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Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de uma boa família originária de outro país. Meu pai era de Bremen e estabeleceu-se primeiro em Hull, onde fez fortuna negociando; só depois foi para York e aí casou com minha mãe, que pertencia a uma família muito considerada daquela região. Daí me veio o nome Robinson Kreutznaer, embora nos chamem Crusoe devido à habitual corrupção das palavras em =Inglaterra. Tinha dois irmãos mais velhos do que eu; um era tenente-coronel de um regimento de infantaria inglesa, comandado pelo famoso coronel Lockart, e foi morto na Batalha de Dunquerque contra os Espanhóis. Quanto ao segundo, nunca soube o que fora feito dele, e meu pai e minha mãe não estavam melhor informados a respeito do seu destino. Como eu era o terceiro rapaz da familia e não tinha aprendido qualquer ofício, comecei a ruminar na minha cabeça grandes projectos. Meu pai, que era muito velho, não me deixava na ignorância; proporcionara-me a melhor educação =que pudera, dando-me lições ele próprio, e enviando-me depois =para uma excelente escola pública em York; destinara-me ao estudo das leis, mas eu tinha outras vistas. O desejo de ir para o mar dominava-me totalmente; esta inclinação opunha-se à vontade e às ordens de meu pai, e tornava-me tão surdo às advertências e súplicas de minha mãe e de todos os meus parentes, que se poderia dizer que desde então uma espécie de fatalidade me arrastava misteriosamente para um estado de padecimento e de miséria. Meu pai, homem grave e sério, deu-me excelentes conselhos para me fazer renunciar a um desígnio em que me via tão persistente.
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Um dia chamou-me ao seu quarto, onde a gota o retinha, e falou-me muito a sério sobre este assunto. Perguntou-me que razão tinha eu, ou antes que loucura era a minha, de querer deixar a casa paterna e a pátria, onde podia ter amparo e boas esperanças de enriquecer pelo trabalho e levando uma vida suave e agradável. Exortou-me, nos termos mais extremosos e ternos, a não fazer uma loucura de rapaz, a não ir ao encontro de males de que a natureza e o meu nascimento me preservavam; fez-me notar que eu não tinha necessidade de ir procurar pão, que faria tudo para me arranjar uma profissão leve e honrosa; que, tal como trabalharia para a minha felicidade, se eu quisesse ficar em casa e estabelecer-me como ele desejava, não queria contribuir para a minha perda favorecendo a minha partida. Concluiu dizendo que tinha diante dos meus olhos o triste exemplo do meu irmão mais velho a quem também tentara, em vão, dissuadir de ir à guerra dos Países Baixos, não conseguindo evitar a sua perda. Acrescentou que nunca deixaria de rezar por mim, mas avisava que, se desse esse mau passo, Deus não me abençoaria e ainda havia de arrepender-me de ter desprezado os seus conselhos. Este discurso foi verdadeiramente profético, embora então não o previsse; e notei que as lágrimas corriam abundantemente pelos seus olhos, sobretudo quando falou na morte do meu irmão. Mas quando disse que eu viria a arrepender-me sem ter ninguém para me consolar, comoveu-se a tal ponto que se interrompeu e confessou que não tinha forças de dizer mais. Comovi-me sinceramente com esse discurso tão terno, e podia eu ser insensível? Resolvi não pensar mais em viagens, e estabelecer-me em casa segundo as intenções de meu pai. Mas ai!, essa disposição passou como um relâmpago: e para =evitar daí em diante as repreensões de meu pai, decidi ir-me embora, sem me despedir dele. Todavia, não o fiz logo, e moderei um pouco o excesso dos meus primeiros movimentos. Um dia que minha mãe parecia mais alegre do que de costume, disse-lhe que a minha paixão de ver o mundo era invencível; que me tornava incapaz de fazer fosse o que fosse com bastante resolução para chegar ao fim, e que meu pai faria melhor em dar-me licença para viajar, do que em obrigar-me a tomá-la por mim próprio. Pedi-lhe que reflectisse no facto de eu ter dezoito anos, e que era muito tarde para recomeçar estudos ou entrar como escrevente em casa de um procurador, e se tal sucedesse tinha a certeza de nunca cumprir com as minhas obrigações, de fugir de casa do mestre para ir embarcar. Mas se quisesse falar a meu favor e obter de meu pai a licença de fazer uma viagem por mar, eu lhe prometia, no caso de voltar e de me não dar bem com essa vida errante, recuperar depois o tempo perdido com toda a minha boa vontade. Ao ouvir isto, minha mãe disse-me, zangada, que seria escusado falar de novo com meu pai sobre aquele assunto; se eu quisesse perder-me, não via outro remédio, mas nunca dariam o seu consentimento, não queriam contribuir para a minha desgraça. Apesar de me ter dito tudo isto, soube depois que contara tudo a meu pai e que, muito magoado, ele dissera suspirando: - Este rapaz podia ser feliz se quisesse ficar em casa; mas será a mais miserável de todas as criaturas se for para =países estrangeiros; nunca consentirei em tal loucura. Só passado um ano consegui escapar-me. Contudo obstinava-me a fechar os ouvidos a todas as propostas que me faziam de seguir uma vida... Muitas vezes até me queixei de que fossem tão firmes em me contrariar numa coisa pela qual sentia tão grande inclinação.
PRIMEIRA VIAGEM
Um dia, estando eu em Hull, onde fora por acaso, e sem ideia alguma formada, encontrei um dos meus amigos que ia embarcar para Londres, no navio de seu pai. Convidou-me a ir com eles, e para melhor me convencer, empregou a linguagem usual dos marinheiros: não me levaria nada pela passagem. Nem consultei os meus pais nem me cansei a mandar-lhes notícias minhas; abandonando a coisa ao acaso, sem mesmo implorar o auxílio do céu nem me importar com as circunstâncias, ou com as consequências, embarquei a bordo de um navio que ia para Londres. Esse dia, o mais fatal de toda a minha vida, foi o 10 de Setembro de 1651. Não creio que alguma vez houvesse aventureiros cujos infortúnios começassem mais cedo e durassem mais tempo que os meus. Apenas o navio saiu o rio de Humber, o vento começou a refrescar e o mar a encapelar-se furiosamente. Como nunca tivesse saído ao mar, a doença e o terror, apoderando-se ao mesmo tempo do meu corpo e da minha alma, mergulharam-me numa angústia que não posso exprimir. Comecei logo a reflectir sobre o que fizera e sobre a justiça divina que castigara em mim um filho vagabundo e desobediente. Desde então as lágrimas de meu pai e as =súplicas de minha mãe - os bons conselhos de ambos, apresentavam-se vivamente ao meu espírito; e a minha consciência, que não estava ainda endurecida como depois, pesava-me por ter desprezado lições tão salutares e ter-me desviado dos meus deveres. A tempestade tornava-se mais violenta, o mar agitava-se cada vez mais; e ainda que isto não fosse nada em comparação do =que vi depois, era o bastante contudo para assustar um marinheiro novato. A cada instante esperava ser tragado pelas ondas todas as vezes que o navio se abaixava, julgava que ia para o fundo para não voltar mais. Nesta angústia, muitas vezes prometi que se Deus me salvasse desta viagem e me fizesse a graça de me ver em terra, nunca mais embarcaria num navio nem me exporia a tais perigos, antes havia de ir direitinho para casa. No dia seguinte o vento abrandara, o mar sossegara e já começava um pouco a acostumar-me. Não deixei de estar triste todo o dia, sentindo-me ainda indisposto com o enjoo. Mas, à proximidade da noite, o tempo limpou, o vento cessou inteiramente, seguiu-se uma noite encantadora; o Sol pôs-se sem nuvens, e no dia seguinte assim nasceu também. O ar que apenas era agitado por uma aragem suave e ligeira, a onda unida como o gelo, o Sol que brilhava nesse espelho, oferecia aos meus olhos o mais delicioso espectáculo. Dormi bem a noite, e, longe de ser ainda incomodado pelo enjoo, estava cheio de coragem, admirando o oceano antes tão irritado e terrível. Mas, receando resoluções =que fo ue eu persistisse nas ara, o ra az veio ter comigo e, batendo-me no ombro disse:
- Então, camarada, aposto que tiveste medo a noite passada. Não é verdade? Aquilo era apenas um sopro. - Como? - disse eu. - chamas àquilo um sopro? Era uma terrível tempestade! - Uma tempestade!? - replicou ele -, que ignorante! Não era nada. Na verdade rimo-nos do vento quando temos um bom navio e estamos ao largo; mas queres que te diga? És ainda um novato. Vamos, toca a beber um punch. Vê que lindo tempo está agora. Enfim, para abreviar esta triste parte da minha história, seguimos o velho costume dos homens do mar: fez-se um punch, embebedei-me; e numa noite de farra mergulhei em álc ól todos os meus arrependimentos, todas as minhas reflexões sobre o procedimento passado e todas as resoluções para o futuro. =Tál como à tempestade sucedera a bonança e a tranquilidade nas águas, também acabada a agitação dos meus pensamentos e dissipado o meu receio, lembrados meus primeiros desejos, esqueci inteiramente as promessas e as penitências que formara durante o perigo. É certo que tinha alguns intervalos de reflexão, que os bons sentimentos voltavam por vezes como acontece nestas ocasiões; mas repelia-os, tratava de curar-me deles como de uma doença. Bebendo e estando sempre acompanhado, evitei a volta desses acessos. De modo que, ao fim de cinco ou seis dias, obtive sobre a minha consciência uma vitória tão completa como a poderia desejar um rapaz que procura abafar os remorsos.
Ao sexto dia de navegação, chegámos à baía de Yarmouth. =O vento era contrário, soprava de sudoeste desde a tempestade, pelo que fomos obrigados a ancorar nesse porto. Durante esses dias muitos navios de Newcastle entraram na baía, onde vão todos os que esperam bom vento para chegar ao Tamisa. Ao oitavo dia, de manhã, o vento aumentou, e toda a tripulação teve ordem de ter tudo preparado para dar ao navio todo o alívio possível. Por volta do meio-dia o mar encapelou-se prodigiosamente: o nosso castelo da popa mergulhava a cada instante, e as vagas inundaram o navio mais de uma vez. O capitão mandou lançar a âncora mestra, e =ainda assim fomos à garra. A tempestade era terrível e eu já via =o assombro e o terror no rosto dos próprios marinheiros. Ainda que o capitão fosse um homem infatigável e competente, ouvi-o muitas vezes proferir devagarinho estas palavras: - Meu Deus, tende piedade de nós! Estamos todos perdidos. Nesta primeira confusão, estava eu estendido imóvel e gelado de terror no meu beliche, que era ao pé do leme, e não sei como exprimir a situação do meu espírito. Não podia sem vergonha recordar-me do meu primeiro arrependimento, que pisara aos pés por um endurecimento terrível do coração. Saí do beliche para ver o que se passava cá fora. Nunca espectáculo tão terrível ferira os meus olhos: as vagas elevavam-se como montanhas, vinham quebrar-se em cima de nós a cada instante. Para qualquer lado que voltasse os olhos, só via consternação. Passaram dois navios junto a nós, pesadamente carregados: tinham os mastros cortados rente, e os nossos marinheiros gritavam que um navio que estava a uma milha acabara de ir para o fundo. Dois outros navios desgarrados tinham sido lançados da baía para o mar alto, vogando sem mastros e à volta. Os navios ligeiros, pelo seu menor peso, estavam menos expostos à tormenta; passaram dois ou três por pé de nós que corriam de vento em popa só com =a vela do gurupés. Para a tarde, o piloto e o contramestre pediram ao capitão licença para cortar o mastro de papafigos; ao que este último mostrou muita relutância: mas o contramestre lembrou-o de que se não o fizesse o navio iria para o fundo infalivelmente, e consentiu; cortado o mastro de papafigos, o grande começou a mover-se com tanta força e dando tais abalos que tiveram que o cortar também, ficando a coberta rasa de um lado a outro. Imaginam como estava eu, que nunca navegara a quem a pequena tempestade anterior causara já tão grande terror. Mas o temporal continuou ainda e com tanta fúria, que os próprios marinheiros confessaram que ainda não tinham visto outro assim: O nosso navio era bom, mas tão carregado e metido na água que os marinheiros gritavam de quando em quando que iam a pique. Tratei de saber o que queria dizer ir a pique, porque ainda não o sabia e antes nunca o soubesse. O temporal era tão violento que eu via o que raras vezes se vê: =capitão, contramestre e alguns outros mais, rezando as suas orações, esperando a cada momento que o navio fosse para o fundo. Para cúmulo de infelicidade, pelo meio da noite, um homem que fora mandado visitar o fundo do porão disse que havia lá uma abertura, e um outro disse que levávamos já quatro pés de água. Então foram todos dar à bomba. Esta só palavra =lançou-me numa tal consternação que me deitei na cama na beira da qual me sentara. Mas os marinheiros vieram tirar-me da letargia, e disseram-me que, nada tendo feito até aqui, podia agora ir dar à bomba como qualquer outro. Por isso me levantei e fui para a bomba, onde trabalhei vigorosamente. Enquanto estas coisas se passavam, o capitão, vendo alguns navios com carvão que, não podendo afrontar o temporal, eram obrigados a fazer-se ao largo e queriam vir ter connosco, mandou disparar um tiro de peça para dar sinal do extremo perigo em que estávamos. Eu, que não sabia o que isso significava, fiquei tão espantado que julguei o navio quebrado, ou que lhe sucedera algum acidente terrível, numa palavra, desmaiei. Como estávamos num momento em que cada um pensava na sua própria vida, não fizeram caso de mim nem do estado em que me encontrava; um outro tomou o meu lugar na bomba, empurrou-me para o lado com o pé, deixou-me todo estendido, por me julgar morto; não tornei a mim senão muito tempo depois. Continuavam a dar à bomba; mas, ganhando a água o fundo do porão, havia toda a probabilidade de que o navio fosse ao fundo; e embora o temporal começasse a abrandar um pouco, não era possível que o navio navegasse até poder entrar num porto, pelo que o mestre persistiu em mandar disparar a peça para pedir socorro. Uma pequena embarcação, que acabava de passar junto a nós aventurou um barco para nos socorrer; foi com muito risco que esse barco se aproximou, e não parecia já possível que nos abordassem nem que nós nele embarcássemos, quando, enfim, fazendo os remadores os últimos esforços e expondo a sua vida para salvar a nossa, lançámos-lhe um cabo com uma bóia e demos-lhe grande largura. Eles, afrontando o trabalho e o perigo, agarraram-na; nós, depois de os ter puxado para a popa, embarcámos no escaler. Era escusado pensar em atracar ao navio dos nossos salvadores: combinámos que nos deixássemos flutuar, mas que o aproássemos o mais que pudéssemos para a terra, e o nosso capitão prometeu que, se o escaler sofresse avaria encalhando na areia, indemnizaria o capitão do outro navio. Ora remando, ora ao sabor do vento, navegámos para norte quase até Winterton-Ness. Não se =passara ainda um quarto de hora depois de termos deixado o nosso navio, quando o vimos ir a pique e foi então que soube, pela primeira vez, o que queria dizer essa expressão em termos de marinha; mas tinha a vista um pouco turvada e mal podia distinguir as coisas quando os marinheiros me disseram que o navio se afundava: porque desde o momento em que eles me tinham embarcado no escaler estava como petrificado, tanto pelo medo que se apoderara de mim como pelas minhas reflexões, que já me faziam sentir todos os horrores do futuro. Durante esse tempo, os nossos marinheiros faziam força de remos para se aproximar da terra tanto quanto possível; e quando o escaler subia com as ondas, víamos ao longe um grande número de pessoas em terra que acudiam à praia para nos socorrer logo que estivéssemos próximo. Mas não =avançávamos para terra, e até não podíamos atracar antes de passar o =farol de Winterton, porque para esse lado a costa segue para oeste, para Cromer, e assim quebrava um pouco a violência do vento. Foi neste lugar, e não sem grandes dificuldades, que saltamos em terra. dali continuámos a pé até Yarmouth, onde fomos tratados =de uma maneira digna para aliviar desgraçados, isto é, com muita caridade, quer da parte do magistrado, que nos proporcionou agasalhos, quer por parte dos mercadores desta cidade e dos proprietários de navios, que nos deram suficiente dinheiro para ir a Londres ou voltar a Hull. Foi então que eu devia ter tido o bom senso de tomar o caminho de Hull para voltar para casa. Mas, como tinha algum dinheiro na algibeira, resolvi primeiro ir-me por terra a Londres. Cheguei a essa cidade, e ali, assim como no caminho, tive grandes questões comigo mesmo sobre o género de vida que devia seguir - se havia de voltar para casa ou ir para o mar. Voltar a casa era evidentemente o partido mais sensato, mas a vergonha afastava de mim essa ideia. Imaginei que seria apontado a dedo por toda a vizinhança, e que teria vergonha de aparecer diante de meu pai e minha mãe, diante de quem quer que fosse. Tive muita vez ocasião de notar o pouco sensato que é, em vez de seguir pela razão, ter ao mesmo tempo vergonha de pecar e vergonha de se arrepender.
Fiquei algum tempo neste estado de irresolução não =sabendo que modo de vida seguir, À medida que o tempo passava, a lembrança da minha última desgraça apagava-se da minha imaginação, e se me voltavam alguns leves desejos de regressar esmoreciam logo de tal modo que afinal deixei completamente de pensar nisso e procurei fazer uma nova viagem num navio que ia para as costas de África. Resolvi embarcar nele.
SEGUNDA E TERCEIRA VIAGENS - CATIVEIRO
Em todas estas aventuras, foi uma desgraça para mim não ter embarcado na qualidade de simples marinheiro; ter-me-ia, é certo, sujeitado a um trabalho muito duro, mas em compensação teria aprendido navegação, e seria capaz de vir a ser piloto, imediato, e talvez capitão de um navio. Mas, nisto como em tudo o mais, estava escrito que eu havia de escolher o pior; e sentindo-me com dinheiro na algibeira e bom fato no corpo, não queria ir para bordo senão com ares de fidalgo; desta maneira nem aprendi qualquer trabalho nem fiquei em estado de vir a tê-lo. Logo que cheguei a Londres, tive a felicidade de cair em boas mãos: coisa que nem sempre acontece a um rapaz estouvado como eu era. A primeira pessoa com quem travei conhecimento foi com um capitão de navios, que estivera na costa da Guiné e, tendo lá sido feliz resolvera voltar. Esse homem gostou da minha conversa e, ouvindo-me dizer que tinha vontade de ver mundo, propôs-me embarcar com ele nessa mesma viagem: assegurou-me que não seria obrigado a fazer a menor despesa, que comeria com ele e seria o seu companheiro; que se eu quisesse levar alguma coisa comigo, gozaria de todas as vantagens que o comércio pode proporcionar, e que talvez o lucro que daí me proviesse não frustrasse as minhas esperanças. Aceitei a oferta do capitão, que era um homem franco e honrado. Aventurei nesta empresa uma soma de quarenta libras esterlinas, que empreguei em quinquilharias, segundo os seus conselhos. Juntara eu esse dinheiro com o auxílio de alguns dos meus parentes, que tinham correspondência comigo, e que, como julgo, tinham levado meu pai e minha mãe a contribuir secretamente com esta soma para a minha primeira aventura. Posso dizer que, de todas as minhas viagens, foi esta a única que teve êxito; devo muito à boa-fé e =à generosidade do meu amigo capitão; porque entre muitas vantagens que tirei com ele, tive a de aprender sofrivelmente a matemática e as regras da navegação, a avaliar =precisamente a marcha de um navio, e a orientar bem as velas. Se ele tinha gosto em me ensinar, tinha-o eu também em aprender: de tal modo que esta viagem me tornou ao mesmo tempo marinheiro e mercador. Com efeito, trouxe cinco libras e nove onças de pó de oiro à minha parte; com o que ganhei, em Londres, perto de trezentas libras esterlinas. Este êxito inspirou-me vastos projectos, que depois causaram a minha ruína. Este bom amigo, o capitão de navios, morreu poucos dias depois da nossa volta a Londres. Mas resolvi tornar a fazer a mesma viagem. Deixei em depósito, nas mãos da viúva do capitão, duzentas =libras esterlinas, levei comigo mercadorias no valor das outras cem, e embarquei no mesmo navio, com um homem que da primeira vez fora o piloto e desta era o comandante. Nunca fizeram viagem tão desgraçada. Navegando entre as Canárias e as costas de África, fomos surpreendidos, ao romper do dia, por um corsário turco de Salé, que nos deu caça a =todo o pano. Enfunámos todas as velas para nos safarmos, mas vendo que o corsário se aproximava e que ao fim de algumas horas seríamos alcançados, fomo-nos preparando para o combate. Tínhamos a bordo doze peças de artilharia; o corsário tinha dezoito. Pelas três horas da tarde, estava ao alcance de tiro de peça, começou o ataque; mas começou mal, porque, em vez =de nos atacar pela popa, como pretendia, deu a descarga para um dos nossos bordos. Nós, então, apontámos-lhe oito dos =nossos canhões para sustentar o ataque, e demos uma descarga que o fez recuar, não sem nos ter respondido, fazendo começar a sua fuzilaria, que era de duzentos homens. Os nossos marinheiros conservavam-se firmes; nenhum deles fora ferido. O corsário preparou-se para renovar o combate, e nós para o sustentar. Mas vindo do outro lado à abordagem sessenta dos seus, lançaram-se à nossa coberta, e começaram à machadada, =cortando e talhando mastros e enxárcias. Recebíamo-los a tiros de mosquete, à lança, à espada e outras armas, conseguindo expulsá-los da coberta por duas vezes. Mas não quero insistir nesta época lúgubre da minha história; depois de desamparado =o navio, com três marinheiros mortos, outros oito feridos, fomos obrigados a render-nos e fomos levados prisioneiros a Salé, um porto pertencente aos Mouros. Os maus tratos que ali sofri não foram tão terríveis como eu imaginava; os nossos marinheiros foram levados para o interior do país, ao sítio onde o imperador vivia, mas eu fiquei como parte do quinhão do corsário porque era novo e ágil, e assim =próprio para o seu navio. Uma tal mudança de condição, que de homem livre me tornava escravo, emergiu-me no desespero. Recordei-me do discurso verdadeiramente profético de meu pai, que me predissera que havia de vir miserável e que não havia de ter ninguém para me socorrer na minha miséria. Não conhecendo =grau mais alto de calamidade, parecia-me que a predição estava inteiramente realizada, que a mão de Deus caíra sobre mim, e que estava perdido e sem recurso. Mas isto não era senão uma amostra dos males que devia sofrer, como se verá no seguimento desta história. Esperava eu que o meu novo senhor me levasse quando fosse para o mar, que o seu destino seria, mais tarde ou mais cedo, ser aprisionado por um navio de guerra espanhol ou português e que desse modo resolveria a minha liberdade; mas essa esperança desvaneceu-se logo, porque, quando embarcou, deixou-me em terra para tratar do seu jardinzinho e fazer o trabalho habitual de um escravo em casa; e quando voltou ordenou-me que dormisse no seu camarote para guardar o navio. Quando estava a bordo, só pensava em fugir; mas depois de ter pensado bem nisso, não achava expediente algum que pudesse satisfazer um espírito razoável porque não tinha ninguém =em quem me fiasse, ninguém que quisesse embarcar comigo, nenhum companheiro de escravatura: de tal modo que, durante dois anos inteiros, não vi a menor oportunidade de executar tal projecto, apesar de entreter muitas vezes a minha imaginação com esta ideia. Só depois veio uma ocasião bastante singular, que despertou em mim o pensamento de trabalhar para recuperar a minha liberdade. O meu patrão ficava em terra mais do que de costume e não equipava o seu navio - e isso por falta de dinheiro, segundo vim a saber - mas não deixava de sair, duas ou três vezes por semana, com a grande chalupa para pescar na enseada. Nessas ocasiões levava-me consigo, assim como a um jovem escravo mouro, para remar no barco; nós ambos divertíamo-lo e eu mostrava-me muito hábil na pesca: enfim, o meu patrão estava tão contente comigo, que às vezes mandava-me com um dos seus parentes chamado Ismael e com o jovem escravo para lhe pescar um prato de peixe. Aconteceu que, uma vez, tendo nós ido pescar de manhã, com uma grande calmaria, levantou-se de repente um nevoeiro tão espesso que nos tirou a vista de terra, apesar de não estarmos afastados dela senão meia =légua: pusemo-nos a remar sem rumo certo; trabalhámos todo o dia e toda a noite seguinte: no dia seguinte pela manhã achámo-nos no mar alto; em vez de nos aproximarmos da praia, tínhamo-nos afastado dela pelo menos duas léguas; mas voltámos a salvo, não sem muito custo =e até com bastante perigo, porque o vento começava a estar um pouco forte, e sobretudo tínhamos muita fome. Este acidente tornou o nosso patrão mais acautelado para o futuro. Resolveu não ir mais à pesca sem uma bússola e =algumas provisões, de mais a mais tendo à sua disposição o =grande escaler do navio inglês que ele nos tirara. Assim, ordenou ao seu carpinteiro, que era também um escravo inglês, que construísse, no meio desse escaler, uma cabana semelhante à de uma barca, deixando suficiente espaço à popa e à proa: à =popa para manejar o leme e içar a vela grande; à proa para o movimento livre de duas pessoas que pudessem fazer toda a manobra. Este escaler navegava com uma vela latina ou triangular que passava por cima do camarote; neste camarote, que era muito baixo, o capitão tinha bastante lugar para se deitar ele e um ou dois escravos, e ainda para uma mesa e pequenos armários de guardar os licores, o pão, o arroz e o café. O meu patrão saiu muitas vezes com este barco para ir =à pesca; e como eu tinha a habilidade de lhe apanhar muito peixe, nunca ia sem mim. Ora aconteceu combinar ele um passeio com dois ou três mouros de alguma distinção, nesse escaler, para pescar e divertir-se. Com esse fim, fez provisões extraordinárias, que mandou embarcar na véspera, e ordenou-me que tivesse prontas três espingardas com chumbo e pólvora, porque tencionavam também caçar. Preparei todas as coisas conforme as suas ordens. No dia seguinte pela manhã esperava-o no escaler, que eu tinha lavado muito bem e onde arvorara bandeiras e enfeites; numa palavra, não esquecera nada do que podia contribuir para receber bem os hóspedes, quando vi chegar o meu patrão sozinho. Disse-me que os seus convidados tinham transferido o passeio para outra ocasião por causa de alguns negócios. Ordenou-me ao mesmo tempo que fosse com o escaler, acompanhado, como de costume, pelo homem e pelo rapaz, pescar-lhe algum peixe, porque os seus amigos deviam vir cear com ele, e acrescentou que o trouxesse logo que o pescasse. Esta circunstância fez renascer o meu primeiro desígnio de me libertar da escravatura e agora com um pequeno navio sob o meu comando; e logo que o meu senhor se retirou, comecei a preparar-me, não para uma pesca, mas para uma viagem, apesar de não saber que caminho havia de seguir. Bastava afastar-me dessa triste terra.
O primeiro passo que dei foi dirigir-me a esse mouro, com o precioso pretexto de prever o nosso sustento pelo tempo que estivéssemos embarcados. Disse-Lhe que não devíamos comer pão do nosso patrão; respondeu-me que tinha razão: por consequência foi buscar um cesto de bolacha e três bilhas de água fresca. Eu sabia o sítio onde era a adega, fui lá buscar garrafas e levei-as para o escaler, enquanto o mouro estava em terra. Transportei ainda para ali um grande pedaço de cera que pesava mais de cinquenta libras, um pacote de pavio, um machado, um martelo; todas essas coisas que me foram, depois, de uma grande utilidade, sobretudo a massa de cera para fazer velas. Armei ao meu companheiro uma outra rede, onde caiu de boa-fé, já verão como. - Ismael - disse-lhe eu - temos aqui as espingardas do nosso patrão; não podes dar-nos pólvora e chumbo de caça? =Porque talvez pudéssemos matar, para nós, alcamias (*), e sei que deixou a bordo do navio as provisões da santa barba. - Sim - replicou ele - vou procurá-la.
E efectivamente, trouxe logo duas bolsas de couro, uma muito grande, onde havia perto de libra e meia de pólvora ou mais; a outra cheia de chumbo, com algumas balas, pesava bem cinco ou seis libras. E metemos tudo isso a bordo. Encontrei pólvora no camarote do capitão, e enchi com ela uma das grandes garrafas que achara na adega, depois de ter deitado numa outra o pouco que havia dentro.
(*) Aves do mar da espécie dos nossos maçaricos-reais.
EVASÃO
Tendo-nos assim provido, com todas as coisas, no corsário, fizemo-nos de vela e saímos do porto para ir à pesca. Os guardas do castelo que está à entrada do porto sabiam quem =nós éramos, e não fizeram caso da nossa saída. Mal estávamos a =uma milha no mar, quando amainámos a vela e nos assentámos para pescar. O vento soprava de nor-nordeste, e, por consequência, era contrário aos meus desejos; porque se fosse sul, tinha a certeza de alcançar a costa de Espanha e pelo menos de aportar à baía de Cádis. Mas, de qualquer lado que viesse o vento, =a minha resolução estava tomada de deixar essa vida horrível =e de entregar-me ao meu destino. Pescámos muito tempo sem agarrar nada, porque, quando sentia um peixe no meu anzol, não tratava de o tirar para fora de água, com medo que o mouro visse. Disse-lhe então: - Não fazemos nada que preste; o nosso amo não atende a desculpas, quer ser bem servido; temos de ir mais longe. Ele, que de nada desconfiava, teve a mesma opinião; foi para a proa e dispôs as velas para isso. Eu, que ia ao leme, levei o escaler a perto de uma légua mais longe; depois do que fiz amainar fingindo que queria pescar. Mas, de repente, entregando a cana do leme ao rapazito, avancei para o mouro, que estava à proa, e, fingindo baixar-me para apanhar qualquer coisa que estava por trás dele, agarrei-o de surpresa nas pernas e lancei-o imediatamente ao mar. Veio logo à tona de água porque nadava como um peixe; chamou-me, suplicou-me que o recebesse a bordo, disse que me seguiria até ao fim do mundo se assim eu quisesse. Nadava com tanto vigor atrás do bote, que o alcançaria decerto, porque fazia pouco vento; com receio disso, corro à cabana, tiro uma das espingardas, aponto-a e dirijo-lhé estas palavras: - Escute, meu amigo: nunca lhe fiz mal, nem lho farei desde que não avance mais. Sabe nadar bastante para alcançar a terra e o mar está sossegado; mas se se aproximar do meu barco, rebento-lhe a cabeça, porque estou resolvido a recuperar a minha liberdade. Não replicou. Voltou-se para o outro lado e pôs-se a nadar para a costa. Era um excelente nadador e não duvido que a alcançasse. Depois de me livrar do mouro da maneira que acabo de dizer, voltei-me para o jovem escravo mouro, que se chamava Xuri: - Xuri, se me queres ser fiel, tratar-te-ei bem; mas se não me juras isso por Maomé, deito-te também ao mar. O rapaz sorriu e falou-me tão inocentemente que me tirou toda a sombra de desconfiança; depois fez juramento de me ser fiel e de ir comigo para onde eu quisesse. Enquanto o mouro, que continuava nadando, esteve ao alcance da minha vista, não mudei de rumo, parecendo-me melhor orçar contra o vento, a fim de que julgassem que eu ia para o estreito. Efectivamente, não se podia imaginar que um homem no seu juízo pudesse tomar outro rumo, nem que navegasse para sul, para regiões bárbaras, onde tribos de negros nos envolveriam com as suas canoas, para nos degolar, e além disso não poderíamos desembarcar sem =nos expormos a ser devorados, por animais ou homens selvagens, mais cruéis que os próprios animais. Mas logo que começou a escurecer e vi que se aproximava a noite, mudei de rumo e naveguei direito ao sul quarto sudeste, inclinando um pouco a leste, para não me afastar muito de terra; e como tinha vento favorável, e a superfície do mar estava risonha e sossegada, fiz tanto caminho que julgo que no dia seguinte às três horas da tarde, quando avistei de longe a terra, podia estar a cento e cinquenta milhas de Salé, para sul, muito para lá dos domínios do imperador de Marrocos, ou de algum dos reis seus vizinhos; não avistávamos navio algum. Contudo receava muito os Mouros, e tinha tanto medo de lhes cair nas mãos que não quis nem parar, nem desembarcar, nem lançar a âncora; continuei o meu caminho durante cinco dias inteiros enquanto durou esse vento favorável que depois mudou para sul. Então concluí que se algum navio de Salé me perseguisse, me daria caça sem se cansar muito. Assim aventurei-me a chegar-me para a costa; ancorei na foz de um pequeno rio cujo nome ignorava. Não vi ser vivo algum, nem tentei encontrar.
Do que precisava mais era de água fresca. À tarde entrámos nessa pequena baía. Resolvi, logo que fosse noite, ir a nado e reconhecer o país. Mas, ao cair da noite, ouvimos um barulho tão terrível, causado pelos urros e rugidos de animais ferozes cuja espécie não conhecíamos, que o pobre rapazito quase ia morrendo de medo, e suplicou-me instantemente que não desembarcasse enquanto não fosse dia. Cedi ao seu pedido, e disse-lhe: - Não, Xuri, não quero desembarcar agora; mas também o =dia poderá fazer-nos ver homens que são tanto para temer como esses animais ferozes. - Então - replicou rindo -, nós disparar a eles bom tiro de espingarda, para fazer eles fugir. Gostei de o ver com tanta coragem e, para o animar mais, dei-lhe um cálice de licor. Lançámos a âncora pequena, e ficámos sossegados toda a noite embora não fosse possível dormir, pois não tardámos a ver animais de um tamanho extraordinário, de muitas espécies, aos quais não sabíamos =que nome dar, que desciam à praia e corriam à beira-mar, onde se lavavam e se espojavam, para se refrescarem; soltavam gritos tão horríveis que ainda não ouvi na minha vida coisa que se parecesse. Xuri estava cheio de medo e eu também não estava isento dele. Mas ainda foi pior quando ouvimos um desses animais enormes nadar em direcção ao nosso barco! Na verdade, não podíamos vê-lo; mas era fácil conhecer, =pelo ruído das ventas, que devia ser um animal prodigiosamente grande e furioso. Xuri dizia que era um leão, e podia bem ser. O pobre rapaz gritava-me que levantasse ferro e fugíssemos à força de remos. Mas respondi-lhe que não era necessário, =que bastava afastar-nos para o mar, e que o leão (se era um só) não podia com certeza seguir-nos até tão longe. Mal acabara =de pronunciar estas palavras quando vi esse animal, que não estava a menos de quatro toesas de mim, o que me assustou a valer; corri então ao camarote, peguei na espingarda e disparei sobre o animal: o que o determinou a virar de bordo o mais depressa possível e a voltar a nado para a praia. É impossível dar uma ideia exacta dos gritos e dos urros terríveis que se levantavam, tanto na praia como nas terras distantes, com a detonação da espingarda, e parece-me muito provável que esses animais nunca tivessem ouvido antes ruído semelhante. Isto fez-me ver claramente que não era conveniente aventurar-me a essa costa durante a noite; mesmo durante o dia, poderia cair entre as mãos dos selvagens ou entre as garras dos tigres ou dos leões. No entanto, era necessário desembarcar em alguma parte para procurar água doce, porque não tínhamos nem meia canada dela, mas onde?, e quando? Era essa a dificuldade. Xuri disse-me que se eu o deixasse ir a terra com uma bilha, faria diligência de descobrir água, se a houvesse e que ma traria. Perguntei-Lhe por que é que ele queria ir lá; se não era melhor que fosse eu mesmo e ele ficasse a bordo. Respondeu-me com tanta afeição, que fiquei a gostar ainda mais dele: - É para que se os selvagens vir, eles comam mim e o senhor salvar-se. - Então iremos ambos; se os selvagens vierem, matamo-los e não lhe serviremos de presa nem um nem outro. Depois disto, dei-lhe a comer um bocado de bolacha e fi-lo beber um cálice de licor; atracámos o mais perto que pudemos da praia, e desembarcámos, levando connosco só as armas e duas bilhas. Não me atrevia a afastar tanto do barco que o perdesse de vista, com receio que os selvagens descessem à beira do rio com as suas canoas; mas o rapaz afastou-se cerca de uma milha e voltou depois com um animal que parecia uma lebre, com a diferença que era de outra cor e tinha as pernas mais compridas; a carne era excelente, e essa façanha causou-nos muita alegria. Xuri tinha achado água sem ter visto selvagens, e era para me dar essa boa notícia que se apressara tanto. Vimos depois que não era necessário ter muito trabalho para arranjar água porque a maré subia muito pouco à praia, e quando estava baixa a água do rio era doce pouco acima da foz; enchemos pois as bilhas, regalámo-nos com a lebre que tínhamos morto e dispusemo-nos a continuar o nosso caminho, sem ter notado, nessa região, vestígios de criatura humana. Como eu já fizera uma viagem para esse lado sabia que as ilhas Canárias e as de Cabo Verde não estavam longe. Mas sem instrumentos próprios para tomar a latitude, ignorava onde devia procurá-las e para que sítio devia dirigir o rumo. =Senão teria podido alcançar facilmente alguma dessas ilhas; mas tinha esperança de chegar até essa parte onde os Ingleses fazem o seu comércio, onde encontraria algum dos navios que iam e vinham de carreira e que talvez nos recebesse. Se os meus cálculos não falhavam, o sítio onde =estávamos então devia ser essa região situada entre as terras do imperador de Marrocos e a Negrícia, inteiramente deserta e habitada apenas por animais ferozes. Outrora havia ali negros, que depois se retiraram mais para o Sul, com medo dos Mouros e estes não se estabeleceram aí por causa da esterilidade da terra. A quantidade prodigiosa de tigres, leões, leopardos e outros animais ferozes que infestam o país também ajudou a afastar os homens. Os Mouros só lá vão =para caçar e em grupos de dois ou três mil homens por cada vez. Efectivamente, numa extensão de perto de cem milhas, não víamos senão vastos desertos durante o dia e durante a noite não ouvíamos senão urrar e rugir. Pareceu-me ver, mais de uma vez, o Pico da ilha de Tenerife, uma das Canárias. Tinha tanta vontade de me dirigir para o mar alto, para tentar alcançá-la, e foi o que fiz por duas vezes; mas sempre os ventos contrários e o mar muito encapelado me obrigaram a retroceder. Fez-me isto resolver continuar a pôr em prática a minha primeira intenção, que era a de seguir a costa. Enquanto navegámos assim, fomos muitas vezes obrigados a desembarcar para nos fornecermos de água; uma vez fundeámos debaixo de uma pequena ponta que era bastante elevada; como a maré enchia, esperávamos tranquilamente que nos levasse mais adiante. Xuri, que tinha a vista mais penetrante que a minha, chamou-me devagarinho e disse que era melhor afastarmo-nos da margem:
- Não vê o monstro terrível que dorme ali naquele =montículo? No ponto que ele me indicava vi um monstro aterrador; era um leão de um tamanho disforme, deitado numa pequena cavidade que o punha à sombra. - Xuri - disse eu então -, vai a terra e mata-o. Xuri, muito assustado, deu-me esta resposta: - Mim matar ele?!, ai de mim, ele papar mim de uma só trincadela! Não lhe falei mais nisso, mas disse-lhe que não fizesse barulho. Tínhamos três espingardas. Agarrei na maior, que tinha quase calibre de mosquete, meti-lhe uma boa carga de pólvora e três grandes balas, e pu-la ao meu lado; peguei numa outra que carreguei com duas balas, e finalmente meti cinco cartuchos na terceira. Depois, pegando na que primeiro carregara, levei um pouco de tempo a apontar e disparei sobre a cabeça do animal, mas como estava deitado de maneira que uma das suas patas Lhe passava por cima do focinho, as balas alcançaram-no junto do joelho e quebraram-lhe o osso da perna. Levantou-se logo, rugindo, mas tornou a cair, depois outra vez se levantou sobre as três pernas, a rugir com uma força espantosa. Surpreendido por não o ter ferido na cabeça peguei logo noutra espingarda, e apesar dele começar a mexer-se e a fugir, o segundo tiro acertou-lhe na cabeça, e tive o prazer de o ver cair debatendo-se na agonia. Então Xuri pediu-me para ir a terra, deitou-se à água levando uma espingarda numa das mãos e nadando com a outra. Chega ao pé do animal e aplicando-lhe ao ouvido o cano da espingarda, dispara um terceiro tiro que o matou. Na verdade, essa expedição divertiu-nos, embora não nos desse de comer, e eu estava zangado por perder três cargas de pólvora e de chumbo num animal que não nos servia de nada. No entanto Xuri disse que queria dele alguma coisa. Veio para bordo e pediu-me o machado. - Mim cortar cabeça a ele. Mas isso era superior às suas forças, e contentou-se em lhe cortar uma pata, que trouxe; era de uma grossura monstruosa. Pensei depois que a sua pele poderia ser-nos útil, e resolvemos esfolá-lo. Xuri era mais entendido nessa =operação, que nos ocupou todo o dia; estendemos o couro sobre o camarote e o sol secou-o em dois dias; servi-me depois dele à maneira de manto. Continuámos o nosso caminho durante mais dez dias e notei que a costa era habitada; em dois ou três sítios vimos gente que vinha à praia ver-nos passar: notámos mesmo que eram negros e estavam nus. Tinha vontade de desembarcar e ir ter com eles, mas Xuri, que me dava sempre bons conselhos, dissuadiu-me disso; mesmo assim naveguei perto de terra para poder falar-lhes. Começaram a correr ao longo da praia; notei que não tinham armas, a não ser um deles, que trazia na mão uma vara que Xuri disse ser lança, e que eles sabiam atirar muito longe e com muita certeza. Por isso conservei-me a uma distância respeitosa, e falei-lhes por sinais o melhor que pude, pedindo-lhes qualquer coisa que comer; fizeram-me sinal para parar o barco, e que me iam buscar o que pedia. Amainámos a vela. Dois desses homens correram um pouco para dentro das terras e, em menos de meia hora, estavam de volta. Traziam dois pedaços de carne e cereais, cuja espécie não adivinhávamos mas desejávamos aceitar. Restava saber como ir buscá-los a terra; tínhamos medo deles e eles medo de nós. Até que trouxeram para a praia o que tinham para nos dar, e pondo tudo no chão retiraram-se e conservaram-se muito longe, até que fomos buscar o que nos era oferecido; depois voltaram à praia, onde agarraram numa garrafa de licor que eu aí deixara em paga dos seus víveres. Deixara lá também as nossas bilhas que eles encheram de =água, e que nós tornámos a ir buscar a terra com as mesmas precauções. Com estas provisões fiz-me de vela, e continuei a navegar para sul, durante onze dias, durante os quais não tive vontade nenhuma de me aproximar de terra.
No fim deste tempo vi que o continente se alongava muito para o mar: estava na minha frente, a quatro ou cinco léguas de distância; fazia uma grande calmaria e dei uma volta grande para chegar à ponta: lá cheguei, e, quando a dobrei, estava a duas léguas do continente, vendo distintamente outras terras do lado oposto. Então conclui, acertadamente, que tinha de um lado o Cabo Verde, e do outro as ilhas do mesmo nome. Não sabia ainda, porém, para qual dos dois lados me devia voltar: porque se viesse um vento forte podia muito bem não chegar nem a um nem a outro.
CHEGADA E DEMORA NO BRASIL
Entrei no camarote, deixando a Xuri o cuidado do leme; de repente, muito assustado, o rapaz gritou: - Patrão, patrão, mim ver um navio à vela. Saí com precipitação do camarote e não só vi o navio, =como também reconheci que era português. Julguei que fosse um desses que fazem o comércio de negros na costa da Guiné, mas quando notei o rumo que seguia, percebi que ia para outra parte e que não tencionava aproximar-se de terra. Soltei todo o pano e fiz força de remos para me dirigir para o alto mar, para tentar alcançá-lo. Quando começava a perder a esperança pareceu-me que me tinham avistado com os seus óculos de bordo, e que, tomando-nos pelo escaler de qualquer navio europeu que tivesse ido a pique, diminuíam a marcha para nos dar tempo de alcançá-los. Isso inspirou-me coragem; como tinha a bordo uma pequena bandeira, fi-la subir às enxárcias, para Lhes dar a entender que estávamos em perigo, e atirei um tiro de espingarda. Notaram muito bem uma coisa e outra, porque me disseram depois que tinham visto o fumo, apesar de não terem ouvido o tiro. A estes sinais amainaram as velas; e tiveram a humanidade de parar por minha causa, de sorte que em três horas cheguei ao pé deles. Perguntaram-me em português, em espanhol e em francês, quem eu era; mas eu não entendia nenhuma dessas línguas. Finalmente, um marinheiro escocês, que estava a bordo, dirigiu-me a palavra. Respondi-lhe que era inglês e fugido à escravatura dos mouros de Salé. Então convidaram-me para vir para bordo, e =aí me receberam generosamente com tudo o que me pertencia. A alegria que senti ao ver-me assim libertado de uma condição tão miserável e tão desesperada é verdadeiramente inexprimível. Ofereci ao capitão do navio tudo o que tinha, para Lhe testemunhar o meu agradecimento, mas ele teve a generosidade de não aceitar nada. - Quando lhe salvei a vida, não fiz senão o que desejava que me fizessem a mim em idênticas circunstâncias: e quem sabe se não estou destinado a chegar a esse mesmo estado? Além de que, se depois de o ter levado para um país tão afastado como é =o Brasil, eu aceitasse tudo o que tem, o senhor expunha-se a morrer de fome, e assim eu não fazia senão tirar-Lhe a vida que lhe salvei. Não, não, senhor inglês - continuou ele - quero levá-lo para esse país puramente por humanidade; esses objectos servir-lhe-ão para comprar com que viver, e para arranjar meios para voltar para o seu país. Se esse homem parecia caridoso nas ofertas que me fez, não se mostrou menos escrupuloso nem menos exacto em as cumprir: proibiu a todos os marinheiros que tocassem em qualquer coisa minha, pôs tudo em depósito, e deu-me um inventário. Quanto =ao meu escaler, era muito bom e ele bem o sabia; por isso propôs-me comprá-lo para o fazer servir no navio, e perguntou-me o que queria em troca. Respondi-Lhe que ele fora tão generoso em tudo comigo, que não queria fazer preço mas que me desse ele o que quisesse; propôs-me passar uma obrigação de oitenta peças de oiro. Além disso, =ofereceu-me sessenta peças de oiro pelo meu criado Xuri; mas custou-me a aceitá-las, não porque não tivesse vontade de o deixar ao capitão, mas não podia resolver-me a vender a liberdade desse pobre rapaz, que tão fielmente me ajudara a recuperar a minha. Expliquei ao capitão o meu escrúpulo ao que ele me respondeu que o achava muito digno, e propôs prometer por escrito que se comprometia a libertá-lo dentro de dez anos. Entreguei Xuri ao capitão, uma vez que o rapaz gostou da proposta. Tivemos boa viagem até ao Brasil, depois de vinte e dois dias chegámos à baía de Todos os Santos. Não saberia louvar =a generosidade com que o capitão me tratou. Não quis levar nada pela minha passagem, deu-me quarenta ducados pela pele do leão, ordenou que me restituíssem exactamente tudo o que eu tinha a bordo, e comprou tudo o que eu quis vender, como uma caixa de garrafas, duas das minhas espingardas e o que me restava da cera. Numa palavra, fiz cerca de duzentas peças de oiro, e com estes fundos desembarquei no Brasil. Pouco tempo depois, o capitão recomendou-me a um homem muito honrado, dono de uma plantação e de uma fábrica de açúcar. Vivi algum tempo na sua casa, onde aprendi a maneira de cultivar a cana e fazer o açúcar. Vendo a abastança em que viviam os plantadores, e com que facilidade enriqueciam, resolvi tentar obter licença, estabelecer-me nesse país e fazer-me plantador; ao mesmo tempo procuraria mandar vir de Londres os fundos que ali deixara, para os empregar no melhoramento do meu estabelecimento. Assim preveni-me com cartas de naturalização, comprei terras que ainda não tinham dono e formei um plano da plantação e =do estabelecimento, tudo proporcional aos fundos que contava receber de Inglaterra. Tinha um vizinho português que nascera em Lisboa, de pais ingleses; chamava-se Wells e os seus negócios achavam-se pouco mais ou menos na mesma situação =que os meus. Chamo-lhe meu vizinho porque a sua plantação comunicava com a minha, e porque vivíamos em boas relações. Tínhamos poucos fundos um e outro, e para dizer a verdade durante perto de dois anos só plantámos para ter o que comer. Mas passado esse tempo começámos a fazer progressos, a nossa terra começou a ser produtiva; de tal maneira que ao terceiro ano plantámos tabaco, e tivemos cada um uma grande porção =de terra pronta a receber canas no ano seguinte. Mas precisávamos de auxílio, e sentia, mais do que nunca, o mal que fizera em me desfazer do meu criado Xuri. Não era de admirar que tivesse andado mal, eu que nunca andara bem. Não via remédio algum para a minha pena, a não ser na continuação do meu =trabalho; entreguei-me assim a uma ocupação muito diversa da minha inclinação e contrária ao género de vida que fazia as =minhas delícias e pelo qual abandonara a casa de meu pai. Muitas vezes dizia comigo: "De que me serviu ter atravessado vastos mares, ter percorrido mais de mil e seiscentas léguas? Não podia fazer em Inglaterra o que faço aqui trabalhar ao pé dos meus pais e dos meus amigos, tão bem como o faço entre estrangeiros e selvagens?" Vê-se por isto que eu nunca pensava na minha situação, =senão para me afligir. Só tinha esse vizinho com quem conversava de quando em quando; não se fazia obra alguma em minha casa senão com o trabalho das minhas mãos, como se vivesse sozinho numa ilha deserta. Mas se os homens são bastante injustos para comparar o seu estado presente a um outro que não é pior, =não é justo que a Providência os castigue com a infelicidade para os convencer da sua felicidade passada pela sua própria experiência? E não merecia eu bem vir a ser um dia esse homem que imaginava vivendo miseravelmente numa ilha absolutamente deserta? O capitão que me recebera a bordo continuava a ser meu amigo. Demorou-se três meses a carregar o navio e a fazer os preparativos da sua viagem. Um dia, falando-lhe eu dos pequenos fundos que deixara em Londres, fez-me esta boa oferta: - Se o senhor quiser dar-me uma carta dirigida à pessoa que tem o seu dinheiro em Londres, com ordem de o enviar para Lisboa, depois de o ter convertido em mercadorias negociáveis neste país, prometo-lhe, contando com a graça de Deus, trazê-las quando voltar; mas como as coisas humanas estão sempre sujeitas a contratempos, aconselho-o a não pedir senão cem libras esterlinas que diz ser metade da sua fortuna para as aventurar com uma primeira tentativa; se chegarem a salvo poderá mandar vir o resto pela mesma via. O melhor que eu tinha a fazer era seguir esse conselho. Dirigi à viúva do capitão uma relação exacta das =minhas aventuras com todas as instruções necessárias para me mandar =o meu dinheiro. A viúva, não contente em mandar o dinheiro mandou, do seu bolso, um presente de vinte e cinco libras esterlinas ao capitão português, em reconhecimento pela humanidade e pela caridade que tivera comigo. As cem libras esterlinas convertidas em mercadorias de Inglaterra foram mandadas para Lisboa ao capitão e este trouxe-mas, felizmente, para o Brasil. Fiquei cheio de alegria quando chegou e julguei a minha fortuna feita. O capitão empregara as vinte e cinco libras esterlinas que a viúva lhe dera de presente em me arranjar um criado pago dos seus ordenados por seis anos; trouxe-mo e nunca quis aceitar nada de mim em paga de tantos serviços, senão um pouco de tabaco da minha fazenda. Como todas as minhas mercadorias eram manufacturadas em Inglaterra (panos, fazendas e outras coisas procuradas no Brasil) vendi-as por um preço muito elevado e ganhei o quádruplo do valor do carregamento ficando infinitamente mais adiantado do que o meu pobre vizinho, quanto à plantação: comprei um escravo negro e tomei um criado europeu, além daquele que o capitão me trouxera de Lisboa. Mas o mau uso que fazemos da prosperidade é muitas vezes a fonte das nossas maiores desgraças; foi o que aconteceu comigo. No ano seguinte tive toda a espécie de felicidades na minha plantação: =tirei das minhas próprias terras de tabaco cinquenta grandes rolos pesando cada um mais de cem libras, bem acondicionados e prontos para a volta do navio de Lisboa.
Então, ao ver aumentar igualmente os meus negócios e as minhas riquezas, comecei a idear na minha cabeça uma quantidade de projectos e de empresas. Se eu tivesse querido continuar o género de vida que levava então, podia ainda vir a ser rico e feliz; em vez disso, ia, cedendo à minha paixão desenfreada de correr mundo, aumentar o número das minhas culpas. Vivia há cerca de quatro anos no Brasil, e começava a prosperar e travar relações de amizade com os meus companheiros de plantação, assim como com os mercadores de São Salvador, que era o nosso porto de mar; nas nossas conversas contara-lhes as minhas duas viagens à costa da Guiné, da maneira de fazer o comércio, e da facilidade com que se podia alcançar o pó de oiro, dentes de elefante, outras coisas preciosas, e, o que é mais, negros em grande número e tudo por bagatelas, como pequenos leitos, quinquilharias, facas, tesouras, machados, espelhos e outras mercadorias. Nunca deixavam de escutar atentamente o que eu dizia sobre este capítulo, mas principalmente sobre artigos de compra dos negros, porque, como o Governo português reservara para si o monopólio dessa compra, os negros eram muito raros e caríssimos no Brasil. Um dia, de manhã, três plantadores vieram procurar-me e disseram-me que iam propor-me uma coisa a respeito da qual pediam segredo. Declararam-me que tinham vontade de armar um navio para a Guiné às escondidas do Governo, que todos tinham plantações como eu e uma necessidade extrema de escravos; o seu fim era empregar o navio em procurá-los. Desembarcariam os negros secretamente e distribuí-los-iam pelas suas =plantações. Perguntaram-me se queria ir a bordo desse navio na qualidade de caixeiro ou guarda-livros, para ter cuidado em tudo o que dizia respeito à costa da Guiné; disseram-me que, na partilha dos negros, eu teria uma porção igual à dos outros, e que seria dispensado de fazer o investimento inicial. Foi-me impossível resistir a essa oferta, tal como fora outrora reprimir os desejos extravagantes que fizeram cair por terra todos os bons conselhos de meu pai. Disse-lhes que partiria de muito boa vontade, se quisessem encarregar-se da minha plantação durante a minha ausência. Prometeram-no =todos, e obrigaram-se a isso por contrato. Quando o navio se acabou de equipar e estiveram todas as coisas arranjadas como tínhamos combinado, fui para bordo; por minha desgraça, no dia 1 de Setembro de 1659 aniversário do dia em que embarcara em Hull, oito anos antes.
NOVA VIAGEM - ROBINSON NAUFRAGA NUMA ILHA DESERTA
O nosso navio tinha perto de cento e vinte toneladas; levava seis canhões, e catorze homens compreendendo o mestre, o grumete e eu. Não o tínhamos carregado senão de =quinquilharias próprias para o nosso comércio, tais como vidros, conchas, e sobretudo pequenos espelhos, facas, tesouras, machados e alguns colchões. Fizemo-nos de vela, dirigindo-nos para o norte ao longo da costa; pretendíamos voltar para a África, quando tivéssemos chegado ao décimo ou undécimo grau de latitude setentrional; o que era o rumo que normalmente se tomava naquele tempo. Tivemos muito bom tempo em todo o comprimento da costa, a não ser o excessivo calor que fazia. Quando chegámos à altura do cabo de Santo Agostinho, fizemo-nos ao largo e, perdendo logo de vista a terra, dirigimo-nos para o nor-quarto-nordeste, de sorte que passámos a Linha, depois de uma navegação de =perto de doze dias: segundo os nossos cálculos, estávamos a sete graus e vinte e dois minutos de latitude setentrional, quando se levantou um violento furacão que nos desorientou inteiramente; começou a sudeste, rodou pouco a pouco para noroeste, depois fixou-se nordeste donde se desencadeou de uma maneira tão terrível, que não fizemos outra coisa, durante doze dias consecutivos, senão garrar, forçados a obedecer às ordens do destino e ao furor dos ventos. Escuso de dizer que durante esse tempo todo esperava cada momento ser sepultado nas ondas; e não havia ninguém no navio que se gabasse que havia de escapar. Este temporal causou-nos um terror mortal, e fez-nos perder três homens; um morreu de febre ardente, e os outros dois, um dos quais era grumete, caíram ao mar.
Tendo sossegado um pouco o vento ao fim de doze dias, o mestre fez um cálculo o melhor que pôde, e achoú que =estávamos a perto de onze graus de latitude setentrional, mas que havia uma diferença de vinte e dois graus de longitude a oeste do cabo de Santo Agostinho; de sorte que garrara para a costa da Guiana, ou parte setentrional do Brasil, para lá do rio Amazonas, para os lados do Orenoco. Veio então a consultar-me para saber que rumo devíamos seguir. O navio tinha sido muito atormentado e metia muita água; por isso a sua opinião era alcançar a parte oriental, donde tínhamos partido. Eu era da opinião contrária, e depois de termos examinado juntos uma carta marítima da América concluímos que não havia terra habitada onde pudéssemos =chegar mais próxima que o arquipélago das Caraíbas; foi por isso =que resolvemos navegar para Barbados, onde esperávamos que, fazendo-nos ao largo, para evitar o golfo do México, pudéssemos chegar facilmente dentro de quinze dias com bom tempo; porque a respeito da viagem a África, era escusado pensar nela por agora sem nenhum auxílio, tanto para o navio como para nós mesmos. Assim mudámos o nosso rumo para nor-noroeste, a fim de podermos chegar a qualquer das ilhas habitadas pelos Ingleses, onde tinha esperança de receber auxílio. Mas a nossa viagem devia terminar de outro modo; porque quando estávamos na latitude de doze graus e dezoito minutos, fomos assaltados por uma segunda tempestade, que nos levou, com a mesma impetuosidade que a primeira, para ocidente, afastando-nos de qualquer convívio humano; se conseguíssemos salvar a vida do furor das ondas havia tanta probabilidade de sermos devorados pelos selvagens, como esperança de nunca podermos voltar para a nossa terra. Nestas extremidades, o vento soprou sempre com violência, e ao despontar o dia um dos nossos marinheiros exclamou: "Terra!" Mal tínhamos saído do camarote para ver o que era, e em que região do Mundo nos achávamos, quando o navio deu num banco de areia; o seu movimento cessou de repente, as vagas entraram-lhe com tanta precipitação, que esperávamos ser engolidos a cada instante: e chegávamos para as amuradas do navio, para nos abrigarmos contra a violência das vagas. Não é fácil descrever a consternação que se =sente em tal ocasião. Não sabíamos nem em que clima estávamos, =nem para que terra fôramos levados; era uma ilha, um continente? Era habitada ou deserta? E como o furor dos ventos, ainda que um pouco diminuído, era ainda terrível, não podíamos =esperar que o navio ficasse alguns minutos sem se fazer em pedaços, a não ser que sobreviesse de repente uma calmaria, por uma espécie de milagre.
Numa palavra, estávamos imóveis, olhando uns para os outros, esperando a morte a cada instante, e preparando-nos para irmos para o outro mundo, tanto mais que pouco havia a fazer para isso. A única coisa que ainda podia sossegar-nos um pouco é que, contra a nossa expectativa, o navio não estava ainda quebrado, e o capitão dizia que o vento começava a abrandar. Mas, apesar do tempo parecer menos carregado, pela maneira como o navio encalhara, e visto que se enterrava muito na areia para que se pudesse safá-lo, a nossa situação era verdadeiramente deplorável; só nos restava =pois ver se podíamos salvar a nossa vida. Um pouco antes da tempestade tínhamos um escaler que vinha a reboque; mas em primeiro lugar abrira uma fenda à força de bater de encontro ao nosso leme e depois escangalhara-se, ou afundara-se, ou se desgarrara, de modo que não tínhamos esperança por esse =lado. Tínhamos ainda um escaler a bordo, mas não sabíamos como havíamos de deitá-lo ao mar; mas não havia tempo a perder, porque julgávamos a cada instante que o navio se ia desmanchar, e alguns diziam que estava já arrombado. Ao mesmo tempo que o nosso piloto tentou deitar o nosso escaler ao mar, os nossos marinheiros puseram-se a ajudá-lo, e finalmente conseguimo-lo; metemo-nos dentro, onze no total, recomendando as nossas almas à misericórdia divina e abandonando o resto =à ira das ondas. Porque apesar da tempestade ter perdido muito a sua violência, o mar elevava-se a uma altura espantosa de encontro à terra. Então é que o perigo era grande e terrível; =porque víamos todos claramente que o mar estava tão encapelado que o nosso escaler não resistiria, e que seríamos infalivelmente submergidos: além disso não tínhamos vela, e ainda que a tivéssemos não poderíamos servir-nos dela. Pusemo-nos a remar com todas as forças para ir para terra, mas com um rosto consternado como gente que ia para o suplício. Efectivamente nenhum de nós podia ignorar que, quando o escaler chegasse perto da costa, havia de sofrer pancadas tão fortes que se faria em mil pedaços. Acontecesse o que acontecesse pedíamos a Deus de todo o nosso coração pela salvação das nossas almas; mas, impelindo-nos o vento ao mesmo tempo, trabalhávamos a bom trabalhar para o ajudar, e para apressar a nossa perda. Nem ao menos sabíamos de que natureza era a praia, se era de rochedos ou de areia, se era alta ou baixa. A única coisa que poderia dar-nos algum vislumbre de esperança era termos caído nalguma baía, nalgum golfo, na foz de um rio; entrar nele por um acaso, e pormo-nos ao abrigo do vento, ou talvez achar ainda águas mansas. Mas não havia aparências algumas disso: pelo contrário, a terra, à medida que nos aproximávamos, parecia-nos ainda mais temível que o mar. Depois de ter remado ou antes garrado por espaço de légua e meia, segundo o =cálculo que fazíamos, uma vaga furiosa, alta como uma montanha, veio quebrar-se por trás de nós: era para nos advertir que esperássemos o golpe de misericórdia. De facto, logo caiu sobre nós e com tanta fúria que virou de uma vez o escaler; e separando-nos uns dos outros e todos do barco, quase que nem nos deu tempo de invocar o nome de Deus porque nesse momento fomos todos engolidos por ela. Não posso descrever a confusão dos meus pensamentos quando o escaler se virou; porque apesar de nadar bem, não pude desembaraçar-me o suficiente para respirar, até que a vaga, atirando-me para a margem, rebentou, depois voltou para trás e levou-me quase até à praia, meio morto por causa da água =que engolira. Vendo a terra mais perto de mim do que pensava, tive bastante presença de espírito e a respiração suficiente =para me levantar nas pernas, para tratar de caminhar para o lado da terra, antes que viesse outra vaga e me levasse. Mas olhando para trás de mim, vi o mar ameaçador, altivo e furioso, como um inimigo terrível com o qual não podia, de modo algum, medir as minhas forças. O que me restava fazer era suster a respiração e tentar estar à tona de água: desta maneira =podia nadar, conservar a liberdade da respiração, e dirigir-me para a praia. O que eu receava mais era que essa onda, depois de me ter levado para terra na ida, na volta me tornasse a lançar para o mar. A onda que se veio quebrar em cima de mim pela segunda vez cobriu-me primeiro com uma massa de água de vinte ou trinta pés de altura; senti que era arrastado para muito longe de terra com uma força e uma rapidez enormes; ao mesmo tempo sustinha a respiração e ajudava-me ainda nadando com todas as forças. Mas estava quase a sufocar à força de me =constranger, quando me senti subir à tona da água; de repente achei-me com a cabeça e as mãos fora da água, o que me aliviou imediatamente; e apesar desse intervalo durar só dois segundos, não deixou de fazer-me um grande bem, dando-me tempo para respirar e redobrando a minha coragem: vi-me outra vez coberto de água; mas não por tanto tempo que não me pudesse reanimar, e, vendo que a vaga se quebrara, e que começava a voltar para trás, lancei-me para a frente o mais que pude para não me deixar arrastar, e senti que tinha pé. Fiquei alguns momentos sem fazer nada, tanto para respirar como para esperar que as águas se retirassem, e depois corri para a praia com toda a ligeireza de que me sentia capaz. Esse esforço não era suficiente para me livrar do furor das ondas que vinham novamente quebrar sobre mim; levaram-me mais duas vezes, e atiraram-me para a praia como já tinham feito. Pouco faltou para que o último destes dois assaltos que acabo de descrever me fosse fatal, porque o mar arrastou-me, como já disse, pôs-me em terra, ou melhor, lançou-me contra =um rochedo, com tanta violência que perdi os sentidos e a força de trabalhar para a minha salvação; porque levei uma pancada numa ilharga e no peito, que me tirou de repente a respiração por certo tempo; e se o mar voltasse à carga sem =interrupção, estou certo que ficava completamente sufocado. Mas tornei a mim um pouco antes dele voltar, e ao ver que me ia engolir, resolvi agarrar-me à ponta de um rochedo, e nessa posição suster a respiração até que as águas se tivessem retirado: =as águas já não estavam tão altas como no princípio, porque =a terra estava próxima; não me larguei do rochedo enquanto elas não abrandaram um pouco mais. Depois disto trepei um pouco mais, de maneira que a vaga que veio depois só me cobriu, mas não me levou; de sorte que só tive que fazer trabalhar as minhas pernas para pôr termo à minha carreira, e para pôr =pé em terra. Assim que aí cheguei subi a um montículo e assentei-me na relva ao abrigo do furor das águas. Vendo-me assim em segurança, comecei por levantar os olhos e as mãos ao céu, e dar graças a Deus com todo o meu ser por =me ter conservado a vida. Julgo impossível descrever o êxtase em que se acha a alma que se vê salva deste modo, arrancada, por assim dizer, do fundo do túmulo. Já não me espanto, pois, =que se leve ao desgraçado prestes a perder a vida no cadafalso um cirurgião para Lhe tirar o sangue ao mesmo tempo que lhe anunciam o perdão, com medo que a surpresa se lhe torne mortal. Passeava eu à beira-mar, com o espírito absorvido na contemplação da minha salvação, testemunhando os meus transportes de alegria por mil gestos que não saberia tornar a fazê-los, pensando nos meus camaradas, que tinham ido todos para o fundo, e pensando que eu era o único que se salvara; porque depois do nosso naufrágio não tornei a ver nenhum deles, nem mesmo o mínimo vestígio para além de três =chapéus, um barrete e dois sapatos desirmanados. Voltei os olhos para o lado do navio encalhado, mas o mar estava tão espumante e encapelado e o navio a tão grande distância que mal o podia distinguir.
Ao notar isto, exclamei: "Deus piedoso!, como consegui chegar a terra?" Depois de reanimado pelo pensamento do que havia de consolador na minha posição, comecei a olhar em volta tentando perceber em que espécie de sítio estava e em que me devia ocupar. Senti logo diminuir a minha alegria, e vi que cantara antes do tempo; a minha situação era horrorosa: estava molhado, e não tinha fato para me secar; tinha fome, não tinha nada para comer; tinha sede, nada tinha para beber; estava fraco, nada tinha para me fortalecer; não tinha mesmo outra perspectiva senão a de morrer de fome, ou de ser devorado pelos animais ferozes; e o que havia de mais aflitivo para mim, é que não possuía qualquer arma para caçar e =defender-me contra alguma criatura que me quisesse tirar a vida para sustentar a sua; só tinha comigo uma faca e um pouco de tabaco numa caixa onde estavam todos os meus recursos, o que me lançou em terríveis angústias; de sorte que durante algum tempo corri de um lado para outro como um insensato. A noite aproximava-se e comecei a imaginar o que seria de mim se essa terra alimentasse animais ferozes, porque sabia que esses animais vagueiam todas as noites para procurar a sua presa. O único remédio era subir a uma árvore de ramagem muito espessa, parecida com um pinheiro mas espinhosa que havia perto, e onde resolvi passar toda a noite esperando o género de morte que ia sofrer no dia seguinte porque não tinha então grandes esperanças de vida. Afastei-me perto de meio quarto de milha da praia, para ver se encontrava água doce para beber, o que aconteceu e me causou muita alegria. Depois de ter bebido e de ter mastigado um pouco de tabaco para enganar a fome, corri para a árvore, na qual procurei colocar-me de maneira a não cair se viesse a adormecer; segurando um pequeno bordão, que tinha cortado para me servir de defesa, subi para o meu alojamento. Como estava muito cansado caí num sono profundo que me reparou completamente as forças, e não sei se haverá muita gente que tenha passado uma tão boa noite em iguais condições. Era já dia claro quando acordei; o tempo estava sereno, a tempestade dissipada e o mar já não estava agitado nem encapelado como na véspera. O que me surpreendeu muito foi ver que com a maré alta, durante a noite, o navio saíra do banco de areia onde tinha encalhado e garrara até junto do rochedo de que falei antes, onde eu sofrera tão cruelmente. Era quase uma milha de distância do lugar onde eu estava até essa rocha, e como o navio parecia manter-se direito; pensei ir a bordo, para de lá tirar para meu uso pelo menos algumas coisas mais necessárias. Assim que desci da árvore, olhei ainda em torno de mim, e a primeira coisa que descobri foi o escaler, que o vento e a maré tinham lançado para a costa, a perto de duas milhas para a minha direita. Caminhei ao longo da praia, na sua direcção, mas encontrei um braço de mar de perto de meia milha de largura entre mim e o escaler, e por isso voltei para trás, deixando a coisa para outra vez, porque os meus desejos voltavam-se muito mais para alcançar o navio, onde esperava achar então com que sustentar-me.
VISITA DE ROBINSON AO SEU NAVIO ENCALHADO
Um pouco depois do meio-dia, vi que o mar estava muito sossegado, e a maré tão baixa que podia caminhar até um =quarto de milha do navio; e isso foi para mim um renovamento de dor; porque via claramente que se tivéssemos ficado a bordo, nos teríamos salvo, pelo menos chegaríamos a terra e eu não =teria de me ver, como então, privado miseravelmente de toda a consolação e de toda a companhia. Estas reflexões arrancaram-me lágrimas, mas como elas não davam senão um fraco alívio aos meus males, resolvi tentar chegar ao navio. Estava um calor excessivo. Despi o meu fato e lancei-me à água. Quando cheguei ao pé do navio, vi que me seria extremamente difícil subir lá acima, porque estava em seco e fora da =água, a uma grande altura e não havia nada ao meu alcance a que eu pudesse trepar. Dei duas voltas à roda do navio a nado; à segunda dei com uma coisa que me espantava de não ter visto da primeira vez: era um pedaço de cabo que estava pendurado na proa, e assim depois de muito trabalho, agarrei-me a ele, e lá subi ao castelo da proa. Aí, vi que o navio estava arrombado e tinha muita água no fundo do porão; mas como a areia do banco onde estava encalhado era firme, tinha a popa extremamente alta, e a proa tão baixa que quase mergulhava na água. Desta maneira a tolda achava-se inteiramente livre de água, e tudo o que encerrava estava enxuto. Bem se pode imaginar que a primeira coisa que fiz foi ver por toda a parte o que estava estragado e o que estava em bom estado. Encontrei todas as provisões do navio enxutas; como tinha muita vontade de comer, fui direito à despensa, enchi as minhas algibeiras de bolachas e pus-me a comê-las enquanto tratava das outras coisas, porque não tinha tempo a perder. Achei rum no camarote do capitão, e bebi uma boa porção =dele; e bem precisava para me reanimar e preparar para os sofrimentos que ainda me esperavam. Não me servia de nada ficar de braços cruzados e perder tempo a desejar o que não podia de modo algum alcançar. A necessidade estimulou os meus esforços. Tínhamos a bordo muitas antenas, um ou dois mastros de reserva, e duas ou três grandes vigas de madeira; tomei a resolução de me aproveitar de tudo isso imediatamente, e lancei para fora do navio todas aquelas peças de madeira que não eram muito pesadas, depois de as ter atado separadamente com um cabo para não fugirem. Feito isto, desci ao longo do navio, e juntei quatro pelas duas extremidades, o melhor que pude, dando à minha obra a forma de uma jangada; e depois de aí ter posto atravessadas duas ou três tábuas muito curtas, =vi que podia andar bem por cima, mas sem levar grande carga. Foi por isso que subi ao navio e voltei ao trabalho; com o serrote do carpinteiro cortei uma das antenas em três pedaços ao comprido, acrescentei-as à minha jangada com muito trabalho e fadiga. Mas a esperança de me abastecer com as coisas necessárias, servia-me de estímulo para trabalhar muito mais do que seria capaz em qualquer outra ocasião. A minha jangada estava já bastante forte para levar um peso razoável; só faltava ver com que a carregaria, e como preservar essa carga do insulto das águas do mar; mas não me demorei muito nessas considerações, e em primeiro lugar pus em cima todas as tábuas que pude encontrar; em seguida, depois de ter pensado no que mais falta me fazia, comecei por agarrar em três baús dos marinheiros, forcei as fechaduras para tirar o que estava dentro, e desci-os para a minha jangada com o auxílio de um cabo. No primeiro baú meti provisões, a =saber: pão, arroz, três queijos da Holanda, cinco pedaços de carne =de cabrito seca, que constituía o nosso principal sustento, e um resto de trigo da Europa, posto de parte para sustentar algumas galinhas que tínhamos embarcado connosco, mas que já tinham sido comidas. Havia também uma certa quantidade de cevada e trigo misturados, mas, com grande pesar, vi que tinha sido comido ou estragado pelos ratos. Quanto a bebida, achei alguns caixotes de garrafas nas quais havia algumas águas cordiais, e cerca de vinte e quatro de araca (*); arranjei-as separadamente, porque não era necessário
(*) Araca: bebida alcoólica feita com arroz fermentado.
nem mesmo possível metê-las num caixote. Enquanto estava ocupado a fazer estas provisões, vi que a maré começava a encher, devagar, e tive o desgosto de ver que o meu casaco, o colete e a camisa que deixara na praia se iam embora, flutuando; quanto às calças, de pano e abertas no joelho, e =às meias não as tinha tirado para nadar; fosse como fosse, este acidente fez-me ir à procura de roupas, não por muito tempo porque logo vi que podia recuperar a minha perda com abundância; mas contentei-me em tirar tudo o que não podia dispensar por agora, porque havia outras coisas que eu desejava imenso encontrar. Neste número estavam as ferramentas para trabalhar quando estivesse em terra; depois de muito procurar achei, finalmente o baú do carpinteiro. Foi um tesouro para mim, mas um tesouro muito mais precioso do que seria nessa ocasião um navio carregado de oiro: desci-o e pu-lo na minha jangada, tal e qual como estava, sem perder tempo de olhar para dentro, porque sabia perfeitamente o que continha. Depois disso, preocupei-me com munições e armas. Havia no camarote do capitão duas espingardas muito boas e duas pistolas; agarrei em tudo isso, bem como em algumas bolsas de pólvora, um pequeno saco de chumbo e duas espadas enferrujadas. Sabia que havia algures três barris de pólvora, mas ignorava em que sítio o nosso artilheiro os guardara. Por fim lá os desencantei, depois de ter vasculhado cantos e recantos. Um dos barris estava molhado; os outros dois, secos e bons; coloquei-os junto com as armas, na minha jangada. Pareceu-me então que estava munido com bastantes provisões; faltava agora levá-las para terra; porque não tinha nem vela, nem remos, nem leme, e o menor sopro de vento que aparecesse de repente podia submergir todo o carregamento. Três coisas animavam as minhas esperanças: em primeiro lugar o mar, que estava manso; em seguida a maré, que subia e empurrava para terra; e em terceiro lugar o vento, que embora fraco era favorável. Encontrei ainda outros dois ou três remos que tinham pertencido ao escaler, e que me serviram de reforço; e dois serrotes, um enxó, um martelo (além do que =já estava no baú do carpinteiro); finalmente saltei para a jangada, que navegou muito bem por uma milha, até que descobri que puxava para o sítio onde eu desembarcara na véspera; isto fez-me julgar que havia uma corrente de água, pelo que deveria encontrar uma baía ou um rio onde desembarcar o meu carregamento. O que eu imaginara era verdade: descobri na minha frente uma pequena abertura de terra, para a qual me sentia arrastado pelo curso violento da maré; por isso governei a minha jangada o melhor que pude para que seguisse a corrente; mas ao mesmo tempo estive quase a naufragar, e se tal desgraça me acontecesse tinha a certeza de que seria um golpe mortal. Estas costas eram-me inteiramente desconhecidas; por isso fui tocar na areia com a ponta da minha jangada e, como ela flutuava do outro lado, pouco faltou para que o meu carregamento escorregasse todo para o lado e caísse na água. Fazia tudo o que era possível para conservar os baús nos seus lugares, agarrando-me a eles; mas as minhas forças eram insuficientes para voltar a jangada; não me atrevia a deixar a posição em que estava, e, segurando a carga com todos os meus esforços, fiquei assim perto de meia hora, durante a qual a maré levantando-me pouco a pouco acabou por me pôr num perfeito nível. Alguns momentos depois, a maré, que continuava a subir, fez flutuar a minha jangada, que impeli com o remo para o canal e depois de andar um pouco mais vi-me na foz de um pequeno rio, com terra de cada lado, e uma corrente rápida que subia. Contudo, procurava com os olhos numa ou noutra margem, um sítio próprio para desembarcar, porque não me atrevia a entrar mais para dentro do rio, e a esperança que tinha de descobrir algum navio determinava-me a ficar tão perto da costa quanto possível. Finalmente avistei à minha direita um pequeno barranco para onde guiei a minha jangada com muito trabalho e dificuldade: aproximei-me de modo que, como o meu remo tocava no fundo, podia finalmente empurrar a jangada para o pequeno banco; mas, fazendo isso, corria pela segunda vez o risco de submergir toda a minha carga, porque sendo a margem de declive muito rápido e escarpado, só podia desembarcar num lugar onde a jangada quando chegasse a tocar, fosse levantada para um lado e enterrada pelo outro, a ponto que eu estaria em perigo de perder tudo. O mais que pude fazer, foi esperar que a maré estivesse completamente cheia, servindo-me contudo do meu remo à maneira de âncora, para parar a jangada e conservar-lhe o flanco aplicado na margem; num sítio onde a terra fosse plana e unida, e que eu esperava que a água cobriria. Este meio teve o êxito desejado; a minha jangada tirava perto de um pé de água, e logo vi que tinha bastante, levei-a para esse lugar plano e unido, onde a amarrei fixando na terra os meus dois remos meio estragados, numa das pontas, outro na outra, e fiquei nesta situação =até que a maré baixasse e deixasse tudo em seco e em segurança. Em seguida, a primeira coisa que fiz foi ir reconhecer esse sítio e procurar um lugar próprio para a minha habitação =e para arrumar os móveis em segurança.
Ignorava ainda se o lugar em que me encontrava pertencia ao continente, ou se era uma ilha, se era habitada ou deserta, ou se tinha alguma coisa a recear dos animais ferozes. Havia a distância de uma milha uma montanha muito alta e escarpada que parecia elevar o cume acima de uma cordilheira de muitas outras montanhas situadas ao norte. Peguei numa das pistolas, com uma bolsa de pólvora e um saquinho de chumbo; assim armado, fui à descoberta até ao alto da montanha. Quando lá cheguei com muita fadiga e a suar, vi como seria triste o meu destino; porque reconheci que estava numa ilha, cercada de mar por todos os lados, sem poder descobrir outras terras a não ser alguns rochedos muito afastados dali, e duas ilhotas muito mais pequenas do que aquela em que estava, situadas perto de três léguas a oeste. Reconheci ainda que a ilha em que me via encerrado não era cultivada, e tinha todas as razões para crer que não havia habitantes, a não ser que fossem animais ferozes; não via, porém, nenhum, mas descobri logo uma grande quantidade de aves cuja espécie me era desconhecida, assim como o que poderia fazer delas, quando as tivesse morto. Ao voltar atirei a uma ave muito grande que vi poisada numa árvore na orla de um grande bosque: creio que foi esse o primeiro tiro que se disparou com arma de fogo nesse lugar depois da criação do Mundo. Assim que o disparei, elevou-se de todos os lados do bosque um número quase infinito de aves de muitas espécies, com um ruído confuso causado pelos gritos e pios diferentes que cada um dava segundo a sua espécie, todas inteiramente desconhecidas para mim. Quanto à ave que matei, tomei-a por uma espécie de =gavião, porque tinha a sua cor e bico, embora sem os esporões e as garras; a carne, de um cheiro forte, não prestava para nada. Desci então da montanha, voltei à jangada, e pus-me a descarregá-la. Este trabalho ocupou-me o resto do dia, e ao cair da noite não sabia o que fazer nem que lugar escolher para tomar repouso; não me atrevia a dormir em terra, porque não sabia se viriam animais ferozes devorar-me, apesar de me ter convencido de que não havia semelhante coisa a temer. De qualquer modo entrincheirei-me o melhor que pude com os caixotes e tábuas que tinha trazido para terra, e fiz uma espécie de cabana para me alojar por essa noite. Quanto ao sustento que a ilha podia fornecer não concebia ainda de onde me podia vir, até que vi dois ou três animais com feitio de lebres correndo para fora do bosque onde matei a ave.
Imaginei então que ainda podia tirar do navio muitas coisas que me seriam úteis, principalmente cabos, velas e outras coisas que podiam transportar-se para terra; resolvi, pois, tentar fazer outra viagem a bordo; e como não ignorava que a primeira tormenta que se levantasse quebraria logo a embarcação em mil pedaços, renunciei a qualquer outra =empresa enquanto não tivesse executado essa. Então pensei se havia de voltar com a jangada; mas a coisa não me pareceu praticável: tomei, pois, o partido de ir como da primeira vez, quando a maré estivesse baixa; e foi o que fiz, só com a diferença =que me despi antes de sair da minha cabana, não deixando em cima de mim senão uma camisa rasgada, ceroulas e um par de sapatos. Fui ao navio, e preparei lá outra jangada. Mas como a experiência que eu adquirira na construção da primeira me tornasse mais hábil, não fiz esta tão pesada, e evitei o =mais possível carregá-la muito, o que não impediu de trazer =muitas coisas que me foram muito úteis: em primeiro lugar, encontrei no armazém do carpinteiro dois ou três sacos cheios de pregos e agulhas, uma grande verruma, perto de uma dúzia de machados, uma pedra de amolar, que é um instrumento de muitíssimo uso; pus de parte tudo isso junto com muitas coisas que pertenceram ao artilheiro, principalmente duas ou três alavancas de ferro, dois barris de balas, sete mosquetes, uma outra espingarda de caça, uma pequena quantidade de pólvora para juntar à que =já tinha, um grande saco de chumbo em bagos e um grande rolo do mesmo metal; mas este último era tão pesado, que não tive força para o levantar bastante para o fazer passar por cima da amurada do navio. Além destas coisas, levei todos os fatos que pude encontrar, com uma vela de acréscimo do joanete da mezena, uma maca, um colchão e alguns cobertores.
Carreguei a jangada com tudo o que acabo de mencionar, e levei-a para terra com um êxito que contribuiu extremamente para me reconfortar das minhas desgraças. Durante todo o tempo que passei longe de terra, receava que os animais ferozes tivessem devorado as minhas provisões; mas à volta não vi qualquer sinal de visitantes para além de um animal semelhante a um gato selvagem que encontrei sentado num dos meus baús; assim que me viu aproximar, fugiu para alguns passos dali, depois parou de repente: não parecia nem desconcertado nem assustado, e olhava para mim fixamente como se quisesse conhecer-me. Apontei-lhe a boca da espingarda, mas como não sabia do que se tratava, não se assustou nada, não fez qualquer movimento de quem vai fugir. Ao ver isso, atirei-lhe um pedaço de bolacha, embora a falar verdade, eu não fosse muito pródigo, porque a minha provisão não era grande; no entanto era só um pedacito de bolacha, e isso não fazia grande falta para o meu sustento. O que é facto é que o animal não desdenhou o presente; correu logo, cheirou-o e depois engoliu-o; gostou tanto até que me informou, pelo seu ar contente, que estava disposto a aceitar outra dose, mas eu não caí nessa, e vendo que não ganhava nada meteu o rabo =entre as pernas e foi-se embora. Como os barris onde a pólvora estava fechada eram muito grandes e pesados, fui obrigado a destapá-los para a tirar pouco a pouco, e carregá-la na jangada em muitos volumes, o que prolongou a minha operação; mas ao ver-me em terra com todo o carregamento, comecei a trabalhar na construção de uma pequena barraca com a vela e as estacas, que cortei para esse fim; e para dentro dessa barraca levei tudo o que sabia que se estragava à chuva ou ao sol. Depois disso, entrincheirei-me com os caixotes vazios e os barris, que coloquei uns em cima dos outros em volta da barraca, para a fortificar contra qualquer assaltante, fosse ele qual fosse. Feito isto, entrincheirei a entrada da barraca com tábuas metidas para dentro e um caixote vazio, pendurado por um canto, e, depois de ter colocado as pistolas à cabeceira e ter deitado a espingarda ao pé de mim, deitei-me na cama pela primeira vez e dormi muito sossegadamente toda a noite; estava cansado e estafado por ter dormido muito pouco na noite anterior e ter trabalhado rudemente todo o dia, trazendo tantas provisões de bordo. O carregamento que eu então tinha de toda a espécie de coisas era, creio, o maior que se juntara para uma só pessoa; mas ainda não estava contente porque pensava ser meu dever tirar tudo o que pudesse do navio enquanto não fosse ao fundo. Todos os dias ia a bordo, quando a maré estava baixa; à terceira vez que lá fui, trouxe tudo o que pude dos aparelhos, os pequenos cabos e o fio de carrete, uma peça de pano grosso que estava em reserva para remendar as velas quando fosse preciso, e o barril que se molhara; e finalmente todas as velas, da maior à mais pequena, mas tendo primeiro que cortá-las em muitos pedaços porque já não podiam servir =para velas. A coisa que me deu mais prazer, em todo o espólio, foi que depois de ter feito cinco ou seis viagens da maneira que acabo de referir, e quando julgava que já não havia mais nada no navio que valesse a pena levar para terra, encontrei ainda um grande barril de bolacha, três bons barris de rum, uma caixa de açúcar mascavado e um almude de farinha muito boa.
A agradável surpresa que me causou este achado foi ainda maior porque já não esperava encontrar mais provisões que =não estivessem estragadas pela água. Esvaziei o mais depressa possível o barril de bolacha, fi-lo em pedaços, e embrulhei em bocados de velas que cortei para esse fim, e finalmente transportei tudo para terra com tanta felicidade como na viagem anterior. No dia seguinte, fiz outra viagem, e como despojara o navio de tudo o que se podia levar e se levantar facilmente, comecei a ver se tirava os cabos, que cortei em muitos pedaços proporcionais às minhas forças, de maneira que pudesse carregar com eles; juntei dois cabos e uma enxárcia, e toda a ferramenta que pude arranjar. Depois de ter cortado a verga do gurupés e da mezena, fiz uma grande jangada, que carreguei com todo aquele peso que acabava de preparar, e pus-me a navegar. Mas a jangada ia tão pesada, estava de tal modo carregada, que ao chegar ao pequeno barranco onde eu tinha desembarcado as minhas outras provisões não a pude governar tão bem como as outras; virou-se e lançou-me na água com toda a carga. Eu próprio não corria grande perigo porque estava próximo da terra; mas quanto à carga, perdi uma boa parte dela, sobretudo de ferro, de que tencionava fazer bom uso; mas como a maré tinha baixado, salvei ainda a maior parte dos cabos e algumas peças de ferro, mas com um trabalho infinito, pois era obrigado a mergulhar, o que me fatigou muito. Depois desta façanha, não deixei de ir a bordo e trazer de lá tudo o que podia. Havia já treze dias que estava em terra, e fizera já onze viagens a bordo. Durante esse tempo tinha tirado tudo o que uma pessoa sozinha é capaz de tirar; mas parece-me que não exagero dizendo que se a calmaria tivesse continuado teria trazido para terra o navio inteiro pedaço por pedaço. Quis voltar lá mais uma vez; quando me preparava senti que o vento começava a fazer-se sentir, o que não me impediu de chegar com a maré baixa, e apesar de ter esquadrinhado e tornado a esquadrinhar todo o camarote do capitão, com tanta exactidão que julgava que não havia mais nada a procurar, descobri um armário cheio de gavetas; numa delas encontrei duas ou três navalhas, uma tesoura pequena e dez ou doze facas com outros tantos garfos; noutra, havia perto de trinta e seis libras esterlinas em dinheiro, umas moedas da Europa, outras do Brasil, em ouro e prata. À vista deste dinheiro, sorri para mim mesmo, e escapou-me em voz alta esta apóstrofe: - Ó vaidade das vaidades! - exclamei -, metal impostor, como és vil a meus olhos! Para que serves tu? Não, não mereces que = me abaixe a apanhar-te; uma só destas facas é mais preciosa para mim que os tesouros de Creso: não preciso nada de ti, fica pois onde estás, ou antes, vai-te para o fundo do mar! Depois de ter dado livre curso à minha indignação, reconsiderei contudo e, guardando essa soma com os outros utensílios que encontrara no armário, fiz uma trouxa metendo tudo num pedaço de pano grosso. Pensava já fazer uma jangada quando descobri que o céu estava a ficar nublado e que o vento começava a refrescar. Um quarto de hora depois soprou do lado da costa um vento forte, e imediatamente compreendi que seria uma ideia louca querer fazer uma jangada com um vento que afastava de terra, e que o melhor partido que tinha a tomar era voltar antes que a maré começasse a encher, se não =queria dizer adeus para sempre à terra. Atirei-me e comecei a nadar, e atravessei a extensão que havia entre o navio e as areias; mas tive um imenso trabalho, tanto por causa do peso que trazia comigo como pela agitação do mar - porque o vento levantou-se tão bruscamente que houve um temporal antes que a maré enchesse. Mas eu já estava em terra firme, ao abrigo da tempestade, dentro da minha barraca, no centro das minhas riquezas. Esteve um temporal medonho durante a noite, e no dia seguinte pela manhã, quando olhei para o mar, já não vi o navio. A surpresa que então senti deu lugar a esta reflexão consoladora: não poupara nem trabalho nem cuidado para tirar do navio tudo o que me podia ser de alguma utilidade, e ainda que tivesse mais tempo, pouco restava que eu de lá pudesse trazer.
ROBINSON ESTABELECE-SE NA ILHA
Desde então não pensei mais nem no navio nem no que me podia acontecer, excepto em que o mar pudesse lançar restos do navio para a praia, como efectivamente lançou; mas não me serviram de muito. Todos os meus pensamentos tendiam então a precaver-me contra os selvagens que pudessem aparecer, e contra os animais ferozes, supondo que os houvesse na ilha. Pelo espírito passavam-me muitas ideias diferentes sobre a espécie de habitação que havia de construir e sobre o modo =de execução, pois estava em dúvida se havia de fazer uma cova =ou levantar uma barraca; enfim, resolvi ter uma coisa e outra; e a descrição do edifício não será fora de propósito. =Comecei por verificar que o sítio onde estava não era próprio para =me estabelecer: em primeiro lugar porque o terreno era baixo e pantanoso, e tinha todos os motivos para desconfiar da sua salubridade; em segundo lugar, porque não havia água doce por perto, pelo que tomei o partido de procurar um sítio mais conveniente. Pensei que deveria ter em conta muitas vantagens para escoLher um local: a primeira era gozar de uma bela saúde e ter água doce; a segunda, estar ao abrigo do sol; a terceira preservar-me dos assaltos de todos os animais devoradores, racionais e irracionais; e a quarta, ter vista para o mar, a fim de que, se a Providência permitisse que passasse algum navio ao meu alcance, não omitisse nada do que pudesse favorecer a minha liberdade, cuja esperança ainda não perdera de todo. Enquanto procurava um lugar que reunisse todas estas condições, encontrei uma pequena planície situada ao pé de =uma colina elevada, cuja frente era lisa e sem talude, como a fachada de uma casa, de tal modo que nada podia cair sobre mim: na frente desse rochedo, havia uma porção de terreno que se enterrava um pouco e se assemelhava muito à entrada ou à porta de um subterrâneo; mas não existia caverna nem caminho que conduzisse ao rochedo. Foi nessa esplanada, justamente nessa cavidade que resolvi armar a barraca. A planície não tinha mais de cinquenta toesas de largura; ao comprido tinha o dobro desse comprimento, e formava diante da minha habitação uma espécie de tapete verdejante, que terminava descendo regularmente de todos os lados para o mar. Estava situada a nor-noroeste da colina, de sorte que me punha todos os dias ao abrigo do calor até ter o Sol a oeste-quarto-sudoeste, ou com pouca diferença, que é a hora aproximada do seu ocaso nesses climas. Antes de levantar a tenda, fiz em frente da cavidade um semicírculo com cerca de dez toesas de raio, desde o rochedo até à circunferência, e vinte de diâmetro. Nesse =semicírculo plantei duas fileiras de fortes paliçadas que fixei na terra, até ficarem firmes como colunas, saindo da terra a parte mais grossa a mais de cinco pés e meio de altura, aguçadas nas extremidades superiores: não havia mais de seis polegadas de distância de uma a outra fileira. Em seguida peguei nos pedaços de cabo, que cortara a bordo do navio, e coloquei-os uns por cima dos outros formando uma fileira dupla até ao cimo das paliçadas; ajuntando outras estacas de perto de dois pés e meio, apoiadas nas primeiras, e servindo-lhe de reforço para dentro do semicírculo. Esta obra estava tão forte que não havia homem nem animal que pudesse forçá-la ou passar-lhe por cima: levou-me muito tempo e trabalho, sobretudo para cortar a madeira nos bosques, trazê-la para esse lugar, e metê-la na terra. Fiz, para entrar em casa, não uma porta mas uma pequena escada, com a qual passava por cima das minhas fortificações; e depois de eu ter entrado para dentro, retirava-a. Desta maneira julgava-me perfeitamente defendido e bem fortificado contra qualquer agressão; e por consequência dormia com toda a segurança durante a noite, o que dantes não podia fazer, ainda que na verdade com o correr do tempo tenha visto que não eram precisas tantas precauções contra os inimigos que eu julgava dever recear. Foi para este entrincheiramento ou, se quiserem, para essa fortaleza, que transportei as minhas provisões, as minhas munições, numa palavra, todas as minhas riquezas. Erigi aí um grande barracão para me guardar das chuvas, realmente excessivas nessa região durante certo tempo do ano. Começara por construir uma pequena barraca, em seguida uma maior por cima, e por fim cobri tudo com um pano alcatroado, que tinha salvo juntamente com as velas.
Desde então deixei por muito tempo de me deitar na cama que trouxera para terra, gostando mais de dormir numa maca muito boa onde antes dormia o piloto do nosso navio. Trouxe para o meu barracão todas as provisões que se podiam estragar à chuva, e depois de encerrados todos os meus bens no meu domicílio, fechei-Lhe a entrada, e, como já disse, servi-me da escada. Feito isto, comecei a cavar na encosta, e, amontoando a terra e as pedras que daí tirava ao pé da paliçada, formei desta maneira uma espécie de terraço que levantou o terreno cerca de um pé e meio. Assim fiz, por trás do barracão, uma caverna, que ia servir como celeiro e adega da minha casa. Levou-me muito trabalho e tempo primeiro que pudesse terminar essas diferentes obras; é isto que me obriga a voltar a alguns factos que ocuparam o meu espírito durante esse tempo. Um dia, quando ainda não imaginara o plano da minha barraca e da minha adega, aconteceu que, tendo-se formado uma nuvem sombria e espessa, resultou dela um temporal, subitamente fez um relâmpago, e logo em seguida um grande trovão, como era natural: ainda estava impressionado com o relâmpago quando passou na minha alma um pensamento com a prontidão de esse meteoro: - Ah! - disse comigo mesmo - que acontecerá à minha =pólvora? Sem ela, com que hei-de defender-me? Sem ela como hei-de ocorrer ao meu sustento? Estava mais morto do que vivo, quando me lembrei de que toda a pólvora podia explodir num instante. Fez-me isto tanta impressão que, quando passou a tempestade, suspendi as minhas fortificações e os meus trabalhos, para me pôr a fazer sacos =e caixas para guardar a pólvora, a fim de que, depois de ter feito muitos pacotes dispersos aqui e ali, um não largasse fogo ao outro, e que eu não estivesse exposto a perdê-la toda duma vez. Gastei seguramente quinze dias a acabar esta obra, e creio que a pólvora, cuja quantidade subia a cento e quarenta libras, não foi dividida em menos de cem pacotes. Quanto ao barril, que já vinha molhado de bordo, não lhe receava nenhum acidente; coloquei-o na minha nova caverna, a que tive a fantasia de chamar cozinha e escondi o resto nos buracos dos rochedos, que tive o cuidado de marcar com sinais, e onde estava ao abrigo da humidade. Durante todo o tempo que gastei a fazer isto, não deixei passar dia algum sem sair pelo menos uma vez, ora para me distrair, ora para tratar de matar alguma coisa boa para comer, ou mesmo para conhecer, o mais que pudesse os produtos da ilha. Da primeira vez que saí, vi logo que havia cabras, o que me causou muita alegria; mas essa alegria foi curta: eram tão selvagens, tão astutas, tão ligeiras a correr que era =difícil demais aproximar-me delas. Essa dificuldade não me desanimou contudo; não duvidava que poderia atirar-lhes de vez em quando, como aconteceu pouco depois, quando notei as suas idas e vindas. Tinha notado que, quando estava nos vales e as via nos rochedos, assustavam-se e fugiam com uma ligeireza extrema; mas se estavam a pastar nos vales e eu estava nos rochedos, não se mexiam, nem davam mesmo por mim. Daí =concluí que, pela posição do seu nervo óptico, tinham a vista de =tal modo baixa, que não viam facilmente os objectos que estavam por cima delas: o que fez com que depois eu tivesse o cuidado de subir sempre aos rochedos para começar uma caçada a fim de estar mais alto que elas, e então matava muito à vontade. Ao primeiro tiro que disparei matei uma cabra que tinha junto de si um cabrito ainda de mama, o que me custou bastante: quando a mãe caiu, o filho manteve-se ao pé dela quando fui =buscá-la; pu-la às costas, e o cabrito seguiu-me até à minha =habitação; pus a cabra no chão e depois, pegando no filho ao colo, levei-o para dentro de casa, com a intenção de o sustentar; mas ele não quis comer, o que me obrigou a matá-lo e a =comê-lo eu. Esta caça sustentou-me por muito tempo; porque eu vivia com economia e governava as minhas provisões, sobretudo a bolacha, o mais que era possível. Vendo fixa a minha habitação, =achei que era absolutamente necessário escolher um sítio e juntar as provisões para acender lume. Mas o que fiz com esse fim, a maneira como alarguei a minha caverna, as riquezas e as comodidades que lhe juntei, é o que hei-de contar a seu tempo. Devo agora dar conta do que me diz respeito pessoalmente, e dos pensamentos que agitavam de diversos modos o meu espírito, por causa de um género de vida tão estranho, como bem se pode imaginar. A minha condição apresentava-se-me aos olhos sob o aspecto duma imagem terrível; porque como fora lançado para essa ilha depois de uma violenta tempestade, depois de me ter achado a algumas centenas de léguas do rumo ordinariamente seguido pelos navegadores, tinha muita razão em atribuir esse acontecimento a uma sentença da justiça divina, que me condenava a terminar penosamente a minha vida em tão triste situação. Enquanto eu fazia estas reflexões, corriam-me as lágrimas ao longo das faces: também às vezes me lamentava da =Providência me ter abandonado a tal ponto.
Mas esses pensamentos eram sempre contrabalançados por outros que lhes sucediam rapidamente, e me mostravam que não tinha razão. Um dia, passeando eu à beira-mar, com a espingarda debaixo do braço, estava muito pensativo sobre a minha condição presente; quando a razão, que sabe o pró e o contra, veio replicar aos murmúrios que me tinham saído dos lábios: - Pois bem - dizia eu comigo em voz baixa - estou numa miserável condição, é verdade. Mas onde estão os meus companheiros? Não éramos onze no escaler? Onde estão os =outros dez? Porque é que eles não se salvaram? Porque é que fui o único poupado? Não se devem considerar as coisas pelo lado bom e pelo lado mau? E os bens de que gozamos não nos devem consolar dos males que nos afligem? Em seguida considerava como estava vantajosamente abastecido para o meu sustento, qual seria a minha sorte se o navio flutuasse para fora do banco onde encalhara primeiro. Teria sido absolutamente impossível abastecer-me das coisas indispensáveis para o sustento da vida. - O que seria feito de mim? - exclamei, em voz muito alta, neste monólogo. - Que seria feito de mim sem a minha espingarda, por exemplo, sem munições para ir à caça, =sem ferramenta para trabalhar, sem fato para me cobrir, sem cama para descansar, sem barraca para habitar? Gozava dessas coisas, estava abundantemente provido delas, de tal maneira que poderia qualquer dia dispensar a minha espingarda, quando as munições se tivessem acabado, tendo ainda com que subsistir durante longos anos. Porque eu previra, desde o princípio, a maneira de remediar todos os acidentes que me acontecessem, não só no caso de me virem a faltar as munições, mas também quando a saúde ou as =forças faltassem. Confesso contudo que não me viera ainda à ideia que podia perder as minhas munições duma só vez; o fogo do céu =podia fazer ir pelos ares toda a minha pólvora, e era essa a ideia que me consternava tanto todas as vezes que o relâmpago ou o trovão vinha recordá-lo. Devo agora descrever uma vida como nunca se ouviu falar de outra igual neste mundo, uma vida silenciosa. Para tal vou voltar ao princípio. Foi a 30 de Setembro que pus pela primeira vez pé em terra nesta ilha assustadora, na época em que o Sol, estando no equinócio do Outono, dardejava quase perpendicularmente os seus raios sobre a minha cabeça; porque, segundo os meus cálculos, devia estar na latitude de nove graus e vinte e dois minutos a norte do equador. No quinto dia da minha chegada à ilha, reflecti que me perderia no cálculo do tempo por não ter papel, pena, tinta; e que não poderia mais distinguir os domingos dos dias da semana se não lhe descobrisse substituto. Para evitar essas confusões, erigi ao pé da praia, no =sítio onde saltara em terra pela primeira vez, um grande poste quadrado, com o qual fiz uma cruz e onde gravei esta inscrição:
Cheguei a esta ilha em 30 de Setembro de 1659
Nos lados desse poste, marcava cada dia com um risco; passando sete dias, marcava um risco maior; e todos os primeiros dias do mês, um outro duas vezes maior que o do sétimo dia. E desta maneira tinha o meu calendário, o meu cálculo de semanas, meses e anos. Devo observar que entre o grande número de coisas que tirei do navio, nas diferentes viagens que a ele fiz e já mencionei, encontrei muitas coisas menos importantes, é verdade, do que aquelas que já relatei, mas que nem por isso deixaram de ser para mim de grande uso; por exemplo, penas, tinta e papel, que achei nos camarotes do capitão, do piloto e do carpinteiro; três ou quatro compassos, instrumentos de matemática, quadrantes, óculos de =aproximação, mapas e livros de navegação, tudo isto que trouxe sem ordem, sem me dar ao trabalho de examinar o que me poderia servir ou não; encontrei três Bíblias muito boas, que recebera como carregamento de Inglaterra, e que tivera o cuidado de meter nas malas quando parti do Brasil; além disso, alguns livros portugueses, e, entre outros, dois ou três livros de orações =e muitos outros que também tive o cuidado de pôr na mala. Não =se deve esquecer também que tínhamos no navio dois gatos e um cão, cuja história famosa pode muito bem ter lugar nesta e dar-lhe relevo; levei os gatos comigo, e quanto ao cão ele mesmo saltou do navio para o mar e veio ter comigo no dia seguinte ao sítio onde eu depusera a minha primeira carga. Durante muitos anos desempenhou junto de mim as funções de um servo e de um camarada fiel; não me deixava nunca esquecer do que era capaz de ir procurar, empregava todas as manhas do instinto para me fazer boa companhia; só desejava uma coisa que sabemos perfeitamente impossível: fazê-lo falar. Já =disse que tinha encontrado penas, tinta e papel; hão-de ver como darei conta de tudo o que se passar enquanto durar a tinta, mas, quando acabar, torna-se-me isso impossível, porque não pude encontrar outro meio de escrever, nem nada que o substituísse. Por mais considerável que fosse este armazém que eu juntara, faltava-me ainda grande quantidade de coisas: nesse número estava uma enxada, um alvião e uma pá para =cavar e transportar terra; agulhas, alfinetes e linhas. Esta falta de ferramentas explica-se pela minha lentidão em tudo o que fazia: passou-se perto de um ano antes que tivesse acabado inteiramente a minha paliçada e recinto. As estacas de que era formada a paliçada pesavam tanto, que me custava imenso levantá-las; era preciso tanto tempo para as cortar nos bosques, para as aplainar e sobretudo para as conduzir até à minha habitação, que uma só levava-me =às vezes dois dias, desde o cortar até ao enterrar no chão. Para este último trabalho, servia-me no princípio de uma grande peça de madeira; depois, imaginei que seria mais cómodo servir-me de uma alavanca de ferro; foi o que fiz; mas, apesar deste auxílio, não deixou de ser um rude e longo exercício esse de enterrar as estacas. Mas eu não tinha motivo para desanimar pelo imenso tempo gasto numa obra, qualquer que ela fosse; não devia ser avaro de tempo, e não sabia em que poderia empregá-lo se essa obra terminasse, a não ser visitar a ilha para procurar sustento; e é o que fazia todos os dias. Comecei então a pensar seriamente na minha situação e nas circunstâncias com que era acompanhada. Pus por escrito o estado dos meus negócios, não para o deixar aos meus sucessores (porque não havia aparências de que eu tivesse muitos herdeiros) mas para afastar do meu espírito os pensamentos diferentes que vinham em tropel acabrunhá-lo todos os dias. A força da razão começava a tornar-se senhora do abatimento do coração e, para a secundar com todos os meus esforços, fiz um inventário dos bens e dos males que me cercavam, comparando uns com outros, a fim de me convencer de que havia gente ainda mais desgraçada do que eu. Considerado tudo pausadamente, resultava uma conclusão incontestável: não há condição tão miserável na =vida que não tenha alguma coisa de positivo ou de negativo que deva ser considerada como um favor da Providência. Já acostumara um pouco o espírito a suportar a minha condição; abandonara o hábito de olhar para o mar a ver se avistava algum navio e, deixando de perder o meu tempo em coisas vãs e muitas vezes aflitivas, quis daí por diante empregá-lo todo em alcançar =as doçuras possíveis deste género de vida. Já descrevi a minha habitação que colocara ao pé de um rochedo, e que era um barracão cercado de uma fileira dupla de fortes estacas atadas por cabos: Mas eu poderia dar perfeitamente o nome de muralha a esse tabique, porque efectivamente tinha-o murado para o lado de fora, com um reforço de relva de dois pés de espessura, e, no fim de ano e meio ou perto, juntei caibros que, vindos do alto da paliçada, se encostavam ao rochedo, e que guarneci e entrelacei com ramos de árvores e com outros materiais que pude encontrar, para me resguardar das chuvas que pareciam ser muito violentas em certo tempo do ano. No interior havia um monte confuso de móveis e ferramentas que, por não estarem arrumadas, ocupavam quase todo o espaço, de sorte que pouco me restava para me mexer. Pus-me, assim a alargar a minha caverna e a trabalhar debaixo da terra, porque o rochedo era muito largo e cedia facilmente ao trabalho que lhe fazia. Assim, vendo-me suficientemente em segurança contra os animais ferozes, adiantei os meus trabalhos na rocha para a direita, e depois, voltando ainda uma segunda vez à direita, consegui fazer uma abertura, para poder sair por uma porta que fosse independente da paliçada ou das fortificações. Esta obra não dava =somente uma espécie de porta traseira à barraca e à arrecadação =para aí ter uma entrada e uma saída, mas ainda me dava espaço =para arrumar móveis. Foi então que me apliquei a fabricar os que me eram mais necessários, e comecei por uma cadeira e uma mesa, móveis sem os quais não podia escrever nem comer com à =vontade e prazer suficientes. Meti, pois, mãos à obra e não posso deixar de notar que =não há homem que, à força de examinar cada coisa em particular =e de a julgar segundo as regras da razão, não possa, com o tempo, tornar-se habilíssimo numa arte mecânica. Nunca manejara na minha vida ferramenta alguma e, contudo, pelo meu trabalho, pela minha aplicação, pela minha destreza, achei no fim que podia fabricar tudo o que me fazia falta desde que tivesse os instrumentos próprios; mesmo sem instrumentos fiz muitas obras, e algumas delas só com o auxílio de um machado e de uma plaina, embora com trabalho infinito. Se, por exemplo, quisesse possuir uma tábua, não tinha outro meio senão cortar uma árvore de ambos os lados =até a tornar suficientemente delgada, e aplainá-la em seguida. É bem verdade que por este método não podia senão fazer uma tábua de uma árvore inteira; mas, para isso, assim como para o trabalho e tempo que me levava não havia outro remédio =senão ter paciência. Além disso, o meu tempo e o meu trabalho eram tão preciosos, que tanto fazia empregá-lo desta maneira como de outra. Fiz, pois, uma cadeira e uma mesa; foi por aí que comecei, e, servindo-me dos pedaços de tábuas que trouxera na minha jangada. Mas, além das tábuas, fiz grandes prateleiras da largura de um pé e meio, que coloquei umas por cima das outras ao comprido de um lado da caverna, para lá pôr ferramentas, pregos, ferragem, ou seja, para arrumar separadamente todas as coisas e poder encontrá-las facilmente. Cravei cabides na parede de um rochedo, para pendurar espingardas e outros objectos. De tal maneira que alguém que visitasse a caverna se julgaria num armazém geral de todas as coisas necessárias: a boa ordem que aí reinava permitia, antes de mais, achar à =mão o que se procurava, e essa ordem, junto com a abundância de objectos úteis e cómodos, causava-me muita satisfação. Vendo-me estabelecido no meu domicílio, provido de móveis, com uma cadeira e uma mesa, tudo tão bem acondicionado, comecei a fazer um diário, que continuou enquanto a tinta durou.
TRECHOS DO DIÁRIO DE ROBINSON
Aí vão alguns trechos desse diário. No dia 1 de Novembro, armei a minha barraca ao pé do rochedo; fi-la o mais espaçosa possível, segurando-a com estacas que cravei e nas quais suspendi a minha maca. Dormi aí na primeira noite. No dia 4, pela manhã, prescrevi uma regra e impus a mim mesmo o dever de a observar diariamente, daí por diante: era dividir o meu tempo para trabalhar, passear com a espingarda, dormir e ter pequenos divertimentos. Arranjei a coisa da maneira seguinte: pela manhã, ia passear com a espingarda durante duas ou três horas, desde que não chovesse; em seguida punha-me a trabalhar até perto das onze horas, comendo em seguida o que a Providência e a minha habilidade me tinham preparado; ao meio-dia deitava-me e dormia até às duas, porque fazia muito calor; enfim, voltava para o trabalho à tarde. Destinei esse dia e o seguinte a fazer uma mesa; e é a minha opinião que todo o homem que se visse no meu lugar não se faria menos hábil ensinado pelos grandes mestres que são o tempo e a necessidade.
Foi a 17 que comecei a cavar no rochedo, por detrás da barraca, para ficar mais à larga, mais à vontade. Faltavam-me três coisas muito necessárias para essa obra: um alvião, =uma pá e um carrinho de mão ou um cesto. Interrompi, pois, o trabalho, e pus-me a pensar no que faria para suprir essa falta. Substituí o alvião facilmente por alavancas de ferro que serviam para esse fim, embora pesadas; quanto à pá, era para mim tão necessária que sem ela nada podia efectivamente fazer; todavia não sabia ainda como substituí-la. No dia seguinte18 de Novembro, procurando nos bosques, encontrei uma árvore que, se não era a mesma que os brasileiros chamam a árvore de ferro por causa da sua extrema dureza, pelo menos parecia-se muito com ela. Fatiguei-me singularmente a cortar-lhe um pedaço, depois de ter estragado um machado; e não foi com menos custo que a levei até ao meu domicílio, porque era também muito pesada. A dureza excessiva da madeira, o modo como eu era obrigado a levá-la, fizeram com que levasse muito tempo a construção dessa ferramenta; mas enfim, pouco a pouco, dei-lhe uma forma entre a pá e a enxada. Tinha o cabo feito exactamente como aquelas que se usam em Inglaterra; mas desprovida de ferro em volta não podia ter tanta duração: bastou porém para os fins =que lhe destinava. Faltava-me ainda outra coisa: um cesto ou um carrinho de mão. Não podia de modo algum fazer um cesto, porque não =tinha nem sabia se havia na ilha salgueiro, vime, ou outra árvore cujos ramos fossem próprios para essa obra. Quanto ao carrinho parecia-me que o conseguiria fazer, excepto a roda para cuja construção me não sentia com muita habilidade; além disso =não tinha nada para forjar o eixo de ferro que deve passar no cubo. Assim fui obrigado a renunciar ao uso deste último instrumento e, para levar para fora da caverna a terra que tirava cavando, servi-me de um meio muito semelhante ao que os operários empregam para carregar a cal. O feitio deste último instrumento não me custou tanto a trabalhar como o da pá, mas um e outro, junto com a tentativa inútil de fazer um carrinho, não me levaram menos de quatro dias inteiros, tirando o meu passeio matutino; era raro o dia em que não saía com a espingarda voltando a casa com alguma coisa de comer. 25 de Novembro. Tendo eu interrompido o outro trabalho porque me ocupara a fazer ferramentas, tornei a pegar-Lhe logo que esses trabalhos acabaram, trabalhando cada dia tanto quanto as minhas forças e as regras que prescrevera para a distribuição do meu tempo mo permitiam. Gastei dezoito dias em alargar e fazer alongar a caverna, até poder arrumar nela comodamente todos os móveis. Note-se que fiz um lugar bastante espaçoso para me servir de armazém, de cozinha, de sala de jantar e de celeiro; entretanto habitava a minha barraca, excepto em certos dias de Inverno durante os quais chovia tanto e tanto, que não estava nela bem abrigado. E foi isso que me obrigou depois a estender, sobre todo esse espaço que encerrava a minha paliçada, compridas varas sobre traves encostadas ao rochedo, e em cobri-las com espadanas e grandes folhas. A 10 de Dezembro quando já considerava a minha abóbada acabada separou-se de repente uma grande quantidade de terra de um dos lados da parte de cima, o que fez tal estrondo que me assustei imenso, e com razão, porque se estivesse nessa ocasião por baixo não precisaria de outro enterro. Tive muito que fazer para reparar esse desastre; primeiro, tirar a terra que tinha caído; em seguida, o que era mais importante, escorar a abóbada para evitar que o acidente se repetisse. A 11, trabalhei para esse fim; erigi duas escoras que se pregavam em cima com dois pedaços de tábua em forma de cruz. Acabei essa obra no dia seguinte; continuei, durante perto de uma semana, a juntar outras escoras semelhantes às primeiras, que sustentaram com segurança completa a minha abóbada, e que, formando uma fileira de colunas, pareciam dividir a minha casa em dois compartimentos. Dia 17. Desde este dia até 20, ocupei-me em colocar prateleiras e em pregar pregos nas escoras, para colocar tudo o que pudesse estar suspenso; a partir desse momento, pude gabar-me que havia ordem e arranjo na minha habitação. A 20 de Dezembro, comecei a levar os meus móveis para a caverna, a guarnecer a minha casa, e a fazer uma mesa de cozinha onde preparar a carne. Servi-me de tábuas para esse fim; mas esse material continuava a rarear. A 27, matei um cabrito e estropiei um outro, que consegui agarrar e levei de rastos até casa e aí tratei-Lhe da perna. Notem que tive tanto cuidado com ele que sobreviveu e em pouco tempo ficou rijo dessa perna como da outra; depois de viver na minha companhia bastante tempo familiarizou-se, e pastava na relva que havia dentro dos meus domínios sem nunca tentar fugir. Foi então que me veio pela primeira vez à ideia arranjar animais e tê-los comigo, para ter com que me sustentar quando acabasse a pólvora e o chumbo. No dia 1 de Janeiro de 1660, estava ainda muito calor; mas saí pela manhã muito cedo com a espingarda. Desta vez, tendo avançado mais nos vales que estão mais ou menos no centro da ilha, vi que havia grande quantidade de cabras mas eram selvagens e de difícil acesso. No dia 3, comecei as minhas fortificações, ou por outra a minha muralha; e, como sempre tinha algum receio de ser atacado, nada esqueci para tornar a obra suficientemente forte. Como já fiz a descrição dessa muralha, omito expressamente aqui o que estava escrito no diário. Basta dizer que demorei até 14 de Abril a fazê-la e a torná-la =completa: formava, como já expliquei, um semicírculo que principiava num lado do rochedo e acabava no outro. Fatiguei-me muito neste intervalo de tempo durante o qual me vi contrariado pela chuva, não muitos dias mas semanas e meses. É verdade que não me julgava em segurança sem que essa muralha estivesse acabada; quando isto aconteceu e depois de a ter revestido com relva por fora persuadi-me que se alguém desembarcasse na ilha, não descobriria que ali existia uma habitação. E fiz bem, como se verá mais adiante numa ocasião muito notável. Contudo continuava a dar os meus giros pelos bosques para ver se matava alguma caça, a não ser que a chuva me impedisse; e nesses passeios acontecia-me amiúde descobrir ora uma coisa ora outra que me eram vantajosas. Encontrei, por exemplo, uma espécie de pombos que não fazem ninho nas árvores como os pombos bravos, mas sim nos buracos de rochedos, parecidos com os dos pombais: apanhei alguns dos pequenos, com a tenção de os sustentar e de os domesticar, o que consegui; mas quando se tornaram crescidos, voaram e não voltaram mais, talvez devido a falta de alimento, porque não tinha com que lhes encher o papo. Fosse como fosse achei facilmente os seus ninhos, e tomei-lhes os filhos, que proporcionaram à minha mesa manjares deliciosos. Contudo, via na administração da minha casa que me faltavam muitas coisas que julguei ao princípio impossível de conseguir fabricar para meu uso; nunca consegui, por exemplo, acabar um tonel e pôr-lhe os arcos; tinha um ou dois barris, como disse, mas não tinha suficiente habilidade para construir um apesar de todos os esforços que fiz para isso durante muitas semanas; foi-me impossível pôr-lhes os fundos, ou juntar as aduelas o suficiente para neles ter água, até que abandonei este projecto.
CONTINUAÇÃO DO DIÁRiO - TREMOR DE TERRA
Faltava-me ainda um candeeiro pelo que tinha que deitar-me logo que anoitecia, normalmente pelas sete horas. Quando matava alguma cabra, conservava-lhe o sebo; em seguida fiz secar ao sol uma pequena palmatória de barro que fabricara, e com um fio a servir-me de mecha, fiquei com uma lâmpada cuja chama não era tão luminosa como a de um candeeiro, derramando um clarão sombrio. No meio de todos os meus trabalhos, aconteceu-me achar, remexendo nos móveis, um saco que os meus companheiros de bordo tinham enchido de grão com o fim de sustentar as galinhas, não para essa viagem, mas para uma precedente, que era, parece-me a de Lisboa ao Brasil; já falei dele: o que restava do trigo fora roído pelos ratos, e já lá não havia senão poeira. Ora, como eu precisava do =saco para outra coisa, se não me engano para meter pólvora, quando a separei com medo dos relâmpagos, fui sacudi-lo ao pé dos rochedos, ao lado das fortificações. Este facto deu-se pouco antes das grandes chuvas e fiz tão pouco caso do que acabara de fazer que no fim de um mês ou perto já não me lembrava =de semelhante coisa, quando descobri aqui e ali algumas hastes que saíam da terra: tomei-as primeiro por plantas que não conhecia. Mas algum tempo depois fiquei espantado de ver dez ou doze espigas fecundadas que eram duma cevada verde perfeitamente boa, da mesma espécie que na Europa. É impossível exprimir qual foi o meu espanto e a diversidade dos pensamentos que então me vieram ao espírito. Até aqui a religião não tivera parte no meu procedimento ou lugar no meu coração; considerava tudo o que me acontecera efeito do acaso; quando muito escapava-me às vezes dizer de corrida, como faz naturalmente muita gente, que Deus era o senhor, sem pensar no seu papel ou na ordem que se observava na disposição dos acontecimentos deste mundo. Mas depois de ver crescer cevada num clima que eu sabia não ser de modo algum próprio para o trigo e sem saber porquê, fiquei cheio de espanto, e pus primeiro no espírito que Deus fizera crescer esse trigo miraculosamente, sem o concurso de semente alguma e que operara esse prodígio unicamente para me fazer subsistir neste miserável deserto. Mas enfim recordei-me que tinha sacudido nesse lugar um saco onde havia milho para as galinhas, e reconheci que não havia nada de sobrenatural nesse acontecimento. Contudo era extraordinário e imprevisto, e não exigia menos gratidão do que se fosse miraculoso; porque, como a Providência dirigira as coisas de maneira a que restassem doze grãos inteiros num pequeno saco abandonado aos ratos, visto terem sido comidos os outros grãos; além disso fez que os lançasse exactamente =num sítio onde a sombra de um grande rochedo os fez germinar; e fez que não tivesse despejado o saco num sítio onde teriam sido logo queimados pelo sol, ou encharcados pelas chuvas: era um favor tão real como se tivessem caído do céu. Como podem imaginar, não deixei de fazer a colheita de trigo na estação própria, no fim de Junho; e, comprimindo até =ao menor grão, resolvi semear tudo na esperança de que com o tempo viesse a colher o suficiente para fazer o meu pão. Passaram-se quatro anos antes que o pudesse provar, e mesmo ao fim desse tempo usei dele sobriamente como direi quando chegar a esse ponto; porque aquele que semeei a primeira vez perdeu-se quase todo, por ter escolhido mal o tempo, semeando-o na estação seca, o que fez com que morresse ou crescesse muito pouco. Mas falaremos disso com mais minuciosidade noutra parte. Além desta cevada, houve ainda umas trinta espigas de arroz, que conservei com o mesmo cuidado servindo-me depois para fazer pão e para guisar, pois descobri como prepará-lo sem o fazer em pasta. Trabalhei durante três ou quatro meses na construção da minha muralha e acabei-a a 14 de Abril; a entrada fazia-se por meio de uma escada e não de uma porta, com medo que notassem de longe a minha habitação. A 16 de Abril, acabei a escada: nada nem ninguém podia entrar senão passando por cima da muralha. No dia seguinte pouco faltou para todos os meus trabalhos e mesmo a minha vida se perderem; eis como tudo se passou: quando estava na minha barraca fiquei repentinamente aterrado ao ver que a terra se abalava do alto da minha abóbada e do cimo do rochedo que pendia sobre a minha cabeça; dois dos pilares que eu colocara na minha caverna estalaram horrivelmente, e julguei que não havia nada de novo e que era ainda a queda de uma quantidade de materiais, como acontecera já uma vez. Com medo de ficar enterrado debaixo, corri o mais depressa possível pela escada, e, não me julgando em segurança, passei por cima da muralha para me afastar e fugir a pedaços inteiros dos rochedos, que eu julgava a todo o instante irem cair sobre mim. Mal pusera o pé no chão, do outro lado da minha estacada, vi claramente um espantoso tremor de terra. Três vezes o terreno tremeu debaixo dos meus pés; entre cada abalo houve um intervalo de perto de oito minutos, e foram os três tão violentos, que os mais sólidos e fortes edifícios teriam abatido. Um lado inteiro de um rochedo, situado a perto de meia milha de mim, caiu com um estrondo que igualava o de um trovão. O próprio oceano parecia agitado com esse prodígio, e julgo que os abalos eram ainda mais violentos nas ondas que na ilha. O movimento da terra dera-me baques de coração, como me teria sucedido num navio, se estivesse no mar: não vira nem ouvira contar nada assim, e o terror de que estava possuído gelava-me o sangue nas veias, e prendia todas as potências da minha alma. Mas o estrondo causado pela queda do rochedo veio ressoar nos meus ouvidos e arrancar-me ao estado de insensibilidade em que estava imerso, para me encher de horror e de assombro, fazendo-me imaginar coisas terríveis como uma montanha prestes a soterrar a minha barraca debaixo de todo o seu peso, e com ela todas as minhas riquezas. Estava gelado de terror. Vendo depois que esses três abalos não eram seguidos de outros, comecei a tomar coragem mas não ousava ainda passar por cima da muralha, com medo de ser enterrado vivo; conservei-me sem me mexer, sentado no chão, aflito e incerto do que devia fazer. Durante esse tempo todo, não tinha nenhum pensamento sério de religião, para além de pronunciar de =vez em quando, balbuciando, "Senhor tende piedade de mim!" Contudo nem esta sombra de fé durou muito tempo, desfez-se tão depressa como o perigo. Escurecia, e o céu cobria-se de nuvens como se fosse chover. O vento levantou-se e foi aumentando tão fortemente, que em menos de meia hora rebentou um furioso furacão. Nesse instante vi o mar branco de espuma, a praia inundada pelas ondas, as árvores arrancadas da terra, todas as devastações duma terrível tempestade. Durou perto de três horas, depois foi diminuindo, e no fim de outras três o vento abrandou, e começou a chover com uma força imensa. Estava ainda na mesma situação de corpo e espírito quando =de repente reflecti que, sendo esses ventos e essa chuva consequência natural do tremor de terra, este já teria terminado e eu podia aventurar-me a voltar para casa. Estes pensamentos despertaram o meu espírito, e como a chuva apertava, fui sentar-me dentro da barraca; temendo que fosse derrubada pela violência da chuva fui forçado a retirar-me para dentro da caverna, apesar de ao mesmo tempo tremer com medo que desabasse. Este dilúvio obrigou-me a fazer uma espécie de canal do feitio de um regato através das minhas fortificações, que servisse de escoadoiro às águas que, de contrário teriam inundado a caverna. Depois de me ter abrigado durante algum tempo e de ter pensado que o tremor de terra passara, o meu espírito acalmou-se, e, para sustentar a minha coragem de que bem precisava, fui para o sítio onde estava a minha pequena provisão, fortificá-la com um golo de rum; mas, mesmo então bebi muito pouco, porque sabia bem que quando as garrafas estivessem despejadas não haveria meio de as encher. Continuou a chover durante toda a noite e parte do dia seguinte, de tal maneira que não houve meio de pôr o pé =fora de casa; mas como estava mais senhor de mim, começava a reflectir no melhor partido que tinha a tomar; estando a ilha sujeita a tremores de terra, não devia fazer a minha residência numa caverna, devia antes pensar em edificar uma cabana num sítio descoberto e desembaraçado, onde me fortificaria com uma muralha igual à primeira, protegendo-me contra todos os animais e homens; estava convencido de que se ficasse neste lugar ele seria infalivelmente o meu túmulo. Estes raciocínios fizeram-me pensar em tirar a barraca do sítio onde a levantara: se o rochedo escarpado fosse sacudido outra vez, não deixaria de cair sobre mim. Nos dias seguintes19 e 20 de Abril, tive o espírito ocupado só com a escolha do sítio para onde transferiria a residência. O medo de ser enterrado vivo fazia com que eu não dormisse tranquilamente; no entanto também não ousava deitar-me fora da fortaleza, onde ficaria descoberto e sem defesa; e quando olhava em volta e considerava a boa ordem em que pusera as coisas, o quanto estava agradavelmente escondido, o pouco que tinha a recear as agressões, sentia certamente muita repugnância em me mudar. Além disso parecia-me que levaria muito tempo a fazer novos trabalhos, e apesar dos riscos, teria de ficar onde estava até ter formado uma espécie de acampamento suficientemente fortificado onde instalar os meus alojamentos com toda a segurança. Descansei o espírito por algum tempo, e tomei a resolução =de trabalhar incessantemente na construção de uma muralha com arcadas e cabos - como da primeira vez - encerrar os meus trabalhos num pequeno círculo, e esperar, para me mudar, que estivessem acabados e aperfeiçoados. Foi a 21 que isso foi decretado no meu conselho privado. 22 de Abril. Logo pela manhã, pensei nos meios de pôr o meu projecto em execução, mas achei-me muito atrasado quanto a ferramenta: tinha três enxós e uma infinidade de machados, porque tínhamos embarcado uma provisão deles para negociar com os nativos; mas esses instrumentos, à força de bater e de cortar madeira dura e nodosa, tinham o gume todo dentado e embotado; e apesar de possuir uma pedra de afiar, não sabia como fazê-la girar. Este obstáculo atormentou muito o meu espírito e foi para mim o que seria para um homem de Estado um grande problema de política, e para o juiz a condenação ou absolvição de um criminoso. Finalmente, inventei uma roda ligada a um cordão para dar movimento à pedra com o pé, enquanto teria as duas mãos livres. Notem que nunca vira tal invenção em Inglaterra, ou pelo menos não tinha notado como era feita, apesar de ser muito comum, como depois verifiquei. Além disso a minha pedra era grossa e muito pesada, e essa máquina levou-me uma semana inteira de trabalho para a tornar perfeita e acabada. 28 e 29 de Abril. Empreguei estes dois dias em afiar todas as minhas ferramentas; a máquina que inventara para fazer girar a pedra trabalhava optimamente. 30. Vendo que havia muito tempo que o biscoito diminuía consideravelmente, passei-lhe revista e reduzi-me a um pedaço muito pequeno por dia, o que era para mim um grande desgosto. 1 de Maio. Olhando pela manhã para o mar, durante a maré baixa, vi qualquer coisa na praia; parecia um tonel. Quando me aproximei vi que um pequeno barril e dois ou três pedaços dos restos do navio tinham sido arremessados para terra pelo último furacão. Olhei para o lado do navio, e pareceu-me que estava muito mais fora de água do que estava primeiramente. Examinei o barril que estava na praia, e vi que continha pólvora e que esta não se molhara e estava toda colada e dura como pedra. Mesmo assim empurrei-o mais para dentro de terra, para o afastar da água, e fui em seguida até tão perto do navio quanto podia. Quando lá cheguei, vi que mudara de situação. O castelo da proa, que meses antes estava enterrado na areia, parecia agora levantado mais de seis pés; a popa, já antes feita em pedaços e separada do resto pelo temporal, parecia ter sido arrancada, e mostrava-se toda sobre um lado, tendo montes de areia na frente tão elevados, que me era fácil na presente ocasião ir a pé até acima, quando o refluxo se retirasse, enquanto que dantes era necessário nadar meia milha para poder aproximar-me. Comecei por ficar surpreendido com tal situação, mas logo concluí que fora causada pelo tremor de terra; e como, pelos abalos desse tremor, o navio despedaçara-se muito mais do que já estava, vinham todos os dias a terra grandes quantidades de coisas que o mar desprendia e os ventos e as ondas arremessavam pouco a pouco para a praia. Este facto fez-me deixar inteiramente o pensamento de mudar de residência, e a minha principal ocupação nesse dia foi experimentar se poderia penetrar no navio; mas vi que era coisa que devia afastar da ideia, porque o bojo da embarcação estava cheio de areia até aos bordos. Mas como a experiência me ensinara a não desesperar, resolvi fazer em pedaços tudo o que pudesse da embarcação, porque tinha a persuasão de que =o que eu tirasse dela me serviria para algum uso. 2 de Maio pus-me a trabalhar com a minha serra, e cortei de parte a parte um pedaço de viga que sustinha uma parte da meia coberta; feito isto afastei e tirei a maior porção de areia que pude do lado mais alto; mas a maré sobreveio e obrigou-me a guardar este trabalho para o dia seguinte. No dia 4 fui pescar, mas não apanhei um só peixe que ousasse comer. Quando estava a ponto de renunciar a este passatempo apanhei um pequeno golfinho. Tinha um grande cordel, mas não tinha anzol nem isca, e todavia apanhava bastante peixe tanto quanto podia consumir. Antes de o comer amanhava-o e punha-o a secar ao sol. A 5, fui trabalhar nos restos do navio; cortei outro barrote e tirei da coberta três grandes tábuas de pinheiro que atei umas às outras e fiz flutuar até à praia com a maré. No dia 6, trabalhei nos restos do navio, de onde tirei muita ferragem com o que tive um longo e custoso trabalho. Cheguei muito cansado a casa, e tinha alguma vontade de renunciar a essas fadigas. A 7 de Maio, voltei ao navio sem tenção de trabalhar mas vi que a carcaça se tinha alargado e abatido debaixo do peso da sua carga uma vez que eu lhe cortara os dois barrotes, que muitas partes do navio estavam separadas do resto, e que o porão estava tão descoberto que podia ver-se o que tinha lá dentro: não estava mudado para além da areia e água que =agora tinha. No dia 8, levei comigo uma alavanca de ferro, para desmanchar a coberta, que então estava inteiramente desembaraçada de água e de areia: tirei duas tábuas, que empurrei também para terra com a maré. Deixei a alavanca a bordo para o dia seguinte. A 9, penetrei mais no corpo da embarcação; senti muitos tonéis que fiz mover com a alavanca, mas que não pude =levá-los para terra. Senti também o cilindro de chumbo, e levantei-o um pouco mas era pesado demais. 10 de Maio. Continuei a ir ao navio e tirei muitos objectos de carpinteiro, tábuas, e duzentas ou trezentas libras de ferro. A 15 de Maio, levei comigo dois machados, para experimentar se podia cortar um pedaço de chumbo enrolado, aplicando nele o gume de um, que trataria de enterrar batendo com a cabeça do outro. Mas como estava envolto em água até perto de pé e =meio não podia dar pancada que tivesse efeito. A 16, fez muito vento de noite e a carcaça do navio pareceu ter ficado ainda mais escangalhada; demorei-me tanto nos bosques a procurar ninhos de pombos, que deixei passar a hora da maré baixa sem dar por isso, o que me impediu de ir ao navio. A 17, descobri alguns pedaços dos restos que tinham sido levados para terra a uma distância de perto de duas milhas; quis ver do que se tratava e encontrei um pedaço da popa, embora demasiado pesado para trazer. 24 de Maio; trabalhei no navio até este dia, inclusivamente, e à força de trabalhar com a alavanca durante todo este intervalo, abalei de tal modo a carcaça, que a primeira maré que sobreveio, acompanhada de um vento bastante forte, fez flutuar muitos tonéis e dois baús de marinheiros. Mas como o vento soprava de terra, nada veio à praia nesse dia, a não ser pedaços de madeira, e um tonel cheio de carne de porco, que a água salgada e a areia tinham estragado completamente. Continuei esse trabalho até 15 de Junho, sem contudo principiar nada no tempo necessário para procurar o meu sustento, e que eu fixara para a maré cheia durante essas idas e vindas, a fim de poder estar sempre pronto para a vazante. Acumulara desta maneira tábuas e ferro em bastante quantidade para construir um barco se soubesse como começar. Tirara ainda, peça por peça, perto de cem libras de chumbo em rolo. A 16 de Junho, indo para o mar, encontrei uma tartaruga, a primeira que via na ilha; mas se tinha estado aí tanto tempo sem descobrir nenhum desses animais, era antes efeito do acaso do que da raridade da espécie, porque bastava ir para o outro lado da ilha para ver milhares todos os dias; talvez também essa descoberta me tivesse saído muito cara.
CONTINUAÇÃO DO DIÁRIO - DOENÇA, CURA, TRISTEZA, CONSOLAÇÃO
17 de Junho. Empreguei esse dia a preparar a minha tartaruga e achei-lhe dentro grande número de ovos; e como desde a minha chegada a essa terrível habitação não comera de outra =carne senão da de ave ou de cabra, a carne da tartaruga pareceu-me a mais saborosa e delicada do Mundo. A 18, choveu todo o dia pelo que fiquei em casa. A chuva parecia-me fria, e sentia-me arrepiado, o que sabia não ser normal nessa latitude. A 19, achei-me muito incomodado e tendo calafrios como se fizesse muito frio. A 20, não pude descansar toda a noite, mas tive febre-e grandes dores de cabeça. A 21, estive muito mal, com terrores mortais de me ver reduzido a essa miserável condição de estar doente e sem qualquer socorro humano. Fiz o que não fazia desde a tempestade que nos assaltara à saída do rio de Humber: rezar a Deus; mas de maneira tão seca, que mal sabia o que dizia, ou porque o dizia, tal era a confusão das minhas ideias. A 22 de Junho, achei-me em melhor disposição, mas os receios terríveis que me davam a doença traziam-me a perturbação =à alma. A 23, estive outra vez muito incomodado, com calafrios, tremores e violentas dores de cabeça. A 24, melhorei muito. A 25, fui atormentado por uma febre violenta; o acesso durou sete horas, misturado de frio e calor, e terminou com um suor que me enfraqueceu muito. A 26, estive melhor; como não tinha víveres, peguei na espingarda para os ir procurar.
Sentia-me extremamente fraco mas matei uma cabra, que arrastei para casa com muita dificuldade; assei ao lume alguns pedaços e comi-os: tinha vontade de os fazer cozer para arranjar caldo, mas renunciei por falta de panela. A 27, a febre tornou a atacar-me, e tão violentamente que me fez estar de cama todo o dia sem comer nem beber. Morria de sede; estava tão fraco que não tinha forças para me levantar =e ir procurar água. Rezei outra vez; delirei; e esse delírio, ao desaparecer, deixou-me deitado exclamando somente de quando em quando: "Senhor, tende piedade de mim". Suponho que não fiz outra coisa durante duas ou três horas, até que o acesso me deixou, adormeci e não despertei senão quando a noite estava muito adiantada. Quando abri os olhos, senti-me muito aliviado, ainda que fraquíssimo e sequioso; mas que fazer? Não havia água em toda a habitação e fui obrigado a ficar na =cama até pela manhã; então adormeci. Foi durante este sono que =tive o sonho terrível que vou contar. Parecia-me que estava assentado no chão, fora do recinto da muralha, no mesmo lugar em que estava quando houve a tempestade que seguiu o tremor de terra, e via um homem que, do seio de uma nuvem espessa, negra, descia à terra no meio de um turbilhão de fogo e chamas. Era, todo ele, tão radiante como o astro do dia, de tal maneira que os meus olhos não podiam olhar para ele sem ficarem deslumbrados. O seu semblante levava o terror à alma, mas um terror que pude sentir mas não saberia exprimir. A terra, quando ele a tocou com os pés, pareceu abalar-se; e o ar, todo abrasado, parecia não ser mais que uma fornalha ardente. Assim que desceu, empunhando uma comprida lança, encaminhou-se para mim, para me matar; quando chegou a certa elevação, distante alguns passos, falou-me com voz =terrível, proferindo estas palavras ainda mais terríveis: "Morrerás, pois não te arrependeste à vista de tantos sinais". Então erguendo a lança, vi-o encaminhar-se para mim. Quem ler este relato não esperará que eu possa pintar as angústias em que esta visão emergiu a minha alma, angústias tanto mais terríveis quanto, mesmo durante o sonho, sentia um acabrunhamento real; a impressão que isso me fez no espírito não passou como um sonho, gravou-se profundamente, e depois do meu despertar conservou-se em toda a sua força, apesar das luzes do dia e da razão. Ai de mim! Pouco conhecimento conservava da religião, esquecera o que o meu pai me ensinara; as boas instruções que me dera outrora tinhám tido tempo de se apagar ao longo de uma vida licenciosa de oito anos passados entre marinheiros que não valiam mais do que eu, isto é, libertinos e descuidosos a respeito de religião, até ao supremo grau. Não sei como, durante um tão longo espaço de tempo não =me veio o menor pensamento de elevar a minha alma a Deus para admirar a sua sabedoria, ou descer ao meu interior para aí contemplar a minha miséria: uma certa estupidez de espírito se apossara de mim e banira do meu coração todo o desejo do bem, todo o arrependimento do mal; tinha todo o embrutecimento dos marinheiros vulgares, não conservava qualquer sentimento: nem temor de Deus nos perigos, nem gratidão quando Ele me livrava deles. É bem verdade que, vendo que tinha ido para o fundo o resto da tripulação, sendo o único que tivera a felicidade =de se salvar, tive uma espécie de êxtase, um arrebatamento do coração, que bem poderia terminar-se num reconhecimento cristão; mas isso foi fruto que morreu ao nascer, fogo aceso e logo extinto. Mas assim que me vi doente, quando a morte e todos os seus horrores, se apresentou a meus olhos, a minha consciência, há tanto adormecida, despertou. Então apresentaram-se ao meu espírito as lições salutares =de meu pai e a sua predição que Deus não me abençoaria se =eu desprezasse os seus conselhos. Arrependia-me amargamente, vendo que tinha a lutar contra desgraças muito violentas e pouco proporcionadas à fraqueza da minha natureza, sem auxílio, sem consolação, nem conselhos. Então exclamei: "Grande Deus! vinde em meu auxílio que sou muito desgraçado!" Esta =oração, se me permitem chamar-lhe assim, era a primeira que fazia ao fim de muitos anos. Mas voltemos ao nosso diário. A 28 de Junho, sentindo-me aliviado depois de algumas horas de sono e tendo passado o acesso, levantei-me. O terror em que o sonho me lançara não me impediu de considerar que o acesso de febre voltaria no dia seguinte, e que deveria aproveitar esse intervalo para me refazer um pouco e preparar refrescos aos quais poderia recorrer quando o mal reaparecesse. A primeira coisa que fiz foi deitar água numa grande garrafa quadrada, e pô-la em cima da mesa ao pé da minha cama; e para quebrar a frieza da água, juntei-lhe perto de meio quartilho (*) de rum, misturando tudo; cortei um pedaço de carne de cabrito, e tostei-o ao lume, mas mal lhe toquei. Saí para passear, mas achei-me fraco, triste,
(*) 1 quartilho: a quarta parte de uma canada, isto é, meio litro.
com o coração contraído à vista da minha miserável =condição, receando a volta do mal no dia seguinte. À noite ceei três ovos de tartaruga que assara na brasa; foi essa, tanto quanto me posso lembrar, a primeira refeição para a qual pedi a Deus a Sua benção. Depois de ter comido tratei de passear, mas achei-me tão fraco que mal podia pegar na espingarda, sem a qual nunca andava: por isso não fui longe; sentei-me no chão e pus-me a contemplar o mar, que tinha calmo e liso, na minha frente. Nesta atitude reflecti longamente sobre a religião. Depois levantei-me pensativo e melancólico, voltei, passei por cima da muralha. Pensei em ir deitar-me mas o espírito, em grande agitação, estava pouco disposto a dormir: sentei-me na cadeira, acendi a lâmpada. A chegada da febre dava-me terríveis inquietações, e nesse momento veio-me ao =espírito que os Brasileiros quase não tomam outro remédio para além =do tabaco, seja qual for a doença, e eu sabia que havia num dos meus baús um pedaço de rolo cujas folhas estavam secas na maior parte. Levantei-me da cadeira, e como se tivesse sido inspirado pelo céu, fui direito ao baú que encerrava a cura do meu corpo e da minha alma. Abri-o e nele encontrei o tabaco; e como os poucos livros que conservava estavam também aí guardados, tirei uma das Bíblias de que já falei quando enumerei o meu espólio, e que não tivera vagar, ou antes o desejo, de abrir uma só vez; levei-a, com o tabaco, para cima da mesa. Mas não sabia nem como empregar esse tabaco para a minha doença, nem se isto era mesmo bom; mas fiz a experiência de muitas maneiras diferentes, como se não pudesse deixar de encontrar assim a verdadeira. Primeiro tomei um bocado de folha que meti na boca, e como era tabaco verde e forte e eu não estava acostumado a ele, atordoou-me extraordinariamente; moLhei depois outra folha em rum, para tomar uma ou duas horas depois de me deitar; finalmente, tostei outra em lume forte e conservei o nariz em cima do fumo, tão perto e por tanto tempo quanto o receio de me queimar ou de me sufocar pudesse permiti-lo. No intervalo destes preparativos, abri a Bíblia e comecei a ler; mas o fumo do tabaco tinha-me abalado demais a cabeça para continuar: todavia lembro-me de que as primeiras palavras que li foram estas: "Invoca-me no dia da tua aflição, e eu te livrarei, e tu me glorificarás". Estas palavras eram muito aplicáveis ao estado em que me achava; fizeram impressão no meu espírito, tomei-as correntemente nas minhas meditações.
Fazia-se tarde, e o tabaco provocou-me vontade de ir dormir; deixei a lâmpada acesa na caverna, para se precisasse de qualquer coisa durante a noite, depois fui-me deitar; mas antes pus-me de joelhos, rezei a Deus, suplicando que cumprisse a promessa de que se O invocasse no dia da minha aflição, Ele me livraria. Assim que acabei esta oração precipitada e imperfeita, bebi o rum onde infundira o tabaco, e era tão forte que me custou muito a engolir e subiu-me bruscamente à cabeça; adormeci com um sono tão profundo, =que quando acordei não podiam ser menos de três horas da tarde: direi ainda mais, é que não podia tirar da cabeça que dormi não só toda essa noite, mas todo o dia e toda a noite seguinte e uma parte do outro dia; só assim compreendo a falta de um dia no meu calendário, erro que reconheci alguns anos depois. Ao acordar, extremamente aliviado, senti coragem e alegria; quando me levantei tinha mais força, o meu estômago tinha-se fortificado, o apetite voltara; numa palavra, não tinha febre nenhuma, e continuava a melhorar. Era o dia 28. A 30 de Junho, segundo o caminhar intermitente da doença, era o meu bom dia; saí com a espingarda, mas tratei de não me afastar muito. Matei um casal de aves do mar, muito semelhantes aos patos selvagens; levei-os para a cabana, mas não tive vontade de comê-los. Contentei-me com alguns ovos de tartaruga, aliás muito bons. À noite, reiterei o medicamento que supunha ter-me feito bem, isto é, o tabaco infundido em rum; mas a dose foi muito mais pequena que a primeira, e desta vez não masquei tabaco, nem pus o nariz sobre o fumo. Fosse como fosse, no dia seguinte, 1 de Julho, não estive tão bem como esperava; tive alguns calafrios, embora pouca coisa. A 2, repeti o remédio das três maneiras; subiu-me à =cabeça, como a primeira vez e dupliquei a quantidade da minha bebida. A 3, a febre deixou-me de vez; mas passaram-se algumas semanas antes que pudesse recuperar inteiramente as forças. Reflectia muito nestas palavras: "eu te livrarei"; e estas reflexões penetraram o meu coração, pus-me de joelhos, agradeci a Deus em voz alta a minha convalescença. A 4 de Julho, pela manhã, peguei na Bíblia e comecei no Novo Testamento. Apliquei-me seriamente a esta leitura, impondo-me fazê-la pela manhã e à noite, sem me fixar num certo número =de capítulos, mas segundo a situação do meu espírito. Este exercício ainda não durava há muito tempo quando senti =nascer no coração uma tristeza mais profunda e mais sincera, um maior peso das minhas culpas passadas; a impressão do meu sonho avivou-se e estava sobretudo comovido com estas palavras:
"À vista de tantos sinais, não te arrependeste". Era este arrependimento que pedia um dia a Deus com ardor, quando, por um efeito de Sua Providência, tendo aberto a Escritura Santa, li esta passagem: "Ele é príncípe e =salvador, nascido para dar arrependimento e remissão". Mal acabei de ler este versículo, depus o livro; e elevando o coração e mãos =ao céu, com uma espécie de êxtase e um transporte de alegria indizível, exclamei em voz alta: "Jesus, filho de David, príncipe e salvador, que vieste ao mundo para dar arrependimento, dá-mo". Posso dizer que esta oração foi a primeira da minha vida que mereceu este nome, e desde esse tempo não deixei de esperar que Deus me ouviria um dia. Desde então, a passagem Invoca-me, e eu te livrarei pareceu-me encerrar um sentido que ainda não lhe achara; antes não tinha a ideia de nenhuma outra liberdade senão a de ser livre do cativeiro em que estava detido, quero dizer, sair da ilha, que embora vasta não deixaria de ser para mim uma prisão, até das mais terríveis. Mas hoje vejo-me alumiado =por uma luz nova, aprendo a dar outra interpretação às palavras lidas; recordo com horror uma vida culpada, a imagem dos meus crimes inspira-me terror, e já não peço a Deus senão que =livre a minha alma de um peso debaixo do qual geme. Quanto à minha vida solitária, já não me aflige, nem mesmo peço a Deus =que queira libertar-me dela, já não penso nisso, e todos os outros males não me tocam em comparação deste. Junto esta =última reflexão para fazer observar de passagem, a quem quer que leia este capítulo da minha obra, que é um bem infinitamente maior subtrair-se ao pecado do que à aflição que ele provoca; mas não darei desenvolvimento a esta matéria, e torno ao meu diário. Apesar da minha condição fisicamente ser ainda a mesma, todavia tornara-se muito mais suave e suportável. Com uma leitura constante da Escritura Santa e o uso frequente da oração, os meus pensamentos dirigiam-se a Deus: sentia consolações interiores que até então desconhecia; =e como a minha saúde e as minhas forças voltavam cada dia, ocupava-me constantemente em me abastecer de tudo o que me faltava, e em tornar a minha maneira de viver tão regular quanto me fosse possível.
CONTINUAÇÃO DO DIÁRIO - EXCURSÃO NA ILHA E ESCOLHA DE UMA SEGUNDA RESIDêNCIA
De 4 de Julho até 14. A minha ocupação principal era =passear com a espingarda na mão: repetia amiúde o passeio, mas fazia-o curto, como um homem que acabava de estar doente e trata de se restabelecer pouco a pouco; é difícil compreender quanto estava cansado, e a que fraqueza me via reduzido. O remédio de que me servira era inteiramente novo, e talvez nunca tivesse curado a febre: também a experiência que fiz dele não é garantia suficiente para ousar recomendá-lo a quem quer que seja; porque se por um lado tirou a febre, pelo outro contribuiu muito para me enfraquecer, ficando-me durante algum tempo um estremecimento de nervos e fortes convulsões por todo o corpo. Estes frequentes passeios ensinaram-me uma particularidade muito importante para mim: foi que não havia nada tão pernicioso para a saúde como ir passear durante a estação chuvosa, sobretudo se a chuva era acompanhada de um temporal ou de um furacão. Ora, como a chuva que caía às vezes na estação seca nunca vinha sem tempestade, achava-a muito mais perigosa, mais para recear, que a de Setembro e Outubro. Havia perto de dez meses que estava nesta triste residência; toda a possibilidade de sair dela parecia-me perdida para sempre, e acreditava firmemente que nunca criatura humana pusera pé nesse sítio selvagem. A minha habitação =parecia-me suficientemente fortificada: tinha um grande desejo de fazer uma descoberta mais completa da ilha, de encontrar produções que me tivessem ficado ocultas até então. Foi a 15 de Julho que comecei a fazer uma visita na minha ilha, a mais exacta que fiz. Fui primeiro à pequena baía de que já fiz menção, e onde desembarcara com todas as minhas jangadas.
Caminhei ao longo do rio e depois de ter andado duas milhas a subir achei que a maré não ia mais longe e que não havia =aí senão um pequeno regato, de água muito boa e doce. Mas como era Verão, a estação seca, quase não havia água em =certos sítios: pelo menos não era bastante para fazer corrente considerável. Nas margens deste regato, achei prados agradáveis, planos e cobertos de uma bela verdura, elevando-se à maneira que se afastavam. Nos sítios onde não havia vestígios de terem sido alguma vez inundados, isto é, perto das encostas que os ladeavam, achei uma porção de tabaco verde cujo caule era extremamente alto. Havia muitas outras plantas que não conhecia, e de que nunca ouvira falar, que podiam ter propriedades que ainda menos conhecia. Pus-me a procurar mandioca, raiz que serve de pão aos Americanos em todos estes climas; mas foi-me impossível achar. Vi belas plantas de azebres; mas não lhes conhecia ainda o uso: vi também muitas canas de açúcar, mas selvagens e imperfeitas, por falta de cultura. Contentei-me com esta descoberta por esta vez; e voltei para a cabana reflectindo sobre a maneira de saber as virtudes das plantas e dos frutos que viria a descobrir; mas fora tão pouco cuidadoso em fazer as minhas observações no tempo em que estivera no Brasil, que o pouco conhecimento que tinha das plantas do campo não podia ser de grande auxílio no estado deplorável em que me achava. No dia seguinte, 16 de Julho, prossegui na minha excursão; descobri que o regato e os prados não se estendiam mais longe, e que o campo começava a estar mais coberto de arvoredo. Aí encontrei muitas espécies de frutos, como melões que cobriam o chão e uvas que pendiam das árvores em cachos maduros e cheios, prontos para a vindima. Esta descoberta causou-me tanta surpresa como alegria. Mas soube moderar o apetite e aproveitar-me de uma experiência que fora funesta a outros, porque me lembrava de ter visto morrer na Barbaria, muitos ingleses, escravos como eu, que tinham sido atacados de febre e disenteria à força de comer uvas. Consegui evitar tão terríveis consequências preparando este fruto de uma maneira excelente: expondo-o e fazendo-o secar ao sol depois de cortado, e guardando-o como na Europa se guarda e que se chama passas de uva; persuadia-me que depois do Outono seria um alimento tão agradável como =são e não me enganei. Passei ali todo o dia; à tarde não julguei =a propósito voltar ao meu domicílio e, pela primeira vez na minha vida solitária, resolvi dormir fora. A noite chegou, escolhi um alojamento muito semelhante ao que me dera abrigo quando cheguei à ilha: uma árvore muito frondosa, onde me instalei comodamente e dormi sono profundo. No dia seguinte pela manhã, continuei na descoberta, andando perto de quatro milhas: encaminhei-me para o norte, e deixei atrás e à direita uma cordilheira de pequenos montes. No fim desta marcha achei-me numa ampla planície, que se inclinava para ocidente; um pequeno regato de água fresca saindo de uma colina, dirigia o seu curso para o lado oposto, para o oriente: toda esta região parecia tão temperada, tão verde, tão florida, que se teria tomado por um jardim plantado por mão de homem e dava gosto ver como reinava aí uma Primavera perpétua. Desci um pouco a esse vale delicioso, e fiz em seguida uma paragem para o contemplar: primeiro a admiração apossou-se dos meus sentidos, fez-me saborear em segredo o prazer de ver que tudo que comtemplava era meu, que era senhor e rei absoluto desta região; que tinha um direito de posse e que, se tivesse herdeiros, poderia transmitir-lhos tão incontestavelmente como faria com um feudo em Inglaterra. Vi grande quantidade de cacaueiros, laranjeiras, limoeiros, apercebi-me de que era tudo selvagem e de que poucos tinham fruto, pelo menos naquela estação. Todavia os limões verdes que apanhei eram não só agradáveis para comer, mas =também muito sãos; e daí por diante misturei o sumo com água, que ficava com um gosto muito agradável, ficando assim mais fresca e salutar. Via-me agora com muitos trabalhos entre mãos, como colher frutos e transportá-los para a minha habitação; tinha =decidido levar uma provisão de uvas e de limões para fazer uso deles durante a estação chuvosa, que eu sabia aproximar-se. Para tal fiz três montes, dois de uvas e o outro de limões. Tirei de cada um uma porção para levar, resolvido a voltar com um saco para levar o resto. Ao fim de três dias voltei para casa: é assim que hei-de chamar daqui por diante à minha cabana e à minha caverna. Mas, antes de lá chegar, as uvas tinham-se pisado e esmagado por causa da sua madureza e do seu peso, de sorte que já não tinham grande valor; quanto aos limões estavam muito bons mas eram poucos. No dia seguinte19, voltei com dois pequenos sacos que fizera para ir buscar a minha colheita. Fiquei surpreendido ao ver que as minhas uvas, que deixara na véspera amontoadas, estavam todas estragadas, aos pedaços, arrastadas e dispersas aqui e ali; e parte delas fora roída e devorada. Concluí que havia por perto animais selvagens que tinham feito todo aquele estrago.
Enfim, vendo que não havia meio de as ixar num monte nem de as meter num saco, porque, por um lado, ficariam apertadas e esmagadas debaixo do seu próprio peso, e por outro, seria entregá-las aos animais ferozes, achei um meio que surtiu efeito: colher uma grande quantidade de uvas, e pendurá-las na ponta dos ramos das árvores para que secassem ao sol; quanto aos limões, levei para casa o suficiente para ir bem curvado debaixo do seu peso. E Na volta desta pequena viagem, contemplava com admiração a profundidade do vale, os encantos da sua situação, a vantagem que haveria em estar ao abrigo das tempestades do vento de leste, atrás de bosques e colinas; e concluí que o sítio em que fixara a bitação era, sem =dúvida, o pior de toda a ilha. Assim pensei desde então em me mudar e escolher naquele vale fértil e agradável um lugar tão forte como aquele que eu queria deixar. Tive muito tempo esse projecto na cabeça, e a beleza do sítio fazia-me entreter a minha imaginação com prazer; mas quando considerei as coisas mais de perto e reflecti que a minha habitaÇão actual estava próxima do mar, achei que =essa vizinhança poderia dar lugar a algum acontecimento favorável para mim; o mesmo destino que me impelira para onde eu estava poderia enviar-me companheiros de infortúnio, e ainda que não houvesse muita aparência de que este feliz acontecimento pudesse realizar-se, todavia, se viesse encerrar-me nas colinas e bosques do centro da ilha, seria redobrar as minhas algemas e tornar a minha libertação pouco provável ou =até impossível: concluí pois que não devia mudar de =residência. Contudo apaixonara-me de tal maneira por este belo sítio que passei aí quase todo o resto de Julho; e apesar de ter decidido não mudar de domicílio, não pude deixar de =satisfazer em parte a minha vontade, fazendo aí uma pequena casa no meio de um recinto bastante espaçoso composto por uma dupla sebe com bastantes canas, tão alta quanto pude fazer e cheia de pequenos ramos por dentro. Dormi algumas vezes duas ou três noites consecutivas nessa segunda fortaleza, acedendo-lhe por cima da sebe com uma escada como fazia na primeira, e desde então considerei-me com duas casas, uma na costa para vigiar o comércio e a chegada dos navios, outra no campo para fazer a ceifa e a vindima. Os trabalhos que fiz nesta última ocupáram-me até 1 de Agosto. Mal acabara as minhas fortificações e começava a gozar =dos meus trabalhos, quando as chuvas me vieram desalojar e expulsar para a minha primeira habitação, de onde não devia sair tão cedo, porque apesar de ter feito na nova uma barraca com um pedaço de vela e de a ter escondido muito bem como fizera na antiga, não tinha contudo um rochedo alto e sem declive que me servisse de baluarte contra o mau tempo, nem tinha atrás de mim uma caverna para me abrigar no caso de chuvas extraordinárias. Já disse que acabara o meu casal no princípio de Agosto, e que, desde esse dia, começava a saborear-lhe as doçuras. Ajuntarei, continuando o meu diário, que no dia 3 do mesmo mês vi que as uvas que pendurara estavam perfeitamente secas, bem cozidas pelo sol, numa palavra, excelentes; comecei pois a tirá-las de cima das árvores, e fiz bem porque se não fosse isso as chuvas que sobrevieram teriam estragado completamente e ter-me-iam feito perder as minhas melhores provisões de Inverno: tinha mais de duzentos cachos. Gastei muito tempo a transportá-las para minha casa e fechá-las na caverna. Ainda não tinha acabado estas operações, principiaram as chuvas e duraram desde 14 de Agosto até meados de Outubro. É verdade que paravam às vezes; mas eram também, de vez =em quando, tão violentas que não podia sair da minha caverna dias e dias. Nesta estação tive um dia a surpresa de ver regressar à minha cabana, seguida de três filhos, uma das gatas que tinha fugido e que pensava ter morrido. Desde 14 de Agosto até 26, choveu sem descanso, e tanto que não saí em todo esse tempo; tinha muito cuidado em evitar a chuva. Durante este longo retiro, comecei a achar-me com poucos víveres; mas lá me aventurei a sair por duas vezes, matei um cabrito, e achei uma tartaruga muito grande, que foi para mim um grande regalo. Regulava as minhas refeições do modo seguinte: comia um cacho de uvas ao almoço, um pedaço de cabrito ou de tartaruga assado ao jantar - por desgraça não tinha nada próprio para ferver ou estufar o que quer que fosse - e depois à ceia, dois ou três ovos de tartaruga. Para não me aborrecer e ao mesmo tempo fazer alguma coisa de útil nesta prisão onde a chuva me retinha, trabalhava regularmente duas ou três horas por dia a alargar a minha caverna, e conduzindo a minha escavação pouco a pouco, a um dos flancos do rochedo, consegui perfurá-lo de parte a parte e estabelecer uma entrada e uma saída livres para trás das minhas fortificações, mas concebi alguma inquietação =vendo-me assim exposto, porque da maneira como arranjara as coisas antes estava perfeitamente fechado, enquanto que agora estava exposto ao primeiro agressor que me viesse atacar. É preciso contudo confessar que me custaria a justificar o receio que me veio sobre este artigo, e que era muita imaginação tanto atormentar, pois a maior criatura que tinha visto na ilha era um bode. 30 de Setembro. Este dia era o aniversário do meu funesto desembarque. Calculei as riscas marcadas no poste, e vi que havia trezentos e sessenta e cinco dias que estava em terra. Observei um jejum solene e consagrei-o todo a exercícios religiosos, ajoelhando-me com uma humildade profunda, reconhecendo a justiça dos juízos de Deus a meu respeito, e implorando enfim a Sua misericórdia em nome de Seu Filho. Abstive-me de todo o alimento durante doze horas até ao Sol poente, depois do que comi um pedaço de biscoito com um cacho de uvas e terminando esse dia com devoção como o começara, fui-me deitar. Pouco tempo depois, vi que a minha tinta me faltaria dentro em pouco; fui pois obrigado a ser muito económico, contentando-me em escrever as circunstâncias mais notáveis da minha vida, sem mencionar diariamente as outras coisas.
TRABALHOS ASSÍDUOS - NOVA EXCURSÃO NA ILHA
Distinguia já a regularidade das estações: não me =deixava surpreender nem pela chuva nem pela seca, e sabia abastecer-me para uma e para outra. Mas antes de adquirir tal experiência, fui obrigado a sofrer-lhe as consequências, e a tentativa que vou referir foi uma daquelas que me custaram mais caro. Disse mais acima que tinha conservado o pouco de cevada e de arroz, que crescera de uma maneira inesperada. Devia ter trinta espigas de arroz e vinte de cevada, e julgava que era tempo próprio para semear esses grãos, porque as chuvas tinham passado, e o Sol chegara ao meio da linha (*). Depois deste projecto, cultivei um pedaço de terra o melhor que pude com uma enxada de madeira; dividi-o em dois e semeei as minhas sementes. Durante essa operação veio-me à ideia =que faria bem em não empregar todas pela primeira vez, porque não sabia que estação era a mais própria para semear; semeei =pois perto de dois terços e guardei perto de um punhado de cada espécie. Vi depois que fizera bem em tomar essa precaução: de tudo o que semeara não houve um só grão que chegasse a germinar; =nos meses seguintes, na estação seca a terra não tinha humidade suficiente, pois não recebera chuva desde que eu fizera a sementeira, pelo que só produziu alguma coisa com a volta da estação chuvosa e mesmo então só deu uns rebentos muito =fracos que logo desapareceram.
(*) Linha equatorial celeste, isto é, elipse que o Sol parece traçar ao longo do ano e cujos pontos mais altos, são os solstícios.
Procurei um outro campo para renovar a experiência. Ao pé da minha nova fazenda cavei um pedaço de terra e semeei o resto dos grãos em Fevereiro, pouco antes do equinócio da Primavera. Esta sementeira teve os meses de Março e Abril para ser humedecida pelo que deu a mais bela colheita que podia esperar; mas como era só um resto da primeira; e não ousando arriscar tudo poupara ainda um pouco para uma terceira, deu uma pequena colheita que podia subir a dois selamins (*), um de arroz e outro de cevada. Mas a experiência que eu acabava de fazer tornou-me muito hábil neste ponto: fiquei sabendo o momento exacto em que se devia semear, e que podia cada ano fazer duas sementeiras e duas colheitas. Enquanto o trigo crescia, fiz uma descoberta de que me aproveitei pelo tempo adiante. Logo que as chuvas passaram, e que o tempo começou a pôr-se bom, o que aconteceu no mês de Novembro, fui dar um passeio à minha casa de campo. Depois de uma ausência de alguns meses, encontrei as coisas no mesmo estado em que as deixara e até, de alguma maneira, melhoradas. A dupla sebe não só estava intacta como as estacas que fizera cortando ramos de árvores tinham crescido todas e produzido compridos ramos, como os salgueiros que geralmente rebentam o primeiro ano depois de limpos desde o tronco até ao cimo; contudo não sei o nome dessas árvores cujas pernadas me forneceram estacas. Estava muito espantado de ver crescer essas novas plantas; cortei-as e cultivei-as de maneira que pudessem chegar todas a um mesmo nível, se fosse possível. Custa a acreditar como prosperaram, e a bela aparência que apresentavam no fim de três anos, pois apesar do meu recinto ser de perto de vinte e cinco toesas (**) de diâmetro, em pouco ficou completamente coberto e tão densamente que podia abrigar-me durante toda a estação seca. Isto decidiu-me a cortar outras estacas da mesma espécie e formar com elas uma cerca em semicírculo para encerrar a primeira muralha, e foi o que fiz. Plantei uma dupla fila de estacas à distância de umas oito toesas da antiga estacada;
(*) Selamim: a décima sexta parte de um alqueire. (**) Uma toesa vale cerca de dois metros.
cresceram muito depressa, fizeram-se árvores e serviram primeiro de tecto à minha habitação, e mais tarde de trincheira e de defesa como hei-de contar. Vi então que se podia em geral dívidir as estações do =ano, não como se faz na Europa, mas em tempo de chuva e de seca, o que sucedia duas vezes por ano, alternadamente. Disse já que aprendera à minha própria custa que as =chuvas eram contrárias à saúde, pelo que fazia as minhas =provisões antecipadamente, com receio de ser obrigado a sair nos meses de chuva. Mas não vão agora supor que eu estava de braços cruzados quando era obrigado a ficar em casa: tinha sempre que fazer, e deixava ainda uma infinidade de coisas que só ficariam feitas com um rude trabalho e uma ocupação =contínua. Por exemplo, quis fabricar um cesto; meti mãos à obra de muitas maneiras, mas as varetas que empregava para isso eram tão fracas, quebravam-se tão facilmente que nada consegui. Recordei-me então que, quando criança gostava imenso de ir =à loja dum cesteiro que residia na cidade onde vivia meu pai, e de o ver trabalhar: como a maior parte das crianças, prestava-lhe pequenos serviços; reparava cuidadosamente na maneira como ele trabalhava; às vezes trabalhava um pedaço, e finalmente adquirira perfeito conhecimento do método ordinário dessa arte, pelo que só me faltava material; veio-me então =à ideia que os ramos pequenos da árvore donde eu cortara as estacas talvez fossem tão flexíveis como os do salgueiro ou do vimeiro de Inglaterra, e resolvi experimentar. Com esta intenção, fui no dia seguinte à minha fazenda, =à minha casa de campo, e depois de ter cortado alguns raminhos da árvore de que acabo de falar, achei que eram excelentes para o uso que eu queria fazer deles. Voltei pouco tempo depois com um machado para cortar uma grande quantidade desses pequenos ramos, o que me não custoú muito a fazer porque as árvores de onde eram tirados eram muito comuns nesses sítios. Pu-los a secar ao sol no meu quintal, e levei-os para a minha caverna logo que ficaram bons para serviço, onde me ocupei durante a estação seguinte a fazer um certo número =de cestos, para transportar terra ou guardar fruta, ou ainda outros usos; e apesar de não ficarem perfeitos serviam bem para aquilo a que os destinava. Tive o cuidado desde então, de nunca deixar de fazer cestos, e à medida que os velhos se deterioravam, fazia outros novos. Dediquei-me sobretudo a fazer alguns cestos fortes e fundos para meter o trigo que colhesse em vez de o meter em sacos. Quando resolvi esta dificuldade, puxei pela imaginação para ver se seria =possível suprir a necessidade extrema que tinha de duas coisas: em primeiro lugar precisava de recipientes para líquidos, pois só tinha dois pequenos barris, ambos com bastante rum, e algumas garrafas de vidro de tamanho médio, umas quadradas e outras redondas, que continham aguardentes e outros licores. Não possuía nem uma panela ao menos para cozer o que quer que fosse, mas apenas uma grande marmita que salvara do navio, pequena demais para fazer caldo ou assar carne. A segunda coisa de que precisava era de um cachimbo para fumar, o que durante algum tempo me pareceu impossível de arranjar. Mas achei uma boa invenção para remediar essa falta. Ocupava-me eu em plantar a minha segunda fila de estacas ou em fazer cestos, pelo fim do Verão, quando um outro negócio me veio tomar parte do meu tempo, que me era tão precioso.
ROBINSON CONSEGUE FAZER-SE BOM CARPINTEIRO E HÁBIL CULTIVADOR
Disse mais acima que tinha imenso desejo de percorrer a ilha toda, que chegara a ir até à nascente do regato, e dali até =ao lugar onde estabelecera a minha fazenda, e onde se via até à outra costa da ilha e à praia do mar. Quis ir mais além; peguei na minha espingarda, levei um machado, e o meu cão, uma boa porção de pólvora e chumbo, =e dois ou três cachos de uvas que meti no saco, e pus-me a caminho. Depois de ter atravessado todo o vale de que já falei, descobri o mar a oeste, e como o tempo estava muito claro, vi distintamente a terra; não podia afirmar se era ilha ou continente, mas eu via que era muito elevada, que se estendia de oeste a oeste-sudoeste, e não podia estar afastada mais de quinze léguas. Sobre a situação desta terra só sabia que estava na =América, e segundo todos os cálculos que pude fazer, devia confinar com os países espanhóis; era possível que fosse toda habitada =por selvagens e que, se lá tivesse aportado, me teriam feito sofrer uma sorte mais dura do que era a minha. Acedi pois facilmente às disposições da Providência, =que leva todas as coisas pelo melhor. Esta descoberta não me desassossegou, e não importunei o meu espírito com desejos impossíveis. Além disso, quando considerei maduramente a coisa, achei que, se essa costa fazia parte das conquistas espanholas, havia de ver passar lá de quando em quando alguns navios; se pelo contrário não visse um só, esta costa devia ser a que separa a Nova Granada do Brasil, é um retiro de selvagens dos mais cruéis, visto que são antropófagos ou comedores de =homens e não deixam de matar todos os que lhes caem nas mãos. Avançava com todo o vagar, fazendo estas reflexões. Este lado da ilha pareceu-me muito diferente do meu; as paisagens eram bonitas, os vales e as planícies verdejantes e esmaltados de flores, os bosques altos e copados. Vi muitos papagaios; confesso que tive vontade de apanhar um para domesticar e ensinar a falar. Custou-me bastante, mas afinal apanhei um que deitei ao chão com uma pancada; levantei-o, aconcheguei-o ao peito, tratei-o, e pôs-se bom e tão rijo que o levei para casa. Passaram-se alguns anos antes que eu pudesse fazê-lo falar, mas finalmente ensinei-o a chamar-me pelo nome dum modo completamente familiar: resultou daí um incidente que no fundo não passa de uma bagatela, mas que não deixará de divertir =o leitor, e que contarei no seu lugar. Esta viagem proporcionou-me muito prazer; encontrei nos lugares baixos animais que me pareceram lebres, uns e outros raposas; mas tinham alguma coisa de diferente de todos os outros que vira até então, e apesar de ter morto muitos consegui não os comer. Efectivamente faria mal em correr algum perigo por causa dos alimentos, visto que tinha boa porção deles e muito bons, como por exemplo cabras, pombos e tartarugas; se se juntar a isto as minhas uvas, desafio todos os mercadores de Londres a fornecerem uma mesa melhor do que a minha, em relação ao número de convivas; e se, por um lado, =o meu estado era deplorável, por outro devia dar-me por muito feliz de que, bem longe de estar reduzido à dieta e à necessidade de jejuar, gozava de perfeita abundância e ainda variedade. Durante esta viagem, não andava mais de duas milhas por dia, calculando as distâncias de relance; mas dava tantas voltas e reviravoltas para ver se encontrava alguma coisa vantajosa que estava sempre cansado quando chegava ao lugar onde devia escolher a minha pousada para a noite, e então ia-me abrigar sobre uma árvore, ou alojava-me entre duas, plantando uma fila de estacas de cada um dos lados para me servir de barricada, ou pelo menos para impedir que os animais ferozes me viessem visitar sem me acordar primeiro. Logo que cheguei à borda do mar, a minha admiração pela =ilha aumentou; tudo o que se apresentava à minha vista me confirmava na opinião que já formara de que escolhera mal a minha morada. A costa que eu habitava dera-me apenas três tartarugas em ano e meio, enquanto que esta margem que via agora estava completamente coberta delas. Abundavam aí as aves, de muitas espécies, algumas das quais conhecia de vista; a maior parte delas eram boas para comer; não sei o nome delas, a não ser aquelas a que na América chamam pinguins.
Podia ter morto quantas quisesse, mas já tinha pouca pólvora e pouco chumbo, e antes queria matar uma cabra, se fosse possível, porque tinha mais que comer. Contudo, apesar dessa parte da costa ser muito mais abundante em cabras, era muito mais difícil aproximar-me delas porque o terreno era plano e podiam ver-me muito mais facilmente do que quando estava sobre os rochedos e as colinas. Por mais encantadora que fosse a região, não sentia o menor desejo de mudar de casa; estava acostumado à que tinha desde o princípio, e no mesmo momento que admirava as belas descobertas que fazia sentia-me como num país estrangeiro. Segui enfim o meu caminho ao longo da costa, dirigindo-me para leste, e creio que percorri algumas doze milhas: enterrei então uma grande vara na praia para me servir de referência e resolvi voltar para casa; decidi que na próxima vez que me pusesse a fazer outra viagem, seguiria para leste do meu domicílio; acabaria por dar metade da volta à ilha antes de chegar ao marco. Segui na volta caminho diferente daquele por onde viera, julgando que poderia facilmente ficar com um panorama de toda a ilha, e encontrar a minha morada. Enganava-me contudo neste raciocínio, porque quando andara duas ou três milhas achei-me num vale espaçoso, cercado de colinas de tal maneira cobertas de bosques que não havia maneira de adivinhar o meu caminho, a não ser que observasse o Sol; ainda assim era preciso que soubesse a posição desse astro, ou a hora do dia. Para cúmulo aconteceu estar o tempo sombrio durante três ou quatro dias que passei nesse vale: como não podia ver o Sol acabei por andar errante e vagabundo, e por fim fui obrigado a voltar para a beira-mar até junto da vara, e a voltar pelo caminho por onde primeiramente viera. Deste modo regressei a casa aos bocadinhos, suportando o calor excessivo e o peso da espingarda, do polvarinho, do machado, das provisões. O meu cão surpreendeu um cabritinho e agarrou-o: corri a tempo de salvar esse animalzinho das goelas do cão e de o apanhar vivo. Tinha imensa vontade de o transportar para casa; muitas vezes me ocupara, nas minhas reflexões, da ideia e dos meios de apanhar um par desses animais e de os sustentar para formar um rebanho de cabras domesticadas que me poderia servir de sustento quando a pólvora e o chumbo me faltassem. Fiz uma coleira para o cabrito e levei-o atrás de mim, não sem custo até à fazenda; quando cheguei, fechei-o. Depois de um mês de ausência, chegava a hora de voltar a casa. Não podem imaginar a satisfação que senti ao tornar a ver o = meu antigo lar, e descansar os membros fatigados no meu leito suspenso. A viagem que acabava de fazer, sem caminho certo durante o dia, sem abrigo seguro para a noite, cansara-me tanto que a minha antiga casa me parecia hoje um estabelecimento perfeito onde nada faltava. Tudo o que me rodeava me encantava, e resolvi não me afastar mais por tanto tempo enquanto o meu destino me retivesse na ilha. Fiquei em casa durante uma semana, para saborear as doçuras do repouso e refazer-me da longa viagem. Contudo um negócio de grande importância me ocupava seriamente: estava fazendo uma gaiola para o meu papagaio; começava já a ser da família e conhecíamo-nos perfeitamente. Depois pensei no pobre cabrito que deixara fechado dentro da fazenda, e julguei conveniente ir buscá-lo, ou pelo menos levar-lhe de comer. Quando acabou de comer, prendi-o e trouxe-o comigo. A fome debilitara-o a tal ponto que me seguia como um cão. Tratei dele com muito cuidado, não deixando de lhe dar de comer e de o acariciar todos os dias. Em pouco tempo tornou-se tão familiar, tão engraçado, tão meigo que nunca mais me quis deixar e foi agregado ao número dos meus outros criados. Voltara a estação chuvosa do equinócio do Outono. Fazia a =30 de Setembro dois anos que eu chegara à ilha, e não tinha mais esperança de sair dela do que no primeiro dia. Duma maneira tão solene como no ano precedente, ocupei-me todo o dia em me humilhar diante de Deus, e agradeci à Sua Divina Providência o ter-se manifestado em mim, e fazer-me conhecer que nessa solidão podia ser feliz, o que me recompensava amplamente dos males que sofria, e supria os bens que me faltavam pela presença e comunicação da sua graça; ajudando-me, consolando-me, animando-me a esperar a sua protecção para a vida presente e uma felicidade sem limites para a futura. Tempos antes, quando ia caçar ou passear ao campo, estava sujeito a cair em reflexões tristes à vista da minha =condição, e a desfalecer subitamente de dor quando observava as florestas, as montanhas e os desertos, onde, sem companheiro e sem auxílio, me via encerrado pelas barreiras eternas do oceano; estes pensamentos vinham muitas vezes surpreender-me no meio do maior sossego: como a tempestade, lançavam-me bruscamente na perturbação e na desordem, faziam-me enlaçar =as mãos uma na outra e chorar como uma criança. Às vezes estes movimentos surpreendiam-me no meio do meu trabalho; sentava-me então, suspirando amargamente, com os olhos fitos no chão durante duas ou três horas sucessivas: e isto piorava a minha condição porque se pudesse dar livre curso às minhas lágrimas e exalar a minha dor em palavras e lamentações, teria aliviado a natureza descarregando-a de =tão pesado fardo. Mas agora o meu espírito era ocupado por outra coisa; a leitura da palavra de Deus fazia parte das minhas ocupações diárias, e dela emanava toda a consolação de que o meu =estado precisava. Estava nestas disposições de espírito no começo =do meu terceiro ano de residência na ilha; e apesar de não querer aborrecer o leitor com uma relação tão exacta dos meus trabalhos neste ano, como dos do primeiro, devo todavia observar que em geral pouquissímas vezes estive ocioso, e que dividia o meu tempo em tantas partes quantas as funções diferentes que desempenhava: em primeiro lugar o serviço de Deus, a leitura das Escrituras, na qual me ocupava regularmente, até três vezes por dia; em segundo lugar, os passeios com a minha espingarda para matar animais comestíveis, passeios que normalmente duravam três horas, quando não chovia; em terceiro lugar, o trabalho que tinha de preparar, para cozer ou conservar e armazenar o que matava, o que me tomava uma boa parte do tempo. Além disso, notem que, durante todo o tempo que o Sol estava no apogeu ou perto desse ponto, o calor era tão excessivo que não era possível sair: não dispunha pois de mais de duas ou três horas depois do jantar, alternando as horas da caça com as do trabalho, de sorte que trabalhava de manhã, e saía com a espingarda à tarde. A este curto espaço de tempo destinado ao trabalho, se deve juntar a grande dificuldade do mesmo, e as horas que a falta de instrumentos e de habilidade me obrigavam muitas vezes a tirar às minhas outras ocupações para realizar a mais =pequena coisa. Citarei como exemplo os quarenta e dois dias inteiros gastos em fabricar uma prancha para me servir de tabuleiro na minha caverna, trabalho que dois serradores com a sua ferramenta e uma oficina conveniente teriam feito em poucas horas. Vou explicar como trabalhava. Ia ao bosque procurar uma árvore grossa, porque a prancha devia ser larga. Gastava três dias a cortar a árvore pela raiz e dois a tirar-lhe os ramos, a reduzi-la a uma viga lisa. À força de rachar, cortar e de martelar, desbastava-a dos dois lados, transformando-a em cavacos, e deixando-lhe só três dedos de grossura. Devem imaginar como este trabalho era rude para as minhas mãos, mas com assiduidade e paciência consegui isto, e muitas outras coisas. Quis explicar-lhe esta particularidade para mostrar ao mesmo tempo a razão por que se consumia tanto tempo em coisas tão pequenas: efectivamente, uma demora que não parece nada quando temos ajuda e ferramenta, custa, quando se está privado destas duas coisas, um tempo e um trabalho infinitos. Mas, repito uma vez mais, o trabalho e a paciência reparavam todas as faltas, supriam todas as minhas necessidades, forneciam-me em abundância tudo o que me era necessário. É o que se =há-de ver claramente na continuação da minha história.
ROBINSON CEIFEIRO, OLEIRO, MOLEIRO E PADEIRO
Chegara o mês de Novembro, e eu esperava o momento de fazer a minha colheita de cevada e arroz. E prometia ser boa até que descobri de repente que estaria em perigo de perder tudo, e de me ver roubado por inimigos de muitas espécies, de que não era possível preservar o meu campo. As primeiras hostilidades foram cometidas pelas cabras e por esses animais a que dei mais acima o nome de lebre; depois de terem provado o sabor do trigo em erva, tanto gostaram que aí ficaram acampados noite e dia, e comiam-no à medida que crescia, e tão perto da raiz, que era impossível que tivesse tempo de a espiga se formar. Este mal só tinha um remédio, que era cercar completamente o meu trigo por uma sebe. Deu-me muito trabalho e suei muito com esta obra, tanto mais que a coisa era urgente e pedia grande diligência. Contudo, como a terra lavrada era proporcionada à sementeira que fizera, de pequena extensão, tive-a fechada e protegida durante três semanas. E para melhor dar caça a esses maraus, atirava sobre alguns durante o dia, e opunha-lhes durante a noite o meu cão, que deixava preso a um poste exactamente à entrada da fazenda, de onde ele saltava aqui e ali, ladrando contra eles com todas as suas forças. Desta maneira, os inimigos foram obrigados a abandonar a praça, e em pouco tempo vi o trigo crescer, prosperar e amadurecer a olhos vistos. Mas se os animais selvagens tinham feito estragos na colheita, quando ela estava em erva, as aves ameaçavam-na de uma ruína completa desde o momento em que aparecesse coroada de espigas; passeando eu um dia ao longo da sebe para ver como ia, vi sobre a seara uma imensidade de aves de não sei quantas espécies que estavam à espreita e só esperavam que eu me fosse embora para começar o assalto. Descarreguei a minha inseparável espingarda contra elas. Imediatamente, elevou-se no ar uma densa nuvem de aves em que não tinha reparado e que estavam escondidas por entre o trigo. Custou-me ver isto porque me pressagiava o aniquilamento das minhas esperanças, a dieta em que ia cair, a perda total da colheita, e o pior é que não sabia como havia de evitar essas desgraças. Resolvi contudo salvar o meu trigo e até fazer sentinela dia e noite se fosse necessário. Mas primeiro que tudo fui ver os estragos causados. Esses diabos tinham na verdade feito estragos, mas não tanto como eu esperava: a verdura das espigas detivera um pouco a sua avidez, e se eu pudesse salvar o resto, prometia-me ainda uma boa e abundante colheita. Fiquei ali uns momentos para tornar a carregar a espingarda, depois do que afastando-me um pouco, pude ver os meus ladrões emboscados em todas as árvores dos arredores, como se só esperassem que me fosse embora para fazer nova irrupção. Não pude duvidar dos seus projectos: afastei-me alguns passos, como para me ir embora de todo. Mal eu desaparecera, desceram uns atrás dos outros ao campo de trigo. Fiquei tão irritado que nem esperei que se reunissem em maior número; parecia que me roíam as entranhas e que cada grão que engoliam tinha para mim o valor de um pão inteiro. Adiantei-me pois para o pé da sebe, e disparei um tiro sobre eles que matou três. Era justamente o que desejava com ardor, porque os apanhei primeiro para fazer a sua punição severa e tratá-los como se faz em Inglaterra aos ladrões insignes, que são condenados a ficar dependurados na forca depois da sua execução, a fim de inspirar terror aos outros. Não podem imaginar o esplêndido efeito que isso fez: as aves, depois disso, não só deixaram o meu trigo, mas abandonaram também essa parte da ilha, e não vi mais nenhuma nas vizinhanças todo o tempo que aí ficou o espantalho. Fiquei contentíssimo, como podem imaginar, e fiz a minha colheita nos fins de Dezembro, que é neste clima a estação própria para a segunda colheita. Antes de começar este trabalho, não sabia como havia de substituir a foice, porque precisava absolutamente de uma para cortar o trigo. Não tive outro partido a tomar senão o de fabricar uma o melhor que pude com um dos sabres ou cutelos que eu salvara de entre as outras armas que ficaram no navio. Quando findou a colheita, vi que o que semeara me dera perto de dois alqueires e meio de trigo. Este facto animou-me bastante, era o suficiente para me dar a conhecer que a divina Providência me não queria deixar sem pão: todavia estava =ainda muito embaraçado, porque não sabia como cozer esse pão =quando conseguisse mesmo amassá-lo. Todas estas dificuldades se juntavam ao desejo que eu tinha de juntar uma boa quantidade de provisões e de ter diante de mim um celeiro que me assegurasse pão para o futuro, e por isso resolvi não mexer nessa colheita, mas conservá-la e semeá-la toda inteira na estação próxima. Enquanto esperava, queria empregar toda a minha indústria e todas as horas do meu trabalho em pôr em prática o grande desígnio que tinha de me aperfeiçoar na arte de lavrador, assim como em tirar partido dos produtos da minha lavoura. Podia dizer, num sentido próprio e literal que trabalhava para a minha vida. Mas uma coisa espantosa, na qual não creio que muitos reflictam, são os preparativos que é necessário fazer, o trabalho que se tem, as formas diferentes que é necessário dar à obra antes de poder produzir na sua =perfeição o que se chama um pedaço de pão. Foi o que reconheci com grande pena minha, eu que estava reduzido a um estado de pura natureza; e cada vez mais me convencia disso em cada dia que ia passando, depois de ter recolhido o pouco trigo que crescera de uma maneira tão extraordinária e tão inesperada =ao pé do rochedo. Em primeiro lugar, não tinha charrua para lavrar a terra, nem enxada para a cavar. É verdade que acudi a isso fazendo a pá de madeira, de que já falei; mas reconhecia facilmente no meu trabalho a imperfeição dessa ferramenta. E apesar de eu ter perdido com ela muitos dias, todavia, como não era guarnecida de ferro em volta, não só se gastou mais cedo, mas ainda trabalhava com mais custo e menos êxito. Contudo resignava-me a tudo isso, e suportava com igual paciência a dificuldade do trabalho e o pouco resultado de que era seguido. Depois de estar semeado o meu trigo, precisava de uma grade; não tendo nenhuma, via-me obrigado a passar por cima da terra um grosso ramo de árvore que arrastava atrás de mim, mas servia mais para esfregar os torrões do que para os desfazer. Quando a minha sementeira estava florida, em espiga ou madura, de quantas coisas não precisava eu, para o armazenar, para afastar dele os animais ferozes e as aves, para ceifá-lo, secá-lo, acarretá-lo, batê-lo, joeirá-lo e espremê-lo! =Depois disto feito, ainda me faltava um moinho para moer, uma peneira para peneirar a farinha, levedura e sal para fazer fermentar e um forno para cozer o pão. Eis de um lado tantos instrumentos, e de outro trabalhos bem diferentes! Farei contudo notar que todos aqueles me faltaram, e eu não faltei a nenhum destes. O meu trigo dava-me muito que fazer; no entanto, fazia-me mais falta que tudo o mais e eu considerava-o o mais precioso dos meus bens. E Contudo, tantas coisas a fazer e tantas outras de que tinha uma necessidade extrema ter-me-iam feito perder a paciência, se eu não tivesse a convicção de que havia =remédio para isso; além disso, a perda do meu tempo não me devia desanimar, porque, na maneira como o dividia, havia certa parte do dia dedicada a estas espécies de trabalho, e como eu não queria empregar porção alguma do meu trigo para fazer =pão até ter maior provisão, tinha diante de mim os seis meses próximos para tratar de arranjar, pelo meu trabalho e engenho, todos os utensílios próprios para tirar o melhor partido dos grãos que colheria. Mas primeiramente era-me preciso arranjar um maior espaço de terra, porque já tinha grão bastante para semear mais duma colheita. Não podia cavar a terra sem ter uma enxada. Foi também por onde comecei, e para isso foi-me necessário pelo menos uma semana, e mesmo assim ficou muito grosseira e mal formada, pelo que o trabalho se tornou muito difícil. Mas isto tudo não me desanimou nem impediu de continuar. E finalmente semeei duas jeiras de terra planas e lisas, as mais próximas da minha residência que pude arranjar, e cerquei-as duma boa sebe. Este recinto era composto de plantas da mesma espécie da que rodeava a minha casa: sabia que cresceria rapidamente, e que dentro de um ano formaria uma sebe viva que poucas reparações exigiria. Este trabalho levou-me três =meses, porque uma parte deste tempo foi durante a estação chuvosa que raras vezes me deixava sair. Durante todo o tempo que estive metido em casa por causa da continuação das chuvas, ocupei-me da maneira que adiante descreverei; ao mesmo tempo que trabalhava, entretinha-me a conversar com o meu papagaio: deste modo aprendeu a falar, e a dizer o seu nome e o seu cognome, Papagaio Real, palavras estas que foram também as primeiras que ouvi na ilha pronunciadas por voz que não fosse a minha. Este pequeno animal servia-me de companheiro no meu trabalho, e as conversas que eu tinha com ele distraíam-me muitas vezes das minhas ocupações, graves e importantes, como vão ver. Havia =já muito tempo que pensava se poderia fabricar alguns vasos de barro, de que tinha imensa precisão, mas não sabia como. Todavia, quando considerava o calor do clima, sabia que, se conseguisse achar bastante argila, poderia arranjar um pote que depois de seco ao sol seria bastante duro e forte para fazer uso dele e poder meter dentro coisas que precisassem de estar ao abrigo da humidade. Como esperava ter dentro em pouco uma grande quantidade de trigo, de farinha e de outras coisas, resolvi arranjar alguns vasos e fazê-los o maior possível, a fim de os ter firmes como jarras, prontos a receber diferentes coisas que queria guardar dentro deles. O leitor teria dó, ou antes zombaria de mim se eu lhe dissesse as maneiras extravagantes como principiei este trabalho; as formas estranhas e pouco elegantes dadas às primeiras jarras, que caíram em pedaços para dentro ou para fora, porque a argila não era bastante firme para sustentar o seu próprio peso; quantas jarras se derreteram com grande ardor do sol, por terem sido expostas aí precipitadamente; quantas se quebraram ao mudá-las de lugar, umas vezes antes de secas, outras depois: de tal maneira que não pude acabar mais de dois grandes e extravagantes vasos que não me atrevo a chamar jarras, mas que me fizeram perder perto de dois meses. Mas estes estavam bem cozidos e endurecidos ao sol; levantei-os cuidadosamente, pu-los em dois grandes cestos de cana que eu fizera expressamente para os proteger; e como havia um espaço entre o vaso e o cesto, enchi-o completamente de palha, contando que estes dois vasos se conservariam sempre secos, que poderia guardar neles o trigo, e depois a própria farinha, talvez. Se não me saí lá muito bem no fabrico dos dois vasos grandes, já no de objectos mais pequenos - potes, pratos, bilhas, terrinas, vasos - tive tal êxito que fiquei contentíssimo. A argila tomava debaixo da minha mão toda a espécie de figura, e recebia do sol uma dureza surpreendente. Mas nada disso correspondia ainda ao fim que me propunha: ter um pote de barro capaz de encerrar coisas líquidas e resistir ao fogo. Algum tempo depois aconteceu que, tendo eu um bom lume para preparar as minhas iguarias, achei na fogueira um pedaço do meu serviço de barro que se achava perfeitamente cozido, duro como uma pedra e vermelho como um tijolo. Fiquei agradavelmente surpreendido e disse comigo que seguramente os meus potes também poderiam cozer-se inteiros. Esta descoberta deixou-me a considerar como havia de dispor o meu fogo de maneira a poder cozer os potes. Não tinha ideia alguma nem do género de fornalha de que se servem os oleiros, nem do verniz com que lustram a sua baixela, ignorando que o chumbo que eu tinha servia para isso. Uma vez fiz uma pilha sobre um monte de cinzas, pondo três grandes bilhas em baixo e os potes sobre elas e acendi em volta uma fogueira com madeira. Flamejava tão bem, aos lados e em cima, que em pouco tempo tinha os meus vasos todos vermelhos sem estar nenhum rachado. Conservei-os nesse grau de calor perto de cinco ou seis horas, até que descobri um que não estava rachado mas que começava a derreter-se, a desfazer-se porque o cascalho que estava misturado na argila se liquefazia pela violência do fogo, e ter-se-ia tornado em vidro se eu tivesse continuado. Assim graduei o calor até que os vasos estivessem a perder um pouco do seu vermelho, estive em pé toda a noite para vigiar o lume, com medo que se extinguisse subitamente. Ao despontar da aurora, vi-me enriquecido com três bilhas que não sendo bonitas eram contudo muito práticas e ainda três vasos de barro muito bem cozidos, um dos quais com um perfeito verniz graças à fundição do cascalho. É escusado dizer que depois desta experiência tive todos os vasos que precisei. É certo que não eram perfeitos, mas há =que ter em consideração que eu não tinha qualquer ajuda nem =método fixo, achava-me como as crianças que fazem tortas com barro empastado, ou como uma mulher que se fizesse pasteleira sem nunca ter trabalhado com massas. Não creio que possa ter-se maior alegria que a que tive quando vi que fizera um pote que resistia ao fogo. E mal os vasos acabaram de esfriar, pus um sobre o lume com água dentro para cozer a carne, o que teve um êxito completo, porque um pedaço de cabrito que pusera no vaso, fez-me um bom caldo, apesar de me faltarem muitos ingredientes para o tornar tão bom como eu queria. A coisa que eu mais desejava depois disto era uma pedra por meio da qual eu pudesse pisar ou moer trigo porque fazer um moinho foi coisa que nem me passou pela cabeça, tanta arte isso exige. O ofício de canteiro era de todos aquele para o qual tinha menos vocação, para além de não ter nenhuma =das ferramentas empregadas nesse trabalho. Procurei durante muitos dias uma pedra que fosse bastante grossa e tivesse diâmetro suficiente para poder escavá-la e fazer um almofariz; mas não encontrei nenhuma em toda a ilha, excepto a que encerrava o corpo dos rochedos, onde por falta de ferramenta, não podia cavar nem talhar, e donde por consequência nada podia tirar. Além disso os rochedos da ilha não eram apropriados, pois eram de uma pedra que se esmigalhava muito facilmente e não poderia sofrer os golpes de um pesado pilão. Desisti de procurar uma pedra e resolvi buscar nas florestas algum cepo grosso, de madeira bastante dura. Foi muito fácil achá-lo; arredondei-o e dei-lhe forma com o machado e a enxó; em seguida cavei-o com imenso trabalho, aplicando-Lhe o fogo, como fazem os selvagens para construir as canoas. E em seguida fiz um grosso e pesado pilão com uma madeira chamada pau-ferro. Vencida esta difi culdade tinha agora que fazer uma peneira ou um tamiz, sem o que não via possibilidade de vir a ter pão. A coisa era tão difícil em si mesma que quase nem tinha coragem de pensar nela: estava muito longe de poder fazer um tamiz; porque precisava de uma boa talagarça, ou de um outro tecido para passar a farinha. Este grande obstáculo reteve-me na incerteza durante muitos meses, sem avançar. Tudo o que me restava de fazendas eram apenas farrapos; tinha ainda pêlo de cabra, mas não sabia como fiá-lo. =Estafei a cabeça a procurar meio de remediar este inconveniente, quando me lembrei enfim de que havia entre a roupa que eu salvara do navio algumas gravatas de fazenda de algodão. Com alguns pedaços de gravata fiz três pequenos tamizes que me duraram muitos anos, até que os substituí do modo que depois se verá. Em seguida vinha a padaria, cujas funções iam desde o amassar ao cozer no forno. Mas não tinha levedura, nem via como substituí-la pelo que resolvi não me apoquentar com isso. Quanto ao forno, dei tratos à imaginação para encontrar =meio ; de fabricar um. Finalmente, achei uma invenção que correspondia ao meu desígnio, e é a seguinte. Fiz alguns vasos de barro muito grandes, mas pouco profundos: podiam ter uns dois pés de diâmetro por nove polegadas de fundo; cozi-os ao lume como os outros, e em seguida pu-los de parte. Ora, quando queria meter o pão no forno, começava por acender um grande lume no meu fogão que era ladrilhado de tijolos, feitos e dispostos a meu modo, não satisfazendo muito às regras de geometria. Quando a lenha da fogueira estava pouco mais ou menos reduzida a carvões espalhados sobre o lar de madeira a cobri-lo completamente, esperava que ele estivesse extremamente quente; afastava então os carvões e as cinzas varrendo tudo asseadamente, depois punha a massa que eu cobria primeiro com o vaso de barro de que já fiz a descrição e em torno do qual juntava os =carvões com as cinzas para aí concentrar o calor ou mesmo aumentá-lo. Desta maneira, cozia os meus pães de cevada tão bem como no melhor forno do mundo, e, não contente de fazer de padeiro, fiz-me ainda pasteleiro porque fiz muitos pastéis e pudins de arroz. Na verdade, não chegava ao ponto de fazer empadas, mas mesmo que conseguisse fazer alguma, só poderia meter-lhe dentro carne de cabra ou de aves da ilha, que fariam triste figura como empada por falta de temperos convenientes. Não há que admirar-se de todas estas coisas me terem ocupado durante a maior parte do terceiro ano da minha residência na ilha, uma vez que dedicava parte do meu tempo à agricultura e às colheitas. Efectivamente, cortei o trigo na mesma estação, transportei-o para casa, conservei as espigas em grandes cestos até ter vagar de as debulhar, coisa que fazia com as mãos pois não tinha uma pá nem mangual para as bater. Mas agora que a quantidade dos meus grãos aumentava, precisava de alargar o celeiro porque as minhas sementeiras tinham tido tão grande produção, que a minha última =colheita subiu a vinte alqueires de cevada e igual quantidade de arroz: de forma que desde então me julgava em estado de comer pão =à vontade, eu que dele fazia abstinência havia já tanto tempo - desde que Já não tinha biscoito. Quis ver também a =quantidade de trigo de que necessitaria durante um ano e se não poderia contentar-me com fazer uma só sementeira. Bem deitadas as contas, vi que quarenta alqueires eram o máximo que podia consumir anualmente. Assim resolvi semear cada ano a mesma quantidade que da última vez, esperando que me proporcionasse pão suficiente.
ROBINSON CONSTRÓI UM BARCO
Enquanto estas coisas se passavam, bem podem imaginar que eu ruminava os meus pensamentos sobre a descoberta que fizera da terra situada em frente da ilha, e não podia pensar nisso sem sentir desejo de ir até lá. Com efeito, considerava que aquelas paragens eram desabitadas, que aquelas onde eu aspirava chegar estavam no continente, e que, fosse qual fosse a sua natureza, poderia dali ir mais longe e achar meio de me ver livre da minha miséria. Em todos estes raciocínios não fazia entrar em linha de conta os perigos aos quais me exporia uma tal empresa; principalmente o de cair nas mãos de selvagens mais cruéis que os tigres e leões de África: seria um milagre se não me matassem para me devorar, porque me lembrava de ter ouvido dizer que os habitantes das costas das Caraíbas eram antropófagos, comedores de homens, e eu imaginava, pela latitude, que não podia estar muito afastado desse país. Ainda que esses povos não fossem antropófagos continuava a correr o perigo de ser morto por eles, se lhes caísse nas mãos, pois fora essa a sorte de muitos europeus antes de mim, apesar de serem em número de dez, e algumas vezes mesmo de vinte pessoas; mais razão tinha eu para recear por mim, só e por isso incapaz de sustentar uma longa defesa. Todas estas coisas que eu devia considerar maduramente e depois me fizeram reflectir, não me entraram no espírito ao princípio. Pelo contrário, estava inteiramente possuído do desejo de atravessar o mar para desembarcar do outro lado. Foi então que lamentei a perda de Xuri e o grande bote com vela latina, no qual navegara perto de mil e cem milhas, ao longo das costas de África; mas como nada ganhava com essas lamentações, veio-me à ideia visitar o escaler do nosso =navio, que depois do naufrágio fora arrastado para a praia, como já disse. Encontrei-o um pouco mais longe do lugar em que estava da primeira vez em que lá fora, e quase de quilha para o ar, apoiado numa grande duna para onde a violência dos ventos e das ondas o atirara e deixara inteiramente em seco. Se eu tivesse alguém que me ajudasse a consertá-lo e a lançá-lo depois ao mar, com facilidade teria chegado ao Brasil; mas devia ter previsto que me era impossível voltá-lo e assentá-lo sobre a quilha, tal como seria fazer mexer a ilha. Mas fui aos bosques, donde cortei alavancas e cilindros que levei para o sítio onde estava o escaler, resolvido a ensaiar as minhas forças e persuadindo-me de que se conseguisse desenterrá-lo dali não me seria difícil reparar =os danos que recebera e fazer dele um bom barco com o qual poderia aventurar-me ao mar. Na verdade, não me poupei esse trabalho infrutífero, e julgo que não gastei menos de três =ou quatro semanas. Mas, finalmente, vendo que as minhas forças não eram suficientes para levantar um fardo tão pesado, pus-me a cavar a terra debaixo do escaler e a empregar o trabalho de capa para o fazer cair, colocando ao mesmo tempo muitos pedaços de madeira para amparar a queda, de maneira que pudesse achar-se sobre o fundo. Mas apesar de todos os esforços não consegui movê-lo, nem mesmo fazê-lo avançar um pouco, e muito menos ainda fazê-lo entrar na água; assim, vi-me obrigado a desistir desse belo projecto, e contudo, coisa estranha, enquanto se desvaneciam as esperanças que concebéra a respeito do meu barco, o vivo desejo de me expor ao mar para alcançar o continente aguilhoava-me cada vez mais à medida que a coisa parecia menos possível. Pus-me então a examinar se seria possível construir com o tronco de uma árvore uma canoa semelhante às que fazem os nativos destas regiões. A coisa pareceu-me praticável, mesmo fácil, e só a ideia de um tal projecto, junta à persuasão =de que tinha mais recursos na imaginação para o pôr em prática =do que os Negros e os Americanos, ocupava agradavelnente o meu espírito. Mas não dava atenção alguma aos inconvenientes particulares que me aconteciam e que esses Americanos não sentiam: entre outros, por exemplo, a falta de auxílio de alguém que me ajudasse a mover o meu barco quando estivesse acabado, e a transportá-lo para o mar, obstáculo muito mais difícil de vencer para mim do que a falta de todas as ferramentas para esses selvagens. Para que me serviria, depois de ter escolhido nos bosques uma árvore de grossura suficiente, poder cortá-la com um enorme trabalho, em seguida carpinteirá-la e talhá-la com as minhas ferramentas para lhe dar a forma de um escaler, depois queimá-la ou talhá-la por dentro para a tornar oca e completa; para que me serviria tudo isso, repito, se no fim teria que deixá-la exactamente no mesmo sítio por não poder lançá-la à água? Mas o ardente desejo de entrar nesse bote para atravessar o braço de mar até à terra firme que aparecia do outro lado, cativava de tal modo todos os meus sentidos, que não pensei poder deslocar esse barco. E certamente teria sido incomparavelmente mais fácil fazê-lo galgar o espaço de quarenta e cinco milhas no mar, do que o de perto de quarenta e cinco braças que havia do lugar onde ele estava em terra firme àquele em que poderia estar na água. Fiz então a acção mais insensata que um homem pode fazer pondo-me a trabalhar nesse barco. Aplaudia-me inteiramente por me formar um tal desígnio, sem me ter convencido se seria capaz de o executar, sem deixar de pensar às vezes na dificuldade de lançar o meu barco à água; mas era uma =matéria que eu não aprofundava, e terminava todas as minhas dúvidas com esta solução extravagante: "Vamos, vamos", dizia eu comigo mesmo, "façamo-lo somente e, quando estiver acabado, procuraremos então imaginar um meio de o mover e fazer flutuar". Este método era diametralmente oposto às regras do bom senso: mas enfim levara a minha teima avante, e pus-me a trabalhar. Comecei por cortar um cedro. Duvido que o Líbano tivesse alguma vez fornecido a Salomão um cedro igual, quando construía o Templo de Jerusalém. O diâmetro dessa árvore =era em baixo de cinco pés e dez polegadas; dali, tomava quatro pés e onze polegadas com o comprimento de vinte e dois pés; em seguida ia diminuindo até à ramagem. Não foi sem imenso trabalho que abati essa árvore, porque fui assíduo durante vinte dias a machadar e a talhar na árvore. Estive mais de quinze dias a destroncar e a talhar o vértice vasto e espaçoso, em que empreguei machados e martelos e tudo o que a carpintaria me podia fornecer de mais poderoso, junto com todo o vigor de que era capaz. Custou-me um mês de trabalho para o afeiçoar e aplainar com medida e proporção, a fim de fazer dele uma coisa semelhante ao dorso de um barco, de tal modo que pudesse flutuar direito e como era necessário. Não gastei menos de três meses a trabalhar e a cavar, até ao ponto de fazer uma perfeita chalupa. Consegui isto, sem me servir do fogo ou outro meio para além do martelo, do escopro, e de uma assiduidade que nada pôde diminuir, até que me vi possuidor de um escaler muito bom, bastante grande para carregar vinte e seis homens, e por consequência mais que suficiente para mim e toda a minha carregação. Quando acabei esta obra, senti uma alegria extraordinária; e na verdade era o maior escaler, ou a mais bela gôndola que tinha visto na minha vida, feita de uma só peça. A única coisa que me restava fazer era meter-me ao mar. Mas todas as medidas que tomei para lançar o barco ao mar abortaram, apesar de me terem custado imenso trabalho. Não estava afastado mais de duzentas toesas, mas apresentava-se logo o inconveniente de que havia uma eminência no meu caminho dali à baía. Este obstáculo não me fez parar; resolvi vencê-lo por =meio da pá, e até mesmo de cortar a altura em declive. Dei começo =à obra, e não sei dizer quanto me cansei para tal conseguir: só o tesouro que tinha à vista, a minha liberdade, é que me daria forças para vencer tal revés. Mas quando aplainei essa dificuldade não me vi mais adiantado: era-me tão impossível mover esse barco como o outro bote de que já falei. Medi então o comprimento do terreno, e formei o projecto de cavar uma bacia ou um canal, para fazer chegar o mar até ao meu barco, visto não poder ir o barco até ao mar. Comecei pois este trabalho sem demora; e desde o princípio, ao calcular a profundidade e a largura que deveria ter e como o esvaziaria, achei que com todos os recursos que podia ter, e que não devia ir procurar fora de mim mesmo, gastaria bem uns dez ou doze anos de penas ou de trabalho antes de o ter acabado; porque o terreno era de fundo vinte e dois pés pelo menos no sítio mais afastado do mar. Desisti deste projecto, lamentando contudo não ter podido realizá-lo. Causou-me isto um vivo desgosto, e mais tarde fez-me sentir a loucura que se faz em empreender uma obra antes de ter calculado as despesas e sem pensar com exactidão se as dificuldades da execução estão acima das nossas forças.
GÉNERO DE VIDA DE ROBINSON
No meio desta última empresa, cheguei ao fim do meu quarto ano de residência na ilha, e celebrei este aniversário com o mesmo fervor, com a mesma consolação que o fizera nos anos precedentes. Julgava poder felicitar-me com razão, de que uma poderosa barreira me garantia suficientemente dos vícios contagiosos do século. Não tinha nada a desejar, porque possuía já todas as =coisas de que actualmente era capaz de gozar: era o senhor do lugar, podia mesmo dar-me o título de rei, ou, se quiserem, de imperador de toda a ilha, porque tudo estava sujeito ao meu poder. Por toda a parte exercia um império despótico; não tinha rival nem competidor que me disputasse o comando ou a soberania; podia encher armazéns de trigo e só não o =semeava porque não serviria de nada, não precisava dele. Podia ter tartarugas à larga, mas apenas bastava uma de quando em quando para fornecer abundantemente a minha despensa. Tinha bastante madeira para construir uma esquadra inteira; poderia fazer vindimas muito abundantes para a carregar de vinho e de uvas secas; mas as coisas de que podia fazer uso eram as únicas que tinham verdadeiro valor. Nada me faltava do que era necessário para o meu sustento e conservação: e de que me serviria o excesso? Se tivesse morto mais caça da que podia comer teria que abandonar o resto ao cão ou aos vermes. Se tivesse semeado mais trigo do que podia consumir, estragar-se-ia. As árvores que abatesse ficariam espalhadas na terra para aí apodrecerem. Numa palavra, a natureza das coisas, e mesmo a experiência depois de justas reflexões, convenceram-me de que as coisas deste mundo nos são boas na medida em que podemos fazer uso delas e segundo o uso que delas fazemos, havendo ainda que considerar se podemos juntá-las para as trocar com os outros. Já referi antes uma soma em oiro e prata, que montava a cerca de trinta e seis libras esterlinas; ah!, como esse saco de dinheiro era útil para mim!, como atraía pouco a minha atenção! Era a meus olhos ainda menos precioso do que a lama; e não fazia mais caso disso do que uso. Dizia muitas vezes comigo mesmo, que daria de boa vontade um punhado desse dinheiro por alguns cachimbos de fumar, por tabaco, ou por um pequeno moinho para moer o meu trigo. Que digo eu? Daria tudo por umas tantas sementes de cenouras como as que temos por seis soldos em Inglaterra; e faria um excelente negócio se pudesse trocar essas peças por um punhado de erviLhas, e de favas, e uma garrafa de tinta; porque na situação em que me achava, essas peças de oiro e de prata =não me traziam a mínima vantagem, e enferrujavam numa gaveta com a humidade das estações chuvosas. E se a gaveta estivesse cheia de diamantes, era a mesma coisa: não teriam mais valor para mim, visto não me servirem de nada. Levava então uma vida muito mais suave e mais feliz do que no começo. Muitas vezes, quando me sentava à mesa para comer alguma coisa, dava as minhas humildes acções de graças à Divina Providência, e admirava-A ao mesmo tempo por ter conseguido levantar assim uma mesa no meio do deserto. Aprendi a dar mais atenção ao lado bom da situação do que ao mau; a =considerar aquilo de que gozava antes do que me faltava; e às vezes via nesse método uma origem de consolações secretas. Não deixo =de notar aqui para o gravar na memória de certa gente que, sempre descontente, não tem gosto para saborear os bens de que Deus nos encheu, porque desvia os seus desejos para coisas que não lhe foram concedidas. Os desgostos que nos mortificam a respeito do que não temos, emanam todos da falta de reconhecimento do que temos. Outras vezes comparava a minha condição presente com aquela que eu esperava no começo, e de que teria certamente sofrido todo o rigor, se Deus, pela Sua Providência, não me tivesse dado a salvação nas sequências do naufrágio, ordenando que =o navio fosse levado tão perto de terra que eu pudesse não só =ir a bordo, mas trazer de lá tantas coisas que me eram de grande auxílio. Passava horas, às vezes dias inteiros, a representar na imaginação com as cores mais vivas o que seria de mim se não tivesse tirado nada do navio; não teria podido apanhar o que quer que fosse para meu sustento, a não ser talvez alguns peixes e tartarugas: e como se passou um tempo muito longo antes de eu descobrir alguma destas últimas, há todas as probabilidades de que teria morrido sem ter feito essa descoberta. Se tivesse morto uma cabra ou ave por algum novo estratagema, não saberia como esfolar nem como estripar; de sorte que me seria preciso empregar as unhas e os dentes, à maneira dos animais ferozes. É verdade que eu estava privado de todo o comércio com os homens; mas também não tinha nada a recear, nem lobos, nem tigres furiosos, nem nenhum animal feroz ou venenoso, nem da barbaria dos canibais. Os meus dias estavam, a todos os respeitos, em segurança nesse lugar. Numa palavra, se a minha vida era dum lado uma vida de tristeza e de aflição, devo confessar que por outro lado sentia efeitos bem sensíveis da misericórdia divina. Estes pensamentos consolavam-me e faziam desvanecer inteiramente a minha tristeza e a minha melancolia. Havia já muito tempo que tinha pouquíssima tinta; tratava de a conservar, deitando-lhe água de quando em quando; mas enfim fez-se tão clara que mal podia distinguir os traços no papel. Enquanto durou, marquei os dias em que me acontecera alguma coisa de importante. A primeira coisa que me faltou depois da tinta foi o pão, ou melhor o biscoito que trouxera do navio. Apesar de eu o ter governado com extrema frugalidade, pois durante um ano só comia um pedacinho por dia, acabou-se completamente antes que eu pudesse fazer pão do trigo que semeara, ou seja, durante outro ano. O meu fato começava também a desaparecer. Havia muito que não tinha roupa branca, a não ser algumas camisas de pano riscado que encontrara nos baús dos marinheiros e conservava com todo o cuidado possível, porque muitas vezes o calor não me permitia poder suportar outra vestimenta que não fosse uma camisa. Salvara também alguns casacões grosseiros, mas serviam-me de pouco, porque eram muito quentes. Os calores eram tão violentos que eu não tinha necessidade alguma de fato, mas mesmo assim nunca pude resolver-me a sair nu, apesar de estar sozinho. Nem podia pensar em semelhante coisa. Além disso o calor do Sol era-me mais insuportável quando estava nu do que quando estava vestido; causava-me muitas vezes bolhas em toda a pele; pelo contrário quando estava em camisa, o ar agitava-a de maneira que ficava mais à fresca. Foi igualmente impossível acostumar-me a estar ao sol sem a cabeça coberta: ele dardejava os seus raios com tal violência que quando eu estava sem chapéu, sentia imediatamente violentas dores de cabeça, mas deixavam-me logo que me cobria. A experiência de todas estas coisas fez-me pensar em empregar os andrajos que eu tinha e a que chamava fato conforme o estado em que estava. Todas as minhas vestes estavam usadas, por isso pus-me a fazer uma espécie de vestido de pano de linho, de alguns materiais que salvara do naufrágio. Exercia pois o ofício de alfaiate, ou melhor de remendão, porque o meu trabalho era lamentável, e contudo consegui, depois de muito trabalho, fazer dois ou três casacos e alguns pares de calças ou ceroulas. Tinha conservado a pele de todos os quadrúpedes que matara, mas como as estendera ao sol, secaram e endureceram tanto, na sua maioria, que não pude empregá-las em uso algum. Quanto àquelas de que pude servir-me fiz primeiro um grande barrete, voltando o pêlo para fora para me abrigar melhor da chuva; em seguida fabriquei um fato completo, quero dizer um casaco largo e umas calças larguíssimas, porque os meus fatos deviam-me servir mais contra o calor do que contra o frio. Além disso, se eu entendia muitíssimo pouco do ofício de carpinteiro, ainda menos entendia do de alfaiate. Estes fatos serviram-me contudo muito bem porque a chuva não podia rompê-los. Acabados todos estes trabalhos, gastei muito tempo e muito trabalho a fazer um chapéu-de-sol. Tinha visto fazer um no Brasil, onde se usam muitíssimo contra os calores excessivos. Custou-me imenso este trabalho, e passou-se muito tempo antes que pudesse fazer alguma coisa que fosse capaz de me preservar da chuva e dos raios do Sol; esta obra contudo não me satisfez, e ainda menos dois ou três outros que fiz em seguida. Podia bem estendê-los, mas não podia dobrá-los nem =levá-los doutro modo senão por cima da cabeça, o que muito me embaraçava. Finalmente fiz contudo um que correspondeu mais ou menos às minhas necessidades; cobri-o de peles com o pêlo voltado para cima. Estava assim abrigado da chuva como se estivesse debaixo de um guarda-vento, e caminhava pelos calores mais ardentes mais à vontade do que o fazia antes nos dias mais frescos. Quando não precisava dele, fechava-o e levava-o debaixo do braço. Tinha assim uma vida muito suave. O meu espírito estava tranquilo. Resignara-me à vontade de Deus.
PASSEIO NO MAR
Depois de ter acabado as obras de que falei, não me aconteceu nada de extraordinário durante o espaço de cinco anos. Continuei o género de vida que descrevi. A minha principal ocupação, além de semear a cevada e o arroz, de secar e pendurar as uvas e de ir à caça, foi fazer um pequeno barco. Acabei-o e, abrindo um canal de seis pés de fundo e quatro de largura, levei-o para a baía. Quanto ao primeiro, que era de uma grandeza prodigiosa e que eu fizera inconsideradamente, não pude nunca pô-lo a flutuar, nem fazer um canal bastante grande para aí levar água do mar. Fui obrigado a deixá-lo =no seu lugar, como se devesse lembrar-me uma lição para ser mais circunspecto para o futuro. Mas, como se acaba de ver, este mau êxito não me desanimou e aproveitei a minha primeira inadvertência. A árvore que eu tinha cortado para fazer um segundo barco estava a meia milha do mar e era muito difícil levar a água de tão longe até =ela mas mesmo assim não desesperei, apesar de ser coisa impraticável. Trabalhei nisso durante dois anos, sem me poupar ao trabalho, tanta esperança tinha de sair dessa ilha que me servia de prisão, achando o meio de navegar novamente. Acabou-se finalmente o meu barco, mas a sua grandeza não correspondia ao fim que lhe destinara quando comecei a trabalhar nele: aventurar-me a uma viagem de quarenta milhas à terra firme. Abandonei pois esse projecto, mas resolvi dar pelo menos a volta à ilha; já a tinha atravessado a pé por terra, como disse, e as descobertas que então fizera davam-me um violento desejo de ver as outras partes das margens. Não pensei mais senão na minha viagem, e a fim de manobrar com mais precaução e mais segurança equipei o barco o melhor =que me foi possível e pus-lhe mastro e uma vela. Fiz um ensaio, e achando que se dava muito bem com o vento, pus umas caixas ou caixotes nas suas extremidades, a fim de aí conservar as minhas provisões e munições da chuva e da água =do mar que poderiam entrar no barco. Fiz também um grande buraco para as minhas armas e cobri-o o melhor que pude para se conservar seco. Fixei em seguida o meu chapéu-de-sol na popa do barco para ter sombra. Servi-me do barco primeiro para passear de quando em quando pelo mar, mas sem nunca me afastar da minha pequena baía. Por fim, impaciente de ver a circunferência do meu reino, resolvi dar uma volta em torno dele inteiramente. Forneci o meu barco de víveres: duas dúzias dos meus pães de cevada (devia chamar-lhes antes bolos folhados), um tacho de barro cheio de arroz seco, de que fazia muito uso, um outro com água fresca, uma garrafa de rum, metade de uma cabra, pólvora e chumbo para matar outras; enfim, dois dos grossos casacões de que já acima falei, um para me deitar em cima, o outro para me cobrir durante a noite. Estava a 6 de Novembro, no sexto ano do meu reinado, ou cativeiro (dêem-lhe o nome que quiserem), quando embarquei para essa viagem que foi mais demorada do que eu esperava. A ilha em si não era muito grande; tinha a leste uma grande acumulação de rochedos que se estendiam duas léguas pelo =mar dentro, uns elevando-se acima da água, os outros escondidos; além disso, na ponta desses rochedos, havia um grande banco de areia que estava seco e metido meia légua pelo mar dentro, de tal modo que para dobrar essa ponta era obrigado a avançar muito pelo mar para o largo. Perante todas essas dificuldades, estive a ponto de renunciar à minha empresa, por causa da incerteza do caminho que tinha a percorrer e da maneira de voltar para casa. Virei mesmo o meu barco, e lancei a âncora que fiz de uma peça de artilharia salva do navio. Como o barco estava em segurança, peguei na espingarda e desembarquei, e subi a uma pequena eminência; daí descobri toda essa parte e toda a sua extensão, o que me fez resolver a continuar a minha viagem. Entre outras observações que fiz dessas paragens, notei todavia uma furiosa corrente que se dirigia para leste e tocava a ponta de bem perto. Estudei-a o mais que pude, por que tinha razão de recear que fosse perigosa, e que, se caísse nela, me levasse para o mar alto, donde me custaria muitíssimo a voltar para a ilha.
A verdade é que as coisas teriam acontecido como eu disse, se não tivesse tido a precaução de subir a essa pequena eminência; porque a mesma corrente reinava do outro lado da ilha, com a única diferença de se desviar imenso dela. Reconheci também que havia uma grande foz no rio, donde concluí que atravessaria facilmente todas essas dificuldades se evitasse a primeira corrente, porque tinha a certeza de poder tirar partido dessa foz. Dormi duas noites nessa colina, pois o vento soprava muito forte de este-sudeste e além disso, como batia contra a corrente e causava diversas quebras de mar na ponta, não era seguro sustentar-me muito na margem, nem avançar muito pelo mar, porque me arriscava então a ver-me embaraçado na corrente. Recomecei a minha viagem, Mas, ao terceiro dia, tendo acalmado vento e mar, Que os pilotos temerários e ignorantes se aproveitem do que me aconteceu neste encontro. Mal chegara à ponta quando me achei num mar profundo, e numa corrente tão violenta que podia ser o redemoinho dum moinho. Não estava contudo mais afastado de terra que o comprimento do meu barco. Sentia-me arrastado para longe da barra, que estava à esquerda. A grande calma que reinava não me deixava nada a esperar dos ventos, e as minhas manobras não tinham resultado algum. Considerei-me homem morto, porque sabia que a ilha era rodeada por duas correntes e que, por consequência, à distância de algumas léguas deviam juntar-se. Julguei-me irrevogavelmente perdido; já não tinha esperança alguma de conservar a minha vida, não que eu receasse ir para o fundo, o mar estava muito manso, mas não via como pudesse escapar à fome logo que as minhas provisões fossem consumidas. Previa que essa corrente me lançaria no mar alto, onde não tinha esperança de encontrar praia, ilha ou continente depois duma viagem de talvez mais de mil léguas. Como é fácil ao homem, dizia comigo mesmo, trocar a sua posição, por triste que seja, por outra ainda mais =deplorável! A minha ilha parecia-me então o sítio mais delicioso do Mundo. Toda a felicidade por que ansiava era voltar a ela. "Feliz deserto" - exclamei, voltando a vista para ela - "feliz deserto, não te tornarei mais a ver! Como sou miserável! =Não sei onde me levam as ondas! Desgraçada inquietação! =Fizeste-me deixar esta morada encantadora, fizeste-me murmurar muitas vezes contra a minha solidão; mas, agora, o que não daria eu para poder lá voltar?" Tal é com efeito o nosso carácter; não sentimos as vantagensde um estado senão experimentando os inconvenientes dum outro; não conhecemos o valor das coisas senão quando nos privam delas. É impossível descrever o desespero em que estava de me ver levado para longe da minha querida ilha para o alto mar. Estava então daí afastado duas léguas, e já não =tinha esperança de a tornar a ver. Trabalhava, contudo, com bastante vigor; governava o meu barco tanto quanto possível para o norte, isto é, para o lado da corrente onde eu notara uma barra. Por volta do meio-dia, julguei sentir uma brisa que me soprava no rosto, e que vinha de sul-sudeste. Experimentei com ela alguma alegria, aumentou muito meia hora depois, e levantou-se um vento muito favorável. Estava então a uma distância prodigiosa da minha ilha. Mal se podia distinguir; e se o tempo estivesse carregado, o que seria feito de mim? Esquecera-me da minha bússola; não podia pois alcançá-la senão pela vista. =Mas continuando o tempo a estar bonito, voltei a vela e dirigi-me para o norte, tratando de sair da corrente. Ainda não tinha largado a vela quando descobri pela clareza da água que ia dar-se alguma mudança na corrente, porque quando ela estava em toda a sua força, as águas pareciam sujas, e tornavam-se claras à medida que diminuia. Encontrei, meia milha mais longe (a leste), uma quebra de mar causada por alguns rochedos. Estes rochedos dividiam a corrente em duas: a maior parte corria para sul, deixando os rochedos a nordeste, enquanto que a outra, repelida pelos escolhos, se dirigia com força para noroeste. Aqueles que já sabem o que é receber a sua salvação =chegando ao próprio lugar do suplício, ou ser salvos das mãos dos bandidos que iam cortar-lhes o pescoço, são os únicos que serão capazes de conceber a alegria que então senti. É =também difícil de compreender a pressa com que aproveitei o vento favorável, e a corrente da foz de que falei. Esta corrente serviu-me durante uma hora inteira; ela dirigia-se em linha recta para a minha ilha, isto é, duas léguas mais para o norte que a que me tinha dela afastado. Assim, quando cheguei perto da ilha, estava ao norte dela; quero dizer que me achava na parte oposta àquela donde partira. Achava-me agora entre duas correntes: uma, do lado do sul, era a que me arrastara, e a outra do lado do norte, afastada da ilha uma légua, dirigia-se para outro lado. O mar em que me encontrava estava completamente sossegado, as suas águas tranquilas, não se movendo em parte alguma; mas, com o auxílio da brisa fresca que soprava para a minha ilha, aproximei-me dela, ainda que com mais lentidão do que quando cedia à violência da corrente, Podiam ser então quatro horas da tarde e estava afastado da minha ilha uma légua, quando descobri a ponta dos rochedos que causavam todo esse embaraço. Estendiam-se para o sul; e tal como tinham causado toda esta furiosa corrente, tinham formado uma barra que se dirigia para o norte. Não me conduzia directamente às margens da ilha, mas aproveitando o vento e orientando convenientemente a vela, atravessei essa corrente o menos obliquamente que pude, e no fim de uma hora cheguei a uma milha da margem; a água estava tranquila e não tardei a alcançar terra. Então, lançando-me de joelhos, agradeci a Deus a minha salvação e resolvi não correr mais os mesmos riscos. Pus o =meu barco numa pequena cova que notara debaixo das árvores, e cansado como estava do trabalho e das fadigas da minha viagem, depressa adormeci. Quando acordei, pus-me a pensar na maneira de fazer passar o barco para a baía próxima de casa; por mar, era arriscar muito, conhecia bem os perigos que havia do lado leste; resolvi pois bordejar a costa oeste; esperava encontrar aí alguma baía onde recolher o barco, a fim de poder encontrá-lo em caso de necessidade. Encontrei uma depois de ter bordejado pela costa pelo espaço de uma légua; parecia-me muito boa, e ia torcendo-se até um pequeno regato que aí desembocava. Meti aí o meu barco: não podia desejar melhor porto para essa linda embarcação. Dir-se-ia que tinha sido aberto de propósito para a receber. Ocupei-me depois em reconhecer onde estava, e vi que não era longe dali até ao sítio onde estivera quando atravessei a minha ilha. Assim, deixando todas as minhas provisões no barco, excepto a espingarda e o chapéu-de-sol, porque estava muito calor, pus-me a caminho. Embora muito cansado, caminhei com bastante prazer: cheguei ao cair da noite à velha choça (espécie de latada), que =fizera outrora. Estava aí tudo no mesmo estado: tratei-a sempre com muito desvelo; era, como disse, o que eu chamava a minha casa de campo. Saltei a sebe, deitei-me à sombra, e como estava extremamente fatigado adormeci. Os que lerem esta história imaginem a minha surpresa ao ser despertado por uma voz que chamava repetidas vezes pelo meu nome: "Robinson, Robinson, Robinson Crusoé, onde estiveste? Robinson Crusoé, onde estiveste? Robinson Crusoé, onde estiveste?" Como remara toda a manhã, e caminhara toda a tarde, estava cansado a ponto que não acordei imediatamente. Sentia-me desfalecido, meio adormecido e meio acordado, e julguei sonhar que alguém me falava. Contudo a voz continuava a repetir "Robinson Crusoé, Robinson Crusoé", acordei então de vez, =mas assustado e na última consternação. Sosseguei todavia um pouco, depois de ter visto o meu papagaio empoleirado na sebe: reconheci primeiramente que era ele quem me falara, porque lhe ensinara a pronunciar essas palavras. Vinha muitas vezes poisar no meu dedo e, aproximando o seu bico do meu rosto, punha-se a gritar: "Pobre Robinson Crusoé, onde estiveste, onde estiveste, como vieste aqui ter?", e outras coisas semelhantes. Mas, posto que estivesse certo que ninguém me podia ter falado, excepto o meu papagaio, custou-me algum tanto a sossegar. "Como" - dizia eu - "veio ele a este sítio e não foi a outro?" Não podia contudo ser senão ele quem me tinha falado; assim abandonei essas reflexões, e, chamando-o pelo seu nome, a amável ave veio pousar no meu dedo e dizia-me como se estivesse satisfeita por me ver: "Pobre Robinson Crusoé, onde estiveste?" Levei-o depois para casa. Tinha corrido bastante no mar, e precisava de descansar e reflectir sobre os perigos por que passara. Desejaria muito ter o meu barco na baía que estava ao pé de casa, mas não =via possibilidade disso. Não queria arriscar-me mais a dar a volta à ilha, pelo lado leste. O meu coração apertava-se-me a este único pensamento, =o sangue gelava-se-me nas veias. Não conhecia nada do outro lado da ilha, mas tinha todas as razões para crer que a corrente de que falei reinava aí tanto como a leste, e que assim corria o risco de ser apanhado por ela e levado para bem longe da minha ilha. Passei, pois, sem o meu barco, e resolvi-me assim a perder os frutos dum trabalho de muitos meses. Neste estado vivi mais de um ano, tranquilo e resignado: se não fosse a minha solidão, nada me faltaria para ser perfeitamente feliz.
AUMENTO DE RIQUEZAS
Neste intervalo de tempo, aperfeiçoei-me nas artes mecânicas às quais as minhas necessidades me obrigavam a dedicar-me, e sobretudo concluí, visto a falta em que estava de muitas ferramentas, que tinha aptidões muito particulares para a carpintaria. Tornei-me um excelente oleiro; inventara uma roda admirável, pela qual dei às minhas baixelas, que eram de uma estranha grosseria, um feitio e uma forma muito cómodas. Achei também o meio de fazer um cachimbo; esta invenção causou-me uma alegria extraordinária, e, se ouso dizê-lo, uma tão grande vaidade =que nunca sentira outra igual em toda a minha vida. Apesar de ser grosseiro, da mesma cor e da mesma matéria que os meus outros utensílios de barro, dava saída ao fumo, e era suficiente para me proporcionar o prazer de fumar. Tinha este costume, não o perdi; mas, na crença de que não se =encontrava tabaco na minha ilha, não pensara em trazer comigo os cachimbos que estavam no navio. Fiz também progressos consideráveis na profissão de cesteiro; achei meio de fabricar cestos que, embora mal feitos, não deixavam de me ser úteis. Eram fáceis de levar, quando ia buscar alguma coisa, e próprios de neles as guardar. Se, por exemplo, matava uma cabra, pendurava-a numa árvore, esfolava-a, cortava-a, acomodava-a e levava-a assim para casa. Fazia o mesmo a respeito da tartaruga: estripava-a, pegava nos ovos e nalguns pedaços de carne que levava para casa no meu cesto deixando o inútil. Grandes cestos serviram-me de celeiro para o meu trigo, que aí colocava logo que estava seco. A minha pólvora começava =a diminuir; se me faltasse, ser-me-ia impossível fornecer-me dela de novo, o que me fez temer pelo futuro. Que faria eu sem pólvora? Como poderia matar cabras? Sustentava havia oito anos uma cabrita que criara na esperança de apanhar outro animal da mesma espécie; mas não pude apanhá-lo senão quando a =minha cabrita envelheceu. Não tive coragem de a matar; deixei-a morrer de velhice. Mas estando no undécimo ano da minha residência e achando-se as minhas provisões muito diminuídas, começava a pensar no meio de apanhar cabras por manha. Desejava muito apanhá-las vivas, e que dessem leite. Fiz armadilhas e estou persuadido de que houve algumas que caíram nelas; mas como o fio era muito fraco, escapavam-se facilmente. A verdade é que achei sempre as minhas armadilhas escangalhadas e as iscas comidas; não podia fazê-las mais fortes, pois faltava-me arame. Tentei apanhá-las por meio de um estratagema. Fiz muitas covas nos sítios onde costumavam pastar, cobri-as de caniçadas que carreguei com muita terra, semeando por aí espigas de arroz e de trigo. Mas o meu projecto não teve êxito: as cabras vinham comer as espigas, caíam nas covas, e lá conseguiam sair delas. Tratei então de armar uma noite três laços: fui-os visitar no dia seguinte pela manhã, e vi que ainda estavam armados, mas que as iscas tinham sido arrancadas. Outro qualquer teria desanimado; mas eu, pelo contrário, trabalhei em aperfeiçoar os laços. Receando maçá-lo mais tempo, meu =caro leitor, dir-lhe-ei que, indo uma manhã visitar os meus laços, achei num um velho bode de um tamanho extraordinário, e no outro três cabras, um macho e duas fêmeas. O velho bode estava tão feroz que eu não sabia o que havia de fazer. Não me atrevia a entrar na gaiola para levá-lo vivo, o que todavia desejava com muito ardor. Ser-me-ia fácil matá-lo, mas não me servia de nada isso.
Soltei-o pois e deixei-o em plena liberdade. Não creio que se tenha visto animal algum fugir com mais terror. Não me veio então ao espírito que, pela fome, podia =apanhar mesmo leões; porque de outro modo tê-lo-ia deixado no laço, =e aí, fazendo-o jejuar durante três ou quatro dias, e levando-lhe depois de beber e um pouco de trigo, tê-lo-ia amansado com a mesma facilidade que aos outros três cabritos. Estes animais são muito dóceis para aquele que lhes dá o =que lhes é necessário. Quanto aos cabritos, tirei-os do laço um a um; e ligando-os todos três a um mesmo cordel, levei-os para casa, não sem muita dificuldade.
Passou-se algum tempo antes que quisessem comer; mas, enfim, tentados pela boa isca que lhes dava, começaram a comer e a domesticar-se. Esperei poder sustentar-me de carne de cabra quando me faltassem pólvora e chumbo. "Segundo todas as aparências" - disse comigo - "terei depois em torno da minha habitação um rebanho de cabras à minha disposição". =Veio-me à ideia que devia encerrar os meus cabritos num certo espaço de terreno que cercaria de uma sebe muito espessa, a fim de que não pudessem safar-se e que as cabras selvagens ainda menos pudessem aproximar-se deles; porque receava que com essa mistura os meus cabritos se tornassem selvagens. O projecto era vasto para um só homem; mas a execução era =de uma necessidade absoluta. Procurei pois um pedaço de terra própria para o pasto, onde houvesse água para beber e sombra para proteger dos calores extraordinários do Sol. Os que sabem como se faz esta espécie de recinto ter-me-ão certamente, na conta de um homem pouco inventivo quando souberem que arranjos fiz depois de ter encontrado o lugar que desejava, isto é, uma planície de pastagem atravessada por dois ou três fios de água, e que de um lado era aberta e de outro ia ter a grandes bosques; não poderão, repito, deixar de rir-se da minha previdência quando lhes disser que, segundo o meu plano, devia fazer uma sebe duma circunferência de meia légua pelo menos. O ridículo deste plano não estava em que a sebe se achasse desproporcionada ao seu recinto, mas porque, sendo o recinto de grande extensão, as cabras poderiam tornar-se aí tão selvagens como se Lhes tivesse dado a liberdade de correr pela ilha e além disso não conseguiria apanhá-las. Já tinha feito perto de quarenta toesas de sebe, quando isso me veio à ideia. Mudei o plano do meu recinto, e resolvi que o seu comprimento não excederia cento e vinte toesas, e a sua largura pouco mais de cem. Este espaço era bastante extenso para que um rebanho medíocre de cabras aí pudesse viver; se o rebanho se tornasse numeroso, ser-me-ia fácil alargar o recinto. Como este projecto me parecia muito bem imaginado, trabalhei nele com muito ardor; e durante todo este intervalo fazia pastar as minhas cabras ao pé de mim com peias nas pernas por recear que se me escapassem. Dava-Lhes amiúde espigas de cevada e alguns punhados de arroz. Vinham-me comer à mão, e, deste modo, sustentava-as tão =bem que quando acabei o meu recinto e as livrei das peias, seguiam-me por toda a parte balindo por alguns punhados de cevada ou de arroz.
No espaço de ano e meio tive um rebanho de doze cabeças, tanto bodes como cabras e cabritos; dois anos depois, tinha quarenta e três, apesar de ter morto muitas para meu uso. Depois disto trabalhei em fazer cinco novos recintos embora mais pequenos que o primeiro. Arranjei muitos parques pequenos para onde levar as cabras a fim de as apanhar mais comodamente, e portas para que elas pudessem passar de um recinto para o outro. Só muito tarde pensei em aproveitar o leite das minhas cabras. O primeiro pensamento que a esse respeito me veio causou-me grande prazer. E, sem hesitar um só instante, fiz uma queijaria. As minhas cabras davam-me às vezes oito ou dez canadas de leite por dia: nunca mungira vaca ou cabra, nunca vira fazer queijo ou manteiga; consegui contudo, depois de muitos ensaios e tentativas infrutíferas, fazer manteiga e queijo, e desde então tive ambos com abundância. Não há homem sério que deixasse de se rir ao ver-me =jantar com toda a minha família. Era o rei e senhor de toda a ilha; senhor absoluto de todos os meus vassalos, tinha sobre eles direito de vida e de morte. Podia enforcá-los, esquartejá-los, privá-los da sua =liberdade ou restituir-lha. Não havia rebeldes nos meus Estados. Jantava como um rei, à vista de toda a minha corte: o papagaio, como era o meu favorito era o único que tinha licença para me falar. O meu cão, que então se tornara velho =e triste, estava sempre sentado à minha direita. Os meus dois gatos estavam um numa ponta da mesa, e o outro na outra, esperando que por um favor especial lhes desse alguns pedaços de carne. Estes dois gatos não eram os mesmos que trouxera comigo do navio. Já havia muito que esses tinham morrido, mas tinham tido filhos; guardei dois desses filhos e eduquei-os; outros fugiram para o bosque e tornaram-se selvagens. Desejava muito ter o meu barco, mas não podia resolver-me a expor-me a novos perigos. Algumas vezes pensava no meio de o conduzir bordejando, na minha baía; outras, consolava-me da impossibilidade de o fazer. Mas um dia tive uma vontade tão violenta de ir à ponta da ilha onde já estivera e observar de novo as costas subindo à pequena colina de que acima falei, que não pude resistir a esse desejo. Pus-me pois a caminho. Se na província de York se encontrasse um homem vestido como eu então estava, seria motivo para toda a gente se espantar ou rir a bandeiras despregadas. Façam ideia da minha figura, pelo esboço que vou traçar. Trazia um chapéu de uma altura espantosa e feito de pele de cabra; por trás pregara nele a metade de uma pele de bode que me cobria todo o pescoço; era a fim de me preservar dos ardores do Sol e com medo que a chuva entrasse no meu fato, porque nestes climas nada é mais perigoso. Trazia uma espécie de vestido que me descia até abaixo dos joelhos, feito como o meu chapéu de pele de cabra; quanto às calças, fora a pele de um bode que me fornecera o material. Opêlo era de um comprimento tão extraordinário, que =descia, como as calças, até ao meio da perna. Não tinha meias nem sapatos, mas fizera para as minhas pernas um par de não sei quê mas que dava a ideia vaga de umas botas: abotoava-as como se abotoam as polainas. Eram, assim como todos os meus outros fatos, duma forma estranha e bárbara. Tinha um cinturão da mesma fazenda que o fato. Em lugar de uma espada e de um sabre, trazia uma serra e um machado, este de um lado e aquela do outro. Trazia outro cinturão, não =tão largo, suspenso do pescoço, e na sua extremidade, que estava por baixo do braço esquerdo, pendiam também duas algibeiras feitas da mesma matéria que o resto; numa metia a pólvora e noutra o chumbo. Às costas levava um cesto, nos ombros uma espingarda, e na cabeça um chapéu-de-sol grosseiramente trabalhado, mas que, depois da minha espingarda, era aquilo de que tinha mais necessidade. Quanto ao rosto, não estava tão queimado que se pudesse julgá-lo de um homem que não tomava cuidado algum com ele, e que não estava afastado do equador senão oito ou nove graus. A minha barba, deixara-a crescer uma vez até ao comprimento de dez polegadas; mas como tinha tesouras e navalhas, fazia-a frequentemente, excepto aquela que me crescia no lábio superior. Aprouve-me dar-lhe o feitio de um bigode à maometana e tal como usavam os Turcos que eu vira em Salé, porque os Mouros não a têm. Não direi que os meus bigodes fossem tão compridos que teria podido pendurar neles o meu chapéu, mas atrevo-me a afirmar que eram tão longos e tão extravagantemente arranjados, que teriam parecido terríveis em Inglaterra. Mas seja isto dito de passagem. Volto à narração da minha viagem: gastei nela cinco ou seis dias, caminhando primeiro ao longo das costas, sempre direito para o lugar onde tivera outrora o meu barco ancorado.
Dali descobri facilmente a colina que me servira de observatório.
Subi a ela, e qual não foi o meu espanto ao ver o mar calmo e tranquilo! Não vi qualquer movimento impetuoso, corrente alguma. Torturei o espírito a fim de penetrar as razões dessa mudança. Resolvi observar o mar durante algum tempo, porque suspeitava que a furiosa corrente de que falei não tinha outra causa senão o refluxo da maré. Este, partindo de oeste e juntando-se ao curso de algum rio, era a causa da corrente que me arrastara com tanta violência. E, segundo os ventos de oeste e do norte eram mais ou menos violentos, a corrente estendia-se até à ilha ou perdia-se a menor distância no mar. Fazia todas essas observações antes =do meio-dia, mas as que fiz à tarde confirmaram-me na minha opinião. Tornei a ver a corrente, do mesmo modo que a vira outrora, com a diferença que não se dirigia directamente à minha =ilha; afastava-se meia légua. De todas estas observações, concluí que, notando o tempo =do fluxo e do refluxo, ser-me-ia facilimo levar o meu barco para o pé da minha casa. Mas a lembrança dos perigos passados causava-me um terror tão extraordinário que não me atrevia =a realizar esse projecto. Quis antes formar outro plano, cuja execução era mais segura embora mais laboriosa: fazer outro barco. Assim teria dois, um para esse lado da ilha e o outro para o outro lado. Como se sabe tinha duas habitações; uma era a minha barraca, a minha pequena fortaleza, rodeada da sua caniçada e cavada na rocha: arranjei muitos quartos nela. No menos húmido e maior, que tinha uma porta para sair fora da caniçada, guardava os grandes vasos de barro cuja descrição já acima fiz, e =catorze ou quinze cestos grandes, cada um de cinco ou seis alqueires. Estes cestos serviam-me para recolher e guardar provisões, e particularmente as minhas sementes, umas ainda nas suas espigas, e as outras nuas, que eu debulhara esfregando as espigas entre as mãos. As estacas da minha caniçada tinham-se tornado grandes árvores, e de tal modo frondosas, que era impossível perceber que encerravam no seu centro um lugar habitado. Junto, num sítio menos elevado, havia um campo onde semeava as minhas sementes. E como o cultivava com o maior cuidado, tirava cada ano uma abundante colheita. Se houvesse necessidade de ter mais sementes, poderia aumentar esse campo sem muito trabalho. Além desta habitação, tinha uma outra a que chamava a =minha fazenda ou a minha casa de campo. Tinha ali um belo berço de verdura, que conservava com muito cuidado, desbastando a sebe que fechava a plantação, de maneira que não excedesse a sua altura ordinária. As =árvores que na origem eram apenas estacas, mas com o tempo se tinham tornado árvores muito elevadas e bem enraizadas, cultivei-as de maneira a que pudessem estender os seus ramos, tornar-se frondosas e dar uma sombra agradável. No meio, tinha a minha barraca; era uma peça duma vela bem estendida sobre varas. Debaixo desta barraca colocara eu um leito de descanso, uma pequena cama feita da pele dos animais que matara, e outras substâncias moles. Uma coberta de cama salva do naufrágio e um grosso casacão serviam para me cobrir. Era esta a casa de campo para onde me retirava quando os negócios me não retinham na capital. Ao lado, e nos arredores da minha casa, eram os pastos do meu rebanho, isto é, das minhas cabras; e como tivera grande trabalho para dividir esses pastos em diversos recintos, era também muito cuidadoso na conservação das sebes. Dirigi =mesmo para aqui o meu trabalho e os meus cuidados até plantar em torno das minhas sebes pequenas estacas em grande número e muito apertadas. Era mais uma caniçada do que uma sebe. Não se podia lá meter mão; e mais tarde, tendo estas estacas =lançado raízes e crescido, o que sucedeu na primeira ocasião chuvosa, tornaram as minhas sebes tão fortes ou mais fortes mesmo que as melhores muralhas. Todos estes trabalhos provavam bem que não era preguiçoso nem me poupava a nada para arranjar de que viver com abundância. "O rebanho de cabras" - dizia comigo mesmo - "é para toda a vida, seja ela de quarenta anos, um vivo armazém de carne, leite, manteiga e queijo. Não devo, pois, descuidar nada para não as perder". As minhas vinhas achavam-se também ali próximo: nelas me abastecia de uvas para todo o Inverno. Tratava-as com os maiores cuidados. Eram os meus manjares mais deliciosos, serviam-me de medicina, de alimento e de refresco. Além disso, este sítio achava-se justamente a meio caminho entre a minha fortaleza e a baía onde pusera o barco. Quando ia visitá-lo ficava ali uma noite. Tinha sempre grande cuidado com o meu barco: sentia muito prazer em passear no mar, mas tomava cautela para não me afastar muito da praia, nunca mais do que dois alcances de uma funda. Temia que o vento, ou alguma corrente, ou um outro acaso me levasse para muito longe daquela ilha. Mas eis-me insensivelmente chegado a um género de vida bem diferente daquele que até aqui descrevi.
ENCONTRO ASSUSTADOR, PERIGO - MEDIDAS DE PRECAUÇÃO
Um dia, quando ia para o meu barco, descobri muito distintamente na areia os sinais de um pé nu. Nunca tive tão grande terror; parei repentinamente, como se tivesse sido fulminado por um raio ou visto alguma aparição.
Pus os ouvidos à escuta, olhei em torno de mim, mas não vi nem ouvi nada: subi a uma pequena eminência para ver mais ao longe; desci, e fui à praia, mas não descobri nada de novo, nem algum outro vestígio de homem para além daquele de que acabo de falar. Voltei lá na esperança de que o meu receio =não era talvez senão uma imaginação sem fundamento; mas vi =outra vez os mesmos sinais de um pé nu, os artelhos, o calcanhar e todos os outros indícios dum pé de homem. Não sabia que conjecturar: fugi para a minha =fortificação, todo perturbado, olhando para trás quase a cada passo e tomando por homens todas as moitas que encontrava. Não é possível descrever as diversas figuras que uma imaginação assustada acha em todos os objectos. Quantas ideias loucas e pensamentos extravagantes me não vieram ao espírito, enquanto fugia para a fortaleza. Assim que lá cheguei, deitei-me logo como um homem que é perseguido; não posso mesmo lembrar-me se entrei em casa pela escada ou pelo buraco aberto na rocha, a que eu chamava porta. Estava muito assustado para isso me ficar na cabeça. Nunca coelho algum nem raposa se refugiou na sua toca com mais terror do que eu no meu castelo. Não pude dormir toda a noite: à medida que me afastava da causa do meu terror, os meus receios aumentavam, ao contrário do que normalmente acontece. As minhas ideias assustadoras perturbavam-me de tal modo que, embora muito afastado do sítio onde tivera esse alarme, a minha imaginação não me representava nada que não fosse triste e terrível. Que seres tinham deixado o sinal que acabava de descobrir? Não podiam, decerto, deixar de ser selvagens do continente que, tendo-se metido ao mar com as suas canoas, tinham sido levados até à ilha pelos ventos contrários ou pelas correntes, e tinham tido tão pouca vontade de ficar nessa praia deserta como eu de os ver aí. Enquanto estas reflexões rolavam no meu espírito, dava eu graças ao Céu por não estar nessa ocasião naquele sítio =da ilha e o meu barco ter escapado aos olhos deles, porque, se o tivessem visto, concluiriam certamente que a ilha era habitada, o que poderia levá-los a procurar-me e descobrir-me. Em certos momentos imaginei que o meu barco fora encontrado, e esse pensamento agitava-me do modo mais cruel; temia vê-los voltar em maior número, e receava que ainda que pudesse esquivar-me à sua barbaria, eles encontrassem o meu recinto, destruíssem o meu rebanho e me reduzissem assim a morrer de fome. Nesta situação, tinha a censurar-me o ter tido a preguiça =de não semear senão o grão que era necessário até à nova =estação, e achei esta censura tão justa, que tomei a resolução de me fornecer sempre para dois ou três anos, a fim de não estar exposto a morrer de fome, se se desse comigo algum acidente. De quantas fontes secretas não fazem as diferentes circunstâncias sair as nossas paixões? Odiamos hoje o que ontem amávamos; desejamos um objecto com ardor, e momentos depois já nem nos lembramos dele. Era eu então um triste e notável exemplo dessa verdade. Dantes, afligia-me mortalmente o ver-me rodeado pelo vasto oceano, condenado à solidão, banido da sociedade humana: tinha-me na conta de um homem que o Céu achava indigno de estar no número dos vivos, e de ocupar o menor lugar entre as criaturas; só a vista de um homem me pareceria uma espécie de ressurreição e a maior graça, depois da minha salvação, =que poderia obter da bondade divina. Agora, tremo só com a ideia de um ser da minha espécie; a sombra de uma criatura humana, um só dos seus vestígios causa-me os terrores mais mortais. Uma manhã, estando no meu leito, inquieto por mil pensamentos referentes ao perigo que tinha a recear dos selvagens, no acabrunhamento mais triste, quando de repente me veio ao espírito esta passagem das Santas Escrituras: "Invoca-me no dia da desgraça, e Eu te livrarei e tu Me glorificarás".
Levantei-me, não só cheio de nova coragem, mas ainda decidido a pedir a Deus a minha salvação pelas orações =mais fervorosas; quando as acabei, peguei na Bíblia e, abrindo-a, as primeiras palavras que me saltaram aos olhos foram estas: "Pensa no Senhor, e tem bastante coragem que Ele te fortificará o coração". A consolação que tive com isso =foi inexprimível: encheu a minha alma de reconhecimento pela Divindade e dissipou absolutamente os meus terrores. No meio deste fluxo e refluxo de pensamentos e inquietações, veio-me um dia à ideia que o motivo do meu receio não passava talvez de uma quimera, e que o vestígio que eu notara podia muito bem ser o vestígio do meu próprio pé. "Saindo do meu barco talvez tivesse tomado o mesmo caminho que ao entrar" - disse eu. - "Os meus próprios vestígios assustaram-me, fiz o papel desses doidos que contam histórias de espectros e aparições, e em seguida estão mais =assustados com as suas fábulas que aqueles que as ouvem". Retomei coragem e saí do meu retiro para retomar a vida normalmente, pois havia três dias e outras tantas noites que não saía e =começava a sofrer fome, pois apenas tinha em casa biscoito e água; lembrei-me então que as minhas cabras tinham necessidade que lhes tirassem o leite, o que costumava ser o meu divertimento da tarde. Tinha razão em preocupar-me: os pobres animais tinham sofrido muito, muitos estavam doentes, e o leite da maior parte estava seco. Animando-me pois com o pensamento de que tivera medo apenas da minha sombra, fui à minha casa de campo para mungir o meu rebanho; mas tomar-me-iam por um homem agitado e perseguido pela consciência, ao ver com que receio caminhava, quantas vezes olhava para trás, a maneira como, de quando em quando, pousava o cântaro de leite e corria com tanta ligeireza como se se tratasse de salvar a vida.
Contudo, tendo estado assim dois ou três dias, tornei-me mais atrevido, e conformei-me no sentimento de que fora enganado pela minha imaginação. Não podia estar plenamente convencido disso antes de ir medir o vestígio que me dera tanta inquietação no local onde o encontrara. Logo que me achei no sítio em questão, vi claramente que =não era possível que eu tivesse saído do meu barco naquela zona; além disso vi que era muito maior que o meu pé, o que encheu o meu coração de novas agitações.
Um calafrio percorreu-me o corpo como se tivesse febre, e voltei para casa persuadido de que tinham desembarcado homens nessa praia, ou que a ilha era habitada e corria risco de ser atacado de surpresa, sem saber como me precaver. Em que extravagantes precauções os homens se lançam =quando estão agitados pelo temor! Esta paixão desvia-os de se servirem dos meios que a própria razão lhes oferece para os socorrer. Propus-me, primeiro, deitar abaixo o meu recinto, fazer voltar para os bosques o meu rebanho domesticado, e ir procurar noutra parte da ilha recursos semelhantes aos que queria sacrificar à minha segurança. Resolvi ainda derrubar a minha casa de campo e a minha cabana e revolver as minhas duas terras semeadas de trigo, a fim de tirar aos selvagens até a mais pequena suspeita capaz de os animar à descoberta dos habitantes da ilha. Era esse o assunto das minhas reflexões durante a noite seguinte, quando os terrores que se apoderaram da minha alma estavam ainda em toda a sua força. É assim que o medo do perigo é mil vezes mais assustador que o próprio perigo, quando o consideramos de perto; é assim que a inquietação que causa um mal afastado é muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Este caos de pensamentos manteve-me acordado toda a noite; mas adormeci quando era quase dia; a fadiga da minha alma e o esgotamento do meu espírito, deram-me um sono muito profundo. Quando acordei, achei-me muito mais sossegado, e comecei a raciocinar com calma sobre o meu estado. Depois de um falatório comigo mesmo, concluí que uma ilha tão =agradável, tão fértil, tão próxima do continente não devia ser =deserta como eu a julgara; que na verdade não havia habitantes fixos, mas segundo parecia algumas vezes aportavam lá embarcações, fosse voluntariamente, ou quando levadas pela força dos ventos contrários. Da experiência de quinze anos, durante os quais sempre vivera sem descobrir a sombra de uma criatura humana, julgava poder inferir que se de quando em quando a gente do continente era forçada a desembarcar na minha ilha, tornavam a embarcar logo que podiam, uma vez que até aqui não tinham achado conveniente estabelecer-se aí. Vi perfeitamente tudo o que tinha a recear - era contra esses desembarques acidentais que a prudência queria que eu procurasse uma retirada segura. Comecei então a arrepender-me de ter furado a minha caverna e de lhe ter dado uma saída no sítio onde a minha fortificação chegava ao rochedo. Para remediar esse inconveniente, resolvi fazer uma segunda, também em semicírculo, a alguma distância da muralha, no mesmo lugar onde doze anos antes plantara uma fileira de árvores. Pusera-as tão cerradas que me não era preciso mais do que uma pequena paliçada entre ambas para fazer dela uma fortificação suficiente. Achava-me assim defendido por duas trincheiras: a de fora fortificada com peças de madeira, velhos cabos e tudo o que julgara próprio para a reforçar, e tornei-a da espessura de mais de dez pés com terra que depois calquei. Fiz cinco aberturas bastante largas para aí passar o braço, e meti nelas os cinco mosquetes que tirara do navio, como já disse, como canhões sobre carretas, de tal maneira que podia fazer fogo com toda a minha artilharia em dois minutos; fatiguei-me durante muitos meses a aperfeiçoar esse entrincheiramento, e não descansei enquanto não o vi pronto. Acabada a obra, enchi um grande espaço de terra, fora da trincheira, com rebentos parecidos com vime, bons para ganhar firmeza e crescer em pouco tempo. Creio que enterrei na terra, num só ano, mais de vinte mil, de modo que deixava um vazio bastante grande entre esses bosques e a minha muralha, de maneira a poder descobrir o inimigo e não ser eu vítima de emboscadas suas no meio dessas árvores novas. Dois anos depois formavam já um bosquezito espesso; e, ao fim de seis anos tinha diante da minha habitação uma floresta de espessura tal e tão grande força que era absolutamente impenetrável, e ninguém teria imaginado que escondesse a habitação de uma criatura humana. Como eu não deixara avenida para o meu palácio, servia-me de duas escadas para entrar e sair; com a primeira subia até um sítio da rocha onde havia lugar para apoiar a segunda, e depois de retirar ambas não seria possível a ninguém =chegar-se a mim sem correr os maiores perigos. Além disso se alguém conseguisse ter felicidade bastante para descer da rocha, encontrar-se-ia ainda para lá da minha paliçada exterior. Foi assim que tomei para minha conservação todas as medidas que a prudência humana podia sugerir-me, e verão em breve que essas precauções não eram absolutamente inúteis, apesar =de serem então inspiradas por um vago receio. Durante estas ocupações, não deixava de olhar pelos meus outros negócios; interessava-me sobretudo pelo meu pequeno rebanho de cabras, que começavam a ser de grande recurso, no presente, e a dar-me esperanças de poder economizar o meu chumbo, a minha pólvora e as minhas fadigas. Depois de deliberação amadurecida apenas achei dois meios de as abrigar de todo o perigo. O primeiro era abrir uma outra caverna debaixo da terra e fazê-las entrar para aí todas as noites; e o segundo, fazer outros dois ou três pequenos recintos, afastados uns dos outros e tão escondidos quanto possível onde pudesse encerrar meia-dúzia de cabras novas, que me permitissem refazer todo o rebanho em pouco tempo e pouco trabalho caso acontecesse algum desastre ao rebanho em geral. Para realizar esse desígnio, pus-me a percorrer todos os recantos da ilha, e logo encontrei um sítio tão abrigado como desejava. Era uma grande clareira cercada de espesso bosque, onde, como já disse, estivera um dia a ponto de me perder quando voltava da parte oriental da ilha; oferecia uma espécie de parque com o qual a Natureza fizera quase todo o trabalho pelo que não me exigia esforços tão rudes como os que eu =empregara nos meus outros recintos. Meti logo mãos à obra e em menos de um mês ajudara tão bem =a Natureza, que as minhas cabras, já sofrivelmente domesticadas, podiam ficar em segurança. Todo esse trabalho provocado por um simples vestígio de um homem... Vivi no constante e natural acabrunhamento de alguém que espera cada dia ser feito em pedaços e comido antes do fim da noite. Depois de assim ter posto em segurança parte da minha provisão viva, percorri de novo a ilha à procura de um local próprio para receber igual depósito. Um dia, avançando eu =para a ponta ocidental, para sítios onde nunca chegara, julguei avistar de um ponto alto onde estava uma chalupa no mar; encontrara alguns óculos num dos baús que salvara do navio, mas infelizmente não os tinha comigo então e não pude distinguir o objecto em questão, apesar de ter cansado os olhos com o esforço. Fiquei na incerteza se era uma chalupa ou não, e isso fez-me tomar a resolução de nunca mais sair sem =um dos meus óculos. Ao descer da colina, vendo-me num sítio onde nunca estivera, fiquei plenamente convencido que vestígios de homens não eram coisa rara na ilha, e se uma Providência particular me não tivesse lançado para o lado onde os selvagens nunca vinham, teria sabido que era muito frequente que os barcos do continente procurassem uma enseada nessa ilha, quando por acaso se achavam muito embrenhados no mar alto. Saberia mais que, depois de algum combate entre os barcos de diferentes povoações, os vencedores conduziam os seus prisioneiros à minha praia, para os matarem e comerem como verdadeiros canibais que eram. O que me instruiu do que acabo de dizer foi um espectáculo que se ofereceu aos meus olhos na praia do lado do sudoeste, espectáculo que me encheu de espanto e de terror: descobri a terra semeada de crânios, mãos, pés e outras ossadas =humanas; notei que ali perto estavam os restos de uma fogueira, e um banco cavado na terra, em forma de círculo, onde certamente esses abomináveis selvagens se tinham colocado para fazer o seu espantoso festim. Este espectáculo cruel suspendeu por algum tempo a ideia dos meus próprios perigos: todas as minhas apreensões eram abafadas pelas impressões que me dava essa brutalidade infernal. Ouvira falar disso muitas vezes, e contudo a vista não me chocou menos do que se a coisa nunca me tivesse entrado na imaginação: desviei os olhos desses horrores, senti cruéis pensamentos, e perderia os sentidos se a natureza não me tivesse aliviado com um vómito muito violento; quando voltei a mim não me pude resolver a ficar nesse lugar e voltei para casa. Quando me afastei desse horrível lugar, parei de repente, como um homem fulminado pelo raio; voltando a mim, levantei os olhos ao céu e, com o coração enternecido, os olhos cheios =de lágrimas, dei graças a Deus por ter feito que eu nascesse numa parte do Mundo estranha a tais abominações. Com a alma cheia desses sentimentos, voltei para casa mais sossegado que nunca, porque me parecia certo que esses miseráveis nunca desembarcavam na ilha com o desígnio de nela fazer algum saque, não esperando aí encontrar grande coisa, o que talvez lhes tivesse sido confirmado pelas incursões que podiam ter feito nas florestas. Passara já dezoito anos sem encontrar ninguém, e podia esperar passar outros tantos com a mesma felicidade desde que não denunciasse a minha presença, o que não era de modo =algum a minha tenção, a não ser que aparecesse ocasião de =travar conhecimento com uma espécie de homens melhor que canibais. Contudo, o horror que me ficou do seu brutal costume lançou-me numa espécie de melancolia que me teve durante dois anos encerrado nos meus próprios domínios, ou seja, o meu palácio, a minha casa de campo e o meu novo recinto nos bosques; não ia a este último lugar, que era a residência =das minhas cabras senão quando absolutamente necessário. Também não me preocupava muito com o estado do meu barco, resolvi antes construir um outro, porque dar a volta à ilha com o antigo, a fim de o aproximar da minha habitação era arriscar-me a encontrar no meio do mar esses abomináveis selvagens e cair-lhes nas mãos. Enfim, o tempo e a certeza em que estava de que não corria risco algum de ser descoberto devolveram-me pouco a pouco ao meu modo de viver normal embora sempre mais atento do que antes, e já não disparava a minha espingarda com medo de excitar a curiosidade dos selvagens, se por acaso se achassem na ilha. Era pois, uma grande felicidade para mim poder dispor de um rebanho de cabras domesticadas e não ser obrigado a ir à =caça das selvagens. Se apanhava algumas de vez em quando, era por meio de redes e armadilhas. Nunca saía, contudo, sem a minha espingarda e como salvara três pistolas do navio, tinha sempre duas, pelo menos, que trazia ao cinto. Trazia ainda comigo uma das grandes facas que afiara. Imagina-se facilmente que nas minhas saídas tinha ares temíveis, se acrescentarem à descrição que fiz da minha =figura as duas pistolas e esse grande sabre que me pendia ao lado, sem bainha. Desde então, considerando a minha condição =tranquilamente, comecei a achá-la suportável. Ainda que poucas coisas me faltassem, notei contudo com tristeza que os terrores e os cuidados que tivera com a minha conservação tinham esmagado a minha subtileza na procura de coisas que me podiam ser úteis; estes receios tinham-me feito desprezar, entre outras, uma feliz ideia que me ocupara outrora: secar uma parte do meu grão e torná-lo próprio =para fazer cerveja. Este projecto parecia-me extravagante devido a tudo o que me faltava para chegar ao meu fim: não possuía tonéis para conservar a minha cerveja, e desperdiçara muitos meses de trabalho a tentar construir um, sem resultado; de mais a mais, não tinha lúpulo para a tornar susceptível de se conservar, nem levedura para a fazer fermentar, nem caldeirão para a fazer ferver. Apesar de todos estes inconvenientes, estou persuadido de que sem as apreensões que os selvagens me tinham provocado teria empreendido essa fabricação e talvez com sucesso, pois raras vezes abandonava um projecto uma vez que me entrava na cabeça e punha as mãos nele.
AGITAÇÃO DE ESPÍRITO - PROJECTOS HOMICIDAS
Mas agora o meu espírito inventivo voltara-se todo para outro lado, e pensava noite e dia no meio de destruir alguns desses monstros no meio dos seus divertimentos sanguinários, e de salvar as suas vítimas, se fosse possível: encheria um volume mais grosso que este com os pensamentos que rolavam na minha imaginação sobre o meio de exterminar um bando de selvagens, ou pelo menos dar-lhes um alarme bastante quente para os desviar de voltarem a pôr os pés na ilha. Mas tudo isso não tinha resultado algum: o meu único recurso estava em mim mesmo; e que podia fazer um homem só no meio de uns trinta armados de setas, de dardos e de frechas, cujos tiros eram tão certeiros como os das nossas armas de fogo? Às vezes, pensava em escavar uma galeria debaixo do sítio onde eles faziam as suas fogueiras e colocar nela cinco ou seis libras de pólvora que, inflamando-se logo que o calor aí penetrasse, faria ir pelos ares tudo o que se achasse nos arredores. Mas aborrecia-me perder de uma só vez tanta pólvora da minha provisão, que consistia apenas num barril; além disso não podia ter certeza alguma do bom resultado da minha galeria, que talvez não fizesse mais do que ensurdecer-lhes os ouvidos, sem Lhes causar bastante terror para os obrigar a abandonar a ilha para sempre. Renunciei pois a essa empresa; resolvi fazer uma emboscada num lugar conveniente, e com as minhas três espingardas atirar sobre eles no meio da sua cerimónia sanguinária, certo de matar ou pelo menos ferir dois ou três com cada tiro e de conseguir facilmente ver-me livre do resto, ainda que fossem uns vinte, caindo sobre eles com as minhas três pistolas e o meu sabre.
Gastei muitos dias à procura de um sítio favorável para a minha emboscada e até desci frequentemente ao lugar dos festins, com o qual comecei a familiarizar-me, sobretudo no tempo em que o meu espírito estava cheio de ideias de vingança e carnificina, porque os sinais de barbaridade desses cruéis antropófagos não faziam senão animar-me cada vez mais na execução do meu desígnio. Finalmente encontrei num dos lados da colina um lugar cómodo onde podia esperar com segurança a chegada dos seus barcos, e do qual, enquanto desembarcassem, podia escapar-me para a parte mais espessa do bosque; descobrira lá uma árvore oca, suficientemente oca para poder esconder-me dentro; dali podia espiar todos os seus movimentos, e apontar sobre eles quando se achassem de tal maneira próximos uns dos outros em torno do seu terrível festim que seria quase impossível não pôr =três ou quatro fora de combate só com o primeiro tiro. Resolvido a executar a minha empresa, preparei dois mosquetes e a minha espingarda de caça; carreguei cada mosquete com ferragem e quatro ou cinco balas de pistola e a espingarda com um punhado do meu chumbo mais grado; meti também quatro balas em cada pistola, e nesta posição, fornecido de munições para segunda e terceira descarga, preparei-me para o combate. Com esta resolução, não deixei de estar todas as manhãs =no alto da colina, afastado do meu palácio pouco mais de uma légua; mas durante mais de dois meses em que estive de sentinela não fiz a menor descoberta, não vi a menor barca, tanto junto à margem como em todo o oceano, pelo menos na área que a minha vista podia alcançar com o auxílio dum óculo. Durante todo esse tempo, o meu projecto subsistia em todo o seu vigor, e continuei a ter a disposição de espírito necessária para arcabuzar uns trinta desses selvagens para os castigar por um crime no qual só estava interessado devido ao calor de um zelo deslocado. Não me vinha à ideia que esses pobres homens não tinham outro guia para o seu proceder senão as suas paixões corrompidas, e que uma tradição desgraçada =os familiarizava com um costume horrível. Finalmente, a fadiga de tentar tanto tempo, em vão, a mesma empresa, fez-me raciocinar com exactidão sobre a acção que =ia cometer: "Que autoridade", disse comigo, "que vocação tenho eu para me fazer juiz e carrasco desses miseráveis selvagens? Que direito tenho eu de vingar no seu sangue o sangue que eles derramam? Estes homens nunca me fizeram mal pessoalmente, e o que eu penso empreender, só poderia ser desculpado pela necessidade em que pudesse achar-me para eu próprio me defender contra os seus ataques". Estas considerações sossegaram o meu furor, e pouco a pouco renunciei às medidas que tomara, reconhecendo que eram injustas e que não me seria permitido executá-las a não ser que os selvagens começassem as hostilidades contra mim. : Tomei esta resolução de bom grado, ainda mais que a primeira que longe de ser um meio de me conservar, tendia absolutamente para a minha ruína, pois bastava que um só selvagem de todo o bando pudesse escapar-me das mãos para comunicar a minha existência a um povo inteiro e animá-lo a vir vingar a morte dos seus compatriotas. Concluí que não devia meter-me nas acções dos selvagens =mas sim manter-me afastado e não deixar que suspeitassem da existência de um homem na ilha. Esta prudência era sustentada pela religião que me proibia de molhar as mãos em sangue inocente; digo inocente em =relação a mim porque para os crimes que o costume tornara comuns a todos esses povos, devia abandoná-los à justiça de Deus. Fiquei nesta disposição durante um ano inteiro, sem procurar meio de os atacar; não me dignei subir uma só vez à colina para examinar se tinham desembarcado ou não, receando sempre ser tentado por alguma ocasião que renovasse os meus desígnios contra eles. Afastei o meu barco e conduzi-o para o lado oriental da ilha, onde o coloquei numa cavidade que encontrei debaixo de rochedos elevados e as correntes tornavam inabordável às canoas dos selvagens. Vivi desde então mais retirado do que nunca, não saindo senão para me desempenhar dos meus deveres ordinários: mungir as cabras, sustentar o pequeno rebanho que eu escondera no bosque, rebanho este que se achava inteiramente abrigado porque, os canibais não pareciam estar de humor a abandonar a praia; e tinham estado nela muitas vezes, muito tempo antes de eu ter tomado todas as precauções que depois tomei. Quando pensava nisso, reflectia com horror sobre a situação em que estaria se os tivesse encontrado outrora, quando nu e desarmado apenas tinha para minha defesa uma espingarda carregada com chumbo miúdo. Nesse tempo percorria incessantemente toda a minha ilha, e qual teria sido o meu terror se, em vez de um só vestígio, tivesse achado uns vinte selvagens, que não teriam deixado de me dar caça e de me alcançar bem depressa pela ligeireza extraordinária com que correm!
Estremecia ao pensar que nessa ocasião não tinha recurso. As inquietações e os perigos nos quais passava a vida desviavam-me inteiramente do cuidado de procurar o que pudesse tornar-me a existência mais suave; pensava mais em viver do que em viver agradavelmente. Não cuidava já em pregar um prego, enterrar um pedaço de madeira, com receio de fazer ruído; muito menos ânimo tinha para disparar um tiro, e era com toda a inquietação possível que me aventurava a acender lume, cujo fumo visível a grande distância, poderia trair-me facilmente. Por esta razão, transportei as coisas que requeriam o emprego do fogo para o lado do meu quarto no bosque, onde encontrei enfim, depois de muitas idas e vindas e com toda a satisfação imaginável uma gruta natural de grande =extensão que, estou certo, nunca nenhum selvagem vira, e muito menos se atrevera a entrar nela; poucos homens ousariam aventurar-se a fazê-lo, a não ser que tivessem como eu uma necessidade extrema dum retiro seguro. A entrada dessa caverna era por trás de um grande rochedo, e descobri-a por acaso - ou melhor, por um efeito particular da Providência -, cortando alguns ramos grossos de árvore para queimar e conservar o carvão, meio de que me prevenira para evitar fazer fumo cozendo o meu pão e preparando os meus outros manjares. Logo que encontrei essa abertura, por trás de alguns tojos espessos, a minha curiosidade levou-me a entrar nela, não sem dificuldade. Achei o interior suficientemente grande para nele estar de pé, mas confesso que saí de lá com mais =precipitação do que entrara quando, olhando mais longe nesse antro obscuro, descobri dois grandes olhos, brilhantes como duas estrelas. No fim de alguns momentos retomei coragem e, pegando num tição inflamado, tornei a entrar no antro, duma maneira brusca; mas mal dera três passos para a frente, ouvi um grande suspiro seguido por um som semelhante a palavras mal articuladas e novo suspiro ainda mais terrível. O meu terror redobrou. Um suor frio cobriu-me o corpo todo e, se tivesse então chapéu na cabeça creio que os meus cabelos o =deitariam no chão à força de se porem em pé. Fiz contudo todos os esforços para dissipar o meu receio e, avançando com intrepidez, descobri um velho bode de tamanho extraordinário, caído por terra e prestes a morrer de velhice. Empurrei-o um pouco para ver se o podia fazer sair dali, e ele fez alguns esforços sem resultado para se levantar.
Isso era-me indiferente, pois afinal, enquanto ele estivesse vivo causaria o mesmo medo a algum selvagem que fosse suficientemente intrépido para penetrar neste antro. Então, plenamente tranquilizado, dirigi os olhos para todos os lados e vi como a caverna era bastante estreita e sem figura regular, pois a Natureza trabalhara aí sem ajuda alguma do engenho humano. Descobri uma segunda abertura, mas tão baixa que era impossível entrar nela de outro modo que não fosse de rastos, pelo que resolvi adiar até que pudesse tentar a aventura, munido de candeia e de uma espingarda pronta para fazer fogo. Voltei aí no dia seguinte com uma provisão de seis grossas velas que eu fizera com gordura de cabra, e depois de ter serpeado por essa abertura estreita ao longo de dez metros, encontrei-me muito mais à vontade. Achei-me debaixo de uma abóbada, da altura pouco mais ou menos de vinte pés, e posso assegurar que em toda a ilha não havia nada tão belo e tão digno de ser visitado como esse subterrâneo; a luz das duas velas que eu acendera era reflectida de mais de cem mil maneiras pelas paredes da gruta. Não sei dizer o que lhes dava esse brilho; seriam diamantes, outras pedras preciosas, oiro? Esta última hipótese parece-me a mais verosímel. Numa palavra, era a mais bela gruta que se pode imaginar, ainda que completamente obscura; o fundo era liso e seco, coberto por uma areia finíssima; não se via qualquer =vestígio de animais venenosos, nenhum vapor se fazia aí sentir, humidade alguma se manifestava nas muralhas. Mesmo o seu único defeito, a dificuldade de entrada, fazia simultaneamente a sua segurança. Estava encantado com a minha descoberta, e resolvi logo levar para essa gruta tudo aquilo cuja conservação me inquietava mais, sobretudo as minhas munições e as minhas armas de reserva. Este desígnio deu-me ocasião de abrir o meu barril de pólvora que salvara do mar. Vi que a água aí penetrara por todos os lados, a três ou quatro polegadas de profundidade, e que a pólvora molhada formara uma espécie de crosta que conservara o resto, como uma noz é conservada na sua casca; desta maneira restava-me no centro do barril perto de sessenta libras de boa pólvora, que levei para a minha gruta com todo o chumbo que ainda tinha, e só deixei no meu palácio a necessária para me defender em caso de surpresa. Nesta situação, comparava-me aos gigantes da Antiguidade que habitavam antros inacessíveis, e estava bem persuadido de que, quando os selvagens me dessem caça, fosse em que número fosse, não me atingiriam, ou pelo menos não ousariam atacar-me à =viva força na minha nova gruta. O velho bode morreu à entrada da gruta no dia seguinte à sua descoberta; achei mais conveniente enterrá-lo nesse sítio do que esforçar-me por arrastar o cadáver para fora. Estava então no vigésimo terceiro ano de residência nessa ilha, e tão acostumado ao meu modo de aí viver que, sem receio dos selvagens, ficaria satisfeito se passasse aí o resto dos meus dias. Arranjara mesmo com que me divertir e entreter, coisa que me faltara outrora: ensinara a falar o meu papagaio, como já disse, e ele habituara-se tão bem, que a conversa com ele foi um grande gosto para mim durante os vinte e seis anos que vivemos juntos. Diz-se no Brasil, que estes animais vivem um século inteiro: o meu papagaio talvez ainda viva, chamando ainda segundo o seu costume, "o pobre Robinson Crusoé". O meu cão foi-me ainda um companheiro agradável e fiel durante dezasseis anos, até que morreu de pura velhice. Quanto aos meus gatos, só guardara dois ou três favoritos, cujos filhos eu tinha o cuidado de afogar logo que vinham ao mundo. Tinha também dois cabritos que acostumara a comer da minha mão, e outros dois papagaios que palravam suficientemente bem para pronunciar Robinson Crusoé, embora longe da perfeição =do outro, com o qual também tivera muito trabalho. Possuía ainda umas aves marítimas, cujos nomes ignorava; apanhara-as na praia, e cortara-lhes as asas; habitavam e punham os ovos no bosque que eu plantara diante do entrincheiramento do meu palácio e contribuíam muito para o meu divertimento. Estava contente, repito; desde que os selvagens não viessem perturbar a minha tranquilidade. Mas o Céu destinara de outro modo, e aconselho todos aqueles que lerem a minha história a tirar a seguinte reflexão: quantas vezes não acontece, no curso da nossa vida, que o mal que evitamos com o maior cuidado e nos parece o mais terrível se torna, quando caímos nele, a porta da nossa libertação, =por assim dizer, e o único meio de acabar com as nossas desgraças! Esta verdade foi notável sobretudo nos últimos quatro anos da minha vida solitária, como o leitor verá dentro em pouco.
Aparição de selvagens - NAUFRÁGIO DE UM NAVIO ESPANHOL
Foi no mês de Dezembro, tempo ordinário da minha colheita, que me obrigava a passar os dias quase inteiros no campo; um dia, saindo eu, um pouco antes de nascer do Sol, fiquei surpreendido ao ver uma luz na praia, a cerca de meia légua de distância. Não estava do lado onde eu observava que os selvagens costumavam chegar; com a dor mais viva o vi: era do lado da minha habitação. O medo de ser surpreendido fez-me entrar bem depressa na gruta, onde me julgava em segurança, porque a vista da minha sementeira meia cortada podia mostrar aos selvagens que a ilha era habitada e levá-los a procurar-me por toda a parte até me desencantar. Nesta apreensão, voltei para casa e, tendo retirado a escada, preparei-me para a defesa; carreguei todas as armas, resolvido a bater-me até ao último alento, sem me esquecer de implorar a protecção divina; e nesta atitude esperei o inimigo durante duas horas, muito impaciente por querer saber o que se passava lá fora. Mas não tendo ninguém para mandar em exploração e incapaz de sustentar mais tempo tão cruel incerteza, aventurei-me a subir ao alto do rochedo pelas duas escadas, e deitei-me lá, de barriga para o chão; servi-me do meu óculo para conhecer o estado das coisas. Vi primeiro nove selvagens sentados em roda de uma pequena fogueira, não para se aquecerem, estava calor demais para isso, mas aparentemente para preparar alguns manjares de carne humana, destinados aos seus horrorosos festins. Tinham consigo duas canoas que estavam a seco na praia; e como eram horas da maré encher pareciam esperar a baixa-mar para se irem embora, o que acalmou a minha inquietação:
Com efeito concluí daí que eles vinham e iam-se sempre do mesmo modo, e que eu podia percorrer o campo sem perigo durante a preia-mar, observação que me fez continuar a minha colheita com bastante tranquilidade. A coisa sucedeu exactamente como eu conjecturara; logo que a maré começou a vasar, vi-os meter-se nos barcos e partir à força de remos; o que todavia não fizeram senão depois de =se terem divertido por algum tempo com danças, como o notei pelas suas posturas e pelos seus gestos; pareceu-me que estavam absolutamente nus. Logo que os vi embarcados, saí com duas espingardas aos ombros, duas pistolas no cinto e a minha grande espada ao lado e, com toda a pressa, subi à colina de onde vira pela primeira vez os sinais dos festins horríveis desses canibais; e ali descobri mais três barcos que estavam também no mar para se dirigir para o continente. Quando cheguei à praia, vi novamente os horríveis vestígios do seu brutal costume, e indignei-me tanto com isso que resolvi outra vez cair sobre o primeiro bando que encontrasse, por mais numeroso que ele fosse. As visitas que eles faziam à ilha deviam ser raríssimas, pois passaram-se mais de quinze meses sem que eu notasse o menor vestígio deles. Vivia contudo durante esse tempo nas mais cruéis apreensões, de que não via meio algum de me livrar. Estava todavia sempre com as minhas ideias homicidas, e empregava quase todas as horas do dia, das quais eu poderia fazer melhor uso, em preparar o plano de ataque, para a primeira ocasião que se apresentasse, sobretudo se as suas forças estivessem divididas como da última vez. Não =reflectia que se eu matasse ora os de um partido, ora os do outro, estaria sempre a recomeçar, e que afinal tornava-me mais carniceiro que aqueles cuja barbaridade queria castigar. As inquietações, renovadas, tornavam a minha vida cheia de amarguras: quando me aventurava a sair do meu retiro, era com toda a precaução possível e dirigindo continuamente os =olhos para todos os objectos de que estava rodeado. Que felicidade para mim ter posto o meu rebanho em segurança, e estar dispensado de disparar sobre as cabras selvagens! O ruído poderia pôr em fuga um pequeno número de índios assustados, mas logo voltariam com muitas centenas de barcos, e sabia o que teria então a recear. Contudo fui bastante feliz por não ver mais nenhum até ao mês de Maio =do vigésimo quarto ano da minha vida solitária, época em que =tive com eles um encontro muito surpreendente, que contarei a seu tempo. Durante estes quinze meses, passava os dias em pensamentos inquietos, e todas as noites tinha sonhos assustadores, que me despertavam em sobressalto. Era pouco mais ou menos no meado de Maio; rebentou uma tempestade terrível, acompanhada de trovões e relâmpagos. A noite seguinte não foi menos terrível; absorto na leitura da Bíblia, fazia várias reflexões sobre o que ia lendo quando =me surpreendeu um ruído semelhante a um tiro de peça dado no mar. Esta surpresa era bem diferente de todas que até então tinha sentido; levantei-me e com a maior rapidez cheguei ao cume do rochedo por meio das escadas que tinha arranjado. Ao mesmo tempo vi uma luz instantânea, à qual se seguiu um tiro de =peça que meio minuto depois chegou aos meus ouvidos, e cujo som devia vir do lado do mar para o qual as correntes tinham arrastado o meu barco. Pensei primeiro que devia ser algum navio em perigo, que, por meio destes sinais, pedia socorro a outro que com ele viesse. Depois reflecti que, se por um lado me era impossível socorrê-lo, ele pela sua parte podia salvar-me, e com este fim reuni todos os ramos secos que estavam ali perto, peguei-lhes fogo no alto da colina, e, ainda que o vento soprasse com violência, não deixou de se inflamar segundo os meus desejos, e tinha a certeza que o fogo deveria ser visto pelos do navio, se eu não errava nas minhas conjecturas. E de facto, mal se ateou o meu fogo ouvi um terceiro tiro de peça, seguido de muitos outros, vindo todos do mesmo lado. Alimentei a fogueira toda a noite, e quando o dia despontou e a atmosfera ficou limpa, vi qualquer coisa a leste da ilha, sem contudo a poder distinguir, mesmo com o óculo, tão grande era a distância. Durante todo o dia conservei os olhos fixos nesse objecto, e como o via sempre no mesmo sítio, julguei que era um navio ancorado. Tendo muita vontade de satisfazer a minha curiosidade, agarrei na espingarda e encaminhei-me a largos passos para a parte meridional da ilha, onde já as correntes me tinham impelido para alguns rochedos; trepei ao mais alto, e, como o tempo estava sereno, vi com grande pena o corpo do navio, o qual se tinha despedaçado durante a noite, nas rochas escondidas pela água, que eu tinha achado, quando ali fora na minha canoa, e os quais, resistindo à força da maré, =formavam uma espécie de maré oposta, que me tinha salvo do maior perigo que eu decerto correra em toda a minha vida. E eis aqui como o que salva uns perde outros, porque me parece que os tripulantes, não tendo conhecimento dos rochedos escondidos debaixo de água, tinham sido levados para cima deles por um vento, ora este, ora este-nordeste. Se tivessem descoberto a ilha, o que aparentemente não fizeram, tratariam sem dúvida de se safar para terra nos seus barcos. Mas os tiros de peça que tinham atirado ao ver a minha fogueira fizeram nascer um grande número de diferentes pensamentos na minha imaginação: julgava que tinham embarcado nos seus escaleres para atracar à margem mas tinham sido levados pelas ondas; ou então tinham começado por perder o escaler o que muitas vezes acontece quando as vagas, entrando no navio, forçam os marinheiros a fazer o escaler em pedaços ou a lançá-lo ao mar. Outras vezes, achava muito possível que os navios que iam com este de conserva, advertidos pelos seus sinais, lhe tivessem salvo a tripulação. Em outros momentos, pensava que tinham entrado todos juntos no escaler, e que as correntes os tinham levado para o vasto oceano, onde não havia salvação a esperar por eles, e onde morriam talvez de fome. Não passava de conjecturas, e, no estado em que me achava, só podia lançar um olhar de piedade para a sorte dessa pobre gente. Não encontro palavras suficientemente enérgicas para exprimir o desejo que tinha de ver pelo menos um desses homens salvos, a fim de encontrar um companheiro para a minha solidão; nunca suspirara tanto pela sociedade dos meus semelhantes, nem sentira tão vivamente a desgraça de estar privado dela. Repeti cem vezes sucessivamente: "Queira Deus que escapasse um só!" E, ao pronunciar estas palavras, a minha comoção =era tão viva que as mãos se juntavam com uma força terrível; =os dentes apertavam-se de tal modo, que estive muito tempo sem poder separá-los. Mas, até ao último ano da minha residência na ilha, =ignorei se se salvou alguém desse naufrágio. Só alguns dias depois, tive a dor de ver na praia o cadáver dum grumete afogado. Tinha por fato uma farda de marinheiro, um mau par de calças e uma camisa de pano branco, de maneira que era impossível adivinhar de que nação era: tudo o que encontrei nas algibeiras consistia apenas em duas pequenas moedas de prata e um cachimbo, infinitamente mais precioso para mim que o dinheiro. O mar amansara contudo, e eu tinha grande desejo de visitar o navio, não tanto na esperança de encontrar alguma coisa de útil, mas para ver se havia alguma criatura viva que eu pudesse salvar. Com esta esperança preparei tudo para a minha viagem. Tomei uma grande quantidade de pão, um barril cheio de água fresca, uma garrafa do meu licor forte de que estava suficientemente abastecido, e um cesto cheio de uvas secas. Carregado com estas provisões, fui para o meu barco, limpei-o, pu-lo na água e meti-lhe dentro todo o carregamento; depois fui buscar o resto que me era necessário: arroz, um chapéu-de-Sol, duas dúzias de bolos, um queijo e uma bilha de leite de cabra. Carregado assim o meu pequeno barco, pedi a Deus que abençoasse a minha viagem, e, costeando a praia, vim até à última ponta da ilha do lado do nordeste, de onde era preciso avançar mar adentro se fosse bastante atrevido para prosseguir na minha empresa. Observei com muito terror as correntes que antes me tinham quase perdido, e esta lembrança não podia senão =desanimar-me, porque, se eu tivesse a desgraça de aí ir cair, arrastar-me-iam certamente para dentro do mar, fora da vista da minha ilha; e se um vento um pouco agitado se levantasse, o que seria feito de mim! Estava de tal modo assustado que comecei a abandonar a minha resolução, e tendo conduzido o meu barco para uma pequena sinuosidade da praia, fiquei hesitante, entre o desejo e o receio de acabar a minha viagem; aí fiquei até ao momento em que vi que a maré mudava, e começava a encher, o que tornava a minha ideia impraticável durante algumas horas. Passou-me então pelo espírito a ideia de subir a uma das dunas mais elevadas, para observar a direcção que as correntes levavam durante o fluxo, a fim de julgar se, levado por uma das correntes ao meter-me ao mar, encontrava uma outra que me pudesse trazer com a mesma rapidez. Cheguei bem depressa a uma eminência de onde se podia observar o mar de um e outro lado, e dali vi claramente que, como a corrente do refluxo saía do lado da ponta meridional da ilha, assim a corrente do fluxo entrava do lado norte e tendia por consequência a reconduzir-me a casa. Animado, resolvi sair no dia seguinte antes do começo da maré, e fi-lo depois de ter passado a noite no meu barco. Dirigi primeiro o meu caminho para o norte até ao momento em que comecei a sentir o favor da corrente que me levou muito para o lado de leste, sem que contudo fosse bastante forte para desviar o rumo do meu barco que tinha um bom leme e que eu ainda ajudava com um remo: desta maneira fui direito ao navio e cheguei em menos de duas horas. Era um bem triste espectáculo: o navio, que parecia espanhol pela construção, estava como que encaixado entre dois rochedos: a popa e uma parte do corpo desse navio estavam esmigalhados pelo mar, e como a proa batera contra os rochedos com extrema violência, o mastro grande e o da vela mestra tinham-se quebrado pela base; mas o gurupés ficara em bom estado e parecia firme na ponta do esporão. Quando cheguei ao pé, apareceu-me um cão na ponte; ao ver-me pôs-se a gemer e a ladrar. Logo que o chamei, saltou para o mar e ajudei-o a entrar no meu barco: achando-o meio morto de fome e de sede, dei-lhe um pedaço de pão, que ele engoliu como um lobo que tivesse padecido quinze dias na neve; em seguida dei-lhe a beber da minha água fresca. O primeiro espectáculo que se ofereceu aos meus olhos no navio foi dois homens afogados no camarote de proa, e que estavam abraçados um ao outro. Provavelmente quando o navio embateu nos rochedos, o mar entrou, e em tão grande quantidade, e tão violentamente, que aqueles pobres homens morreram abafados como se tivessem estado continuamente debaixo de água. A não ser o cão, nada havia vivo no navio, e quase toda a carregação me pareceu submergida; contudo vi muitos barris cheios, aparentemente de vinho e aguardente, mas demasiado grandes para poder aproveitá-los. Ainda havia alguns caixotes; pus dois no meu barco sem ver o que continham. Depois, pelo que nele encontrei, pareceu-me vir ricamente carregado; segundo as minhas conjecturas, vinha de Buenos Aires, no Sul da América, além do Brasil, e destinava-se a Havana e depois à Espanha.
Além destes dois caixotes, também encontrei um pequeno barril que podia conter cerca de vinte canadas, e pu-lo no barco com muito custo. Numa das câmaras vi muitas espingardas, e um grande polvarinho cheio com umas quatro libras; apoderei-me deste, mas deixei as armas porque estava bem fornecido delas; ainda levei comigo uma pá de forno, e tenazes, de que tinha grande necessidade, bem como dois caldeirões de cobre, uma grelha e uma chocolateira. Retirei-me com este carregamento e com o cão, vendo aproximar-se a maré que devia reconduzir-me a casa, e nessa mesma tarde voltei à ilha, muito cansado. Depois de ter repousado na canoa, resolvi que era melhor transportar as minhas novas aquisições para a gruta do que para o palácio, mas achei conveniente fazer, antes disso, um exame. O pequeno barril continha uma espécie de rum que não era =tão bom como o do Brasil; quanto aos dois caixotes, estavam recheados de coisas de grande utilidade para mim: entre outras encontrei lá um pequeno cesto com excelentes licores cordiais, e em grande quantidade; estavam em garrafas ornadas com prata, cada uma com três pintas. Achei ainda dois boiões com doces tão bem fechados que a água não tinha podido penetrar; e outros dois estragados pelo mar. Havia lá camisas muito boas, gravatas de cores diversas, meia-dúzia de lenços brancos, magníficos para enxugar o =rosto nos grandes calores. Este achado foi-me muitíssimo agradável. Quando cheguei ao fundo do caixote, encontrei três grandes sacos com moedas de prata, além de um papel contendo seis pistolas de dois canos e algumas jóias, que juntas pesariam cerca de uma libra. No outro caixote achei muitos fatos, mas de pouco valor, e três frascos cheios de pólvora para canhão muito fina, que parecia destinada a carregar as espingardas de caça na ocasião. Conclusão: pouco fruto colhi da minha viagem; o dinheiro de pouco me servia, e de boa vontade o daria em troca de dois ou três pares de meias e botas, de que muito precisava e me via privado havia um bom par de anos. É verdade que tinha os dois pares de botas dos dois pobres marinheiros que encontrara afogados no navio, mas não igualavam as nossas botas inglesas, nem em comodidade, nem em serviço. Para acabar, encontrei ainda umas cinquenta moedas de prata, e nem uma só de ouro: Coloquei todo este dinheiro na gruta, ao pé do que já tinha salvo do nosso próprio navio. Foi pena que não tivesse podido chegar ao fundo da embarcação, porque teria podido tirar com que carregar mais de uma vez a minha canoa, e teria reunido um tesouro considerável, perfeitamente seguro na gruta, e que facilmente transportaria para a minha pátria, se a bondade divina permitisse que eu um dia deixasse a ilha. Depois de assim ter posto todas as minhas aquisições em lugar seguro, levei a minha canoa para o seu abrigo ordinário, e voltei à minha morada, onde encontrei tudo como tinha deixado. Recomecei a minha vida como até então, aplicando-me aos afazeres domésticos. Durante uma temporada, gozei de um grande sossego, embora sempre alerta, saindo raramente e sempre com inquietação, excepto quando me dirigia para o lado oeste, onde tinha a certeza que os selvagens nunca iam, e que portanto me dispensava da grande quantidade de armas que sempre levava comigo nas outras excursões. Foi assim que vivi dois anos a fio, razoavelmente feliz, se o meu espírito não se tivesse povoado de mil projectos para me escapar da ilha. Algumas vezes queria fazer uma segunda visita ao navio encalhado, de onde nada tinha a esperar que valesse o trabalho da viagem; outras vezes pensava partir, ora para um lado, ora para outro, e creio firmemente que se ainda tivesse em meu poder a chalupa com que tinha deixado Salé, ter-me-ia já metido ao mar, confiando no acaso. Um dia, estes pensamentos agitaram-me com tanta força que por um momento me tiraram a tranquilidade que outrora me tinha dado a minha resignação à vontade da Providência. Não estava em meu poder afastar o meu espírito deste projecto de viagem que excitava em mim desejos tão impetuosos, aos quais nem a minha razão resistia. Durante duas horas, esta paixão arrebatou-me com tanta violência que me fez ferver o sangue nas veias, como se tivesse febre; mas um cansaço de espírito, sucedendo a esta agitação, mergulhou-me num =profundo sono. Era natural que os meus sonhos fossem todos a respeito da mesma coisa; contudo, pouquíssima relação havia entre eles e =a minha ideia fixa. Sonhei que saindo como de costume, do meu palácio pela manhã, via na praia duas canoas de onde saíam onze selvagens com um prisioneiro destinado a servir de alimento. Este infeliz, no momento em que ia ser morto, escapa-se e desata a correr para o meu lado, com o fim de se esconder no espesso bosque que ocultava o meu entrincheiramento; vendo-o só, sem que ninguém o perseguisse, apareço, e animando-o com um rosto risonho, ajudo-o a subir a escada, levo-o comigo para a minha habitação e ele torna-se meu escravo. Estava encantado com este encontro, persuadido que achara um homem capaz de me servir de piloto na minha empresa, de me dar os conselhos necessários para evitar os perigos desconhecidos por mim. E eis o meu sonho, que, enquanto durou, me encheu de uma alegria inexprimível. mas foi seguido de uma dor extravagante assim que acordei.
ROBINSON SALVA A VIDA A UM ÍNDIO: DÁ-LHE O NOME DE SEXTA-FEIRA
Concluí de aí que o único meio de executar o meu =desígnio com êxito era apanhar algum selvagem; sobretudo, se fosse possível, algum prisioneiro que me ficasse reconhecido pela sua libertação; mas via nisto essa terrível dificuldade de, para ter resultado, ser absolutamente preciso massacrar toda uma multidão, empresa desesperada e que podia falhar muito facilmente. Por outro lado, estremecia ao pensar nos motivos de que falei, e que me faziam considerar essa acção como extremamente criminosa. É verdade que tinha no espírito outras razões que advogam a inocência do meu projecto, a saber: que esses selvagens eram realmente meus inimigos, pois é certo que me devorariam logo que lhes fosse possível; atacá-los era, na verdade, trabalhar para a minha própria conservação, sem =sair dos limites de uma defesa legítima. Estes argumentos não me tranquilizavam contudo, e eu tinha dificuldade em me familiarizar com a resolução de alcançar =a minha liberdade à custa de tanto sangue. Todavia, depois de muitas deliberações inquietas, depois de ter pesado muito tempo o pró e o contra, a minha paixão prevaleceu sobre a minha humanidade, e eu determinei que faria tudo o que me fosse possível para me apoderar dum desses selvagens fosse lá como fosse. A questão era a maneira de o conseguir; mas, como não podia decidi-la ainda, resolvi unicamente pôr-me de sentinela para descobrir os meus inimigos quando desembarcassem, e formar então o meu plano conforme as circunstâncias. Com este fim, não deixei um só dia de ir reconhecer o terreno: mas nada descobri no espaço de dezoito meses, posto que durante todo esse tempo eu fosse incessantemente ora para o lado de oeste da ilha, ora para o lado de sudoeste, os dois sítios mais frequentados pelos selvagens. A fadiga que esses passeios inúteis me davam, bem longe de me desgostar, como dantes, da minha empresa e de abrandar a minha paixão, não fez senão inflamá-la mais: desejava tão ardentemente encontrar os canibais, quanto desejava outrora evitá-los. Tinha mesmo então tanta confiança em mim mesmo, que fazia tenção de prender três desses selvagens para os avassalar inteiramente e lhes tirar todo o meio de me fazerem mal; agradava-me esta ideia vantajosa da minha habilidade e nada me faltava, no meu entender, senão a ocasião de a empregar. Pareceu apresentar-se finalmente. Um dia, distingui na praia uns seis barcos; os selvagens estavam já em terra e fora do alcance da minha vista. Sabia que vinham ordinariamente cinco ou seis em cada barco, e por consequência o seu número transtornava todos os meus projectos. Que possibilidade havia para um homem só combater contra trinta? Contudo, depois de ter estado indeciso durante alguns momentos, preparei tudo para o combate: escutei atentamente se ouvia algum ruído; depois, deixando as minhas duas espingardas ao pé da escada, coloquei-me de maneira que a minha cabeça não excedia o alto da escada. De aí avistei, por meio do meu óculo, que eram pelo menos trinta, que tinham acendido lume para preparar o seu festim, e que dançavam em volta da fogueira com mil posturas, e com mil gestos extravagantes, segundo o costume do país. Um momento depois, vi-os tirar de um barco dois miseráveis para os fazerem em pedaços. Um dos dois caiu logo por terra desancado, creio eu, por uma pancada de maça ou de sabre de madeira; e, sem demora, dois ou três daqueles carrascos lançaram-se a ele, abriram-lhe o corpo e prepararam todos os pedaços para a sua infernal cozinha, enquanto que a outra vítima estava ali ao pé, esperando que chegasse a sua vez de ser imolada. Este desgraçado, achando-se então com alguma liberdade, alimentou uma esperança de se salvar, e desatou a correr com toda a ligeireza imaginável, em linha recta para o meu lado, quero dizer, para o lado da praia que conduzia à minha habitação. Confesso que fiquei terrivelmente aterrado ao vê-lo enfiar por esse caminho, sobretudo porque esperava que o bando o perseguiria, e pensei que ia confirmar o meu sonho quanto à busca de refúgio no meu bosque, sem ter ocasião de crer que o resto do meu sonho se verificaria também. Fiquei todavia no mesmo lugar, e sosseguei logo, ao ver que apenas três homens o perseguiam, e que ele ganhava consideravelmente terreno sobre eles, de maneira que devia escapar-lhes indubitavelmente se ele aguentasse aquela corrida durante meia hora. Havia na praia, entre ele e o meu palácio, uma pequena baía onde ele seria apanhado necessariamente, a não ser que a atravessasse a nado; mas quando ele aí chegou não esteve com hesitações e apesar da maré estar muito cheia, atirou-se =à água, ganhou a outra margem nuns trinta impulsos, no máximo, e depois tornou a correr com a mesma força que dantes. Quando os seus inimigos chegaram ao mesmo sítio, notei que apenas dois sabiam nadar; e que o terceiro, depois de se ter demorado um pouco na margem, voltava lentamente para o lugar do festim, o que não era felicidade pequena para aquele que fugia. Observei ainda que os dois que nadavam levaram a atravessar essa água o dobro do tempo que o seu prisioneiro gastara. Vi então que era esta uma ocasião favorável para arranjar =um companheiro e um criado, e que eu era chamado evidentemente pelo Céu para salvar a vida desse pobre infeliz. Nesta persuasão desci precipitadamente do rochedo para pegar nas minhas espingardas, e subindo com o mesmo ardor, avancei para o mar; não tinha muito que andar, e depressa me lancei entre os perseguidores e o perseguido, tratando de lhe fazer entender pelos meus gritos que parasse. Fiz-lhe ainda sinal com a mão, mas creio que ao princípio tinha tanto medo de mim como daqueles de quem fugia. Avancei contudo sobre eles com passos lentos, e em seguida, lançando-me bruscamente sobre o primeiro, derrubei-o com uma coronhada; antes queria desfazer-me deles desta maneira do que fazendo fogo sobre ele, pois receava ser ouvido pelos outros, apesar disso ser difícil a tão grande distância, e ser impossível aos selvagens saber =o que significava esse ruído desconhecido. O segundo, ao ver cair o seu camarada, parou como que assustado; continuo direito a ele mas ao aproximar-me vejo-o armado de um arco cuja flecha ele aponta, o que me obriga a antecipar-me e faço-o cair por terra, morto ao primeiro tiro. O pobre fugitivo, posto que visse os seus dois inimigos fora de combate, estava tão aterrado com o fogo e com o ruído que ouvira que ficou imóvel no mesmo lugar, e eu vi, no seu ar desvairado, mais vontade de fugir imediatamente do que de aproximar-se. Fiz-lhe novamente sinal para que viesse ter comigo; deu alguns passos, depois parou ainda, e estes movimentos repetiram-se durante alguns momentos. Imaginava sem dúvida que ia ser preso outra vez, e ser morto como os seus dois inimigos.
Enfim, depois de lhe ter feito sinal pela terceira vez, com a maneira mais própria para o sossegar, aventurou-se a vir ter comigo, pondo-se de joelhos a cada dez ou doze passos para me testemunhar o seu reconhecimento. Durante todo esse tempo eu sorria-Lhe o mais graciosamente possível. Finalmente, quando chegou ao pé de mim, deita-se-me aos pés, beija o chão, pega num dos meus pés e põe-o na sua =cabeça, para me fazer compreender sem dúvida que me jurava fidelidade e que me prestava homenagem na qualidade de meu escravo. Levantei-o e tentei animá-lo cada vez mais; mas o negócio não estava ainda acabado; vi logo que o selvagem que eu fizera cair com uma coronhada não estava morto mas apenas atordoado, fi-lo notar ao meu escravo que em resposta pronunciou algumas palavras que não entendi mas não deixaram de me encantar, pois era o primeiro som de uma voz humana que ouvia depois de vinte e cinco anos. Mas ainda havia trabalho para acabar; o selvagem em questão já recuperara forças bastantes para se pôr em pé, e o =terror reapareceu no rosto do meu escravo; todavia como me viu com ar de quem ia descarregar a minha espingarda sobre o desgraçado, deu-me a entender por sinais que desejava que eu lhe emprestasse o meu sabre, ao que acedi. Mal pegara nele, lança-se sobre o seu inimigo, e corta-Lhe a cabeça de um só golpe, tão depressa e tão habilmente como o poderia fazer o mais hábil carrasco de toda a Alemanha. Era contudo a primeira vez na sua vida que ele vira uma espada, a não ser que se queira dar esse nome aos sabres de madeira que são armas comuns naqueles povos. Contudo soube depois que esses sabres são de uma madeira tão dura e tão pesada, e que eles sabem tão bem aguçá-los, que =de um só golpe fazem voar uma cabeça de cima dos ombros. Depois de ter feito essa expedição, vem ter comigo aos saltos e às gargalhadas celebrando o seu triunfo e vem pousar aos meus pés o meu sabre e a cabeça do selvagem. O que o confundia extraordinariamente, era a maneira como eu matara o outro índio a tão grande distância, e mostrando-mo pediu-me por sinais licença para o ver de perto. Ao aproximar-se, a sua surpresa aumenta, observa-o, volta-o ora de um lado, ora de outro; examina a ferida que a bala fizera exactamente no peito, que não parecia ter sangrado muito, porque o sangue espalhara-se para dentro. Depois de ter parado muito tempo a considerá-lo, veio ter comigo com o arco e as frechas do morto; eu, resolvido a ir-me embora, ordenei-lhe que me seguisse, fazendo-lhe entender que receava que os selvagens fossem logo seguidos de um maior número. Fez-me depois sinal de que ia enterrar os dois que nós tínhamos morto, com medo que os outros ao ver os corpos conseguissem descobrir-nos. Deixei-o fazer isso, e num instante tinha aberto duas covas na areia onde enterrou ambos. Tomada esta precaução, levei-o comigo, não para o meu palácio, mas para a gruta que eu tinha na ilha; o que desmentiu o meu sonho que designara o meu bosque para asilo do meu escravo. Foi nesta gruta que lhe dei pão, um cacho de uvas secas, e água que era o que mais falta lhe fazia devido à muita sede que a corrida provocara. Fiz-lhe sinal para ir dormir, mostrando-lhe um monte de palha de arroz e um cobertor que muitas vezes tinha servido de leito a mim mesmo. Era um rapazola reforçado, de vinte e cinco anos, mais ou menos; era bem constituído, tinha um ar hábil e robusto, e o seu aspecto não era o de alguém feroz: pelo contrário, =via-se nas suas feições, e sobretudo quando sorria, uma doçura e =um agrado mais próprios de um europeu. Não tinha os cabelos semelhantes à lã frisada, mas sim negros e compridos; a sua fronte era grande e elevada, os seus olhos briLhantes e cheios de fogo. A sua tez não era negra mas muito acobreada, sem nada dessa desagradável cor acastanhada dos habitantes do Brasil e da Virgínia; aproximava-se mais de uma ligeira cor de azeitona, de que não é fácil dar ideia exacta. Tinha o rosto redondo e o nariz bem feito, a boca bonita, os lábios delgados, os dentes bem enfileirados e brancos como o marfim. Depois de ter dormitado durante meia hora, acorda e sai da gruta para vir ter comigo; neste intervalo fora mungir as cabras, que estavam num recinto ali perto. Veio correndo para mim, lançou-se a meus pés com todos os sinais de uma alma verdadeiramente reconhecida, renovou a cerimónia de me jurar fidelidade, pondo o meu pé sobre a sua cabeça; numa palavra, fez todos os gestos que se podem imaginar para me exprimir o seu desejo de ser meu escravo para sempre. Eu compreendia a maior parte das coisas pelos seus gestos, e fiz quanto podia para lhe dar a entender que estava contente com ele. Comecei em pouco tempo a falar-lhe, e ele aprendeu a falar comigo, por seu turno; primeiro ensinei-lhe que se chamaria Sexta-feira, nome que lhe dei em memória do dia em que caíra em meu poder. Ainda lhe ensinei a chamar-me seu senhor, e a dizer a propósito sim e não. Em seguida dei-lhe leite num vaso de barro; bebi primeiro, e molhei nele o pão; tendo-me imitado, fez-me sinal de que gostara. Ficámos na gruta, mas apenas o dia despontou, fiz-lhe compreender que me seguisse, e que lhe daria vestuário, o que pareceu regozijá-lo, porque estava completamente nu. Ao passar pelo sítio onde enterrara os dois selvagens, mostrou-mo assim como os sinais que ali deixara para o reconhecer, manifestando a ideia de os desenterrar e de os comer. Tomei o ar de um homem zangado; exprimi-lhe o horror que tinha de tal pensamento e, fingindo que ia vomitar, ordenei-lhe que se afastasse desses cadáveres, o que ele fez imediatamente com muita humildade. Levei-o em seguida ao alto da colina, para ver se os inimigos tinham partido, e servindo-me do meu óculo não descobri senão o lugar onde eles tinham estado, sem os ver nem a eles nem às suas canoas, prova de que tinham embarcado. Ainda não estava completamente satisfeito com esta descoberta, e achando-me então com mais coragem e portanto com mais curiosidade, fui com o meu escravo ao lugar do festim; armei-o com a espada, o arco e as setas e levámos três mosquetes. Quando chegámos, o meu sangue gelou-se de horror pelo espectáculo, que não produziu o mesmo efeito em Sexta-feira; todo aquele sítio estava coberto de ossadas e de carne humana meio comida; numa palavra, de todas as provas do festim de triunfo por meio do qual os selvagens tinham celebrado a vitória sobre os seus inimigos. Vi na areia três crânios, cinco mãos, os ossos de duas ou três pernas e outros tantos pés, e Sexta-feira fez-me compreender por gestos que eles tinham trazido quatro prisioneiros dos quais ele era o quarto; e que houvera uma grande batalha entre eles e a tribo a que pertencia, e que de ambas as partes se tinham feito muitos prisioneiros destinados a um fim igual ao daqueles cujos restos eu ali via. Fi-lo reunir todos estes miseráveis restos em monte, e obriguei-o a reduzi-los a cinzas fazendo uma grande fogueira; eu bem percebia que o seu estômago estava ávido desta carne, e que no fundo do coração ainda era um verdadeiro canibal, mas testemunhei-lhe um tão grande horror por um apetite tão desnaturado, que ele não ousava manifestá-lo com medo que o matasse. Acabado este trabalho, voltámos para o meu castelo, onde me pus a trabalhar no vestuário de Sexta-feira. Primeiro dei-lhe umas calças de pano, que tinha encontrado na caixa de um dos marinheiros e que um pouco arranj adas Lhe ficavam menos mal. Juntei-lhe um casaco de pele de cabra, e como me tinha tornado já um alfaiate como deve ser, ainda lhe fiz um barrete de pele de lebre, cuja forma não era feia. Ele estava encantado de se ver também vestido como o seu senhor, ainda que ao princípio tinha um ar muito grotesco nestas vestes às quais não estava acostumado e que no começo o incomodaram muito. No dia seguinte pus-me a pensar onde alojaria o meu escravo de um modo cómodo para ele, e sem que houvesse nada a recear por mim, para o caso de ele ser tão mau que tentasse alguma coisa contra a minha vida. Não achei melhor que fazer-lhe uma cabana entre os meus dois entrincheiramentos, e tomei todas as precauções necessárias para o impedir de vir ao meu =palácio contra a minha vontade; além disso, resolvi levar todas as noites para a minha casa as armas que tinha em meu poder. Felizmente estas precauções não eram precisas: nunca se =viu um servidor mais fiel, mais cheio de candura e de afecto para o seu dono. Ligava-se a mim com uma ternura verdadeiramente filial; não tinha fantasias nem teimas, incapaz de um arrebatamento, e em qualquer ocasião daria a sua vida para salvar a minha. Em tão pouco tempo deu-me tantas provas disto, que me foi impossível duvidar do seu bom coração e da inutilidade das muitas precauções tomadas a seu respeito. Estava encantado com ele; tomei a peito instruí-lo e ensiná-lo a falar a minha língua, e achei-o o melhor =discípulo do mundo; punha-se tão alegre, tão arrebatado quando me podia compreender ou exprimir-se de modo que eu o entendesse, que até me comunicou a mesma alegria, e fazia com que eu tivesse um verdadeiro prazer em conversar com ele. Os dias decorriam então para mim com uma doce tranquilidade, e contanto que os selvagens me deixassem em paz, estava contente por acabar ali a minha vida.
SEXTA-FEIRA INSTRUÍDO E BEM TRATADO POR ROBINSON, PRESTA-LHE ÚTEIS SERVIÇOS
Três ou quatro dias depois de ter começado a viver com Sexta-feira, resolvi fazê-lo perder o seu gosto canibal dando-lhe a provar os meus petiscos; levei-o pois uma manhã ao bosque, onde eu tencionava matar um cabrito mas, ao entrar no bosque, descobri por acaso uma cabra deitada à sombra com dois filhotes: fiz sinal a Sexta-feira para parar e não se mexer, e fiz fogo sobre um dos cabritos e matei-o. O pobre selvagem tremia como varas verdes: sem sequer olhar para o cabrito para ver se estava morto, só pensou em abrir o seu fato para examinar se ele mesmo estava ferido. Julgava sem dúvida que eu resolvera desfazer-me da sua pessoa, porque veio pôr-se de joelhos diante de mim e fez-me longos discursos de que eu nada compreendia senão que me suplicava para não o matar. Para o sossegar, peguei-lhe na mão sorrindo, fi-lo levantar, e mostrando-lhe com o dedo o cabrito, fiz-lhe sinal para o ir buscar, o que ele fez, e enquanto ele estava ocupado a descobrir como esse animal fora morto, carreguei novamente a espingarda. Nesse mesmo instante avistei numa árvore, e ao alcance da espingarda, uma ave que tomei por uma ave de presa, mas que logo depois vi ser um papagaio. Chamei logo o meu selvagem e mostrando-lhe com o dedo a minha espingarda, o papagaio e o chão debaixo da árvore, dei-lhe a entender a minha tenção de derrubar a ave: efectivamente derrubei-a, e vi o selvagem outra vez assustado, apesar de tudo o que lhe dera a entender. Não me tendo visto meter nada na espingarda, considerou-a como uma origem inesgotável de ruína e destruição. =Durante muito tempo não pôde voltar a si da surpresa, e se eu o deixasse, creio que adoraria a minha espingarda e a minha pessoa. Não se atreveu a tocar nela durante muitos dias: mas falava-lhe como se esse instrumento fosse capaz de lhe responder. Era, como depois vim a saber, para lhe pedir que não Lhe tirasse a vida. Quando o vi mais sossegado, fiz-lhe sinal para ir buscar a ave, o que ele fez: mas ao ver que tinha trabalho em achá-la, porque o animal, não estando inteiramente morto, arrastara-se para muito longe dali, gastei esse tempo a carregar a minha espingarda às escondidas do meu selvagem. Veio logo depois com a minha presa, e eu, não tendo já ocasião de o assustar ainda uma vez, voltei com ele para casa. No mesmo dia, esfolei o cabrito, cortei-o aos pedaços, e pus alguns no tacho que tinha: fi-los estufar, fiz um caldo, e dei uma parte dessa carne assim preparada ao meu escravo, que, vendo que eu comia dela, se pôs também a prová-la. Fez-me sinal de que gostava muito; mas o que lhe pareceu estranho foi eu comer sal com o caldo. Deu-me a entender que o sal não era bom, e depois de ter metido alguns grãos na boca, cuspiu-os fora, fez uma careta como se tivesse náuseas, e depois lavou a boca com água fresca. Eu, pelo contrário, fiz as mesmas caretas ao tomar um pedaço de carne sem sal; mas não pude conseguir que ele fizesse o mesmo, e esteve muito tempo sem poder acostumar-se. Depois de o ter assim habituado com esse alimento, quis no dia seguinte regalá-lo com um prato de assado, o que fiz atando um pedaço de cabrito a uma corda, e fazendo-o girar continuamente diante do fogo, como vira praticar algumas vezes em Inglaterra. Logo que Sexta-feira o provou, fez-me tantas e tão diferentes caretas para me dizer que o achara excelente e que não comeria mais carne humana, que seria bem estúpido se não =o compreendesse. No dia seguinte, ocupei-o em bater trigo e descascá-lo à minha moda, o que em pouco tempo ele fez tão bem como eu: aprendeu até a fazer pão; numa palavra, poucos dias foram precisos para ele ser capaz de me servir de todas as maneiras. Tinha agora duas bocas a sustentar, logo, necessidade de maior quantidade de trigo do que dantes. Foi por isso que escolhi um campo mais extenso, e me pus a rodeá-lo, como fizera às minhas outras terras; no que Sexta-feira me ajudou não só com muita habilidade e diligência, mas ainda com muito prazer, sabendo que era para aumentar as minhas provisões e para ficar em estado de as compartilhar com ele. Pareceu muito sensível aos meus cuidados, e deu-me a entender que o seu reconhecimento o animaria a trabalhar com mais assiduidade. Foi este o ano mais agradável que passei na ilha. Sexta-feira começava a falar inglês sofrivelmente; sabia já o nome de quase todas as coisas de que eu podia precisar, e de todos os lugares onde eu tinha de o mandar, o que me restituía o uso da minha língua que por tanto tempo me fora inútil. Tinha por mim toda a dedicação possível. Um dia perguntei-lhe se a sua nação nunca ficava vitoriosa nos combates; e pondo-se a sorrir: "Sim - respondeu -, nós sempre combater melhor, isto é, =nós alcançar sempre a vitória." Tivemos então a conversa que aqui reproduzo: Amo - A tua nação combate sempre melhor? Como foi então =que foste preso? Sexta-feira - Eles muito mais que a nação onde mim estar. Eles prender um, dois, três e mim. Minha nação bater eles noutro lugar onde mim não estar; ali a minha nação prender =um, dois, muitos, mil... Amo - Porque foi então que os teus não correram a tirar-te aos inimigos? Sexta-feira - Eles levar um, dois, três e mim no barco. Minha nação não ter barcos então. Amo - Dize-me agora, Sexta-feira o que é que a tua nação =faz aos seus prisioneiros: leva-os para os comer? Sexta-feira - Sim, minha nação também comer homens, comer inteiramente. Amo - Para onde os levam? Sexta-feira - Levá-los para toda a parte onde acham bom. Amo - Trazem-nos às vezes para aqui? Sexta-feira - Sim, aqui e muitos outros lugares. Amo - Estiveste aqui já com os teus? Sexta-feira - Sim, mim vir aqui - disse indicando com o dedo o nordeste da ilha. Por isto compreendi que o meu selvagem já estivera na ilha, na ocasião de algum festim de canibais, na margem mais afastada de mim, e algum tempo depois, quando me aventurei a ir para esse lado com ele, reconheceu primeiro o sítio, e contou-me que ajudara um dia a comer vinte homens, duas mulheres e uma criança. Não sabia contar até vinte, mas ele pôs vinte pedras na areia, e pediu-me para eu as contar. Este discurso deu-me azo para lhe perguntar a distância da ilha ao continente, e se nesse trajecto os barcos não iam a pique. Respondeu-me que não havia perigo, e que um pouco para fora do mar se achava cada manhã o mesmo vento e a mesma corrente, e todas as tardes um vento e uma corrente opostos.
Julguei primeiramente que isso era o praia-mar e o baixa-mar; mas compreendi depois que esse fenómeno era causado pelo grande rio Orenoco, na foz do qual estava situada a minha ilha, e que a terra que descobria a oeste e a noroeste era a grande ilha da Trindade, situada no setentrião do rio. Fiz mil perguntas a Sexta-feira relativas ao país, habitantes, mar, costumes e povos vizinhos, e ele deu-me todas as explicações que podia; mas debalde lhe perguntei o nome dos diferentes povos dos arredores, nada me respondia, senão Caribs, donde eu inferia que eram as Caraíbas, que as nossas cartas colocam para o lado da América que se estende desde o rio Orenoco até Guiana e Santa Marta. Disse-me ainda que, muito para trás da Lua (queria ele dizer para o poente da Lua, o que deve ser a oeste do seu país), havia homens brancos e barbados como eu, e que tinham morto grande número de homens: era essa a sua maneira de se exprimir. Era fácil de compreender que designava assim os Espanhóis cujas crueldades se espalharam por todos esses países e a quem os habitantes detestam por tradição. Informei-me então de como poderia eu ir ter com esses homens brancos. Replicou-me que podia lá ir em dois barcos, o que primeiro não percebi; mas quando ele se explicou por sinais, vi que ele entendia por isso um barco tão grande como dois barcos juntos. Esta conversa causou-me grande prazer, e deu-me a esperança de me tirar algum dia da ilha, e de achar para isso um poderoso auxiliar no meu fiel selvagem. Não me descuidava, entre estas diferentes conversações, =de assentar na sua alma as bases da religião cristã. Consegui instruí-lo no conhecimento do verdadeiro Deus: disse-Lhe que o grande Criador de todos os seres reside no Céu, que governa tudo pelo mesmo poder e pela mesma sabedoria pelas quais tudo formou, que é omnipotente, capaz de fazer tudo por nós, de nos dar tudo, de tudo nos tirar, e abri-lhe assim os olhos gradualmente. Escutava-me com atenção, e parecia receber com prazer a noção de Jesus Cristo enviado ao Mundo para nos resgatar, e da verdadeira maneira de dirigir as nossas preces a Deus, que podia ouvi-las mesmo no Céu. Na agradável disposição de espírito em que estava =então, e graças às conversações com o meu querido selvagem, passei =três anos inteiros perfeitamente feliz se é permitido chamar felicidade perfeita a alguma situação do homem nesta vida. O meu escravo era já tão bom cristão como eu, e talvez melhor, =e podíamos gozar juntos a leitura da palavra de Deus.
Logo que chegámos a estado de nos entendermos um ao outro, e que ele começou a falar um mau inglês, narrei-lhe as minhas aventuras; revelei-lhe o mistério da pólvora e das balas, e ensinei-lhe a maneira de atirar; além disso, dei-lhe uma faca, que ele tinha um prazer extraordinário em possuir, e fabriquei-lhe um cinturão com um gancho, como aquele em que se metem, em Inglaterra, as facas de caça, mas apropriado a trazer um machado, cuja utilidade é muito mais geral. Fiz-lhe ainda uma descrição da Europa, e principalmente de Inglaterra, minha pátria. Mostrei-lhe os restos do escaler que tínhamos perdido quando me salvei do naufrágio, ao que se pôs a reflectir com ar de espanto, sem dizer uma palavra. Perguntei-lhe pelo assunto da sua meditação ao que respondeu apenas: "Mim ver escaler assim na minha nação". Custou-me a compreender o que ele queria dizer; mas, depois de um exame mais maduro, adivinhei que um escaler igual fora levado por uma tempestade para a praia da sua nação. Concluí daí que algum navio europeu devia ter naufragado nessas costas, e que talvez os ventos, tendo destacado o escaler, o impelissem para a praia. Pedi-lhe uma descrição do escaler em questão, missão que desempenhou =muito bem; mas fez-me entrar inteiramente no seu pensamento, acrescentando: - Nós salvar homens brancos de afogar. - Havia então homens brancos nesse escaler? - Sim - disse ele -, escaler cheio de homens brancos. E, contando pelos dedos, fez-me compreender que eram dezassete e estavam na sua nação. Este discurso encheu o meu cérebro de novas quimeras; imaginei primeiramente que era a gente do navio encalhado à vista da minha ilha, que logo que o navio dera contra os rochedos e que se julgaram perdidos, se tinham lançado no barco, e por felicidade tinham-se salvo nas costas habitadas pelos selvagens. Este pensamento excitou-me a pedir com mais exactidão o que fora feito dessa gente. Assegurou-me de que ainda lá estavam; que lá tinham vivido durante quatro anos, subsistindo de víveres que lhe eram fornecidos pela sua =nação; e quando lhe perguntei porque eles não tinham sido comidos, fez-me compreender que a sua nação fizera a paz com eles e que não comia senão os prisioneiros de guerra. Aconteceu, pouco tempo depois, que estando nós no alto da colina, do lado de leste, donde, como disse, se podia descobrir, em tempo sereno, o continente da América, Sexta-feira, depois de ter olhado atentamente para esse lado, pareceu extasiado. Pôs-se a saltar e a pular; perguntei-lhe o motivo, ao que começou a gritar com todas as suas forças: - O alegria! Ali ver meu país! Ali ver minha nação! O sentimento da sua alegria espalhara-se em todo o seu rosto, e julguei ler no fogo dos seus olhos um desejo violento de voltar à pátria. Esta descoberta tornou-me menos sossegado sobre o seu capítulo, e não duvidei que se ele achasse uma ocasião para =lá voltar, não só esquecesse o que eu lhe ensinara acerca da religião, mas também todo o reconhecimento que podia ter comigo. Receei mesmo que ele fosse capaz de me descobrir aos seus compatriotas, e de me trazer à ilha algumas centenas deles para os fazer deliciar-se com a minha carne, com o mesmo prazer que ele dantes tinha em comer algum dos seus inimigos. Mas eu era injusto com o pobre rapaz, o que depois me mortificou muito. Contudo, durante algumas semanas que a minha desconfiança durou, fui mais circunspecto a seu respeito; era contudo no tempo em que esse honrado selvagem fundava todo o seu procedimento sobre os mais excelentes princípios do cristianismo e duma natureza bem dirigida. Não custará a crer que eu não me descuidava de tentar penetrar as intenções que nele suspeitava; mas achei em todas as suas palavras tanta candura, tanta honestidade, que as minhas suspeitas deviam desvanecer-se necessariamente, por falta de motivo. Não reparava que os meus modos tinham mudado a seu respeito: prova evidente de que não pensava de modo algum em enganar-me. Um dia, passeando com ele na colina de que já muitas vezes falei, num tempo muito carregado para descobrir o continente, perguntei-Lhe se não desejava ver-se no seu país, no meio da sua nação. - Sim, respondeu ele, mim muito alegre ver minha nação. - Oh!, que farias tu lá?, disse-lhe eu. - Querias tornar a ser selvagem e comer ainda carne humana? Pareceu ficar triste a esta pergunta, e moveu a cabeça. - Não, replicou ele; Sexta-feira lhes contar viver bons, orar a Deus, comer pão de trigo, carne de animal, leite; não mais comer homens. - Mas eles comer-te-ão!, repliquei eu. - Não, disse ele, eles não matar mim; gostar de aprender, de boa vontade. Ao que ele acrescentou que tinham aprendido muitas coisas dos homens barbados que aí tinham vindo no escaler. Perguntei-lhe então se tinha vontade de lá voltar, e quando me respondeu sorrindo que não podia nadar até lá, prometi fazer-lhe um barco. Disse-me então que bem o desejava, contando que eu fosse, e assegurou-me que, longe de me comerem, fariam grande caso de mim quando ele lhes contasse que eu lhe salvara a vida e matara os seus inimigos. Para me tranquilizar a esse respeito, fez-me uma descrição de todas as bondades que eles tinham tido para com os homens barbados que a tempestade lançara à praia. Daí para cá, resolvi aventurar a passagem, na intenção de =ir ter com esses estrangeiros, que deviam ser, segundo as aparências, espanhóis ou portugueses, não duvidando de que havia de voltar à minha pátria se tivesse uma vez a felicidade de me achar no continente com tão numerosa companhia, o que já não poderia esperar ficando numa ilha afastada da terra firme mais de quarenta léguas. Com este fim, resolvi pôr Sexta-feira a trabalhar, e levei-o para o outro lado da ilha para lhe mostrar o meu barco, e, tendo-o tirado da água sob a qual o conservava, pu-lo a flutuar, e entrámos ambos nele. Vendo que ele o governava com muita habilidade e força e que o fazia avançar o dobro do que eu era capaz, perguntei-lhe: - Então, Sexta-feira, iremos aqui até à tua nação? - =Mas quando o vi muito estupefacto pelo receio que o barco fosse demasiado fraco para essa viagem, mostrei-lhe o outro que construíra e que, estando em seco durante vinte e três anos, estava esburacado e quase todo podre. Deu-me a entender que esse barco era grande de sobra para passar o mar com todas as provisões que nos eram necessárias. Decidido a executar o meu desígnio, disse-lhe que nos devíamos ocupar em fazer um daquele tamanho, para que ele pudesse voltar à sua pátria. A esta proposta baixou a cabeça com um ar muito triste, sem responder uma só palavra; e quando lhe perguntei a razão do seu silêncio, disse-me em tom lamentável: - Porque estar em cólera contra Sexta-feira?, o que mim fazer contra si? Respondi-lhe que se enganava, e que eu não estava em cólera. - Não cólera - replicou ele repetindo muitas vezes as mesmas palavras -, não cólera! Porquê então enviar Sexta-feira =para minha pátria? - O quê! - disse eu -, não me disseste que desejavas lá estar?
- Sim - replicou - desejar ambos lá; não Sexta-feira só =lá sem senhor lá. Ou seja, vi bem que não pensava efectuar a passagem sem mim. Não obstante estas provas da sua dedicação, fingi =perseverar na minha tenção de o mandar embora, o que tanto o desesperou que correu a um dos machados que de ordinário trazia consigo, estendeu-mo e disse: - Senhor, tomar, senhor matar Sexta-feira, não enviar Sexta-feira para a sua pátria. Pronunciou estas palavras com os olhos cheios de lágrimas e dum modo tão comovedor, que me convenceu da sua constante ternura por mim, e que lhe prometi não o mandar embora contra sua vontade. O fim com que o meu selvagem desejava tanto levar-me consigo à sua pátria, era o seu amor pelos seus compatriotas, para os quais ele julgava que as minhas instruções seriam muito =úteis. Quanto a mim, as minhas visitas eram doutra natureza: só pensava em encontrar-me com os homens civilizados, e sem mais demora pus-me a escolher uma árvore bastante grossa para fazer dela um grande barco próprio para a viagem que meditávamos. Havia bastantes árvores na ilha; mas eu desejava encontrar uma perto do mar para poder lançá-la ao mar, sem muito trabalho, logo que estivesse transformada em barco. O selvagem achou uma que me era desconhecida, mas que ele sabia ser própria para o nosso desígnio. Era de opinião que =se devia cavá-la queimando-lhe o interior; mas, depois de eu lhe ter ensinado a maneira de o conseguir por meio de instrumentos de ferro, trabalhou habilmente, e, no fim de um mês de trabalho rude, aperfeiçoou a sua obra. O barco estava muito bem feito, sobretudo quando, por meio dos nossos machados, lhe demos por fora a verdadeira forma de um barco; depois do que estivemos ocupados uns quinze dias a metê-lo na água, onde o fizemos entrar palmo a palmo, por meio de rolos. Estava surpreendido ao ver com que destreza o meu selvagem sabia governá-lo, por muito grande que fosse. Perguntei-lhe se era suficientemente grande para nos aventurarmos a tentar a travessia, e assegurou-me que podíamos, mesmo quando o vento fosse muito forte. Tinha contudo ainda uma outra tenção: juntar-lhe um mastro, uma vela, uma âncora, um cabo; quanto ao mastro, escolhi um cedro novo muito direito e empreguei Sexta-feira em abatê-lo e em dar-Lhe a forma necessária. Quanto à vela, foi negócio para mim: sabia que me restava um = bom número de pedaços de panos velhos, mas como não me preocupara em conservá-los durante vinte e seis anos, receava que tivessem apodrecido completamente. Achei contudo dois farrapos sofrivelmente bons; pus-me a trabalhar nisto, e depois da fadiga de uma costura, longa e difícil por falta de agulhas, fiz uma má vela triangular. Gastei dois meses a guarnecer e endireitar o mastro e velas, e a dar a última demão a tudo o que era necessário ao =barco; liguei um leme à popa, apesar de ser mau carpinteiro; como sabia a utilidade, e mesmo a necessidade desta peça, trabalhei com tanta aplicação que consegui fazê-lo. Mas quando =considero todas as invenções de que me servi para suprir o que me faltava, estou persuadido que só o leme me custou tanto trabalho como todo o barco. Tratava-se então de ensinar toda a manobra ao selvagem; porque embora ele soubesse perfeitamente fazer andar um barco à força de remos, era muito ignorante no manejo de uma vela e de um leme. Mostrava um espanto inexprimível quando me via voltar e virar o barco à minha vontade, e as velas mudar e enfunar-se para o lado onde eu queria ir. Contudo um pouco de hábito tornou-lhe todas essas coisas familiares, e em pouco tempo tornou-se um perfeito marinheiro, se esquecermos que me foi impossível fazer-lhe compreender o uso da bússola. Não =era uma grande desgraça, porque raras vezes tínhamos um tempo coberto, e nunca nevoeiro, de sorte que a bússola era-nos bem inútil: durante a noite podíamos ver as estrelas e descobrir o continente mesmo durante o dia, excepto nas estações chuvosas, nas quais ninguém se atreve a ir ao mar. Entrara então no Vigésimo sétimo ano do meu exílio =nesta ilha, ainda que não deva chamar exílio os três últimos, durante os quais gozara a companhia do meu fiel selvagem. Continuava sempre a celebrar o aniversário do meu desembarque na ilha, com o mesmo reconhecimento para com Deus de que fora animado desde o princípio; é mesmo certo que, na minha situação presente, esse reconhecimento devia redobrar pelos novos benefícios com que a Providência me enchia, e sobretudo pela esperança próxima que ela me fazia conceber da minha liberdade. Estava persuadido de que não se passaria o ano sem ver os meus desejos realizados; mas esta persuasão não me fazia descuidar nada das minhas ocupações ordinárias, pois lavrava =a terra como de costume, plantava, secava as minhas uvas; numa palavra, procedia como se tivesse que acabar a minha vida na ilha.
Tendo sobrevindo a estação das chuvas, vi-me obrigado a ficar em casa mais do que noutros tempos: tomara já antecipadamente as minhas medidas para pôr o nosso barco em segurança, fizera-o entrar na pequena baía de que muitas vezes falei, puxara-o para a praia durante a maré cheia; Sexta-feira cavara-lhe um pequeno estaleiro para lhe poder dar tanta água quanta fosse necessária para o pôr a flutuar; e durante a =maré vazia tínhamos tomado todas as precauções necessárias =para impedir que a água do mar entrasse nesse estaleiro. A fim de o pôr ao abrigo da chuva, cobrimo-lo com tão grande número de ramos de árvores, que um tecto de colmo não é mais impenetrável. Desta maneira esperámos o mês de Novembro e Dezembro, época para a qual eu determinara fazer a passagem.
Combate contra os selvagens ROBINSON SALVA A VIDA A UM ESPANHOL E AO PAI DE SEXTA-FEIRA
A ideia de executar a minha empresa ganhou firmeza com a volta da estação seca, e eu estava continuamente ocupado em preparar tudo, principalmente em juntar as provisões necessárias para a viagem, com tenção de embarcar dentro de quinze dias. Uma manhã, enquanto eu trabalhava assim nos nossos preparativos, ordenei a Sexta-feira que fosse à beira-mar procurar alguma tartaruga, iguaria que nos era muito agradável, tanto pelos ovos, como mesmo pela carne. Havia apenas um momento que ele saíra, quando o vi voltar a correr, e voar por cima do entrincheiramento exterior, como se os pés não tocassem no chão. Sem me dar tempo de lhe fazer perguntas, pôs-se a gritar: - Ó senhor, senhor!, ó dor!, ó mau! - O que é, Sexta-feira? - perguntei-lhe. - Oh!, ali abaixo, um, dois, três barcos, um, dois, três. Custava-me acalmá-lo, o pobre rapaz continuava a estar em transes mortais, persuadindo-se de que os selvagens tinham vindo expressamente para fazê-lo em pedaços e devorá-lo. - Coragem, Sexta-feira; estou em tão grande perigo como tu; se nos apanham, não pouparão mais a minha pele do que a tua: =é preciso pois que nos aventuremos a combatê-los. Sabes bater-te, meu rapaz? - Mim atirar - replicou ele -, mas vir lá muitos, grande número. - Não há-de ser difícil, as nossas armas de fogo =assustarão aqueles que não matarem: estou resolvido a arriscar a minha vida por ti, contanto que me prometas outro tanto e que queiras seguir exactamente as minhas ordens. - Sim, mim morrer quando senhor ordena morrer.
Dei-lhe a beber então um bom trago do meu rum para lhe fortalecer o coração. Entreguei-lhe as minhas duas espingardas de caça, que carreguei com o meu chumbo mais grosso: peguei ainda em quatro mosquetes em cada um dos quais meti dois pregos e cinco balas pequenas; carreguei as minhas pistolas à proporção; cingi o meu sabre desembainhado, e ordenei a Sexta-feira que levasse o seu machado. Tendo-me preparado desta maneira, peguei num dos meus óculos, e subi ao alto de uma colina para descobrir o que se passava na praia: vi logo que os meus ínimigos estavam ali, em número de vinte e um, com três prisioneiros; que tinham vindo três barcos, e que tencionavam fazer um festim de triunfo desses três corpos humanos. Observei ainda que tinham desembarcado não no sítio onde Sexta-feira lhes fugira, mas muito mais perto da minha pequena baía, onde a margem era baixa e um bosque espesso se estendia até ao mar. Esta descoberta deu-me nova coragem; voltando para o meu escravo, disse-lhe que estava decidido a matá-los todos se ele quisesse ajudar-me com vigor. O medo passara-lhe e o rum pusera-lhe as ideias em movimento; pareceu então cheio de fogo, e repetiu com ar firme: - Mim morrer quando senhor ordene morrer. Para aproveitar esse momento de nobre furor, distribuí as armas entre nós; dei-lhe uma pistola para pôr à cintura, =três espingardas ao ombro; levei outro tanto. Pusemo-nos em marcha. Além das minhas armas fornecera-me de uma garrafa de rum e carregara ainda o meu escravo com um saco cheio de pólvora e balas. A única ordem que ele tinha a seguir era marchar atrás de mim, não fazer movimento algum, não dizer palavra sem eu mandar. Procurei à direita uma volta para passar para o outro lado da baía e chegar ao bosque, a fim de ter os canibais ao alcance da espingarda antes que eles me descobrissem. Consegui facilmente achar uma entrada por meio do meu óculo. Entrei no bosque com todas as precauções e o maior =silêncio possível, vindo Sexta-feira logo atrás de mim, e avancei de forma a que houvesse apenas um pequeno extremo de bosque entre nós e os selvagens. Vendo então uma árvore muito alta, =chamei em voz baixa Sexta-feira, e ordenei-lhe que fosse até ali para saber em que se ocupavam os selvagens. Ele fez isto e em breve veio dizer-me que se viam perfeitamente dali, que eles estavam todos sentados em volta da fogueira regalando-se com a carne de um dos prisioneiros, e que a alguns passos estava um outro algemado, sentado na areia, que em breve teria a mesma sorte: este preso não pertencia à sua nação, era um dos =homens barbados que se tinham refugiado no seu país com uma chalupa. Esta narração e sobretudo a particularidade do prisioneiro barbado, fez reacender todo o meu furor; arrastei-me então eu próprio para a árvore, e dali vi distintamente um homem branco estendido na areia, tendo os pés e as mãos atados com cordas; o fato que vestia não me deixou dúvida alguma de que era um europeu. Ali perto havia uma outra árvore cercada com uma pequena moita que distava cerca de cinquenta passos do lugar do banquete, onde se pudesse chegar sem ser visto, estaria a meio alcance da minha espingarda. Esta descoberta deu-me bastante prudência para dominar a minha impaciência por alguns minutos, embora a minha raiva estivesse no cúmulo, e esgueirando-me por detrás dalguns ramos cheguei a este sítio, onde achei uma pequena elevação da =qual vi tudo quanto se passava. Vi que não havia tempo a perder: dezanove destes bárbaros estavam sentados na areia, chegados uns para os outros, tendo destacado dois para trazer aparentemente o pobre cristão, membro a membro. Já lhe estavam a desligar os pés, quando eu, voltando-me para o meu escravo lhe disse: - Agora Sexta-feira, segue as minhas ordens, faz exactamente o que me vires fazer, sem exceptuar uma única coisa. Prometeu-mo; e então, pondo na areia um dos mosquetes e uma das armas de caça, vi que ele me imitava com exactidão. Com o meu outro mosquete fiz pontaria aos selvagens, ordenando-lhe que fizesse outro tanto. - Estás pronto? - disse-lhe eu. - Sim, respondeu ele, e fizemos ambos fogo ao mesmo tempo. Sexta-feira de tal forma me tinha excedido na pontaria que matou dois e feriu três, enquanto eu só feri dois e matei um. Pode imaginar-se em que estado de consternação ficaram os outros: todos os que não estavam feridos, levantaram-se precipitadamente, sem saber de que lado fugir para evitar um perigo cuja causa desconheciam. Sexta-feira entretanto tinha os olhos fixos em mim para observar e imitar os meus movimentos. Depois de ver o efeito produzido pela primeira descarga, larguei o mosquete para agarrar a espingarda de caça, e ele fez a mesma coisa.
Fez pontaria como eu. - Estás pronto? - disse-lhe eu outra vez, e quando ele me disse que sim, tornei: - Então fogo! Ao mesmo tempo atirámos para o grupo aterrado, e, como as nossas armas tinham apenas um chumbo tão grosso como pequenas balas de pistola, só caíram dois; mas tantos feridos fez, que os vimos correndo de um lado para o outro, cobertos de sangue, e pouco depois caíram três semimortos. Largando as armas descarregadas, agarrei o meu segundo mosquete, e ordenei a Sexta-feira que me seguisse, o que ele fez com muita intrepidez. Apareci bruscamente seguido de Sexta-feira e, logo que estive a descoberto, dei um grande grito, que ele repetiu; em seguida desatei a correr com toda a velocidade permitida pelo peso das armas que levava, para a pobre vítima estendida no solo, entre o lugar do banquete e o mar. Os carniceiros, que iam exercer a mesma arte neste desgraçado, abandonaram-no à nossa primeira descarga, e, fugindo com um terror enorme, tinham-se lançado nas canoas, seguidos por três outros. Gritei a Sexta-feira que corresse naquela direcção e fizesse fogo. Ouviu-me logo e, avançando cem passos para eles descarregou. Ao princípio pensei que matara todos, vendo-os cair uns sobre os outros; mas depressa vi dois em pé outra vez; afinal Sexta-feira matara dois, e ferira tão gravemente um terceiro que caiu como morto no fundo da canoa. Enquanto o meu selvagem se empregava assim na destruição dos meus inimigos, cortei com a minha faca os laços que prendiam o pobre prisioneiro e, pondo em liberdade os seus pés e as suas mãos sentei-o e perguntei-lhe em português quem ele era. Respondeu-me em latim Christianus; mas vendo-o tão fraco que tinha dificuldade em se conservar de pé e em falar, dei-lhe a minha botija, e fiz-lhe sinal que bebesse. Bebeu, e comeu um bocado de pão, que eu igualmente lhe dera. Depois de ter voltado a si, deu-me a entender que era espanhol e me estava agradecidíssimo pelo importante serviço que eu acabava de lhe prestar: servi-me de todo o espanhol que conhecia, e disse-lhe: - Senhor, falaremos depois: mas agora é preciso combater: se lhe restam algumas forças, pegue nesta pistola e nesta espada, e faça bom uso delas. Pegou nelas reconhecido, e parecia que essas armas lhe restituíam todo o seu vigor.
Caiu imediatamente sobre os inimigos como uma fúria, e num instante deu cabo de dois à espadeirada - é verdade que não =se defendiam. Estes pobres bárbaros estavam tão assustados com o ruído =das nossas espingardas, que já não eram capazes de pensar na sua conservação, como se a sua carne não fosse para resistir =às nossas balas. Notara isso, quando Sexta-feira fizera fogo sobre aqueles que estavam no barco, de que uns tinham sido derrubados pelo medo, assim como os outros pelas feridas. Continuava a estar com a minha espingarda na mão, sem a disparar, para não ficar desarmado. Era tudo o que tinha para me defender, porque dera a minha pistola e a minha espada ao espanhol. Ordenei contudo a Sexta-feira que voltasse ao sítio onde tínhamos começado o combate, e que de lá trouxesse as =minhas armas descarregadas; o que ele fez com grande rapidez. Enquanto eu estava ocupado em carregá-las de novo, vi um combate muito encarniçado entre o espanhol e um dos selvagens que se precipitara sobre ele com uma dessas espadas de madeira que podia ter servido para lhe tirar a vida, se eu não tivesse impedido. O espanhol que, apesar de fraco, era tão valente e tão atrevido como é possível sê-lo, tinha já combatido o =índio durante algum tempo, e fizera-lhe duas feridas na cabeça, quando o outro, tendo-o agarrado pelo meio do corpo, o lançou por terra, e fez todos os esforços para lhe arrancar a espada. O espanhol não perdeu o sangue-frio nessa ocasião; deixou sabiamente a espada, pegou na pistola, e matou o seu inimigo imediatamente. Sexta-feira, que já não estava ao alcance de receber as minhas ordens, vendo-se em plena liberdade, perseguiu os outros selvagens com o seu machado, dando cabo de três daqueles que tinham sido derrubados pelas nossas descargas e todos os outros que pôde apanhar. Por outro lado, o espanhol, tendo pegado numa das minhas espingardas, pôs-se em perseguição de outros dois, a quem feriu; mas como não tinha força para correr, safaram-se para o bosque, onde Sexta-feira ainda matou um deles: o outro, que era de uma agilidade extrema, escapou-se, deitando-se ao mar, e alcançou a nado o barco onde estavam três dos seus camaradas, dos quais um, como já disse, estava ferido: estes quatro foram os únicos de todo o bando que se escaparam das nossas mãos. Aqueles que estavam no barco faziam força de remos para se pôr fora do alcance da espingarda. Sexta-feira desejava muito que nos metêssemos num barco e lhes déssemos caça. Não deixava de ter razão: era muito para recear, se escapassem, que fizessem a narração da sua triste aventura aos seus compatriotas, e que eles voltassem com algumas centenas de barcos para nos acabrunhar com o número. Consenti pois nisso; lancei-me num dos seus barcos, mandando Sexta-feira que me seguisse; mas fiquei muito surpreendido ao ver nele um terceiro prisioneiro amarrado da mesma forma que o espanhol, e quase morto de medo, não tendo sabido o que se passava; estava de tal modo amarrado, que lhe era impossível levantar a cabeça, e apenas lhe restava um sopro de vida. Cortei-lhe primeiro as cordas que tanto o incomodavam; esforcei-me em levantá-lo, mas ele não tinha forças de se =ter em pé ou de falar. Deu somente gritos surdos, mas lamentáveis, receando certamente que o desamarrassem para lhe tirar a vida. Assim que Sexta-feira entrou no barco, disse-lhe que o sossegasse a respeito da sua liberdade, e que lhe desse um gole de rum: o que, junto à boa notícia que não esperava, o fez reviver e lhe deu bastante força para se tornar senhor de si. Alguns minutos depois de Sexta-feira o ter olhado bem e ouvido falar, era uma coisa de fazer chegar lágrimas aos olhos do homem mais insensível, vê-lo beijar, abraçar esse =selvagem; vê-lo chorar, rir, saltar, dançar em roda, depois torcer as mãos, bater na cara, e depois saltar, dançar outra vez: enfim proceder como se tivesse perdido o juízo. Durante alguns instantes, não tinha força para me explicar a causa de tantos movimentos opostos; mas ao voltar um pouco a si, disse-me que esse selvagem era seu pai.
É-me impossível exprimir até que ponto me comoveram os transportes que o amor filial produziu no coração desse pobre rapaz, ao ver o pai salvo das mãos dos seus carrascos. É-me também difícil pintar todas as ternas extravagâncias =em que esse espectáculo o lançara: ora entrava no barco, ora =saía dele, ora entrava outra vez, assentava-se ao pé do pai, e para o aquecer tinha-lhe a cabeça apertada contra o seu peito durante horas inteiras; pegava-lhe nas mãos e nos pés inteiriçados pela força com que tinham estado ligados, e tratava de os amolecer esfregando-os. Vendo qual era o seu fim, dei-lhe o meu rum, para tornar essa esfregadela mais útil, o que fez muito bem ao pobre velho. Este incidente fez-nos esquecer a perseguição do barco dos selvagens, que já estava fora do alcance da nossa vista, o que foi uma felicidade para nós, porque duas horas depois, quando eles ainda não podiam ter andado um quarto de caminho, levantou-se um vento terrível que durou toda a noite e, como vinha do nordeste e lhes era contrário, não me pareceu de forma alguma possível que eles pudessem alcançar as costas do seu país.
ROBINSON CONCEBE A ESPERANÇA DE SAIR DA SUA ILHA
Sexta-feira estava de tal forma ocupado com o seu pai, que durante muito tempo não tive ânimo de o distrair; mas quando julguei que ele tinha satisfeito suficientemente os seus transportes, chamei-o. Veio ter comigo a saltar, rindo e mostrando a mais viva alegria. Dei-lhe um pastel de cevada, que tinha na algibeira, juntei-lhe uma gota de rum para ele mesmo. Não só não =provou, mas foi levar tudo a seu pai, com uma mão-cheia de uvas secas, que eu lhe dera para esse bom homem. Um momento depois, vi-o sair do barco e pôs-se a correr para a minha habitação com tal rapidez, que num instante o perdi de vista; porque era o rapaz mais hábil e ligeiro que em dias da minha vida... Fartei-me de gritar, não me ouvia; um quarto de hora depois vi-o voltar com menos ligeireza porque trazia alguma coisa. Era um vaso cheio de água fresca e alguns pedaços de pão =que me deu: quanto à água, levou-a a seu pai depois de eu ter bebido um gole para matar a sede.
A água reanimou completamente o pobre velho, e fez-lhe melhor que todo o licor forte que tinha tomado, porque ele morria de sede. Quando acabou de beber, e como ainda deixara água, ordenei a Sexta-feira que a levasse ao espanhol com um dos pastéis que ele fora buscar. O espanhol estava extremamente fraco e deitara-se na erva à sombra de uma árvore: levantou-se todavia para comer e beber, e eu mesmo me aproximei dele para lhe dar uma mão-cheia de uvas. Olhou para mim ternamente e cheio do mais vivo reconhecimento; mas estava tão fraco, apesar de mostrar tanto vigor no combate, que não podia ter-se nas pernas; tentou-o duas ou três vezes, mas em vão; os seus pés, inchados =prodigiosamente à força de estarem amarrados, causavam-lhe muitas dores. Para o aliviar, ordenei a Sexta-feira que lhos esfregasse com rum, como fizera a seu pai. Posto que o meu pobre selvagem tivesse satisfeito este dever com afecto, não podia deixar de vez em quando de olhar para o pai para ver se estava no mesmo lugar e na mesma posição. Uma entre outras, não o vendo, levantou-se com precipitação, e correu para esse lado com tanta pressa que era difícil ver se os pés tocavam o chão; mas ao entrar no barco, viu que nada tinha a recear, que seu pai estava deitado só para descansar. Logo que o vi de volta, pedi ao espanhol que deixasse Sexta-feira ajudá-lo a levantar-se e a conduzi-lo para o barco, para dali o levar para a minha habitação, onde cuidaria dele o melhor possível. O meu selvagem não esperou que o espanhol fizesse o menor esforço; como era tão robusto como ágil, carregou com ele às costas, levou-o até ao barco, e fê-lo sentar num dos bordos; em seguida colocou-o ao pé do pai; depois saindo do barco, lançou-o à água, e, posto que fizesse muito vento, fê-lo seguir perto da praia mais depressa do que eu era capaz de andar. Depois de o ter feito entrar na baía, pôs-se de novo a correr para ir buscar o outro barco dos selvagens que nos ficara, e lá chegou com esse barco tão depressa como eu, que viera por terra. Fez-me passar a baía, e depois ajudou os nossos novos companheiros a sair do barco onde estavam, mas não se achavam nem um nem outro em estado de andar, de maneira que Sexta-feira não sabia o que havia de fazer. Depois de ter meditado sobre os meios de remediar esse inconveniente, pedi ao meu selvagem que se sentasse e descansasse e, quanto a mim, pus-me a fazer uma espécie de maca; pusemos os dois nela, e levámo-los até ao nosso entrincheiramento exterior: mas eis-nos agora num maior embaraço. Não tinha vontade alguma de escangalhar essa trincheira, e não via meio de os fazer passar por cima. O único partido que tinha a tomar era trabalhar de novo; e, com a ajuda de Sexta-feira levantei em menos de duas horas uma linda barraca coberta de ramada e velas velhas, entre o meu entrincheiramento exterior e o bosque que eu tivera o cuidado de plantar a alguns passos dali. Nesta cabana, fiz-lhes dois leitos com algumas medas de palha, em cada um dos quais pus dois cobertores, um para debaixo e outro para os cobrir. Ora aqui está a minha ilha povoada; julgava-me rico em vassalos, e era uma ideia muito satisfatória para mim considerar-me aqui como um pequeno monarca; toda esta ilha era domínio meu por títulos incontestáveis. Os meus vassalos estavam-me perfeitamente sujeitos; era o seu legislador e o seu soberano senhor. Deviam-me todos a vida, e estavam todos prontos a arriscá-la por mim logo que se oferecesse ocasião. Assim que eu alojei os meus dois novos companheiros, pensei em restabelecer as suas forças com uma boa refeição. Mandei Sexta-feira buscar de entre o meu rebanho domesticado um cabrito de um ano; cortei-o em bocados pequenos, fi-los cozer e assar, e asseguro-Lhes que servi aos meus vassalos um bom prato de carne e de caldo, onde eu deitara cevada e arroz. Levei tudo para a nova barraca e, tendo servido, pus-me à mesa com os meus novos hóspedes a quem regalei e animei o melhor possível, servindo-me de Sexta-feira como intérprete, não =só junto do pai, mas também junto do espanhol, que falava muito bem a língua dos selvagens. Depois de ter jantado - ou melhor, ceado - ordenei ao meu escravo que se metesse num dos barcos e fosse buscar as armas de fogo, que tínhamos deixado no campo de batalha, e no dia seguinte disse-lhe que sepultasse os mortos e enterrasse ao mesmo tempo os terríveis restos do festim, que estavam espalhados em grande quantidade pela praia. Estava tão longe de eu próprio o fazer, que não =podia pensar nisso sem horror, e que desviava os olhos daí quando era obrigado a passar por esse sítio. Quanto ao meu selvagem, desempenhou-se tão bem disso, que não se via, nem por sombras, sinal do combate e do festim, e eu não teria podido reconhecer o meu lugar, se não fosse a ponta do bosque que se adiantava para esse lado. Julguei que era tempo de entrar em conversação com os meus novos vassalos. Comecei pelo pai de Sexta-feira a quem perguntei o que pensava dos selvagens que se tinham safado, e se devíamos recear a sua volta a esta ilha com forças capazes de nos esmagar. O seu pensamento era de que não havia aparência alguma de que eles tivessem podido resistir à tempestade, e que tinham perecido todos, a não ser que tivessem sido levados para o lado sul, para certas costas onde seriam devorados indubitavelmente. A respeito do que poderia acontecer no caso de os selvagens terem sido bastante felizes para chegar à sua praia, disse-me que os julgava tão aterrados pela maneira como tinham sido atacados, tão atordoados pelo fogo e pelo ruído das nossas armas, que não deixariam de contar ao seu povo que os seus companheiros tinham sido mortos pelo raio e pelo trovão e que os dois inimigos que lhes tinham aparecido eram certamente espíritos descidos do céu para destruí-los. Estava =confirmado nessa opinião porque ouvira dizer aos fugitivos que não podiam compreender que homens pudessem assoprar raios, falar trovões e matar a tão grande distância, sem levantar sequer a mão. Este velho selvagem tinha razão; porque soube depois que os que se tinham safado no barco tinham voltado para suas casas, e tinham dado um tal espanto aos seus companheiros que ficaram imaginando que todo aquele que ousasse aproximar-se desta ilha encantada seria destruído pelo fogo do céu: pode julgar-se se foram bastante atrevidos para a tal se exporem. Mas como então me eram desconhecidas essas circunstâncias, fiquei durante algum tempo com apreensões contínuas, que me obrigaram a estar em guarda e a ter as minhas tropas em armas. Éramos então quatro, e eu não receava defrontar um cento dos nossos inimigos em campo raso. Contudo, no fim de bastante tempo, não vendo chegar um único barco à minha praia, os meus terrores apaziguaram-se, e comecei a deliberar sobre a minha viagem ao continente, onde o pai de Sexta-feira me assegurava que seria bem recebido pelos selvagens da sua tribo, por amor dele. A execução do meu desígnio ficou um pouco suspensa por =uma conversa muito séria que tive com o espanhol. Disse-me ele que deixara no continente outros dezasseis cristãos, tanto espanhóis como portugueses; tinham naufragado mas salvaram-se e chegaram a essas costas; lá viviam em paz com os selvagens, mas mal lhes chegavam os víveres para não morrer de fome. Pedi-Lhe todas as particularidades da sua viagem, e soube que tinham tripulado um navio espanhol que ia do Rio da Prata para Havana, para lá levar peles e dinheiro, para se carregar de todas as mercadorias europeias que lá pudessem achar; que tendo naufragado, se tinham salvo através de uma infinidade de perigos, na praia dos canibais, com receio de serem devorados assim que fossem avistados. Mas essa tribo era menos feroz do que as outras e deixara-os em paz: lá viviam, com falta de tudo, e expostos a morrer de fome. Contou-me ainda que tinham algumas armas consigo, mas que Lhes eram absolutamente inúteis por falta de balas e de pólvora, de que tinham salvo uma pequeníssima quantidade que consumiram nos primeiros dias do seu desembarque, indo caçar. - Mas o que farão eles? Nunca tentaram sair de lá? Respondeu-me que tinham pensado nisso mais de uma vez, mas sem navios e sem instrumentos necessários para construir um, sem provisão alguma, todas as suas deliberações tinham terminado com lágrimas e desespero. Perguntei-lhe de que maneira julgava ele que os seus companheiros pudessem receber uma proposta da minha parte, tendente ao seu libertamento, e se não julgava que fosse fácil de executar, no caso de todos eles poderem vir para a minha ilha. - Mas - acrescentei ainda -, confesso-Lhe francamente que receio muito uma traição à sua moda. A gratidão não é =uma virtude muito familiar aos homens, que, de ordinário, orientam o seu modo de acção menos pelos serviços que receberam, do =que pelas vantagens que podem esperar. Seria para mim uma coisa bem dura - continuei -, se, em paga de ter sido o instrumento da sua liberdade, eles me levavam como seu prisioneiro à Nova Espanha, onde todo o inglês, seja o que for que Lhe acontecer, não deve esperar senão o mais cruel destino. Sem esta dificuldade - acrescentei eu ainda -, julgaria o meu desígnio muito fácil, e se eles se achassem todos aqui, poder-se-ia facilmente construir um navio bastante grande para nos levar a todos ou para o sul para o Brasil, ou para o norte para as ilhas espanholas. Depois de ter escutado muito atentamente o meu discurso, o espanhol respondeu-me com ar de candura que os seus companheiros sentiam com tanta vivacidade tudo o que havia de miserável na sua situação, que estava certo que se horrorizariam só com o pensamento de maltratar um homem que contribuísse para livrá-los. - Se quer - continuou ele -, irei ter com eles e com o velho selvagem, comunicar-lhes-ei a sua intenção, e trar-Lhe-ei a resposta: não entrarei em tratado com eles, sem que me asseverem cumpri-lo com os mais solenes juramentos. Quero estipular que o hão-de reconhecer por seu comandante e fá-los-ei jurar pelos sacramentos e pelo Evangelho, que o hão-de seguir a qualquer país cristão que o senhor achar melhor, e obedecer-lhe exactamente, até que lá cheguemos; conto mesmo trazer-lhe a esse respeito um contrato formal, assinado por todos eles. Para me dar mais confiança, propôs-me prestar ele mesmo juramento antes da sua partida, e jurou-me que não me deixaria sem ordem minha, e que me defenderia até à última gota de sangue, caso os seus compatriotas fossem tão covardes que faltassem às suas promessas. Além disso, asseverou-me que eram todos honrados, que estavam reduzidos à mais miserável condição por falta de =armas e fatos, e não tendo outros víveres senão os que Lhe =fornecia a piedade dos selvagens; que não tinham esperança de tornar a ver a sua pátria, e se eu quisesse acabar as suas desgraças eram gente para viver e morrer comigo. À vista do que o espanhol me dizia, resolvi trabalhar para a sua felicidade, e enviar para tratar com eles o espanhol com o velho selvagem. Mas quando tudo estava pronto para a partida, o meu espanhol levantou-me ele mesmo uma dificuldade em que achei tanta prudência e sinceridade, que fiquei muito satisfeito com ele, e segui o conselho que me deu de transferir esse negócio para dali a cinco ou seis meses. Eis o facto. Havia já um mês que ele estava connosco, e eu mostrara-lhe já todas as provisões juntas com a ajuda da Providência. =Ele compreendia perfeitamente que o que eu juntara de trigo e arroz, ainda que suficiente para mim mesmo, não bastava para a minha nova família, a não ser com uma extrema economia, bem longe de poder acudir às necessidades dos seus camaradas, que eram ainda em número de dezasseis. Além disso era preciso uma boa quantidade para abastecer o navio que eu queria construir a fim de passar para qualquer colónia cristã, e a sua =opinião era de roçar outros campos, semear neles toda a semente que eu pudesse arranjar, e esperar uma nova colheita antes de mandar vir os seus companheiros. - A dieta, disse-me ele, poderia levá-los à revolta, fazendo-lhes ver que saíram duma desgraça para cair noutra. Pareceu-me tão razoável este conselho que me decidi a segui-lo. Pusemo-nos pois, todos quatro a trabalhar a terra, tanto quanto os nossos instrumentos de madeira no-lo permitiam; e, no espaço de um mês, tendo chegado o tempo de semear as terras, tínhamos cultivado bastante para nela semear vinte e dois alqueires de cevada e seis de arroz; era toda a sementeira que podíamos poupar. Pouco nos ficou para viver durante os seis meses que deviam decorrer antes da próxima colheita; porque a semente está seis meses na terra nesse país. , Sendo então bastante fortes para nada recear dos selvagens, a não ser que viessem em grande número, =passeávamos por toda a ilha sem inquietação alguma; e como todos =tínhamos o espírito cheio da nossa liberdade, era-me impossível não pensar nos meios de a alcançar. Entre outras coisas, marquei muitas árvores que me pareciam próprias para o meu fim: incumbi Sexta-feira e seu pai de as cortar, e dei-lhes o espanhol por inspector. Mostrei-lhes com que trabalho infatigável eu fizera tábuas de uma árvore muito espessa, e ordenei-lhes que fizessem o mesmo. Fizeram-me uma dúzia de boas tábuas de carvalho de pouco mais ou menos dois pés de largura, trinta e cinco de comprimento e da grossura de duas a quatro polegadas. Pode compreender-se o trabalho enorme que tiveram para o conseguir. Pensava ao mesmo tempo aumentar o meu rebanho; umas vezes ia à caça com Sexta-feira outras vezes mandava-o com o espanhol, e desta maneira apanhámos vinte e dois cabritos que juntámos ao nosso rebanho domesticado; porque quando nos acontecia matar uma cabra, nunca deixávamos de guardar os filhos. Além disso, tendo chegado a estação de colher as uvas, fiz secar uma tão grande quantidade de cachos, que havia com que encher mais de sessenta barris. Esta fruta fazia, com o nosso pão, uma grande parte dos nossos alimentos e posso asseverar-vos que é uma coisa extraordinariamente nutritiva. Era então o tempo da colheita, e o nosso grão achava-se em muito bom estado: os vinte e dois alqueires de cevada que tínhamos semeado produziram-nos duzentos e vinte, e o nosso arroz multiplicara-se proporcionalmente; o que formava uma provisão suficiente para nós e para os hóspedes que esperávamos, até à nossa colheita próxima; ou então se =se tratasse de fazer a viagem projectada, havia bastante para atulhar abundantemente o navio, para qualquer lado da América para onde quiséssemos dirigir o nosso rumo. Depois de termos apanhado os nossos grãos, pusemo-nos a trabalhar de cesteiro e a fazer quatro grandes cestos para neles conservar a colheita. O espanhol era extremamente hábil nessas espécies de trabalhos, e censurava-me muita vez por eu não ter empregado essa arte a fazer o meu recinto e entrincheiramento. Mas por felicidade a coisa não era necessária.
Feitos todos esses preparativos, permiti ao espanhol passar à terra firme para ver se havia alguma coisa a fazer com os seus compatriotas; e dei-lhe uma ordem por escrito de não trazer consigo um só homem sem o ter feito jurar na sua presença e na do velho selvagem, que bem longe de atacar o senhor da ilha, e de causar o menor dissabor a um homem que tinha a bondade de trabalhar para a sua salvação, nada desprezaria para o defender contra toda a espécie de atentados, e que se submeteria inteiramente às suas ordens, fossem elas quais fossem. Ordenei mais ao espanhol que me trouxesse um tratado formal por escrito, assinado por todo o bando, sem pensar que, segundo todas as aparências não tinham papel nem tinta. Munido destas instruções, partiu com o velho selvagem no mesmo barco que servira para os trazer à ilha para aí serem devorados pelos canibais seus inimigos. Dei a cada um deles um mosquete e perto de oito cargas de pólvora e balas, dizendo-lhes que as economizassem e não as empregassem senão em ocasiões apertadas. Foram estas as primeiras medidas que tomei para a minha liberdade depois de vinte e sete anos e alguns dias de residência nesta ilha. Também não desprezei precaução =alguma; dei aos viajantes uma provisão de pão e uvas secas para muitos dias; e uma outra provisão para oito dias destinadas aos espanhóis: combinei ainda com eles um sinal que deviam trazer no barco à volta, para eu poder reconhecê-los antes que abordassem; e depois desejei-lhes uma feliz viagem. Partiram com vento fresco no tempo da lua cheia. Segundo os meus cálculos corria o mês de Outubro.
MARINHEIROS REVOLTADOS ABORDAM À ILHA ROBINSON CORRE EM AUXÍLIO DO SEU CAPITãO
Esperava já havia oito dias a volta dos meus companheiros, quando me aconteceu de improviso uma aventura que não tem talvez outra igual em história alguma. Era pela manhã e ainda estava a dormir, quando Sexta-feira veio ter comigo precipitadamente, gritando: - Senhor, senhor, eles aí estão, eles aí estão! Levantei-me e, depois de me vestir, pus-me a atravessar o meu bosque, já muito espesso, pensando tão pouco na possibilidade do perigo, que fui sem armas, fora do que era costume; mas fiquei muito surpreendido ao ver, a légua e meia de distância, um escaler com uma vela triangular, dirigindo-se para o lado da minha praia, impelido por um vento favorável. Vi primeiramente que não vinha do lado directamente oposto à minha praia, mas do lado sul da ilha. Disse então a Sexta-feira que não fizesse o menor movimento, pois não era a gente que esperávamos e não podíamos saber ainda se eram amigos ou inimigos. Para me certificar melhor, fui buscar o meu óculo, e subi ao alto do rochedo, como costumava fazer quando avistava alguma coisa que desejava examinar sem me pôr a descoberto. Mal pusera o pé no alto da colina, vi claramente um navio ancorado a pouco mais de duas léguas e meia, a sudoeste de mim, e julguei reconhecer pela estrutura da embarcação que o navio era inglês, assim como o escaler. Não saberia exprimir as impressões confusas que essa vista fez na minha imaginação. Apesar de ser extrema a minha alegria ao ver um navio cuja tripulação era provavelmente da minha nação, não deixava de sentir alguns movimentos secretos, =cuja causa ignorava, e me inspiravam circunspecção. Não podia conceber que negócios podia ter um navio inglês nessa parte do Mundo, pois não era certamente o caminho de algum dos países onde os Ingleses estabeleceram o seu comércio; além disso sabia que não houvera tempestade =alguma capaz de os arrastar à força para esse lado, pelo que tinha razão em acreditar que não tinham boas intenções e que =mais valia ficar na minha solidão do que cair entre as mãos de ladrões e assassinos. Em pouco pude ver distintamente o escaler aproximar-se da praia, como se procurasse uma baía, para a comodidade do desembarque; mas não descobrindo aquela de que tanta vez falei, empurraram o escaler para sobre a areia, a distância de meio quarto de légua de mim; fiquei satisfeito; porque se não fosse isso teriam desembarcado exactamente diante da minha porta, expulsar-me-iam certamente do meu palácio, e saqueariam todo o meu bem. Quando saltaram em terra, reconheci que eram ingleses, excepto um ou dois que tomei por holandeses, embora não o fossem na realidade. Eram ao todo onze; mas três não tinham armas, e pareçeu-me estarem amarrados. Logo que cinco ou seis de entre eles tinham saltado em terra, fizeram sair esses três do escaler, como prisioneiros: vi um destes mostrar pelos seus gestos uma aflição que ia até à extravagância; os outros =dois levantavam às vezes as mãos ao céu, e pareciam muito =aflitos, mas a sua dor parecia mais moderada. Enquanto eu estava incerto, sem conceber o que significava tal espectáculo, Sexta-feira exclamou no seu mau inglês: - Ó mestre, vê homens ingleses comer prisioneiros tão bem como homens selvagens; vê, eles querê-los comer!
- Não, não, Sexta-feira, - disse eu: receio que os matem, mas está certo que não os comem. Tremia, contudo, e estava penetrado de horror ao ver tal; a cada momento esperava vê-los assassinar; vi até um desses celerados levantar uma grande espada para ferir um desses desgraçados, e julguei que o ia ver cair por terra, o que me gelou todo o sangue nas veias. Nestas circunstâncias, lamentava extremamente o meu espanhol e o meu velho selvagem, e desejava muito poder apanhar esses indignos ingleses sem ser visto, ao alcance da espingarda, para livrar os prisioneiros das suas mãos cruéis, porque eu não Lhes via armas de fogo; mas aprouve à Providência =fazer-me conseguir o meu desígnio desta maneira. Enquanto esses insolentes marinheiros andavam por toda a ilha, como se quisessem explorar o seu interior, notei que os três prisioneiros estavam em liberdade para ir onde quisessem; mas não tiveram ânimo; sentaram-se no chão com ar pensativo =e desesperado. A maré estava justamente cheia quando esses marotos desembarcaram; e seja falando aos prisioneiros, como andando por todos os cantos da ilha, tinham-se entretido até que o mar, vasando, deixou o escaler em seco. Tinham aí deixado dois homens que, à força de beber aguardente, haviam adormecido: contudo, um, acordando mais cedo que o seu camarada e encontrando o escaler muito enterrado na areia para que pudesse tirá-lo sozinho, chamou os outros aos gritos; mas não tiveram bastante força todos juntos para o tirarem de lá, porque era extremamente pesado, e desse lado a praia não era senão uma areia movediça. Vendo esta dificuldade, como verdadeiros homens do mar, isto é, os mais negligentes de todos os homens, resolveram não pensar mais nisso, e puseram-se a percorrer a ilha. Ouvi um que chamava um dos seus camaradas para o fazer vir a terra: "Oh! John - gritou ele -, deixa-o sossegado; a maré próxima o porá a nado. Este discurso confirmou-me ainda na opinião de que eram compatriotas meus. Durante este tempo conservei-me no recinto do meu castelo, sem ir mais longe do que o observatório, e dei por bem empregado o trabalho e a prudência que tivera em fortificar tão bem a minha habitação; sabia que o escaler não podia flutuar antes das dez horas da noite, pois com o escuro poderia observar as suas manchas com toda a segurança. Enquanto esperava, preparava-me para o combate, mas com mais precaução do que nunca, persuadido de que tinha de me haver com inimigos de espécie diferente da dos antigos. Ordenei a Sexta-feira que fizesse o mesmo, e tinha grande confiança nele, pois atirava com uma justeza espantosa; dei-lhe três mosquetes, e tomei eu mesmo duas espingardas. A minha fisionomia era terrível, tinha na cabeça o meu =terrível barrete de pele de cabra; ao lado pendia a minha espada desembainhada, e trazia duas pistolas à cinta e uma espingarda em cada ombro. O meu desígnio era de nada empreender antes da noite, mas, pelas duas horas, no mais quente do dia, vi que os marinheiros tinham ido todos para o bosque, aparentemente para nele descansarem; e ainda que os prisioneiros não estivessem em disposição de dormir, vi-os deitar-se à sombra de uma =grande árvore bastante perto de mim, e fora da vista dos outros. Resolvi então mostrar-me a eles para saber a sua =situação, e logo me pus em marcha, com Sexta-feira atrás de mim, armado tão formidavelmente como eu, mas não parecendo contudo um espectro. Assim que me aproximei deles, sem ser visto, o mais que me foi possível, disse-Lhes em voz alta em espanhol: - Quem são os senhores? Não responderam nada, e vi-os disporem-se a fugir, quando me pus a falar em inglês: - Senhores não tenham medo; talvez encontrassem aqui um amigo, sem esperar. - É preciso que nos tenha sido enviado pelo Céu - respondeu com modo grave um deles, com o chapéu na mão. - Porque as nossas desgraças estão acima de todo o socorro humano. - Todo o socorro vem do Céu, senhor, - disse-Lhe eu; - mas não quer ensinar a um estrangeiro o meio de os socorrer? Porque parecem acabrunhados com uma grande aflição; vi-os desembarcar, e quando conversavam com os brutos que os trouxeram aqui vi um deles desembainhar a espada e parecia querer matá-lo. O pobre homem, trémulo, e com os olhos cheios de lágrimas, replicou-me com ar espantado: - Falo a um homem ou a um anjo? - Não tenha dúvida alguma a esse respeito, senhor - disse-lhe eu -, se Deus enviasse um anjo em seu auxílio, apareceria aos seus olhos com melhores vestes e com outras armas. Sou realmente um homem, sou mesmo um inglês, e todo disposto a ajudá-los. Comigo tenho apenas um escravo; temos armas e munições: digam livremente se podemos ajudá-los, e expliquem-me a natureza das vossas desgraças. - Ai!, senhor - disse ele -, a narrativa é muito longa para lhe ser feita enquanto os nossos inimigos estão tão =próximos. Bastará que lhes diga que fui comandante do navio que além vêem; os meus marinheiros revoltaram-se contra mim; pouco faltou para me matarem; mas é quase o mesmo o que querem fazer-me, é abandonar-me neste deserto com estes dois homens, um dos quais é o meu contramestre, e o outro um passageiro. Esperávamos morrer aqui em poucos dias, julgando a ilha deserta e desabitada, e ainda não estamos sossegados sobre esse ponto. - Mas o que é feito desses patifes? - Estão ali deitados - respondeu ele - mostrando com o dedo uma acumulação muito espessa de árvores; tremo de medo que =nos tenham ouvido falar; se ouviram, matam-nos a todos com certeza. Perguntei-lhe então se os tratantes tinham armas de fogo e soube que não tinham consigo senão duas espingardas, e que tinham deixado uma no escaler.
- Deixem-me pois manobrar - respondi eu -, estão todos a dormir: nada mais fácil do que matá-los, a não ser que =prefira fazê-los prisioneiros. Contou-me então que havia entre eles dois tratantes, de quem não havia a esperar nada de bom, e que, se os pusessem em estado de não fazer mal, julgava que o resto facilmente voltaria ao seu dever; acrescentou que não podia indicarmos de tão longe, e que estava pronto a seguir as minhas ordens em tudo. - Pois bem! - disse eu -, comecemos por nos afastar daqui, para que nos não avistem se despertarem, e sigam-me para um lugar onde poderemos deliberar à nossa vontade. Depois de nos abrigarmos no bosque: - Escute pois, senhor - disse-lhe eu -, quero aventurar tudo para a sua salvação, contando que me concedam duas =condições. Interrompeu-me para me asseverar que, se eu Lhe restituísse a sua liberdade e o seu navio, empregaria um e outro em me testemunhar o seu reconhecimento e que, se eu não pudesse restituir-lhe senão o primeiro desses dois serviços, estava resolvido a viver e a morrer comigo em qualquer parte do Mundo para onde eu quisesse levá-lo. Os seus dois companheiros fizeram-me as mesmas asserções. - Ouçam as minhas condições, - disse-lhes eu novamente, - são só duas. 1º, Enquanto estiverem nesta ilha comigo, renunciarão a toda a espécie de autoridade e, se eu lhes puser as armas nas mãos, restituir-mas-ão logo que eu as pedir: obedecerão completamente às minhas ordens, sem nunca pensarem em me causar o menor prejuízo; 2º, Se conseguirmos retomar o navio, levar-me-ão a Inglaterra com o meu escravo, sem me pedirem nada pela passagem. Prometeu-mo com as expressões mais fortes que um coração reconhecido pode ditar. Dei-lhes então três mosquetes com balas e pólvora, e perguntei ao capitão de que maneira achava melhor dirigir esta empresa. Disse que se contentaria em seguir exactamente as minhas ordens, e que me deixava de boa vontade toda a direcção do negócio. Respondi-lhe que me parecia bastante espinhoso, mas o melhor partido era, no meu entender, fazer fogo sobre todos eles ao mesmo tempo enquanto estavam deitados e se algum, escapando à nossa primeira descarga, quisesse render-se, poderíamos salvar-lhe a vida.
Replicou-me com muita moderação, que lhe custaria =matá-los se houvesse meio de fazer de outro modo. - Mas quanto a esses dois celerados de que lhe falei - continuou -, e que foram os autores da revolta, se nos escapam, estamos perdidos certamente; trarão consigo toda a tripulação para nos exterminar. - Sendo assim - repliquei eu -, voltemos à minha primeira opinião: uma necessidade absoluta torna a acção =legítima. Contudo, vendo-lhe sempre aversão para derramar tanto sangue, disse-lhe que fosse e tomasse a dianteira com os seus companheiros, e procedesse segundo as circunstâncias. No meio desta conversa, vimos levantarem-se dois e retirarem-se dali; perguntei ao capitão se eram os chefes da rebelião, dos quais me falara. Disse-me que não. - Então, bem! - disse-lhe eu -, deixemos escapá-los, pois a Providência parece tê-los acordado expressamente para Lhes salvar a vida; quanto aos outros, se não forem salvos, é por culpa sua. Animado por estas palavras, avança para os tratantes, com um mosquete no braço e uma das minhas pistolas à cinta. Os seus dois companheiros, adiantando-se-lhe alguns passos, fazem primeiramente um pouco de ruído, que acorda um dos marinheiros. Aquele põe-se a gritar para acordar os seus camaradas; mas ao mesmo tempo fazem ambos fogo, guardando o capitão o seu tiro com muita prudência e visando com toda a justeza possível o chefe dos revoltosos, matam logo um. O outro apesar de perigosamente ferido levanta-se com precipitação, põe-se a gritar por socorro; mas o capitão vai ter com ele, dizendo-lhe que já não era tempo de pedir socorro, e que só tinha tempo =de pedir a Deus que perdoasse a sua traição; e dá cabo dele =com uma coronhada. Restavam ainda três, dos quais um estava ligeiramente ferido; mas vendo-me chegar, e sentindo que lhes era impossível resistir, pediram quartel. O capitão consentiu, com a condição que lhe mostrariam o horror que deveriam ter do seu crime, ajudando-o fielmente a recuperar o seu navio e a reconduzi-lo à Jamaica, de onde vinha. Deram-lhe todas as asseverações que ele podia desejar do seu arrependimento e da sua boa vontade, e resolveu salvar-lhes a vida, o que não reprovei; obriguei-o somente a conservá-los de pés e mãos atados enquanto estivessem na ilha. Neste intervalo mandei Sexta-feira com o contramestre para o escaler, com ordem de o pôr em segurança e de lhe tirar os remos e as velas, o que eles fizeram; ao mesmo tempo os três marinheiros que, para sua felicidade se tinham afastado do bando, voltaram devido ao ruído dos mosquetes e, vendo o seu capitão, de prisioneiro tornado vencedor, submeteram-se a ele, e consentiram em deixar-se amarrar como os outros. Vendo então todos os nossos inimigos fora de combate, tive tempo de fazer ao capitão a narrativa de todas as minhas aventuras: escutou-a com uma atenção que ia ao êxtase, sobretudo a maneira miraculosa como eu fora fornecido de munições e víveres. Como toda a minha história é um =tecido de prodígios, muito o impressionou. Mas quando começava a reflectir sobre a sua própria sorte e a considerar que a Providência não parecia ter-me conservado senão para lhe salvar a vida, estava tão comovido, que derramava uma torrente de lágrimas, e era incapaz de pronunciar uma só palavra. Tendo acabado a nossa conversação, levei-o com os seus dois companheiros ao meu castelo, e dei-lhes todos os refrescos que podia agora fornecer.
O CAPITãO, COM A AJUDA DE ROBINSON, REASSUME O COMANDO DO SEU NAVIO
Disse ao capitão que era preciso desde já pensar nos meios de nos assenhorearmos do navio, mas ele confessou não saber que medidas tomar. - Há ainda - disse ele -, vinte e seis homens a bordo que, sabendo que pela sua conspiração merecem perder a vida, obstinar-se-ão por desespero, porque estão persuadidos certamente que, no caso de se renderem, serão enforcados logo que cheguem a Inglaterra ou a qualquer das suas colónias: qual o meio, pois, de os atacar com um número tão inferior ao seu? Achei este raciocínio muito justo, e vi que nada havia a fazer, a não ser preparar alguma armadilha à tripulação e =pelo menos impedi-la de desembarcar e fazer-nos perecer. Estava certo que dentro em pouco a gente do navio, espantada com a demora dos seus camaradas, lançaria o outro escaler ao mar para ver o que fora feito deles, e eu receava que viessem armados em número grande demais para podermos resistir. Disse então ao capitão que a primeira coisa que tínhamos =a fazer era meter a pique o escaler, a fim de que não pudessem levá-lo, o que ele aprovou. Pusemos pois mãos à obra; começámos por tirar do escaler o que nele restava, isto é, =uma garrafa de aguardente e uma outra cheia de rum, alguns biscoitos, um saco cheio de pólvora, e um pão de açúcar =de perto de seis libras, enrolado num pedaço de pano. Este achado era-me muito agradável, e sobretudo a aguardente e o açúcar a que tivera mais que tempo de esquecer o sabor. Depois de ter levado tudo isso para terra, fizemos um grande buraco no fundo do escaler, a fim de que, se eles desembarcassem em número bastante grande para nos serem superiores, não pudessem todavia fazer uso desse barco e levá-lo. A dizer a verdade, já não pensava seriamente em recuperar o navio; o meu único fim era, no caso de que eles partissem deixando-nos o escaler, consertá-lo e pô-lo em estado de nos levar aos nossos amigos espanhóis. Não contente por ter feito no escaler um buraco bastante grande para não poder ser tapado com facilidade, empregámos todas as nossas forças a empurrá-lo bastante para dentro da praia, para que nem a própria maré pudesse pô-lo a flutuar. Mas, no meio desta penosa ocupação, ouvimos um tiro de peça, =e vimos ao mesmo tempo no navio o sinal usual para fazer o escaler regressar a bordo; mas bem se podiam cansar a fazer sinais e a redobrar os tiros de peça: o escaler não podia obedecer. Depois vimo-los, por meio dos nossos óculos, deitar o outro escaler ao mar, e dirigirem-se para a praia à força de remos; e quando estiveram ao alcance da nossa vista, reconhecemos distintamente que eram em número de dez e tinham armas de fogo. Pudemos distinguir até mesmo as feições de cada um durante muito tempo, porque, tendo sido derivados pela maré, eram obrigados a seguir a margem para desembarcar no mesmo sítio onde avistavam o seu primeiro escaler. Deste modo, o capitão podia examiná-los à vontade; não deixou de assim fazer, e disse-me que via entre eles três valentes rapazes, e que estava certo que os outros os tinham arrastado à força na conspiração; mas que, quanto ao =oficial inferior que comandava o escaler e aos outros, eram os maiores celerados de toda a tripulação, que não desistiriam da sua empresa, e receava que fossem fortes de mais para nós. Respondi-lhe sorrindo: - Tenha coragem; só vejo para nós, em todo este negócio, uma circunstância embaraçadora. - Qual é? - disse-me ele. - É - respondi eu -, que há entre esse bando quatro homens honrados que é preciso poupar; se fossem todos patifes, julgaria que a Providência os tinha separado do resto para no-los entregar nas mãos; porque, fie-se em mim, todo aquele que desembarcar ficará à nossa mercê, e seremos os senhores =da sua vida e da sua morte. Estas palavras, pronunciadas com voz firme e uma feição alegre, deram-lhe coragem, e pôs-se a ajudar-me vigorosamente a fazer os nossos preparativos. Logo que vimos o escaler dirigir-se para nós, já tínhamos pensado em separar os nossos prisioneiros e pô-los em lugar seguro.
Havia dois de quem o capitão estava menos seguro; fizera-os conduzir, por Sexta-feira e pelo companheiro do capitão, para a minha gruta, donde lhes era absolutamente impossível fazer-se ver ou ouvir, ou achar o caminho através dos bosques, isto se conseguissem desembaraçar-se dos seus laços. Dera-lhes algumas provisões asseverando-lhes que, se se deixassem estar sossegados, os poria brevemente em plena liberdade, mas se fizessem a menor tentativa para se safarem, não lhes daria quartel. Prometeram-me sofrer o seu cativeiro pacientemente, e mostraram-me um vivo reconhecimento da bondade que eu tivera em dar-lhes provisões e luz; imaginavam eles que ele devia ficar de sentinela à gruta. Os nossos outros prisioneiros eram mais felizes: na verdade, tínhamos amarrado dois que eram um pouco suspeitos, mas, quanto aos outros dois, tomara-os ao meu serviço, por recomendação do capitão, com juramento solene de nos serem fiéis até à morte. Desta maneira éramos sete bem armados, =e estou persuadido de que estávamos em estado de vir às mãos =com os nossos inimigos, sobretudo por causa dos três ou quatro homens honrados que o capitão me asseverava ter descoberto entre eles. Logo que chegaram ao sítio em que estava o seu primeiro escaler, empurraram sobre a areia aquele em que estavam e, deixando-o todos ao mesmo tempo, puxaram-no para a praia, o que me causava prazer, porque receava que o deixassem ancorado, a alguma distância, com alguns de entre eles para o guardar, e que assim nos fosse impossível apossarmo-nos dele. A primeira coisa que fizeram, foi correr para o outro escaler; e conhecemos facilmente a surpresa que sentiram ao vê-lo furado no fundo, e destituído de todos os seus aprestos. Um momento depois, deram todos ao mesmo tempo dois ou três grandes gritos para se fazerem ouvir dos seus companheiros; mas, vendo que era trabalho perdido, puseram-se em círculo e deram uma descarga geral com as suas armas, cujo ruído fez ressoar todo o bosque; mas nós estávamos bem certos que os prisioneiros da gruta não a ouviam, e que aqueles que nós guardávamos não tinham a coragem de lhes responder. Os do escaler, não recebendo o menor sinal de vida da parte dos seus companheiros, estavam numa tal surpresa, como nós depois soubemos por eles, que tomavam a resolução de voltarem todos para bordo do navio para aí irem contar que o primeiro escaler fora para o fundo, e que os seus camaradas tinham sido certamente massacrados. Vimo-los lançar o escaler ao mar e entrar todos nele. Apenas deixaram a praia, voltaram outra vez, depois de ter deliberado aparentemente sobre algumas novas medidas para achar os companheiros; ficaram três no escaler, e os outros desembarcaram para fazer a busca. Eu considerava o partido que acabavam de tomar como um grande inconveniente para nós; debalde nos apoderaríamos dos sete que estavam em terra, se o escaler nos escapasse; porque, nesse caso, os que estavam nele voltariam certamente para o navio, que não deixaria de se fazer de vela, o que nos tiraria todo o meio possível de o recuperar. Contudo o mal não tinha remédio, tanto mais que vimos o escaler afastar-se da praia e ancorar a alguma distância. Tudo o que nos restava fazer era esperar os acontecimentos. Os sete que tinham desembarcado avançaram unidos para o lado da colina sob a qual estava a minha habitação, e podíamos vê-los claramente sem sermos descobertos. Desejávamos que eles se aproximassem mais a fim de fazermos fogo sobre eles, ou então que se afastassem para podermos sair do nosso esconderijo sem ser descobertos. Quando chegaram ao alto da colina, donde podiam descobrir uma grande parte do bosque e dos vales da ilha, sobretudo do lado do nordeste, onde o terreno é mais baixo, puseram-se novamente a gritar até não poder mais, e não ousando, ao =que parece, aventurar-se a penetrar mais para o interior, sentaram-se para deliberar juntos. Se tivessem julgado a propósito dormir, ter-nos-iam prestado um bom serviço; mas estavam muito cheios de terror para se atreverem a entregar-se ao sono, ainda que seguramente não tivessem ideia alguma do perigo que os ameaçava. O capitão, julgando adivinhar o assunto da sua deliberação =e imaginando que iam dar uma segunda descarga para se fazer ouvir pelos seus camaradas, propôs-me cair sobre todos eles ao mesmo tempo logo que tivessem atirado, e forçá-los por esta maneira a render-se, sem que fossem obrigados a derramar sangue. Aproveitei este conselho, contanto que fosse executado com justeza, e que estivéssemos tão perto deles que não tivessem tempo de tornar a carregar as armas. Mas este desígnio desvaneceu-se por falta de ocasião, e estivemos muito tempo sem saber que partido tomar. Enfim disse à minha gente que nada havia a fazer antes da noite, e que, se então eles ainda não tivessem embarcado, podíamos achar =meio de nos metermos entre eles e a praia, e servir-nos de estratagema para entrarmos com eles no escaler e obrigá-los a voltar para terra.
Depois de ter esperado muito tempo pelo resultado da sua deliberação, vimo-los, com grande pesar nosso, levantar-se e caminhar para o mar: tinham aparentemente uma ideia tão terrível dos perigos que os esperavam nesse sítio, que estavam resolvidos, considerando os seus companheiros como perdidos sem remédio, a voltarem para bordo do navio e a continuarem a sua viagem. O capitão, vendo que se iam embora, estava fora de si; mas, para os fazer voltar atrás lembrei-me de um estratagema que teve bom resultado. Ordenei ao contramestre e a Sexta-feira que passassem a pequena baía para o lado oeste, para o sítio onde eu salvara o último do furor dos seus inimigos: recomendei-lhes que logo que chegassem a alguma colina, se pusessem a gritar com todas as suas forças; que ficassem ali até que tivessem a certeza de ter sido ouvidos pelos marinheiros; que em seguida soltassem outro grito logo que tivessem respondido; que, depois disso, ficando sempre fora da vista deles, voltassem em círculo continuando a soltar gritos de cada colina que encontrassem, a fim de os atrair para os bosques, e que depois viessem ter comigo pelos caminhos que lhes indicava. Punham justamente o pé no escaler quando a minha gente deu o primeiro grito. Ouviram-no primeiro, e correndo para a praia para o lado oeste, donde tinham ouvido a voz, foram detidos pela baía, que lhes foi impossível atravessar por causa da altura das águas: o que fez com que eles levassem o escaler, como eu previra. Quando se viram do outro lado, observei que o faziam subir mais alto na baía, como numa boa enseada, e que um dos marinheiros saía dele, deixando apenas dois dos seus companheiros, que ataram o escaler ao tronco de uma árvore. Era justamente o que eu desejava: deixando Sexta-feira e o contramestre executar as minhas ordens, levei os outros comigo, dando uma volta para poder vir do outro lado da baía, surpreendemos os do escaler de improviso. Um ficara dentro; achámos o outro deitado na areia, meio adormecido. Acordou em sobressalto à nossa aproximação; o capitão, que era o =mais avançado, saltou sobre ele, quebrou-lhe a cabeça com uma coronhada, e gritou em seguida ao que ficara no escaler que se rendesse ou então morria. Não foi preciso muito trabalho para o resolver a isso: via-se cercado por cinco homens; o seu camarada estava derrubado. Era um daqueles de quem o capitão me dissera bem, e assim não só se rendeu, mas aliou-se a nós e serviu-nos com muita fidelidade. Entretando, Sexta-feira e o contramestre conduziram tão bem os seus negócios que, gritando e respondendo aos gritos dos marinheiros, levaram-nos de colina em colina, de maneira a pô-los nas nossas mãos. Não os deixaram em sossego senão depois de os ter atraído bastante para dentro do bosque para que não pudessem voltar para o seu escaler antes da noite. Eles estavam mesmo cansados ao voltar para o pé de mim; é verdade que tinham tempo para descansar, pois o mais seguro para nós era atacar o escaler durante a escuridão. Os marinheiros não voltaram ao escaler senão algumas horas depois da volta de Sexta-feira e podíamos ouvir distintamente os que iam mais diante gritar aos outros que se apressassem; ao que os outros respondiam que estavam meio mortos de cansaço: notícia agradabilíssima para nós. Não é possível exprimir qual foi o seu espanto quando =viram a maré vazia, o escaler encalhado e sem guardas. Ouvimo-los gritar uns aos outros, da maneira mais lamentável, que estavam numa ilha encantada, e que, se era habitada por homens, seriam eles massacrados, e que, se era espíritos, seriam roubados e devorados. Puseram-se a gritar de novo e a chamar os seus camaradas pelos seus nomes; mas nada de resposta. Vimo-los então, com a ajuda do pouco de dia que ainda restava, correr por aqui e por ali e torcerem as mãos como uns desesperados. Ora entravam no escaler para aí descansarem, ora saíam dele para correr pela praia, e continuaram este trabalho sem descanso durante bastante tempo. A minha gente tinha grande vontade de atacar; mas o meu desígnio era prendê-los com vantagem minha, a fim de matar o menos que me fose possível, e de não arriscar a vida de um =só de entre nós. Resolvi pois esperar, na esperança de que se separassem; e para que não se escapassem fiz aproximar mais a minha emboscada, e ordenei a Sexta-feira e ao capitão que se arrastassem de gatas para se colocarem o mais perto deles que fosse possível, sem se descobrir. Não estavam ainda há muito tempo nessa posição, quando =o oficial inferior, o chefe principal da insubordinação, que se mostrava na sua desgraça mais covarde e mais desesperado do que qualquer outro, dirigiu os seus passos para esse lado com dois seus camaradas. O capitão estava tão furioso contra esse celerado, que tinha dificuldade em deixá-lo aproximar-se para estar seguro dele. Reteve-se contudo; mas depois de se ter concedido ainda um pouco de paciência, levanta-se dum salto com Sexta-feira e faz fogo sobre ele. O oficial inferior foi morto logo; um outro foi ferido no ventre, mas não morreu senão duas horas depois, e o terceiro fugiu. Ao ruído destes tiros avancei bruscamente com todo o meu exército, que consistia em oito homens. Era eu mesmo o generalíssimo; Sexta-feira era o meu ajudante, e tínhamos por soldados o capitão com os seus dois companheiros, e os três prisioneiros a quem eu confiara armas. A noite estava muito escura, de maneira que foi impossível aos nossos inimigos conhecer o nosso número; em consequência ordenei ao que tínhamos achado no escaler, e que era então um dos meus soldados, que os chamasse pelos seus nomes, para ver se queriam capitular: o que teve bom resultado, como é fácil de crer. Pôs-se a gritar muito alto: - Olá! Tomás Smith! Tomás Smith! Este respondeu primeiro: - És tu, Johnson? - porque o reconheceu pela voz. - Sou, sim - replicou o outro. - Em nome de Deus, Tomás, abaixem as armas e rendam-se, senão morrem todos imediatamente. - A quem nos havemos de render? - disse Smith - onde estão eles? - Estão aqui - respondeu Johnson -, é o capitão com cinquenta homens que vos procuraram já há duas horas. O oficial foi morto; William Frie está perigosamente ferido, eu mesmo estou prisioneiro de guerra; e se vocês não se querem render, estão todos perdidos. - Dar-nos-ão quartel - replicou Smith -, se depusermos as armas? - Vou pedi-lo ao capitão - disse Johnson. O capitão pôs-se então a falar ele mesmo com Smith. - Conheces a minha voz - gritou-lhe ele -, se depuserem as armas, têm a vida salva, excepto William Atkins. - Por amor de Deus, capitão, - exclamou logo Atkins, - dê-me quartel! Que fiz eu mais do que os outros? São tão culpados como eu. Não dizia a verdade, porque esse Atkins fora o primeiro a maltratar o capitão. Tinha-lhe amarrado as mãos, dizendo-lhe as injúrias mais ultrajantes. Assim o capitão disse-lhe que nada prometia, que devia render-se à descrição, e ter recurso à bondade do =governador da ilha. Era eu quem ele designava com este belo título. Numa palavra, depuseram todos as armas, implorando pela vida. Enviei Johnson e outros dois para os amarrar a todos; em seguida o meu fingido exército de cinquenta homens, que na realidade era de oito, com o destacamento, avançou e apoderou-se deles com o seu escaler. Quanto a mim, deixei-me afastado com um só dos meus, por razões de Estado. O capitão teve então vagar de falar com todos os prisioneiros. Censurou-lhes severamente a sua traição e as outras más acções de que fora seguida, e que seguramente os teriam arrastado às últimas desgraças, e conduzido à =forca. Pareceram todos muito arrependidos, e pediram de novo a vida com um ar muito submisso. Respondeu-lhes que não eram seus prisioneiros, mas sim do governador da ilha. Julgaram, continuou ele, abandonar-me numa ilha deserta; mas aprouve a Deus dirigi-los de uma tal maneira, que este sítio se achasse habitado, e mesmo governado por um inglês. Este governador é senhor de os mandar enforcar a todos; mas, tendo-lhes dado quartel, poderá contentar-se em os enviar para Inglaterra, para serem entregues nas mãos da justiça, excepto Atkins, a quem tenho ordem de dizer da sua parte que se prepare para a morte; porque deve ser enforcado amanhã pela manhã. Esta ficção produziu todo o efeito esperado; Atkins lançou-se de joelhos para pedir ao capitão que intercedesse por ele junto do governador, e os outros conjuraram-no de maneira a que não fossem enviados a Inglaterra. Como eu pusera no espírito que o tempo da minha liberdade ia chegar, pensei que seria fácil persuadir todos esses marinheiros que empregassem as suas forças a recuperar o navio. Para os enganar mais, afastei-me deles, a fim de que não vissem que personagem tinham por governador. Ordenei então que fizessem vir o capitão à minha presença, =e aí um dos meus, que estava a alguma distância de mim, pôs-se =a gritar: - Capitão, o governador quer falar-lhe! - Diga a Sua Excelência - respondeu o capitão -, que aí =vou imediatamente. Engoliram maravilhosamente esta comédia, e não duvidaram um momento que o governador estivesse por perto com os seus cinquenta soldados. Quando o capitão chegou, comuniquei-lhe o desígnio que formara de nos apoderarmos do navio. Aprovou-o e resolveu pô-lo em execução no dia seguinte. Para o executar com mais segurança, julguei que devia separar os nossos prisioneiros, e ordenei ao capitão e aos seus dois companheiros que agarrassem Atkins e outros dois dos mais criminosos do bando, para os levar para a gruta, onde estavam os dois primeiros; não era certamente um lugar agradável, sobretudo para gente assustada. Enviei o resto para a minha casa de campo, que tinha uma cerca em volta; e como estavam amarrados, e a sua sorte dependia do seu procedimento, estava certo de que não me escapavam. Foi a estes que enviei no dia seguinte o capitão para tratar de aprofundar os seus sentimentos e ver se era prudente empregá-los na execução do nosso projecto. Falou-lhes do =seu mau procedimento e da triste sorte a que se viam reduzidos, e repetiu-lhes que ainda que o governador lhes tivesse dado quertel, não deixariam certamente de ser enforcados se os mandassem para Inglaterra. - Contudo - acrescentou -, se me prometerem ajuda fiel numa empresa tão justa como a de me apoderar do meu navio, o governador empenhar-se-ia formalmente em lhes alcançar o perdão. Pode julgar-se que efeito fez uma tal proposta nesses desgraçados. Puseram-se de joelhos diante do capitão e prometeram-lhe com juramento que lhe seriam fiéis até à =última gota do seu sangue, que o seguiriam por toda a parte e que o considerariam sempre como se fosse seu pai, pois ficavam a dever-lhe a vida. - Pois bem! Vou comunicar as suas promessas ao governador, e farei todos os esforços para a tornar favorável. Veio então trazer-me a resposta, acrescentando que não duvidava da sua sinceridade. Contudo, a fim de nada desprezar para nossa segurança, pedi-lhe que voltasse a ir ter com eles, e que lhes dissesse que consentia em escolher cinco de entre eles para os empregar na sua empresa; mas que o governador guardaria como reféns os outros dois junto com os três prisioneiros que tinha no seu palácio, e que os faria enforcar à beira-mar se os seus camaradas fossem tão pérfidos que faltassem a juramentos. Havia em tudo isto um ar de severidade que fazia ver que o governador não brincava. Os referidos cinco aceitaram a proposta com alegria. O estado das forças que então tínhamos era o seguinte: 1º =o capitão, o seu contramestre e o seu passageiro; 2º, dois prisioneiros feitos no primeiro encontro, que tinham sido libertados e armados por recomendação do capitão; 3º, os =dois que conservara até então amarrados na minha casa de campo, mas que eu acabava de soltar a pedido do capitão; 4º, os cinco que pusera ultimamente em liberdade. Segundo este cálculo, eram doze ao todo, além dos cinco reféns. Era tudo o que o capitão podia empregar para se apoderar do navio, porque eu e Sexta-feira não podíamos abandonar a ilha, onde tínhamos sete prisioneiros que devíamos conservar separados e alimentados. Quanto aos cinco reféns que estavam na gruta, pareceu-me melhor conservá-los amarrados; mas Sexta-feira tinha ordem de lhes levar de comer duas vezes por dia. Quanto aos outros dois, empreguei-os a levar provisões a uma certa distância onde Sexta-feira devia recebê-las deles. A primeira vez que me mostrei a estes últimos estava em companhia do capitão, que lhes disse que eu era o homem que o governador escolhera para tomar conta deles, com ordem de não os deixar ir a parte alguma sem minha licença, sob pena de serem levados para o castelo e algemados. Como não me conheciam na qualidade de governador, podia representar uma outra personagem para eles; o que fiz às mil maravilhas, falando sempre, com muita ostentação, do =palácio, do governador e da guarnição. A única coisa que restava fazer ainda ao capitão, para se pôr em estado de executar o seu desígnio, era armar os dois escaleres e equipá-los. Num meteu o seu passageiro, comandando quatro homens; no outro foi ele mesmo, com o seu contramestre e outros cinco marinheiros, e conduziu a sua empresa na perfeição. Era perto da meia-noite quando descobriu o navio, e logo que o viu ao alcance da voz ordenou a Johnson que gritasse à tripulação que traziam o primeiro escaler que partira com os marinheiros, mas que tinham tido um trabalhão para os encontrar; Johnson foi entretendo os tratantes com estes discursos e outros semelhantes, até que o escaler atracou ao navio. O capitão e o contramestre foram os primeiros a subir, com as armas nas mãos; começaram por derrubar o segundo mestre e o carpinteiro à coronhada e, fielmente secundados pelos outros, tornaram-se senhores de tudo o que encontraram nos tombadilhos. Estavam já ocupados em fechar as escotilhas, a fim de impedir os de baixo de ir em socorro dos seus camaradas, quando a gente do segundo escaler subiu pelo lado da proa, tomaram o castelo, e apoderaram-se da escotilha que conduzia ao camarote do cozinheiro, onde fez prisioneiros três dos revoltosos. Estando assim senhor de quase todo o navio, o capitão ordenou ao contramestre que fosse com três homens forçar o camarote onde estava o novo comandante. Este, ouvindo o alarme, levantara-se, ajudado por dois marinheiros e um grumete, apoderaram-se das armas de fogo. Assim que o contramestre abriu a porta por meio de uma alavanca, esses quatro tratantes fizeram fogo sobre ele e os seus companheiros, ferindo dois ligeiramente e quebrando o braço ao próprio contramestre, que não deixou, ferido como estava, de queimar os miolos ao novo capitão com um tiro de pistola. A bala entrou-lhe pela boca e saiu-lhe pela orelha; vendo-o morto, os outros renderam-se. O combate acabou assim, e o capitão recuperou o seu navio sem ter sido necessário derramar mais sangue.
ROBINSON EMBARCA NO NAVIO INGLÊS E VOLTA AO SEU PAÍS
O capitão começou por dar-me parte do bom resultado da sua empresa, mandando disparar sete tiros de peça, sinal que havíamos combinado. Eu continuava na praia desde a partida dos escaleres, e pode imaginar-se a alegria que tive em ouvi-lo. Com esta feliz nova, fui deitar-me e, como estava extremamente fatigado do dia precedente, dormi profundamente até que fui despertado por um tiro de peça; ia-me levantar para saber a causa, quando ouvi chamar o governador; reconheci primeiro a voz do capitão, e logo que subi ao alto do rochedo, onde ele me esperava, deu-me um grande abraço. - Meu caro amigo - disse ele -, meu caro libertador, ali está o seu navio; pertence-lhe, assim como nós e tudo quanto possuímos. Voltei os olhos para o mar, e vi efectivamente o navio, ancorado a um pequeno quarto de légua da praia, porque o capitão fizera-se de vela assim que terminou a sua empresa; como estava bom tempo, pudera conduzir o navio até à foz da minha pequena baía, e como a maré estava cheia, trouxera-o, por assim dizer, até à minha porta. Considerava então a minha liberdade como segura, pois já tinha os meios; um bom navio me esperava para me levar onde quisesse. Mas estava de tal modo cheio de alegria, que estive muito tempo sem poder pronunciar uma palavra, e desmaiaria se os braços do capitão me não tivessem sustido. Vendo-me prestes =a desmaiar, deu-me a beber um copo de um licor cordial que trouxera de propósito para mim. Depois de ter bebido, sentei-me no chão; voltei a mim, pouco a pouco, mas estive ainda muito tempo sem poder dar uma palavra. O pobre homem não estava menos alegre do que eu, apesar de não sentir os mesmos efeitos; disse-me, para me tranquilizar, uma infinidade de coisas ternas e delicadas, que substituíram o meu êxtase por uma torrente de lágrimas, e pouco a pouco recuperei o uso da fala. Abracei-o então por minha vez como meu libertador, dirigindo-lhe mil agradecimentos. Imagina-se certamente que não esqueci também de elevar ao Céu o meu coração reconhecido: seria preciso que eu fosse muito duro para que não abençoasse o nome de Deus, que não =só provera tanto tempo a minha subsistência de maneira miraculosa, mas queria agora tirar-me desse triste deserto de um modo mais miraculoso ainda. Depois destes protestos mútuos, o capitão disse-me que trouxera alguns refrescos dos que um navio acabado de ser saqueado por revoltosos podia fornecer. Gritou aos homens do seu escaler que pusessem em terra os presentes destinados ao governador: e, na verdade, era um verdadeiro presente para um governador, e para um governador que devia ficar na ilha, e não prestes a embarcar, como era a minha resolução. Este presente consistia num pequeno cesto cheio de algumas garrafas de licor cordial; seis garrafas de vinho da Madeira, cada uma com dois litros; duas libras de excelente tabaco; dois grandes pedaços de boi; seis de porco; um saco de ervilhas; e perto de cem libras de bolacha. Juntara-lhe ainda uma caixa de açúcar e uma outra cheia de noz-moscada, duas garrafas de sumo de limão, e um grande número de outras coisas úteis e agradáveis. Mas o que me causou maior prazer foram seis camisas novas, outras tantas gravatas muito boas, dois pares de luvas, um par de sapatos, chapéu e um fato completo tirado do seu próprio guarda-roupa, mas que quase nunca tinha vestido. Numa palavra, trouxe-me tudo o que eu precisava para me vestir desde os pés até à cabeça. Imaginam sem dificuldade =que ar eu tinha nesses fatos, e como me sentia pouco à vontade quando os vesti pela primeira vez, depois de ter passado sem eles durante um tão grande número de anos. Mandei transportar todos estes presentes para a minha habitação, e pus-me a deliberar com o capitão sobre o que devíamos fazer com os nossos prisioneiros. Valia a pena fazer qualquer coisa, sobretudo aos dois cabecilhas cuja malvadez enraizada e incorrigível bem conhecíamos. O capitão assegurava-me que os benefícios eram tão pouco capazes de os submeter como os castigos, e que se ele se encarregasse deles seria só para os conduzir, algemados, a Inglaterra ou à primeira colónia inglesa, a fim de os pôr nas mãos da =justiça. Como eu via que o capitão era humano demais para tomar esse partido sem grande pesar, disse-lhe que sabia um meio de levar esses dois celerados a pedir-lhe como uma graça a permissão de ficar na ilha, e consentiu nisso de todo o coração. Mandei Sexta-feira e dois dos reféns (que acabava de pôr em liberdade, porque os seus companheiros tinham feito o seu dever) ir buscar à gruta os cinco marinheiros e levá-los amarrados para a minha casa de campo guardando-os até à minha chegada. Algum tempo depois fui até lá com o meu fato novo em companhia do capitão, e foi então que me trataram de governador abertamente. Fiz primeiro trazer os prisioneiros à minha presença, e disse-lhes que estava perfeitamente a par da sua conspiração contra o capitão e das medidas que todos tinham tomado para cometer piratarias com o navio de que se haviam apoderado; mas que, por felicidade, tinham caído no laço que tinham armado para os outros, pois o navio acabava de ser recuperado sob a minha direcção e iam ver já o seu chefe, em paga da sua traição, enforcado na verga grande; que queria saber que razões tinham a alegar em sua defesa, fortes a ponto de eu deixar de os castigar, como tinha direito de fazer, tratando-se de piratas. Um deles respondeu-me que nada tinham a dizer em seu favor, senão que o capitão, ao prendê-los, lhes prometera a vida, =e pediam perdão. Repliquei-lhes que não sabia muito bem que graça devia eu fazer-lhes, pois ia deixar a ilha e embarcar para Inglaterra; e que, a respeito do capitão, ele não podia levá-los =senão amarrados, e com o fim de os entregar à justiça como revoltosos e como piratas, o que os levaria direitinhos à forca; que, assim, não achava melhor partido para eles do que os deixar na ilha, que eu tinha licença de abandonar com toda a minha gente, e estava bastante tentado a perdoar-lhes se quisessem contentar-se com essa sorte. Pareceram receber a minha proposta com reconhecimento, dizendo-me que preferiam infinitamente essa moradia ao destino que os esperava em Inglaterra; mas o capitão simulou não aprovar e não ousar consentir em tal; então disse-lhe, com ar zangado, que eram meus prisioneiros e não seus, e tendo-lhes oferecido o perdão, não era homem que faltasse à palavra; quanto muito punha-os em liberdade, como os achara, deixando-o correr atrás deles e apanhá-los se pudesse. Fiz como disse, mandei desatar-lhes as cordas, disse que fossem para os bosques, e prometi deixar-lhes armas de fogo, munições, e as instruções necessárias para aí viverem =à vontade, se quisessem segui-las. Depois comuniquei ao capitão o meu propósito de ficar ainda essa noite na ilha, a fim de preparar tudo para a viagem, e pedi-lhe que voltasse para bordo, para ter tudo em ordem, e enviar o escaler no dia seguinte. Adverti-o também de não se esquecer de enforcar na verga o novo capitão, que fora morto, a fim de que os nossos prisioneiros o vissem. Logo que o capitão partiu, mandei-os vir à minha =habitação, e entrei numa conversação muito séria a respeito da =situação. Louvei-os pela escolha que tinham feito, pois que o capitão, se os fizesse conduzir a bordo do navio, os enforcaria certamente, como ao novo capitão que lhes apontei ao longe pendurado na grande verga. Quando os vi determinados a ficar na ilha dei-lhes todos os pormenores sobre esse lugar e a maneira de fazer pão, semear as terras e secar as uvas; numa palavra ensinei-lhes tudo o que pudesse tornar a sua vida agradável e cómoda. Falei-lhes ainda do pai de Sexta-feira e de dezasseis espanhóis que tinham a esperar, e para os quais deixei uma carta, fazendo-lhes prometer viver com eles em boa amizade. Deixei-lhes as minhas armas, a saber três mosquetes, três espingardas de caça, e três sabres: tinha ainda, além =disso, barril e meio de pólvora, porque gastara muito pouca. Ensinei-lhes também a maneira de criar as cabras, de as mungir, de as engordar, e fazer manteiga e queijo com o seu leite. Além disso prometi-lhes fazer com que o capitão lhes deixasse uma provisão maior de pólvora, e algumas sementes para horta, com as quais eu ficaria muito satisfeito quando estava na posição em que eles iam encontrar-se. Dei-lhes ainda de presente um saco cheio de ervilhas, que o capitão me dera, e disse-lhes até que ponto se multiplicariam, se tivessem o cuidado de semeá-las. Algum tempo depois, o escaler foi enviado a terra com as provisões que o capitão prometera aos exilados (era o nome que lhes dávamos), aos quais mandou, por minha causa, os seus caixotes e os seus fatos, que receberam com muita gratidão. Dizendo adeus à minha ilha, levei comigo, como =recordação, um grande barrete de pele de cabra, o meu chapéu-de-sol e o meu papagaio: não me esqueci também do dinheiro que mencionei, e que ficara enterrado tanto tempo que estava tão enferrujado que não poderia ser reconhecido pelo que era senão depois de ter sido limpo e esfregado; também não deixei lá a pequena quantia que tirara do navio espanhol naufragado. Foi assim que abandonei a ilha com o meu fiel Sexta-feira a 18 de Dezembro do ano de 1686, segundo o cálculo do navio, depois de nela ter residido vinte e oito anos, dois meses e dezanove dias; o dia em que me vi livre desta triste vida era o aniversário daquele em que me escapara de Salé num barco. A minha viagem foi feliz; chegueia Inglaterra a 11 de Junho do ano 1687, tendo estado ausente da minha pátria trinta e cinco anos. Quando cheguei ao meu país natal, achei-me lá tão =estranho como se nunca aí tivesse posto os pés. A boa mulher a quem eu confiara o meu pequeno tesouro ainda vivia, mas sofrera grandes desgraças e estava viúva pela segunda vez. Disse que não a incomodaria mais, e fiz-lhe o maior bem possível que a minha situação podia permitir, dando-lhe a minha palavra de que nunca esqueceria as suas bondades passadas. Fui em seguida à província de York; meu pai e minha mãe tinham morrido e toda a minha família se extinguira, excepto duas irmãs e o filho dum dos meus irmãos; e como há tanto tempo passava por morto, tinhám-me esquecido na partilha dos bens, de maneira que não tinha outros recursos além do meu pequeno tesouro, que não bastava para eu arranjar uma colocação. Recebi então um benefício com que não contava. O capitão que me devia a vida e a salvação do seu navio e respectiva carga dera aos proprietários uma informação =exacta do meu procedimento a esse respeito; depois chamaram-me e deram-me um presente de perto de duzentas libras esterlinas. Resolvi ir a Lisboa, para aí me informar ao certo do que fora feito da minha plantação do Brasil, e do estado em que podiam estar os meus negócios, e embarquei com Sexta-feira que me acompanhava em todas as minhas viagens, e dava cada vez mais provas da sua fidelidade e da sua probidade. Fiz bem em tomar essa resolução: encontrei o capitão que trinta anos antes me salvara e recolhera. Nesta ocasião voltava do Brasil com o seu filho, que lhe devia suceder no comando do navio: disse-me que a minha plantação prosperava perfeitamente, sob a direcção dos negociantes meus associados, que tinham cuidado dos meus negócios como dos seus; e que os rendimentos da minha plantação tinham sido depositados anualmente no banco do Estado, que certamente estaria pronto a restituirmos, embora sem juros, logo que eu fizesse conhecer os meus direitos. Estas notícias encheram-me de alegria. Contudo não julguei necessário ir eu mesmo ao Brasil. O filho do capitão, que para lá partiu dois meses depois, encarregou-se de todos os meus papéis; levantou em meu nome no banco do Estado todo o meu dinheiro aí depositado, e vendeu a minha propriedade em condições muito vantajosas.
Daniel Defoe
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