Agnes.

 

Em qualquer outro momento Margrét sabia que teria se sentido insultada, mas sentada à frente de Agnes ela viu como era verdade.

 

- Jón se preocupa comigo - reconheceu Margrét. - Ele não diz nada, mas quando você está casada há tanto tempo com um homem, muita coisa não precisa ser dita.

 

- Contou a ele sobre a geleia de líquen?

 

- Ele sabe que você tem mão para ervas. Ouviu falar de Róslín e seu bebê.

 

Agnes estava pensativa.

 

- Ele não se importa?

 

Margrét balançou a cabeça.

 

- Você não deve achar que meu Jón é um homem mau - disse, baixando os olhos para o chão. - Ele faz o que pode para levar uma pacata vida cristã. Todos fazemos. Ele não desejaria mal a ninguém, mas com você aqui...

 

Ela abriu a boca como se para dizer mais, porém se conteve.

 

- Ele tem algo na cabeça, apenas isso. Mas seguiremos em frente, enquanto pudermos.

 

- Mas ele sabe que sua doença está piorando?

 

Margrét sentiu o peso nos pulmões e deu de ombros.

 

- Sobre o que estava sonhando? - perguntou, após um momento de silêncio.

 

Agnes levou os cobertores ao pescoço.

 

- Katadalur.

 

- A fazenda de Fridrik?

 

Agnes anuiu.

 

- Um pesadelo?

 

O olhar da mulher mais moça baixou para a mancha de sangue nas cobertas entre elas. Parecia estudá-la.

 

- Eu estava lá nos dias antes de Natan morrer.

 

- Achei que você morava em Illugastadir - falou Margrét tremendo, e Agnes pegou seu xale, que estava jogado sobre a cabeceira, e o deu a Margrét.

 

- Fiquei em Illugastadir até Natan me pôr na rua. Não tinha para onde ir, então fui até a família de Fridrik em Katadalur.

 

- Você disse que não eram amigos.

 

- Não éramos - disse Agnes, olhando para Margrét. - Por que nunca me perguntou sobre os assassinatos?

 

A pergunta pegou Margrét de surpresa.

 

- Achei que isso era entre você e o reverendo.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

A boca de Margrét ficara seca. Ela olhou para o marido deitado do outro lado. Estava roncando.

 

- Gostaria de ir à cozinha comigo? - perguntou. - Preciso esquentar meus ossos, ou estarei morta pela manhã.

 

Agnes sentou-se em um banco tirado da queijaria e observou enquanto Margrét avivava as chamas no braseiro, arrancando labaredas com pedaços de estrume seco. Ela tossiu com a fumaça e limpou os olhos.

 

- Está com sede?

 

Agnes assentiu, e Margrét colocou no gancho uma pequena panela de leite. Sentou no banco ao lado de Agnes, e as duas observaram juntas as chamas começarem a tomar o combustível.

 

- Minha mãe nunca deixava o braseiro se apagar em sua casa - disse Margrét. Ela sentiu Agnes se virando para olhar para ela, mas não a encarou. - Ela acreditava que enquanto uma luz queimasse na casa, o Diabo não poderia entrar. Nem mesmo na hora das bruxas.

 

Agnes ficou em silêncio. Depois finalmente perguntou:

 

- No que você acredita?

 

Margrét estendeu as mãos para as chamas.

 

- Acho que o fogo é útil para manter o corpo aquecido.

 

Agnes anuiu. O fogo estalou e cresceu diante delas.

 

- Quando eu trabalhava em Gafl, o fogo apagou durante o inverno. Foi culpa minha. Estávamos bloqueados pela neve, as crianças passavam fome, e eu estava tão ocupada tentando fazer o menor mamar um pouco de soro em um trapo que me esqueci de verificar a cozinha. Passamos três dias sem luz e sem fogo, antes que o clima melhorasse e conseguíssemos pedir ajuda na fazenda ao lado. Achei que nossos vizinhos iriam nos encontrar mortos e azuis em nossas camas.

 

- Acontece - concordou Margrét. - Um corpo pode morrer de muitas formas.

 

As duas mulheres ficaram em silêncio. O leite começou a borbulhar, e Margrét se levantou para tirá-lo do fogo. Deu uma xícara fumegante a Agnes e sentou-se novamente.

 

- Sua família tem sorte de contar com suprimentos suficientes - disse Agnes.

 

- Tivemos um dinheirinho extra este ano - respondeu Margrét. - O comissário distrital Blöndal nos recompensou.

 

Ela lamentou suas palavras assim que as disse, mas Agnes não reagiu.

 

- Eu não havia pensado nisso - disse finalmente.

 

- Não muito, acredite - acrescentou Margrét.

 

- Não, eu não valho muito - observou Agnes com amargura. Margrét olhou para ela. Bebericou o leite, sentindo o líquido quente encher seu estômago e começar a espalhar o calor pelo seu corpo.

 

- O reverendo não tem vindo recentemente - disse Margrét, mudando de assunto.

 

- Não - disse Agnes, o rosto inchado de dormir, e a mulher mais velha de repente sentiu um impulso de passar um braço em volta dela.

 

É porque parece uma criança, pensou Margrét. Apertou as mãos na xícara.

 

- Não queria acordá-la mais cedo - disse Agnes.

 

Margrét deu de ombros.

 

- Eu costumo acordar à noite. Quando minhas meninas eram pequenas, costumava acordar para conferir se ainda estavam respirando.

 

- É por isso que está acordada agora?

 

Margrét olhou diretamente para Agnes.

 

- Não. De modo algum.

 

- Lamento que tenha sentido medo por elas - disse Agnes. - Quero dizer, comigo aqui.

 

- Uma mãe sempre teme pelos filhos - disse Margrét.

 

- Nunca fui mãe.

 

- Não, mas você teve uma.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Minha mãe me abandonou quando eu era pequena. Não tive mãe desde então.

 

- Isso não importa - disse Margrét finalmente. - Onde ela estiver, pensa em você.

 

- Acho que não.

 

Margrét ficou em silêncio.

 

- Uma mãe sempre pensa nos filhos - repetiu. - Sua mãe, a mãe de Fridrik, a mãe de Sigga. Todas as mães.

 

- A mãe de Sigga está morta - disse Agnes secamente. - E a mãe de Fridrik será mandada a Copenhague.

 

- Por quê?

 

Agnes olhou com cautela para Margrét.

 

- Thórbjörg tinha alguma noção do que Fridrik planejava. Ela sabia sobre umas ovelhas que Fridrik roubou. Mentiu no tribunal.

 

- Entendo - disse Margrét, tomando outro gole do leite.

 

- Thórbjörg salvou minha vida - acrescentou Agnes após um intervalo. - Ela me encontrou à sua porta após Natan me pôr na rua. Eu morreria se ela não tivesse me levado para dentro e me deixado ficar lá.

 

Margrét anuiu.

 

- Ninguém é totalmente ruim.

 

- Quando Thórbjörg era uma jovem criada, incendiou a cama de sua senhora e matou o cachorro do mestre com um machado. Eles falaram disso no julgamento.

 

- Bom Senhor.

 

- Isso não ajudou no meu caso - disse Agnes rapidamente. - Ela disse que éramos amigas. Contou a eles que Natan e eu havíamos brigado e que eu buscara os conselhos dela.

 

- Mas você não o fez?

 

- Ela nunca me disse para queimar Illugastadir, como alegaram. Nunca fui a Katadalur pedir a ajuda de Thórbjörg ou para conspirar com Fridrik. Eles fizeram parecer que eu tinha ido a Katadalur com um objetivo. Planejar assassinato - disse Agnes, depois tomando seu leite e fazendo barulho ao engolir. - Fui a Katadalur porque Natan não me deixou ficar em Illugastadir e eu não tinha nenhum outro lugar para ir.

 

Margrét ficou em silêncio. Olhou para o fogo e imaginou Agnes se esgueirando por Kornsá à noite, acendendo um archote na cozinha e incendiando a fazenda enquanto eles dormiam. Será que ela sentiria o cheiro da fumaça e acordaria?

 

- Foi Fridrik quem incendiou Illugastadir, não foi, Agnes? - perguntou Margrét, tentando afastar a preocupação da voz.

 

- No julgamento, eu disse que o fogo se espalhou a partir da cozinha - respondeu Agnes com firmeza. - Disse que Natan colocara uma panela de ervas para ferver. Começou ali.

 

Margrét não disse nada.

 

- Eu ouvi dizer que foi Fridrik.

 

- Não foi - falou Agnes.

 

Margrét tossiu novamente e cuspiu no fogo. A umidade ferveu sobre as brasas.

 

- Caso esteja protegendo seu amigo...

 

- Fridrik não é meu amigo! - interrompeu Agnes. Balançou a cabeça e colocou o leite no chão. - Ele não é meu amigo.

 

- Achei que vocês dois tinham passado um tempo juntos - explicou Margrét.

 

Agnes a encarou, depois voltou os olhos para o braseiro.

 

- Não. Mas em Illugastadir... - disse Agnes, suspirando e buscando palavras. - Natan com frequência não estava em casa. A solidão... A solidão ameaçava morder você em cada canto. Eu aproveitava qualquer companhia que aparecesse.

 

- Então Fridrik visitava Illugastadir.

 

Agnes anuiu.

 

- Não é longe de Katadalur. Fridrik tinha um pequeno romance com Sigga.

 

- Ouvi falar de Sigga - disse Margrét, levantando-se para colocar mais estrume no fogo.

 

- As pessoas gostam dela. É bonita.

 

- E simples, pelo que ouvi.

 

Agnes olhou para Margrét com cuidado.

 

- Sim, bem, Fridrik não pensava assim. Quando Natan estava longe, Fridrik vinha de Katadalur por algum servicinho ou levando alguma mensagem falsa dos pais ou do padre e, então, fingia ter sede ou fome. Sigga pegava um pouco de leite ou algo para comer, e eles riam e conversavam, e no outono não era difícil que os encontrasse sentados juntos na cama de Sigga, arrulhando um para o outro como pássaros.

 

- É duro ficar sozinha no inverno - concordou Margrét.

 

Agnes anuiu.

 

- Era pior em Illugastadir. Não era como aqui no vale. Os dias se arrastavam cansados, e eu não tinha amigos nem vizinhos. Apenas Sigga, Daníel, o criado contratado em Geitaskard, e algumas vezes Fridrik.

 

- O escuro pode deixar um corpo solitário - disse Margrét pensativa. - Não é bom que as pessoas fiquem sozinhas demais.

 

Ela ofereceu mais leite a Agnes.

 

- Natan jamais gostou do inverno. Ele passou a vida inteira sem se acostumar à escuridão.

 

- Então fico pensando nele comprando Illugastadir e não alguma outra fazenda onde as pessoas podiam fazer companhia.

 

- Ele saía muito - falou Agnes. - Principalmente para Geitaskard. Dizia que era a trabalho, mas acho que era principalmente para estar entre amigos. Ou me evitar - acrescentou. - Teria sido melhor se ficasse em casa. Precisávamos dele ali. Mas a cada mês ele parecia ficar cada vez mais tempo fora, e quando voltava não ficava contente por nos ver. Nunca parecia contente de ver Thóranna, a filha. Ele a deixava conosco.

 

- Me parece desumano da parte dele negar um visitante a vocês, os três tão solitários e trancados sozinhos.

 

Agnes deu um pequeno sorriso.

 

- Provavelmente, o problema dele não era o fato de termos um visitante, mas o fato de ser Fridrik.

 

- Entendo.

 

- Fridrik e Natan tinham uma amizade tensa no melhor dos casos. Estavam sempre desconfiando um do outro. E então tiveram uma briga. Foi quando a baleia encalhou em Hindisvík, no outono.

 

- Eu me lembro. Compramos um pouco de óleo de baleia do pessoal ao norte do vale. Eles foram pegar o que podiam.

 

- Para nós foi um golpe de sorte. Havia chovido demais naquela colheita, e estávamos preocupados que o feno apodrecesse ou pegasse fogo, e que ao chegar a primavera encontrássemos todos os nossos animais mortos e nós mesmos não seríamos mais que esqueletos. Natan estava em casa quando soube da baleia, e foi comprar alguma carne da família que era dona daquele trecho de litoral.

 

- Natan passara o dia inteiro fora e não havia chegado até a noite. Quando o recebi à porta, ele estava coberto de lama. Estava em seus cabelos, em seu rosto; não havia nenhum pedaço de roupa limpo. Quando perguntei o que havia acontecido, Natan me contou que estivera cortando sua parte da baleia, já comprada e paga, quando Fridrik apareceu e começou a se servir. Quando Natan disse a Fridrik para pegar uma faca e pagar pela sua parte, Fridrik o jogou no chão e o atacou. Mais tarde a família de Stapar, a fazenda depois de Illugastadir, me contou uma história diferente. Disseram que Natan gritara com Fridrik e o empurrara pelas costas e Fridrik se virara para ele, derrubando Natan no chão. Fridrik então agrediu e arrastou Natan na lama. Mas na época eu só sabia que Natan tinha voltado para casa em frangalhos e de péssimo humor.

 

- Que desagradável para você - murmurou Margrét.

 

Agnes balançou a cabeça.

 

- Foi pior para Sigga. Quando eu fazia a conserva da carne de baleia, pude ouvir Natan se lavando em frente ao fogo e Sigga tentando acalmá-lo. Natan gritava que Fridrik era maluco, que iria matar alguém antes dos vinte anos. Fridrik era o queridinho de Sigga, e ela não recebeu bem aquilo. Claro que não ousou dizer nada a Natan, mas quando estávamos na cama mais tarde eu a ouvi chorar.

 

Margrét não disse nada. Queria muito olhar para Agnes, mas achava que, caso se virasse em sua direção, ela iria parar de falar e as coisas seriam como antes. Escolheu com cuidado suas palavras seguintes.

 

- Devia ser difícil para vocês em Illugastadir.

 

- Ficou pior depois da baleia. Natan ficava cada vez menos tempo em casa. Quando voltava, passava horas dizendo a Sigga e a mim que não nos pagava para sermos preguiçosas. Encontrava defeitos em tudo o que fazíamos. A manteiga não estava cremosa o suficiente, o badstofa estava sujo, alguém estivera em sua oficina e bagunçara suas pipetas. Não importava que nenhuma de nós ousasse entrar na oficina quando ele não estava lá. O vento movia algum objeto ou o pátio ficava revirado após uma de nós ter arrastado para casa a madeira jogada pelo mar na praia, e ele achava que estávamos cavando buracos, tentando encontrar seu dinheiro. Nenhum de nós sequer sabia que o enterrara lá até ele dizer isso.

 

- Então tudo mudou para pior. Natan encontrou Fridrik saindo de Illugastadir ao voltar do Sul. Inicialmente, eles pareceram bastante civilizados, mas Sigga, Daníel e eu logo os ouvimos gritar um com o outro na passagem. Natan ameaçava Fridrik com socos e o comissário distrital caso ele colocasse o pé em sua fazenda. Passaram algum tempo naquilo antes de Fridrik partir para casa.

 

- Natan estava furioso naquela noite. Arrastou Sigga para fora, e eu o ouvi acusando-a de trair sua confiança, mentir para ele. Ameaçou colocá-la na rua, e eu ouvi Sigga implorando. Não tinha para onde ir. Ninguém contrataria uma criada naquela época do ano. Nevava, e ela morreria de frio. Natan finalmente baixou a voz, e deixei de ouvir o que dizia. Nenhum dos dois entrou por mais de uma hora, mas quando voltaram os olhos de Sigga estavam vermelhos e ela foi diretamente para cama. Então Natan ordenou que eu me levantasse e o seguisse.

 

- Estava escuro feito breu. Ele me levou até a beirada do mar e me disse que Fridrik pedira permissão a ele para se casar com Sigga. Disse que sabia que Sigga estava se encontrando secretamente com Fridrik, mas não acreditara que chegariam a esse ponto. Achara que era apenas um flerte.

 

- Quando disse a Natan que parecia ser apenas um sentimento inofensivo entre dois inocentes, ele riu e disse que nenhum deles era o que chamaria de inocente. Então enfiou a mão no bolso e me mostrou três moedas de prata, dizendo que o garoto lhe oferecera dinheiro pela permissão de casar com Sigga. Perguntei por que ficara com o dinheiro se parecia tão contrário àquilo, e Natan riu, dizendo que só um idiota recusa dinheiro oferecido espontaneamente. Então me perguntou por que eu deixara que Sigga e Fridrik fossem em frente, sabendo que ele não queria o garoto em sua propriedade na sua ausência. Disse a ele que não gostava de Fridrik, mas estava acostumada a fazendas cheias de criados e pessoas por perto, e os dias em Illugastadir eram os mais longos que eu já havia conhecido.

 

Agnes tomou um último gole do leite e jogou o resto no fogo. Margrét se encolheu com o chiado.

 

- Não vou dormir novamente agora - disse Agnes.

 

Margrét anuiu.

 

- Não, suponho que eu também não - disse, depois hesitando antes de prosseguir. - Não sabia que Fridrik e Sigga haviam se casado.

 

Agnes deu uma risada breve.

 

- Eles nunca se casaram. Embora Fridrik tenha, de fato, lhe pedido a mão. Ele voltou no dia seguinte. Natan fora para Geitaskard. Sigga estava deprimida e se arrastando pelo lugar como uma sombra, e quando a cerquei na cozinha e perguntei o que Natan dissera na noite anterior, caiu em lágrimas e não disse uma palavra. Perguntei se dissera a Natan que amava Fridrik, e ela balançou a cabeça. Então lhe contei sobre o dinheiro de Fridrik, como pagara a Natan pela sua mão em casamento, e isso cortou suas lágrimas. Ela me encarou de boca aberta e gaguejou que não podia acreditar que Natan houvesse concordado. Disse que não iria se casar com tal homem. Era jovem demais, e além de tudo ela era criada dele e continuaria assim até que ele quisesse deixá-la partir.

 

- Daníel viu Fridrik chegando naquele dia e disse que seria melhor ele dar meia-volta caso quisesse ver o verão, mas Fridrik o ignorou e me perguntou onde Sigga estava. Não tive estômago de acompanhá-lo para dentro e ver o que iria acontecer, então fui para a praia e esperei. E Fridrik saiu segurando a mão de Sigga e anunciou a mim e a Daníel que estavam noivos.

 

- O que você fez? - perguntou Margrét.

 

Agnes suspirou.

 

- O que eu poderia fazer? Subi a encosta e servi uma dose de brandy para nós. Fridrik estava radiante, mas Sigga parecia ansiosa. Após alguns goles, Daníel começou a cantar canções para o casal, e eu saí para respirar um pouco e caminhei até a praia.

 

O fogo estalou diante delas. Um torrão de estrume queimando se partiu e lançou uma nuvem de fagulhas na direção das vigas.

 

Agnes finalmente voltou a falar.

 

- Você já foi ao litoral?

 

Margrét balançou a cabeça e se aninhou no xale.

 

- Quando era mais jovem passei algum tempo trabalhando perto. Na área de Langidalur.

 

- O mar é diferente perto de Vatnsnes. Algumas vezes a água no fiorde é como um espelho. Algo que dá vontade de lamber. - Vidrado como o olho de um morto - como Natan costumava dizer - falou Agnes, chegando mais perto do fogo. - Certa vez vi dois icebergs esmagando um ao outro. O vento os colara. Quando eles chegaram mais perto, vi que as duas massas haviam juntado madeira boiando em sua superfície baixa e, depois de algum tempo, ouvi um estalo terrível e vi a madeira irromper em chamas.

 

- Soa como algo saído das sagas - observou Margrét.

 

- Foi assombroso - concordou Agnes. - Eu não conseguia parar de olhar. Mesmo quando ficou mais escuro, ainda podia ver pequenas chamas queimando no mar.

 

Por algum tempo as duas ficaram olhando para o fogo. As chamas estavam morrendo em um brilho vermelho-escuro que se projetava sobre o rosto das mulheres. Do lado de fora um gemido baixo indicou a chegada de mais ventos de inverno.

 

Após Fridrik ter pedido Sigga em casamento, nevou bastante. Não havia como Fridrik cavalgar de volta para casa, e mandei que dormisse com Daníel. O brandy os deslizou para o sono como uma calçadeira.

 

Permaneci acordada. Pensamentos sobre Natan e Sigga percorriam meu cérebro, interrompendo meu sono. Eu sabia por que Natan odiava Fridrik. Não era pelo fato de o garoto cobiçar sua riqueza e seus bens valiosos, embora isso fizesse parte. Não, era por causa de Sigga. Decidi que ele queria Sigga tanto quanto não me queria.

 

Devo finalmente ter caído em um sono desconfortável. O badstofa estava vazio quando acordei, e a neve parara de cair. O mundo do lado de fora estava branco, a não ser pelo cinza oleoso do oceano. Ouvi um barulho no campo, e quando saí para ver o que era, vi Fridrik chutando uma ovelha morta. Sua agressão revirou meu estômago.

 

- O que está fazendo?

 

Minha voz soou clara e forte no ar parado. Fridrik não me ouviu. Continuou chutando, resmungando. Suas botas levantavam uma nuvem de neve ensanguentada.

 

- Fridrik! - chamei novamente. - O que está fazendo?

 

Ele parou e se virou. Eu o vi limpar o rosto na manga, e ele começou a arrastar as botas pela neve pesada na minha direção. Quando chegou mais perto, vi que estava de péssimo humor.

 

- Olá, Agnes - disse, respirando pesado.

 

- Por que está chutando aquele animal?

 

Fridrik arfava. Seu hálito saía da boca como uma baforada de neve.

 

- Já estava morto.

 

- Mas por que estava chutando?

 

- Que importância tem? - perguntou Fridrik, apertando os olhos para o céu. - Acho que virá mais neve. Melhor não ficar presa nela.

 

Ele fungou e limpou o nariz na luva, deixando uma sujeira brilhante na lã.

 

- Natan vai matar você - eu disse, apontando para a mancha de sangue e terra que cercava a ovelha. - Você estragou a carne. E a pele.

 

Fridrik riu. Eu queria estapeá-lo por chutar a ovelha, mas não tinha poder sobre ele, e ele sabia.

 

- Já estava morta, Agnes. Morreu esta manhã - falou, tirando um floco de neve ensanguentado da bochecha, e levantou a bota da neve para passar por mim. - Não se preocupe, ainda estará boa para comer.

 

- Você a destruiu.

 

Ele revirou os olhos.

 

- Você vai pegar um resfriado - falou alto, de costas para mim. Vi as nuvens de neve descendo sobre a montanha e deixei o ar gelado agredir minhas costelas até estar tremendo de frio.

 

Ver Fridrik atacar a ovelha com as botas mexeu comigo. Era sinistro: os membros rápidos e escuros, em contraste com a neve, colidiam contra o macio cadáver cinza até uma fina névoa de sangue flutuar acima dele.

 

Começou a nevar. Eu me virei para seguir Fridrik de volta à fazenda e vi um corvo se lançar sobre a ovelha. Deu uma grasnada de luto e depois enfiou o bico nas entranhas. Flocos de neve pousaram em suas penas pretas.

 

Surpreendi Fridrik e Sigga sentados juntos na cama, sussurrando. Sigga parecia ter chorado.

 

- Estão faltando duas ovelhas - eu disse.

 

- Bem, uma delas está morta. Você mesma viu - disse Fridrik, bocejando.

 

- Não aquela que você estava chutando. Duas outras além dessa.

 

Fridrik deu um sorriso repulsivo, e eu soube imediatamente o que havia acontecido.

 

- Você as matou - Sigga soluçou, e Fridrik se levantou. Foi até mim e se curvou. Podia sentir o cheiro do suor dele.

 

- Agnes. Talvez você queira saber o que Sigga e eu conversamos esta manhã - disse, a voz tomada de raiva. - Natan está se aproveitando dela.

 

Esperei até conseguir falar calmamente.

 

- Eu já sabia.

 

Sigga caiu em lágrimas.

 

- Lamento, Agnes! Eu queria muito contar a você.

 

Fridrik parou.

 

- Você sabia?

 

- Achei que ela concordava com isso - falei, com voz fraca.

 

- Ele a tem violentado! - falou ele, e começou a andar de um lado para outro. Percebi que segurava a camisola de seda verde de Sigga, um presente de Natan. - Vou matá-lo.

 

Revirei os olhos.

 

- Vá em frente. Isso fará muita diferença agora - falei, depois me virando para Sigga. - Ele obrigou você?

 

- Claro que ele a obrigou! - disse Fridrik, sentando-se ao lado de Sigga e socando o colchão. Sigga se assustou.

 

- Não sei - murmurou.

 

Pensei novamente na noite em que o ouvi se mexendo dentro dela. A noite após as ondas da morte. A respiração apressada. Um gemido leve e rápido. Não tinha havido luta.

 

- É contra Deus - disse Fridrik.

 

Não consegui evitar rir.

 

- Não acho que nada disso tenha muito a ver com Deus.

 

Sigga pareceu em pânico.

 

- Agnes? Está muito desapontada comigo?

 

- Por que estaria desapontada? - perguntei, minha voz suave como o oceano.

 

Fridrik sentiu raiva, olhando para a camisola.

 

- Ele é um desgraçado. Vou matá-lo.

 

- Não quero que Natan morra.

 

O tom de voz de Sigga me deu vontade de estapeá-la.

 

Eu ri.

 

- Fridrik não vai matar ninguém.

 

- Sim, eu vou - disse ele, levantando-se de novo, a mão fechada em punhos grossos.

 

- Não, você não vai - falei. - De qualquer modo, qual a importância disso? Você ainda vai se casar com ela.

 

Fridrik fez uma expressão de desprezo.

 

- Não esperava que uma mulher como você entendesse.

 

Senti minha boca ficar seca.

 

- Sigga disse que Natan também está se divertindo com você. Só que parece que você gosta um pouco mais do que Sigga!

 

Fui na direção de Sigga e a vi se encolher.

 

- Não vou bater em você - falei. Mas poderia. Eu queria.

 

Daníel entrou, e Fridrik se calou. Eu tremia de raiva. Odiava Fridrik. Odiava sua pele espinhenta, vermelha de frio. Odiava seus olhos azuis e o contorno grudento de seus cílios louros. Odiava sua voz aguda, seu cheiro de estrume, suas visitas constantes.

 

- Vá para casa, Fridrik.

 

Foi Daníel quem falou primeiro.

 

- Está vindo uma tempestade.

 

- Então fique preso nela.

 

De repente me senti grata pela presença de Daníel.

 

- Não vou a lugar algum - disse Fridrik, e sentou-se novamente junto a Sigga, colocando um braço ao redor dela protetoramente.

 

- É verdade, não é? - perguntou Daníel em um sussurro. - Que Natan divide a cama com vocês duas. Isso é pecaminoso - disse, balançando a cabeça.

 

- Fridrik matou duas ovelhas.

 

- O quê? Aqui?

 

- Acho que ele as levou para Katadalur na noite passada, ou no começo desta manhã, e as matou lá.

 

- Natan vai matar Fridrik!

 

- Não se Fridrik matar Natan primeiro. Ele está de mau humor - retruquei.

 

Daníel passou as mãos pelos cabelos e olhou para o casal na cama.

 

- Ele é um idiota e um valentão - suspirou. - Vou falar com ele quando seu sangue esfriar.

 

Natan voltou a Illugastadir três dias depois. Fridrik já não estava lá. Não consigo imaginar o que teria acontecido caso estivesse. Seja como for, Natan não ficou empolgado de ouvir a notícia do noivado de Sigga e Fridrik. Eu contei a ele. Sigga escapou para o depósito ao ouvir o som da chegada dele no pátio.

 

- Não posso deixar vocês sozinhas sem que alguma catástrofe se abata sobre nós.

 

- Não é exatamente uma catástrofe, Natan. Você aceitou o dinheiro de Fridrik por ela; deveria saber que isso aconteceria.

 

- Imagino que esteja feliz com isso - resmungou.

 

- Eu? O que isso tem a ver comigo?

 

- Você brincou de cupido o outono inteiro.

 

Estendi as mãos para pegar as rédeas enquanto ele tirava a sela do cavalo.

 

- Não fiz isso.

 

- Imagino que todos celebraram.

 

- Não. Mesmo Sigga parece confusa com o que aconteceu.

 

Ele se virou para me encarar diretamente, erguendo uma sobrancelha.

 

- É mesmo?

 

Concordei com a cabeça.

 

- Fridrik está pulando de alegria, mas Sigga não parece tão empolgada.

 

Natan então sorriu e balançou a cabeça.

 

- Uma dupla de jovens idiotas - falou, gentilmente pegando as rédeas e o pano de minhas mãos e pousando-os na neve. Seu rosto estava sóbrio. - Agnes. Minha Agnes. Devo desculpas a você. Não deveria ter golpeado você.

 

Não falei nada, mas não resisti quando pegou minha mão.

 

- Estive conversando com Worm, e ele acha que ando distraído. Viajando demais na umidade. Os sonhos, eles... - falou, a voz murchando. - Todos nos comportamos mal uns com os outros. Não tenho sido eu mesmo.

 

Ele soltou minha mão e pegou rédeas e pano, depois os deu a mim.

 

- Aqui. Guarde isso, e a verei lá dentro - disse, e me segurou quando me virei para sair, falando com gentileza. - Agnes. Estou contente em vê-la.

 

Naquela noite nos sacudimos com os mesmos desejos que nos tomavam antes. E quando acordamos na escuridão do inverno, meu corpo estava banhado de alegria por saber que ele dormira ao meu lado. Se Sigga ou Daníel acordaram e nos viram deitados juntos ali, não disseram nada. Tirei os cobertores da cama dele e os coloquei aos pés da minha.

 

Margrét voltou da queijaria com outra panela de leite. Do lado de fora, o vento soprava tão forte que era possível ouvir um gemido vazio.

 

Agnes se curvou e mexeu nas brasas do fogo.

 

- Devo usar turfa ou estrume? - perguntou.

 

Margrét apontou para o estrume.

 

- Vá em frente. Podemos manter o fogo queimando, desde que fiquemos aqui.

 

- Onde eu estava?

 

- Estava dizendo que Fridrik pedira Sigga em casamento.

 

Margrét pôs mais leite na panela. Ele chiou ao cair no metal quente.

 

- Sigga ficou aterrorizada ao ver Natan após ter concordado em se casar com Fridrik. Natan a achou escondida no estábulo. Mais tarde, ela me contou que ele dissera ter sido irracional e permitido que seus próprios problemas com Fridrik o cegassem. Deu sua bênção e falou que se queria se casar com um garoto que não tinha posição nem dinheiro dos quais se orgulhar, a escolha era dela. Ele me contou que não iria impedir dois filhotes de brincar um com o outro.

 

- Achei que ele talvez tivesse se dado conta de que, caso Sigga se casasse com Fridrik, ele não teria de ver novamente a cara do garoto. Não teria de se preocupar com seu dinheiro escondido ali.

 

- A época do Natal passou voando, e fizemos pouco para comemorar a data. Natan mandou Daníel de volta para Geitaskard, e achei que seria como nos velhos tempos, com apenas Sigga e eu. Queria limpar a cabana e preparar uma arraia para a missa de St. Thorlak, mas ela perdera o interesse em conversar comigo desde o noivado com Fridrik. Ficara temperamental, descuidada no trabalho, e sempre olhando pela janela. Dava um pulo quando falávamos com ela. Evitava olhar nos olhos. Natan lhe dissera que poderia convidar Fridrik para uma bebida em Illugastadir para comemorar o Natal, mas ele não fora. Talvez Sigga não confiasse na repentina boa vontade de Natan para com Fridrik. Acho que estava ansiosa para manter os dois homens separados.

 

Certa noite, bem tarde, decidi contar a ele.

 

- Natan, sei que você possuiu Sigga.

 

Ele estava cochilando, mas seus olhos se abriram ao ouvir isso.

 

- Eu sei, Natan. Perdoo você.

 

Ele me encarou, e de repente riu.

 

- Você me perdoa?

 

Busquei a mão dele na escuridão.

 

- Não estou falando isso para discutir. Mas quero que saiba que eu sei.

 

Os dedos dele ficaram sobre os meus como um peso morto. Ele estava pensando.

 

- Eu sabia que tinha nos visto - falou.

 

As palavras dele me atingiram como um soco no estômago. Minha boca se abriu e fechou sem que nenhum som saísse. Saí da cama e peguei uma lamparina. Não podia falar com ele sem ver seu rosto. Não podia confiar nas palavras dele no escuro.

 

A luz da lamparina bateu em sua pele nua. Ele me olhou friamente, virando-se apenas para espiar na direção de Sigga para ver se estava acordada.

 

- Natan.

 

Minha voz soava envelhecida. Baixei os olhos e me vi nua e, pela primeira vez, pensei em como ele me via.

 

- Você ficou brincando comigo.

 

Natan protegeu os olhos com a mão.

 

- Apague a lamparina, Agnes.

 

Eu agarrei a barra da cabeceira para me firmar.

 

- Você é cruel.

 

- Não quero falar sobre isso.

 

- Você nunca me daria a posição de governanta, não é mesmo?

 

- Apague a lamparina e vamos dormir. Seus olhos parecem dois buracos de mijo na neve.

 

- Dormir? - reagi, encarando-o e esperando até saber que conseguiria falar sem chorar. - Como você sabia que eu sabia?

 

Ele sorriu com isso. Não disse nada.

 

- Você me ama?

 

- Você está sendo ridícula.

 

- Responda.

 

Ele esticou a mão para a lamparina.

 

- Apague isso!

 

- Natan.

 

Eu estava suplicando. O gemido em minha voz me horrorizou.

 

- Eu a teria chamado se não a quisesse aqui?

 

- Sim, como sua serviçal.

 

- Você é mais que uma criada, Agnes.

 

- Sou?

 

- Apague a lamparina.

 

- Não! - reagi, afastando-a dele. - Você não pode me tratar assim!

 

Os olhos dele faiscaram.

 

- Você é uma megera, Agnes.

 

Eu explodi.

 

- Uma megera? Vá para o inferno! Sempre deixo você fazer o que quer. Eu o impeço de partir o tempo todo? Eu o impeço de montar em Sigga na cama ao lado quando você acha que estou dormindo? Ela tem quinze anos! Você é um maldito cachorro.

 

Ele se apoiou nos cotovelos.

 

- O que a faz pensar que espero até você estar dormindo?

 

A expressão no rosto de Natan não era de deboche, mas de desprezo divertido. Um imediato fardo de desespero e perda me pressionou até eu estar repentina e irremediavelmente curvada de dor.

 

- Eu o odeio.

 

As palavras pareceram idiotas, infantis.

 

- E você acha que a amo? - reagiu Natan, balançando a cabeça. - A você, Agnes?

 

Ele apertou os olhos e se levantou, o hálito quente em meu rosto.

 

- Você é um tipo barato de mulher. Eu estava errado sobre você.

 

- Se eu sou barata é porque você me fez assim!

 

- Sim, continue. Você é pura e santa, e a culpa é de todos os outros.

 

- Não, a culpa é sua!

 

- Desculpe, achei que você queria isso - disse ele, me agarrando e puxando grosseiramente para ele. - Achei que queria sair do vale. Mas você só quer o que não pode ter.

 

- Eu queria você! Queria sair do vale porque queria ficar com você! - Me sentia doente de raiva. - Não suporto isso aqui.

 

- Então vá!

 

Ele recuou um passo e me agarrou pelo pulso.

 

- Saia! Você não fez nada além de criar problemas.

 

Ele começou a me arrastar para fora do badstofa. Tinha consciência de Sigga sentada na cama, olhando para nós. Thóranna começara a chorar.

 

- Me largue!

 

- Só estou lhe dando o que você quer. Você me odeia? Quer ir embora? Bom! Eis a porta.

 

Apesar da baixa estatura, Natan era forte. Ele me arrastou pelo corredor e me empurrou por sobre o degrau da porta. Tropecei nele e caí esparramada na neve, nua. Quando consegui me ajoelhar, ele havia batido a porta na minha cara.

 

Estava escuro e nevando forte do lado de fora, mas eu estava tão tonta de raiva e de dor que não sentia nada. Queria martelar a porta, ir até a janela e gritar para que Sigga me deixasse entrar, mas também queria puni-lo. Eu me abracei e fiquei pensando para onde poderia ir. O frio mordia minha pele. Pensei em me matar, em andar até a praia e enfiar os membros na água gelada. O frio me mataria; eu não precisaria me afogar. Imaginei Natan me encontrando morta, jogada com as algas.

 

Fui ao estábulo.

 

Estava frio demais para dormir. Eu me agachei junto à vaca, apertei minha pele nua sobre seu corpo quente e peguei um pano de sela para me cobrir. Enfiei os dedos dos pés gelados em bosta de vaca para que não sofressem.

 

Em algum momento da noite alguém entrou no estábulo.

 

- Natan? - perguntei, minha voz fina e patética.

 

Era Sigga. Levara minhas roupas e meus sapatos. Os olhos estavam inchados de chorar.

 

- Ele não vai deixar você entrar - disse.

 

Eu me vesti lentamente, os dedos duros de frio.

 

- E se eu morrer aqui fora?

 

Ela se virou para partir, mas agarrei-a pelo ombro.

 

- Coloque algum bom-senso na cabeça dele, Sigga. Dessa vez ele realmente enlouqueceu.

 

Ela olhou para mim, os olhos se enchendo de lágrimas.

 

- Estou farta de viver aqui - sussurrou.

 

Acordei na manhã seguinte e por alguns momentos não soube onde estava. Então as lembranças da noite voltaram, e a raiva endureceu meu estômago, me revigorando. Eu me apoiei na vaca, aquecendo meu nariz e meus dedos frios, pensando no que fazer. Queria partir antes que Natan saísse para alimentar os animais.

 

Tóti acordou no badstofa escuro de Breidabólstadur e viu o pai na ponta da cama, apoiado na parede. A cabeça grisalha balançava sobre o peito. Estava adormecido.

 

- Papai?

 

A voz não era mais do que um sussurro. O esforço machucou sua garganta.

 

Tentou mover o pé para despertar o pai, mas seus membros estavam mais pesados do que jamais sentira. Tentou novamente.

 

- Papai?

 

O reverendo Jón se moveu e abriu os olhos de repente.

 

- Filho! - falou, limpando a barba e se inclinando para a frente. - Você despertou. Graças a Deus.

 

Tóti tentou erguer o braço e se deu conta de que estava preso ao lado do corpo. Estava enrolado em cobertores.

 

- Você estava delirando de febre - explicou o pai. - Tive de fazê-lo suar - falou, colocando a mão calosa sobre a testa de Tóti.

 

- Preciso ir a Kornsá - murmurou Tóti. A língua estava seca. - Agnes.

 

O pai balançou a cabeça.

 

- Foi por cuidar dela que você ficou assim.

 

Tóti pareceu perturbado.

 

- Esqueci em que mês estamos.

 

- Dezembro.

 

Ele tentou se sentar, mas o reverendo Jón empurrou gentilmente sua cabeça de volta ao travesseiro.

 

- Você não fará nenhuma visita a ela até que Deus o recupere.

 

- Ela não tem ninguém - argumentou Tóti, tentando novamente se levantar. Seus músculos mal reagiram.

 

- E por um bom motivo - disse o pai, a voz de repente alta no pequeno aposento. Segurou o filho na cama, o rosto cinzento no badstofa sem luz. - Ela não vale o tempo que dedica a ela.

 

Margrét ficou um momento em silêncio. O leite esfriara em sua xícara.

 

- Ele a jogou na neve?

 

Agnes anuiu, fitando atentamente a mulher mais velha.

 

Margrét balançou a cabeça.

 

- Você poderia ter morrido congelada.

 

- Ele não estava pensando direito - disse Agnes, apertando o xale sobre os ombros. - Natan queria Sigga para si. Finalmente entendera que ela preferia Fridrik.

 

Margrét fungou e empurrou uma brasa de volta para a parede do braseiro com um atiçador.

 

- Você é quem sabe - disse, dando uma espiada em Agnes, que fitava o fogo, e falando baixo. - Continue.

 

Agnes suspirou e descruzou os braços.

 

- Fui para a casa da família de Fridrik em Katadalur. Nunca tinha estado ali, mas sabia que ficava além da montanha, e o dia amanheceu claro o bastante para que caminhasse até lá sem ser vítima do clima. Mas levei horas, e quando cheguei à entrada do vale onde ficava Katadalur estava delirando de fadiga. A mãe de Fridrik me encontrou ajoelhada diante de sua porta.

 

- Katadalur é um lugar horrível. Decaído e apertado, com o teto ameaçando desabar, e o interior da fazenda é tão miserável quanto o exterior. Há fumaça do estrume queimado nas paredes da cozinha e um badstofa melancólico. Quando entrei havia um grupo de crianças, todos parentes de Fridrik, amontoados em uma única cama, tentando se manter aquecidos. Fridrik estava sentado ao lado do pai e do tio em outra cama, amolando facas.

 

- A primeira coisa que Fridrik me disse foi: - O que ele fez agora? - Perguntou se Natan decidira se casar com Sigga.

 

- Balancei a cabeça e expliquei que havia me expulsado. Contei que passara a noite no estábulo. Fridrik não sentiu simpatia. Perguntou o que eu tinha feito para provocar isso, e contei que brigara com Natan, dizendo que não podia concordar com o tratamento que dava a Sigga.

 

- Foi quando a mãe de Fridrik interrompeu. Estivera nos escutando em silêncio e, de repente, agarrou o braço de Fridrik e disse: - Ele quer privar você de sua esposa.

 

- Pensei ter visto Fridrik baixar os olhos para a faca nas cobertas e fiquei preocupada.

 

- Sugeri que Fridrik conversasse com o padre de Tjörn, que talvez eles pudessem procurar um oficial distrital. Mas Thórbjörg, a mãe de Fridrik, me interrompeu novamente. Ela se levantou e agarrou Fridrik pelos ombros, olhando-o nos olhos. Disse: Você não terá Sigga enquanto Natan estiver vivo. Então todos eles se sentaram, e enquanto eu dormia eles devem ter decidido matá-lo.

 

Margrét estava imóvel. O fogo se apagara. Apenas uma pequena camada de brasas tremeluzia em meio às cinzas. O vento não parara de uivar. Margrét expirou lentamente. Ela se sentia cansada.

 

- Talvez devêssemos voltar para a cama.

 

Agnes se virou para ela.

 

- Não quer ouvir o resto?

 

Em Laugar, Sælingsdale, Gudrún se levantou assim que o sol nasceu. Foi até o aposento onde os irmãos dormiam e sacudiu Ospak. Ospak e seus irmãos acordaram imediatamente; e então ele viu que era sua irmã e perguntou por que ela estava de pé tão cedo. Gudrún disse que queria saber o que planejavam fazer naquele dia. Ospak respondeu que teriam um dia tranquilo - pois não há muito trabalho a ser feito neste momento.

 

Gudrún disse: - Vocês seriam perfeitas filhas de camponeses - não fazem nada em relação a nada, bom ou mau. A despeito de toda a desgraça e desonra que Kjartan lhes fez, não perdem o sono, nem mesmo quando ele passa por sua porta com apenas um companheiro. Obviamente é inútil esperar que um dia ousem atacar Kjartan em casa se não têm coragem de encará-lo agora, quando viaja com apenas um ou dois companheiros. Vocês apenas ficam sentados em casa fingindo ser homens, e sempre há demais de vocês por aqui.

 

Ospak disse que ela estava exagerando, mas, admitiu, não conseguiu argumentar o contrário. Ele saltou imediatamente da cama e se vestiu, assim como todos os irmãos, um depois do outro; depois se prepararam para armar uma emboscada para Kjartan.

 

Laxdæla Saga

 

Natan não estava em casa quando Fridrik e eu chegamos a Illugastadir. Não estou certa do que teria acontecido caso estivesse. Foi necessário bater por muitos minutos até que Sigga abrisse a porta para nos deixar entrar. Levava a filha de Natan no quadril.

 

- Ele me mandou não aceitá-la caso voltasse - disse, mas ainda assim nos deixou entrar.

 

Aceitei o café que ela nos deu.

 

- Onde está Natan? - perguntei.

 

- Chegou um mensageiro de Geitaskard. Worm não está bem. Natan partiu cedo esta manhã.

 

- Como ele estava?

 

Sigga me olhou.

 

- De péssimo humor.

 

- Ele a forçou de novo? - perguntou Fridrik, examinando a prateleira de Natan junto à cama. Sigga o observava ansiosamente enquanto ele pegava caixas e as sacudia.

 

- O que está procurando?

 

- Indenização - murmurou Fridrik. Olhou pela janela para a lama do lado de fora. - Aposto que eu estava certo. Aposto que ele enterrou tudo no pátio.

 

Eu encarei Sigga.

 

- Ele falou algo sobre mim?

 

Sigga balançou a cabeça.

 

Ensaiei um sorriso raivoso.

 

- Nada que você gostaria de repetir na minha frente.

 

Fridrik espanou a neve dos ombros e se sentou junto a Sigga, colocando-a no colo.

 

- Meu passarinho - disse. - Minha esposa.

 

Sigga resistiu às carícias dele.

 

- Não me chame assim.

 

Fridrik ficou vermelho.

 

- Por que não? Você é minha.

 

- Natan me contou que mudou de ideia. Não vai permitir - disse, a voz se transformando em um soluço. - Nunca.

 

- Maldito Natan!

 

Apesar do clima funesto de nossa reunião, era difícil não sorrir do grito dramático de Fridrik.

 

- Tenho certeza de que Natan vai superar.

 

Sigga enxugou os olhos e balançou a cabeça.

 

- Ele diz que se alguém vai se casar comigo será ele.

 

Meu estômago revirou, e vi Fridrik ficar pálido.

 

- O quê?

 

- Foi o que ele disse - fungou Sigga.

 

- O que você disse? - perguntei, minha voz soando fina e trêmula.

 

Sigga teve um novo ataque de soluços.

 

- Você não disse sim, disse?

 

Fridrik se levantou, colocou um braço ao redor dela, e Sigga enfiou o rosto em seu pescoço. Ela uivava.

 

Nós três passamos os dois dias seguintes em Illugastadir, fazendo planos de partir. Sigga achava que conseguiria voltar a Stóra-Borg, e eu me ofereci para levá-la comigo para o vale assim que o clima permitisse. Fridrik sugeriu que eu fosse a Ásbjarnarstadir pedir trabalho até o final do inverno. Disse que o fazendeiro de lá não gostava de Natan; poderia ficar comigo por simpatia.

 

Conversávamos assim certa tarde quando vimos viajantes descendo a passagem da montanha. Havíamos ficado tão envolvidos em nossos planos de fuga que não os tínhamos notado. Estávamos no pátio, pegando um pouco de ar no clima agradável, e era tarde demais para nos escondermos. Eles já tinham nos visto.

 

- Agnes! - sibilou Sigga. - É Natan. Ele vai me esfolar quando vir você.

 

Meu coração batia como um tambor, mas não ousei demonstrar isso.

 

- Ele não está sozinho, Sigga. Não fará nada com companhia.

 

Nós três ficamos esperando a dupla de cavaleiros. Quando chegaram mais perto, fiquei surpresa de ver Pétur, o Matador de Ovelhas, cavalgando com Natan.

 

- Veja, Pétur - disse Natan. - Três raposinhas espreitando o lugar.

 

Ele sorriu, porém seus olhos eram soturnos. Achei que poderia atacar Fridrik, mas em vez disso desmontou e caminhou na minha direção.

 

- O que ela está fazendo aqui?

 

O sorriso dele desapareceu. Eu ruborizei e olhei de soslaio para Pétur. Ele parecia chocado.

 

- Por favor, deixe que volte, só até o fim do inverno - protestou Sigga.

 

- Estou farto de você, Agnes.

 

- O que fiz? - perguntei, fingindo estar calma.

 

- Você disse que queria ir embora, então vá! - disse, dando outro passo na minha direção. - Fora!

 

Sigga parecia ansiosa.

 

- Ela não tem lugar para ficar, Natan. Vai nevar.

 

Natan riu.

 

- Você nunca fala sério, Agnes. Você diz uma coisa, e um significado diferente se esconde por trás disso. Você quer ir embora? Vá!

 

Eu queria dizer a Natan o que queria; queria que ele me amasse de novo. Mas não disse nada. Não havia nada que pudesse ter dito.

 

Foi Fridrik quem rompeu o silêncio.

 

- Você não vai se casar com ela! - anunciou entredentes cerrados.

 

Natan riu.

 

- Não isso de novo - disse, virando-se para Pétur. - Está vendo o que acontece quando você vive com crianças? Elas arrastam você para seus joguinhos.

 

Pétur deu um sorriso fino.

 

- Certo - disse Natan, começando a levar seu cavalo para o campo. - Agnes pode ficar, mas não no badstofa. Pétur e eu vamos dormir aqui esta noite e voltaremos para Geitaskard pela manhã. Se você ainda estiver aqui quando voltarmos, eu a entregarei ao comissário distrital como invasora. Fridrik, vá embora antes que eu mande Pétur cortar sua garganta.

 

Ele riu, mas Pétur baixou os olhos.

 

Dormi no estábulo novamente naquela noite. Não estava tão frio como no dia em que Natan me colocou na rua, e Sigga me ajudou a fazer uma pequena cama antes de voltar para dentro. Fedia a bosta, e o chão estava tomado de carrapatos, mas acabei pegando no sono. Quando acordei, estava escuro. Eu me levantei e fui até a porta e vi luz saindo pela janela da cabana. Estava lúcida depois do descanso e prestes a voltar à fazenda para ver se conseguia acertar as coisas com Natan quando ouvi passos na neve atrás do estábulo.

 

- Sigga?

 

Os passos pararam, mas depois ouvi o rangido macio novamente. Vinham na minha direção. Recuei para a escuridão da construção e apertei as costas na parede.

 

Ouvi um sussurro baixo.

 

- Agnes?

 

Era Fridrik.

 

Ele passou pela entrada e fechou a porta silenciosamente.

 

- Que diabos você está fazendo aqui?

 

Ele respirava pesado. Não conseguia vê-lo na escuridão, mas podia sentir o cheiro de seu suor. Algo retiniu.

 

- Você veio andando de Katadalur até aqui?

 

Ele tossiu e cuspiu.

 

- Sim.

 

- Natan o mata se o vir.

 

- Vou esperar até ele dormir.

 

- Para fazer o quê? E se acordar e flagrar você e Sigga sussurrando doçuras na cama ao lado da dele, fará com que seja enforcado e esquartejado antes de o dia nascer.

 

Eu ouvi Fridrik fungar na escuridão.

 

- Não vim para isso.

 

Havia algo no tom dele que me fez parar.

 

- Fridrik. Para que você veio?

 

- Vou resolver isso de uma vez por todas. Vim pegar o que é meu.

 

Atrás de nós, a vaca deu um gemido baixo. Ouvi cascos raspando no chão de terra.

 

- Fridrik?

 

- Admita. Você também quer isso, Agnes.

 

Naquele momento, a lua saiu de detrás de seu escudo de nuvens, e vi o que Fridrik tinha na mão. Um martelo e uma faca.

 

Do que me lembro? Não acreditei nele. Voltei para minha cama no chão do estábulo, de repente cansada. Não queria ter nada com eles.

 

O que aconteceu?

 

Acordei de um sono agitado e saí. A luz da janela da cabana se apagara. Fridrik não podia ser visto em lugar nenhum.

 

Fui procurá-lo. De repente senti medo. O céu noturno estava claro, e a fazenda era iluminada pelo luar. A luz das estrelas. A neve rangia sob meus sapatos. Eu me atrapalhei com o trinco, mas a porta se abriu, rangendo.

 

Sigga estava agachada junto à parede do corredor, agarrando a garotinha de Rósa. Elas choramingavam.

 

- Sigga?

 

Ela levou um momento para conseguir responder.

 

- O badstofa - sussurrou. Eu mal consegui ouvi-la.

 

Desci o corredor comprido. De alguma forma cuidei de pegar uma lamparina na cozinha. Estava com o coração na boca.

 

O que aconteceu?

 

Eu tremia, e, atrapalhando-me com as mãos, derrubei a lamparina no escuro. Senti o cheiro repentino de um pavio apagado e ouvi um ruído no canto. Uma tábua rangendo e alguém arfando, com força e rápido, e mais sons, abafados como os de uma criança socando um travesseiro. Um gemido, o som de algo molhado, e então uma voz murmurando:

 

- Agnes?

 

Meu coração falhou. Achei que Natan estivesse ali.

 

Mas era Fridrik.

 

- Agnes - dizia ele. - Agnes, onde você está?

 

A voz dele era fraca.

 

- Estou aqui - disse, curvando-me e procurando a lamparina na escuridão. - Deixei a luz cair.

 

Ouvi Fridrik dar um passo na direção de minha voz.

 

- Agnes, não sei se ele está morto - disse, a voz travando na última palavra. - Não sei dizer se está morto.

 

Meu coração parou. Meus dedos não se moveram. Eu os empurrava sobre as tábuas imundas, tentando achar a lamparina, mas estavam paralisados e não se dobravam. Ele não o matou. Ele é um garoto. Ele não o matou.

 

De algum modo consegui achar a lamparina. Eu a peguei, minha mão raspando nas farpas do piso.

 

- Agnes?

 

- Estou aqui! - disse, de repente. O tom de minha voz me surpreendeu. Eu não parecia tão assustada quanto de fato estava. - Preciso acender a lamparina.

 

- Então se apresse - disse Fridrik.

 

Encontrei o caminho até o corredor, onde havia uma única vela acesa em um suporte de parede. Acendi a lamparina e me virei para o badstofa. Minhas mãos tremiam, e a luz da lamparina tremulava desconfortavelmente sobre as paredes irregulares, na direção da boca negra do badstofa. Quando cheguei ao aposento, senti minha garganta travar de medo. Não queria entrar ali. Mas precisava ver o que Fridrik havia feito.

 

A princípio achei que ele tinha me enganado. Quando estiquei a lamparina na direção da cama de Natan, vi seus cobertores e seu rosto adormecido. Nada parecia errado. Então Fridrik disse:

 

- Aqui, Agnes, traga a lamparina para cá.

 

E assim que a luz passou sobre a cama vi que a cabeça de Pétur estava esmagada. Sangue escurecia o travesseiro. Algo brilhava na parede, e quando olhei vi diversas gotas de sangue escorrendo lentamente pelas tábuas.

 

- Ai, Deus - disse. - Ai, Deus. Ai, Deus.

 

Olhei para o martelo que ele levava nas mãos, e havia algo grudado nele - era cabelo. Então vomitei, no chão.

 

Fridrik me ajudou a ficar em pé. Ainda agarrava o martelo, pronto para ser usado.

 

- Você machucou Natan? - perguntei, e Fridrik me disse para aproximar a lamparina da cama. Natan também sangrava. Um lado do rosto parecia estranho, como se seu malar tivesse sido achatado, e o que pensei foi que o sangue de Pétur se acumulava na cavidade de seu pescoço.

 

Um grito brotou do meu peito, e a força me abandonou. Larguei a lamparina novamente e caí no chão, na escuridão que brotou ao redor de nós.

 

Fridrik deve ter apanhado a vela no corredor. Vi seu rosto brilhar quando entrou no aposento. Depois ambos ouvimos uma voz.

 

- O que foi isso? - perguntou Fridrik, indo rapidamente para meu lado e me colocando em pé. Tremíamos. O som surgiu novamente. Um gemido.

 

- Natan?

 

Tomei a vela de Fridrik e avancei na direção da cama, levando-a para perto do rosto de Natan. Vi as pálpebras se retorcendo à chama brilhante, e ele tentou se virar na cama.

 

- O que você fez?

 

Fridrik estava branco como um cadáver, as pupilas tão dilatadas que pareciam pretas.

 

- O martelo... - murmurou.

 

Natan gemeu de novo, e dessa vez Fridrik se curvou, escutando.

 

- Ele disse Worm.

 

- Worm Beck?

 

- Talvez esteja sonhando.

 

Ficamos imóveis, observando Natan em busca de mais sinais de vida. O silêncio era ensurdecedor. Então Natan abriu um olho lentamente e olhou direto para mim.

 

- Agnes? - murmurou.

 

- Estou aqui - disse. Um jorro de alívio correu por mim. - Estou aqui, Natan.

 

O olho dele passou de mim para Fridrik. Depois ele virou a cabeça e viu o crânio esmagado de Pétur. Vi que ele sabia o que havia acontecido.

 

- Não - grunhiu. - Não, não, não, não.

 

Fridrik recuou, afastando-se de mim. Eu não ia deixá-lo ir embora.

 

- Olhe o que você fez! - sussurrei. - Olhe seu trabalho.

 

- Eu não queria! Eu juro, Natan. - Fridrik começou a ofegar, olhando para o martelo ensanguentado no chão junto aos nossos pés.

 

Natan gritou de novo. Estava tentando se levantar da cama, mas gritou quando colocou peso sobre o braço. Fridrik o esmagara acidentalmente.

 

- Você o queria morto! - gritei, encarando Fridrik. - O que vai fazer agora?

 

Houve um baque, e ambos baixamos os olhos e vimos Natan no chão. Ele se arrastara da cama com o braço bom, mas não conseguia ir além.

 

- Me ajude a levantá-lo - eu disse a Fridrik, pondo a vela no chão, porém o garoto não queria tocar nele. Eu me curvei e tentei erguer Natan para que pudesse apoiar a cabeça na viga, mas era pesado demais, e quando vi o modo como o crânio havia inchado, o sangue que escorrera por suas costas, perdi toda a força: meus membros derreteram. Embalei sua cabeça no colo e vi que não sobreviveria à noite.

 

- Fridrik - repetia Natan. - Fridrik, eu pago você, eu pago você.

 

- Ele quer falar com você, Fridrik - disse, mas Fridrik havia desviado o rosto e não olhava para nós. Eu gritei: - Vire. O mínimo que você pode fazer é falar com o homem que matou!

 

Natan parou de murmurar. Senti seu corpo enrijecer, e ele ergueu os olhos para mim, a cabeça balançando lentamente.

 

- Agnes...

 

- Sim, sou eu, Agnes. Estou aqui, Natan. Estou aqui.

 

Ele ficou de boca aberta. Achei que estava tentando dizer algo, mas tudo o que saiu foi um gargarejo. Ergui os olhos para Fridrik, e ele estava em pé ali, o rosto branco, os cabelos nos olhos, vermelho no lado em que o sangue explodira e o acertara. Os olhos arregalados e assustados.

 

- Por que ele está fazendo isso? - perguntou. Natan engasgava, sangue escorrendo em direção ao queixo, às minhas saias. - Por que ele está fazendo isso?! - berrou Fridrik. - Faça com que pare!

 

Estiquei a mão e peguei a faca no chão.

 

- Então faça isso, termine o que você começou!

 

Fridrik balançou a cabeça. O rosto estava pálido, e ele olhava para mim horrorizado.

 

- Faça! - eu disse. - Vai deixar que ele morra lentamente?

 

Fridrik continuava balançando a cabeça. Ele se encolheu quando um pequeno fio de sangue brotou no ferimento da cabeça de Natan.

 

- Não - disse. - Não consigo. Não consigo.

 

Natan olhou para mim: os dentes estavam vermelhos de sangue. Os lábios se moveram silenciosamente, e entendi o que tentava dizer.

 

A faca penetrou fácil. Rasgou a camisa de Natan com cortes limpos, soando como um beijo mal treinado - eu não conseguiria ter parado se quisesse. Meu punho se moveu até de repente sentir um calor sobre meu pulso e perceber que o sangue dele cobria minha mão. Seu calor era perceptível em comparação com o frio da noite. Soltei o cabo e empurrei Natan para longe de mim, olhando para a faca. Ela se projetava da barriga dele, e a camisa estava escura, completamente molhada e enrugada ao redor da lâmina. Nós nos encaramos por um momento. A luz da vela iluminava o canto de sua testa, seus cílios, e de repente fui tomada por gratidão - ele me via claramente. Parecia um perdão.

 

- Agnes - disse Fridrik atrás de mim, as mãos na cabeça, o martelo no chão. - Agnes, você o matou.

 

Eu queria chorar. Queria me ajoelhar sobre o corpo de Natan e gritar. Mas não havia tempo.

 

Odiei Fridrik. Ele desmoronara, murchara no chão e começara a soluçar, tomando enormes golfadas de ar em um pânico que parecia nunca terminar. Finalmente se levantou, a respiração entrecortada, e arrancou a faca da barriga de Natan.

 

- O que você está fazendo? - perguntei a ele. Não tinha energia para berrar.

 

- É a minha faca - disse Fridrik. Ele a limpou na calça e se virou para sair.

 

- Espere! - chamei.

 

Fridrik se virou e deu de ombros.

 

- Você será enforcado por isso! - falei entredentes. Fridrik parou. Vi seus dedos se fechando sobre o cabo pegajoso da faca.

 

- Se eu for enforcado - disse ele lentamente, fungando um pouco de catarro -, você será queimada viva.

 

Baixei os olhos e vi o sangue em minhas mãos, em meu pescoço, encharcando meu vestido. Vi a chama da vela tremulando sob uma brisa invisível e fiquei pensando em como o aposento pareceria à luz cinzenta do dia.

 

Foi quando me lembrei da gordura de baleia que Natan comprara em Hindisvík.

 

22 de dezembro de 1829

Ata: Para Björn Blöndal, comissário distrital de Húnavatn

Venho por meio desta apresentar a Sua Senhoria os seguintes documentos:

 

  1. A cópia original da decisão da Corte Suprema de 25 de junho deste ano no caso e no processo contra Fridrik Sigurdsson, Agnes Magnúsdóttir e Sigrídur Gudmundsdóttir, do distrito de Húnavatn, por assassinato, incêndio criminoso e roubo, entre outros crimes. A sentença da Suprema Corte chegou aqui no dia 20 deste mês, com uma entrega especial dos correios de Reykjavík.
  2. Cópia confirmada da carta de Sua Majestade o rei: Ao governador distrital no dia 26 de agosto, referente a Sigrídur Gudmundsdóttir, a citada é pela graça e misericórdia do rei perdoada da punição pela morte como sentenciada pela citada Corte Suprema de Copenhague. Em vez disso, por decreto de Sua Majestade o rei, ela será transferida para Copenhague, para trabalhar em uma prisão por toda a sua vida natural sob rígida vigilância. Também foi decidido que a sentença da Corte Suprema em relação aos condenados Fridrik Sigurdsson e Agnes Magnúsdóttir será mantida.
  3. Cópia confirmada do documento do Escritório Real de Secretariado da Dinamarca ao governador distrital de 29 de agosto referente ao caso, no qual o secretário do soberano real publicou a opinião de que seria melhor que a pena fosse aplicada onde o crime foi cometido, ou o mais próximo possível, e apenas caso isso não cause conflitos ou acontecimentos imprevisíveis. O governador distrital precisa concordar totalmente com isso.
  4. A sanção, concedida hoje, para que Gudmundur Ketilsson, o fazendeiro de Illugastadir, execute os condenados Fridrik Sigurdsson e Agnes Magnúsdóttir segundo determinação da Corte Suprema, que, de acordo com as cartas do secretariado, agora devo pedir que Sua Excelência administre da maneira correta. Sua Excelência deve garantir que as sentenças de morte, considerando as mudanças apresentadas na já mencionada carta real de Sua Majestade o rei, sejam aplicadas de modo legal e sem demora. Meu honrado senhor, como comissário distrital, tem a responsabilidade de preparar e executar os condenados da forma adequada e acertar tudo segundo as minúcias dessa situação. Contudo, devo insistir em que se aferre aos seguintes detalhes:

 

  1. a) Caso ainda não tenha sido feito, Sua Excelência precisa acertar imediatamente para que padres visitem as pessoas culpadas, Fridrik Sigurdsson e Agnes Magnúsdóttir, todos os dias. Os padres devem ser supervisionados e devem fazer aos prisioneiros sermões religiosos importantes, consolá-los e prepará-los para seguir seu destino. Os padres devem acompanhar os prisioneiros ao local de execução.
  2. b) Foi acordado que Sua Excelência poderá decidir se a execução vai acontecer perto de Illugastadir, em um bom local no chamado Thingi ou em uma colina em algum lugar (mas não alto demais), onde outros possam ver de todas as direções.
  3. c) Em vez de um tablado de madeira, Sua Excelência poderá orientar para que seja construída uma boa plataforma de turfa com corrimão. Sua Excelência deve acertar para que um bloco com um sulco para o queixo seja colocado sobre essa plataforma e garantir para que seja coberto com um pano vermelho de algodão ou lã tecida.
  4. d) O carrasco escolhido deverá, na casa de Sua Excelência, e em segredo e com estímulo, ser treinado para a missão que lhe foi confiada. Isso será feito para garantir, o máximo possível, que ele, neste importante momento, não perca a fé nem o controle. A decapitação deve ser realizada com um golpe, sem nenhuma dor para o condenado. Gudmundur Ketilsson só pode tomar uma dose muito pequena de destilado.
  5. e) Sua Excelência deve convocar o maior número de homens das fazendas vizinhas necessários para construir dois ou três cercados ao redor da plataforma. Esses fazendeiros são obrigados a comparecer sem aceitar nenhum pagamento.
  6. f) Nenhuma pessoa não autorizada poderá penetrar nos cercados.
  7. g) Aquele a ser executado posteriormente não poderá testemunhar a execução do primeiro, e deverá ser mantido afastado em um lugar onde não tenha visão direta da plataforma.
  8. h) Os corpos mortos que ficarem para trás após a execução precisam ser enterrados no local sem solenidade, em madeira branca não tratada. É absolutamente fundamental que Sua Excelência, Pessoa de Grande Respeito, esteja presente no local da execução para ler o veredicto da Corte Suprema e Sua Majestade o rei, para organizar e controlar o procedimento de execução e para registrar a execução no livro oficial. Sua Excelência poderá registrar as execuções em dinamarquês ou islandês, mas isso deve ser muito bem-feito, e uma tradução do registro precisa ser enviada ao meu escritório. O registro de Sua Excelência precisa incluir uma descrição perfeita e detalhada dos acontecimentos e de como terminaram. O senhor também deve registrar que Gudmundur Ketilsson recebeu pelo trabalho e especificar como decidiu usar o dinheiro concedido a ele por seus serviços, com que objetivo e assim por diante. E, finalmente, quero lhe agradecer pela carta de Sua Excelência de 20 de agosto. Em resposta, digo aqui que o machado deve ser devolvido a Copenhague após a execução e que o pagamento por ele deve ser feito, assim como os outros custos deste caso.

 

  1. Johnson

Secretário de Sua Majestade Real

Copenhague, Dinamarca

 

Aos oficiais distritais de Svínavatn, Thorkelshóll e Thverá

Após receber a sentença da Honrada Corte Suprema de 25 de junho e a graciosa Carta Real de Sua Majestade o rei de 26 de agosto, eu por esta confirmo que os criminosos Fridrik Sigurdsson e Agnes Magnúsdóttir serão executados na terça-feira, 12 de janeiro, em uma pequena colina próxima da cabana de Ránhóla, entre as fazendas Hólabak e Sveinsstadir.

 

Após a descrição feita ao governador distrital de 22 de dezembro, tenho de pedir que ordenem aos fazendeiros do distrito de Svínavatn, por vocês mesmos escolhidos, que assistam à execução nesse lugar e nesse dia, o mais tardar até meio-dia. Isso deve ser feito assim que possível. De acordo com o Capítulo Sete do Jónsbok, intitulado Mannhelgisbalk, e o Capítulo Dois, intitulado Thjófnadarbalk, esses fazendeiros são obrigados a comparecer, e se não obedecerem às suas ordens serão penalizados. É recomendado que alertem sobre isso os homens que tenham maiores dificuldades em deixar suas fazendas ou viajar. Por favor, notem também que vocês mesmos devem comparecer ao evento.

 

Caso aconteça de as execuções não poderem ser realizadas nesse dia em função do clima, o próximo dia possível será escolhido, e todas as pessoas que receberam ordem de ir terão de fazê-lo, como afirmado acima. Será necessário que os homens consigam comida e sustento para si mesmos, pois é bastante possível que sua viagem para lá e de volta sofra atrasos em função do clima nesta época do ano.

Comissário distrital, Björn Blöndal

 

Quinta-feira, 7 de janeiro de 1830

Mui respeitado e profundamente amado amigo e irmão (B. Blöndal),

 

Pelo que fez por mim, por nossos muitos encontros e por sua instrução e entrega desta manhã, agradeço com amor e paixão, e confirmo que esta manhã encontrarei as pessoas em Vídidalur e as alertarei para que cheguem bastante cedo na próxima terça-feira. Contei a Sigrídur sobre as condições de seu perdão, e ela está rezando a Deus e agradecendo ao rei por seu tratamento gentil. Lamento pela pressa, que Deus esteja com você e os seus, desejando tudo de bom a todos neste novo ano que principia, e em todo tempo por vir, tanto nesta vida quanto na seguinte. Assim digo, seu fiel amigo amoroso,

Br. P. Pétursson de Midhóp

 

O hino fúnebre islandês

 

Penso em meu Salvador,

 

Confio em Seu poder de consolo,

 

Seus braços poderosos me envolvem

 

Desperto e no sono.

 

Cristo é minha rocha, minha coragem;

 

Cristo é de minha alma a verdadeira vida;

 

E Cristo (meu coração sereno sabe)

 

Me sustentará na desdita.

 

Assim, em nome de Cristo, vivo;

 

Assim, em nome de Cristo, morrerei;

 

Não temerei o vigor da vida,

 

Que da sombra fria da Morte se esvai.

 

Ó, Túmulo, onde está teu triunfo?

 

Ó Morte, onde está teu ferrão?

 

"Vem quando quiseres, e bem-vinda!"

 

Salvo em Cristo, entoo a canção.

 

No sexto dia de janeiro, uma batida forte na porta da cabana despertou Tóti. Ele abriu um olho e viu a luz fraca do aposento: dormira tarde. As batidas continuaram. Relutantemente, passou seus pés com meias para o chão e se levantou da cama, enrolando as cobertas no corpo para deixar de fora a mordida penetrante do frio. Com as pernas tremendo, foi à porta da frente, a mão apoiada na parede para ter firmeza.

 

O visitante era um mensageiro de Hvammur, soprando as mãos e batendo as botas no ar gelado da manhã. Ele anuiu e deu a Tóti uma pequena carta dobrada. Estava marcada com o selo vermelho de Blöndal, parecendo uma gota de sangue sobre o papel claro.

 

- Reverendo assistente Thorvardur Jónsson?

 

- Sim.

 

O nariz do homem estava rosado pelo frio.

 

- Desculpe a demora. O clima está muito ruim, e não consegui vir mais cedo.

 

Cansado, Tóti convidou o homem para uma xícara de café, mas o criado olhou ansioso para a passagem norte.

 

- Caso não se importe, reverendo, estou a caminho. Há mais neve vindo, e não quero ficar preso nela.

 

Tóti fechou a porta e cambaleou até a cozinha para avivar as brasas. Onde estava seu pai? Colocou uma chaleira de água para ferver no braseiro e lentamente arrastou um banco para perto do fogo. Depois que a tontura havia passado, ele rompeu o lacre e abriu a carta. Tóti a leu três vezes, depois deixou-a pousada no joelho enquanto olhava para o fogo. Não podia estar acontecendo. Não assim. Não com tanto por dizer e fazer, e com ele sequer ao lado dela. Levantou de repente, os cobertores escorregando de seus ombros, e caminhou sem firmeza até o badstofa. Estava abrindo sua arca, tirando roupas e vestindo-as e colocando algumas em um saco, quando o pai entrou na cabana.

 

- Tóti? O que aconteceu? Por que está se vestindo? Você ainda não está recuperado.

 

Tóti deixou a tampa de sua arca bater e balançou a cabeça.

 

- É Agnes. Ela será morta em seis dias. Só recebi a carta agora.

 

Ele caiu na cama e tentou enfiar o pé em uma bota.

 

- Você não está em condições de ir.

 

- Foi de repente demais, pai. Eu falhei com ela.

 

O ancião se sentou ao lado do filho.

 

- Você não está suficientemente bem - disse com firmeza. - O frio vai matá-lo. Está nevando lá fora.

 

A cabeça de Tóti latejava.

 

- Tenho de chegar a Kornsá. Se partir agora, posso escapar da tempestade.

 

O reverendo Jón colocou uma mão pesada no ombro do filho.

 

- Tóti, você mal consegue se vestir. Não se mate por causa dessa assassina.

 

Tóti encarou o pai, os olhos brilhando de raiva.

 

- E quanto ao Filho de Deus? Ele só morreu pelos justos?

 

- Você não é o Filho de Deus. Se for, vai se matar.

 

- Estou indo.

 

- Eu o proíbo.

 

- É a vontade de Deus.

 

O velho reverendo balançou a cabeça.

 

- Isso é suicídio. É contra Deus.

 

Tóti se levantou sem firmeza e baixou os olhos para o pai.

 

- Deus vai me perdoar.

 

A igreja estava gelada. Tóti se arrastou até o altar e caiu de joelhos. Tinha consciência das mãos tremendo, a pele queimando sob as camadas de roupas. O teto sacudia acima dele.

 

- Senhor Deus... - disse, a voz falhando. Depois continuou: - Tende piedade dela. Tende piedade de todos nós.

 

Margrét enrolava um xale na cabeça, preparando-se para ir pegar estrume seco no depósito, quando ouviu o ruído de alguém raspando neve na porta da frente. Esperou. A porta se abriu.

 

- Pelos céus, é você, Gudmundur? - disse, saindo apressada do badstofa para encontrar Tóti avançando pelo corredor, o rosto branco como leite, gotas de suor congeladas na pele. - Bom Senhor, reverendo! O senhor parece a morte! Como está magro!

 

- Margrét, seu marido está? - perguntou, a voz demonstrando urgência.

 

Margrét anuiu e convidou Tóti ao badstofa.

 

- Sente-se na sala - disse, abrindo a cortina. - Não deveria estar viajando em um clima deste. Bom Senhor, como está tremendo. Não, venha à cozinha e esquente os ossos. O que aconteceu?

 

- Não estive bem - disse Tóti, a voz rouca, sentando-se pesadamente. - Febre, e um inchaço de garganta e pescoço que achei que iria sufocar. Por isso não vim até agora - disse, fazendo uma pausa, chiando um pouco. - Não conseguia.

 

Margrét o encarou.

 

- Vou chamar Jón para o senhor.

 

Ela convocou Lauga em silêncio, para ajudar o reverendo a tirar seu casaco coberto de gelo.

 

Após alguns minutos, Margrét e Jón voltaram à cozinha.

 

- Reverendo - disse Jón calorosamente, estendendo a mão a Tóti. - É bom vê-lo. Minha esposa diz que não está bem de saúde?

 

- Onde está Agnes? - interrompeu Tóti.

 

Margrét e Tóti trocaram olhares.

 

- Com Kristín e Steina. Devo chamá-la? - perguntou Margrét.

 

- Não, ainda não - respondeu Tóti. Ele tirou a luva com esforço e remexeu na camisa. - Aqui. - Estendeu a Jón a carta do comissário distrital, engolindo com dificuldade.

 

- O que é isto? - perguntou Jón.

 

- De Blöndal. Anuncia a data de execução de Agnes.

 

Lauga engasgou.

 

- Quando será? - perguntou Jón em voz baixa.

 

- No décimo segundo dia de janeiro. E hoje é o sexto. Vocês então não tomaram conhecimento? - perguntou Tóti.

 

Jón balançou a cabeça.

 

- Não. O clima tem estado tão ruim que é difícil sair.

 

Tóti anuiu, soturno.

 

- Bem, agora vocês sabem.

 

Lauga olhou do padre para o pai.

 

- E o senhor vai contar a ela?

 

Margrét esticou a mão sobre a mesa e tomou a mão nua de Tóti. Ergueu os olhos para ele.

 

- Sua pele está muito quente. Vou chamá-la - disse. - Ela iria querer saber pelo senhor.

 

O reverendo está falando comigo, mas não consigo escutar o que ele diz; é como se estivéssemos todos sob a água, as luzes continuam a bruxulear acima, e posso ver as mãos do reverendo se agitando diante de mim. Ele segura meus pulsos e solta, parece um homem se afogando que tenta agarrar algo que o leve à superfície. Ele parece um esqueleto. De onde veio toda a água? Não creio que eu consiga respirar.

 

Agnes, ele está dizendo. Agnes, estarei lá com você.

 

Agnes, diz o reverendo.

 

Ele é tão gentil; estende os braços ao redor de mim, puxa meu corpo para perto do dele, mas eu não o quero perto. Sua boca abre e fecha como um peixe, os ossos de seu rosto como facas sob a pele, mas não posso ajudá-lo, não sei o que ele quer. Aqueles que não estão sendo arrastados para a morte não podem entender como o coração fica duro e afiado, até se tornar um ninho de pedras com apenas um ovo vazio dentro. Sou estéril, nada brotará mais de mim. Sou um peixe morto secando ao ar frio. Sou um pássaro morto na praia. Estou seca, não estou certa se vou sangrar quando eles me arrastarem para fora ao encontro do machado. Não, ainda estou quente, meu sangue ainda corre em minhas veias como o próprio vento, e sacode o ninho vazio e pergunta para onde todos os pássaros foram, para onde foram?

 

- Agnes? Agnes? Estou aqui. Estou com você.

 

Tóti olhou ansioso para Agnes. A mulher fitava o chão, respirando com dificuldade e se balançando, fazendo o banco ranger. Ele sentiu lágrimas fazendo cócegas no fundo da garganta, mas estava consciente de Margrét, Jón, Steina e Lauga atrás dele; e os criados, encarando-os, esperavam junto à porta da cozinha.

 

- Acho que ela precisa de água - disse Steina.

 

- Não - falou Jón, virando-se para onde os criados esperavam. - Bjarni! Vá pegar um pouco de brandy, por favor?

 

A garrafa foi trazida, e Margrét a levou aos lábios de Agnes.

 

- Aqui - disse, enquanto Agnes se engasgava com o gole, derramando a maior parte no xale. - Fará com que se sinta melhor.

 

- Quantos dias? - grunhiu Agnes. Tóti notou que ela enfiava as unhas na carne do braço.

 

- Seis dias - respondeu Tóti gentilmente. Ele esticou os braços e tomou as mãos dela. - Mas eu estou aqui. Não a deixarei.

 

- Reverendo Tóti?

 

- Sim, Agnes?

 

- Talvez pudéssemos implorar a eles, talvez se eu procurar Blöndal, ele mude de ideia e possamos fazer um apelo. Poderia conversar com ele por mim, reverendo? Se for falar com ele e explicar, acho que ele escutaria. Reverendo, eles não podem...

 

Tóti pôs a mão trêmula no ombro da mulher.

 

- Estou aqui por você, Agnes. Estou aqui.

 

- Não! - reagiu ela, empurrando-o. - Não! Temos de falar com eles! Precisa fazê-los escutar!

 

Tóti ouviu Margrét estalar a língua.

 

- Isso não é certo - murmurava. - Não foi culpa dela.

 

- Como? - reagiu Tóti, virando-se para ela. - Ela falou com você?

 

Alguém chorava atrás dele, uma das filhas.

 

Margrét anuiu, os olhos se enchendo de lágrimas.

 

- Uma noite. Ficamos acordadas até tarde. Isso não é certo - repetiu. - Ah, Senhor. Há algo que possamos fazer? Tóti? O que podemos fazer por ela?

 

Antes que ele pudesse responder, Margrét engasgou e saiu apressada do aposento, levando as mãos aos olhos. Jón a seguiu.

 

Agnes tremia, olhando para as mãos.

 

- Não consigo movê-las - disse em voz baixa. Olhou para ele com olhos arregalados. - Não consigo movê-las.

 

Tóti novamente pegou as mãos rígidas dela. Não sabia quem tremia mais.

 

- Estou aqui com você, Agnes.

 

Foi a única coisa que conseguiu dizer.

 

Para não desmoronar, penso nas pequenas coisas. Me concentro na sensação do tecido sobre minha pele.

 

Respiro o mais fundo e silenciosamente que consigo.

 

Agora o céu escurece, e um vento frio passa diretamente através de você, como se você não estivesse lá, e passa como se não se importasse se está vivo ou morto, pois terá partido e o vento ainda estará lá, achatando a grama no chão, sem se importar se o chão está congelando ou descongelando, pois ele vai congelar e descongelar novamente, e logo seus ossos, agora quentes com sangue e densos de medula, estarão secos, quebradiços, e vão lascar, congelar e descongelar com o peso da terra sobre você, e a última umidade de seu corpo será levada à superfície pela relva, e o vento virá e a vergará e empurrará você de volta contra as pedras, ou vai raspá-la com as unhas e levá-la para o mar em uma nevasca selvagem.

 

O reverendo Tóti ficou acordado com Agnes até tarde da noite, quando finalmente a mulher adormeceu. Do canto do badstofa, Margrét observou o reverendo ansiosamente. Também ele adormecera e desmontara sentado, apoiado no suporte da cama, tremendo violentamente sob o cobertor que ela com cuidado colocara sobre ele. Margrét pensara em acordá-lo e transferi-lo para a cama extra, mas decidiu que não. Não achava que ele seria movido com facilidade.

 

Margrét finalmente pousou seu crochê. Lembrou de quando Hjördis morrera. Ela não tinha pensado muito naquela mulher morta desde os primeiros dias da chegada de Agnes. Mas isso - a sombria expectativa da morte, a luz queimando tarde demais na noite, o choro até a exaustão -, isso a fez lembrar. Margrét observou o resto dos moradores adormecidos. Notou que Lauga não estava em sua cama.

 

Margrét se levantou da cadeira para encontrar a filha e imediatamente teve um acesso de tosse que a colocou de joelhos. Socou as tábuas até que um denso bolo de sangue foi expelido de seus pulmões. Aquilo a deixou fraca, e ela esperou ali de quatro, ofegante, até se sentir forte o bastante para se erguer.

 

Margrét demorou vários minutos para encontrar Lauga. Não estava junto ao calor do braseiro na cozinha, nem na queijaria. Margrét entrou na escuridão da despensa segurando uma vela no alto.

 

- Lauga?

 

Houve um barulho leve, no canto onde ficavam os barris.

 

- Lauga, é você?

 

A luz da vela lançou sombras sobre as paredes antes de pousar em alguém atrás de um saco de comida pela metade.

 

- Mamãe?

 

- O que está fazendo aqui, Lauga? - perguntou Margrét, adiantando-se e levando a vela mais para perto do rosto da filha.

 

Lauga apertou os olhos e se levantou apressadamente. Os olhos estavam vermelhos.

 

- Não é nada.

 

- Está chateada?

 

Lauga piscou e esfregou os olhos rapidamente.

 

- Não, mamãe.

 

Margrét encarou a filha.

 

- Estava tentando achar você - disse.

 

- Só queria um minuto sozinha.

 

Elas se encararam por um tempo na luz irregular da vela que derretia.

 

- Então para a cama - sugeriu Margrét finalmente. Deu a vela a Lauga e a seguiu em silêncio para fora do aposento.

 

Não havia bolsa. Fridrik nunca encontrou o dinheiro que queria. Agnes, Agnes, onde ele enterrou? Está na arca? Mas era tarde demais, em meus dedos havia uma grossa camada escorregadia da gordura de baleia esfregada na madeira e misturada com o sangue no chão, e a lamparina já havia sido arremessada nas tábuas, e Sigga já gritara com o som do vidro se partindo.

 

Eles tentam me fazer comer, mas, Tóti, eu não consigo. Não me alimente, ou eu o morderei, morderei a mão que me alimenta, que se recusa a me amar, que me abandona. Onde está minha pedra? Você não entende! Não tenho nada a lhe dizer, onde estão os corvos? Jóas mandou todos embora, eles nunca falam comigo, não é justo. Vê o que eu faço por eles? Eu como pedras, eu quebro meus dentes, e ainda assim eles não falam comigo. Apenas o vento. Apenas o vento fala, mas o que ele diz não faz sentido, ele grita como a viúva do mundo e não espera uma resposta.

 

Você estará perdida. Não há último abrigo, não há enterro, há apenas uma constante dispersão, uma jornada frustrada que a leva a toda parte sem oferecer um caminho para casa, pois não há casa, há apenas esta ilha fria e seu ser escuro espalhado finamente sobre ela até você ser levada no vento uivante e imitar sua solidão. Você não vai para casa, você se foi; o silêncio vai reivindicar você, sugar sua vida para suas águas escuras e gerar estrelas que podem se lembrar de você, mas, se o fizerem, não dirão, não dirão, e se ninguém disser seu nome, você é esquecida, eu fui esquecida.

 

Na noite antes da execução, a família de Kornsá se sentou junta no badstofa. Steina, coberta de lágrimas, juntou todas as lamparinas que conseguiu encontrar, acendendo-as e colocando-as pelo aposento para expulsar as sombras que resistiam nos cantos. Os criados estavam sentados em suas camas com as costas contra a parede, observando taciturnos Tóti e Agnes juntos na cama dela. Estavam de mãos dadas, o reverendo sussurrando baixo. Ela olhava para o chão, tremendo.

 

Jón voltou depois de alimentar os animais e se acomodou na cama junto a Margrét, curvando-se lentamente para desamarrar as botas. Margrét tirou o tricô do colo e se levantou para ajudá-lo a tirar o casaco, depois ficou ali, segurando a peça gasta longe de si.

 

- Mamãe? - chamou Steina, levantando-se de seu lugar ao lado de Lauga, que olhava impassível para o pavio dançarino da lamparina ao lado. - Mamãe, deixe que eu pego.

 

Margrét apertou os lábios e silenciosamente deu o casaco molhado a Steina. Então se ajoelhou lentamente e, contendo uma tosse, chegou mais perto de sua cama. A filha a observou enquanto procurava sob o estrado.

 

- Steina?

 

Steina se curvou e ajudou Margrét a puxar uma arca pintada.

 

- Coloque ali na cama, ao lado de Jón.

 

Com alguma dificuldade, Steina ergueu a arca de madeira até os cobertores. Poeira se elevou no ar. Ela observou Margrét soltar a tranca de ferro. Dentro da arca havia roupas.

 

Margrét espiou Agnes tremendo junto ao reverendo, enfiou a mão na arca e tirou um belo xale de lã. Sem uma palavra, caminhou até a cama da outra e, anuindo para Tóti, curvou-se e o colocou sobre os ombros de Agnes.

 

Tóti olhou para o rosto de Margrét à luz fraca e deu um sorriso duro, o rosto pálido.

 

O restante da família observou enquanto Margrét continuava a vasculhar a arca, os lábios apertados com força. Tirou uma saia escura com bordado na bainha e a colocou cuidadosamente sobre os cobertores ao seu lado. Depois fez o mesmo com uma camisa de algodão branca, um corpete bordado e por fim um avental listrado. Alisou as rugas nas dobras do material com as duas mãos.

 

- O que está fazendo, mamãe? - perguntou Steina.

 

- O mínimo que podemos fazer - respondeu Margrét. Ela olhou ao redor do aposento, como se esperando que alguém fizesse alguma objeção, depois fechou a tampa da arca e acenou para que Steina a recolocasse de volta sob a cama.

 

Por um momento Margrét ficou em pé imóvel, olhando para o outro lado do aposento onde Lauga estava sentada na cama. Então, em alguns passos rápidos, atravessou o badstofa e estendeu a mão.

 

- Seu broche - disse.

 

Lauga ergueu os olhos, a boca escancarada. Então, após um momento de hesitação, desceu da cama e se curvou para o chão. Lentamente deu à mãe o prendedor e se sentou, piscando para não chorar. Margrét se virou, colocou o broche de prata no corpete esticado sobre a cama e pegou seu tricô.

 

O mundo parou de nevar, parou de se mover; as nuvens ainda pairam no ar como corpos mortos. As únicas coisas que se movem são os corvos e a família de Kornsá, mas não sei dizer qual é qual: todos estão de preto, movimentando-se em círculos ao redor de mim, esperando para ser alimentados. Para onde foi o tempo? Partiu com o verão. Estou além do tempo. Onde está o reverendo? Esperando junto ao rio em Gönguskörd. Procurando um esqueleto em meio ao musgo, em meio à lava, em meio às cinzas.

 

Margrét toma minha mão nas dela, aperta meus dedos com tanta força que chega a doer.

 

- Você não é um monstro - diz ela. Seu rosto está vermelho, e ela morde o lábio, com intensidade. Seus dedos, trançados aos meus, estão quentes e gordurosos.

 

- Eles vão me matar.

 

Quem disse isso? Eu disse isso?

 

- Vamos lembrar de você, Agnes.

 

Ela aperta mais meus dedos, até eu quase chorar de dor, e então estou chorando. Eu não quero ser lembrada, quero estar aqui!

 

- Margrét!

 

- Estou aqui, Agnes. Você ficará bem, minha menina. Minha menina.

 

Estou chorando, e minha boca está aberta e cheia de algo, está me engasgando e eu cuspo. Há uma pedra no chão e olho novamente para Margrét e vejo que ela não percebeu.

 

- A pedra estava em minha boca - digo, e seu rosto se enruga porque ela não entende. Não há tempo para explicar, ela passou minhas mãos para Steina, como se eu fosse uma lembrança ou um pedaço de pão, e estão todos fazendo a comunhão comigo, e os dedos de Steina estão frios. Ela solta minhas mãos e passa os braços ao redor de meu pescoço. O som de seu soluço é alto em meu ouvido, mas eu me aferro a ela porque seu corpo é quente e não consigo me lembrar de quando alguém me segurou assim pela última vez, quando alguém se importou o bastante para pousar sua face junto à minha.

 

- Eu lamento muito - me ouço dizer. - Lamento muito.

 

Mas não sei pelo que lamento. Todos estão falando e de suas bocas saem bolhas de ar e é difícil segurar o choro, minha coluna está doendo de não chorar, mas eu estou chorando, as lágrimas estão aqui em meu rosto, não sei, talvez sejam de Steina. Tudo está molhado. É o oceano.

 

- Eles vão me afogar? - pergunto, e alguém balança a cabeça. É Lauga.

 

- Agnes - diz ela, e eu digo:

 

- É a primeira vez que você me chama pelo nome.

 

Assim, ela despenca como se eu a tivesse esfaqueado no estômago.

 

- Acho que devemos ir - Tóti diz, e quero me virar para ele, mas não posso, porque estamos todos debaixo d'água e não sei nadar.

 

- Aqui.

 

Uma mão pega meu braço, e sou erguida no ar. O céu chega mais perto, e por um momento vou me chocar contra as nuvens, mas então vejo que eles me colocaram em um cavalo, e como um cadáver eles vão me levar para a cova, como uma mulher morta vão me enterrar na terra, me confinar como uma pedra. Há corvos no céu, mas qual pássaro voa debaixo d'água? Qual pássaro pode cantar sem pedras abaixo dele para escutar?

 

Natan saberia. Preciso me lembrar de perguntar a ele.

 

A neve cobria o vale como um lençol, como uma mortalha, à espera do corpo morto do céu que caiu sobre a cabeça. Tudo terminou, pensou Tóti. Ele fez seu cavalo avançar e o colocou ao lado do de Agnes. Segurando as rédeas com uma das mãos, tirou uma luva e colocou a mão na perna dela. Ao fazer isso, sentiu o fedor quente de urina. Agnes olhou para ele, olhos arregalados. A boca tremia descontroladamente.

 

- Lamento - balbuciou.

 

Tóti apertou a perna dela, tentando chamar a atenção, mas seu olhar disparava por todo o vale.

 

- Agnes - murmurou. - Agnes, olhe para mim.

 

Ela olhou para ele, que pensou que o azul-claro de seus olhos desbotara até ficar quase branco.

 

- Eu estou aqui - disse ele, apertando novamente a perna dela.

 

Junto a ele, cavalgava o oficial distrital Jón, a boca tensionada em uma linha. Tóti ficou surpreso de ver que vários outros homens haviam se juntado a eles, todos vestindo preto, cachecol levantado até a boca para se proteger do ar gelado. Cavalgavam em um grupo espalhado, seus cavalos mordendo os arreios, bufando nuvens de fumaça rígidas.

 

- Reverendo!

 

Um chamado de trás. Quando Tóti se virou, viu um homem grande com cabelos louros compridos vir cavalgando da retaguarda. Quando se aproximou, o homem enfiou a mão no casaco e tirou um pequeno frasco. Deu-o a Tóti sem uma palavra. Tóti assentiu. Ele se inclinou, tomou a mão de Agnes e colocou nela o frasco.

 

- Beba, Agnes.

 

A mulher baixou os olhos para o frasco, depois para Tóti, que confirmou. Após tirar a rolha, Agnes levou o frasco à boca trêmula com as duas mãos e tomou um gole, que a deixou tossindo e cuspindo. Tóti a tranquilizou com palavras suaves.

 

- Tome outro, Agnes - insistiu. - Ajudará.

 

O gole seguinte desceu mais facilmente, e Tóti notou que os dentes dela pararam de bater com tanta violência.

 

- Beba tudo, Agnes - disse o louro. - Trouxe para você.

 

Agnes se virou na sela para ver o homem que falara. Afastou os cabelos escuros compridos do rosto para ver melhor.

 

- Obrigada - sussurrou.

 

Após algum tempo, os cavaleiros haviam subido a cordilheira que levava para fora do vale e viram as primeiras colinas de Vatnsdalshólar. Os montes estranhos pareciam sinistros à luz azul, e Tóti estremeceu com a visão.

 

Agnes havia enfiado o queixo nos cachecóis do pescoço, e seus cabelos haviam caído sobre o rosto. Tóti pensou se o brandy a fizera dormir. Mas enquanto pensava, os cavalos se detiveram, e Agnes ergueu o rosto bruscamente. Baixou os olhos na direção da entrada do vale e começou a tremer.

 

- Chegamos? - perguntou a Tóti num sussurro.

 

O reverendo desmontou e rapidamente deu suas rédeas a outro cavaleiro. Sacudiu a cabeça para se livrar da náusea que tomara conta dele e caminhou sobre a neve, o rangido dos passos a ressoar no ar congelado. Estendeu a mão para Agnes.

 

- Deixe-me ajudá-la a descer.

 

Jón e outro homem o ajudaram a tirar Agnes da sela. Quando eles colocaram seus pés no chão, ela cambaleou e caiu.

 

- Agnes! Aqui, pegue minha mão.

 

Agnes olhou para Tóti com lágrimas nos olhos.

 

- Não consigo mover minhas pernas - grunhiu. - Não consigo mover minhas pernas.

 

Tóti se curvou e passou o braço dela sobre seus ombros. Enquanto tentava erguê-la seus joelhos dobraram, e ambos caíram de novo sobre a neve.

 

- Reverendo! - disse Jón, adiantando-se rapidamente para ajudá-los.

 

- Não! - A palavra saiu como um grito. Tóti olhou para o círculo escuro de homens em pé acima deles. Agnes agarrou seu braço. - Não - disse novamente. - Por favor, deixem que eu a levante. Eu preciso levantá-la.

 

Os homens recuaram enquanto ele se colocava de joelhos, depois se erguia lentamente. Tropeçou, depois se empertigou, fechando os olhos e respirando fundo até a tonteira passar um pouco. Não fraqueje, disse a si mesmo. Curvou-se e ofereceu a mão a Agnes.

 

- Pegue - disse. - Pegue minha mão.

 

Agnes abriu os olhos e a agarrou, as unhas cravando em sua pele.

 

- Não solte - gemeu. - Não me solte.

 

- Não vou soltá-la, Agnes. Estou bem aqui.

 

Cerrando os dentes, ele a ergueu da neve, passando o braço dela sobre seu pescoço para levantá-la mais.

 

- Aí está - disse gentilmente, segurando-a firme pela cintura. Ele ignorou o cheiro de bosta. - Peguei você.

 

Ao redor deles, os fazendeiros do distrito começaram a caminhar na direção das três colinas que formavam um grupo. Já havia mais de quarenta homens ao redor da colina do meio, todos vestindo preto. Parecem aves de rapina cercando sua vítima, pensou Tóti.

 

- Temos de ir com eles? - perguntou Agnes, a voz falhando.

 

- Não, Agnes - disse Tóti, esticando a mão e tirando os cabelos dela do rosto com a mão livre. - Não, só temos de andar um pouco e depois esperar. Fridrik vai primeiro.

 

Agnes anuiu e agarrou Tóti enquanto ele cambaleava lentamente pela neve até um morrote, sustentando-a o melhor que podia. Respirando pesado, ele a baixou gentilmente para o solo coberto de neve e se acomodou ao lado. Jón acocorou-se ao lado deles e pegou o frasco que escorregara de sua mão enluvada. Tóti observou o homem mais velho dar um gole rápido e estremecer.

 

Os minutos se arrastaram. Tóti tentou ignorar as mortais agulhadas geladas que penetravam em seus ossos. Segurou as mãos de Agnes nas suas, e ela tinha a cabeça pousada em seu ombro.

 

- Por que não rezamos, Agnes?

 

A mulher abriu os olhos e olhou para longe.

 

- Posso ouvir um canto.

 

Tóti virou o rosto para a direção de onde vinha o som. Reconheceu o hino fúnebre Assim como a flor. Agnes escutava com atenção, tremendo no chão.

 

- Então vamos escutar juntos - sussurrou ele. Passou um braço sobre ela, enquanto os versos subiam o campo nevado e pousavam neles como uma névoa.

 

À esquerda de Tóti, Jón estava curvado sobre os joelhos, as mãos trançadas diante do corpo, os lábios murmurando o pai-nosso. "Pai nosso, perdoai as nossas ofensas." Tóti agarrou a mão de Agnes com mais força, e ela deu um pequeno soluço.

 

- Tóti - disse, com pânico na voz. - Tóti, eu não acho que esteja pronta. Não acho que eles possam fazer isso. Pode fazer com que esperem? Eles precisam esperar.

 

Tóti puxou Agnes mais para perto e apertou sua mão.

 

- Não vou deixar você. Deus está ao redor de nós, Agnes. Não vou deixar você.

 

A mulher ergueu os olhos para o céu vazio. O som abrupto do primeiro golpe do machado ecoou pelo vale.

 

Os criminosos Fridrik Sigurdsson e Agnes Magnúsdóttir foram hoje levados da custódia para o local de execução. Acompanhando-os ao local, foram os padres reverendo Magnús Árnason, reverendo Gísli Gíslason, reverendo Jóhann Tómasson e reverendo Thorvardur Jónsson, um padre assistente. Os criminosos desejaram que os dois últimos os preparassem para a morte. Depois que o padre Jóhann Tómasson encerrou o discurso de admoestação para o condenado Fridrik Sigurdsson, a cabeça de Fridrik foi cortada com um golpe do machado. O fazendeiro Gudmundur Ketilsson, que recebeu a ordem de ser o carrasco, executou o trabalho que fora invocado a fazer com habilidade e destemor. A criminosa Agnes Magnúsdóttir, que, enquanto isso acontecia, era mantida em um local afastado de onde não podia ver o local da execução, foi então levada. Depois que o reverendo assistente Thorvardur Jónsson a preparou devidamente para a morte, o mesmo carrasco cortou sua cabeça, e com a mesma habilidade de antes. As cabeças sem vida foram então fincadas em duas estacas no local da execução, e seus corpos colocados em dois caixões de tábuas não tratadas e enterrados antes que os homens fossem dispensados. Enquanto isso acontecia, e até que terminasse, tudo foi adequadamente silencioso e ordeiro e foi concluído com um pequeno pronunciamento do reverendo Magnús Árnason aos que lá estavam.

 

                                                                                Hannah Kent  

 

                      

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