Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ROBÔS DO AMANHECER
Baley
Elijah Baley abrigou-se à sombra de uma árvore e murmurou para si mesmo:
- Eu previa. Estou suando.
Parou, empertigou-se, enxugou o suor da testa com as costas da mão e depois olhou, sorumbático, a umidade que a cobria.
- Detesto suar - disse para ninguém, lançando as palavras como se fossem uma lei cósmica.
E novamente sentiu-se aborrecido com o Universo por ter feito aquela coisa tão essencial e ao mesmo tempo desagradável.
Ninguém jamais suava (a menos que desejasse, é claro) em City, onde a temperatura e a umidade eram totalmente controladas e nunca era absolutamente necessário para o corpo usar recursos que faziam a produção de calor que a sua remoção.
Ora, isso era civilização.
Olhou para o campo, onde o errar de homens e mulheres estava mais ou menos aos seus cuidados. Eram, na maioria, jovens no fim da adolescência, mas havia também os de meia-idade, como ele. Cavavam desajeitadamente e faziam uma quantidade de outras coisas a cargo dos robôs e que estes podiam fazer com muito mais eficiência, não tivessem recebido ordem de se manterem afastados e esperando, enquanto os seres humanos teimosamente trabalhavam.
Havia nuvens no céu e o sol, naquele instante, estava se escondendo atrás de uma delas. Ergueu os olhos, indeciso. Por um lado, significava que o calor direto do sol (e o suor) seriam eliminados. Por outro, haveria uma possibilidade de chover?
Era esse o problema com o Exterior. Oscilava-se eternamente entre alternativas desagradáveis.
Baley sempre sentiu-se espantado porque uma nuvem relativamente pequena conseguia cobrir completamente o sol, escurecendo a Terra de um horizonte ao outro, mas deixando a maior parte do azul do céu.
Permaneceu sob a copa da árvore (uma espécie de parede e teto primitivos, com a solidez da casca, confortável ao toque) e tornou a olhar o grupo, observando-o. Eles saíam uma vez por semana, qualquer que fosse o tempo.
Estavam também, recrutando. Eles eram sem dúvida mais numerosos que os poucos corajosos que tinham partido. O governo de City, embora não fosse um verdadeiro sócio no empreendimento, tinha sido bastante bondoso para não criar obstáculos. No horizonte, à direita de Baley - a leste, como era possível dizer pela posição do sol de fim de tarde - viu as volumosas cúpulas, cheias de pontas de City, incluindo tudo o que tornava a vida valiosa. Viu, também, uma pequena mancha móvel, muito afastada para ser claramente observada.
Pela sua maneira de se mover e por indícios muito sutis para serem descritos, Baley tinha a certeza de que se tratava de um robô, o que não o surpreendeu. A superfície da Terra, no exterior das Cidades, era domínio dos robôs e não de seres humanos, com exceção dos poucos, como ele, que sonhavam com as estrelas.
Mecanicamente, seus olhos viraram-se para os que cavavam, passando de um ao outro. Podia identificar e chamar cada um pelo nome. Estavam todos trabalhando, aprendendo como suportar o Exterior e...
Franziu o cenho e murmurou em voz baixa:
- Onde está Bentley?
E outra voz, detrás dele, com uma exuberância um tanto afoita, respondeu:
- Estou aqui, papai. - Baley virou-se.
- Não faça isso, Ben.
- Fazer o quê?
- Se aproximar dessa maneira furtiva. Já é duro tentar manter meu equilíbrio no Exterior sem ter de me preocupar com surpresas.
- Eu não tive intenção de assustá-lo. É difícil fazer muito barulho andando na relva. Não tem jeito... Mas não acha que deve entrar, papai? Você está fora há duas horas e acho que já é bastante.
- Por quê? Porque tenho quarenta e cinco anos e você é um garoto vagabundo de dezenove? Você pensa que precisa cuidar do seu pai decrépito, não é?
- Sim - respondeu Ben - acho que sim. E um pedaço de um bom detetive também trabalha em você. Você acerta exatamente na mosca.
Ben abriu-se num sorriso. Tinha o rosto redondo e os olhos faiscantes. Havia muito de Jessie nele, pensou Baley, muito de sua mãe. E pouco do comprimento e solenidade do rosto de Baley.
Contudo, Ben possuía a maneira de pensar do pai. Podia, às vezes, mergulhar numa grave solenidade que determinava muito claramente sua origem perfeitamente legítima.
- Vou me saindo muito bem - disse Baley.
- Vai mesmo, papai. Você é o melhor de nós, considerando...
- Considerando o quê?
- Sua idade, claro. E não posso esquecer que você foi quem começou tudo. No entanto, vi que você se abrigou sob a árvore e pensei: bem, talvez o velho já tenha o suficiente.
- Você vai ver quem é "velho". - O robô que tinha notado, para o lado de City, estava agora bastante perto para ser visto claramente, porém Baley não deu importância. Acrescentou: - É compreensível meter-se sob uma árvore de vez em quando, quando o sol está muito quente. Aprendemos a usar as vantagens do Exterior, bem como a suportar suas desvantagens... E lá vem o sol saindo detrás daquelas nuvens.
- Sim, é verdade... E então, não quer entrar?
- Posso agüentá-lo aqui fora. Uma vez por semana, tenho uma tarde livre e passo-a aqui. É uma vantagem decorrente da minha classificação C-7.
- Não é uma questão de vantagem, papai. É uma questão de estar exausto.
- Garanto-lhe que estou ótimo.
- Claro. E quando chega em casa, vai direto para a cama e fica deitado no escuro.
- Antídoto natural para o excesso de claridade.
- E mamãe fica preocupada.
- Ora, deixe-a preocupar-se. Vai lhe fazer bem. Além disso, qual o mal em ficar aqui fora? A parte pior é que eu suo, mas já estou acostumado. Não posso escapar. Quando comecei, não podia andar nem mesmo até esta distância de City sem precisar voltar... e você era o único comigo. Veja agora quantos estão aqui e até onde posso vir sem problemas. Posso também trabalhar muito. Posso ficar ainda uma hora. Fácil. Garanto-lhe, Ben, que seria bom para sua mãe vir aqui também.
- Quem? Mamãe? Você está brincando, é claro.
- Mais ou menos. Quando chegar a hora de ir embora, não serei capaz de fazê-lo... porque ela não vai querer.
- E você ficará contente. Não se iluda, papai. Não demorará muito... e você atualmente não é muito velho, mas será então. Vai ser uma brincadeira para os jovens.
- Você sabe - retrucou Baley semicerrando o punho - você está bancando o esperto, com isso de "jovem". Alguma vez já saiu da Terra? Alguns desses que estão aí no campo já saíram? Eu já. Há dois anos. Foi antes de ter esta aclimatação... e sobrevivi.
- Eu sei, pai, mas foi rapidamente, no cumprimento do dever, e você foi cuidado numa sociedade em desenvolvimento. Agora não é a mesma coisa.
- Foi a mesma coisa - afirmou Baley, teimoso, sabendo, no íntimo, que não tinha sido. - E não nos levará muito tempo estarmos aptos para partir. Se pudermos obter permissão para ir a Aurora, podemos fazer com que atue fora do solo.
- Esqueça. Não vai ser tão facilmente.
- Precisamos tentar. O governo não nos deixará partir sem que a Aurora dê permissão. É o maior e mais forte dos mundos Espaciais, o que significa...
- Prossiga! Eu sei. Já falamos nisso um milhão de vezes. Mas não precisamos ir lá para obter permissão. Há coisas como hiperrelés. Pode falar com eles daqui. Já disse isso inúmeras vezes.
- Não é o mesmo. Precisamos de um contato frente a frente., e já disse isso inúmeras vezes.
- Seja como for - afirmou Ben - ainda não estamos prontos.
- Não estamos porque a Terra não nos cede as naves. Mas os Espaciais sim, com toda a ajuda técnica necessária.
- Que fé! Por que os Espaciais fariam isso? Quando começaram a ser generosos conosco, terráqueos de vida curta?
- Se eu pudesse falar com eles...
Daniel
- Ora, papai - disse Ben, rindo. - Você só quer ir a Aurora para ver aquela mulher outra vez.
Baley franziu a testa e suas sobrancelhas juntaram-se sobre os olhos encovados.
- Mulher? Jehoshaphat, Ben, de quem está falando?
- Ora, papai, cá entre nós, sem que mamãe saiba, o que aconteceu com aquela mulher em Solaria? Já estou grandinho. Pode me contar.
- Que mulher em Solaria?
- Como pode me olhar nos olhos e negar qualquer conhecimento sobre a mulher que todos, na Terra, viram naquela dramatização em hiperonda? Gladia Delmarre. É essa a mulher!
- Nada aconteceu. Aquela coisa da hiperonda era bobagem. Já lhe disse milhares de vezes. Ela não parecia daquela maneira. Nem eu parecia. Foi tudo preparado e você sabe que foi produzido contra minha vontade, apenas porque o governo pensou que isso apresentaria a Terra sob uma luz favorável aos Espaciais. E pode ficar certo de que isso não implicou em coisa diferente para sua mãe.
- Não sonhe com isso. Contudo, essa tal Gladia foi para Aurora e você continua desejando ir lá.
- Você está querendo me dizer que, honestamente, está pensando que o motivo para minha ida a Aurora... Ah, Jehoshaphatl
O filho ergueu as sobrancelhas.
- Que foi?
- O robô. É R. Geronimo.
- Quem?
- Um dos robôs mensageiros do nosso departamento. E está cá fora! Hoje é minha folga e deliberadamente deixei meu receptor em casa porque não queria que eles me contatassem. É uma prerrogativa da minha categoria C-7 e assim mesmo mandaram meu robô me procurar.
- Como sabe que está à sua procura?
- Por uma dedução muito inteligente. Primeiro: não há mais ninguém aqui que tenha alguma ligação com o Departamento de Polícia, segundo: aquela pobre criatura está se dirigindo diretamente a mim. Deduzo daí que veio à minha procura. Eu posso passar para o outro lado da árvore e ficar lá.
- A árvore não é um muro, papai. O robô pode rodeá-la. Nesse instante, o robô gritou:
- Patrão Baley, tenho um recado para o senhor. Precisam da sua presença na sede.
- Ouvi e compreendi - replicou Baley, com voz modulada. Se não retrucasse assim, o robô ficaria repetindo.
Baley franziu levemente a testa enquanto examinava o robô. Era um modelo novo, um pouco mais humaniforme que os antigos. Tinha sido desembalado e entrado em atividade havia apenas um mês, com alguma pompa. O governo estava sempre procurando, por isto ou por aquilo, alguma coisa que levasse a uma aceitação maior dos robôs.
Ele tinha uma superfície cinza fosco e um tanto elástica ao toque (parecido com couro macio). A expressão facial, embora amplamente imutável, não era tão estúpida como a da maioria dos robôs. Era, porém, na realidade, mentalmente tão estúpido como o resto.
Durante um momento, Baley pensou em R. Daneel Olivaw, o robô Espacial, com quem tivera dois encontros: um na Terra e outro em Solaria, e a quem tinha finalmente encontrado quando Daneel o consultou na caixa de espelho-imagem. Daneel era um robô tão humano que Baley tratou-o como amigo e ainda sentia saudades dele. Se todos os robôs fossem iguais a ele...
- Rapaz, hoje é meu dia de folga - disse Baley. - Não preciso ir à sede do Departamento.
R. Geronimo parou. Havia uma pequena vibração em suas mãos. Baley percebeu e ficou convencido de que aquilo significava uma certa quantidade de conflito nas conexões positrônicas do robô. Tinha de obedecer aos seres humanos, mas era bastante comum dois seres humanos quererem dois tipos diferentes de obediência.
O robô fez uma escolha.
- É seu dia de folga, patrão. O senhor está sendo precisado na sede.
Ben interveio, preocupado:
- Se estão precisando de você, papai...
- Não se preocupe, Ben - respondeu, encolhendo os ombros. - Se estivessem realmente precisando muito de mim, teriam enviado junto um carro e provavelmente usado um voluntário humano, em vez de ordenar a um robô essa caminhada... e me irritado com um dos seus recados.
Ben balançou a cabeça.
- Acho que não, papai. Não sabiam onde você estava e quanto tempo levariam a encontrá-lo. Não acredito que mandassem um ser humano numa busca duvidosa.
- Acha? Bem, vejamos a força da ordem: R. Geronimo, volte à sede e diga-lhes que estarei de serviço às nove. - E depois, secamente: - Volte! É uma ordem!
O robô hesitou perceptivelmente, virou-se, afastou-se, voltou-se, fez uma tentativa de se aproximar novamente de Baley e por fim ficou parado, com o corpo todo vibrando.
Baley percebeu o que estava acontecendo e murmurou para Ben:
- Preciso ir, Jehoshaphat!
O que estava perturbando o robô era o que os roboticistas chamavam de contradição equipotêncial de segundo grau. A obediência era a Segunda Lei e R. Geronimo estava agora sofrendo os efeitos de duas ordens contraditórias igualmente fortes. Bloqueio robótico, era o que a população em geral chamava aquilo, ou com mais freqüência, pela abreviação, robloqueio.
O robô virou-se devagar. A ordem original era a mais forte, mas não decisivamente, e por isso sua voz ficou indistinta.
- Patrão, me disseram que o senhor ia dizer isso. Se assim fosse, eu devia completar... - Fez uma pausa e depois acrescentou, com voz rouca: - se o senhor estiver só.
Baley acenou concisamente para o filho, que não esperou. Sabia quando o pai era papai e quando era um policial. Ben retirou-se depressa.
Durante um momento, Baley estudou irritadamente a possibilidade de fortalecer sua própria ordem e tornar o robloqueio mais completo, mas iria certamente causar o tipo de estrago que exigiria análise positrônica e reprogramação. O custo seria deduzido do seu salário e podia facilmente chegar a um ano de pagamento.
- Retiro minha ordem - falou. - Que estava dizendo? A voz de R. Geronimo ficou imediatamente clara.
- Me mandaram dizer que o senhor é esperado por causa de um assunto referente a Aurora.
Baley virou para onde Ben tinha se afastado e gritou:
- Dê-lhes mais meia hora e depois diga-lhes que quero que entrem. Agora, preciso ir.
Enquanto andava em passadas largas, disse insolentemente ao robô:
- Por que não mandaram você dizer logo isso? E por que não podem programá-lo para trazer um carro, a fim de eu não precisar andar?
Sabia muito bem por que não tinham feito aquilo. Qualquer acidente envolvendo um carro guiado por robô, podia provocar outro distúrbio anti-robô.
Não diminuiu o passo. Precisavam caminhar dois quilômetros antes de chegarem aos muros de City e, a partir daí, chegar à sede enfrentando um trânsito pesado.
Aurora? Que espécie de crise estava em marcha?
Baley levou meia hora para chegar às portas de City e inteiriçou-se à suspeita do que estava para acontecer. Talvez - talvez - não acontecesse ainda.
Chegou ao plano divisório entre o Exterior e Cidade, o muro que separava o caos da civilização. Colocou a mão sobre a mancha sinalizadora e apareceu uma abertura.
Como de costume, não esperou que a abertura se completasse, deslizando por ela assim que ficou bastante larga. R. Geronimo o acompanhou.
O sentinela policial de serviço olhou sobressaltado, como habitualmente fazia, quando alguém vinha do Exterior. Tinha sempre o mesmo olhar incrédulo, a mesma atenção, a mesma súbita colocação da mão sobre o explosor, o mesmo franzir de hesitação.
Baley mostrou a identidade com uma careta e o sentinela fez continência. A porta fechou-se às suas costas... e aconteceu.
Baley estava dentro de City. As paredes fecharam-se em torno dele e a City tornou-se o Universo. Estava novamente imerso no infindável, eterno zumbido e cheiro de gente e maquinaria que logo desapareceriam sob o limiar da consciência: sob a luz artificial suave e direta que não se parecia, em absoluto, com o resplendor parcial e variado do Exterior, com seu verde, castanho, azul e branco, com intervalos de vermelho e amarelo. Ali não havia ventos erráticos, calor, frio, nem ameaça de chuva, ao contrário, havia a calma permanência de correntes de ar não sentidas, que mantinham tudo fresco. Ali havia uma combinação determinada de temperatura e umidade tão perfeitamente ajustadas aos humanos, que permanecia insensível.
Baley sentiu a respiração tornar-se mais trêmula e ficou feliz ao perceber que estava em casa, a salvo, entre o conhecido e o reconhecível.
Era o que sempre acontecia. Tinha novamente aceito a City como o útero e tornava a ele com grande alívio. Ele sabia que o útero era o lugar de onde a humanidade devia emergir e nascer. Por que sentia ele sempre mergulhar assim de volta?
E iria ser sempre assim? Iria realmente ser assim, embora ele pudesse chefiar grandes quantidades fora de City e da Terra, até às estrelas, e não teria condições, finalmente, de ir ele mesmo? Só iria sentir-se sempre em casa em City?
Rangeu os dentes... mas não adiantava pensar nisso.
Virou-se para o robô:
- Você foi trazido de carro até aqui, rapaz?
- Sim, patrão.
- E onde está ele?
- Não sei, patrão.
Baley virou-se para o sentinela:
- Guarda, este robô foi trazido aqui há duas horas. Que aconteceu com o carro que o trouxe?
- Senhor, estou de serviço a menos de uma hora. Realmente, era bobagem perguntar. O condutor não sabia quanto tempo o robô ia levar para achá-lo e por isso não esperou. Baley teve vontade de pedir um, mas lhe diriam que pegasse o expresso, seria mais rápido.
O único motivo de sua hesitação foi a presença de R. Geronimo. Ele não queria sua companhia no expresso, mas não podia esperar que o robô andasse até à sede, entre multidões hostis.
Não que tivesse escolha. Indubitavelmente, o Comissário não ansiava por facilitar-lhe as coisas. Devia estar aborrecido por não tê-lo à mão, de folga ou não.
- Por aqui, rapaz - disse Baley.
City tinha mais de 5 mil quilômetros quadrados e possuía 400 quilômetros de expresso, além de centenas de quilômetros de ramais, para atender a bem mais de 20 milhões de pessoas. A intricada rede viária desenvolvia-se em oito níveis e havia centenas de correspondências com vários graus de complexidade.
Como um homem comum, Baley devia conhecer todas e conhecia. Se fosse colocado, vendado, em qualquer esquina de City, ao ser-lhe retirada a venda, podia facilmente dirigir-se a qualquer setor que lhe fosse indicado.
Não havia, portanto, dúvida de que ele soubesse como chegar à sede. Havia oito caminhos possíveis a seguir, porém, durante um instante hesitou sobre qual estaria menos cheio àquela hora. Apenas por um instante. Depois resolveu-se e disse: - Venha comigo, rapaz. O robô seguiu-lhe docilmente as pegadas. Viraram-se para um alimentador que passava e Baley agarrou-se a um dos balaústres verticais: branco, quente e preparado para oferecer um bom apoio. Baley não queria sentar, não iriam demorar muito.
O robô tinha esperado pelo gesto rápido de Baley antes de colocar a mão no mesmo balaústre. Ele podia perfeitamente ficar em pé sem agarrar - não era difícil manter o equilíbrio - porém Baley não queria proporcionar uma oportunidade de ficarem separados. Era responsável pelo robô e não desejava arriscar-se a ser convidado a repor a perda financeira de City se alguma coisa acontecesse a R. Geronimo.
O alimentador tinha algumas outras pessoas a bordo e todos os olhos viraram-se com curiosidade - e inevitavelmente - para o robô. Baley percebeu cada um desses olhares.
Baley tinha ar de autoridade e os olhos que se encontravam com os dele afastavam-se, preocupados.
Baley tornou a gesticular quando pulou do alimentador. Tinha atingido as faixas e estavam movendo-se à mesma velocidade da faixa ao lado e por isso não lhe foi preciso diminuir a sua. Baley pulou para essa faixa ao lado e sentiu o golpe de ar tão logo ficaram fora da proteção do envoltório de plástico.
Inclinou-se ao vento com a facilidade da longa prática, erguendo um braço para quebrar sua força na altura dos olhos. Passou pelas faixas na direção do cruzamento com o Caminho Expresso e depois começou a subir pela faixa veloz que o bordejava.
Ouviu o grito adolescente de "Robô!" (ele também já tinha sido adolescente) e sabia exatamente o que ia acontecer. Um grupo deles (dois, três ou meia dúzia) enxamearia pelas faixas, acima e abaixo do robô, e dariam um jeito do robô tropeçar e cair, ressoando. Depois, se fossem levados perante a lei, qualquer dos adolescentes detidos afirmaria que o robô tinha se chocado com ele e era uma ameaça nas faixas... sendo indubitavelmente libertado.
O robô não podia se defender no primeiro caso, nem testemunhar no segundo.
Baley agiu rapidamente e ficou entre o primeiro adolescente e o robô. Pulou para uma faixa mais veloz, ergueu mais o braço como que para se adaptar à crescente rapidez do vento e, dessa forma, o rapaz foi empurrado para uma faixa mais lenta, para a qual não estava preparado.
- Ei! - berrou o rapaz, quando perdeu o equilíbrio.
Os outros pararam, avaliaram rapidamente a situação e desistiram.
- Para o Caminho Expresso, rapaz - disse Baley.
O robô teve uma ligeira hesitação. Não era permitido robôs desacompanhados no Expresso. A ordem de Baley tinha sido firme, porém, e ele entrou no veículo. Baley o seguiu, aliviando assim a pressão no robô.
Baley moveu-se bruscamente entre os que estavam em pé, empurrando R. Geronimo à sua frente, dirigindo-se ao nível superior, menos cheio. Segurou-se a um suporte e manteve um pé firmemente pousado no do robô, novamente mantendo abaixado o contato visual.
Quinze e meio quilômetros depois, estava na parada mais próxima da sede da Polícia e R. Geronimo saltou com ele. Não tinha sido molestado, Baley entregou-o na porta, onde lhe foi dado um recibo. Examinou cuidadosamente a data, a hora e o número de série do robô, colocando depois o recibo na carteira. Antes do fim do dia, iria conferi-lo, para ter certeza de que a transação tinha sido computo-registrada.
Agora estava indo ver o Comissário, ao qual conhecia bem. Qualquer falha da parte de Baley era passível de rebaixamento. Era um homem duro. Considerava as vitórias passadas de Baley como uma ofensa pessoal.
O Comissário chamava-se Wilson Roth. Estava no cargo havia dois anos e meio, desde que Julius Enderby tinha se demitido, logo que a fúria provocada pelo assassinato de um Espacial tinha diminuído e a demissão pôde ser oferecida sem perigo.
Baley jamais se conformou com a mudança. Julius, com todos os seus defeitos, apesar de superior, era amigo, Roth não passava de superior. Nem mesmo era nativo de City. Não daquela City. Fora trazido de fora.
Roth não era invulgarmente alto nem gordo. Tinha, no entanto, a cabeça grande, que estava plantada num pescoço ligeiramente inclinado para a frente. Isso o tornava pesado: corpulento e cabeçudo. Tinha também as pálpebras caídas, sombreando os olhos.
Parecia estar sempre sonolento, porém jamais perdia alguma coisa. Baley percebeu isso logo que Roth ocupou o cargo. Não tinha a menor ilusão de que Roth gostasse dele. E muito menos ainda de que gostasse de Roth.
Roth não se mostrou insolente - jamais era - mas suas palavras também não transpiravam satisfação.
- Baley, por que é tão difícil encontrá-lo? - perguntou. com voz cuidadosamente respeitosa, respondeu:
- É minha tarde de folga, Comissário.
- Sim, sua prerrogativa C-7. Ouviu falar em um ondulante, não? Uma coisa que recebe mensagens oficiais? Você é obrigado a manter contato, mesmo em sua folga.
- Sei muito bem disso, Comissário, porém não mais existem regulamentos referentes ao uso de ondulantes. Podemos ser contatados sem sua utilização.
- Dentro de City, é verdade, mas você se encontrava no Exterior... ou me enganei?
- Não se enganou. Comissário. Eu estava no Exterior. Os regulamentos não estabelecem que em tais casos eu deva usar um ondulante.
- Está se abrigando sob a letra do estatuto, não é?
- É, Comissário - respondeu Baley calmamente.
O Comissário levantou-se, um homem poderoso e vagamente ameaçador, indo sentar-se sobre a mesa. A janela para o Exterior, instalada por Enderby, havia muito tinha sido obstruída e recebido uma camada de tinta. Na sala sem janela (mais quente e confortável por causa disso), o Comissário parecia maior.
Sem levantar a voz, o Comissário disse:
- Acho que você confia na gratidão da Terra, Baley.
- Confio em realizar meu trabalho. Comissário, da melhor forma possível e de acordo com os regulamentos.
- E na gratidão da Terra, quando infringe o espírito desses regulamentos.
Baley não respondeu. O Comissário prosseguiu:
- Seu trabalho foi muito bom no caso do assassinato de Sarton, há três anos.
- Obrigado, Comissário - respondeu Bailey. - Acho que o arrasamento da Cidade Espacial foi conseqüência disso.
- Foi... coisa, aliás, aplaudida por toda a Terra. Você também foi considerado como tendo feito um bom trabalho em Solaria há dois anos, e antes que você me lembre, resultou na revisão dos termos dos tratados comerciais com os mundos Espaciais, com enorme vantagem para a Terra.
- Acredito que isso esteja registrado, senhor.
- E como decorrência, você virou um grande herói.
- Nunca reivindiquei isso.
- Você teve duas promoções, cada uma em conseqüência de cada caso. Houve até um drama na hiperonda, baseado nos acontecimentos de Solaria.
- Produção feita sem minha permissão e contra a minha vontade. Comissário.
- O que, não obstante, transformou-o numa espécie de herói. Baley encolheu os ombros.
O Comissário, tendo esperado alguns segundos por um comentário, prosseguiu:
- Mas você nada fez de importante em quase dois anos.
- É natural que a Terra pergunte o que fiz por ela ultimamente.
- Exatamente. Ela provavelmente perguntará. Ela sabe que você é o cabeça dessa nova moda de aventurar-se no Exterior, de brincar com o solo e fingir ser robô.
- Isso é permitido.
- Não só permitido como admirado. É possível que mais pessoas o considerem tanto excêntrico quanto heróico.
- Isso talvez esteja de acordo com minha própria opinião de mim mesmo - disse Baley.
- O público tem sabidamente má memória. No seu caso, o heroísmo vai desaparecer rapidamente por detrás da excentricidade e assim, se cometer um engano, estará numa séria enrascada. A reputação sobre a qual você se apóia...
- Com o devido respeito, Comissário, não me apóio nela.
- A reputação sobre a qual o Departamento de Polícia acha que você se apóia não vai salvá-lo e eu não tenho condições de fazê-lo.
A sombra de um sorriso perpassou momentaneamente pelas feições teimosas de Baley.
- Não desejo, Comissário, que o senhor arrisque sua posição numa desesperada tentativa de me salvar.
O Comissário encolheu os ombros e exibiu um sorriso igualmente sombrio e fugaz.
- Não se preocupe com isso.
- Então por que está me dizendo tudo isso, Comissário?
- Para preveni-lo. A minha intenção não é destruí-lo, acredite, mas apenas fazer-lhe uma advertência. Você está sendo envolvido num assunto muito delicado, onde poderá facilmente cometer um engano, daí eu o prevenir para que não o cometa.
Ao terminar, seu rosto distendeu-se num inequívoco sorriso, ao qual Baley não correspondeu, mas perguntou:
- Pode me informar que assunto tão delicado é esse?
- Não sei.
- Envolve Aurora?
- R. Geronimo foi instruído para lhe dizer que sim, se precisasse, mas nada sei a respeito.
- Então, Comissário, como pode dizer que é um assunto muito delicado?
- Ora, Baley, você é um investigador de mistérios. O que faz um membro do Departamento de Justiça da Terra vir a City, quando você poderia mais facilmente ser chamado a Washington, como há dois anos, por causa do incidente de Solaria? E o que faz a pessoa da Justiça fechar o semblante e ficar irritada e impaciente por você não ter sido encontrado imediatamente? Sua decisão de não estar disponível foi um erro, do qual não tenho a menor responsabilidade. Talvez não seja fatal em si, mas acho que você deu um passo em falso.
- No entanto, o senhor está me atrasando - disse Baley, enrugando a testa.
- De fato, não. O funcionário da Justiça está se arrumando... você sabe como os Telurianos são vaidosos. Vamos encontrá-lo assim que ele terminar. A notícia da sua chegada foi-lhe comunicada e portanto continue esperando, como eu.
Baley esperou. Ele soube, na época, que o drama da hiperonda, exibido contra sua vontade, embora pudesse ter ajudado a posição da Terra, o tinha arruinado no Departamento. Ele fora atirado, em relevo tridimensional, contra a chatice bidimensional da organização, tornando-se a partir daí um homem marcado.
Fora elevado à mais alta posição e obteve os maiores privilégios, o que fez crescer a hostilidade do Departamento contra ele. E quanto mais subissse, mais facilmente seria esfacelado em caso de queda.
Se ele cometesse um engano...
O funcionário da Justiça entrou, olhou em volta distraidamente, caminhou até o outro lado da escrivaninha de Roth e sentou-se. Como membro do mais alto escalão, o funcionário comportou-se adequadamente. Roth, calmamente, ocupou uma cadeira em segundo plano.
Baley permaneceu em pé, esforçando-se para que o rosto não revelasse surpresa.
Roth poderia tê-lo avisado, mas não o fizera. Havia escolhido clara e deliberadamente suas palavras, para não dar uma pista.
O funcionário era mulher.
Não havia motivo para não ser. Qualquer mulher podia ser funcionária. O Secretário-Geral podia ser mulher. Havia mulheres na força policial, até uma no posto de capitão.
Assim, era compreensível que, sem ser avisado, alguém não esperasse aquilo. Houve ocasiões na história em que as mulheres ocuparam em grande número postos na administração.
Baley sabia disso, era um bom conhecedor da história. Mas agora não era uma daquelas ocasiões.
Ela era bastante alta e sentou-se empertigada na poltrona. com seu uniforme não muito diferente do de um homem, a mulher não usava maquilagem ou sequer estava penteada na moda. O que revelava seu sexo imediatamente eram os seios, cuja proeminência não procurou esconder.
Era quarentona, de feições regulares e bem delineadas. Atraente em sua meia-idade, sem fios brancos visíveis no cabelo preto.
- Você é o Detetive Elijah Baley, Classificação C-7. Era uma afirmação e não uma pergunta.
- Sim, senhora - respondeu Baley, apesar disso.
- Sou a Subsecretária Lavinia Demachek. Você não se parece muito com o daquele drama da hiperonda a seu respeito.
Baley ouvia isso com freqüência.
- Eles poderiam muito bem me retratar como eu sou e conseguir uma audiência maior, senhora - retrucou Baley secamente.
- Não tenho certeza disso. Você é mais forte que o ator usado e não tem aquele rosto de criança.
Baley hesitou um instante e resolveu aproveitar a oportunidade... ou talvez sentiu que não podia resistir a aproveitá-la. com ar grave, disse:
- A senhora tem bom gosto.
Ela riu e Baley soltou a respiração bem devagar. Ela respondeu:
- Gosto de pensar que tenho. Bem, o que pretendia, fazendo-me esperar?
- Não sabia da sua vinda, senhora, e eu estava de folga.
- Que passa no Exterior, segundo me disseram.
- É verdade, senhora.
- Você é um desses excêntricos a respeito dos quais meu gosto não é tão bom. Quero perguntar-lhe se é um desses entusiastas.
- Sou, senhora.
- Pensa emigrar um dia e descobrir novos mundos no deserto da Galáxia?
- Talvez eu não, senhora. Talvez seja velho demais, mas...
- Que idade tem?
- Quarenta e cinco, senhora.
- Bem, parece ter. Acontece que eu também tenho quarenta e cinco.
- Não parece, senhora.
- Mais velha ou mais moça? - Deu uma gargalhada e depois disse: - Bem, vamos parar de brincadeiras. Acha que sou velha demais para ser pioneira?
- Ninguém pode ser pioneiro em nossa sociedade sem treinar no Exterior. O treino funciona melhor nos jovens. Meu filho, espero, irá um dia para algum outro mundo.
- Realmente? O senhor sabe, é claro, que a Galáxia pertence aos mundos dos Espaciais.
- Só há cinqüenta deles, senhora. Existem milhões de mundos na Galáxia que são habitáveis, ou podem vir a sê-lo, e que provavelmente não possuem vida nativa inteligente.
- Sim, mas nenhuma nave pode deixar a Terra sem a permissão dos Espaciais.
- Isso pode ser conseguido, senhora.
- Não partilho do seu otimismo, Sr. Baley.
- Conversei com Espaciais que...
- Sei disso - retrucou Demachek. - Meu superior é Albert Minnim, que há dois anos enviou-o a Solaria. - Ela se permitiu um ligeiro arquear de lábios. - Um ator fez o pequeno papel dele naquele drama de hiperonda, ficando muito parecido com ele, como lembro. Minnim não gostou, coisa que também lembro.
Baley mudou de assunto.
- Pedi ao Subsecretário Minnim...
- Ele foi promovido, como sabe.
Baley compreendeu totalmente a importância dos graus de classificação.
- Qual seu novo título, senhora?
- Vice-Secretário.
- Obrigado. Pedi ao Vice-Secretário Minnim que obtivesse permissão para que eu visite Aurora, para me ocupar desse assunto.
- Quando?
- Não muito depois da minha volta de Solaria. Desde então, renovei o pedido por duas vezes.
- Mas não recebeu resposta favorável?
- Não, senhora.
- Está surpreso?
- Desapontado, senhora.
- Não diga isso. - Recostou-se ligeiramente na poltrona. - Nossas relações com os mundos dos Espaciais são muito delicadas. O senhor pode sentir que suas duas façanhas detetivescas facilitaram a situação... o que de fato aconteceu. Aquele horrível drama da hiperonda também ajudou. A distensão total, porém, foi deste tamanho – aproximou o polegar do indicador - em vez de ser deste tamanho - completou afastando bastante as mãos.
- Nessas circunstâncias - prosseguiu - mal podemos correr o risco de enviá-lo a Aurora, o principal mundo dos Espaciais, tendo você feito, talvez, alguma coisa que possa ter criado uma tensão interestelar.
Os olhos de Baley fixaram os dela.
- Estive em Solaria e não causei problemas. Pelo contrário...
- Sim, eu sei, mas esteve lá a pedido dos Espaciais, o que é muito diferente de ir lá a nosso pedido. Você não pode deixar de ver isto.
Baley permaneceu em silêncio.
A Subsecretária resmungou baixinho por ele não ter ficado surpreendido e disse:
- A situação piorou desde que seus pedidos foram encaminhados pelo Vice-Secretário e muito corretamente ignorados. Piorou consideravelmente no último mês.
- Essa é a causa desta conferência, senhora?
- Está ficando impaciente, senhor? - Dirigiu-se a ele com ironia, com a entonação de um superior. - Está me forçando a chegar ao ponto?
- Não, senhora.
- Claro que sim. E por que não? Começo a me tornar tediosa. Bem, Vou chegar ao ponto perguntando-lhe se conhece o Dr. Han Fastolfe.
Baley respondeu cautelosamente:
- Encontrei-o uma vez, há quase três anos, na que era então Spacetown.
- Acho que o senhor gosta dele.
- Foi amistoso... tratando-se de um Espacial.
Ela tornou a resmungar baixinho.
- Imagino que sim. Sabe que ele desfruta de um importante poder político em Aurora, nos últimos dois anos?
- Soube que ele estava no governo por um... um velho companheiro.
- R. Daneel Olivaw, seu amigo robô espacial?
- Meu ex-associado, senhora.
- Na ocasião em que o senhor resolveu um pequeno problema relativo a dois matemáticos a bordo de uma nave Espacial?
Baley confirmou de cabeça.
- Sim, senhora.
- Nós nos mantemos informados, como sabe. O Dr. Han Fastolfe tem sido mais ou menos o farol-guia do governo auroreano nestes dois anos, uma figura importante noLegislativo Mundial e está sendo mesmo falado como o possível futuro Presidente. O Presidente, compreende, é o cargo mais próximo de um chefe executivo que os auroreanos têm.
- Sim, senhora - respondeu Baley, imaginando quando ela ia tocar no assunto verdadeiramente delicado a que o Comissário tinha se referido.
Demachek não parecia ter pressa.
- Fastolfe é um moderador - disse. - É assim que ele mesmo se denomina. Acha que Aurora e os mundos Espaciais em geral foram muito longe em sua direção, como você talvez ache que nós, na Terra, fomos na nossa. Ele deseja dar um passo atrás no campo da robótica e uma modificação mais rápida de gerações, e de aliança e amizade com a Terra. Naturalmente, nós o apoiamos, porém sem barulho. Se formos muito exuberantes em nosso afeto, isso poderá ser muito bem o beijo da morte para ele.
- Acredito - retrucou Baley - que ele deseja apoiar a exploração e colonização de outros mundos pela Terra.
- Também acredito. Na minha opinião ele lhe disse o mesmo.
- De fato, senhora, quando fomos apresentados. Demachek juntou as mãos e colocou as pontas dos dedos sob o queixo.
- Acha que ele representa a opinião pública nos mundos Espaciais?
- Não sei dizer, senhora.
- Temo que não. Os que estão ao seu lado são indiferentes. Os contra são uma ardente legião. Apenas sua habilidade política e seu entusiasmo pessoal mantêm-no tão perto do poder como se encontra. Sua maior fraqueza, é claro, é sua simpatia pela Terra. Isso é constantemente usado contra ele e influencia muitos dos que partilham seus pontos de vista a respeito de outras coisas. Se for mandado a Aurora, qualquer engano que cometer ajudará a fortalecer os sentimentos antiterrestres e, conseqüentemente, enfraquecerá Fastolfe, talvez fatalmente. A Terra não pode de maneira alguma correr esse risco.
- Compreendo - murmurou Baley.
- Fastolfe está querendo correr o risco. Foi ele quem providenciou sua ida a Solaria quando seu poderio político mal estava começando e quando ainda era muito vulnerável.
Mas agora ele só tem a perder seu poder pessoal, enquanto que nós temos de nos preocupar com o bem-estar de mais de oito bilhões de terráqueos. É isso o que torna a atual situação política quase insuportavelmente delicada.
Fez uma pausa e finalmente Baley foi forçado a fazer a pergunta.
- A que situação a senhora está se referindo?
- Parece - disse Demachek - que Fastolfe está metido num escândalo grave e sem precedentes. Se estiver enrascado, há possibilidade de caminhar para a destruição política, numa questão de semanas. Se ele for sobre-humanamente inteligente, talvez se mantenha por alguns meses. Um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, poderá ser destruído como poder político em Aurora: e isso será um verdadeiro desastre para a Terra, como pode imaginar.
- Posso saber de que ele é acusado? Corrupção? Traição?
- Nenhuma coisa tão pequena assim. Sua integridade pessoal em qualquer desses casos é indiscutível, mesmo para seus inimigos.
- Então um crime passional? Assassinato?
- Não exatamente assassinato.
- Não compreendo, senhora.
- Há seres humanos em Aurora, Sr. Baley. E também há robôs, a maioria parecido com os nossos, embora não muito mais avançados na maior parte. Contudo, há alguns poucos robôs humaniformes, tão humaniformes que podem ser tomados por humanos.
Baley balançou a cabeça.
- Sei disso muito bem.
- Suponho que destruir um robô humaniforme não seja exatamente um assassinato, no estrito sentido da palavra.
Baley inclinou-se para a frente, e arregalando os olhos, gritou:
- Jehoshaphat, mulher! Pare de brincar. Está me dizendo que o Dr. Fastolfe matou R. Daneel?
Roth pulou em pé com a intenção de avançar para Baley, mas foi contido por um gesto da Subsecretária Demachek, que não pareceu zangada.
- Nestas circunstâncias - disse ela - perdôo seu desrespeito, Baley. Não, R. Daneel não foi morto. Ele não é o único robô humaniforme em Aurora. Outro robô semelhante, e não R. Daneel, foi assassinado, se deseja usar a expressão amplamente. Para ser mais precisa, sua mente foi totalmente destruída, ele foi colocado num permanente e irreversível robloqueio.
- E acusaram o Dr. Fastolfe de fazer isso? - perguntou Baley.
- É o que afirmam os inimigos dele. Os extremistas, que desejam que apenas os Espaciais se espalhem pela Galáxia e querem a extinção dos terráqueos no Universo, estão dizendo isso. Se esses extremistas puderem manipular outra eleição dentro das próximas semanas, terão certamente o controle total do governo, com resultados incalculáveis.
- Por que esse robloqueio é tão importante politicamente? Não compreendo.
- Pessoalmente, não sei bem - disse Demachek. - Não pretendo compreender a política de Aurora. Sei que os humaniformes estão de certa forma envolvidos nos planos extremistas e que a destruição os enfureceu. - Franziu o nariz. - Acho a política deles muito confusa e apenas o enganaria, se tentasse interpretá-la.
Baley esforçou-se e tratou de se controlar diante do olhar fixo da Subsecretária. Em voz baixa, disse:
- Por que estou aqui?
- Por causa de Fastolfe. Já uma vez o senhor foi ao espaço para solucionar um assassinato e conseguiu. Fastolfe deseja que o senhor tente novamente. O senhor deve ir a Aurora descobrir o que provocou o robloqueio. Ele acha que é sua última possibilidade de derrotar os extremistas.
- Não sou roboticista e nada conheço de Aurora...
- O senhor também nada conhecia de Solaria e no entanto deu um jeito. O ponto é, Baley, que estamos ansiosos para descobrir o que realmente aconteceu. Não queremos Fastolfe liquidado. Se acontecer, a Terra será objeto de uma espécie de hostilidade desses extremistas Espaciais, provavelmente maior que tudo o que já sofremos. Não queremos que isso aconteça.
- Não posso assumir essa responsabilidade, senhora. A tarefa é...
- Vizinha do impossível. Sabemos disso, mas não temos escolha. Fastolfe insiste... e por detrás dele, no momento, está o governo auroreano. Se se recusar a ir ou se recusarmos a deixá-lo ir, teremos de enfrentar a fúria de Aurora. Se concordar em ir e tiver sucesso, estaremos salvos e o senhor será devidamente recompensado.
- E se eu for... e falhar?
- Faremos o possível para considerar ser sua a culpa e não da Terra.
- Em outras palavras, a pele do funcionalismo estará salva.
- Uma forma mais bondosa de apresentar o problema - retrucou Demachek - e atirá-lo aos lobos na esperança de que a Terra não sofra muito. Um homem não é um mau preço a pagar pelo nosso planeta.
- Parece-me que uma vez que estou certo de falhar, posso muito bem não ir.
- Você sabe muito bem - disse Demachek suavemente - que Aurora mandou chamá-lo e você não pode recusar. E por que recusaria? Há dois anos vem tentando ir a Aurora e tem amargurado seu fracasso em obter permissão.
- Eu queria ir em paz, para conseguir ajuda para a colonização de outros mundos, e não para...
- Você ainda pode tentar encontrar ajuda para seu sonho de colonização de outros mundos, Baley. Afinal de contas, imagine que consiga. É possível, enfim. Nesse caso, Fastolfe lhe ficará muito grato e poderá fazer bem mais por você que por qualquer outro. E nós ficaremos pessoalmente agradecidos pela sua ajuda. Não vale a pena o risco e até um maior? Por menores que sejam suas possibilidades de sucesso se for, elas serão zero se não for. Pense nisso, Baley, mas, por favor... não demore muito.
Baley comprimiu os lábios e finalmente, percebendo que não havia alternativa, perguntou:
- De quanto tempo disponho para...
Demachek respondeu, calmamente:
- Ora. Não lhe expliquei que não temos escolha... nem tempo? Você parte - olhou o relógio de pulso - dentro de exatamente seis horas.
O espaçoporto ficava no extremo oriental de City, num setor completamente vazio que era, estritamente falando, Exterior. O que aliviava um pouco o desconforto era o fato de os balcões de passagens e as salas de espera serem realmente em City e a chegada à nave se processar utilizando-se um veículo que percorria uma trilha coberta. Tradicionalmente, todas as decolagens eram feitas à noite, de forma a que o manto da escuridão diminuísse o efeito do Exterior.
O espaçoporto não era muito freqüentado, considerando-se o caráter populoso da Terra. Os terráqueos raramente deixavam o planeta e o trânsito consistia quase inteiramente de atividade comercial organizada por robôs e Espaciais.
Elijah Baley, esperando a nave ficar pronta para ser ocupada, sentiu-se já separado da Terra.
Bentley sentou-se ao seu lado, fazendo-se um silêncio pesado entre eles. Finalmente, Ben falou:
- Acho que mamãe não vai querer vir. Baley balançou a cabeça.
- Também acho. Lembro de como sua mãe ficou quando fui a Solaria. Isto não é diferente.
- Você tratou de deixá-la calma?
- Fiz o que pude, Ben. Ela pensa que Vou me arrebentar num desastre espacial ou que os Espaciais me matarão assim que eu chegar a Aurora.
- Você voltou de Solaria.
- O que não a torna menos desejosa de que eu me arrisque uma segunda vez. Ela acha que a sorte pode sumir. Contudo, ela se contém... Fique por perto, Ben. Passe algum tempo com ela e trate de não falar sobre partir para a colonização de um novo planeta. É isso o que realmente a aflige, você sabe. Ela pressente que você vai deixá-la num destes anos. Ela sabe que não poderá ir e assim nunca mais o verá.
- É verdade - concordou Ben. - Talvez a coisa se passe desse modo.
- Você talvez possa enfrentar isso facilmente, porém ela não, e assim não discuta o assunto na minha ausência. Concorda?
- Sim. Acho que mamãe está um tanto preocupada com Gladia.
Baley encarou-o com firmeza.
- Você esteve...
- Eu não disse uma palavra a respeito. Porém ela viu aquele espetáculo de hiperonda e sabe que Gladia está em Aurora.
- E daí? É um planeta enorme. Você acha que Gladia Delmarre estará me esperando no espaçoporto?... Jehoshaphat, Ben, sua mãe não sabe que aquela reconstituição em
hiperonda é noventa por cento ficção?
Ben mudou de assunto com evidente esforço.
- Gozado, você aqui sentado sem nenhuma bagagem.
- Estou sentado aqui com muita coisa. Estou vestindo roupas, não é verdade? Eles se livrarão delas assim que eu estiver a bordo. Tão logo tiradas, para serem quimicamente tratadas, serão jogadas no espaço. Depois, me darão um guarda-roupa totalmente novo, assim que eu tiver sido fumigado pessoalmente, lavado e esfregado, por dentro e por fora. Já passei por isso antes.
Houve um novo silêncio e depois Ben disse:
- Sabe, papai... - e parou repentinamente. Fez nova tentativa: - Sabe, papai... - sem sucesso.
Baley encarou-o com firmeza.
- Que está querendo dizer, Ben?
- Papai, sinto-me como um completo idiota, dizendo isto, mas acho que me sentirei melhor falando. Você não é o tipo heróico. De fato, nunca pensei que fosse. Você é um sujeito agradável e o melhor pai que possa existir, mas não o tipo heróico.
Baley resmungou.
- No entanto - disse Ben - quando se deixa de pensar assim, foi você quem tirou Spacetown do mapa, foi você quem colocou Aurora do nosso lado, foi você quem começou todo esse projeto de colonizar outros mundos. Papai, você fez mais pela Terra que todos os membros do governo juntos. Então por que não é mais apreciado?
- Porque - respondeu Baley - não sou o tipo heróico, além de me terem impingido aquele estúpido drama da hiperonda, que fez de cada homem do Departamento um inimigo meu, alterou sua mãe e me deu uma reputação que não posso sustentar. - A luz piscou no seu receptor de pulso e ele levantou-se. Ben, preciso ir.
- Eu sei. Mas quero dizer-lhe, papai, que é isso que aprecio em você. E desta vez, quando voltar, será apreciado por todos e não apenas por mim.
Baley ficou emocionado. Balançou rapidamente a cabeça, colocou a mão no ombro do filho e murmurou:
- Obrigado. Cuide-se e também cuide de sua mãe enquanto eu estiver fora.
Afastou-se sem olhar para trás. Tinha dito a Ben que estava indo a Aurora para discutir o projeto de colonização. Se fosse verdade, poderia voltar vitorioso. Se fosse...
Pensou: voltarei em desgraça... se conseguir voltar.
Daneel
Aquela era a terceira viagem de Baley numa espaçonave e os dois anos decorridos em nada obscureceram sua lembrança das duas primeiras vezes. Sabia exatamente o que esperar.
Haveria o isolamento: o fato de ninguém vê-lo ou ter contato com ele, exceto (talvez) um robô. Haveria o constante tratamento médico: a fumigação e esterilização (não havia outra maneira de se expressar). Haveria a tentativa de prepará-lo para o contato com os Espaciais, que pensavam que os terráqueos eram sacos ambulantes de infecções variadas.
Contudo, também haveria diferenças. Não iria, desta vez, ficar muito temeroso com o processo. Certamente, a sensação de perda ao sair do útero seria menos apavorante.
Deveria ficar melhor preparado para ambientes mais amplos. Desta vez, pensou corajosamente (mas com um pequeno bolo no estômago por causa de tudo), podia ter mesmo condições para insistir em dar uma olhada no espaço.
Teria um aspecto diferente das fotografias do céu noturno, tomadas do Exterior? Pensou.
Lembrou de sua primeira vista da cúpula de um planetário (a salvo, dentro de City, claro). Não lhe deu a menor sensação de estar no Exterior, não sentiu nenhum desconforto.
Depois, houve as duas vezes - não, três - em que estivera fora, de noite, e viu as estrelas verdadeiras na verdadeira abóbada do céu. Tinha sido muito menos impressionante que a cúpula do planetário, mas houve um vento frio e uma sensação de distância, que tornou a experiência mais apavorante que a vivida na cúpula... porém menos assustadora, já que a escuridão era um reconfortante muro em torno dele.
Mas a visão das estrelas, da janela de uma espaçonave, seria mais parecida com a de um planetário ou com a do céu noturno da Terra? Ou seria uma sensação diferente de tudo?
Concentrou-se nisso, para afastar o pensamento de ter deixado Jessie, Ben e City.
Num gesto de quase bravata, recusou o carro e insistiu em andar a pequena distância do portão à nave, em companhia do robô que viera buscá-lo. Afinal de contas, não passava de uma arcada coberta.
A passagem fazia uma ligeira curva e ficou olhando para trás enquanto pôde ver Ben do outro lado. Ergueu a mão, negligente, como se estivesse tomando o Caminho Expresso para Trenton, e Ben balançou vigorosamente ambos os braços, mantendo levantados dois dedos de cada mão no antigo símbolo de vitória.
Vitória? Baley tinha certeza de que era um gesto inútil.
Mudou para outra idéia, que poderia servir para preencher seu pensamento e mantê-lo ocupado. Como seria embarcar numa espaçonave de dia, com o sol brilhando no seu casco metálico e com ele e todos os outros que estavam embarcando, expostos ao Exterior?
Como seria sentir-se totalmente consciente de um minúsculo mundo cilíndrico, que iria se separar de outro infinitamente maior, ao qual estava temporariamente ligado e que iria então se soltar num Exterior muito maior que qualquer Exterior na Terra, até que depois de um infindável período de Nada iria encontrar outro?...
Manteve-se tristonho num passo firme, não deixando aparecer nenhuma mudança de expressão... ou pelo menos pensando não ter deixado. Contudo, o robô ao seu lado fê-lo parar.
- Está doente, senhor? (Não "patrão", apenas "senhor". Era um robô auroreano).
- Estou bem, rapaz - disse Baley, com voz embargada. - Continuemos.
Manteve os olhos no chão e não tornou a erguê-los até sentir a nave projetando-se sobre ele.
Uma nave auroreana!
Tinha certeza. Delineada por um refletor quente, pairava enorme, mais graciosa e ainda mais poderosa que as naves solarianas.
Baley entrou e a comparação beneficiou Aurora. Sua cabina era mais espaçosa que as de dois anos antes: mais luxuosa, mais confortável.
Sabia exatamente o que estava para acontecer e despiu-se sem hesitação (Talvez as roupas fossem desintegradas por tochas de plasma. com certeza não as teria de volta quando retornasse à Terra... se retornasse. Não as recebera da primeira vez).
Não usaria outras roupas até ter sido banhado, examinado, medicado e tomado uma injeção. Quase saudou os humilhantes processos que lhe foram impostos. Afinal de contas, serviriam para alienar sua mente do que ia ter lugar. Mal tomou conhecimento da aceleração inicial e mal teve tempo para pensar no instante da saída da Terra e entrada no espaço.
Novamente vestido, observou os resultados, olhando-se, infeliz, num espelho. O tecido, fosse qual fosse, era macio, refletia e mudava de cor com qualquer alteração de ângulo. As pernas das calças eram justas nos tornozelos, sendo, por sua vez, cobertas pela parte de cima do calçado, que se adaptava maciamente aos pés. As mangas da blusa apertavam os pulsos e as mãos estavam cobertas por luvas finas e transparentes. A gola da blusa envolvia seu pescoço e tinha um capuz preso a ela que, se Baley quisesse, podia cobrir-lhe a cabeça. Estava sendo assim coberto não para seu próprio conforto, pensou, mas para reduzir o perigo que representava para os Espaciais.
Pensou, logo que olhou para a indumentária, que iria sentir-se desconfortavelmente encerrado, aquecido e suado. Mas não. Para seu enorme alívio, não sentiu nem mesmo suor.
Fez uma dedução compreensível. Virou-se para o robô que tinha caminhado com ele até à nave e ainda permanecia ali:
- Rapaz, estas roupas são termocontroladas?
- De fato são, senhor - respondeu o robô. - É um tecido para todas as estações e considerado muito aceitável. É também caríssimo. Poucos auroreanos têm condições de usá-lo.
- É mesmo? Jehoshaphat!
Olhou para o robô. Era um modelo bastante primitivo, não muito diferente dos da Terra, na verdade. Contudo, havia uma certa sutileza na expressão, que faltava aos robôs terráqueos. Por exemplo, aquele podia mudar de expressão, de uma forma limitada. Tinha esboçado um sorriso quando comunicou a Baley que este recebeu o que poucos em Aurora podiam se permitir.
A estrutura do seu corpo parecia de metal e no entanto tinha a aparência de uma coisa tecida, que se modificava levemente com o movimento, uma coisa com cores que combinavam e contrastavam agradavelmente. Em suma, a menos que fosse examinado cuidadosamente e muito de perto, o robô, embora decididamente não-humaniforme, parecia estar usando roupas.
- Como devo chamá-lo, rapaz? - perguntou Baley.
- Sou Giskard, senhor.
- R. Giskard?
- Se quiser, senhor.
- Há uma biblioteca nesta nave?
- Sim, senhor.
- Pode me arranjar livros-filmes sobre Aurora?
- De que espécie, senhor?
- Político-históricos, geográfico-científicos... tudo o que me facilite o conhecimento do planeta.
- Sim, senhor.
- E um visor.
- Sim, senhor.
O robô saiu pela porta de dois batentes e Baley balançou a cabeça, triste. Em sua viagem a Solaria, nunca lhe ocorreu passar o tempo disponível de travessia do espaço aprendendo alguma coisa útil. Tinha progredido um pouco nos últimos dois anos.
Experimentou a porta pela qual o robô tinha acabado de sair. Estava trancada e firme. Qualquer outra coisa o teria deixado espantadíssimo.
Examinou a cabina. Havia uma tela de hiperonda. Mexeu nos botões ao acaso, recebeu uma explosão de música, procurou finalmente abaixar o volume e ouviu, com ar desaprovador.
Confusa e dissonante. Os instrumentos da orquestra pareciam vagamente desafinados.
Tocou em outros botões e finalmente procurou mudar a imagem. Viu um jogo de futebol espacial, que se desenrolava evidentemente sob condições de gravidade zero. A bola voava em linha reta e os jogadores (muitos deles, de cada lado, com barbatanas nas costas, cotovelos e joelhos, que deviam servir para dirigir os movimentos) pairavam em volteios graciosos. Os movimentos estranhos fizeram Baley ficar tonto. Inclinou-se para a frente e tinha acabado de descobrir o interruptor quando ouviu a porta abrir-se às suas costas. Virou-se e, uma vez que só esperava ver R. Giskard, percebeu apenas tratar-se de alguém que não era o robô. Levou um pouco mais de um momento para perceber que estava vendo uma figura completamente humana, com um rosto largo e de maçãs salientes e cabelos castanhos curtos, penteados para trás, alguém vestido com roupas de padrões e cores convencionais.
- Jehoshaphat! - disse, com voz meio estrangulada.
- Colega Elijah - respondeu o outro, entrando, com um sorriso grave no rosto.
- Daneel! - gritou Baley, abraçando fortemente o robô. - Daneel!
Baley continuou a abraçar Daneel, a única coisa familiar inesperada na espaçonave, a única forte ligação com o passado. Manteve-se agarrado em Daneel, numa efusão de alívio e afeto.
Então, pouco a pouco, reuniu seus pensamentos e viu que abraçava não Daneel, mas R. Daneel, o Robô Daneel Olivaw. Apertava contra si um robô que lhe correspondia, permitindo ser abraçado, considerando que esse comportamento dava prazer a um ser humano e suportava esse gesto porque os potenciais positrônicos do seu cérebro
tornavam impossível repelir o abraço e assim desapontar e embaraçar o ser humano.
A insuperável Primeira Lei da Robótica estabelece: "Um robô não pode causar dano a um ser humano"... e repelir um gesto amistoso causaria dano.
Devagar, a fim de não revelar nenhum sinal da sua tristeza, Baley afastou-se. Chegou até a apertar os braços do robô para que não parecesse envergonhado disso.
- Não o vejo, Daneel - disse Baley - desde que levou aquela nave para a Terra, junto com aqueles dois matemáticos. Lembra?
- Lembro muito bem. Colega Elijah. É um prazer vê-lo.
- Você sente emoção, não é? - perguntou Baley, despreocupadamente.
- Não sei dizer o que sinto, Colega Elijah. Contudo, posso dizer que vê-lo faz com que meus pensamentos fluam com mais facilidade e que a pressão gravitacional no meu corpo parece atacar meus sentidos com menos insistência, além de outras mudanças que posso identificar. Imagino que o que sinto corresponde de certa forma ao que você sente quando tem prazer. Baley balançou a cabeça.
- O que quer que experimente quando me vê, velho colega, é preferível ao que sente quando não me vê, e isso me convém bastante... se acompanha meu pensamento. Mas como está aqui?
- Giskard Reventlov, tendo comunicado que você... - disse R. Daneel, fazendo uma pausa.
- Estava purificado? - perguntou Baley, irônico.
- Desinfetado - retrucou R. Daneel. - Então achei que podia entrar.
- No entanto, você certamente não teme infecções?
- De fato, Colega Elijah, mas outros nesta nave poderiam, do contrário, sentir-se mal com a minha aproximação. Os habitantes de Aurora são sensíveis à possibilidade de infecções, às vezes muito além de uma estimativa racional de probabilidades.
- Compreendo, mas a minha pergunta não é por que você está aqui neste momento, mas sim, por que você está aqui.
- O Dr. Fastolfe, de cujo estabelecimento faço parte, colocou-me a bordo da nave que foi buscá-lo, por vários motivos. Ele achou aconselhável que você ficasse logo à vontade no que ia ser certamente uma difícil missão para você.
- Foi muito gentil da parte dele. Agradeço-lhe. R. Daneel inclinou-se gravemente, em retribuição.
- O Dr. Fastolfe também achou que o encontro me daria... - o robô fez uma pausa - sensações adequadas.
- Você quer dizer prazer, Daneel.
- Desde que me seja permitido usar a expressão, sim. E como terceiro motivo, e o mais importante...
A porta tornou a abrir-se nesse instante e R. Giskard entrou.
Baley virou a cabeça e sentiu uma onda de aborrecimento. Não havia dúvida de que R. Giskard, com sua presença, acentuava de certa forma o robotismo de Daneel.
Daneel, tornou Baley a pensar subitamente, embora este fosse muito superior ao outro. Baley não queria que a condição robótica de Daneel fosse acentuada, ele não queria humilhar-se por sua incapacidade de olhar Daneel de outra forma que não a de um ser humano com uma linguagem um tanto afetada.
- Que é, rapaz? - perguntou, com impaciência.
- Eu trouxe os livros-filmes que pediu - respondeu R. Giskard - e também o visor, senhor.
- Bem. deixe-os aí. Deixe-os aí... e não precisa ficar. Daneel estará aqui comigo.
- Sim, senhor.
Os olhos do robô - brilhando levemente, como notou Baley, mas Daneel não. - viraram-se rapidamente para R. Daneel, como que esperando ordens de um superior.
- Será apropriado, amigo Giskard, ficar do lado de fora da porta - disse Daneel, calmamente.
- Ficarei, amigo Daneel - falou R. Giskard. Saiu e Baley disse, meio aborrecido:
- Por que ele deve ficar do outro lado da porta? Estou preso?
- No sentido de que não lhe é permitido misturar-se com a tripulação da nave no decorrer desta viagem, lamento ser forçado a dizer que é de fato prisioneiro - respondeu
R. Daneel. - Contudo, este não é o motivo da presença de Giskard... E agora devo dizerlhe que será aconselhável não se dirigir, Colega Elijah, a Giskard, ou a qualquer robô, como rapaz.
- Ele ofende-se com a palavra? - perguntou Baley, com ar de espanto.
- Giskard não se ofende com nenhuma ação de um ser humano. Simplesmente, "rapaz" não é um termo usado habitualmente em Aurora para se falar com robôs e seria desaconselhável criar atrito com os auroreanos, salientando sem intenção sem lugar de origem com hábitos de linguagem não essenciais.
- Como devo então chamá-lo?
- Como se dirige a mim, usando seu nome habitual de identificação. Que significa, afinal de contas, um simples som que identifica a pessoa a quem está se dirigindo e por que um som deve ser preferível a outro? Trata-se meramente de uma convenção. E também é hábito em Aurora referir-se a um robô como "ele", ou eventualmente "ela", em vez de "coisa". Também não é costume em Aurora usar a inicial "R.", exceto em condições formais, quando o nome todo do robô é apropriado... e mesmo assim, atualmente, é com freqüência omitida.
- Nesse caso... Daneel - Baley reprimiu o súbito impulso de dizer "R. Daneel" - como você distingue entre robôs e seres humanos?
- A distinção é normalmente evidente, Colega Elijah. Não parece haver necessidade de acentuá-la desnecessariamente. É pelo menos o ponto de vista auroreano, e já que pediu a Giskard filmes sobre Aurora, presumo que deseja familiarizar-se com as coisas auroreanas, como uma ajuda à tarefa que empreendeu.
- A tarefa que me foi imposta, sim. E se a diferença entre robô e ser humano não for evidente, Daneel? Como no seu caso?
- Então, para que fazer a distinção, a menos que a situação seja tal que se torne essencial fazê-la?
Baley respirou fundo. Ia ser difícil adaptar-se àquele fingimento auroreano de que os robôs não existem.
- Mas então - comentou - se Giskard não está aqui para me conservar prisioneiro, por que fica aí fora da porta?
- Ele cumpre ordens do Dr. Fastolfe, Colega Elijah. Giskard foi incumbido de protegê-lo.
- Me proteger? Contra o quê?... Ou contra quem?
- O Dr. Fastolfe não foi claro nesse ponto, Colega Elijah. Contudo, como as paixões humanas estão exacerbadas no caso de Jander Panell...
- Jander Panell?
- O robô cuja utilidade foi terminada.
- Em outras palavras, o robô que foi morto?
- Morto, Colega Elijah, é uma palavra normalmente aplicada a seres humanos.
- Mas em Aurora, as diferenças entre robôs e seres humanos são evitadas, não?
- Claro que sim! Não obstante, a possibilidade de diferença ou não no caso particular do término de funcionamento nunca foi levantada... que eu saiba. Não sei quais as regras.
Baley meditou sobre o assunto. Era um ponto sem importância, apenas uma questão de semântica. Todavia, queria experimentar a forma de pensar dos auroreanos. De outro modo, não chegaria a lugar nenhum.
- Um ser humano funcionando está vivo - ponderou calmamente. - Se essa vida for violentamente interrompida pela ação deliberada de outro ser humano, chamamos a isso "assassinato" ou "homicídio". "Assassinato" é uma palavra forte demais. Ao testemunhar subitamente uma violenta tentativa de pôr fim à vida de um ser humano, pode-se gritar "Assassinato"! Não é absolutamente a mesma coisa que gritar "Homicídio"! É uma palavra mais formal, menos emocional.
- Não compreendo a distinção que procura fazer, Colega Elijah - retrucou R. Daneel. - Uma vez que "assassinato" e "homicídio" são palavras usadas para significar o fim violento da vida de um ser humano, as duas podem ser permutáveis. Onde então a diferença?
- Das duas, Daneel, uma, gritada, gelará mais eficientemente o sangue de um ser humano que a outra.
- Por quê?
- Conotações e associações, o efeito sutil, não o significado no dicionário, mas anos de uso, a natureza das frases, condições e acontecimentos em que alguém experimentou o emprego de uma palavra, comparada com o da outra.
- Nada disso consta de minha programação - respondeu Daneel, com um curioso tom de desânimo pairando sobre a evidente falta de emoção com que se exprimiu (a mesma com que dizia tudo).
- Você aceita meu argumento, Daneel? - perguntou Baley. Daneel retrucou rapidamente, quase como se acabasse de estar diante da solução de um quebra-cabeça.
- Sem dúvida.
- Bem, então podemos dizer que um robô que está funcionando está vivo - falou Baley. - Muitos recusarão dar um sentido tão lato à palavra, mas estamos à vontade para procurar definições que nos convenham, se forem úteis. É fácil tratar um robô funcionando como vivo e será desnecessariamente complicado procurar inventar uma palavra nova para a condição ou evitar o uso de uma familiar. Por exemplo, você está vivo, Daneel?
Sem pressa e pausadamente, Daneel respondeu:
- Estou funcionando!
- Ora, se um esquilo, um besouro, uma árvore ou uma folha de relva estão vivos, por que você não estará? Nunca me ocorreria dizer, ou pensar, que estou vivo, mas que você está apenas funcionando, especialmente se devo passar um tempo em Aurora, onde deverei procurar tornar desnecessária as distinções entre um robô e eu mesmo.
Portanto, digo-lhe que estamos ambos vivos e peço-lhe que aceite minha palavra como verdadeira.
- Assim farei. Colega Elijah.
- E também podemos dizer que o término da vida robótica pela deliberada ação violenta de um ser humano é também "assassinato"? Podemos hesitar. Se o crime é o mesmo, o castigo também deve ser, porém estaria certo? Se o castigo pelo assassinato de um ser humano é a morte, pode-se realmente executar um ser humano que pôs fim a um robô?
- O castigo de um assassino é a psicossondagem, Colega Elijah, seguida da construção de uma nova personalidade. Foi a estrutura pessoal da mente quem cometeu o crime, não a vida do corpo.
- E qual é o castigo em Aurora por dar um fim violento ao funcionamento de um robô?
- Não sei, Colega Elijah. Tal incidente jamais aconteceu em Aurora, até onde posso saber.
- Desconfio que o castigo não será psicossondagem - disse Baley. - Que tal "roboticídio"?
- Roboticídio?
- Como a palavra usada para descrever o assassinato de um robô.
- Mas que tal o verbo derivado do substantivo, Colega Elijah? , Ninguém jamais diz "homicidar" e portanto não seria próprio dizer - "roboticidar".
- Tem razão. Teria de dizer "assassinar" em cada caso.
- Mas assassinar aplica-se especificamente a seres humanos. Por exemplo, ninguém assassina um animal.
- É verdade - retrucou Baley. - Como também ninguém assassina um ser humano acidentalmente e sim deliberadamente. O termo mais generalizado é "matar". Ele é tanto aplicado para morte acidental como para assassinato deliberado... e aplica-se a animais e seres humanos. Mesmo uma árvore pode ser morta por doença, e assim, por que um robô não pode ser morto, hem, Daneel?
- Os seres humanos e outros animais e plantas também, Colega Elijah, são todos coisas vivas - respondeu Daneel. - O robô é um artefato humano, tanto quanto este visor. Um artefato é "destruído", "estragado", "demolido", etc. Nunca é "morto".
- Mesmo assim, Daneel, direi "morto". Jander Panell foi morto.
- Por que deve uma diferença num vocábulo fazer diferença à coisa descrita? - retrucou Daneel.
- Qualquer nome que se dê a uma rosa, seu bom perfume continua sendo o mesmo. Não é isso, Daneel?
O robô fez uma pausa e depois disse:
- Não sei bem o que é o perfume de uma rosa, porém se esta, na Terra, é a flor comum assim chamada em Aurora e por seu "perfume" você quer se referir a uma propriedade dela que pode ser detectada, sentida ou medida por seres humanos, então certamente chamar uma rosa por outra combinação de sons e conservando o resto igual, não afetará o perfume ou qualquer de suas outras propriedades intrínsecas.
- É verdade. No entanto, mudanças de nome resultam em modificações da percepção no que toca aos seres humanos.
- Não vejo como, Colega Elijah.
- Porque os seres humanos são freqüentemente ilógicos, Daneel. Não é uma característica que mereça admiração.
Baley acomodou-se melhor em sua cadeira, manipulando o visor e permitindo que sua mente, durante uns minutos, se concentrasse em pensamentos particulares. A discussão com Daneel era em si útil, pois enquanto Baley brincava com um jogo de palavras, procurava esquecer que estava no espaço, que a nave prosseguia viagem até ficar bastante afastada dos centros habitados do Sistema Solar para dar o Salto no hiperespaço, para esquecer que, breve, estaria a milhões de quilômetros de distância da Terra, e não muito depois a vários anos-luz.
Ainda mais importante, havia conclusões positivas a serem tiradas. Era claro que a conversa de Daneel sobre os auroreanos não fazerem diferença entre robôs e seres humanos era enganadora. Os auroreanos podiam virtuosamente retirar a inicial "R.", abolir o uso de "rapaz" como forma de se dirigir aos robôs e de "coisa" costumeiramente, mas da resistência de Daneel a usar a mesma palavra para os fins violentos de um robô e de um ser humano (resistência inerente à sua programação, que era, por sua vez, a conseqüência natural das pretensões auroreanas de como Daneel devia se comportar), devia-se concluir que tudo não passava de mudanças superficiais. Em essência, os auroreanos eram tão decididos quanto os terráqueos na sua crença de que os robôs eram máquinas infinitamente inferiores aos seres humanos. Esse aspecto significava que sua formidável tarefa de encontrar uma útil resolução da crise (se isso afinal fosse possível), não seria dificultada por, pelo menos, uma incompreensão especial da sociedade auroreana.
Baley pensou se devia interrogar Giskard, para confirmar as conclusões que tirou dessa conversa com Daneel... mas, sem grande hesitação, resolveu que não. A mente simples e pouco sutil de Giskard não seria útil. No fim, se limitaria a "Sim, senhor", "Não, senhor". Era como interrogar um gravador.
Pois muito bem, resolveu Baley, continuaria com Daneel, que pelo menos era capaz de reagir favoravelmente a um toque sutil. Dirigiu-se ao robô:
- Daneel, examinemos o caso de Jander Panell que presumo ser, pelo que você expôs até agora, a primeira ocorrência de roboticídio na história de Aurora. O ser humano responsável, o matador, até agora não foi descoberto.
- Se considerarmos que foi um ser humano o responsável, sua identidade é desconhecida. Nisso você tem razão, Colega Elijah.
- E quanto ao motivo? Por que Jander Panell foi morto?
- Isso também não é sabido.
- Mas Jander Panell era um robô humaniforme, alguém como você e não como, por exemplo, R. Gis... quero dizer, Giskard.
- Isso é verdade. Jander era tão humaniforme quanto eu.
- Não pode ser então que tenha sido tentado um roboticídio?
- Não compreendo, Colega Elijah. Baley prosseguiu, meio impaciente:
- O matador não pode ter pensado que Jander era um ser humano, sendo a intenção um homicídio e não roboticídio?
Daneel sacudiu a cabeça devagar.
- Os robôs humaniformes são em aparência semelhante aos seres humanos, Colega Elijah, nos cabelos e poros da pele. Nossas vozes são inteiramente naturais, podemos fazer os gestos de mastigação e tudo o mais. Porém, há diferenças perceptíveis em nosso comportamento. Essas diferenças poderão diminuir com o tempo e com o aprimoramento técnico, mas por enquanto são muitas. Você e outros terráqueos não habituados com robôs humaniformes podem não notar facilmente essas diferenças, mas os auroreanos distinguem. Nenhum auroreano confundiria Jander, ou a mim, com um ser humano em momento algum.
- Poderia um outro Espacial não auroreano cometer um engano?
Daneel hesitou.
- Acho que não. Não estou falando em conseqüência de observação pessoal ou por conhecimento programado diretamente, mas estou programado para saber que todos os mundos dos Espaciais estão tão intimamente familiarizados com os robôs quanto Aurora. Alguns, como Solaria, até mais, e portanto deduzo que nenhum Espacial deixaria de ver a diferença entre humanos e robôs.
- Há robôs humaniformes nos outros mundos Espaciais?
- Não, Colega Elijah, até agora só existem em Aurora.
- Então outros Espaciais não estão intimamente familiarizados com robôs humaniformes e podem muito bem não perceber as diferenças e confundi-los com seres humanos.
- Não creio que isso seja provável. Mesmo os robôs humaniformes se portariam de maneira robótica em certos momentos, que qualquer Espacial reconheceria.
- E com certeza há Espaciais que não são tão inteligentes, experientes nem maduros como a maioria. Há crianças Espaciais, quando mais não seja, que não fariam a distinção.
- Certamente, Colega Elijah, que o... roboticídio... não foi cometido por alguém não-inteligente, inexperiente nem jovem. Absolutamente.
- Estamos procedendo a exclusões. ótimo. Se nenhum Espacial deixasse de ver a diferença, que tal um terráqueo? É possível que...
- Colega Elijah, quando chegar em Aurora, você será o primeiro terráqueo a pôr o pé no planeta, desde que terminou o período original de colonização. Todos os auroreanos vivos atualmente nasceram em Aurora ou, em alguns poucos casos, em outros mundos Espaciais.
- O primeiro terráqueo - murmurou Baley. - Estou honrado. Um terráqueo pode estar presente em Aurora sem o conhecimento dos auroreanos?
- Não! - respondeu Daneel, com tranqüila convicção.
- Você pode não ter, Daneel, conhecimento absoluto.
- Não! - reafirmou o robô, no mesmo tom da primeira negativa.
- Conclui-se, portanto - disse Bailey, com um encolher de ombros - que o roboticídio foi tentado para ser roboticídio e nada mais.
- Foi essa a conclusão, desde o início.
- Os auroreanos que concluíram assim desde o princípio - disse Baley - tinham todas as informações para começar. Eu as estou obtendo agora pela primeira vez.
- Meu comentário, Colega Elijah, não teve propósito pejorativo. Seria não reconhecer sua capacidade.
- Obrigado, Daneel. Sei que não houve menosprezo em seu comentário... Você disse há pouco que o roboticídio não foi cometido por alguém não inteligente, inexperiente ou jovem e isso está absolutamente certo. Examinemos seu comentário... Baley sabia que estava indo pelo caminho mais longo. Precisava. Considerando sua falta de compreensão dos métodos e maneiras de pensar dos auroreanos, não podia permitir-se tirar conclusões precipitadas. Se estivesse às voltas com um ser humano inteligente, essa pessoa provavelmente ficaria impaciente e deixaria escapar informações... além de considerar Baley um idiota na troca. Daneel, contudo, como robô, acompanharia Baley pacientemente pela estrada sinuosa.
Esse era um tipo de comportamento que identificava Daneel como robô, por mais humaniforme que fosse. Um auroreano podia ser capaz de considerá-lo robô pela simples resposta a uma pergunta banal. Daneel tinha razão quanto às diferenças sutis.
- Podemos - disse Baley - eliminar crianças, a maioria das mulheres e também muitos homens adultos, pela presunção de que o método do roboticídio exigiu grande força: que a cabeça de Jander foi talvez esmagada por um golpe violento ou que seu peito foi arrebentado. Imagino que isso não seria fácil para alguém que não fosse um ser humano especialmente grande e forte.
Pelo que Demachek tinha dito na Terra, Baley sabia que o roboticídio não tinha sido cometido dessa forma, mas como poderia ele dizer que a própria Demachek não tinha se enganado?
- Não seria absolutamente possível para nenhum ser humano - afirmou Daneel.
- Por quê?
- Certamente, Colega Elijah, você sabe que o esqueleto robótico é de natureza metálica e muito mais forte que os ossos humanos. Nossos movimentos são mais fortemente motorizados, rápidos e mais delicadamente comandados. A Terceira Lei da Robótica estabelece: "Um robô deve proteger sua própria existência." O ataque de um ser humano pode facilmente ser rechaçado. O humano mais forte pode ser imobilizado. Nem é provável que um robô seja apanhado desprevenido. Estamos sempre conscientes da presença dos seres humanos. De outra forma, não poderíamos preencher nossas funções.
- Ora, vamos, Daneel - disse Baley. - A Terceira Lei estabelece: "Um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira Lei." E esta determina: "Um robô não pode causar dano a um ser humano ou, pela inação, permitir que um ser humano seja ferido." Um ser humano pode ordenar a um robô que se destrua... e o robô terá então de usar toda a sua vontade para esmagar o próprio crânio. E se um ser humano atacar um robô, este não pode rechaçar o ataque sem causar dano ao ser humano, o que violaria a Primeira Lei.
- Você, suponho, está pensando nos robôs da Terra - replicou Daneel. - Em Aurora, ou em quaisquer dos mundos Espaciais, os robôs são olhados com mais consideração que na Terra, e em geral são mais complexos, versáteis e valiosos. A Terceira Lei é evidentemente mais forte em comparação com a Segunda nos Mundos Espaciais do que na Terra. Uma ordem de autodestruição será discutida e precisaria haver um motivo realmente legítimo para ser executada: um perigo claro e imediato. E rechaçando um ataque, a Primeira Lei não seria violada, pois os robôs auroreanos são bastante ágeis para imobilizar um ser humano sem machucá-lo.
- Suponha porém que um ser humano considere que, a menos que o robô não se destrua, ele, o ser humano, será destruído? O robô então não se destruiria?
- Um robô auroreano certamente poria em dúvida uma simples declaração com esse efeito. Teria de haver uma prova clara da possibilidade de destruição do ser humano.
- Um ser humano não poderia ser bastante sutil para conseguir provas de modo a levar um robô a pensar que aquele ser humano estava mesmo em perigo? É essa espécie de esperteza que seria necessária para levar você a eliminar os inexperientes, não-inteligentes e jovens?
Mas Daneel respondeu:
- Não, Colega Elijah, não é.
- Há algum erro no meu raciocínio?
- Nenhum.
- Então o erro pode estar na minha suposição de que ele foi fisicamente afetado. E isso, na realidade, não aconteceu. Não é?
- É, Colega Elijah.
Isso significava, pensou Baley, que Demachek tinha ido direto aos fatos.
- Nesse caso, Daneel, Jander foi mentalmente estragado. Robloqueio! Total e irreversível!
- Robloqueio?
- Abreviação para bloqueio-robótico, a queda permanente do funcionamento das vias positrônicas.
- Em Aurora não usamos a palavra "rebloqueio", Colega Elijah.
- Usam o quê?
- Dizemos "congelamento mental".
- Em outras palavras, é a descrição do mesmo fenômeno.
- Será melhor, Colega Elijah, que use nossa expressão ou os auroreanos poderão não entendê-lo e a conversa se tornará impossível. Você afirmou há pouco que palavras diferentes fazem diferença.
- Muito bem. Direi "congelamento mental"... Esse fenômeno pode ocorrer espontaneamente?
- Pode, mas as possibilidades são infinitamente pequenas, dizem os roboticistas. Como robô humaniforme, posso declarar que jamais experimentei algum efeito que se aproximasse do congelamento mental.
- Então pode-se concluir que um ser humano criou deliberadamente uma situação na qual ocorreu uma congelamento mental.
- É isso precisamente o que a oposição ao Dr. Fastolfe sustenta, Colega Elijah.
- E visto que isso exige treino robótico, experiência e habilidade, os não-inteligentes, inexperientes e jovens não podem ser responsáveis.
- É esse o raciocínio natural, Colega Elijah.
- Será possível relacionar o número de humanos em Aurora com suficiente capacidade e assim reunir um grupo de suspeitos não muito numerosos?
- Isso na realidade já foi feito, Colega Elijah.
- E qual a extensão da lista?
- A mais extensa contém apenas um nome.
Foi a vez de Baley fazer uma pausa. Suas sobrancelhas juntaram-se num franzir zangado e ele perguntou, arrebatadamente:
- Apenas um nome?
- Apenas um, Colega Elijah - reafirmou Daneel calmamente. - É essa a opinião do Dr. Fastolfe, o maior teórico roboticista de Aurora.
- Mas então onde está o mistério? Que nome é esse?
- Ora, o do Dr. Han Fastolfe, claro - retrucou R. Daneel. - Acabo de afirmar que ele é o maior roboticista teórico de Aurora, e na sua opinião como profissional, ele é o único que possivelmente teria levado Jander Panell a um completo congelamento mental sem deixar vestígio de como o fez. Contudo, o Dr. Fastolfe também afirma que não foi ele.
- Mas que também ninguém mais podia ter feito?
- De fato, Colega Elijah. Aí repousa o mistério.
- E se o Dr. Fastolfe... - Baley fez uma pausa.
Não ia adiantar perguntar a Daneel se o Dr. Fastolfe estava mentindo ou tinha-se enganado, uma vez que em sua própria opinião só ele podia ter sido o autor ou, segundo sua própria declaração, não foi ele. Daneel tinha sido programado por Fastolfe e não havia possibilidade de que na programação estivesse incluída a capacidade de duvidar do programador.
Baley prosseguiu, contudo, usando um tom o mais humilde possível:
- Vou pensar a respeito, Daneel, e depois conversaremos.
- Isso é bom, Colega Elijah. Além do mais, está na hora de dormir. Já que é possível a pressão dos acontecimentos em Aurora forçá-lo a um horário irregular, será de bom aviso aproveitar a oportunidade e dormir agora. Vou lhe mostrar como se arranja uma cama e como as cobertas são usadas.
- Obrigado, Daneel - murmurou Baley.
Não tinha a menor dúvida de que o sono viria facilmente. Estava sendo enviado a Aurora para o fim específico de demonstrar que Fastolfe era inocente do roboticídio - e seu sucesso era exigido para que continuasse a segurança da Terra e (muito menos importante, mas igualmente caro ao coração de Baley) para o prosseguimento em ascensão da carreira dele - porém, mesmo antes de chegar a Aurora, já havia descoberto que Fastolfe tinha virtualmente confessado o crime.
Baley dormiu... finalmente, depois de Daneel lhe ter mostrado como reduzir a intensidade do campo que servia como uma forma de pseudogravidade. Não era uma verdadeira antigravidade e consumia tanta energia que o processo só podia ser usado em horas restritas e sob condições extraordinárias.
Daneel não estava programado para ser capaz de explicar como aquilo funcionava, mas se estivesse, Baley tinha certeza de que não o teria entendido. Felizmente, os comandos podiam ser operados sem nenhum conhecimento de explicações científicas.
- A intensidade do campo - disse Daneel - não pode ser reduzida a zero... pelo menos com esses comandos. Em todo caso, dormir sob gravidade zero não é confortável, principalmente para os não habituados às viagens espaciais. O que se precisa é uma intensidade bastante baixa para se ter a sensação de liberdade da pressão do próprio peso, porém suficientemente alta para manter uma orientação alto-baixo. O nível varia de acordo com o indivíduo. A maioria das pessoas irá sentir-se mais confortável na intensidade mínima permitida pelo comando, mas você descobrirá que, da primeira vez, desejaria uma intensidade maior, de forma a poder manter a familiaridade da sensação de peso numa extensão relativamente maior. Experimente apenas os diversos níveis e descubra o que serve. Perdido na novidade da sensação, a mente de Baley começou a se afastar do problema da afirmação/negação de Fastolfe, como se seu corpo se afastasse da insônia. Talvez os dois fossem parte do mesmo processo.
Sonhou que estava de volta à Terra (claro), dentro de um Caminho Expresso, mas não sentado. Em vez disso, flutuava ao lado da faixa de alta velocidade, logo acima da cabeça dos passageiros, um pouco mais rápido que eles. Ninguém na faixa ficou surpreso nem olhou para ele. Era uma sensação bem agradável e sentiu falta ao acordar.
Depois do desjejum, na manhã seguinte... Era mesmo manhã? Podia haver manhã - ou outra hora do dia - no espaço?
Era evidente que não. Pensou um momento e resolveu que chamaria manhã a hora de levantar e o desjejum como a refeição comida após acordar, abandonando os horários convencionais como objetivamente não importantes. Se não para a nave, para ele, pelo menos.
Depois do desjejum, portanto, na manhã seguinte, examinou as folhas de notícias que lhe eram oferecidas apenas o tempo suficiente para ver que nada diziam do roboticídio em Aurora e depois passou a ocupar-se dos livros-filmes que lhe foram levados no dia anterior ("período acordado"?) por Giskard. Escolheu os que pareciam históricos pelos títulos, e depois de vê-los com vários graus de pressa, compreendeu que Giskard lhe levara livros para adolescentes. Eram profusamente ilustrados e escritos com simplicidade. Ficou imaginando se aquilo era o que Giskard pensava de sua inteligência... ou talvez de suas necessidades.
Após considerar um pouco, Baley achou que Giskard, em sua inocência robótica, tinha escolhido bem e não fazia sentido meditar sobre um possível insulto.
Acomodou-se para ver com a maior concentração e reparou imediatamente que Daneel estava olhando o livro-filme com ele. Curiosidade real? Ou apenas para manter os olhos ocupados?
Daneel nenhuma vez deteve-se para repetir a página. Nem parou para fazer perguntas. Presumivelmente, apenas aceitou o que lia com confiança robótica e não se permitiu o luxo da dúvida ou da curiosidade. Baley não fez perguntas a Daneel sobre o que estava lendo, embora tenha pedido instruções sobre o funcionamento do mecanismo de reprodução do visor auroreano, que não lhe era familiar.
De vez em quando, Baley parava para usar o quartinho ligado ao seu, que podia ser usado para várias funções fisiológicas privadas, tão privadas que era denominado "o Pessoal", com a letra maiúscula indicativa tanto na Terra como - Baley descobriu quando Daneel se referiu a ele - em Aurora. Dava exatamente para uma pessoa... o que espantaria um habitante de City, acostumado a fileiras de mictórios, latrinas, banheiras e chuveiros.
Ao ver os livros-filmes. Baley não procurou decorar detalhes. Não tinha a intenção de se tornar especialista na sociedade auroreana, nem mesmo de submeter-se a uma prova numa escola superior sobre o assunto. Em vez, queria sentir. Notou, por exemplo, mesmo através da atitude hagiográfica de historiadores escrevendo para jovens, que os pioneiros auroreanos - os fundadores, os terráqueos que foram os primeiros a colonizar Aurora, nos dias primitivos das viagens estelares - se caracterizavam por serem muito terráqueos. Sua política, seus conflitos, cada faceta do seu comportamento tinham sido terrestres, o que aconteceu em Aurora lembrava, de certa forma, o que ocorreu quando setores relativamente vazios da Terra foram colonizados havia alguns milhares de anos.
Claro, os auroreanos não encontraram vida inteligente para combater, nem organismos para confundir os invasores terráqueos com problemas de tratamento, humano ou cruel. Na verdade, havia uma pequena vida preciosa de toda espécie. Portanto, o planeta foi rapidamente colonizado por seres humanos, por suas plantas e animais domésticos, e pelos parasitas e outros organismos que tinham viajado juntos, por acaso. E, claro, os colonizadores levaram robôs.
Os primeiros auroreanos rapidamente sentiram que o planeta seria deles, uma vez que caíra em seu colo sem luta e denominaram o planeta Terra Nova, inicialmente.
Era natural, visto ser o primeiro planeta extra-solar - o primeiro mundo Espacial - a ser colonizado. Foi o primeiro fruto da viagem interestelar, a primeira aurora de uma imensa nova era. Rapidamente, cortaram o cordão umbilical e rebatizaram o planeta de Aurora, nome da deusa romana do alvorecer.
Tornou-se o Mundo do Amanhecer. E os colonizadores declararam-se conscientemente desde o começo antepassados de uma nova espécie. Toda a história anterior da humanidade foi uma Noite negra e só para os auroreanos desse mundo novo o Dia finalmente surgiu.
Foi esse grande fato, esse grande auto-elogio que se impôs sobre todos os detalhes: todos os nomes, datas, vencedores, perdedores. Era o essencial. Outros mundos foram colonizados, alguns pela Terra, alguns por Aurora, porém Baley não prestou atenção a isso nem a nenhum dos detalhes. Procurou a largas pinceladas e reparou nas duas mudanças maciças que ocorreram, fazendo os auroreanos se afastarem cada vez mais das suas origens terráqueas. Foram: primeiro, a crescente integração dos robôs a cada faceta da vida e, segundo, a extensão da expansão da vida.
A medida que os robôs ficavam mais avançados e versáteis, os auroreanos se tornavam mais dependentes deles. Mas não irremediavelmente desamparados. Não como o mundo de Solaria, lembrou Baley, onde um pequeno número de seres humanos estava no útero coletivo de grande quantidade de robôs. Aurora não era assim. E no entanto ficou mais dependente.
Olhando como fazia, de maneira intuitiva - por inclinação e generalidade - cada passo no curso da interação homem/robô, parecia entregar-se à dependência. Mesmo a forma de atingir um consenso de direitos robóticos - a queda gradual de que Daneel chamaria "distinções desnecessárias" - era um sinal de dependência. Para Baley não parecia que os auroreanos se estivessem tornando mais humanos na sua atitude de uma preferência pelo humano, mas que estava negando a natureza robótica dos objetos, visando a eliminar o incômodo de serem obrigados a reconhecer o fato de que os seres humanos eram dependentes de objetos de inteligência artificial.
No que respeitava à extensão da vida, esta era acompanhada de uma diminuição do passo da história. Os ápices e depressões se nivelavam. Havia uma continuidade e consenso crescentes.
Não havia dúvida de que a história que estava examinando tornava-se menos interessante à medida que avançava, tornou-se quase soporífica. Para os que a viviam, devia ser boa. A história era interessante, na medida em que era catastrófica, e apesar de poder ser uma observação absorvente, tornava horrível viver. Sem dúvida, as vidas individuais continuavam a ser interessantes para a grande maioria de auroreanos, e se a interação coletiva de vidas crescesse tranqüila, quem se incomodaria?
Se o Mundo do Amanhecer tinha um calmo Dia ensolarado, quem, nele clamaria pela tempestade?
Em certo instante do decorrer da sua observação, Baley experimentou uma sensação indescritível. Se fosse forçado a tentar uma descrição, diria que tinha havido uma inversão momentânea. Foi como se tivesse sido virado pelo avesso - e depois voltado ao normal - no decorrer de uma pequena fração de segundo.
Foi tão momentâneo que quase não percebeu, ignorando-o apesar de ter sentido um tênue soluço interior.
Foi talvez apenas um minuto depois, pensando subitamente na sensação, que lembrou ser ela a mesma que sentira duas vezes antes: quando viajou para Solaria e quando retornou desse planeta para a Terra.
Foi o "Salto", a passagem pelo hiperespaço, que, num intervalo infinito e ilimitado, envia a nave através dos parsecs e vence o limite de velocidade da luz do Universo.
Unidade de medida do espaço interestelar, igual a 3,26 anos-luz ou 9.457.702.000.000.000 quilômetros. (N. do T.)
(Não há mistério nessas palavras, uma vez que a nave apenas deixa o Universo e atravessa uma coisa que não envolve o limite de velocidade. Contudo, é um mistério total de conceito, pois não há como descrever o que é o hiperespaço, a menos que se use símbolos matemáticos, que, em hipótese alguma, podem ser exprimidos numa linguagem compreensível).
Se for aceito o fato de que os seres humanos aprenderam a manipular o hiperespaço sem compreender o que estão manipulando, então o efeito fica claro. Num momento, um instante, a nave está dentro de microparsecs da Terra e, no instante seguinte, dentro de microparsecs de Aurora.
Imaginariamente, o Salto leva zero tempo - literalmente zero - e se for executado com perfeita suavidade, não haverá, não poderá haver absolutamente, nenhuma sensação biológica. Há físicos, contudo, que afirmam que a suavidade perfeita requer energia infinita e por isso sempre houve um "tempo efetivo", que não é exatamente zero, embora possa se tornar tão curto quanto o desejado. Foi isso o que provocou aquela estranha e essencialmente inócua sensação de inversão.
A súbita percepção de que estava muito longe da Terra e nas vizinhanças de Aurora encheu Baley do desejo de ver o mundo Espacial.
Em parte, era o desejo de ver o lugar onde as pessoas moravam. Em parte, era a curiosidade natural de ver uma coisa que tinha dominado seus pensamentos, como resultado dos livros-filmes que estivera vendo.
Giskard entrou exatamente nessa hora, com a refeição intermediária de acordar e dormir (chame "almoço") e disse:
- Começamos a nos aproximar de Aurora, senhor, porém não lhe é possível observar essa chegada da ponte. Em todo caso, nada haveria para ver. O sol de Aurora não é mais que uma estrela brilhante, e ainda se passarão dias antes que estejamos bastante perto do planeta para vermos algum detalhe. - Depois acrescentou, com malícia:
- Também nessa hora não lhe será permitido ficar na ponte.
Baley sentiu-se estranhamente envergonhado. Evidentemente, julgaram que ele queria ver e isso foi simplesmente proibido. Sua presença como observador não era desejada.
- Muito bem, Giskard - retrucou e o robô saiu.
Baley ficou olhando a saída dele com ar sombrio. Que outras restrições lhe seriam feitas? A improbabilidade de sua tarefa ser completada com sucesso fê-lo imaginar de quantas maneiras mais os auroreanos iam conspirar para torná-la impossível.
Giskard
Baley virou-se para Daneel e disse:
- Aborrece-me, Daneel, ter de permanecer aqui como prisioneiro porque os auroreanos a bordo desta nave me temem como uma fonte de infecção. É pura superstição. Fui convidado.
- Não é por causa do medo auroreano que lhe pedem que fique em sua cabina, Colega Elijah - respondeu Daneel
- Não? Qual então o motivo?
- Talvez se lembre que quando nos encontramos pela primeira vez nesta nave você me perguntou os motivos da minha vinda para acompanhá-lo. Respondi que foi para dar-lhe uma coisa familiar como apoio e para me agradar. Eu ia apresentar-lhe o terceiro motivo, quando Giskard interrompeu-nos trazendo o visor e o material para exame... depois nos empenhamos numa discussão sobre roboticídio.
- E nunca me falou do terceiro motivo. Qual é?
- Ora, Colega Elijah, apenas que eu posso ajudar a protegê-lo.
- De quê?
- Surgiram paixões exarcebadas com o incidente que concordamos em chamar roboticídio. Você foi trazido a Aurora para ajudar a demonstrar a inocência do Dr. Fastolfe.
E o drama da hiperonda...
- Jehoshaphat, Daneel - disse Baley, ofendido. - Também viram aquela coisa em Aurora?
- Foi vista em todos os mundos Espaciais, Colega Elijah. Foi o programa com mais audiência e tornou muito claro que você é o mais extraordinário investigador.
- Assim, quem estiver por detrás do roboticídio pode ter exagerado os temores do que eu possa conseguir e, conseqüentemente, correr um grande risco para evitar minha chegada... ou matar-me.
- O Dr. Fastolfe - retrucou Daneel calmamente - está plenamente convencido de que não há ninguém por trás do roboticídio, uma vez que nenhum outro ser humano, além dele, poderia tê-lo executado. Foi um acontecimento puramente fortuito, segundo o Dr. Fastolfe. Contudo, há os que estão procurando tirar proveito da ocorrência, sendo do interesse deles que você não possa prová-lo. É por isso que você tem de ser protegido.
Baley andou, apressado, de uma ponta a outra da sala, como se pudesse acelerar seus processos mentais com um exemplo físico. De qualquer maneira, não tinha nenhuma sensação de perigo pessoal.
- Daneel - perguntou - qual o total de robôs humaniformes existentes em Aurora?
- Quer dizer, agora que Jander não está mais funcionando?
- Sim, agora que Jander está morto.
- Um, Colega Elijah.
Baley olhou, espantado, para Daneel. Sem emitir um som, sua boca formou a palavra: Um? Finalmente, disse:
- Vamos deixar claro, Daneel. Você é o único robô humaniforme em Aurora?
- Ou em qualquer mundo, Colega Elijah. Pensei que soubesse disso. Fui o protótipo e em seguida construíram Jander. Depois disso, o Dr. Fastolfe recusou-se a criar mais e ninguém tem competência para isso.
- Mas nesse caso, uma vez que, de dois robôs humaniformes, um foi morto, não ocorreu ao Dr. Fastolfe que o humaniforme restante - você, Daneel - possa estar em perigo?
- Ele reconheceu ser isso possível. Mas é remota a possibilidade de que essa ocorrência fantasticamente improvável de congelamento mental aconteça pela segunda vez.
Não a levou em consideração. Ele sente, todavia, que pode haver a ocorrência de outro infortúnio. O que, suponho, desempenhou um pequeno papel no meu envio à Terra para buscá-lo. A viagem me tira de Aurora por mais ou menos uma semana.
- E você agora é tão prisioneiro quanto eu, hem, Daneel?
- Sou prisioneiro - retrucou gravemente Daneel - apenas no sentido de que esperam que eu não saia deste recinto, Colega Elijah.
- E em que outro sentido se é prisioneiro?
- No sentido de que a pessoa reprimida em seus movimentos ofende-se com a repressão. Uma verdadeira prisão implica ser involuntária. Compreendo perfeitamente o motivo de estar aqui e concordo com sua necessidade.
- Você concorda - resmungou Baley. - Eu não. Sou prisioneiro no sentido lato da palavra. Afinal de contas, o que nos mantém a salvo aqui?
- Por alguma coisa, Colega Elijah, Giskard está vigiando lá fora.
- Ele é bastante inteligente para a tarefa?
- Ele compreende perfeitamente as ordens que recebe. Ele é inflexível e forte, percebendo bem a importância da tarefa.
- Quer dizer que ele está preparado para ser destruído a fim de proteger-nos?
- Claro que sim, como eu estou pronto a ser destruído para proteger você.
Baley sentiu-se envergonhado.
- Você não se zanga com uma situação em que talvez seja obrigado a desistir de sua existência por mim?
- Foi essa a minha programação, Colega Elijah - disse Daneel - numa voz que pareceu muito suave - embora eu ache que, mesmo que não estivesse programado, salvá-lo faz a perda da minha existência ser muito trivial, em comparação.
Baley não pôde resistir. Estendeu a mão e apertou a de Daneel com força.
- Obrigado, Colega Daneel, mas, por favor, não permita que isso aconteça. Não quero a perda de sua existência. Tenho certeza de que a preservação da minha não seria uma compensação adequada.
Baley ficou espantado ao descobrir que realmente sentia aquilo. Ficou meio horrorizado ao perceber que estaria pronto a arriscar a sua vida por um robô... Não, não por um robô. Por Daneel.
Giskard entrou sem bater. Baley já se conformara com isso. O robô, como seu guarda, podia ir e vir à vontade. E Giskard era apenas um robô aos olhos de Baley, por mais que fosse "ele" e seu R. não fosse enunciado. Se Baley se coçasse, pegasse no nariz, ou se entregasse a uma função biológica suja, Giskard ficaria indiferente, parecia-lhe, sem reprová-lo, incapaz de qualquer reação, mas registrando friamente a observação em algum profundo banco de memória.
Isso tornava Giskard uma simples peça móvel da mobília e Baley não sentia embaraço na presença dele. Não que Giskard se intrometesse num momento inconveniente, pensou Baley preguiçosamente.
Giskard trazia um objeto com ele.
- Senhor, julgo que ainda deseja observar Aurora do espaço. Baley teve um sobressalto. Sem dúvida, Daneel tinha reparado na irritação dele, deduziu a causa e optou por essa forma de lidar com ela. Levar Giskard a assumir a idéia como fruto de sua mente simplória era um toque de delicadeza da parte de Daneel. Livrava Baley de demonstrar gratidão. Ou era o que Daneel julgava.
Baley estava, na realidade, muito mais irritado por ficar, segundo pensava, desnecessariamente impedido de ver Aurora, como de ser mantido prisioneiro. Queixou-se pela falta de visão durante os dois dias desde o Salto. Por isso, virou-se para Daneel e disse:
- Obrigado, meu amigo.
- Foi idéia de Giskard - replicou Daneel.
- Sim, claro - falou Baley, com um rápido sorriso. - Agradeço a ele, também. O que é isso, Giskard?
- É um astrossimulador, senhor. Funciona basicamente como um receptor tridimensional e está ligado à sala de observação. Se me permite acrescentar...
- Sim?
- Não achará a vista especialmente excitante, senhor. Não desejo que fique desnecessariamente desapontado.
- Procurarei não esperar demais, Giskard. Em todo caso, não o responsabilizarei por qualquer desapontamento que eu venha a sentir.
- Obrigado, senhor. Preciso voltar ao meu posto, mas Daneel poderá ajudá-lo com o instrumento, se surgir algum problema.
Saiu e Baley virou-se para Daneel, com ar aprovador.
- Giskard trabalhou muito bem, acho eu. Pode ser um modelo simples, mas foi muito bem desenhado.
- Ele também é um robô Fastolfe, Colega Elijah. Este astrossimulador é completo e auto-ajustável. Logo que esteja focalizado em Aurora, basta apertar o comando.
Ele entrará em operação e você nada mais precisará fazer. Quer pô-lo em funcionamento pessoalmente?
Baley encolheu os ombros.
- Não há necessidade. Faça você.
- Muito bem.
Daneel tinha colocado o objeto sobre a mesa onde Baley estava vendo seu livro-filme.
- Isto - explicou, mostrando um pequeno retângulo em sua mão - é o comando, Colega Elijah. Você apenas precisa segurá-lo pela borda desta maneira e depois fazer uma leve pressão para dentro e o mecanismo funciona... e depois outra pressão para desligá-lo.
Daneel apertou o comando e Baley deu um grito estrangulado.
Ele tinha esperado que o objeto se iluminasse e mostrasse em seu interior a representação holográfica do campo estelar. Não foi o que aconteceu. Em vez disso, Baley encontrou-se no espaço - no espaço - com brilhantes estrelas fixas em todas as direções.
Durou apenas um instante e depois tudo voltou ao que era: a cabina e, nela, Baley, Daneel e o aparelho.
- Desculpe, Colega Elijah - disse Daneel. - Desliguei assim que percebi sua aflição. Não sabia que você estava despreparado para isso.
- Então me prepare. Que aconteceu?
- O astrossimulador age diretamente sobre o centro visual do cérebro humano. Não há como distinguir a impressão que deixa da realidade tridimensional. É um invento relativamente recente e até agora só tem sido usado em cenas astronômicas que são, afinal de contas, pouco detalhadas.
- Você também olhou, Daneel?
- Sim, porém muito pobremente, sem o realismo experimentado por um ser humano. Vi o vago perfil de uma cena superposta no conteúdo claro da sala, mas me explicaram que os seres humanos só vêm a cena. Indubitavelmente, quando os cérebros dos meus semelhantes estiverem mais acuradamente sintonizados e ajustados...
Baley tinha recuperado o equilíbrio.
- O caso, Daneel, é que eu não me achava preparado. Não vi minhas mãos ou senti onde estavam. Foi como se eu me tivesse tornado um espírito desincorporado ou... bem, como imagino que me sentiria se estivesse morto, mas existindo conscientemente numa espécie de pós-vida imaterial.
- Vejo agora por que achou a experiência um tanto perturbadora.
- Realmente, achei-a muito perturbadora.
- Peço-lhe desculpas, Colega Elijah. Mandarei Giskard tirar isso daqui.
- Não. Agora me sinto preparado. Deixe-o aqui. Serei capaz de desligá-lo, apesar de não estar consciente da existência de minhas mãos?
- Ele ficará preso em sua mão, de modo a não deixá-lo cair, Colega Elijah. O Dr. Fastolfe, que experimentou esse fenômeno, me disse que a pressão é automaticamente aplicada quando o humano que está segurando deseja interromper. É um fenômeno automático, baseado em manipulação nervosa, exatamente como a visão. Pelo menos, é como funciona com os auroreanos e imagino...
- Que os terráqueos são suficientemente semelhantes aos auroreanos, fisiologicamente, para que o aparelho funcione de igual modo conosco. Muito bem, passe-me o comando e tentarei.
Com um leve tremor interno, Baley apertou o comando e tornou a voltar ao espaço. Desta vez, estava esperando, e tão logo viu que podia respirar sem dificuldade, sem sentir-se de forma alguma imerso no vácuo, lutou para aceitar tudo aquilo como uma ilusão visual. Respirando meio ofegante (talvez para se convencer de que estava realmente respirando), olhou com curiosidade em todas as direções. Subitamente consciente de estar ouvindo a respiração áspera saindo pelo nariz, perguntou:
- Pode me ouvir, Daneel?
Ouviu a própria voz - um tanto distante, um tanto artificial - mas ouviu-a.
Depois, ouviu a de Daneel, bastante diferente para ser diferenciável.
- Sim, posso - respondeu o robô. - E você deve ter condições de ouvir a minha, Colega Elijah.
Os sentidos visual e cinestésico sofriam interferência por causa de uma ilusão maior da realidade, mas o de audição permanecia intocado. Em linhas gerais, pelo menos.
- Bem, vi apenas estrelas... estrelas comuns, quero dizer. Aurora tem um sol. Imagino que estamos bastante perto de Aurora para que a estrela que é seu sol esteja consideravelmente mais brilhante que as outras.
- Totalmente mais brilhante, Colega Elijah. Deve ser velada ou você poderá sofrer dano na retina.
- Então, onde está o planeta Aurora?
- Vê a constelação de Orion?
- Sim, estou vendo. Quer dizer que continuamos a ver as constelações como no céu da Terra e no planetário de City?
- Mais ou menos. No que se refere a distâncias estelares, não estamos longe da Terra e do Sistema Solar do qual faz parte, e assim temos uma visão estelar comum.
O sol de Aurora é conhecido na Terra como Tau Ceti e fica apenas a 3,67 parsecs de lá. Ora, se imaginar uma reta de Betelgeuse à estrela do meio do cinturão de Orion, continuando-a em igual extensão e um pouco mais, a estrela meio brilhante que vê é realmente o planeta Aurora. Ele se tornará, nos próximos dias, cada vez maior, à medida que nos aproximarmos rapidamente.
Baley olhou com atenção. Não passava de um brilhante objeto estelar. Não tinha uma flecha luminosa, entrando e saindo, apontando para ele. Não havia nenhuma inscrição cuidadosamente escrita encimando-o.
- Onde está o sol? A estrela da Terra, quero dizer.
- Na constelação de Virgem, como é vista de Aurora. É uma estrela de segunda grandeza. Infelizmente, o astrossimulador que possuímos não foi adequadamente computadorizado e não será fácil mostrá-la a você. Apareceria, em todo caso, como uma estrela muito comum.
- Não importa - falou Baley. - Vou agora desligar esta coisa. Se eu tiver alguma perturbação... me ajude.
Não teve. Desligou exatamente quando pensou fazê-lo e ficou piscando na luz subitamente crua da cabina.
Foi só então, quando voltou ao normal, que lhe ocorreu que, durante alguns minutos, pareceu-lhe ter estado no espaço, sem proteção de qualquer espécie, e apesar disso sua agorafobia terráquea não foi ativada. Sentiu-se perfeitamente confortável assim que aceitou sua própria inexistência.
O pensamento confundiu-o e afastou-o durante algum tempo do seu livro-filme.
Voltou periodicamente ao astrossimulador e deu outra olhada no espaço, visto de um ponto vantajoso fora da espaçonave, com ele não presente (aparentemente). Às vezes, era apenas durante um instante, para garantir a si mesmo que ainda não estava apreensivo por causa do vácuo infinito. Às vezes, perdia-se na configuração das estrelas e começava a contá-las preguiçosamente ou a formar desenhos geométricos, um tanto deliciado por fazer uma coisa que, na Terra, nunca tinha sido capaz de executar, por causa da crescente agorafobia que rapidamente dominava tudo.
Por fim, tornou-se evidente que Aurora estava se tornando mais brilhante. Logo ficou fácil distingui-lo entre os outros pontos de luz, a seguir tornar-se inconfundível e, finalmente, inevitável. Começou como um fio de luz para, logo depois, aumentar rapidamente e começar a mostrar fases. Era quase um semicírculo de luz quando Baley percebeu a existência de fases.
O detetive perguntou e Daneel respondeu:
- Estamos nos aproximando do plano orbital externo, Colega Elijah. O pólo sul de Aurora fica mais ou menos no centro do seu disco, em algum ponto da metade iluminada.
É primavera no hemisfério sul.
- De acordo com o material que estive lendo - disse Baley - o eixo de Aurora tem dezesseis graus de inclinação.
Tinha dado uma olhada na descrição física do planeta com atenção insuficiente, na ansiedade de conhecer os auroreanos, mas lembrou daquilo.
- Sim, Colega Elijah. Finalmente, vamos orbitar Aurora e as fases mudarão então rapidamente. Aurora gira mais velozmente que a Terra...
- Sim, tem um dia de 22 horas.
- Um dia de 22,3 horas tradicionais. O dia auroreano está dividido em 10 horas auroreanas, cada uma dividida em 100 minutos auroreanos que são, por sua vez, divididos em 100 segundos auroreanos. Um segundo auroreano é, portanto, mais ou menos igual a 0,8 segundos da Terra. - É o que os livros querem dizer quando se referem a horas métricas, minutos métricos e assim por diante?
- É. A princípio, foi difícil persuadir os auroreanos a abandonarem as unidades de tempo a que estavam acostumados, e ambos os sistemas, o convencional e o métrico, ficaram em uso. Finalmente, claro, o métrico venceu. Atualmente, dizemos apenas horas, minutos e segundos, mas a versão decimal é sempre presente. O mesmo sistema foi adotado em todos os mundos Espaciais, apesar de, neles, não estar ligado à rotação natural do planeta. Claro, cada planeta também usa um sistema local.
- Como faz a Terra.
- Sim, Colega Elijah, mas a Terra só usa o padrão original de unidades de tempo. Os mundos Espaciais preocuparam-se com as inconveniências decorrentes disso, mas permitiram que a Terra não mudasse.
- Não sem benevolência, imagino. Desconfio que eles desejam acentuar a diferença da Terra. Como a decimalização combina com o ano? Afinal de contas, Aurora deve ter um período natural de revolução em torno do seu sol, que comanda o ciclo de suas estações. Como isso é medido?
- Aurora gira em torno do seu sol - disse Daneel - em 373,5 dias auroreanos ou em cerca de 0,95 anos da Terra. Isso não é considerado vital na cronologia. Aurora aceita 30 dos seus dias como perfazendo um mês e 10 meses como um ano métrico. O ano métrico é igual a cerca de 0,8 anos dos intervalos regulares ou cerca de três quartos do ano terrestre, A relação é diferente em cada mundo, é claro. Dez dias são chamados usualmente decimês. Todos os mundos Espaciais usam este sistema.
- Certamente, deve haver uma maneira conveniente de acompanhar o ciclo das estações?
- Cada mundo tem seu ano com estações, também, mas recebe pouca atenção. Pode-se, pelo computador, converter qualquer dia, passado ou presente, em sua posição no ano com estações se, por qualquer motivo, precisa-se dessa informação. E isso é válido para qualquer mundo, onde a conversão de e para os dias locais é também facilmente possível. E, claro, Colega Elijah, qualquer robô pode fazer a mesma coisa e pode orientar a atividade humana onde o ano de estações ou o tempo local é importante.
A vantagem das unidades metrificadas é que fornece à humanidade uma cronometria unificada, que envolve pouco mais que substituições de pontos decimais.
Baley ficou aborrecido porque os livros que examinou não esclareciam nada disso. Mas agora, baseado em seu conhecimento da história terrestre, soube que, em certa época, o mês lunar tinha sido a chave do calendário e tinha havido um tempo em que, para facilidade da cronometria, o mês lunar foi ignorado e sua falta nunca sentida.
No entanto, se ele tivesse, na Terra, dado livros a algum estrangeiro, este teria provavelmente encontrado a menção ao mês lunar ou a mudanças históricas nos calendários. As datas teriam sido fornecidas, sem explicação.
Que mais poderia ter sido dado sem explicação?
Até onde podia ele confiar, portanto, no conhecimento que estava recebendo? Teria de fazer constantes perguntas e não aceitar nada como certo.
Iria ter muitas oportunidades de não ver o evidente, muitas possibilidades de incompreensão, várias formas de seguir o caminho errado.
Aurora encheu seu campo de visão, agora que usou o astrossimulador, e parecia a Terra (Baley nunca tinha visto a Terra daquela maneira, porém vira fotografias publicadas em livros de Astronomia).
Bem, o que Baley viu de Aurora eram os mesmos desenhos de nuvens, as mesmas visões de relance de áreas desertas, os mesmos grandes intervalos de dia e noite, a mesma amostra de luz piscante do hemisfério noturno, como mostravam as fotografias do globo terrestre.
Baley olhou, extasiado, e pensou: E se por algum motivo estivesse sendo levado para o espaço, dizendo ser para Aurora, e trazido de volta para a Terra por alguma razão... por alguma razão sutil e insana? Como podia saber a diferença, antes de pousar?
Havia motivo para desconfiar? Daneel tivera o cuidado de lhe dizer que as constelações eram as mesmas no céu de ambos os planetas, mas não seria naturalmente assim com os planetas orbitando estrelas vizinhas? Do espaço, a aparência geral de ambos os planetas era a mesma, porém não era de se esperar, uma vez que ambos eram habitáveis e preparados para receber confortavelmente a vida humana?
Havia algum motivo para supor que uma decepção preparada tenha sido organizada para ele? com que finalidade? Mas por que não pareceria preparada e inútil? Se houvesse um motivo evidente para isso, perceberia imediatamente.
Daneel faria parte dessa conspiração? Certamente não, se fosse humano. Porém não passava de um robô, não poderia haver um meio de mandá-lo comportar-se de acordo?
Não havia como chegar a uma conclusão. Baley ficou vendo contornos de continentes, que tanto poderiam ser terrestres como não. Aquela devia ser a prova... só que não deu certo.
As imagens que iam e vinham entre nuvens não lhe eram de nenhuma valia. Baley não tinha conhecimento suficiente da geografia da Terra. O que realmente conhecia eram suas Cidades subterrâneas, suas cavernas de aço.
Os trechos do litoral que via lhe eram desconhecidos: se de Aurora ou da Terra, não sabia.
Afinal, para que essa incerteza? Quando foi a Solaria, não duvidou do seu destino, jamais suspeitou de que poderia ser levado de volta para a Terra. Ah, mas então tinha ido numa missão sem segredos, na qual havia uma possibilidade razoável de sucesso. Nesta, sentia que não havia nenhuma.
Nesse caso, talvez ele quisesse ser mandado de volta à Terra e estivesse inventando uma falsa conspiração, de maneira a achar ser possível.
A incerteza em sua mente começou a ter vida própria. Não podia deixá-la prosseguir. Ficou examinando Aurora com uma intensidade quase demente, incapaz de voltar à realidade do camarote. Aurora movia-se, girava lentamente...
Tinha olhado durante muito tempo para ter dúvida. Enquanto esteve observando o espaço, tudo pareceu imóvel, como um fundo pintado, como um silencioso e estático desenho de pontos de luz, nele incluído, mais tarde, um semicírculo. Era aquilo a imobilidade que lhe permitiu ser não-agorafóbico?
Mas agora podia notar Aurora movendo-se e percebeu que a nave estava descendo em espiral, no estágio final anterior ao pouso. As nuvens estavam subindo, inchadas...
Não, não eram as nuvens, a nave estava espiralando para baixo. A nave estava movendo-se. Ele também estava. Certificou-se, subitamente, da própria existência. De que estava sendo atirado para baixo, através das nuvens. Estava caindo, desprotegido, através do ar tênue contra o chão sólido.
Sua garganta contraiu-se. A respiração começava a se tornar difícil.
Disse para si mesmo, em desespero: Você está encerrado. As Paredes da nave estão à sua volta.
Porém não sentia paredes.
Pensou: mesmo sem sentir as paredes, você está cercado. Está envolto em pele.
Porém não sentia a pele.
A sensação era pior que a de uma simples nudez: ele era uma personalidade desacompanhada, a essência da identidade totalmente descoberta, um ponto vivo, uma singularidade rodeada por um mundo aberto e infinito, e estava caindo.
Quis parar de olhar, contrair o punho sobre a beira do comando, mas nada aconteceu. As pontas dos seus nervos estavam tão fora do normal que a contração automática num esforço de vontade não produziu efeito. Ele não tinha vontade. Os olhos não queriam fechar, o punho não se contraiu. Estava hipnotizado e nas garras do terror, apavorado até à imobilidade.
Só sentia nuvens à sua frente, brancas... não muito brancas - quase - uma sombra levemente alaranjada...
E tudo tornou-se cinzento... e ele estava se afogando. Não podia respirar. Lutou desesperadamente para abrir sua garganta contraí da, para pedir socorro a Daneel...
Não conseguiu emitir um som...
Baley respirava como se acabasse de atingir a fita, após uma longa corrida. A cabina parecia torta e havia uma superfície dura sob seu cotovelo esquerdo.
Percebeu que estava no chão.
Giskard se encontrava de joelhos a seu lado, com sua mão de robô (firme, porém um tanto fria) fechada sobre o pulso direito de Baley. A porta da cabina, visível a Baley por cima do ombro de Giskard estava entreaberta.
Baley soube, sem perguntar, o que tinha acontecido. Giskard tinha pegado aquela pobre mão humana e prendido no comando para findar a astrossimulação. Caso contrário...
Daneel também se achava presente, com o rosto junto ao de Giskard, com um olhar que podia ser de aflição.
- Você nada disse, Colega Elijah. Se eu tivesse percebido mais depressa sua situação...
Baley esboçou um gesto de compreensão, de que não tinha importância. Continuava incapaz de falar.
Os dois robôs esperaram até Baley fazer um débil gesto de levantar-se. Foi erguido imediatamente por braços prestativos. Posto numa cadeira, o comando foi gentilmente afastado dele por Giskard. que disse:
- Breve pousaremos. Creio que não vai precisar mais do astrossimulador.
Daneel acrescentou, com ar sério:
- Em todo caso, será melhor tirá-lo daqui.
- Espere! - replicou Baley. Sua voz era um murmúrio rouco e não tinha certeza de se fazer entender. Respirou fundo, pigarreou com esforço e repetiu: - Espere! - e acrescentou: - Giskard.
O robô virou-se:
- Senhor?
Baley não falou imediatamente. Agora que Giskard sabia o que ele queria, podia fazer um longo intervalo, talvez indefinidamente. Baley procurava reunir seus sentidos esparsos. Agorafobia ou não, ainda continuava sua incerteza sobre o destino deles. Já existia antes e podia ter intensificado a agorafobia.
Precisava descobrir. Giskard não mentiria. Um robô não pode mentir, a menos que tenha sido cuidadosamente instruído para isso. E para que instruir Giskard? Seu acompanhante era Daneel, que tinha de ficar o tempo todo ao seu lado. Se houvesse uma mentira a dizer, seria tarefa de Daneel. Giskard não passava de um robô de recados, um porteiro.
Certamente não houve necessidade de se darem ao trabalho de instruir cuidadosamente Giskard, envolvendo-o numa rede de mentiras.
- Giskard! - falou Baley, agora quase normalmente.
- Senhor?
- Estamos quase pousando?
- Em pouco menos de duas horas, senhor.
Tratava-se de duas horas métricas, pensou Baley. Mais de duas horas reais? Menos? Não importava. Só faria confundir. Esqueça. Baley falou, o mais rispidamente possível:
- Diga-me já o nome do planeta onde estamos para pousar. Um ser humano, se fosse responder, o faria somente após uma pausa... e depois com um ar de enorme surpresa.
Giskard respondeu imediatamente, com uma afirmativa clara e inflexões.
- Não é Aurora, senhor?
- Como sabe?
- É o nosso destino. E também não pode ser a Terra, por exemplo, uma vez que o sol de Aurora, Tau Ceti, tem apenas noventa por cento da massa do sol da Terra. Tau Ceti é ligeiramente mais frio, além disso, e sua luz tem um claro tom laranja, desconhecido dos desacostumados olhos terráqueos. O senhor já pode ver a cor característica do sol de Aurora no reflexo sobre a parte superior do banco de nuvens. E certamente poderá ver, pela aparência da paisagem, assim que seus olhos se acostumarem.
Baley afastou os olhos do rosto impassível de Giskard. Ele havia reparado na diferença de cor, pensou Baley, e não lhe dera importância. Erro grave.
- Pode retirar-se. Giskard.
- Sim, senhor.
Baley virou-se para Daneel e disse, amargamente:
- Banquei o bobo, Daneel.
- Percebi que você imaginou que nós o estávamos enganando e levando-o para outro lugar que não Aurora. Tem algum motivo para desconfiar disso, Colega Elijah?
- Nenhum. Pode ter sido o resultado da intranqüilidade surgida da agorafobia subliminal. Olhando para o espaço supostamente imóvel, não senti nenhuma doença, que deve ter ficado subjacente, criando uma crescente intranqüilidade.
- A culpa foi nossa, Colega Elijah. Sabendo da sua ojeriza por espaços abertos, foi um erro submetê-lo à astrossimulação ou, tendo-o feito, não submetê-lo a um controle mais estreito.
Baley sacudiu a cabeça, aborrecido.
- Não diga isso, Daneel. Tenho controle demais. A pergunta que tenho na mente é quão de perto serei controlado em Aurora.
- Colega Elijah - retrucou Daneel. - Acho que será difícil permitir-lhe acesso livre a Aurora e aos auroreanos.
- Não obstante, é exatamente isso que eu preciso. Se eu devo chegar à verdade nesse caso de roboticídio, preciso procurar livremente informações diretas no local... e com as pessoas envolvidas.
Baley ficou, agora, sentindo-se um tanto cansado. Bastante embaraçante, a experiência intensa pela qual passou deixou-lhe um grande desejo de uma cachimbada, coisa que ele pensava ter abandonado completamente havia um ano. Podia sentir o gosto e o cheiro do fumo tomar conta da sua garganta e nariz.
Sabia que só poderia fazê-lo de memória. Em Aurora, não tinha como obter licença para fumar. Não havia tabaco em nenhum dos mundos Espaciais e se tivesse algum em seu poder, lhe seria tirado e destruído.
- Colega Elijah - disse Daneel - precisamos discutir isso com o Dr. Fastolfe, assim que pousarmos. Não tenho autoridade para tomar decisões nesse assunto.
- Sei disso, Daneel, mas como Vou falar a Fastolfe? Através do equivalente de um astrossimulador? com comandos nas mãos?
- De jeito nenhum, Colega Elijah. Você lhe falará frente a frente. Ele pretende encontrá-lo no espaçoporto.
Baley prestou atenção aos barulhos do pouso. Não sabia, claro, como seriam. Não conhecia a maquinaria da nave, quantos homens e mulheres havia a bordo, que teriam de fazer no decorrer do pouso, que ruídos decorreriam disso.
Gritos? Estrondos? Uma vibração leve?
Nada ouviu.
- Você parece tenso, Colega Elijah - disse Daneel. - Eu gostaria que você não custasse a me comunicar qualquer incômodo que sentir. Devo ajudá-lo no exato momento em que, por qualquer motivo, sentir-se mal.
Havia uma leve tensão na palavra "devo".
Baley pensou, distraidamente: A Primeira Lei o está dominando. com certeza sofreu à sua maneira tanto quanto eu à minha, quando desmaiei e ele não previu a tempo.
Um desequilíbrio proibido dos potênciais positrônicos pode não ter significado para mim, porém pode produzir nele o mesmo incômodo e a mesma reação de uma dor aguda em mim.
Prosseguiu pensando: Como posso saber o que existe dentro da falsa pele e pseudoconsciência de um robô, da mesma forma que Daneel sobre o meu íntimo?
E a seguir, sentindo remorso de ter pensado em Daneel como sendo robô, Baley procurou os olhos gentis do outro (quando começou a pensar na expressão deles como gentil?) e disse:
- Teria lhe contado toda a aflição que senti. Não sinto nenhuma. Estou apenas tentando ouvir qualquer ruído que possa me esclarecer sobre o andamento do processo de pouso, Colega Daneel.
- Obrigado, Colega Elijah - retrucou Daneel, sério. Inclinou ligeiramente a cabeça e prosseguiu: - Não haverá nenhum desconforto no pouso. Você sentirá aceleração, mas será mínima, pois esta cabina acompanhará, até certo ponto, o rumo da aceleração. A temperatura poderá elevar-se, porém não mais de dois graus centígrados. Quanto aos efeitos sonoros, talvez haja um sibilo baixo quando passarmos pela atmosfera que se adensa. Algum deles irá perturbá-lo?
- Não. O que me perturba é não estar livre para participar do pouso. Eu gostaria de saber como é. Não quero ficar preso e longe da experiência.
- Você já descobriu, Colega Elijah, que a natureza da experiência não se adapta ao seu temperamento.
- E como conseguirei superá-la, Daneel? - perguntou, com ardor. - Esse não é um bom motivo para minha participação?
- Colega Elijah, já lhe expliquei que está aqui para sua própria segurança.
Baley sacudiu a cabeça, claramente aborrecido.
- Pensei nisso e acho bobagem. Minhas probabilidades de superar essas dificuldades são tão pequenas, com todas as restrições e a dificuldade que terei de compreender Aurora, que acho que ninguém em seu juízo se daria ao trabalho de tentar me impedir. Se o fizerem, por que se preocupar em atacar logo a mim? Por que não sabotar a nave? Se imaginamos que estamos enfrentando vilões totalmente inescrupulosos, deverão achar que uma nave e seus tripulantes, você, Giskard e eu, claro, serão um preço baixo a pagar.
- Na realidade, isso foi levado em conta, Colega Elijah. A nave foi cuidadosamente examinada. Qualquer sinal de sabotagem será notado.
- Tem certeza? Cem por cento de certeza?
- Nada semelhante pode ser considerado como absolutamente certo. Giskard e eu, contudo, estamos satisfeitos com o pensamento de que há muita certeza e que podemos prosseguir com uma expectativa mínima de desastre.
- E se estiverem errados?
Alguma coisa semelhante a um pequeno sinal de espasmo pás sou pelo rosto de Daneel, como se fosse levado a considerar uma coisa que interferia no suave trabalho dos elementos positrônicos e seu cérebro.
- Porém não temos errado - comentou.
- Não pode dizer isso. O pouso está se aproximando e este é com certeza o momento de perigo. De fato, a esta altura, não há necessidade de sabotar a nave. Para mim, o perigo maior é agora, exatamente agora. Não posso me esconder aqui, se precisar desembarcar em Aurora. Deverei atravessar a nave e ficar ao alcance de todos. Você já tomou precauções para tornar o pouso seguro? - Ele se mostrava mesquinho, agredindo Daneel desnecessariamente porque sentia-se irritado com a longa segregação e com a indignidade do desmaio.
Daneel respondeu calmamente:
- Já tomamos, Colega Elijah. E por falar nisso, já pousamos. Estamos agora na superfície de Aurora.
Durante um momento, Baley ficou desconcertado. Olhou ferozmente em torno mas, claro, nada viu a não ser uma cabina fechada. Não sentiu nem ouviu nada do que Daneel tinha descrito. Nenhuma aceleração, nenhum calor, tampouco qualquer sibilo do vento. Ou Daneel havia deliberadamente provocado mais uma vez o tema do seu perigo pessoal, para que ele não pensasse em outros assuntos menores, mas inquietantes.
- Porém ainda há o problema de sair da nave - disse Baley. - Como farei isso sem ficar ao alcance de possíveis inimigos?
Daneel foi até uma parede e apertou um botão nela. A parede imediatamente dividiu-se em duas partes, que se abriram. Baley viu-se diante de um cilindro comprido, um túnel.
Nesse momento, Giskard entrou na cabina pelo outro lado e disse:
- Senhor, nós três usaremos o tubo de saída, que está sendo guardado pelo lado de fora. O Dr. Fastolfe está esperando na extremidade do tubo.
- Tomamos todas as precauções - disse Daneel.
- Peço-lhes desculpas, Daneel... Giskard - murmurou Baley. Sombrio, penetrou no tubo de saída. Todo o esforço feito para tomar aquelas precauções também lhe garantia que elas se tornaram necessárias. Baley gostava de pensar que não era covarde, mas estava num planeta desconhecido, sem meios de saber quem era amigo ou inimigo, sem poder se consolar com alguma coisa familiar (com exceção, claro, de Daneel). Nos momentos cruciais, pensou, com um arrepio, iria ficar sem cobertura para aquecê-lo e dar-lhe alívio.
Fastolfe
O Dr. Han Fastolfe estava realmente esperando... e sorrindo. Era algo e magro, cabelos castanho-claros não muito abundantes e lá estavam, evidentemente, suas orelhas.
Era delas que Baley se lembrava, apesar de terem passado três anos. Orelhas grandes, afastadas da cabeça, dando-lhe um aspecto vagamente divertido, uma agradável sensação familiar. Foram as orelhas que fizeram Baley sorrir e não a recepção de Fastolfe.
Baley pensou um instante se a tecnologia médica auroreana não era extensiva à cirurgia plástica menor, requerida para corrigir a deselegância daquelas orelhas. Mas, afinal, podia ser que Fastolfe gostasse da aparência delas, como o próprio Baley (um tanto surpreso) gostava. Era uma coisa importante de se dizer de um rosto, que faz alguém sorrir.
Talvez Fastolfe desse importância a que gostassem dele à primeira vista. Ou achasse interessante e útil ser subestimado? Ou apenas diferente?
- Detetive Elijah Baley - disse Fastolfe. - Lembro do senhor perfeitamente, apesar de persistir em dar-lhe o rosto do ator que o Personificou.
O rosto de Baley fechou-se.
- Aquela dramatização de hiperonda me persegue, Dr. Fastolfe. Se eu soubesse que rumo tomar para fugir dela...
- Rumo nenhum - retrucou Fastolfe, cordialmente. - Mas se prefere, eliminaremos o assunto das nossas conversas imediatamente. Nunca mais falarei nisso. De acordo?
- Obrigado. com calculada pressa, estendeu a mão a Fastolfe.
Fastolfe hesitou perceptivelmente. Depois pegou a mão de Baley, apertando-a desajeitadamente - e não por muito tempo - dizendo:
- Devo supor que o senhor não é um saco andarilho de infecção, Sr. Baley. - A seguir acrescentou, aflito, olhando as próprias mãos: - Devo confessar, porém, que minhas mãos foram tratadas com uma película inerte que não é totalmente confortável. Sou o fruto dos medos irracionais da minha sociedade.
Baley encolheu os ombros.
- Somos todos. Não me agrada o pensamento de estar no Exterior: ao ar livre, quero dizer. Por falar nisso, não me agradou ter sido trazido a Aurora nas circunstâncias em que me encontro.
- Compreendo perfeitamente, Sr. Baley. Trouxe um carro fechado para o senhor, e quando chegarmos na minha instituição, faremos o possível para continuarmos a mantê-lo encerrado.
- Obrigado, mas no decorrer de minha estada em Aurora, sinto que terei necessidade de permanecer algumas vezes no Exterior. Estou preparado para isso...
- Compreendo, mas lhe imporemos o Exterior apenas quando necessário. Como não é o caso agora, por favor, consinta em ser encerrado.
O carro os aguardava à sombra do túnel e mal havia um traço do Exterior na passagem de um para o outro. Às suas costas, Baley sabia da presença de Daneel e Giskard, de aparências muito diferentes, mas idênticos no ar grave e expectante... e ambos infinitamente pacientes.
Fastolfe abriu a porta traseira e disse:
- Entre, por favor.
Baley entrou. Rápida e suavemente, Daneel entrou atrás, enquanto Giskard, praticamente no mesmo instante, no que pareceu quase um movimento coreografado, entrou pelo outro lado. Baley ficou enquadrado, mas não opressivamente, por eles. Na verdade, gostou de pensar que entre ele e o Exterior, de ambos os lados, havia a espessura de um corpo robótico.
Mas não houve Exterior. Fastolfe sentou no banco da frente, e assim que a porta fechou-se, as janelas ficaram opacas e uma luz artificial suave espalhou-se no interior.
- Geralmente não viajo assim, Sr. Baley - disse Fastolfe - mas não me importo e o senhor achará mais confortável. O carro é totalmente computadorizado, sabe para onde está indo e pode resolver qualquer obstrução ou emergência. Não precisamos intervir.
Baley teve uma levíssima sensação de aceleração e depois outra, mal perceptível, de movimento.
- Este é um transporte seguro, Sr. Baley - afirmou Fastolfe. - Esforcei-me ao máximo para que apenas pouca gente soubesse que o senhor estaria neste carro e certamente o senhor não será detectado dentro dele. Sua viagem de carro, que se desloca em jatos de ar, por falar nisso, o que o torna aerodinâmico, na verdade não será longa, mas se desejar, o senhor pode aproveitar a oportunidade para repousar. Agora o senhor está em segurança.
- O senhor fala - retrucou Baley - como se pensasse que estou em perigo. A bordo da nave, fui protegido a ponto de ficar preso... e agora novamente.
Baley olhou em torno do pequeno espaço fechado do carro, dentro do qual estava cercado de metal e vidro opaco, para não citar a moldura metálica dos dois robôs.
Fastolfe deu uma risadinha.
- Sei que estou exagerando, mas a intuição é um apanágio de Aurora. O senhor chegou numa hora de crise para nós e eu prefiro ser considerado bobo por excesso de zelo que correr o risco terrível da subestimação.
- Creio que compreende, Dr. Fastolfe - disse Baley - que meu fracasso aqui será um golpe para a Terra.
- Sei muito bem. E estou tão determinado quanto o senhor a evitar seu fracasso. Pode me acreditar.
- Acredito. Além do mais, meu fracasso aqui, por qualquer motivo, poderá ser também minha ruína pessoal e profissional na Terra.
Fastolfe virou-se no banco para encarar Baley com expressão chocada.
- De fato? Isso não será permitido. Baley encolheu os ombros.
- Acredito, mas acontecerá. Serei o alvo evidente para um desesperado governo terrestre.
- Não pensei nisso quando pedi sua vinda, Sr. Baley. Pode ficar certo de que farei o que puder. Embora, com toda honestidade - seus olhos desviaram-se - será pouquíssimo se perdermos.
- Sei disso - retrucou Baley, sombrio.
Recostou-se no encosto macio e fechou os olhos. O movimento do carro reduzia-se a um suave balanço entorpecedor, mas Baley não adormeceu. Em vez disso, concentrou-se no pensamento: qual a valia daquilo?
Baley também não sentiu o Exterior no outro lado da viagem. Quando emergiu do plano aerodinâmico, estava num estacionamento subterrâneo e um pequeno elevador levou-o ao nível do solo (segundo pareceu).
Foi introduzido num recinto ensolarado, e ao passar pelos raios diretos do sol (sim, levemente alaranjados), encolheu-se um pouco.
Fastolfe notou.
- As janelas não são opacas, embora possam ser escurecidas. Posso fazê-lo, se quiser. Na verdade, eu devia ter pensado nisso...
- Não precisa - respondeu Baley, asperamente. - Ficarei sentado de costas para elas. Necessito me acostumar.
- Como queira, mas me informe se em algum instante sentirse muito incomodado... Sr. Baley, nesta parte de Aurora já é manhã alta. Não conheço seu horário na nave.
Se está acordado há muito e deseja dormir, pode-se dar um jeito. Se está sem sono, mas sem fome, não precisa comer. Contudo, se acha que pode fazer uma refeição, está convidado a almoçar comigo daqui a pouco.
- Acontece que combina bem com meu horário.
- Excelente. Quero lembrar-lhe que seu dia é cerca de sete por cento mais curto que na Terra, o que não lhe produz dificuldades biorrítmicas excessivas, mas se acontecer, procuraremos ajustar-nos às suas necessidades.
- Obrigado.
- Finalmente... não conheço bem suas preferências alimentares.
- Comerei o que me for oferecido.
- Ainda assim, não quero sentir-me culpado se alguma coisa... se não for gostosa.
- Obrigado.
- E não se importará que Daneel e Giskard comam conosco? Baley esboçou um sorriso.
- Eles também comem?
Fastolfe não sorriu em resposta. Falou gravemente: "
- Não, porém eu os quero o tempo todo ao seu lado.
- Há perigo ainda? Mesmo aqui?
- Não confio completamente em nada. Mesmo aqui. Um robô entrou.
- Senhor, o almoço está na mesa. Fastolfe balançou a cabeça.
- Ótimo, Faber. Já vamos.
- Quantos robôs o senhor tem? - perguntou Baley.
- Poucos. Não estamos no nível solariano de dez mil robôs por ser humano, mas tenho mais que a média: cinqüenta e sete. A casa é enorme e também serve de escritório e laboratório. E também minha mulher, quando tenho uma, necessita de bastante espaço para se isolar do meu trabalho, numa ala separada, precisando ser atendida independentemente.
- Bem, com cinqüenta e sete robôs, imagino que possa prescindir de dois. Sinto-me menos culpado por ter enviado Giskard e Daneel para trazer-me a Aurora.
- Não foi uma escolha casual, garanto-lhe, Sr. Baley. Giskard é meu mordomo e minha mão direita. Está comigo desde que me tornei adulto.
- E apesar disso, enviou-o para apanhar-me. Estou honrado - disse Baley.
- Isso dá uma idéia da sua importância, Sr. Baley. Giskard é o mais confiável dos meus robôs, forte e encorpado.
Os olhos de Baley fixaram-se em Daneel e Fastolfe acrescentou:
- Não incluo meu amigo Daneel nessas considerações. Ele não é meu criado, mas um empreendimento do qual tenho a fraqueza de estar extremamente orgulhoso. É o primeiro do seu tipo, e embora o Dr. Roj Nemennuh Sarton tenha sido seu projetista e modelador, quem...
Fez uma pausa, delicadamente, mas Baley balançou bruscamente a cabeça, dizendo:
- Compreendo.
Não precisava que a frase fosse completada com a referência ao assassinato de Sarton na Terra.
- Enquanto Sarton supervisionava de fato a construção dele - prosseguiu Fastolfe - foram os meus cálculos teóricos que tornaram Daneel possível.
Fastolfe sorriu para o robô, que inclinou a cabeça, agradecendo.
- E Jander também - disse Baley.
- É verdade. - Fastolfe balançou a cabeça, parecendo triste. - Talvez devesse tê-lo mantido ao meu lado, como fiz com Daneel. Porém ele era meu segundo humaniforme, o que era diferente. Daneel foi meu primogênito, um caso especial... por assim dizer.
- E agora o senhor não constrói mais humaniformes?
- Não. Mas venha - disse Fastolfe esfregando as mãos. - Precisamos almoçar... Não sei, Sr. Baley, se na Terra a população está acostumada ao que chamo de comida natural. Teremos salada de camarões, junto com pão e queijo, leite, se desejar, ou qualquer espécie de sucos de frutas. Tudo muito simples. Sorvete de sobremesa.
- Todos os pratos tradicionais da Terra - retrucou Baley - que existem agora em sua forma original apenas na antiga literatura terrestre.
- Nenhum deles é inteiramente comum aqui em Aurora, mas não acho certo submetê-lo à nossa versão de refeição de epicurista, com produtos alimentares e temperos das variedades auroreanas. O paladar precisa ser adquirido.
Levantou-se.
- Acompanhe-me, por favor, Sr. Baley. Seremos apenas nós dois e não vamos fazer cerimônia nem nos entregarmos aos rituais do jantar.
- Obrigado - respondeu Baley. - É muita bondade sua. Aliviei o tédio da viagem com o exame bastante intenso do material referente a Aurora e sei que essa polidez envolve muitos aspectos de uma refeição cerimonial que devo recear.
- Não precisará recear.
- Podemos - perguntou Baley - interromper a cerimônia até o ponto de falarmos de negócios, Dr. Fastolfe? Não devo perder tempo desnecessariamente.
- Concordo com esse ponto de vista. Devemos realmente falar de trabalho e imagino que posso confiar em que o senhor nada dirá a ninguém sobre esse lapso. Não quero ser expulso da sociedade educada. - Riu e prosseguiu: - Mas não devo rir. Não há nada risível.
Perder tempo pode ser mais que unicamente uma inconveniência? Pode ser facilmente fatal.
A sala que Baley deixou era de estar: várias cadeiras, uma cômoda cheia de gavetas, um móvel que parecia um piano, mas tinha pistões no lugar de teclas, desenhos abstratos nas paredes, que pareciam tremular com a luz. O chão era um liso tabuleiro de xadrez, com inúmeros matizes castanhos, desenhados talvez para fazer lembrar a madeira e, no entanto, brilhava esplendorosamente como se tivesse acabado de ser encerado, sem se tornar escorregadio.
A sala de jantar, apesar de ter o chão semelhante, em nada mais se parecia. Era uma enorme peça retangular, sobrecarregada de enfeites. Havia nela seis enormes mesas quadradas, que eram evidentemente módulos, podendo ser reunidas de várias maneiras. Junto a uma pequena parede, ficava um bar, com reluzentes garrafas de várias cores, colocadas diante de um espelho curvo que emprestava uma extensão quase infinita à sala que refletia. Na outra curta parede, havia quatro reentrâncias, com um robô aguardando em cada uma.
Ambas as paredes mais extensas eram dotadas de mosaicos, nos quais as cores mudavam lentamente. Uma representava uma cena planetária, que Baley não sabia dizer se de Aurora ou outro planeta, ou ainda uma coisa inteiramente imaginária. Numa extremidade, via-se um campo de trigo (ou algo parecido) com requintada maquinaria agrícola, comandada por robôs. Ao se passear o olhar pela extensão da parede, viam-se habitações humanas esparsas, tornando-se, no outro extremo, o que Baley pensou ser a versão auroreana de City.
A outra extensa parede era astronômica. Um planeta, brancoazulado iluminado por um sol distante, refletia a luz de tal maneira que nem o exame mais acurado evitava a impressão de que estava girando lentamente. As estrelas que o rodeavam - algumas esmaecidas, outras brilhantes - também davam a impressão de mudar de forma, embora ao se fixar a vista num pequeno grupo delas, parecessem continuar imóveis.
Baley achou tudo confuso e repulsivo.
- Certamente uma obra de arte - disse Fastolfe. – Porém cara demais para seu valor, mas Fanya a queria. Fanya é a minha atual companheira.
- Ela virá ter conosco, Dr. Fastolfe?
- Não, Sr. Baley. Como lhe disse, apenas nós dois. Pedi a ela que permanecesse nos seus cômodos nesse período. Não quero sobrecarregá-la com o nosso problema. Espero que compreenda.
- Sim, claro.
- Venha. Sente-se, por favor.
Uma das mesas estava posta com pratos, taças e talheres finamente trabalhados, nem todos familiares a Baley. Havia, no centro, um alto cilindro cônico, semelhante a um peão de xadrez gigantesco, feito de pedra cinzenta.
Baley, ao sentar-se, não resistiu e estendeu o braço, tocando-o com um dedo.
Fastolfe sorriu.
- É um condimentador. Tem comandos simples, que permitem usá-lo como fornecedor de uma quantidade fixada de qualquer dos doze diferentes temperos, em cada porção de comida. Para ser usado adequadamente, é preciso tirá-lo e fazer evoluções um tanto complicadas, que são insignificantes em si, porém muito valorizadas pelos elegantes auroreanos, como símbolos da graça e delicadeza com que as refeições devem ser servidas. Quando eu era mais moço, podia, com o polegar e dois dedos, fazer a tríplice genuflexão e fornecer sal quando o condimentador tocava em minha palma. Hoje, se tentar, correrei o risco de confundir meu convidado. Espero que não se importe se eu não tentar.
- Insisto para que não tente, Dr. Fastolfe.
Um robô pôs a salada na mesa, outro chegou com uma bandeja de sucos de frutas, um terceiro trouxe o pão e o queijo, um quarto ajeitou os guardanapos. Os quatro trabalhavam em perfeita coordenação, deslocando-se de um lado para outro sem colidir ou mostrar alguma dificuldade. Baley observou-os espantado.
Terminaram, sem nenhum sinal aparente de combinação, um de cada lado da mesa. Recuaram ao mesmo tempo, curvaram-se ao mesmo tempo, viraram-se ao mesmo tempo e voltaram para as reentrâncias da parede no fundo da peça. Baley percebeu subitamente a presença, na sala, tanto de Daneel como de Giskard. Não os tinha visto entrar. Esperavam em dois nichos que apareceram não sabia como, na parede com o campo de trigo. Daneel estava mais perto.
- Agora que eles se foram... - disse Fastolfe. Parou e sacudiu lentamente a cabeça, em pesarosa conclusão. - Mas não foram. Normalmente, é costume os robôs irem embora antes da refeição realmente começar. Robôs não comem, mas os seres humanos sim. portanto, é compreensível que os que comem o façam e os que não comem saiam. E isso acabou por se tornar mais um ritual. Seria incompreensível comer antes dos robôs saírem. Neste caso, porém...
- Eles não saíram - disse Baley.
- Não. Acho que a segurança é mais importante que a etiqueta e que, não sendo auroreano, o senhor não se incomodaria.
Baley esperou que o Dr. Fastolfe começasse. Fastolfe pegou um garfo e Baley fez o mesmo. Fastolfe começou a usá-lo devagar, permitindo ao terráqueo ver claramente o que estava fazendo.
Baley deu uma mordida cautelosamente num camarão e achou-o delicioso. Reconheceu o sabor, semelhante ao da pasta de camarão produzida na Terra, porém muito mais sutil e rica. Mastigou devagar e, durante um momento, apesar da ansiedade de continuar a investigação enquanto jantava, achou impossível dedicar-se a outra coisa que não à refeição.
Foi Fastolfe, na verdade, quem deu início à conversa.
- Não é melhor começarmos, Sr. Baley? Baley sentiu-se meio ruborizado.
- Sim, por favor. Peço-lhe desculpa. Sua comida auroreana pegou-me de surpresa e por isso me foi impossível pensar em outra coisa... O problema, Dr. Fastolfe, é como foi cometido, não é?
- Por que diz isso?
- Alguém cometeu roboticídio de uma forma que exige grande perícia... segundo me disseram.
- Roboticídio? Uma expressão divertida. - Fastolfe sorriu. - Claro, compreendo o que quer dizer... O senhor foi corretamente informado, a forma exige enorme perícia.
- E só o senhor a tem para cometê-lo... segundo me disseram.
- O senhor foi novamente bem informado.
- E o senhor mesmo confessa, na verdade insiste, que só o senhor podia colocar Jander em congelamento mental.
- Sustento o que é, afinal de contas, a verdade, Sr. Baley. De nada me adiantaria mentir, mesmo que eu pudesse me obrigar a isso. E sabido que eu sou o mais importante teórico roboticista de todos os Cinco Mundos.
- Apesar disso, Dr. Fastolfe, não poderia o segundo melhor roooticista de todos os mundos... ou o terceiro melhor ou mesmo o décimo quinto melhor, possuir a competência necessária para cometer a façanha? Ela realmente exige toda a capacidade do melhor especialista?
- Na minha opinião - retrucou calmamente Fastolfe - requer de fato toda a capacidade do melhor. Na verdade, ainda na minha opinião, eu próprio só poderia realizar a tarefa num dos meus dias excepcionais. Lembre-se de que os melhores cérebros em robótica, incluindo o meu, trabalharam especialmente para criar céreros positrônicos, que não pudessem ser mentalmente congelados.
- Tem certeza absoluta? Tem mesmo?
- Completamente.
- E declarou isso publicamente?
- Claro. Houve um inquérito público, meu caro terráqueo. Fizeram-me perguntas que o senhor está agora repetindo e respondi com a verdade. Responder assim é um costume auroreano.
- No momento - disse Baley - não duvido de que o senhor esteja convencido de ter falado a verdade. Mas não teria sido levado por um orgulho natural? Isso também pode ser tipicamente auroreano, ou não podia?
- O senhor está dizendo que minha ansiedade foi considerada como a melhor coisa para me colocar voluntariamente na posição em que todos seriam forçados a concluir que eu congelei Jander mentalmente?
- Considero o senhor contente, de certa forma, contente por ter sua posição social e política destruída, desde que sua reputação científica permaneça intacta.
- Compreendo. O senhor tem um modo interessante de pensar. Sr. Baley. Isso não teria me ocorrido. Escolher entre ser um segundo melhor e ser culpado de, para usar sua definição roboticida, o senhor é de opinião que eu aceitaria conscientemente a última.
- Não, Dr. Fastolfe. Não desejo colocar a coisa de maneira tão simplista. Pode ser que o senhor não queira se iludir pensando ser o maior dos roboticistas e que é completamente inigualável, agarrando-se a isso a todo custo, porque o senhor, inconscientemente... inconscientemente, Dr. Fastolfe? percebe que na verdade está sendo superado, ou já foi, por outros.
Fastolfe riu, mas havia uma ponta de aborrecimento no riso.
- Nada disso, Sr. Baley. Está muito errado.
- Pense, Dr. Fastolfe! Tem certeza de que nenhum dos seus colegas roboticistas pode se aproximar do senhor em brilho?
- Há poucos capazes de lidar com robôs humaniformes. A construção de Daneel criou virtualmente uma nova profissão, para a qual nem mesmo há uma designação: talvez humaniformistas. Dos roboticistas teóricos de Aurora, nenhum, exceto eu, compreende o funcionamento do cérebro positrônico de Daneel. O Dr. Sarton compreendia, mas morreu... e assim mesmo não tão bem quanto eu. A teoria básica é minha.
- Pode ter sido sua no começo, mas certamente não vai querer conservar a propriedade exclusiva. Ninguém aprendeu a teoria?
Fastolfe fez um firme movimento negativo de cabeça.
- Ninguém. Não ensinei a ninguém e duvido que qualquer outro roboticista vivo tenha desenvolvido a teoria sozinho.
Baley disse, com um tom de irritação:
- Não poderia ser um rapaz inteligente, recém-saído da universidade, com uma capacidade até agora não percebida, quem?...
- Não, Sr. Baley, não. Eu teria sabido da sua existência. Ele teria passado por meus laboratórios. Teria trabalhado comigo. Esse rapaz não existe, no momento. Finalmente, alguém poderá, talvez até muitos. No momento, nenhuml
- Então, se o senhor morrer, a nova ciência desaparece?
- Tenho apenas 165 anos. Anos métricos, é claro, ou seja, apenas 124 dos seus anos terrestres, mais ou menos. Sou ainda muito moço pelos padrões auroreanos e não há motivo médico para que minha vida possa ser considerada como meio decorrida. Não é inteiramente incomum chegarmos aos quatrocentos anos... métricos. Há ainda muito tempo para ensinar.
Tinham terminado de comer, mas nenhum dos dois fez um gesto para sair da mesa. E nenhum dos robôs se aproximou para retirá-la. Era como se eles tivessem ficado imobilizado pela intensidade do fluxo da conversa.
Os olhos de Baley franziram-se.
- Dr. Fastolfe - disse ele - há dois anos eu estive em Solaria. Lá tive a nítida impressão de que os solarianos eram, em conjunto, os mais hábeis roboticistas de todos os mundos.
- No todo, é provavelmente verdade.
- E nenhum deles poderia ter realizado a façanha?
- Nenhum, Sr. Baley. Sua habilidade é com robôs que são, no máximo, não mais adiantados que o meu pobre e confiável Giskard.
Os solarianos nada sabem sobre a construção de robôs humaniformes.
- Como tem certeza disso?
- Já que esteve em Solaria, Sr. Baley, sabe muito bem que os solarianos podem se aproximar uns dos outros só com a maior dificuldade, que se comunicam por interação tridimensional... exceto quando o contacto sexual é imprescindível. O senhor acha que algum deles sonharia em projetar um robô tão humano de aparência, capaz de ativar suas neuroses? Evitariam a possibilidade de sua aproximação por ser tão humano que não poderiam usá-lo convenientemente.
- Um ou outro solariano não poderia ter uma tolerância surprendente ao corpo humano? Como pode ter certeza?
- Mesmo que um solariano pudesse, o que não nego, Aurora este ano não recebeu nenhum nativo de Solaria.
- Nenhum?
- Nenhum! Eles não gostam de ter contato com auroreanos, e a não ser por algum negócio urgente, nenhum viria aqui... ou a qualquer outro mundo. Mesmo no caso de um negócio urgente, não fariam mais que entrar em órbita e depois fariam o negócio através de comunicações eletrônicas.
- Nesse caso - disse Baley - se o senhor é literal e realmente a única pessoa em todos os mundos que poderia ter cometido o crime, o senhor matou Jander?
- Não acredito que Daneel tenha deixado de lhe dizer que neguei - respondeu Fastolfe.
- Ele me disse, mas queria ouvi-lo do senhor.
Fastolfe cruzou os braços e fechou o semblante. Entre os dentes cerrados, respondeu:
- Então Vou dizer-lhe. Mão cometi o crime. Baley sacudiu a cabeça.
- Acho que o senhor acredita nessa declaração.
- Acredito. com toda a sinceridade. Estou dizendo a verdade. Não matei Jander.
- Então se não o matou e se ninguém mais possivelmente o fez, então... Mas espere. Estou talvez fazendo uma suposição sem base. Jander realmente morreu ou foi trazido aqui com uma falsa desculpa?
- O robô foi mesmo destruído. Poderia mostrá-lo ao senhor se a Legislatura não impedisse meu acesso a ele antes do dia acabar... o que não creio que queiram.
- Nesse caso, se o senhor não o fez e ninguém mais possivelmente poderia tê-lo feito, e se o robô está realmente morto... quem cometeu o crime?
Fastolfe deu um suspiro.
- Tenho a certeza de que Daneel contou-lhe o que sustentei no inquérito: mas o senhor quer ouvi-lo dos meus próprios lábios.
- É verdade, D r. Fastolfe.
- Bem, então ninguém cometeu o crime. Foi um acontecimento espontâneo no fluxo positrômico pelos caminhos do cérebro que provocou o congelamento mental em Jander.
- Isso é possível?
- Não, não é. Extremamente improvável... mas se não o matei, essa é a única coisa que pode ter acontecido.
- Ninguém argumentou que há uma possibilidade maior de o senhor estar mentindo, que ter acontecido um congelamento mental espontâneo?
- Muitos o fizeram. Mas acontece que sei que não matei, o que deixa apenas a espontaneidade como possibilidade.
- E o senhor me trouxe aqui para demonstrar, ou para provar, que o acontecimento espontâneo houve realmente?
- Sim.
- Mas como se pode provar o acontecimento espontâneo? Ao que parece, só provando-o posso salvá-lo, salvar a Terra e a mim mesmo.
- Na ordem crescente de importância, Sr. Baley? Baley demonstrou aborrecimento.
- Bem, então o senhor, eu e a Terra.
- Temo que após demorada reflexão, eu tenha chegado à conclusão de que não há como obter essa prova - disse Fastolfe.
Baley olhou, horrorizado, para Fastolfe.
- Não há?
- Não há. Nenhuma possibilidade. - Depois, num súbito acesso de evidente abstração, pegou o condimentador e disse: - Sabe, estou curioso para ver se ainda posso fazer a tríplice genuflexão.
Atirou o condimentador para cima com um calculado movimento de pulso. O objeto deu uma cambalhota e, ao cair, Fastolfe aparou-o pela ponta mais fina nas costas da mão direita (o polegar dobrou-se por baixo). Tornou a subir, oscilou e foi amparado pelas costas da mão esquerda. Tornou a ser atirado e apanhado pelas costas da mão direita e depois da esquerda. Após sua terceira genuflexão, foi erguido com força suficiente para ser arremessado. Fastolfe pegou-o no punho direito, com a mão esquerda perto, de palma para cima. Uma vez apanhado o condimentador, Fastolfe mostrou a mão esquerda e lá estava uma leve pitada de sal.
- É uma exibição infantil para a mente científica - disse Fastolfe - e o esforço é totalmente desproporcionado em relação ao fim, que é, claro, uma pitada de sal, mas os bons anfitriões auroreanos ficam orgulhosos ao fazer uma demonstração. Há alguns capazes de manter o condimentador no ar durante um minuto e meio, mexendo as mãos com velocidade quase maior que a dos olhos.
Claro, acrescentou, pensativo. Daneel pode realizar isso com mais habilidade e rapidez que qualquer humano. Experimentei-o com o objetivo de examinar o acabamento dos condutos do seu cérebro, mas seria um erro deixá-lo exibir esse talento em público. Seria humilhar desnecessariamente os condimentadores humanos: uma expressão popular para eles, compreende, que não encontrará nos dicionários.
Baley resmungou.
Fastolfe suspirou.
- Mas temos de voltar ao trabalho.
- O senhor me trouxe através de vários parsecs de espaço para esse fim.
- De fato, trouxe. Vamos continuar!
- Há um motivo - perguntou Baley - para essa exibição sua, Dr. Fastolfe?
- Bem, parece que chegamos a um impasse - retrucou Fastolfe. - Trouxe-o aqui para fazer uma coisa que não pode ser feita. Sua fisionomia é bastante eloqüente, e para falar a verdade, não me sinto melhor. Parece, todavia, que podemos usar uma brecha. Assim, continuemos.
- Na tarefa impossível?
- Por que seria impossível para o senhor, Sr. Baley? Sua reputação é a de um realizador de impossíveis.
- O drama da hiperonda? O senhor acredita naquela distorção idiota do que aconteceu em Solaria?
Fastolfe abriu os braços.
- É minha única esperança.
- E eu não tenho escolha - disse Baley. - Devo continuar a tentar. Não posso voltar para a Terra com um fracasso. Me deixaram isso bem claro... Diga-me, Dr. Fastolfe:
Como Jander foi assassinado? Que espécie de manipulação da sua mente teria sido necessária?
- Sr. Baley, não tenho idéia de como poderei explicar isso, mesmo para outro roboticista, o que o senhor certamente não é, e ainda que estivesse preparado para publicar minhas teorias, o que certamente não estou. Contudo, vejamos se posso explicar alguma coisa... O senhor sabe, é claro, que os robôs foram inventados na Terra.
- A robótica é pouquíssimo considerada na Terra...
- A forte tendência anti-robótica é muito conhecida nos mundos Espaciais.
- Mas a origem terráquea dos robôs é evidente para qualquer pessoa na Terra que pense a respeito. Sabem perfeitamente que a viagem hiperespacial foi desenvolvida com a ajuda de robôs, e uma vez que os mundos Espaciais não poderiam ter sido colonizados sem a viagem hiperespacial, segue-se que os robôs existentes antes da colonização se ocuparam disso, enquanto a Terra continuou a ser o único planeta habitado. Portanto, os robôs foram inventados na Terra por terráqueos.
- Mas a Terra não tem orgulho disso, não é?
- Não discutimos isso - retrucou Baley secamente.
- E os habitantes da Terra nada sabem sobre Susan Calvin?
- Vi seu nome em alguns livros antigos. Foi uma das pioneiras da robótica.
- É só o que sabe dela?
Baley fez um gesto de pouco caso.
- Acho que posso saber mais se procurar nos arquivos, mas ainda não tive tempo para isso.
- Coisa estranha - comentou Fastolfe. - Ela é uma semideusa para todos os Espaciais, a tal ponto que imagino que somente alguns roboticistas de verdade pensam nela como terráquea. Seria uma espécie de profanação. Se lhes fosse dito, teriam recusado a acreditar que ela morreu após ter vivido pouco mais de cem anos métricos. E no entanto você a conhece apenas como pioneira.
- Ela tem alguma coisa a ver com tudo isto, Dr. Fastolfe?
- Não diretamente, mas de certa forma. O senhor precisa compreender que seu nome está cercado de numerosas lendas. A maioria é indubitavelmente falsa, mas, apesar disso, essas lendas estão ligadas ao nome dela. Uma das mais famosas, e das menos prováveis de serem verdadeiras, refere-se a um robô construído naqueles dias primitivos que, por um acidente de produção, acabou tendo capacidade telepática...
- O quê!
- Uma lenda! Eu disse que era uma lenda... e indubitavelmente falsa. Veja só, há algum motivo teórico para supor ser isso possível, embora ninguém jamais tenha apresentado um projeto plausível que permitisse sequer começar a incluir essa capacidade. Que isto tivesse surgido em cérebros positrônicos tão primitivos e simples como os da era pré-hiperespacial é completamente impensável. É por isso que temos certeza de que essa história, em particular, é uma invenção. Mas, seja como for, deixe-me prosseguir, pois leva a uma conclusão.
- Por favor, continue.
- O robô, de acordo com aquela lenda, podia ler pensamentos. E quando lhe faziam perguntas, lia a mente do indagador e dava-lhe a resposta que ele queria ouvir.
Ora, a Primeira Lei da Robótica estatui muito claramente que um robô não pode causar dano a um ser humano ou, pela inação, permitir que uma pessoa seja ferida, mas para os robôs, em geral, significa ferimento físico. Contudo, um robô capaz de ler pensamentos pode, com certeza, determinar que desapontamento, ira ou qualquer emoção violenta torna infeliz um ser humano e o robô interpretará o que inspira essas emoções sob a designação de "ferir". Desse modo, se um robô telepático sabia que a verdade podia desapontar ou enraivecer um indagador ou o levava a sentir inveja ou desgosto, diria uma mentira agradável em vez da verdade. Percebe?
- Sim, claro.
- Assim, o robô mentiu mesmo para a própria Susan Calvin. As mentiras não se mantinham durante muito tempo, pois diversas pessoas ouviam coisas diferentes que eram não apenas inconsistentes entre elas, mas não apoiadas pela realidade. Susan Calvin descobriu que lhe haviam mentido e percebeu que essas mentiras a levaram a uma posição bastante difícil. O que a tinha deixado um tanto perturbada no começo se transformara agora, graças a falsas esperanças, num insuportável desapontamento... Nunca ouviu isso?
- Dou-lhe minha palavra.
- Espantoso! Porém, não foi certamente inventada em Aurora, pois é conhecida em todos os mundos... Em todo caso, Calvin vingou-se. Susan fez ver ao robô que, falando a verdade ou a mentira, feria da mesma maneira a pessoa a quem se dirigia. Não podia obedecer à Primeira Lei, dissesse o que dissesse. O robô, compreendendo, viu-se forçado a se refugiar numa inação total. Se quiser dar colorido, sua textura positrônica queimou-se. Seu cérebro ficou irremediavelmente destruído. Segundo a lenda, a última palavra que Susan Calvin disse ao robô destruído foi "Mentiroso!"
- E alguma coisa semelhante, suponho - retrucou Baley - aconteceu com Jander Panell. Foi posto frente a frente com uma contradição e seu cérebro fundiu?
- Foi o que parece ter acontecido, embora não seja tão fácil de descobrir, como no tempo de Susan Calvin. Possivelmente por causa da lenda, os roboticistas sempre procuraram dificultar o máximo possível o surgimento de contradições. À medida que a teoria do cérebro positrônico tornou-se mais sutil e a prática da construção do cérebro positrônico mais complicada, sistemas cada vez mais bem sucedidos foram inventados para resolverem todas as situações que pudessem surgir na desigualdade, de forma a que uma ação sempre possa ser executada como obedecendo a Primeira Lei.
- Bem, então não se pode queimar o cérebro de um robô. É isso o que está dizendo? Pois se é, o que aconteceu a Jander?
- Não é o que estou dizendo. Os sistemas cada vez mais bem sucedidos a que me referi nunca são totalmente bem sucedidos. Não podem ser. Por mais sutil e intricado que um cérebro possa ser, há sempre um meio de introduzir nele uma contradição. É uma verdade fundamental da matemática. Permanecerá eternamente impossível produzir um cérebro tão sutil e complicado capaz de reduzir a possibilidade de contradição a zero. Nunca totalmente a zero. Contudo, os sistemas foram feitos tão próximos do zero que para se chegar a um congelamento mental pela instalação de uma contradição adequada do cérebro positrônico seria preciso uma profunda compreensão dele... e isso exigiria um técnico inteligente.
- Como o senhor, Dr. Fastolfe?
- Como eu. E no caso de robôs humaniformes, só eu.
- Ou ninguém mais - retrucou Baley, francamente irônico.
- Ou ninguém mais. Exatamente - disse Fastolfe, ignorando a ironia. - Os robôs humaniformes têm cérebros e, devo acrescentar, corpos, construídos numa imitação consciente do ser humano. Os cérebros positrônicos são extraordinariamente delicados e adquirem, naturalmente, um pouco da fragilidade do cérebro humano. Assim como um ser humano pode ter um ataque, uma possibilidade interna, sem a intervenção de qualquer efeito externo, também o cérebro humaniforme pode, apenas pela possibilidade, a ocasional movimentação sem rumo de positrons, chegar ao congelamento mental.
- Pode provar, Dr. Fastolfe?
- Posso demonstrar matematicamente, mas nem todos os que estão familiarizados com a matemática concordarão com a validade do raciocínio. Este implica certas suposições minhas que não combinam com os modos de pensar convencionais sobre a robótica.
- E como é provavelmente o congelamento mental espontâneo?
- Considerando o grande número de robôs humaniformes, digamos uns cem mil, há uma boa possibilidade de que um deles possa se submeter espontaneamente ao congelamento mental numa média de vida auroreana. E no entanto isso pode acontecer muito antes, como aconteceu a Jander, embora as possibilidades estejam muito contra ele.
- Mas olhe, Dr. Fastolfe, mesmo que o senhor chegasse a provar indubitavelmente que um congelamento mental espontâneo pode acontecer aos robôs em geral, não será o mesmo que provar ter isso acontecido a Jander em particular, exatamente agora.
- Não - admitiu Fastolfe - o senhor tem razão.
- O senhor, o maior especialista em robótica, não pode provar, no caso específico de Jander.
- Tem razão novamente.
- Então, por que espera que eu seja capaz, quando nada sei de robótica?
- Não há necessidade de provar alguma coisa. Será certamente bastante oferecer uma sugestão engenhosa, que torne o congelamento mental espontâneo plausível ao grande público.
- Como...
- Não sei.
- Tem certeza de que não sabe, Dr. Fastolfe? - perguntou
Baley, com voz dura.
- Que quer dizer? Acabo de afirmar que não sei.
- Deixe-me assinalar uma coisa. Presumo que os auroreanos, em geral, sabem que vim a este planeta com o objetivo de tentar resolver esse problema. Teria sido difícil me fazer entrar secretamente, considerando que sou terráqueo e estamos em Aurora.
- Sim, é claro, e não tentei fazê-lo. Consultei o Presidente da Legislatura e o persuadi a me dar uma permissão para trazê-lo. Foi como consegui adiar o julgamento.
O senhor terá a oportunidade de solucionar o mistério antes que eu entre em julgamento. Duvido que me dêem muito tempo.
- Repito: então os auroreanos, em geral, têm conhecimento de que estou aqui e imagino que sabem exatamente por que... que supõem que sou capaz de resolver o quebra-cabeça da morte de
Jander.
- Claro. Que outro motivo haveria?
- E desde a hora em que desembarquei da nave, o senhor me manteve sob guarda constante e severa por causa do temor de que seus inimigos possam tentar me eliminar... considerando-me uma espécie de homem maravilhoso, capaz de solucionar o problema de maneira a colocá-lo do lado vitorioso, apesar das probabilidades serem contra mim.
- Sim, temo que seja uma possibilidade.
- E suponha que alguém, que não quer ver o quebra-cabeça resolvido, e o senhor, Dr. Fastolfe, inocentado, possa realmente conseguir matar-me. Isso não mudará os sentimentos a seu favor? O povo não poderá considerar que seus inimigos sabem que o senhor, de fato, é inocente ou temam tanto a investigação que irão querer matar-me?
- É um raciocínio meio complicado, Sr. Baley. Suponho que devidamente explorada sua morte pode ser usada com esse fim, mas isso não vai acontecer. Está sendo protegido e não será assassinado.
- Mas para que me proteger, Dr. Fastolfe? Por que não deixar que me matem e usar minha morte como um caminho para a vitória?
- Porque prefiro que fique vivo e tenha sucesso, demonstrando realmente minha inocência.
- Mas o senhor sabe com certeza que não posso demonstrar sua inocência - replicou Baley.
- Talvez o senhor possa. O senhor tem vários incentivos. O bem-estar da Terra e sua carreira dependem disso, como também me afirmou.
- De que serve o incentivo? Se me mandar voar batendo os braços e depois me disser que falhei, serei imediatamente morto em tortura lenta, a Terra será explodida e toda sua população destruída. Terei enorme incentivo para bater minhas asas e voar... mas continuarei incapaz de fazê-lo.
- Sei que as possibilidades são poucas - retrucou Fastolfe, preocupado.
- Sabe que são inexistentes - disse Baley com violência - e que só a minha morte pode salvá-lo.
- Então não serei salvo, pois estou tratando de evitar que meus inimigos o peguem.
- Mas o senhor pode me atingir.
- Como?
- Estou pensando, Dr. Fastolfe, que o senhor mesmo pode me matar de maneira a parecer que seus inimigos realizaram a façanha. Irá então usar minha morte contra eles... e foi por isso que me trouxe aqui.
Durante um momento, Fastolfe olhou Baley meio surpreso e depois, num acesso de ira súbita e extrema, seu rosto ficou rubro e retorcido num resmungo. Erguendo o condimentador da mesa, agrediu Baley com ele.
E Baley, apanhado inteiramente de surpresa, mal conseguiu encolher-se na cadeira.
Daneel e Giskard
Se Fastolfe tinha agido com rapidez, Daneel tinha reagido com muito maior presteza.
Para Baley, que tinha esquecido a presença de Daneel, pareceu ter havido um vago avanço rápido, um som confuso, e imediatamente Daneel estava ao lado de Fastolfe, segurando o condimentador e dizendo:
- Espero, Dr. Fastolfe, que não o tenha machucado de maneira nenhuma.
Baley reparou, meio aturdido, que Giskard não estava longe de Fastolfe, no outro lado, e que cada um dos quatro robôs na parede do fundo tinha avançado até quase à mesa de jantar.
Ligeiramente ofegante, com os cabelos meio despenteados, Fastolfe disse:
- Não, Daneel. Na verdade, você agiu bem. - Ergueu a voz: - Todos procederam muito bem, mas lembrem, não devem permitir que alguma coisa os retarde, mesmo quando estou em causa.
Riu baixinho e tornou a sentar-se, penteando o cabelo com a mão.
- Lamento tê-lo assustado tanto, Sr. Baley, mas achei que a demonstração poderia ser mais convincente que as palavras.
Baley, cujo momento de retração não passara de reflexo, afrouxou o colarinho e disse, com uma leve rouquidão:
- Acho que esperava palavras, mas concordo em que a demonstração foi convincente. Fico contente por Daneel estar bastante perto para desarmá-lo.
- Qualquer um deles estava bastante perto, porém Daneel era o mais próximo e me pegou primeiro. E pegou-me com rapidez bastante para não me machucar. Se ele estivesse mais afastado, poderia ter arrancado meu braço ou mesmo me derrubado.
- Ele chegaria a tanto?
- Sr. Baley - respondeu Fastolfe - dei instruções para sua proteção e sei como dá-las. Não teriam hesitado em salvá-lo, mesmo que a alternativa fosse me ferir. Teriam, é claro, procurado me atingir o mínimo possível, como Daneel fez. Ele só feriu a minha dignidade e a impecabilidade do meu penteado. E meus dedos tremem um pouco - terminou Fastolfe, flexionando-os pesarosamente.
Baley respirou fundo, procurando recuperar-se daquele instante de confusão.
- Daneel não teria me protegido sem suas instruções específicas? - perguntou Baley.
- Sem dúvida. Teria, sim. Não deve pensar contudo que a reação robótica é um simples sim ou não, suba ou desça, entre ou saia. É um engano freqüente dos leigos.
Trata-se da velocidade da reação. Minhas instruções referentes ao senhor foram tão claras que a potencialidade dos robôs do meu estabelecimento, incluído Daneel, é anormalmente alta, de fato tão alta quando posso torná-la, razoavelmente. A reação, portanto, a um perigo presente e imediato ao senhor é extraordinariamente rápida.
Eu sabia que seria e foi por esse motivo que pude atacá-lo tão rapidamente como fiz... sabendo que podia dar-lhe a mais convincente demonstração da minha incapacidade de feri-lo.
- Sim, mas não estou completamente agradecido por isso.
- Ah, eu estava inteiramente confiante em meus robôs, especialmente em Daneel. Ocorreu-me porém, um pouco tarde demais, que se eu não tivesse largado o condimentador, Daneel poderia muito contra sua vontade, ou o equivalente robótico de vontade, quebrado meu pulso.
- Ocorre-me que foi um risco tolo tomado pelo senhor - retrucou Baley.
- Também acho o mesmo... depois do fato. Agora, se o senhor tivesse se preparado para me atirar o condimentador, Daneel teria imediatamente evitado seu movimento, porém não com a mesma velocidade, pois não tinha recebido instruções especiais em relação à minha segurança. Espero que ele tivesse sido bastante rápido para me salvar, mas não tenho certeza... e prefiro não experimentar - terminou Fastolfe, com um sorriso cordial.
- E se algum explosivo tivesse sido atirado na casa, de um veículo aéreo?
- Ou se um raio gama for atirado em nós de cima de uma colina próxima... Meus robôs não representam uma proteção infinita, mas tais tentativas terroristas são improváveis ao extremo aqui em Aurora. Sugiro que não nos preocupemos com elas.
- Não estou desejando me preocupar com elas. Na realidade, não suspeito seriamente que o senhor, Dr. Fastolfe, se constitua um perigo para mim. Porém necessito eliminar todas as possibilidades, se quero prosseguir. Podemos agora continuar.
- Sim, podemos - confirmou Fastolfe. - Apesar do desvio bastante dramático acrescentado, ainda encaramos o problema de provar que o congelamento mental de Jander foi um acontecimento espontâneo.
Mas Baley havia percebido a presença de Daneel e virou-se para ele, perguntando, preocupado:
- Daneel, este assunto que discutimos o perturba?
Daneel, que depositara o condimentador numa das mesas vazias mais afastadas, retrucou:
- Colega Elijah, gostaria que o amigo-findo, Jander, ainda fosse operacional, porém uma vez que não é e não pode ser restaurado para funcionar devidamente, o melhor a fazer é que seja iniciada uma ação para evitar incidentes semelhantes no futuro. Visto que a discussão agora encaminha-se para esse fim, o assunto me agrada mais que perturba.
- Bem, então, para assentar o assunto, Daneel você crê que o Dr. Fastolfe é responsável pelo fim do seu colega-robô Jander?... O senhor desculpa minha pergunta, Dr. Fastolfe?
Fastolfe fez um gesto de concordância e Daneel respondeu:
- O Dr. Fastolfe declarou que não foi responsável e portanto, é claro, não foi.
- Não tem dúvidas a respeito, Daneel?
- Nenhuma, Colega Elijah. Fastolfe pareceu um tanto divertido.
- O senhor está interrogando um robô, Sr. Baley.
- Sei disso, mas não consigo pensar em Daneel como robô e Por isso perguntei.
- A resposta dele não teria sido aceita em nenhuma Comissão de Inquérito. Ele é obrigado a acreditar em mim por causa dos seus potenciais positrônicos.
- Não sou uma Comissão de Inquérito, Dr. Fastolfe, e estou limpando o terreno. Permita-me que recomece de onde parei. Ou o senhor queimou o cérebro de Jander ou isso aconteceu por uma circunstância fortuita. O senhor me afirma que não posso provar a última, restando-se apenas a tarefa de refutar uma ação sua. Em outras palavras, se não posso provar que é impossível o senhor ter assassinado Jander, resta-nos a circunstância fortuita como única alternativa.
- E como pode fazer isso?
- É uma questão de modo, oportunidade e motivo. O senhor tinha o meio de matar Jander: a capacidade teórica de manipulá-lo tanto, que terminaria num congelamento mental. Mas teve a oportunidade? Ele era seu robô, no sentido em que projetou suas circunvoluções cerebrais e supervisionou sua construção, porém estava ele realmente em seu poder na época do congelamento mental?
- De fato, não. Pertencia a outro.
- Havia quanto tempo?
- Cerca de oito meses... ou pouco mais da metade de um dos seus anos.
- Ah. É um ponto interessante. O senhor estava com ele, ou perto dele, na data da sua destruição? O senhor podia tê-lo pegado? Em suma, podemos demonstrar que o senhor estava tão longe dele, ou impossível de tocá-lo, que não é lógico supor que poderia ter realizado aquele ato na hora em que supostamente aconteceu?
- Temo que isso seja impossível - retrucou Fastolfe. - Há um intervalo de tempo bastante grande durante o qual o crime poderia ter acontecido. Não há mudanças robóticas após a destruição, equivalentes ao rigor mortis ou decomposição num ser humano. Podemos apenas dizer que num certo instante Jander estava operando e num outro momento não mais estava em atividade. Entre os dois, houve um lapso de cerca de oito horas. Não tenho álibi para esse período.
- Nenhum? Dr. Fastolfe, que estava o senhor fazendo nesse período?
- Eu estava aqui no meu estabelecimento.
- Com toda a certeza, meus robôs sabiam que estava aqui e podiam testemunhar.
- Certamente sabiam, mas não podiam testemunhar, sob nenhuma forma legal, e nesse dia Fanya tinha saído para tratar de assuntos pessoais.
- Por falar nela, Fanya tem acesso aos seus conhecimentos de robótica?
Fastolfe permitiu-se um sorriso malicioso.
- Ela sabe menos que o senhor... Além disso, ignora este assunto.
- Por quê?
A paciência de Fastolfe começava evidentemente a chegar ao fim.
Meu caro Sr. Baley, aquilo não foi um caso de ataque físico como o pretenso ataque ao senhor. O que aconteceu a Jander não exigia a minha presença física. Acontece que embora não realmente no meu estabelecimento, Jander não estava longe geograficamente, mas não teria importado se estivesse do outro lado de Aurora. Eu poderia a qualquer instante alcançá-lo eletronicamente e com as ordens que lhe dei e as reações que pude desenvolver nele levá-lo ao congelamento mental. O passo decisivo nem mesmo exigiria muito com relação ao tempo...
Baley perguntou imediatamente:
- Então é um processo rápido, que alguém mais pode movimentar por acaso, enquanto pretende uma coisa perfeitamente rotineira?
- Não! - retrucou Fastolfe. - Terráqueo, deixe-me falar, para o bem de Aurora. Já lhe disse que não é esse o caso. Induzir em Jander o congelamento mental seria um processo longo, complicado e tortuoso, requerendo o maior conhecimento e capacidade, não podendo ser feito por alguém acidentalmente, sem uma coincidência incrível e consecutiva. Haveria muito menos possibilidade de um Progresso acidental nessa estrada enormemente complexa que de um congelamento mental espontâneo, se meu raciocínio matemático fosse aceito.
Contudo, se eu quisesse provocar o congelamento mental, poderia cautelosamente provocar mudanças e reações, pouco a pouco, durante semanas, meses e mesmo anos, até levar Jander ao ponto e ato de destruição. E em nenhum momento desse processo ele mostraria sinais de estar à beira da catástrofe, exatamente como alguém se aproxima cada vez mais de um precipício no escuro, sem sentir a Perda de firmeza no andar, mesmo na beirinha. Contudo, uma vez tendo feito chegar até ali, a beira do precipício, um simples comentário meu o faria atirar-se. É esse passo final que é preciso ser dado no momento exato. Compreende?
Baley apertou os lábios. Não adiantava tentar mascarar seu desapontamento.
- Então, em suma, o senhor teve a oportunidade.
- Qualquer um teria tido a oportunidade. Qualquer um em Aurora, desde que, ele ou ela, tivesse a necessária capacidade.
- E só o senhor tem a necessária capacidade.
- Temo que sim.
- O que nos leva ao motivo, Dr. Fastolfe.
- Ah.
- E aqui está o que poderá nos tornar capazes de ter um bom caso. Esses robôs humaniformes são seus. São baseados em sua teoria e o senhor participou de sua construção a cada instante, mesmo que o Dr. Sarton tenha supervisado essa construção. Eles existem por sua causa e unicamente por sua causa. O senhor referiu-se a Daneel como seu "primogênito". São criações suas, seus filhos, seu presente à humanidade, sua certeza de imortalidade - Baley começou a ficar eloqüente e, por um instante, imaginou-se falando a uma Comissão de Inquérito. - Por que na Terra, ou melhor, Aurora, por que em Aurora o senhor iria desfazer essa obra? Por que iria destruir uma vida que produziu por um milagre de trabalho mental?
Fastolfe pareceu meio divertido.
- Ora, Sr. Baley, o senhor nada sabe a esse respeito. Como poderia saber que minha teoria foi o resultado de um milagre de trabalho mental? Poderia ter sido a completa extensão de uma equação que qualquer um seria capaz de ter realizado, mas não se deu ao trabalho de fazer antes de mim.
- Não concordo - disse Baley, esforçando-se para ficar calmo. - Se só o senhor compreende o cérebro humaniforme o suficiente para destruí-lo, acho que provavelmente só o senhor pode compreendê-lo o suficiente para tê-lo criado. Nega isso?
Fastolfe sacudiu a cabeça.
- Não, não Vou negar. E mais, Sr. Baley - seu rosto ficou mais triste que quando se tinham encontrado - sua análise cuidadosa só tem como conseqüência tornar o caso ainda pior para nós. Já concluímos que sou o único com os meios e a oportunidade. Como se vê, tenho também um motivo, o melhor do mundo, e meus inimigos sabem disso. Como então pela Terra, para citá-lo, ou por Aurora ou qualquer outro lugar, iremos provar que não o fiz?
O rosto de Baley contraiu-se num franzir furioso. Andou depressa, na direção do canto da sala, como se quisesse trancar-se. Depois virou-se subitamente para Fastolfe, dizendo com firmeza:
- Dr. Fastolfe, parece que o senhor sente prazer em me frustrar.
Fastolfe encolheu os ombros.
- Nenhum prazer. Simplesmente apresento-lhe o problema como ele é. O pobre Jander sucumbiu à morte robótica pela pura incerteza da flutuação positrônica. Uma vez que eu sei que nada tenho a ver com isso, sei como deve ter sido. Contudo, ninguém mais pode ter certeza de que sou inocente e todas as provas indiretas me apontam... e isso precisa ser encarado francamente, resolvendo o que podemos fazer, se pudermos.
- Bem - disse Baley - nesse caso investiguemos seu motivo. O que parece ser um motivo insuperável para o senhor, pode não ser nada disso.
- Duvido. Não sou louco, Sr. Baley.
- Também não é juiz de si mesmo, talvez, e de seus motivos. As pessoas às vezes não são. O senhor pode estar dramatizando por alguma razão.
- Não acho.
- Então me conte seu motivo. Qual é? Diga!
- Calma, Sr. Baley. Não é fácil explicar... Pode ir lá fora comigo?
Baley olhou depressa para a janela. Lá fora? O sol estava baixo no céu e a sala iluminada por ele. Hesitou e depois respondeu, num tom um pouco mais alto que o necessário:
- Sim, posso!
- Excelente - disse Fastolfe. E depois, com uma nota amistosa, acrescentou: - Mas talvez queira visitar o Pessoal antes.
Baley refletiu um instante. Não sentia urgência, mas não sabia o Que o esperava no Exterior, quanto tempo iria permanecer lá, que facilidades haveria ou não lá.
Além do mais, não conhecia os costumes auroreanos a esse respeito e não lembrava de ter visto nada, nos livros-filmes que examinara na nave, que servisse para esclarecê-lo a respeito. Talvez fosse mais seguro concordar com tudo o que o anfitrião sugerisse.
- Obrigado - respondeu - acho que será conveniente. Fastolfe concordou de cabeça.
- Daneel - disse - leve o Sr. Baley ao Pessoal das Visitas.
- Colega Elijah, quer me acompanhar? - convidou Daneel. Quando passaram para a sala ao lado, Baley disse:
- Lamento que você não tenha participado da conversa entre mim e o Dr. Fastolfe.
- Não seria cabível, Colega Elijah. Quando você me fez uma pergunta direta eu respondi, mas não fui convidado a participar da conversa.
- Eu teria feito o convite, Daneel, se não me sentisse constrangido pela minha posição de convidado. Pensei que não ficaria bem tomar a iniciativa.
- Compreendo... Este é o Pessoal das Visitas, Colega Elijah. A porta abrirá ao toque de sua mão, se o local estiver desocupado.
Baley não entrou. Parou, pensativo, dizendo depois:
- Se você tivesse sido convidado a falar, Daneel, teria alguma coisa a dizer? Algum comentário que desejasse fazer? Levo sua opinião muito em conta, amigo.
Daneel respondeu, com seu ar grave habitual:
- O único comentário que desejo fazer é que a declaração do Dr. Fastolfe de que tinha um excelente motivo para colocar Jander fora de atividade, foi uma surpresa inesperada para mim. Não sei que motivo possa ser. Contudo, qualquer que seja esse motivo, você pode perguntar por que não teve motivo semelhante para me colocar em congelamento mental. Se ele acredita ter tido um motivo para desativar Jander, por que o mesmo motivo não me é aplicado? Estou curioso para saber.
Baley olhou firmemente para o outro, procurando automaticamente uma expressão num rosto naturalmente impassível.
- Sente-se inseguro, Daneel? - perguntou. - Acha que Fastolfe é um perigo para você?
- Pela Terceira Lei - retrucou Daneel - devo proteger minha própria existência, mas não devo resistir ao Dr. Fastolfe ou a outro ser humano se, na abalizada opinião deles, seja necessário terminar minha existência. Esta é a Segunda Lei. Contudo, sei que valho muito, tanto em termos de investimento de material, trabalho e tempo, como em termos de importância científica. Portanto, tornase necessário que me seja explicado claramente o motivo da necessidade de terminar minha existência.
O Dr. Fastolfe nunca me disse nada, nunca, Colega Elijah, que fizesse supor ter ele isso em mente. Não acredito que tenha pensado, mesmo remotamente, em acabar com minha existência ou com a de Jander. Um desvio positrônico fortuito deve ter acabado com Jander e poderá um dia acabar comigo. Há sempre um elemento de risco no Universo.
- Você diz, Fastolfe também diz e eu acredito - falou Baley - mas é difícil persuadir as pessoas em geral a aceitarem isso. - Virou-se com ar sombrio para o Pessoal e acrescentou: - Vai entrar comigo, Daneel?
A fisionomia de Daneel esforçou-se para ficar divertida.
- É agradável, Colega Elijah, ser considerado humano até esse ponto. Não é preciso, é claro.
- Evidente. Mas apesar disso, pode entrar.
- Não seria apropriado para eu entrar. Não é costume os robôs entrarem no Pessoal. O interior desse recinto é puramente humano... Além disso é um Pessoal individual.
- Individual! - Momentaneamente, Baley ficou chocado. Contudo, recuperou-se. Outros mundos, outros hábitos! E não lembrava deste ter sido descrito nos livros-filmes.
Prosseguiu: - Então foi o que quis dizer ao afirmar que a porta só abriria se estivesse desocupado. E se estivesse ocupado, como estará logo?
- Então não abriria a um toque do exterior, claro, e sua privacidade seria protegida. Naturalmente, abrirá a um toque do interior.
- E se um visitante desmaiar, tiver um ataque do coração quando no interior e não puder tocar a porta por dentro? Não quer dizer que ninguém poderá entrar para socorrê-lo?
- Há meios para abrir a porta numa emergência, Colega Elijah, se parecer aconselhável. - Depois, evidentemente perturbado:
- Você acha que uma coisa assim poderá acontecer?
- Não, claro que não... Foi apenas curiosidade.
- Estarei do lado de fora da porta - disse Daneel, preocupado. Se eu ouvir um chamado. Colega Elijah, acudirei correndo.
- Duvido que precise.
Baley tocou na porta, leve e descuidadamente, com as costas da mão. e ela abriu-se imediatamente. Esperou um momento ou dois Para ver se fecharia. Não fechou. Entrou e então a porta fechou-se perfeitamente.
Enquanto a porta estava aberta, o Pessoal parecia um local adequado à sua finalidade. Uma pia, um boxe (presumivelmente com chuveiro), uma banheira, uma meia porta fosca, sem dúvida, com uma latrina. Havia inúmeros dispositivos que não identificou. Considerou-os como para atendimento de serviços pessoais de uma forma ou outra.
Tinha pouca possibilidade de examiná-los, pois num instante desapareceram todos e ficou imaginando se o que tinha visto realmente estivera ali ou se pareceram existir porque eram o que ele esperava ver.
Assim que a porta fechou-se, o compartimento escureceu, pois não tinha janela. Quando a porta ficou totalmente fechada, tornou a iluminar-se, porém nada do que tinha visto voltou. Era a luz do sol e ele estava no Exterior... ou assim lhe pareceu.
Sobre sua cabeça, o céu com nuvens passando, mas de um modo tão uniforme que era evidentemente irreal. De cada lado, igualmente uma extensão de folhagem, movendo-se da mesma forma repetitiva.
Sentiu o familiar nó no estômago, que lhe aparecia sempre que estava no Exterior... mas não no Exterior. Tinhg entrado num compartimento sem janelas. Era um truque de iluminação.
Olhou para a frente e, devagar, arrastou os pés nessa direção. Estendeu as mãos. Lentamente. com o olhar fixo. Suas mãos tocaram uma parede lisa. Sentiu seu nivelamento para todos os lados. Tocou o que tinha visto como uma pia naquele instante de visão original e, guiado pelas mãos, pôde vê-la agora: indistintamente, indistintamente contra a dominante sensação de luz.
Encontrou a torneira, porém não saía água. Tateou-a e não encontrou o equivalente ao dispositivo conhecido, que fazia a água jorrar. Deu com uma faixa comprida, meio áspera, que a fazia destacar-se da parede em volta. Quando seus dedos passaram sobre ela, apertou-a levemente, experimentando imediatamente a verdura, que se estendia muito além do plano ao longo do qual seus dedos lhe disseram que a parede existia, foi dividida por um arroio, caindo velozmente de uma elevação na direção de seus pés, com um barulho de esguicho.
Num pânico mecânico, pulou para trás, mas a água sumiu antes de atingir seus pés. Não parou de correr, mas não atingiu o chão. Estendeu a mão. Não era água, mas uma ilusão luminosa de água molhou sua mão, nada sentiu. Mas seus olhos teimosamente resistiram à prova. Eles viram água. Acompanhou o arroio com os olhos até em cima e finalmente chegou a uma coisa que era água: um fio saindo da torneira. Estava fria.
Seus dedos tornaram a achar a tira e tatearam, apertando aqui e ali. A temperatura mudava rapidamente e ele achou o ponto que fornecia água de tepidez conveniente.
Não encontrou sabonete. Meio relutante, começou a esfregar as mãos não ensaboadas sob o que parecia ser uma fonte natural, que deveria encharcá-lo da cabeça aos pés, mas não o fazia. E como se o mecanismo pudesse ler sua mente ou, mais provavelmente, fosse guiado pelo atrito de suas mãos, sentiu a água ficar ensaboada, enquanto que a fonte que ele via/não via encheu-se de bolhas que se transformaram em espuma.
Ainda relutante, curvou-se sob a pia e esfregou o rosto com a mesma água de sabão. Sentiu a aspereza da barba, mas sabia que, sem instruções, não tinha como transformar o equipamento daquele compartimento num barbeador.
Terminou e conservou as mãos sob a água, sem saber o que fazer. Como parar o sabonete? Não precisou perguntar. Presumivelmente, suas mãos, não mais se esfregando ou seu rosto, o fariam. A água perdeu o sabão, que foi lavado de suas mãos. Banhou o rosto com a água - sem esfregar - e ele também foi enxaguado. Sem a ajuda da visão e com a inabilidade de alguém não habituado ao processo, molhou completamente a camisa.
Toalhas? Papel?
Deu um passo atrás, de olhos fechados, mantendo a cabeça inclinada para a fente, evitando pingar mais água em suas roupas. Recuar foi, evidentemente, a chave da ação, pois sentiu o fluxo quente de uma corrente de ar. Colocou seu rosto dentro dela e depois as mãos.
Abriu os olhos e viu que a fonte não estava mais correndo. Usou as mãos e viu que não podia sentir água de verdade.
O nó em seu estômago há muito se transformara em irritação. Reconheceu que Pessoais variavam enormemente de mundo para mundo, mas de certa forma essa bobagem de
Exterior simulado ia longe demais.
Na Terra, um Pessoal era um enorme recinto coletivo, restrito a um único sexo, com compartimentos privados, dos quais cada um tinha uma chave. Em Solaria, entrava-se num Pessoal por um corredor estreito existente ao lado da casa, que os solarianos esperavam não fosse considerado como parte do seu lar. Contudo, em ambos mundos, apesar de tão diferentes, os Pessoais eram claramente definidos e a função de tudo neles não podia ser confundida. Por que em Aurora, havia esse cuidadoso fingimento de rusticidade, quef mascara inteiramente cada parte de um Pessoal?
Por quê?
De qualquer forma, seu aborrecimento deu-lhe um pequeno espaço emocional, onde podia sentir-se inquieto com esse falso exterior. Caminhou na direção de onde lembrava ter visto a meia porta fosca.
Não foi a direção correta. Encontrou-a somente depois de acompanhar a parede devagar e após ter esfolado várias partes do corpo em protuberâncias.
Finalmente, viu-se urinando numa ilusão de pequena poça, que não parecia estar recebendo o jato devidamente. Seus joelhos disseram-lhe que estava apontando corretamente entre os lados do que ele achou ser um urinol e disse a si mesmo que, se estivesse usando o receptáculo errado ou errando a pontaria, a culpa não era sua.
Durante um momento, após urinar, pensou em procurar a pia e dar uma lavagem final nas mãos, porém decidiu o contrário. Simplesmente não podia enfrentar a procura e aquela falsa queda d'água.
Em vez disso, achou, tateando, a porta pela qual entrara, mas não sabia que a tinha achado até que o toque de sua mão resultou na sua abertura. A luz sumiu imediatamente e o resplendor não ilusório do dia o cercou.
Daneel estava à sua espera, com Fastolfe e Giskard.
- O senhor levou quase vinte minutos - disse Fastolfe. - Começávamos a temer pelo senhor.
Baley sentiu sua raiva crescer.
- Tive problemas com suas ilusões idiotas - replicou, de forma contida.
Fastolfe franziu os lábios e ergueu as sobrancelhas, num silencioso "Ahh!" e depois disse:
- Há um contato interno junto à porta que controla a ilusão. Pode diminuí-la e permitir-lhe que veja a realidade através dela... ou elimina totalmente a ilusão, se quiser.
- Ninguém me informou. Todos os seus Pessoais são assim?
- Não - retrucou Fastolfe. - Os Pessoais de Aurora possuem comumente qualidades ilusórias, porém a natureza da ilusão varia de acordo com o indivíduo. A ilusão de verdor natural me agrada e modifico seus detalhes de tempos em tempos. Como sabe, a gente se cansa de tudo, após um certo período. Há pessoas que fazem uso de ilusões eróticas, porém isso não me agrada.
Claro, quando se está familiarizado com Pessoais, as ilusões não perturbam. Os compartimentos são padronizados e sempre se sabe onde tudo está. Não é pior que mover-se no quarto escuro bem conhecido... Mas, diga-me, Sr. Baley, por que não procurou a saída e pediu informações?
- Porque - respondeu Baley - não quis. Confesso que fiquei tremendamente irritado com as ilusões, mas aceitei-as. Afinal de contas, foi Daneel quem me conduziu ao Pessoal e ele não me deu informações nem me fez advertências. Certamente teria me instruído se lhe deixassem tomar a iniciativa, pois evidentemente teria previsto que de outra forma eu seria prejudicado. Tenho de concluir, portanto, que o senhor instruiu-o cuidadosamente para não me advertir, e uma vez que eu realmente não ache que o senhor tenha feito uma brincadeira comigo, tenho de admitir que o senhor tinha um objetivo sério ao fazê-lo.
- Ah?
- Afinal de contas, o senhor me convidou para ir ao Exterior, e quando concordei, o senhor imediatamente perguntou-me se eu queria ir ao Pessoal. Achei que a finalidade de me mandar para dentro de uma ilusão de Exterior era para ver se eu podia suportá-lo... ou se sairia correndo, em pânico. Se pudesse agüentá-lo, teriam confiança em mim no verdadeiro Exterior. Bem, suportei. Estou um pouco molhado, graças ao senhor, porém secará logo.
- O senhor é uma pessoa lúcida, Sr. Baley - disse Fastolfe. - Peço-lhe desculpa pela natureza da prova e pelo incômodo que lhe causei. Eu estava apenas afastando a possibilidade de um incômodo maior. O senhor ainda deseja sair comigo?
- Não só desejo, Dr. Fastolfe, como insisto.
Partiram por um corredor, com Daneel e Giskard logo atrás. - Espero que o senhor não se importe que os robôs venham conosco - disse Fastolfe, em tom de conversa. - Os auroreanos nunca vão a parte alguma sem pelo menos um robô para atendê-los e no seu caso em particular, preciso insistir que Daneel e Giskard estejam com o senhor o tempo todo.
Abriu uma porta e Baley procurou manter-se firme contra o sol e o vento, para não falar no estranho e sutil odor emanado do solo auroreano que o rodeava.
Fastolfe pôs-se de lado e Giskard saiu em primeiro lugar. O robô examinou cuidadosamente os arredores durante um momento. Tinha-se a impressão de que todos os seus sentidos estavam intensamente aplicados. Olhou para trás e Daneel juntou-se a ele, fazendo o mesmo.
- Espere um pouco, Sr. Baley - falou Fastolfe - e eles nos dirão se acham seguro que saiamos. Vou usar a oportunidade para mais uma vez pedir desculpas pelo meu comportamento vil com relação ao Pessoal. Garanto-lhe que teríamos sabido se o senhor estivesse em dificuldades: seus vários sinais vitais estavam sendo registrados.
Sinto-me muito contente, embora não totalmente surpreso, por ter o senhor percebido minha intenção.
Sorriu e hesitando quase imperceptivelmente pôs a mão no ombro esquerdo de Baley, apertando-o amigavelmente.
Baley manteve-se firme.
- O senhor parece ter esquecido do seu anterior truque vil: sua aparente agressão a mim com o condimentador. Se me garantir que de agora em diante vamos nos tratar franca e honestamente, considerarei esse assunto como boas intenções.
- De acordo!
- É seguro sair agora?
Baley olhou na direção seguida por Giskard e Daneel, que tinham se afastado e separado, um para cada lado, sempre examinando e observando.
- Ainda não. Eles deverão fazer a volta completa do estabelecimento... Daneel me disse que o senhor o convidou a entrarem juntos no Pessoal. Verdadeiramente, que significava isso?
- Sim, eu sabia que ele não precisava, mas julguei indelicado deixá-lo fora. Eu não estava certo dos costumes auroreanos a esse respeito, apesar de tudo o que li sobre o assunto.
- Suponho que não é uma dessas coisas que os auroreanos consideram necessário citar e, é claro, não se pode esperar que os livros façam qualquer tentativa de preparar o visitante terráqueo para coisas assim...
- Porque há tão poucos visitantes terráqueos?
- Exatamente. Trata-se do fato de que, claro, os robôs jamais vão aos Pessoais. Esse é o único local onde os seres humanos ficam livres deles. Suponho que há necessidade de alguém sentir-se livre deles em certos períodos e lugares.
- E no entanto - retrucou Baley - quando Daneel esteve na Terra, por ocasião da morte de Sarton, há três anos, procurei afastálo do Pessoal Comunitário, dizendo-lhe que não necessitava. Todavia, ele insistiu em entrar.
- E com toda razão. Na época, ele foi rigorosamente instruído a não dar algum indício de que não era humano, por motivos dos quais o senhor bem se lembra. Aqui em Aurora, contudo... Ah, já terminaram.
Os robôs estavam caminhando para a porta e Daneel fez-lhe um gesto para saírem.
Fastolfe ergueu o braço para barrar o caminho de Baley.
- Se não se importa, Sr. Baley, sairei primeiro. Conte pacientemente até cem e depois junte-se a nós.
Baley, ao chegar a cem, saiu e caminhou com firmeza para Fastolfe. Seu rosto estava, talvez, muito duro, seus maxilares fortemente cerrados e as costas empertigadas.
Olhou em volta. A cena não era muito diferente da que apareceu no Pessoal. Fastolfe tinha provavelmente usado seu próprio terreno como modelo. O verde estendia-se por toda parte e havia um regato escorrendo de uma encosta. Talvez fosse artificial, mas não era ilusão. A água era real. Sentiu o borrifo quando passou perto.
Havia uma espécie de domesticidade em tudo aquilo. O Exterior na Terra era mais selvagem e mais grandiosamente belo, pelo pouco que Baley vira dele.
Tocando-lhe levemente o braço e apontando, Fastolfe disse:
- Venha por aqui. Olhe!
Uma abertura entre duas árvores mostrava um trecho gramado.
Pela primeira vez, havia uma sensação de distância e no horizonte podia ser visto um lugar habitado: telhados baixos e extensos, tão verdes que quase se confundiam com a paisagem.
- Esta é uma área residencial - disse Fastolfe. - Pode não lhe parecer, pois o senhor está acostumado com as tremendas colméias terrestres, mas estamos na cidade auroreana de Eos, que é de fato o centro administrativo do planeta. Ali moram vinte mil seres humanos, o que a torna a maior cidade não apenas de Aurora, mas de todos os mundos Espaciais. Há tantos habitantes em Eos quanto em toda Solaria.
Era visível o orgulho de Fastolfe ao dizer isso.
- Quantos robôs, Dr. Fastolfe?
- Neste setor? Talvez uns cem mil. No planeta como um todo, há cinqüenta robôs para cada ser humano, em média, e não dez mil como em Solaria. A maior parte dos nossos robôs está nas fazendas, nas minas, nas fábricas, no espaço. Na verdade, temos poucos robôs, principalmente domésticos. A maioria dos auroreanos se contenta com dois ou três deles e alguns apenas com um. Contudo, não queremos seguir o exemplo de Solaria.
- Quantos seres humanos não têm algum robô doméstico?
- Nenhum. Não seria de interesse público. Se algum ser humano, por qualquer motivo, não puder manter um robô, ele ou ela receberá um que será sustentado, se necessário, pelo serviço público.
- O que acontece se a população aumenta? Os senhores providenciam mais robôs?
Fastolfe balançou a cabeça.
- A população não aumenta. A de Aurora é de duzentos milhões e há três séculos tem permanecido estável. É a quantidade desejada. Certamente o senhor tomou conhecimento disso nos livros que viu.
- Sim, vi - confessou Baley - mas custei a acreditar.
- Garanto-lhe que é verdade. Isso dá a cada um de nós um bom pedaço de terra, um amplo espaço, uma grande privacidade e um bom naco dos recursos do mundo. Não há gente em excesso, como na Terra, nem de menos, como em Solaria.
Estendeu o braço para Baley se apoiar e poderem continuar andando.
- O que está vendo - prosseguiu Fastolfe - é um mundo domesticado. Trouxe-o cá fora, Sr. Baley, para mostrá-lo ao senhor.
- E não há perigo nele?
- Sempre há algum perigo. Temos tempestades, deslizamentos, terremotos, nevascas, avalanchas, um ou dois vulcões... A morte acidental nunca foi inteiramente eliminada. E sempre há o ódio passional ou pessoas invejosas, as asneiras dos imaturos e a loucura dos míopes. Contudo, essas coisas são de menor importância e não afetam muito a tranqüilidade civilizada que paira sobre nosso mundo.
Fastolfe pareceu refletir durante um momento sobre suas palavras e depois, com um suspiro, continuou:
- Dificilmente posso querer que seja diferente, mas tenho certas reservas intelectuais. Trouxemos para Aurora apenas as plantas e animais que achávamos seriam úteis, ornamentais ou ambas as coisas. Nos esforçamos para eliminar tudo o que fosse daninho, vermes ou abaixo dos padrões. Selecionamos seres humanos fortes, saudáveis e atraentes, de acordo com a nossa opinião, é claro. Tentamos... Mas o senhor sorri, Sr. Baley.
Não era verdade. Baley tinha apenas torcido a boca.
- Não, não - respondeu. - Não há motivo para sorrisos.
- Há, pois sei tão bem quanto o senhor que eu não sou atraente, pelos padrões auroreanos. O problema é que não podemos dirigir e controlar ao mesmo tempo combinações genéticas e influências intra-uterinas. Atualmente, é claro, com a ectogênese se tornando mais comum, embora eu espere que nunca se torne tão comum como em Solaria, eu seria eliminado no último estágio fetal.
- Caso em que, Dr. Fastolfe, os mundos teriam perdido um grande roboticista teórico.
- Perfeitamente correto - retrucou Fastolfe, sem sinal de encabulamento - mas os mundos jamais iriam saber disso, não é?... Em todo caso, tratamos de estabelecer um equilíbrio ecológico muito simples, mas perfeitamente executável, um clima estável, um solo fértil e recursos tão eqüitativamente distribuídos quanto possível.
O resultado é um mundo que produz tudo o que necessitamos e isso, se posso personificar, levando em conta nossas precisões... Quer conhecer o ideal pelo qual lutamos?
- Por favor - respondeu Baley.
- Nos esforçamos para construir um planeta que como um todo obedecesse as Três Leis da Robótica. Ele nada faz para ferir um ser humano, deliberadamente ou por omissão.
Ele faz o que queremos que faça, desde que não lhe pecamos que fira seres humanos. E ele se protege, exceto quando e em lugares que deva servir-nos ou salvar-nos, mesmo ao preço do seu próprio sacrifício. Em lugar algum, tanto na Terra como nos outros planetas Espaciais, isso está tão próximo da verdade quanto aqui em Aurora.
- Os terráqueos - suspirou Baley - também anseiam por isso, mas nos tornamos tão numerosos e estragamos de tal forma nosso planeta nos dias da nossa ignorância, que atualmente pouco podemos fazer a esse respeito... Mas e as formas nativas de vida? Certamente, os senhores não chegaram a um planeta morto.
- O senhor sabe que não, se folheou os livros da nossa história. Aurora tinha vegetação e vida animal quando chegamos... e uma forte atmosfera de oxigênio-hidrogênio.
O mesmo acontecia em todos os cinco mundos Espaciais. Curiosamente, em cada um, as formas de vida eram escassas e pouco variadas. Nem foram muito especialmente tenazes em defender seu próprio planeta. Nós os ocupamos, por assim dizer, sem luta... e o que restou da vida nativa está em nossos aquários, zoológicos e nas poucas áreas primevas cuidadosamente mantidas.
Realmente não compreendemos por que os planetas vivos que os humanos encontraram eram tão fracamente vivos, enquanto que a própria Terra foi inundada com variedades furiosamente tenazes de vida, enchendo cada setor, e por que só a Terra desenvolveu qualquer sinal de inteligência.
- Talvez seja coincidência - replicou Baley - acidente de exploração incompleta. Até agora só conhecemos poucos planetas.
- Admito que essa é a explicação mais provável - disse Fastolfe. - Em algum lugar talvez haja um equilíbrio ecológico tão complexo quanto o da Terra. Em algum lugar deve haver vida inteligente e uma civilização tecnológica. Contudo, a vida e a inteligência da Terra se espalharam por parsecs em todas as direções. Se há vida e inteligência em outras partes, por que não se espalharam também... e por que não as encontramos?
- Até onde sabemos, isso pode acontecer amanhã.
- Pode. E se tal encontro é iminente, mais um motivo para não ficarmos esperando passivamente. Pois estamos nos tornando passivos, Sr. Baley. Nenhum novo mundo Espacial foi colonizado nos últimos dois séculos e meio. Nossos mundos estão de tal forma acomodados, são tão encantadores, que não desejamos abandoná-los. O senhor sabe que este mundo foi colonizado porque a Terra se tornou tão desagradável que os riscos e os perigos dos mundos novos e vazios pareciam, por comparação, preferíveis. Na época do desenvolvimento dos nossos cinco mundo Espaciais - Solaria foi o último - não houve mais ímpeto, nenhuma necessidade de procurar outros. E a própria Terra recolheu-se às suas cavernas de aço. Fim.
- O senhor realmente não quer dizer isso.
- Se ficarmos onde estamos? Se nos mantivermos plácidos, confortáveis e imóveis? Claro, penso assim. A humanidade deve se expandir se quiser continuar a florescer.
Um método de expansão é através do espaço, através de constantes viagens pioneiras a outros mundos. Se desistirmos, qualquer outra civilização que está empreendendo essa expansão nos alcançará e não teremos como nos opor ao seu dinamismo.
- O senhor espera uma guerra espacial... como as das hiperondas.
- Não, duvido que seja necessária. Uma civilização que está se expandindo no espaço não necessita de nossos pequenos mundos e será provavelmente bastante adiantada intelectualmente para sentir a necessidade de abrir caminho quebrando nossa hegemonia aqui. Se contudo formos cercados por uma civilização mais vibrante e viva, definharemos apenas pela comparação, morreremos da certeza do que nos tornamos e do potencial que desperdiçamos. Claro, podemos substituir por outras expansões: compreensão científica ou vigor cultural, por exemplo. Temo porém que essas expansões não sejam destacáveis. Fracassar numa é fracassar em todas. E certamente estamos fracassando em todas. Temos a vida muito longa. Estamos confortáveis demais.
- Na Terra - disse Baley - consideramos os Espaciais todopoderosos e autoconfiantes. Não posso acreditar estar ouvindo isso de um dos senhores.
- Não ouvirá de nenhum outro Espacial. Minhas opiniões são antiquadas. Outros as achariam intoleráveis e não falo freqüentemente sobre isso com auroreanos. Ao contrário, simplesmente falo sobre um novo esforço para uma futura colonização, sem exprimir meus temores das catástrofes que resultarão se abandonarmos esse esforço. Nisso, pelo menos, tenho vencido. Aurora está considerando seriamente, até com entusiasmo, uma nova era de exploração e colonização.
- O senhor diz isso - comentou Baley - sem nenhum entusiasmo visível. O que é que há?
- Apenas que estamos nos aproximando do meu motivo para a destruição de Jander Panell.
Fastolfe parou, sacudiu a cabeça e continuou:
- Gostaria, Sr. Baley, de entender melhor os seres humanos. Passei seis décadas estudando os meandros do cérebro positrônico e espero passar mais quinze ou vinte.
Durante esse tempo, mal rocei no problema do cérebro humano, que é tremendamente mais complicado. Haverá Leis Humanísticas como há Leis de Robótica? Quantas Leis de Humanística podem existir e como podem ser exprimidas matematicamente? Não sei.
"Talvez, porém chegue um dia em que alguém possa produzir as Leis Humanísticas e então ter condições de prever os grandes ataques do futuro e saber o que pode estar reservado para a humanidade, no lugar de simplesmente adivinhar, como eu faço, e saber como tornar as coisas melhores, em vez de ficar apenas especulando. Há ocasiões em que sonho ter fundado uma ciência matemática que denomino de "psico-história", mas sei que não posso e temo que ninguém também possa.
Fez uma parada. Baley esperou um pouco e depois disse, suavemente:
- E o seu motivo para a destruição de Jander Panell, Dr. Fastolfe?
Fastolfe não pareceu ter ouvido a pergunta. De qualquer forma, não respondeu. Mudou de assunto, dizendo:
- Daneel e Giskard estão acenando que está tudo limpo. Diga-me, Sr. Baley, quer caminhar comigo um pouco mais pelo campo?
- Até onde? - perguntou Baley, cauteloso.
- Até um estabelecimento vizinho. Nesta direção, do outro lado do gramado. O ar livre o incomoda?
Baley apertou os lábios e olhou na direção indicada, como que tentando medir seu efeito.
- Acho que posso suportar. Não percebo nenhum incômodo. Giskard, que estava bastante perto para ouvir, aproximou-se mais, sem que seus olhos brilhassem ao sol. Se sua voz não tinha nenhuma emoção humana, suas palavras denunciavam sua preocupação.
- Senhor, permita que lembre que na viagem para cá o senhor sofreu bastante ao descer no planeta?
Baley virou-se e encarou-o. O que quer que pudesse sentir com relação a Daneel, por mais cordial que tivesse sido sua associação no passado, condicionando sua atitude com referência aos robôs, agora não havia nada. Achava o primitivo Giskard inteiramente repelente. Esforçou-se para eliminar a ponta de ira que sentia e disse:
- Eu estava descuidado na nave, rapaz, porque tinha muita curiosidade. Enfrentei uma visão que nunca experimentara antes e não tive tempo para me adaptar. Isto é diferente.
- Senhor, sente-se aflito agora? Posso ter certeza disso?
- O que eu faço ou não - retrucou Baley, incisivo (lembrando que o robô estava irremediavelmente nas garras da Primeira Lei e tentou ser cortês com um pedaço de metal que, afinal de contas, tinha sob sua responsabilidade o completo bem-estar de Baley) - não importa. Tenho minha obrigação a cumprir e ela não poderá ser executada se tiver de me enfiar em buracos.
- Sua obrigação? - perguntou Giskard, como se não tivesse sido programado para compreender a palavra.
Baley olhou rapidamente para Fastolfe, porém este ficou silencioso em seu lugar e não procurou intervir. Parecia estar ouvindo com um interesse abstrato, como que pesando a reação de um robô de um certo tipo diante de uma situação nova e comparando-a com relacionamentos, variáveis, constantes e equações diferenciais que só ele entendesse.
Ou foi o que Baley pensou. Sentiu-se aborrecido por ser parte de uma observação desse tipo e disse (talvez muito asperamente, reconheceu):
- Sabe o que significa "dever"?
- O que deve ser feito, senhor - respondeu Giskard.
- Seu dever é obedecer às Leis da Robótica. E os seres humanos também têm suas leis - como seu dono, Dr. Fastolfe, acabou de dizer - que devem ser obedecidas. Preciso fazer o que me foi determinado. É importante.
- Mas sair para o exterior quando o senhor não está...
- Contudo, precisa ser feito. Meu filho poderá ir um dia para outro planeta, muito menos confortável que este, e expor-se ao Exterior para o resto da vida dele.
E se eu puder, pretendo ir junto.
- Mas por que faria isso?
- Já lhe disse. Considero meu dever.
- Senhor, não posso desobedecer às Leis. O senhor pode desobedecer às suas? Pois preciso insistir com o senhor...
- Posso escolher não cumprir meu dever, mas não posso escolher... e esta é, às vezes, a compulsão mais forte, Giskard.
Houve um momento de silêncio e depois Giskard disse:
- O senhor ficaria danificado se eu conseguisse convencê-lo a não ir lá fora?
- Até onde isso me fizesse sentir ter fracassado na minha obrigação, sim.
- Mais dano que qualquer incômodo que pudesse sentir ao ar livre?
- Muito mais.
- Obrigado pela explicação, senhor - disse Giskard.
Baley imaginou haver um ar de contentamento no grande rosto inexpressivo do robô (a tendência humana a personificar era irreprimível).
Giskard afastou-se e então o Dr. Fastolfe falou.
- Foi interessante, Sr. Baley. Giskard precisava receber instruções antes de poder entender como planejar a reação positrônica potencial às Três Leis ou, mesmo, como esses potenciais podem se arrumar diante da situação. Agora ele sabe como se comportar.
- Reparei que Daneel não fez perguntas - disse Baley.
- Daneel o conhece - retrucou Fastolfe. - Esteve com o senhor na Terra e em Solaria. Mas venha, vamos passear? Andaremos devagar. Olhe em volta com atenção, e se a qualquer instante quiser descansar, esperar ou mesmo voltar, peço que me comunique.
- Prometo, mas qual a finalidade desta caminhada? Já que o senhor previu incômodo para mim, não deve ter feito essa sugestão sem motivo.
- De fato - replicou Fastolfe. - Acho que deseja ver o corpo inerte de Jander.
- Por forma, sim, mas acho que ele nada me dirá.
- Tenho certeza, mas o senhor também pode ter a oportunidade de interrogar quem quase foi dono de Jander na época da tragédia. Certamente, gostará de falar com outro ser humano, além de mim, relacionado com o caso.
Fastolfe começou a andar devagar, arrancou uma folha de um arbusto, dobrou-a e mordeu-a.
Baley olhou-o com curiosidade, espantando-se com o fato dos Espaciais meterem coisas não tratadas, não cozidas e mesmo não lavadas nas bocas, quando temiam tanto as infecções. Lembrou que Aurora estava livre (completamente livre?) de microrganismos patogênicos mas, de todo modo, achou o gesto repulsivo. A repulsão não precisava ter uma base racional, pensou defensivamente... e de súbito descobriu-se à beira de defender os Espaciais por suas atitudes em relação aos terráqueos.
Recuou! Isso era diferente! Os seres humanos estavam envolvidos ali!
Giskard começou a andar na frente e para a direita. Daneel ficou atrás e dirigiu-se à esquerda. O sol alaranjado de Aurora (Baley agora mal notava seu tom) estava medianamente quente às suas costas, o calor febril que o sol da Terra tinha no verão (mas então qual era o clima e estação, naquele instante, nessa parte de Aurora?).
A relva, ou o que quer que fosse (parecia relva), era um pouco mais forte e elástica que a da Terra, e o solo estava duro como se tivesse passado algum tempo sem chover.
Continuaram andando em direção à casa adiante, presumivelmente pertencente ao quase-dono de Jander.
Baley ouviu o roçar de um animal na relva à direita, o súbito chilrear de um pássaro numa árvore às suas costas e o barulho de insetos ao redor. Esses, pensou, eram todos animais cujos antepassados tinham vivido na Terra. Não tinham como saber que aquele pedaço de solo em que estavam não havia sido sempre assim: eternamente o mesmo. As árvores e a relva tinham nascido de outras árvores e relva que tinham crescido na Terra.
Só seres humanos podiam morar naquele mundo e saber que não eram nativos, mas produtos de terráqueos... e de fato os Espaciais sabiam disso realmente ou apenas apagaram isso da memória? Iria chegar o tempo em que, talvez, não soubessem mesmo? Quando não se lembrariam de que mundo vieram ou se houve, de fato, um mundo de origem?
- Dr. Fastolfe - disse repentinamente, em parte para interromper a cadeia de pensamentos que viu estar se tornando opressiva - o senhor ainda não me disse seu motivo para a destruição de Jander.
- É verdade! Não disse!... Ora, por que supõe o senhor, Sr. Baley, que eu me esforcei para lançar a base teórica dos cérebros positrônicos dos robôs humaniformes?
- Não sei dizer.
- Bem, pense. O objetivo era fabricar um cérebro robótico tão próximo quanto possível do humano e isso iria requerer, ao que parecia, um certo mergulho no poético... - Parou e seu leve sorriso transformou-se num riso aberto.
- O senhor sabe que alguns dos meus colegas ficam sempre aborrecidos quando digo-lhes que se a conclusão não é poeticamente equilibrada, não pode ser cientificamente verdadeira? Respondem-me que não sabem o que isso quer dizer.
- Temo que eu também não saiba - informou-lhe Baley.
- Mas eu sei o que significa. Não posso explicar, mas sinto a explicação, embora incapaz de exprimi-la com palavras, sendo talvez por isso que obtive resultados não alcançados por meus colegas. Contudo, tornei-me pomposo, um sinal certo de que Vou me tornar prosaico. Imitar um cérebro humano, quando quase nada sei sobre suas atividades, exige um salto intuitivo: uma coisa que para mim parece poesia. E o mesmo salto intuitivo que deveria me dar o cérebro positrônico humaniforme iria com certeza me propiciar um novo acesso ao conhecimento do próprio cérebro humano. Era no que eu acreditava: que através da humaniformidade, eu poderia dar pelo menos um pequeno passo na direção da psico-história, sobre a qual lhe falei.
- Compreendo.
- E se eu conseguisse apresentar uma estrutura teórica que levasse a um cérebro positrônico humaniforme, iria precisar de um corpo humaniforme para implantá-lo.
O cérebro não existe independente, como sabe. Há uma interação com o corpo e assim um cérebro humaniforme num corpo não humaniforme iria se tornar, por extensão, ele mesmo não-humano.
- Tem certeza?
- Absoluta. Basta comparar Daneel com Giskard.
- Então Daneel foi construído como um mecanismo experimental para posterior compreensão do cérebro humano?
- Exatamente. Eu e Sarton nos dedicamos durante duas décadas a essa tarefa. Houve vários fracassos que tiveram de ser jogados fora. Daneel foi o primeiro sucesso verdadeiro e, claro, conservei-o para um exame posterior... e sorriu de viés, como que confessando uma bobagem - amor. Afinal de contas, Daneel pode pegar a noção de dever humano, enquanto Giskard, apesar de todas as suas virtudes, tem dificuldade para fazê-lo. O senhor viu.
- E a primeira estada de Daneel na Terra comigo, há três anos, foi a primeira tarefa que lhe deram?
- A primeira de alguma importância. Quando Sarton foi assassinado, precisávamos de alguma coisa que fosse um robô e pudesse suportar as moléstias infecciosas da Terra e, ao mesmo tempo, parecesse suficientemente humano para contornar os preconceitos anti-robóticos dos terráqueos.
- Foi uma espantosa coincidência que Daneel estivesse disponível naquela hora.
- Ah? O senhor acredita em coincidências? Acho que sempre que uma invenção tão revolucionária quanto o robô humaniforme se concretiza, surge uma tarefa que exige seu uso. Trabalhos semelhantes provavelmente surgiram no decorrer dos anos em que Daneel não existia... e porque ele não existia, foram usados outros mecanismos e soluções.
- E teve sucesso em seus esforços, Dr. Fastolfe? Conhece agora o cérebro humano melhor que antes?
Fastolfe estava andando cada vez mais devagar e Baley adaptou seus passos ao dele. Achavam-se agora parados a meio caminho entre o estabelecimento de Fastolfe e a casa do outro. Foi o instante mais difícil para Baley, pois se encontravam igualmente distantes de qualquer proteção em qualquer direção, mas lutou contra a crescente sensação de mal-estar, determinado a não provocar Giskard. Não desejava, com um gesto ou grito - ou mesmo com a fisionomia - ativar o inconveniente desejo de Giskard de salvá-lo. Não queria ser agarrado e carregado para um abrigo.
Fastolfe não demonstrou ter percebido a dificuldade de Baley.
- Não há dúvida - disse ele - de que avanços em mentotogia têm sido feitos. Enormes problemas continuam e talvez irão permanecer, porém tem havido progressos. Todavia...
- Todavia?
- Todavia, Aurora não está satisfeito com o estudo puramente teórico do cérebro humano. Tem progredido o uso dos robôs humaniformes em certas coisas e eu não aprovo.
- Como o que foi feito na Terra.
- Não, aquilo foi uma breve experiência que não só aprovei, mas que também me fascinou. Poderia Daneel enganar os terráqueos? Verificou-se que sim, embora, claro, os olhos deles não fossem muito preparados para reconhecer robôs. Daneel não conseguiria enganar os olhos dos auroreanos, mas ouso dizer que os futuros robôs humaniformes poderão ser melhorados a ponto de poderem. Contudo, foram propostas outras tarefas.
- Tais como?
Fastolfe contemplou o horizonte, pensativo.
- Disse-lhe que este mundo foi domesticado. Quando comecei meu movimento para encorajar um novo período de exploração e colonização não foram os superacomodados auroreanos, ou Espaciais em geral, que pensei para chefiá-los. Em vez deles, pensei que devíamos encorajar os terráqueos a assumir a direção. com seu mundo horrível, desculpe, e pequena extensão de vida, tinham tão pouco a perder que pensei que certamente iriam saudar a oportunidade, especialmente se nós os ajudássemos tecnologicamente.
Faleilhe sobre isso quando nos encontramos na Terra há três anos. Lembra?
Olhou de esguelha para Baley. Baley respondeu, impassível:
- Lembro muito bem. Na verdade, o senhor provocou uma série de raciocínios em mim que teve como resultado um pequeno movimento na Terra nessa direção.
- De fato? Imagino que não foi fácil. Há a claustrofilia dos seus terráqueos, sua repulsa a abandonar suas paredes.
- Estamos lutando contra isso, Dr. Fastolfe. Nossa organização está planejando ir ao espaço. Meu filho está na cabeça do movimento e espero que chegue o dia em que ele abandone a Terra à frente de uma expedição para colonizar um novo mundo. Se recebermos realmente a ajuda tecnológica de que falou...
Baley deixou a conclusão pendente.
- Quer dizer, se fornecermos as naves?
- E outros equipamentos. Sim, Dr. Fastolfe.
- Há dificuldades. Muitos auroreanos não querem que os terráqueos saiam para o espaço e colonizem novos mundos. Temem a rápida expansão da cultura terráquea, suas Cidades como colméias, sua desordem. - Mexeu-se, constrangido, e perguntou: - Que diabo estamos fazendo, parados aqui? Vamos continuar.
Começou a caminhar devagar e prosseguiu:
- Argumentei que a coisa não iria ser assim. Mostrei que os colonizadores da Terra não seriam terráqueos, no sentido clássico. Não iriam se encerrar em Cidades.
Chegando a um novo mundo, iriam ser como os antecessores auroreanos vindo aqui. Desenvolveriam um equilíbrio ecológico controlável e estariam mais próximos dos auroreanos que dos terráqueos, nas altitudes.
- Não iriam então desenvolver toda a fraqueza que o senhor encontra na cultura Espacial, Dr. Fastolfe?
- Talvez não. Aprenderão com nossos erros... Mas isso é acadêmico, pois desenvolveu-se uma coisa que torna o argumento discutível.
- E é?
- Ora, o robô humaniforme. Veja, há os que consideram o robô humaniforme o colono perfeito. Ele é que deve construir os novos mundos.
- Vocês sempre possuíram robôs - disse Baley. - Quer dizer que nunca tiveram essa idéia antes?
- Ah, tivemos, mas sempre foi nitidamente irrealizável. Normalmente, não se pode esperar que robôs não humaniformes, sem supervisão humana imediata, construindo um mundo que deve adaptar às suas próprias mentes não humaniformes, domestiquem e edifiquem um mundo adaptável às mentes e corpos mais delicados e flexíveis de seres humanos.
- Sem dúvida, o mundo que construirão servirá como uma primeira aproximação razoável.
- Claro que sim, Sr. Baley. Contudo, é um sinal da decadência de Aurora que exista uma sensação dominante entre nosso povo de que um primeiro contato razoável seja muito insuficiente... Um grupo de robôs humaniformes, por outro lado, parecendo o mais intimamente possível com seres humanos física e mentalmente, teria sucesso em construir um mundo que, sendo conveniente para ele, também o seria inevitavelmente para os auroreanos. Acompanha meu raciocínio?
- Perfeitamente.
- Eles construiriam um mundo tão bem, veja, que quando tiverem terminado e os auroreanos finalmente concordarem em partir, nossos seres humanos apenas passarão de um planeta Aurora para outro. Nunca terão deixado seus lares, apenas ganharão um lar mais novo, exatamente como o velho, onde continuar sua decadência. Está percebendo também este raciocínio?
- Compreendo seu ponto de vista, porém acho que os auroreanos não.
- Talvez não. Acho que posso discutir esse ponto com eficiência se a oposição não me liquidar politicamente, por intermédio do caso da destruição de Jander. Está vendo o motivo que me é atribuído? Acusam-me de ter preparado um programa de destruição de robôs humaniformes em vez de permitir-lhes serem usados para colonizar outros planetas. É o que os meus inimigos dizem.
Agora quem parou foi Baley. Pensativo, encarou Fastolfe e falou:
- O senhor compreende, Dr. Fastolfe, que é do interesse da Terra que seu ponto de vista seja completamente vencedor.
- E também do seu próprio interesse, Sr. Baley.
- E do meu. Porém, deixando-me de lado por um momento, continua vital para meu mundo que seja permitido ao nosso povo, encorajado, mesmo, e ajudado, a explorar a Galáxia, que conservemos ao máximo nossos meios enquanto estivermos confortáveis, que não queremos ser condenados à prisão eterna na Terra, uma vez que nela só nos resta perecer.
- Alguns dos senhores, acho eu, insistirão em permanecer presos - disse Fastolfe.
- Claro. Talvez a maioria deseje isso. Contudo, pelo menos alguns, o máximo possível, partirão se tiverem permissão... Portanto, é minha obrigação, não apenas como representante da lei de uma grande parte da humanidade, mas como terráqueo simples e comum, ajudá-lo a limpar seu nome, quer seja culpado ou inocente. Não obstante, posso dedicar-me inteiramente a isso apenas se tiver certeza de que na realidade a acusação contra o senhor é injustificada.
- Claro! Compreendo.
- Em conseqüência, portanto, do que me disse quanto ao motivo que lhe foi atribuído, garanta-me mais uma vez que não fez aquilo.
- Sr. Baley - replicou Fastolfe - estou plenamente ciente de que o senhor não tem escolha neste caso. Sei muito bem que posso dizer-lhe, com impunidade, que sou culpado e que continuará sendo obrigado, pela natureza de suas necessidades e das do seu mundo, a trabalhar comigo para ocultar o fato. Na verdade, se eu fosse realmente culpado, seria obrigado a confessá-lo ao senhor, para que pudesse levar o fato em consideração e, conhecendo a verdade, trabalhar com mais eficiência para me livrar... e a si mesmo. Mas não posso fazer isso porque sou na verdade inocente. Contudo, por mais que as aparências possam ser contra mim, não destruí Jander. Isso nunca me passou pela cabeça.
- Nunca? Fastolfe sorriu, triste.
- Ah, posso ter pensado uma vez ou duas que Aurora estaria muito melhor se eu nunca tivesse revelado as noções que levaram ao desenvolvimento do cérebro positrônico humaniforme... ou que teria sido melhor se tais cérebros provassem ser instáveis e imediatamente sujeitos ao congelamento mental. Mas foram pensamentos vagos. Nem por uma fração de segundo contemplei a possibilidade da destruição de Jander por esse motivo.
- Então precisamos eliminar essa razão que lhe é atribuída.
- Ótimo. Mas como?
- Podemos mostrar que não tem finalidade. Qual a vantagem de destruir Jander? Podem ser construídos outros robôs humaniformes. Milhares. Milhões.
- Temo não ser assim, Sr. Baley. Nenhum pode ser construído. Só eu sei como desenhá-los e, na medida em que seu destino é a colonização robótica, recuso-me a construir mais. Jander desapareceu e só resta Daneel.
- O segredo poderá ser descoberto por outros. Fastolfe ergueu o queixo.
- Gostaria de ver o roboticista capaz disso. Meus inimigos fundaram um Instituto de Robótica com a única finalidade de descobrir o método existente por trás da construção de um robô humaniforme, porém fracassaram. Não conseguiram até agora e sei que nunca conseguirão.
Baley franziu o cenho.
- Se o senhor é o único homem que conhece o segredo dos robôs humaniformes e se os seus inimigos estão desesperados para consegui-lo, por que não tentam obtê-lo do senhor?
- Claro. Ameaçando minha existência política, talvez conseguindo algum castigo que me proíba trabalhar na especialidade e, dessa forma, dando fim à minha vida profissional, esperam que concorde em dividir o segredo com eles, sob pena de confisco de propriedade, prisão... quem sabe mais o quê? Contudo, resolvi submeter-me a tudo, tudo,mas não ceder. Compreenda porém que não desejo ser obrigado a isso.
- Eles sabem da sua determinação de resistir?
- Espero que sim. Já lhes disse francamente e muitas vezes. Presumo que eles pensam que estou blefando, que não estou falando sério... Mas estou.
- Porém se eles acreditarem, poderão tomar medidas mais sérias.
- Como, por exemplo?
- Roubar seus documentos. Seqüestrá-lo. Torturá-lo. Fastolfe deu uma sonora gargalhada e Baley corou, dizendo:
- Detesto dar a idéia de uma novela de hiperonda, mas já pensou nisso?
- Sr. Baley - replicou Fastolfe - em primeiro lugar, meus robôs podem me proteger. Seria preciso uma guerra total para me aprisionar ou pegar meus documentos. Em segundo lugar, mesmo que de certa forma conseguissem, nenhum dos roboticistas meus adversários suportaria confessar que a única forma de obter o segredo do cérebro positrônico humaniforme seria roubá-lo ou forçar-me a revelá-lo. A reputação profissional dele ou dela seria completamente aniquilada. Em terceiro lugar, essas coisas são desconhecidas em Aurora. A mais leve suspeita de uma tentativa dessas contra mim poria a Legislatura e a opinião pública do meu lado.
- É mesmo? - murmurou Baley, amaldiçoando silenciosamente o fato de ter de agir numa cultura cujos detalhes ele simplesmente não compreendia.
- É. Acredite em mim. Gostaria que eles tentassem alguma coisa tão melodramática. Gostaria que fossem tão incrivelmente burros que fizessem isso. De fato, Sr. Baley, gostaria de poder persuadi-lo a procurá-los, insinuar-se na confiança deles e convencê-los a executar um ataque contra meu estabelecimento, emboscar-me numa estrada deserta... ou alguma coisa do tipo que, imagino, seja comum na Terra.
- Não creio que seja este o meu estilo - retrucou Baley, secamente.
- Também não creio e por isso não tenho intenção de tentar completar meu desejo. E, acredite-me, o assunto é muito sério, pois se não pudermos convencê-los a tentar métodos suicidas de força, continuarão a fazer alguma coisa muito melhor do seu ponto de vista. Me destruirão com calúnias.
- Que calúnias?
- Não me atribuem apenas a destruição de um robô. É uma coisa bastante ruim e pode bastar. Andam murmurando, e por enquanto é apenas um murmúrio, que a morte não passa de uma experiência minha, perigosa e bem-sucedida. Espalham que estou desenvolvendo um processo de destruir cérebros humanos rápida e eficientemente, de maneira a que, quando meus inimigos criarem seus robôs humaniformes, eu, com membros do meu partido, tenhamos condições de destruí-los todos, evitando assim que Aurora colonize novos mundos e deixando a Galáxia para meus sócios terráqueos.
- Na certa, não podem acreditar nisso.
- Claro que não. Já lhe disse que são mentiras. E também mentiras ridículas. Nenhum método semelhante de destruição é possível mesmo teoricamente e o pessoal do
Instituto de Robótica não está na iminência de criar seus próprios robôs humaniformes. Não é concebível que eu pudesse entrar numa orgia de destruição em massa, mesmo que quisesse. Não posso.
- Então a coisa toda não pode fracassar por si mesma?
- Infelizmente, não é provável que aconteça a tempo. Pode ser uma bobagem, mas provavelmente vai durar o bastante para atirar a opinião pública contra mim, a ponto de obterem os votos suficientes na Legislatura para me derrotar. Finalmente, tudo será considerado bobagem, mas então será tarde. E, por favor, note que a Terra está sendo usada como bode expiatório. A acusação que estou sofrendo pela Terra é muito forte e muitos preferirão acreditar em tudo aquilo, indo de encontro a uma opinião sensata, por causa da sua raiva da Terra e dos terráqueos.
- O senhor está me dizendo que se prepara um ressentimento forte contra a Terra - falou Baley.
- Exatamente, Sr. Baley - replicou Fastolfe. - A situação piora para mim e para a Terra diariamente, e temos pouquíssimo tempo.
- Mas não há uma forma fácil de nocautear essa coisa? - Baley, desesperado, achou que era hora de aceitar o ponto de vista de Daneel. - Se o senhor estiver de fato ansioso em experimentar um método de destruição de um robô humaniforme, por que procurar um em outro estabelecimento, no qual seja inconveniente fazer a experiência?
O senhor tinha Daneel à sua disposição. Estava ao seu alcance e conveniência. A experiência não teria sido feita nele se persuadi-los de que seria mais sensato para mim sacrificar Daneel.
- Não, não - disse Fastolfe. - Eu não conseguiria que acreditassem nisso. Daneel foi meu primeiro sucesso, minha vitória. Eu não o destruiria por nada neste mundo.
Naturalmente, me viraria Para Jander. Todos veriam isso e seria loucura minha tentar persuadi-los de que seria sensato para mim sacrificar Daneel.
Recomeçaram a caminhada, já próximos do seu destino. Baley estava mergulhado num silêncio profundo, de rosto fechado.
- Como se sente, Sr. Baley? - perguntou Fastolfe. Em voz baixa, Baley respondeu:
- Se está se referindo ao Exterior, não senti seu efeito.
- Se se referindo ao nosso dilema, acho que me acho muito perto de desistir sem me meter numa câmara ultrassônica de dissolução de cérebros. - Depois, apaixonadamente:
- Por que me trouxe, sr. Fastolfe? Por que me deu esta tarefa? Que lhe fiz para ser tratado desta maneira?
- Realmente - retrucou Fastolfe - para começar, não foi idéia minha, e apenas posso alegar desespero.
- Bem, de quem foi a idéia?
- Foi o proprietário do estabelecimento a que estamos chegando quem sugeriu inicialmente: e eu não tinha idéia melhor.
- O proprietário desse estabelecimento? Por que ele...
- Ela.
- Bem, então por que ela teria sugerido tal coisa?
- Ah! Não lhe expliquei que ela o conhece, Sr. Baley? Lá está ela, à nossa espera.
Baley olhou, espantado.
- Jehoshaphat! - murmurou.
Gladia
A moça à frente deles falou com um sorriso penoso:
- Eu sabia, Elijah, que quando tornasse a encontrá-lo, seria essa a primeira palavra que ouviria.
Baley encarou-a. Ela estava mudada. Tinha o cabelo mais curto e o rosto ainda mais perturbado que há dois anos, além de parecer ter envelhecido mais de dois anos.
Contudo, não havia a menor dúvida de que era mesmo Gladia. O mesmo rosto triangular, com as maçãs salientes e o queixo pequeno. Continuava baixa, delgada e vagamente infantil.
Ele havia sonhado freqüentemente com ela - embora não de forma abertamente erótica - quando retornou à Terra. Seus sonhos eram sempre de não ser capaz de tocá-la.
Ela estava sempre presente, um pouco afastada demais para falar facilmente. Ela nunca o ouvia, quando ele a chamava. Nunca chegou perto demais, quando se aproximou dela.
Não era fácil entender por que os sonhos eram assim. Ela era nativa de Solaria e, como tal, raramente se achou na presença física de outros seres humanos.
Elijah tinha sido proibido de se aproximar dela pela razão de ser humano - e além disso (claro) por ser da Terra. Embora as exigências do caso de assassinato que estava investigando os forçassem a se encontrar, durante esses momentos juntos fisicamente, para evitar um contato efetivo, Gladia estava completamente coberta.
Apesar disso, no último encontro, desafiando o bom senso, rapidamente tocara no rosto dele com a mão nua. Ela devia saber que poderia, com aquele gesto, ficar infeccionada. Baley apreciou muito aquele gesto, pois todos os aspectos da educação da moça contribuíam para torná-lo impensável.
Os sonhos desapareceram no tempo.
Baley disse, um tanto brutalmente:
- É você a dona...
Parou e Gladia terminou a frase por ele:
- Do robô. E há dois anos o marido era meu. Tudo o que toco é destruído.
Sem realmente saber o que estava fazendo, Baley levou a mão ao rosto dela. Gladia não pareceu notar.
- Naquela vez, você chegou para me salvar - disse ela. - Desculpe, mas tive de chamá-lo novamente... Entre, Elijah. Entre, Dr. Fastolfe.
Fastolfe desviou-se para permitir que Baley entrasse primeiro, imediatamente seguindo-o. Após Fastolfe, entraram Daneel e Giskard... e eles, com o auto-anulamento característico dos robôs, dirigiram-se a nichos desocupados em paredes opostas, permanecendo silenciosos, encostados nelas.
Por um momento, pareceu que Gladia iria tratá-los com a mesma indiferença que era dispensada aos robôs pelos seres humanos. Contudo, após um olhar a Daneel, ela se virou e disse a Fastolfe, numa voz meio sufocada:
- Aquele ali. Por favor. Peça-lhe para sair. Fastolfe, com um leve gesto de surpresa, perguntou:
- Daneel?
- Ele é muito... muito parecido com Jander!
Fastolfe virou-se para olhar Daneel e um sinal de dor atravessou-lhe o rosto momentaneamente.
- Claro, minha cara. Peço-lhe que me perdoe. Não pensei nisso... Daneel, vá para outra sala e fique lá enquanto estivermos aqui.
Daneel saiu sem uma palavra.
Gladia deu uma olhada em Giskard como que para julgar se ele, também, se parecia com Jander, virando depois com um leve encolher de ombros.
- Algum de vocês quer um refresco? - perguntou Gladia. - Tenho um excelente, de coco, recentemente feito e gelado.
- Não, Gladia - recusou Fastolfe. - Vim apenas trazer o Sr. Baley, como prometi, e não Vou demorar.
- Agradeço-lhe um copo de água. Não a incomodarei por mais nada.
Gladia ergueu a mão. Sem dúvida, estava sendo observada pois, num instante, entrou um robô silencioso, com um copo de água numa bandeja e um pratinho com o que pareciam bolachas com uma bolha rósea em cima.
Baley não pôde deixar de pegar uma, apesar de não ter certeza do que se tratava. Devia ser alguma coisa originada na Terra, pois não podia acreditar que em Aurora, ele - ou quem quer que fosse - comesse algum pedaço da escassa flora e fauna nativas ou também alguma substância sintética. Não obstante, os descendentes das espécies alimentares terrestres podiam mudar com o tempo, tanto pelo cultivo deliberado como pela ação de um ambiente estranho... E Dr. Fastolfe, no almoço, tinha dito que a maior parte do cardápio auroreano possuía um sabor adquirido.
Ficou agradavelmente surpreendido. O gosto era forte e condimentado, mas achou-o delicioso e, quase imediatamente, pegou outra. Agradeceu ao robô (que não se importou de ficar parado indefinidamente) e pegou o prato junto com o copo.
O robô saiu.
Estava caindo a tarde e os raios de sol entravam, rubros, pelas janelas ocidentais. Baley tinha a impressão de que a casa era menor que a de Fastolfe, mas seria bem mais alegre não fosse o vulto triste de Gladia parada no meio, provocando um efeito deprimente.
Podia, é claro, não passar de imaginação de Baley. Em todo caso, o ânimo parecia-lhe impossível em qualquer prédio pretendendo abrigar e proteger seres humanos que ainda assim permaneciam expostos ao Exterior além de cada parede. Nenhuma parede, pensou, tinha o calor da vida humana no outro lado. Em nenhuma direção podia-se esperar companhia e comunidade. Do outro lado de cada parede, lado, alto e baixo, havia um mundo inanimado. Frio! Frio!
E a frialdade envolveu o próprio Baley quando tornou a pensar no dilema em que estava metido (por um instante, o choque de tornar a encontrar Gladia o afastara de sua mente).
- Venha - disse Gladia. - Sente-se, Elijah. Deve desculparme por não ser a mesma. Pela segunda vez, sou o centro de uma comoção planetária... e a primeira já foi mais que suficiente.
- Compreendo, Gladia. Por favor, não se desculpe - disse Baley.
- Quanto ao senhor, caro Doutor, não se considere como sobrando.
- Bem... - Fastolfe olhou para a faixa de tempo na parede. - Ficarei um pouco mais, porém depois, minha cara, há trabalho a fazer, mesmo que o céu venha abaixo.
Ainda mais que devo olhar para um futuro próximo, no qual talvez não possa mais trabalhar.
Gladia pestanejou rapidamente, como se quisesse conter as lágrimas.
- Eu sei, Dr. Fastolfe. O senhor está em grande complicação por causa... do que aconteceu aqui e eu só pareço ter tempo para pensar em meu próprio... aborrecimento.
- Farei o que puder para cuidar da minha situação, Gladia - replicou Fastolfe - e não há necessidade de você sentir-se culpada a respeito... Talvez o Sr. Baley seja capaz de ajudar-nos, tanto a você como a mim.
Baley franziu os lábios ao ouvir essas palavras e disse, com voz surda:
- Eu não sabia, Gladia, que você estava metida nisso.
- Quem mais poderia estar? - falou a moça, com um suspiro.
- Você tem, ou tinha, a posse de Jander Panell?
- Não verdadeiramente posse. O Dr. Fastolfe o alugara a mim.
- Então ele estava com você quando... Baley hesitou sobre a forma de se exprimir.
- Morreu? Podemos dizer morreu?... Não, não estava. E antes que pergunte, não havia ninguém em casa na hora. Eu estava só. Estou habitualmente só. Quase sempre.
É a minha educação solariana, lembra? Claro, não é obrigatório. Vocês dois estão aqui e eu não me incomodo... muito.
- E se achava completamente só quando Jander morreu? Não se engana?
- Já disse - falou Gladia, parecendo um pouco irritada. - Não, desculpe, Elijah. Sei que você precisa ter tudo dito e repetido. Eu estava só. Palavra.
- Porém havia robôs presentes.
- Ora, é claro. Quando digo "só", quero me referir a não haver outros humanos presentes.
- Quantos robôs possui, Gladia? Sem contar Jander.
Gladia fez uma pausa como se os tivesse contando mentalmente Afinal falou:
- Vinte. Cinco na casa e quinze fora. Os robôs andam livremente entre minha casa e a do Dr. Fastolfe, também, e por isso não é possível avaliar quando um robô é rapidamente visto em cada local, se é um dos meus ou um dos deles.
- Ah - disse Baley - e como o Dr. Fastolfe tem 57, significa que. se os juntarmos, há 77 robôs ao todo. Há ainda outra casa cujos robôs se misturem com os seus de maneira indistinguível?
- Não há outra casa perto - replicou Fastolfe - que torne isso possível. Nem a prática de misturar robôs é verdadeiramente encorajada. Gladia e eu somos um caso especial porque ela não é auroreana e porque assumi... a responsabilidade por ela.
- Mesmo assim. Setenta e sete robôs - disse Baley.
- Sim - falou Fastolfe - mas por que está dizendo isso?
- Porque - retrucou Baley - isso significa que o senhor tem 77 objetos móveis, cada um de forma vagamente humana, que está habituado a ver com o rabo do olho, sem dar maior atenção. Não é possível, Gladia, que se um ser humano verdadeiro tivesse penetrado na casa, com algum objetivo, você mal perceberia? Seria mais um objeto móvel, de forma vagamente humana, e você nào prestaria atenção.
Fastolfe riu baixinho e Gladia, séria, balançou a cabeça.
- Elijah - disse ela - qualquer um pode dizer que você é terráqueo. Pode imaginar que algum ser humano, mesmo o Dr. Fastolfe, se aproximasse de minha casa, sem que eu fosse informada pelos meus robôs? Posso ignorar uma forma móvel, julgando ser um robô, mas nenhum robô a ignoraria. Eu estava à sua espera agora, quando chegou, apenas porque meus robôs me informaram que você estava se aproximando. Não, não, quando Jander morreu, não havia nenhum outro ser humano na casa.
- A não ser você?
- A não ser eu. Como só havia eu em casa quando meu marido foi morto.
Fastolfe interferiu suavemente:
- Há uma diferença, Gladia. Seu marido foi assassinado com um instrumento rombudo. A presença física do criminoso era necessária e se você fosse a única pessoa presente, seria sério. Neste caso, Jander foi posto fora de operação por um programa sutilmente inculcado. A presença física não foi necessária. Sua presença solitária aqui nada significa, especialmente uma vez que você não sabe como bloquear a mente de um robô humaniforme.
Viraram-se ambos para Baley, Fastolfe com ar inquisitivo, Gladia triste. (Irritava Baley que Fastolfe, cujo futuro era tão sombrio quanto o dele, encarasse tudo com bom humor. O que, na Terra faria que alguém risse como um idiota diante da situação?, pensou Baley, taciturno.)
- Ignorância - disse Baley, sem pressa - pode nada significar. Uma pessoa pode não saber como chegar a determinado lugar e pode alcançá-lo andando ao leu. Alguém pode ter falado com Jander e, completamente sem perceber, tocar o botão do congelamento mental.
- E as oportunidades disso? - perguntou Fastolfe.
- O senhor é o especialista, Dr. Fastolfe, e suponho que me dirá serem mínimas.
- Incrivelmente mínimas. Uma pessoa pode não saber como chegar a um determinado lugar, mas se o único caminho for uma série de cordas esticadas espalhadas em direções nitidamente variantes, quais as possibilidades de chegar lá, caminhando ao acaso, com os olhos vendados?
As mãos de Gladia agitaram-se muito. Cerrou os punhos, como que para firmá-las, e pousou-as nos joelhos.
- Eu não fiz aquilo, acidente ou não. Eu não estava com ele quando aconteceu. Não estava. Falei com ele pela manhã. Ele estava bem, perfeitamente normal. Horas depois, quando o chamei, não apareceu. Saí à sua procura e encontrei-o no seu lugar de costume, parecendo normal. O problema era que não me respondia. Não deu a menor resposta.
Desde então, nunca mais respondeu.
- Poderia alguma coisa que tenha dito a ele - perguntou Baley - de passagem, ter produzido o congelamento mental apenas após tê-lo deixado... digamos, uma hora mais tarde?
Fastolfe interferiu secamente:
- Impossível, Sr. Baley. Se o congelamento mental deve acontecer, acontece logo. Por favor, não atormente Gladia assim. Ela é incapaz de provocar deliberadamente um congelamento mental e impensável que o tenha feito acidentalmente.
- Não é impensável que tenha podido ser produzido por um desvio positrônico ocasional, como o senhor disse que pode ter sido!
- Não tão impensável.
- Ambas as alternativas são extremamente improváveis. Qual a diferença, em termos de improbabilidade?
- Enorme. Imagino que um desvio positrônico ocasional tem a probabilidade de 1 em 10 elevado a 12, que por defeito de construção, 1 em 10 elevado a 100. É apenas uma estimativa, porém razoável. A diferença é muito maior que a entre um único elétron e o Universo inteiro... e em favor do desvio positrônico.
Houve silêncio, por algum tempo.
- Dr. Fastolfe - falou Baley - o senhor disse antes que não podia demorar.
- Já demorei demais.
- Ótimo. Então vai embora agora?
Fastolfe começou a levantar-se, mas então perguntou:
- Por quê?
- Porque desejo conversar com Gladia sozinho.
- Para atormentá-la?
- Preciso interrogá-la sem sua interferência. Nossa situação é séria demais para nos preocuparmos com polidez.
- Não tenho medo do Sr. Baley, caro Doutor - disse Gladia, acrescentando, pensativa: - Meus robôs me protegerão, se sua falta de polidez se tornar excessiva.
Fastolfe sorriu e falou:
- Muito bem, Gladia.
Ergueu-se e estendeu a mão a Gladia. A moça apertou-a rapidamente.
- Desejo que Giskard permaneça aqui, para proteção geral - disse o Dr. Fastolfe - e Daneel na sala ao lado, se não se importa. Pode me emprestar um dos seus robôs para me acompanhar de volta à minha casa?
- Certamente - retrucou Gladia, erguendo os braços. -
Acho que o senhor conhece Pandion.
- Claro! Um acompanhante forte e confiável. Saiu, com o robô seguindo-o de perto.
Baley esperou, observando Gladia, estudando-a. Ela ficou sentada, com os olhos baixos, pousados nas mãos, que mantinha entrelaçadas no seu colo.
Baley estava convicto de que ela podia dizer mais coisas. Não sabia como convencê-la a falar, porém de uma coisa mais tinha certeza. Enquanto Fastolfe estivesse presente, Gladia não diria a verdade completa.
Finalmente, Gladia ergueu os olhos, com o rosto parecendo o de uma garotinha. Perguntou, com um fio de voz:
- Como vai, Elijah? Como está se sentindo?
- Bastante bem, Gladia.
- O Dr. Fastolfe me disse - falou ela - que iria trazê-lo aqui a céu aberto e fazer com que você tivesse de esperar algum tempo na parte pior.
- Ah? E para quê? Pelo prazer?
- Não, Elijah. Eu contei a ele como você reagia no Exterior. Lembra da vez em que desmaiou e caiu na lagoa?
Elijah balançou rapidamente a cabeça. Não podia negar o fato nem sua lembrança e muito menos aprovar a referência. Disse, asperamente:
- Já não sou mais aquele. Melhorei.
- Mas o Dr. Fastolfe disse que queria experimentá-lo. Correu tudo bem?
- Bastante bem. Não desmaiei. . Lembrou-se do episódio a bordo da nave espacial ao se aproximarem de
Aurora e apertou levemente os dentes. Aquilo tinha sido diferente e não precisava discuti-lo.
Perguntou, mudando deliberadamente de assunto:
- Como devo chamá-la aqui? Como me dirigir a você?
- Você tem me chamado de Gladia.
- Talvez não seja apropriado. Posso dizer Sra. Delmarre, porém você pode ter...
Ela ficou ofegante e interrompeu-o bruscamente:
- Não uso esse nome desde que cheguei aqui. Por favor não me chame assim.
- Então como os auroreanos a chamam?
- Gladia Solaria, mas se trata apenas de uma indicação de minha origem alienígena e também não o quero. Sou apenas Gladia. Um só nome. Não é um nome auroreano e duvido que haja outro igual neste planeta, sendo portanto suficiente. Continuarei a chamálo de Elijah, se não se importa.
- Não me importo.
- Gostaria de servir chá - falou a moça.
Era uma declaração e Baley concordou com um aceno, comentando:
- Não sabia que os Espaciais tomavam chá.
- Não é o chá da Terra. É extraído de uma planta agradável, mas considerada inofensiva. Nós a chamamos de chá.
Levantou o braço e Baley reparou que a manga estava firmemente fechada no pulso, juntando-se a luvas muito finas, da cor da pele. Ela também estava expondo o mínimo da superfície do corpo na sua presença. Gladia ainda continuava tornando mínima a possibilidade de infecção.
Seu braço permaneceu levantado um momento, e apôs alguns instantes, apareceu um robô com uma bandeja. Ele era evidentemente mais primitivo que Giskard, mas distribuiu as xícaras, os pequenos sanduíches e pasteizinhos sem tropeços. Serviu o chá com bastante graça.
Baley perguntou, curioso:
- Como consegue isso, Gladia?
- Isso o que, Elijah?
- Você ergue o braço sempre que deseja alguma coisa e o robô sempre sabe o que é. Como este sabia que você queria que o chá fosse servido?
- Não é difícil. Cada vez que levanto o braço, ele distorce um pequeno campo eletromagnético que atravessa a sala permanentemente. Posições ligeiramente diferentes de minha mão e dedos produzem distorções diferentes e meus robôs podem interpretá-las como ordens. Só as uso para ordens simples: Venha cá! Traga chá! E assim por diante.
- Não vi o Dr. Fastolfe fazer o mesmo na casa dele.
- Não é realmente auroreano. É um sistema de Solaria e acostumei-me a ele... Além disso, sempre tomo chá a esta hora. Borgraf estava à espera.
- Este é Borgraf?
Baley olhou o robô com algum interesse, certo de que apenas o olhara de relance antes. A familiaridade estava rapidamente dando lugar à indiferença. Mais um dia e deixaria completamente de reparar nos robôs. Podiam adejar em volta, invisíveis, e os trabalhos domésticos apareceriam como feitos por si mesmos.
No entanto, não queria deixar de reparar neles. Queria que não estivessem presentes.
- Gladia - disse - quero estar só com você. Sem robôs... Giskard, vá para perto de Daneel. Você fica de guarda desde lá.
- Sim, senhor - disse Giskard, subitamente consciente, reagindo ao som do seu nome.
Gladia mostrou-se um tanto divertida.
- Vocês, terráqueos, são muito estranhos. Sei que têm robôs na Terra, mas não parecem saber lidar com eles. Você late suas ordens, como se eles fossem surdos.
Gladia virou-se para Borgraf e, em voz baixa, falou:
- Borgraf, nenhum de vocês deve entrar na sala sem ser chamado. Não nos interrompam, a não ser por algum perigo claro imediato.
- Sim, senhora - respondeu Borgraf.
O robô recuou, examinou a mesa como que para julgar se não esquecera alguma coisa, virou-se e saiu.
Foi a vez de Baley divertir-se. A voz de Gladia tinha sido suave, mas seu tom se mostrou ríspido, como se ela fosse um sargento-mor dirigindo-se a um recruta. Mas afinal, por que surpreender-se? Sabia que era mais fácil ver a loucura alheia que a própria.
- Agora estamos a sós, Elijah - disse Gladia. - Mesmo os robôs saíram.
- Não tem medo de ficar sozinha comigo? - perguntou Baley. Devagar, ela balançou a cabeça.
- Por que deveria? Ergo um braço, faço um gesto, dou um berro... e vários robôs aparecerão imediatamente. Ninguém em nenhum mundo Espacial tem motivo para temer qualquer outro ser humano. Isto aqui não é a Terra. Afinal, por que pergunta?
- Porque há outros medos além dos físicos. Não a violentaria de forma alguma nem a maltratarei fisicamente, em qualquer circunstância. Mas não teme o meu interrogatório e o que poderei descobrir a seu respeito? Lembre-se também que não estamos em Solaria. Lá, simpatizei com você e me dediquei a demonstrar sua inocência.
Em voz baixa, a moça perguntou:
- Não simpatiza comigo agora?
- Desta vez, não há um marido morto. Você não é suspeita de assassinato. Apenas um robô foi destruído e, até onde sei, você não é suspeita de nada. Em vez disso, meu problema é o Dr. Fastolfe. É da maior importância para mim, por motivos que não quero abordar, que eu seja capaz de demonstrar sua inocência. Se o processo der uma reviravolta e for atingi-la, não terei como evitar. Não pretendo me afastar do meu caminho para evitar seu sofrimento.
Sinto-me na obrigação de dizer-lhe isto.
A moça levantou a cabeça e fixou seus olhos nos dele, arrogante.
- Por que alguma coisa me atingiria?
- Talvez devamos agora começar a descobrir - replicou Baley friamente - sem a presença do Dr. Fastolfe interferindo.
Espetou um dos pequenos sanduíches com um garfinho (não tinha sentido usar os dedos e, assim, tornar talvez o prato todo inutilizável para Gladia), transferiu-o para seu próprio prato, metendo-o depois na boca e sorvendo o chá.
Ela o acompanhou, sanduíche a sanduíche, gole a gole. Se ele estava ficando frio, também ela estava, aparentemente.
- Gladia - disse Baley - é importante que eu saiba exatamente qual a relação entre você e o Dr. Fastolfe. Você mora perto dele e os dois formam o que é, virtualmente, uma única criadagem robótica. Ele está claramente preocupado com você. Fastolfe não fez qualquer esforço para defender sua inocência, exceto se declarar inocente, porém defendeu você vigorosamente desde que apertei meu interrogatório.
Gladia esboçou um sorriso.
- De que suspeita, Elijah?
- Não se esquive. Não quero desconfiar. Quero saber.
- O Dr. Fastolfe mencionou Fanya?
- Sim, mencionou.
- Perguntou-lhe se Fanya é sua mulher ou apenas sua companheira? Se tem filhos?
Baley mexeu-se, inquieto. Claro, poderia ter feito essas perguntas. Contudo, numa Terra superpovoada, a privacidade era apreciada exatamente porque não tinha soçobrado.
Era virtualmente impossível, na Terra, não conhecer todos os fatos sobre os arranjos familiares dos outros, e assim não se faziam perguntas nem se fingia ignorância.
Era uma fraude universalmente sustentada.
Ali em Aurora, claro, as maneiras da Terra não funcionavam, porém Baley mecanicamente tentou mantê-las. Estúpido!
- Ainda não perguntei - replicou Baley. - Conte-me.
- Fanya é mulher dele - disse Gladia. - Ele já casou uma porção de vezes, consecutivamente, é claro, embora o casamento simultâneo para cada ou ambos os sexos não seja totalmente desconhecido em Aurora. - O tom meio desgostoso com que se exprimiu trouxe, implícito, uma leve defesa: - É desconhecido em Solaria.
"No entanto, o atual casamento do Dr. Fastolfe será provávelmente desfeito logo. Ambos ficarão assim livres para novas ligações, embora freqüentemente uma ou ambas as partes não espere a separação para isso... Não estou dizendo que compreendo essa forma de tratar o assunto, Elijah, porém como os auroreanos estabelecem suas relações. O Dr. Fastolfe, que eu saiba, é um tanto puritano. Ele sempre que pode mantém um casamento ou outra forma e nada procura fora deles. Em Aurora, isso é considerado antiquado e um tanto bobo.
Baley balançou a cabeça.
- Percebi mais ou menos isso em minhas leituras. O casamento ocorre quando há a intenção de ter filhos, acho eu.
- Teoricamente, é verdade, porém sei que hoje dificilmente alguém leva isso a sério. O Dr. Fastolfe já tem dois filhos e não pode ter mais, porém ainda se casa e se esforça para ter um terceiro. Ele não consegue, é claro, e sabe disso. Algumas pessoas nem mesmo se esforçam.
- Então, por que se dar ao trabalho de casar?
- Há vantagens sociais. É um tanto complicado, e não sendo auroreana, não estou certa de ter compreendido.
- Bem, não importa. Fale-me sobre os filhos do Dr. Fastolfe.
- Ele tem duas filhas de mães diferentes. Nenhuma das mães é Fanya, claro. Não tem filhos. Cada uma foi incubada no útero da mãe, como é costume em Aurora. Ambas estão agora adultas e têm suas próprias casas.
- Ele é íntimo das filhas?
- Não sei. Nunca fala a respeito delas. Uma é roboticista e suponho que ele deve ter contato com o trabalho dela. Acho que a outra está procurando emprego na administração de uma das cidades ou que já está realmente empregada. Na verdade, não sei.
- Sabe se há tensões familiares?
- Nada que eu tenha percebido, o que não quer dizer grande coisa, Elijah. Até onde sei, ele mantém bom relacionamento com todas as ex-mulheres. Nenhuma das separações foi litigiosa, pois o Dr. Fastolfe não é desse tipo de gente. Não posso imaginá-lo recebendo alguma contrariedade na vida com uma reação mais extremada que um bem-humorado suspiro de resignação. Ele fará uma piada em seu leito de morte.
Aquilo, pelo menos, parecia verdade, pensou Baley.
- E o relacionamento do Dr. Fastolfe com você? - perguntou
- A verdade, por favor. Não estamos em posição de fugir à verdade para evitar aborrecimentos.
Ela levantou os olhos e encarou-o.
- Não há aborrecimento a evitar - replicou. - O Dr. Han pastolfe é meu amigo, um amigo muito bom.
- Até onde, Gladia?
- Como eu disse: muito bom.
- Está esperando a dissolução do casamento dele, para ser talvez sua próxima mulher?
- Não - respondeu ela, muito calma.
- Então são amantes?
- Não.
- Foram?
- Não... Está surpreso?
- Apenas preciso de informações - retrucou Baley.
- Então permita que responda às suas perguntas coerentemente, Elijah, e não as berre para mim como se quisesse surpreender-me e levando-me a contar-lhe coisas que de outra maneira eu manteria em segredo.
Essas palavras foram ditas sem zanga aparente. Era quase como se estivesse se divertindo.
Baley, corando um pouco, teve vontade de dizer que aquela não tinha sido sua intenção, mas na verdade fora e nada ganharia negando-a. Falou, num resmungo baixo:
- Bem, então vamos continuar.
Os restos do chá enchiam a mesa entre ambos. Baley ficou imaginando se sob condições normais ela teria levantado o braço e dobrado um pouco... e se o robô, Borgraf, teria entrado silenciosamente e retirado a mesa.
O fato da mesa permanecer cheia perturbaria Gladia... e a tornaria menos controlada em suas reações? Se fosse assim, seria melhor que continuasse... mas Baley realmente não esperava muito, pois não viu em Gladia sinais de perturbação por causa da desarrumação ou mesmo de tê-la percebido.
Os olhos de Gladia tornaram a fixar-se no colo e seu rosto pareceu ficar mais abatido e um tanto áspero, como se estivesse revolvendo um passado que não queria recordar.
- Você teve um precário conhecimento da minha vida em Solaria - dissf a moça. - Não foi uma vida feliz, porém não tive outra. Foi só quando tive um pouco de felicidade que repentinamente percebi exatamente em que extensão e intensidade minha vida anterior tinha sido infeliz. A primeira suspeita veio através de você Elijah.
- De mim? - perguntou Baley, tomado de surpresa.
- Sim, Elijah. Nosso último encontro em Solaria, e espero que ainda se lembre, Elijah, ensinou-me uma coisa. Eu toquei você! Retirei a luva, uma igual à que estou usando agora, e toquei seu rosto. O contato não foi demorado. Não sei o que significou para você... não, não me diga, não é importante, mas significou muito para mim.
Gladia ergueu os olhos, encarando-o desafiadoramente.
- Significou muito para mim. Transformou minha vida. Lembre, Elijah, que até então, desde minha infância, eu nunca tinha tocado num homem, ou na verdade em algum ser humano, exceto meu marido. E eu tocava nele muito raramente. Eu tinha examinado homens no trimensic, é claro, e através dele fiquei inteiramente familiarizada com cada aspecto físico dos homens, cada parte deles. A esse respeito, nada tenho a aprender.
"Porém eu não tinha motivo para achar que cada homem reagia de modo muito diferente de outro. Sabia como era a pele do meu marido ao tato, como suas mãos sentiam quando conseguia me tocar, como... tudo. Não tinha motivo para pensar que tudo podia ser diferente em cada homem. Não havia prazer no contato com meu marido, porém por que deveria haver? Há algum prazer especial no contato dos meus dedos com esta mesa, exceto na medida em que posso apreciar sua suavidade física?
"O contato com meu marido era parte de um ritual fortuito que ele realizava, porque se esperava isso dele, e como bom solariano passou a fazer de acordo com o calendário, com o relógio e pelo resto da vida, de acordo com o prescrito pela boa educação. Exceto que, num outro sentido, não era boa educação, pois apesar desse contato periódico ter como finalidade precisa a relação sexual, meu marido não desejava um filho e não estava interessado, acredito, em fazer um. E eu tinha muito medo dele para requerer um por iniciativa própria, como era meu direito.
"Quando me recordo, vejo que a experiência sexual foi superficial e mecânica. Nunca tive um orgasmo. Nenhuma vez. Soube que isso existia pela leitura, mas sua descrição apenas me deixou confusa, já que só podia ser encontrada em livros importados, pois os livros solarianos nunca tratavam de sexo, e por isso não podia confiar neles. Pensei que não passavam de metáforas exóticas.
- Nem pude experimentar, pelo menos com sucesso, o autoerotismo. Acho que masturbação é a palavra comum. Pelo menos ouvi essa palavra ser usada em Aurora. Em Solaria, lógico, nenhum aspecto sexual é jamais discutido e nenhuma palavra referente a sexo usada na sociedade educada... Nem há outra espécie de sociedade em Solaria.
- Por coisas que li eventualmente, fiz uma idéia de como se pode chegar á masturbação, e em várias ocasiões fiz tímidas tentativas de executar o que estava descrito.
Não consegui. O tabu contra tocar a carne humana fez com que a minha própria se tornasse proibida e desagradável para mim. Podia esfregar a mão na anca, cruzar as pernas, sentir a pressão da coxa contra coxa, mas eram toques casuais, sem serem olhados. Transformar a ação do toque num instrumento de prazer deliberado era diferente.
Cada fibra do meu ser sabia que não devia ser feito, e uma vez que eu sabia disso, o prazer não vinha.
- E jamais me ocorreu, numa ocasião sequer, que poderia haver prazer em tocar, sob outras circunstâncias. Como poderia me ocorrer?
- Até que toquei em você naquele dia. Por que o fiz, não sei. Senti um impulso de afeto por você, por ter evitado que fosse acusada de assassina. E, além disso, você não era proibido. Você não era solariano. Você não era, desculpe, completamente homem. Você era uma criatura da Terra. Tinha a aparência humana, porém de vida breve e presa de infecção, coisa para ser posta de lado como semi-humano, no melhor dos casos.
- Assim, como tinha salvo minha vida e não era realmente humano, pude tocá-lo. E, além disso, você me olhou não com a hostilidade e repugnância do meu marido... ou com a indiferença cuidadosamente estudada de alguém me vendo num trimensic. Você estava ali, palpável, e seus olhos eram amáveis e preocupados. Você realmente tremeu quando minha mão se aproximou do seu rosto. Eu vi.
- Por que, não sei. O toque foi muito leve e não havia como a sensação física ser diferente da que seria se eu tivesse tocado meu Marido ou outro homem qualquer... ou talvez, mesmo, qualquer outra mulher. Mas foi mais que uma sensação física. Você estava ali, aceitou e deu sinais de que o tinha aceito como... afeto. E quando nossas peles, minha não, seu rosto, entraram em contato, foi como se eu tivesse tocado numa chama suave que subisse pela minha mão e braço instantaneamente, incendiando-me toda.
- Não sei quanto tempo durou, não pode ter sido mais de um segundo ou dois, mas para mim o tempo parou. Alguma coisa tinha me acontecido como nunca acontecera antes, e olhando para trás neste longo intervalo, quando aprendi a respeito, percebi que estive a ponto de sentir um orgasmo.
- Evitei demonstrá-lo...
Baley, não ousando olhá-la, balançou a cabeça.
- Bem, não demonstrei - continuou. - Eu disse: "Obrigada, Elijah." Era pelo que você tinha feito por mim no caso da morte do meu marido. Mas foi muito mais para iluminar minha vida e me mostrar, sem mesmo saber o que era a vida, abrir uma porta, revelar um caminho, mostrar um horizonte. O ato físico nada era em si. Apenas um toque. Mas foi o começo de tudo.
Sua voz morreu e, durante um momento, Gladia ficou calada, recordando. Depois, com um dedo levantado:
- Não, não diga nada. Ainda não acabei. Eu tinha imaginado coisas antes, coisas muito vagas e indefinidas. Um homem e eu, fazendo o que eu e meu marido fazíamos, mas um tanto diferente, eu nem mesmo sabia diferente em que, e sentindo uma coisa diferente... uma coisa que não podia imaginar, nem mesmo usando toda a minha imaginação.
Eu poderia, compreensivelmente, atravessar toda a minha vida tentando imaginar o inimaginável e poderia ter morrido como suponho que morrem as mulheres de Solaria, e os homens também, sem ter conhecimento após três ou quatro séculos. Ignorando eternamente. Tendo filhos, mas ignorando.
- Porém um toque em seu rosto me fez saber, Elijah. Não é fantástico? Você me ensinou o que eu posso imaginar. Não a mecânica, não o embotado e relutante tocar de corpos, mas uma coisa que eu jamais teria concebido como tendo tudo a ver com isso. O ir de um rosto, a fagulha num olho, a sensação de gentileza-bondade... uma coisa que nem mesmo posso descrever... aceitação, a eliminação da terrível barreira entre indivíduos. Amor, suponho... uma palavra conveniente para englobar tudo isso e mais.
- Senti amor por você, Elijah, porque pensei que você pudesse também sentir por mim. Não digo que tenha me amado, mas me pareceu que podia. Nunca o tivera, embora na literatura antiga falassem nisso, sabia tanto o que queriam dizer como os homens nesses mesmos livros falavam de "honra" e se matavam em nome dela. Eu aceitava a palavra, porém nunca extraí seu significado, mesmo hoje. Aconteceu o mesmo com "amor"até tê-lo tocado.
- Depois disso, pude imaginar... e vim para Aurora recordando você. pensando em você e conversando incansavelmente com você na minha mente, supondo que em Aurora eu iria encontrar um milhão de Elijahs.
Parou um momento, absorta, e depois, repentinamente, continuou:
- Não encontrei. Descobri que Aurora era, à sua maneira, tão ruim quanto Solaria. Em Solaria, o sexo era errado. Odiavam-no e todos nós afastávamos dele. Não podíamos amar por causa do ódio que o sexo despertava.
- Em Aurora, o sexo era aborrecido. Era aceito calmamente, facilmente... tão facilmente quanto respirar. Se alguém sentia o impulso, virava-se para o primeiro que parecesse disponível e se essa pessoa disponível não estivesse no momento fazendo alguma coisa que não pudesse ser posta de lado, o ato sexual era realizado da maneira mais conveniente. Como respirar... Mas respirar provocava êxtase? Se alguém ficasse sufocado, talvez então a primeira respiração ofegante conseqüente ao sufoco pudesse ser um prazer insuperável e um alívio. Mas se não ficasse sufocado?
- E se alguém nunca ficasse sem sexo involuntariamente? Se fosse ensinado aos mais moços na mesma base da leitura e da programação? Se as crianças fossem levadas a experimentá-lo como matéria de estudo e se os mais velhos ajudassem?
- O sexo, permitido e livre como o ar, nada tinha a ver com o amor em Aurora, da mesma maneira como o sexo, proibido e motivo de vergonha, nada tem a ver com o amor em Solaria. Em cada um, as crianças são poucas e devem chegar a isso após requerimento formal... E depois, se a permissão for dada, deverá haver um intervalo de sexo indicado apenas para gravidez, triste e desagradável. Se após um período razoável o engravidamento não se segue, os ânimos se rebelam e lança-se mão da inseminação artificial.
- Com o tempo, como em Solaria, a ectogênese será o processo Pelo qual a fertilização e o desenvolvimento fetal serão implantados, tornando o sexo uma forma de interação social e divertimento que tem tanto a ver com o amor como o pólo espacial.
- Não posso agiotar a atitude auroreana, Elijah. Não fui preparada para isso. com pavor, procurei o sexo e ninguém recusou... nem se importou. Os olhos de cada homem ficaram vagos quando me ofereci e permaneceram da mesma forma, quando aceitaram. Outra, pensaram, para quê? Estavam querendo, porém não mais que isso.
- E tocá-los nada significava. Eu podia ter tocado meu marido. Aprendi a ir com ele, acompanhá-lo, aceitar sua direção... e tudo isso nada signficava. Nem mesmo consegui ganhar o impulso de fazer por mim e para mim. A sensação que você me deu nunca mais voltou e, com o tempo, desisti.
- Durante tudo isso, o Dr. Fastolfe foi meu amigo. Só ele, em todo Aurora, sabia o que tinha acontecido em Solaria. Pelo menos é o que eu penso. Você sabe que todos os fatos não foram publicados e certamente não apareceram naquele horrível programa da hiperonda do qual ouvi falar... e que recusei ver.
- O Dr. Fastolfe me protegeu na falta de compreensão por parte dos auroreanos e contra o desprezo geral dos solarianos. Protegeume também do desespero que tomou conta de mim, logo depois.
- Não, não fomos amantes. Eu teria me oferecido, mas quando me ocorreu que poderia fazê-lo, não achei mais que o sentimento que me inspirou, Elijah, pudesse tornar a acontecer. Pensei que podia ter sido uma cilada da memória e desisti. Não me ofereci. Nem ele a mim. Não sei por que não o fez. Talvez ele tenha visto que meu desespero decorreu do meu fracasso de encontrar alguma coisa útil no sexo e não quisesse acentuar o desespero repetindo o fracasso. Foi muito bondoso da parte dele como agiu comigo a esse respeito: por isso não fomos amantes. Foi simplesmente meu amigo num momento em que eu precisava muito.
- É isso, Elijah. Está aí a resposta completa da pergunta que fez. Você queria conhecer minha relação com o Dr. Fastolfe e disse que precisava de informações. Recebeu-as.
Está contente?
Baley tratou de não revelar sua tristeza.
- Lamento, Gladia, que a vida tenha sido tão cruel com você. Você me deu a informação que eu precisava. Foi muito mais importante do que talvez pense.
Gladia franziu a testa.
- De que maneira?
Baley não respondeu diretamente.
- Gladia, estou contente porque sua recordação de mim lhe signifique tanto. Durante minha estada em Solaria, não me ocorreu que a tivesse impressionado tanto, e mesmo que tivesse percebido, não teria tentado... Você sabe.
- Sei, Elijah - disse ela, suavizando-se. - Nem teria sido possível, se tivesse tentado. Eu não poderia.
- E eu sei disso... Nem devo tomar agora como um convite o que me disse. Um toque, um momento de percepção sexual, não precisa mais que isso. Provavelmente nunca poderá repetir-se e esta única existência não deverá ser estragada por fúteis tentativas de ressurreição. Esse é o motivo pelo qual agora não me... ofereço. Meu fracasso nisso não deve ser interpretado como mais um fim inexpressivo para você. Além disso...
- Sim.
- Como já lhe falei, você talvez me tenha contado mais coisas do que supõe. Contou-me que aquilo não terminou com seu desespero.
- Por que diz isso?
- Ao contar-me a sensação que sentiu quando tocou minha face, você expressou-se assim: "e olhando para trás nesse longo intervalo, quando aprendi a respeito, percebi que estive a ponto de sentir um orgasmo"... Mas então você chegou a explicar que o sexo com auroreanos nunca foi bem-sucedido e, suponho, você também então não sentiu orgasmo. Mas você deve ter sentido, Gladia, se reconheceu a sensação que teve naquela vez em Solaria. Não é possível olhar para trás e reconhecê-lo como tal, a menos que tenha aprendido a amar com sucesso. Em outras palavras, você deve ter tido um amante e deve ter experimentado o amor. Se devo acreditar que o Dr. Fastolfe não é nem foi seu amante, então alguém mais é... ou foi.
- E daí? Por que isso é da sua conta, Elijah?
- Não sei se é ou não é, Gladia. Diga-me quem é e prove que não é da minha conta e acabaremos com isto.
Gladia manteve-se em silêncio. Baley prosseguiu:
- Se não me contar, Gladia, terei de contar-lhe. Já lhe disse que não estou em posição de poupar seus sentimentos.
Gladia permaneceu calada, as comissuras dos lábios brancas de tanta pressão.
- Tem de ser alguém, Gladia, e sua tristeza pela perda de Jander é imensa. Pediu para Daneel sair porque não podia suportar olhá-lo em virtude da recordação de Jander que seu rosto provocava. Se estou errado, achando que foi Jander Panell... - Parou um instante e depois continuou rispidamente: - Se o robô, Jander Panell, não foi seu amante, diga.
E Gladia murmurou:
- Jander Panell, o robô, não foi meu amante. - Depois, com voz alta e firme, acrescentou: - Ele foi meu marido!
Os lábios de Baley moveram-se sem emitir um som, mas não havia dúvida na exclamação tetrasilábica.
- Sim - disse Gladia. - Jehoshaphat! Você está espantado. Por quê? Você desaprova?
Baley retrucou, com voz neutra:
- Não é da minha competência aprovar ou desaprovar.
- O que quer dizer que você desaprova.
O que quer dizer que estou só à procura de informações. Como se pode distinguir entre um amante e um marido em Aurora?
- Quando dois seres moram juntos num mesmo local durante certo tempo, podem referir-se a um ou outro como "mulher" e "marido", em vez de "amante".
- Por quanto tempo?
- Varia de região para região, acho eu, de acordo com a opção local. Na cidade de Eos, o período é três meses.
- Também é exigido nesse período sejam evitadas relações sexuais com outros?
Gladia ergueu as sobrancelhas, surpresa.
- Por quê?
Estou apenas perguntando.
- A exclusividade é impensável em Aurora. Marido ou amante, não faz diferença. As relações sexuais são por prazer.
- E gostou enquanto esteve com Jander?
- Acontece que não, mas a escolha foi minha.
- Outros se ofereceram?
- Ocasionalmente.
- E você recusou?
- Posso sempre recusar à vontade. É parte da não exclusividade.
- Mas recusou?
- Sim.
- E os que recusou souberam por quê?
- Que quer dizer?
- Sabiam que você tinha um marido-robô?
- Eu tinha um marido. Não o chame de marido-robô. Não há essa designação.
- Eles sabiam? Gladia fez um silêncio.
- Não sei.
- Você lhes disse?
- Por que motivo deveria dizer-lhes?
- Não responda minhas perguntas com outras. Disse-lhes?
- Não.
- Como conseguiu evitar? Não acha que uma explicação pela recusa teria sido natural?
- Nunca foram pedidas explicações. Uma recusa é apenas uma recusa, sempre aceita. Não estou compreendendo.
Baley parou para organizar seus pensamentos. Gladia e ele não estavam em contradição, mas em caminhos paralelos.
- Seria natural, em Solaria, ter um robô como marido? - recomeçou Baley.
- Isso seria impossível em Solaria e eu jamais teria pensado nisso. Tudo era impensável em Solaria... E na Terra também, Elijah. Sua mulher tomaria um robô para marido?
- Isso é irrelevante, Gladia.
- Talvez, mas sua expressão é uma boa resposta. Você e eu não somos auroreanos, mas estamos em Aurora. Moro aqui há dois anos e aceito seus costumes.
- Está dizendo que as relações sexuais entre humanos e robôs são comuns aqui em Aurora?
- Não sei. Apenas sei que são aceitas porque tudo é aceito quando se trata de sexo... tudo que é voluntário, que proporciona satisfação mútua e não provoca dano físico a ninguém. Qual a diferença concebível que faz, para alguém mais, como uma pessoa ou grupo de pessoas encontram satisfação? Alguém se importa com os livros que vejo, com os alimentos que como, com a hora em que deito ou acordo, se gosto de gatos ou detesto rosas? O sexo também é objeto de indiferença... aqui em Aurora.
- Em Aurora - repetiu Baley. - Mas você não nasceu em Aurora e não foi educada dessa maneira. Você acabou de me dizer que não conseguiu ajustar-se a essa verdadeira indiferença ao sexo, que agora estima. Anteriormente, você mostrou-se desgostosa com os casamentos múltiplos e a promiscuidade fácil. Se não disse aos que recusou por que agiu assim, pode ter sido porque, em qualquer recesso do seu ser, você estava envergonhada de ter Jander por marido. Você soube, ou desconfiou ou então simplesmente supôs, que isso era incomum mesmo em Aurora, e ficou envergonhada.
- Não, Elijah, não me diga que fiquei envergonhada. Se ter um robô como marido é incomum mesmo em Aurora, é porque robôs como Jander são incomuns. Os que temos em Solaria, na Terra ou em Aurora, exceto Jander e Daneel, foram projetados para ter a mais primitiva satisfação sexual. Podem ser usados como objetos de masturbação, talvez, como pode ser um vibrador mecânico, porém nada mais. Quando os robôs humaniformes tiverem se espalhado, o mesmo acontecerá com a relação sexual humano-robô.
- Como foi a primeira a possuir Jander? - perguntou Baley. - Só existiam dois: ambos em poder do Dr. Fastolfe. Teria ele, simplesmente lhe dado um deles, a metade do total?
- Sim.
- Por quê?
- Por bondade, suponho. Eu estava só, desiludida, infeliz, estranha numa terra estranha. Ele me deu Jander como companhia nunca lhe agradeci bastante. Ele ficou apenas meio ano, mas esse período valeu toda a minha vida.
- O Dr. Fastolfe sabia que Jander era seu marido?
- Ele nunca comentou, por isso não sei.
- Você informou-o?
- Não.
- Por quê?
- Não vi necessidade... E não, não foi porque tivesse vergonha.
- Como aconteceu?
- Que eu não tenha sentido necessidade?
- Não. Que Jander tenha se tornado seu marido. Gladia empertigou-se e respondeu, com voz hostil:
- Por que preciso explicar?
- Gladia está ficando tarde - falou Baley. - Não resista cada instante. Está angustiada porque Jander... morreu?
- E ainda pergunta?
- Quer descobrir o que aconteceu?
- Novamente, ainda pergunta?
- Então me ajude. Preciso de todas as informações para poder começar, só começar, a fazer progressos na solução de um problema aparentemente insolúvel. Como Jander tornou-se seu marido?
Gladia recostou-se na cadeira e seus olhos subitamente encheram-se de lágrimas. Empurrou o prato com os farelos que restaram dos pastéis e disse, com voz sufocada:
- Robôs comuns não usam roupas, porém são desenhados para darem a impressão de que usam. Tendo morado em Solaria, conheço bem os robôs e tenho algum talento artístico...
- Lembro dos seus desenhos elegantes - disse Baley, suavemente.
Gladia curvou a cabeça, agradecendo.
- Executei alguns desenhos para novos modelos que possuíssem, na minha opinião, mais classe e mais interesse que alguns dos usados em Aurora. Alguns quadros meus, baseados nesses desenhos, estão pendurados aqui nesta sala. Outros estão em outros lugares da casa.
Os olhos de Baley examinaram os quadros. Já os tinha visto. Eram indubitavelmente de robôs. Não eram naturalistas, mas alongados e anormalmente curvos. Notou que as distorções foram feitas para ressaltar, inteligentemente, as partes que, agora que olhava de uma nova perspectiva, sugeriam roupas. De certa maneira, davam a impressão de roupas de criados que ele vira reproduzidas num livro dedicado à Inglaterra Vitoriana, dos tempos medievais. Gladia saberia disso ou tinha apenas uma semelhança ocidental, se não circunstancial? Provavelmente, não tinha sido calculado, mas não era coisa (talvez) para ser esquecida.
Quando notou pela primeira vez, pensou que era a forma de Gladia se rodear de robôs, imitando a vida em Solaria. Ela odiava aquela vida, dissera, mas era apenas o produto de sua mente pensante. Solaria tinha sido o único lar que realmente conhecera e isso não se descarta com facilidade... talvez nunca. E talvez também permanecesse um elemento de sua pintura, mesmo que suas novas ocupações lhe dessem um motivo mais plausível.
- Eu tive sucesso - a moça estava dizendo. - Os fabricantes de robôs pagavam bem pelos meus desenhos e em numerosos casos, robôs já prontos tiveram seu aspecto refeito de acordo com minhas instruções. Havia uma certa satisfação naquilo tudo que, em parte, compensava o vácuo emocional da minha vida.
- Quando Jander me foi dado pelo Dr. Fastolfe, eu passei a ter um robô que, é claro, usava roupas comuns. O querido doutor teve de fato a grande bondade de me dar algumas mudas de roupa para Jander.
"Nenhuma tinha a menor imaginação e me diverti comprando o que considerei indumentária mais apropriada. Comecei por tirar-lhe as medidas exatas, pois eu pretendia mandar confeccionar meus desenhos... o que significava ter ele de tirar sua roupa aos poucos.
"Ele tirou... e foi apenas quando estava completamente nu que pude perceber quanto estava perto do aspecto humano. Não faltava nada, e a parte que se poderia esperar ser ereta o era realmente. Estava, de fato, sob o que, do ponto de vista humano, podia ser chamado de controle consciente. Jander podia endurecê-la ou não, à vontade.
Ele me revelou isso quando lhe perguntei se seu pênis era funcional. Eu estava curiosa a esse respeito.
"Não se esqueça de que, apesar dele parecer muito com um homem, eu sabia que era robô. Eu tinha uma certa dificuldade de tocar em homens, você sabe, e não duvidava de que isso desempenhasse um papel na minha incapacidade de ter relações sexuais satisfatórias com auroreanos. Porém aquele não era homem e eu tinha convivido com robôs minha vida toda. Podia tocar em Jander à vontade.
- Não levei muito tempo para perceber que tinha prazer em tocá-lo e o robô não precisou muito para ver que eu gostava. Ele era um robô perfeitamente afinado, que seguia estritamente as Três Leis da Robótica. Deixar de dar prazer quando podia correspondia a desapontar. E o desapontamento significava causar dano e ele não poderia fazer isso a um ser humano. Tomou cuidados infinitos, portanto, para me alegrar, e como vi nele o desejo de dar prazer, coisa que nunca vi nos homens auroreanos, fiquei realmente feliz e por fim descobri de modo pleno, creio, o que era um orgasmo.
- Ficou, assim, totalmente feliz? - perguntou Baley.
- com Jander? Claro. Totalmente.
- Nunca brigou?
- Com Jander? Como poderia? Seu único objetivo, sua única razão de vida, era me satisfazer.
- E isso não a perturbou? Ele só a satisfez porque também sentia prazer.
- Qual o motivo de alguém fazer alguma coisa, a não ser porque também quer?
- E você nunca sentiu a necessidade de tentar o verdadeiro... tentar os auroreanos, depois de ter aprendido a ter orgasmo?
Teria sido um substituto insatisfatório. Eu só queria Jander. E agora você entende o que perdi?...
A expressão normalmente séria de Baley tornou-se solene.
- Compreendo, Gladia - replicou. - Se a fiz sofrer antes, perdoe-me, por favor, pois não tinha entendido direito.
Porém, ela estava chorando e Baley esperou, incapaz de dizer mais alguma coisa, incapaz de pensar numa forma razoável de consolar.
Finalmente, Gladia sacudiu a cabeça, enxugou os olhos com as costas da mão e suspirou:
- Há mais alguma coisa?
Com ar de desculpas, Baley disse:
- Algumas perguntas sobre outro assunto e depois deixarei de aborrecê-la. - Acrescentou, precavidamente: - Por enquanto.
- O que é?
Gladia parecia cansadíssima.
- Sabe que há gente que pensa ser o Dr. Fastolfe o autor do assassinato de Jander?
- Sei.
- Sabe que o próprio Dr. Fastolfe admite que só ele possui a capacidade de matar Jander da maneira como foi feito?
- Sei. O próprio caro doutor me disse.
- Muito bem, Gladia: você acha que o Dr. Fastolfe matou Jander?
A moça ergueu os olhos para ele, súbita e asperamente, e depois retrucou, zangada:
- Claro que não. Por que faria isso? Jander era dele, para começar, e o doutor cuidava-o muito. Você não conhece o caro Dr. Fastolfe como eu, Elijah. É uma pessoa amável que não magoaria ninguém e nunca um robô. Supor que quisesse matar um é como imaginar que uma pedra pudesse cair para cima.
- Não tenho mais perguntas, Gladia, e a única outra coisa que tenho de fazer aqui no momento é ver Jander, o que resta dele, se você me permitir.
Ela voltou a ficar desconfiada e hostil.
- Por quê? Por quê?
- Gladia! Por favor! Não creio que sirva para alguma coisa, mas preciso ver Jander e confirmar que de nada adiantou vê-lo. Procurarei não ofender sua sensibilidade.
Gladia levantou-se. Seu vestido, muito simples, tendo apenas uma barra, não era preto (como teria sido na Terra), mas de uma cor neutra, sem reflexos. Baley, que não era especialista em moda, achou ser muito apropriado ao luto.
- Venha - murmurou a moça.
Baley atravessou com Gladia várias peças, cujas paredes brilhavam pouco. Em uma ou duas ocasiões, percebeu um movimento, que julgou tratar-se de um robô saindo rapidamente do caminho, pois tinham recebido ordens de não aparecerem.
Passando por um corredor e depois subindo um lance de escada, chegaram a um cubículo, no qual uma parte da parede brilhava para fazer o efeito de refletor.
Havia uma cama de armar, uma cadeira... e nada mais.
- Este era o quarto dele - disse Gladia. Depois, como que respondendo a um pensamento de Baley, prosseguiu: - Era tudo o que precisava. Eu o deixava só a maior parte do tempo possível: o dia inteiro, se pudesse. Jamais quis ficar cansada dele. - Balançou a cabeça. - Hoje gostaria de ter ficado com ele cada segundo. Eu não sabia que nossa vida em comum iria ser tão curta... Aqui está ele.
Jander estava deitado na cama e Baley examinou-o atentamente. O robô fora coberto com um tecido macio e brilhante. A parede refletor lançava seu brilho sobre a cabeça de Jander, que se mostrava tranqüila e quase inumana em sua serenidade. Os olhos continuavam arregalados, mas sem vida e embaçados. Parecia muito com Daneel, justificando amplamente o mal-estar de Gladia diante dele. A coberta deixava à mostra os ombros e pescoço nus.
- O Dr. Fastolfe o examinou? - perguntou Baley.
- Sim, completamente. Procurei-o, desesperada, e se o tivesse visto correr para cá, sua preocupação, seu sofrimento, o... o pânico, você jamais pensaria que ele pudesse ser responsável. Nada pôde fazer.
- Jander está nu?
- O Dr. Fastolfe teve de retirar-lhe a roupa para o exame completo. Não valia a pena tornar a vesti-lo.
- Gladia, permite que retire a coberta?
- É preciso?
- Não quero que me acusem de ter deixado de ver alguma coisa evidente no exame.
- Você poderá talvez descobrir alguma coisa não vista pelo Dr. Fastolfe?
- Nada, Gladia, porém necessito saber que não há nada a ser descoberto por mim. Coopere, por favor.
- Bem, nesse caso, continue, mas por favor, quando acabar torne a pôr a coberta exatamente como estava.
Virou-se de costas para Baley e Jander, apoiou o braço esquerdo na parede e encostou a testa nele. Estava silenciosa - e imóvel - porém Baley sabia que a moça chorava novamente.
O corpo não era, talvez, muito humano. A musculatura era um tanto simplificada e meio esquemática. Mas todas as suas partes estavam lá: mamilos, umbigo, pênis, testículos, pêlos púbicos, etc. Até mesmo pêlos finos e raros no peito.
Quantos dias tinham decorrido da morte de Jander? Baley espantou-se por não saber, mas tinha acontecido pouco antes de sua viagem a Aurora ter começado. Já se passara uma semana e não havia sinal de decomposição, tanto visualmente como pelo olfato. Uma clara diferença robótica.
Baley hesitou, mas depois meteu um braço sob as costas de Jander e outro sob os quadris. Não lhe ocorreu pedir a ajuda de Gladia: teria sido impossível. Levantou-o e, com alguma dificuldade, virou-o, sem tirá-lo da cama.
A cama rangeu. Gladia devia ter percebido o que ele estava fazendo, pois não se voltou. Apesar de não ter oferecido ajuda, também não protestou.
Baley retirou os braços. Jander permanecia quente ao toque. Presumivelmente, a unidade de energia continuava a manter uma coisa tão simples como a temperatura, mesmo com o cérebro desativado. O corpo também estava firme e elástico ao tato. Presumivelmente, jamais passaria pelo estágio análogo ao rigor mortis.
Um braço estava agora caído para fora da cama, pendente de uma forma quase humana. Baley pegou-o suavemente e largou-o. Ele balançou ligeiramente de um lado para outro e depois parou. Baley dobrou-lhe uma das pernas, examinando um pé e depois o outro. As nádegas tinham sido perfeitamente modeladas e havia até um ânus.
Baley não se pôde livrar de uma sensação de mal-estar. Não abandonava a idéia de que estava violando a privacidade de um ser humano. Se fosse um cadáver humano, a frieza e endurecimento lhe teriam tirado a humanidade.
Pensou, constrangido: um cadáver robótico é muito mais humano que o de um ser humano.
Tornou a meter os braços sob Jander e virou-o para cima.
Esticou o lençol o melhor que pôde e depois recolocou a coberta como antes, alisando-a. Deu um passo atrás e achou que ficou como antes... ou quase.
- Terminei, Gladia - disse.
Ela virou-se para Jander, com os olhos úmidos, e perguntou:
- Agora podemos ir?
- Claro que podemos, mas, Gladia...
- Então?
- Vai conservá-lo assim? Imagino que não entrará em decomposição.
- E importa, se eu conservá-lo assim?
- De certa forma, sim. Você lhe deve dar uma oportunidade de se recuperar. Você não pode passar três séculos chorando-o. O que passou, passou. - Essa afirmação soou ocamente pomposa aos seus próprios ouvidos. Como teria soado aos dela?
- Sei que está sendo bondoso, Elijah - replicou a moça. Pediram-me que conservasse Jander até a investigação terminar. Depois, ele será archoteado, a meu pedido.
- Archoteado?
- Submetido a um archote de plasma e reduzido a nada, como o são os cadáveres humanos. Terei hologramas dele... e recordações Isso o satisfaz?
- Sem dúvida. Agora preciso voltar à casa do Dr. Fastolfe.
- Sim. Concluiu alguma coisa do exame do corpo de Jander?
- Eu não esperava isso, Gladia. Ela o encarou:
- E, Elijah, quero que você descubra quem fez isso e por quê. Preciso saber.
- Mas, Gladia...
Ela sacudiu violentamente a cabeça, como que afastando tudo o que não queria ouvir.
- Sei que você é capaz.
Novamente Fastolfe
Baley saiu da casa de Gladia para o pôr-do-sol e virou-se para o que julgou dever ser o horizonte oeste, dando com o sol de Aurora, de um escarlate vivo, encimado por faixas finas de nuvens rosadas num céu verde-maçã.
- Jehoshaphat - murmurou.
O sol de Aurora, evidentemente mais frio e laranja que o da Terra, acentuava a diferença de cenário, quando sua luz passava pela maior espessura de Aurora.
Daneel estava atrás dele, Giskard, como antes, bem na frente.
Daneel falou em seu ouvido:
- Está sentindo-se bem, Colega Elijah?
- Muito bem - replicou Baley, satisfeito consigo mêsmo. - Estou lidando bem com o Exterior, Daneel. Posso até admirar o poente. Ele é sempre assim?
Daneel olhou, indiferente, para o sol que se punha e respondeu:
- Sempre. Mas vamos depressa para a casa do Dr. Fastolfe. Nesta época do ano, o crepúsculo não dura muito, Colega Elijah- e desejo-o lá enquanto ainda puder ver com facilidade.
- Estou pronto. Vamos.
Baley imaginou se não era melhor esperar pela escuridão- Seria desagradável não poder ver, mas, assim, teria a ilusão de e star fechado... e no íntimo não tinha certeza de quanto tempo essa euforia Provocada por admirar um poente (um poente, imagine, no Exterior) iria durar. Mas era uma vacilação covarde e ele não queria depender dela.
Giskard deslizou sem barulho na direção dele e disse:
- Prefere esperar, senhor? A escuridão será melhor para o senhor? A nós tanto faz.
Baley percebeu outros robôs mais afastados, a cada lado, Gladia teria determinado que seus robôs do campo montassem guarda ou Fastolfe os teria enviado?
Eles acentuavam a preocupação que despertava e, maldosamente, não quis admitir fraqueza.
- Não, vamos já - replicou.
E partiu num passo vivo para a casa de Fastolfe, que mal podi ver entre as árvores afastadas.
Pensou corajosamente: que os robôs me sigam ou não, como quiserem. Sabia que, se começasse a pensar nisso, uma coisa dentro dele cederia ao pensamento de estar na parte externa de um planeta sem proteção, mas com ar entre ele e o grande vácuo, porém não pensaria nisso.
Foi a alegria de estar livre do medo que fez seu queixo tremer e os dentes baterem. Ou foi o vento frio da tarde o responsável... que também arrepiou a pele dos seus braços.
Não foi o Exterior.
Não foi.
Tentando afrouxar os dentes, perguntou:
- Você conhecia bem Jander, Daneel?
- Estivemos juntos durante algum tempo - retrucou o robô. - Desde a época da construção do amigo Jander até ter passado para a casa da Srta. Gladia, estivemos sempre juntos.
- Incomoda-o, Daneel, que Jander parecesse tanto com você?
- Não, senhor. Ele e eu sabíamos sermos diferentes, Colega Elijah, e o Dr. Fastolfe também não nos confundia. Éramos, portanto, dois indivíduos.
- E você também os diferenciava, Giskard?
Os dois agora se achavam muito perto, talvez porque os outros robôs estivessem cumprindo seus deveres afastados.
- Que eu lembre - replicou Giskard - não houve ocasião em que fosse importante eu notar.
- E se tivesse havido, Giskard?
- Então eu teria diferenciado.
- Que opinião tinha de Jander, Daneel?
- Minha opinião, Colega Elijah? - repetiu Daneel. - Em relação a que aspecto de Jander deseja minha opinião?
- Por exemplo, ele trabalhava direito?
- Sem dúvida.
- Seu trabalho era satisfatório em todos os sentidos?
- Que eu saiba, era.
- E você Giskard? Qual é sua opinião?
- Nunca fui amigo íntimo de Jander como Daneel foi - disse Giskard - e assim não há razão para eu dar opinião. Posso apenas dizer que, até onde sei, o Dr. Fastolfe sempre esteve contente com o amigo Jander. Parecia estar sempre contente com ambos, o amigo Jander e o amigo Daneel. Contudo, não acho que minha programação seja de modo a me permitir ter certeza disso.
- E no período depois de Jander ter entrado para o serviço da Srta. Gladia? Teve contato com ele, Daneel?
- Não, Colega Elijah. A Srta. Gladia o mantinha dentro de casa. Nas ocasiões em que visitava o Dr. Fastolfe, nunca vinha com ela, que me lembre. Nas vezes em que acompanhei o Dr. Fastolfe nas visitas à casa de Srta. Gladia, não vi o amigo Jander.
Isso deixou Baley um tanto surpreso. Virou-se para Giskard a fim de repetir a pergunta, fez uma pausa e depois encolheu os ombros. Não estava conseguindo nada e, como o Dr. Fastolfe já havia dito, não adiantava muito interrogar um robô. Não diria intencionalmente nada que pudesse ferir um ser humano, nem podia ser intimidado, subornado ou adulado para isso. Não mentiria francamente, mas ficaria, teimosamente - se não educadamente - insistindo em dar respostas inúteis.
E - talvez - não mais interessasse.
Tinham chegado à porta de Fastolfe e Baley sentiu sua respiração aumentar. O tremor de seus braços e lábios era, tinha certeza, só por causa do vento frio.
O sol desaparecera, algumas estrelas ficaram visíveis, o céu estava se tornando de um verde-púrpura esquisito, que o fazia parecer triturado, e ele abrigou-se nas paredes brilhantes.
Estava a salvo.
Fastolfe cumprimentou-o.
- Voltou na hora, Sr. Baley. Sua conversa com Gladia foi compensadora?
- Muito compensadora, Dr. Fastolfe - disse Baley. - É muito possível que eu tenha encontrado a chave da solução.
Fastolfe apenas sorriu educadamente, não demonstrando surpresa, júbilo ou descrédito. Dirigiu-se para uma peça que era, evidentemente, a sala de jantar, menor e mais aconchegante que a em que tinham almoçado.
- O senhor e eu, caro Sr. Baley - disse Fastolfe, amavelmente - vamos ter um jantar informal a sós. Apenas nós dois. Até os robôs ficarão fora, se desejar. Nem falaremos de negócios, a não ser que o queira muito.
Baley nada disse, mas parou para olhar as paredes, espantado. Elas eram de um verde oscilante, com nuanças de luminosidade e matiz, progressivas de baixo até em cima. Havia uma sugestão de folhagens de verde-escuro e reflexos de sombras aqui e ali. As paredes faziam a sala parecer uma gruta bem-iluminada num raso braço de mar. O efeito era vertiginoso: pelo menos Baley achou.
Fastolfe não teve dificuldade em interpretar a expressão de Baley.
- É um gosto adquirido. Sr. Baley, confesso - disse ele. - Giskard, reduza a iluminação da parede... Obrigado.
Baley deu um suspiro de alívio.
- E obrigado ao senhor, Dr. Fastolfe. Posso ir ao Pessoal, senhor?
- Mas claro. Baley hesitou:
- O senhor pode... Fastolfe deu uma risadinha.
- Vai achá-lo perfeitamente normal, Sr. Baley. Não terá queixas.
Baley inclinou a cabeça.
- Muitíssimo obrigado.
Sem o intolerável faz-de-conta, o Pessoal - acreditou que seria o mesmo que tinha usado antes - não passava do que era, muito mais luxuoso e acolhedor do que jamais tinha visto. Era incrivelmente diferente dos existentes na Terra, que não passavam de filas de unidades idênticas estendendo-se indefinidamente, designado para ser usado por uma - e só uma - pessoa de cada vez.
A privada brilhava de certa forma, com a limpeza higiênica. Sua camada molecular externa devia ter sido retirada após cada utilização e uma nova camada colocada.
Baley sentiu vagamente que, se permanecesse bastante tempo em Aurora, iria ter dificuldade a se adaptar às multidões da Terra, que relegavam a higiene e limpeza a segundo plano – coisa a se prestar uma reverência distante . um ideal não muito atingível.
Baley, rodeado do conforto de peças de marfim e ouro (sem dúvida- ambos não verdadeiros), reluzentes e lisas, subitamente estava tremendo por causa da troca eventual de bactérias da Terra e estremeceu diante de sua rica contaminação. Não era o que os Espaciais sentiam? Podia culpá-los?
Pensativamente, lavou as mãos, mexendo nos pequenos botões aqui e ali, na faixa de comando, visando a mudar a temperatura. E no entanto os auroreanos eram tão desnecessariamente pomposos na decoração de interiores, tão insistentes em fingirem estar vivendo num estado natural, quando tinham domesticado e estragado a natureza... Ou apenas
Fastolfe era assim?
Afinal de contas, a residência de Gladia era muito mais austera. .. Ou era apenas porque tinha sido educada em Solaria?
O jantar foi uma pura delícia. Novamente, como no almoço, havia uma clara sensação de estar próximo da natureza. Os pratos eram numerosos - todos diferentes, em pequenas quantidades - e em vários casos foi possível ver que tinham sido parte de plantas e animais. Estava começando a tomar conhecimento dos inconvenientes: ossinhos ocasionais, pedacinhos de cartilagens, fibras, que poderiam tê-lo repugnado antes - como parte da aventura.
O primeiro prato foi um peixinho - que se comia inteiro, com os órgãos internos que pudesse ter - e aquilo foi uma maneira boba de colocá-lo em contato íntimo com a Natureza, com letra maiúscula. Seja como for, engoliu o peixinho como Fastolfe e o sabor converteu-o imediatamente. Nunca havia provado coisa igual. Era como se tivesse saboreado brotos subitamente inventados e inseridos em sua língua.
O paladar mudava de prato para prato e alguns eram claramente estranhos e não totalmente agradáveis, mas achou que não tinha importância. A sensação de um gosto diverso, de diferentes gostos diversos (a conselho de Fastolfe, bebeu um gole de água levemente perfumada entre os pratos) era o que importava... e não o detalhe interno.
Procurou não engolir depressa nem concentrar a atenção completamente nos alimentos, nem lamber o prato. Desesperadamente, continuou a observar e imitar Fastolfe, ignorando os olhares simpáticos mas claramente divertidos do outro.
- Espero - disse Fastolfe - que tenha gostado.
- É muito bom - tratou Baley de afirmar.
- Por favor, não se force a uma polidez inútil. Não coma qualquer coisa que lhe pareça estranha ou intragável. Mandarei servir o que o senhor quiser em substituição.
- Não há necessidade, Dr. Fastolfe. Tudo está bastante satisfatório.
- Ótimo.
Apesar de Fastolfe ter proposto comer sem a presença de robôs, havia um para servir (Fastolfe, acostumado a isso, provavelmente nem reparou, pensou Baley... que nem tocou no assunto).
Como era esperado, o robô ficou silencioso e suas maneiras impecáveis. Sua libré parecia ter sido copiada de dramas históricos que Baley tinha visto na hiperonda.
Só ao ser olhada muito de perto é que alguém podia ver como a indumentária era uma ilusão de luz e como o exterior do robô era de metal liso... e nada mais.
- O exterior do garçom foi desenhado por Gladia? - perguntou Baley.
- Foi - replicou Fastolfe, evidentemente satisfeito. - Como Gladia ficará contente ao saber que o senhor reconheceu o toque dela. Ela é boa, não acha? Seu trabalho vem ganhando popularidade e ela ocupa um lugar útil na sociedade auroreana.
A conversa durante a refeição foi agradável, mas sem importância. Baley não teve pressa em "falar de negócios" e, de fato, preferiu ficar muito tempo silencioso enquanto saboreava a refeição e deixando ao seu inconsciente - ou que faculdade ocupou o lugar, na ausência de um pensar efetivo - decidir como entrar no assunto
que lhe parecia agora ser o ponto central do problema Jander.
Fastolfe assumiu, de certa forma, a iniciativa, dizendo:
- E agora que mencionou Gladia, Sr. Baley, posso perguntar-lhe o que aconteceu, que o senhor chegou na casa dela bastante desesperado e voltou quase alegre e dizendo ter talvez conseguido a chave de tudo? Soube alguma coisa nova, e talvez inesperada, em casa de Gladia?
- De fato - replicou Baley, distraído.
Mas estava perdido na sobremesa, que não podia reconhecer absolutamente e da qual (depois que um desejo em seus olhos tinha servido para inspirar o garçom) lhe foi servida mais um pouco. Estava farto. Nunca na vida tinha gostado tanto do ato de comer, e pela primeira vez sentiu os limites fisiológicos que tornavam impossível comer indefinidamente. Ficou um tanto envergonhado por isso.
- E o que descobriu de novo e inesperado? - perguntou Fastolfe, com paciência. - Presumivelmente, uma coisa que eu mesmo não sei?
- Talvez. Gladia me disse que o senhor deu-lhe Jander há cerca de meio ano.
Fastolfe balançou a cabeça.
- Eu sabia disso. De fato, dei.
- Por quê? - perguntou Baley, ríspido.
O ar amistoso do rosto de Fastolfe desapareceu devagar. Depois respondeu:
- Por que não?
- Não sei por que não, Dr. Fastolfe - disse Baley. - Não me interessa. Minha pergunta é: por quê?
Fastolfe sacudiu levemente a cabeça e ficou calado.
- Dr. Fastolfe - continuou Baley - estou aqui para esclarecer o que parece ser uma grande encrenca. Nada do que o senhor fez, nada, tornou as coisas simples. Pelo contrário, o senhor parece ter prazer em mostrar-me como a situação é grave e em destruir toda a especulação que eu possa oferecer com uma possível solução. Ora, não espero que outros respondam minhas perguntas. Não tenho posição oficial neste mundo e nem o direito de fazer perguntas, para não dizer forçar respostas.
"Com o senhor, porém, é diferente. Estou aqui a seu pedido, tentando salvar sua carreira e a minha e, de acordo com sua opinião a respeito, estou procurando livrar Aurora e a Terra também. Assim sendo, espero que responda minhas perguntas total e verdadeiramente. Por favor, não adote táticas protelatórias, como me perguntando por que não quando eu pergunto por quê. Agora, mais uma vez... e pela última: por quê?”
Fastolfe estendeu os lábios e ficou triste.
- Desculpe, Sr. Baley. Se hesitei em responder, foi porque, olhando para trás, não me pareceu haver um motivo bastante dramático. Gladia Delmarre - ela não quer que usem seu sobrenome - Gladia é uma estrangeira neste planeta, sofreu experiências dramáticas no seu planeta de origem, como sabe, e traumáticas neste, como talvez não saiba...
- Sei. Por favor, seja mais direto.
- Bem, então senti pena dela. Gladia estava só e Jander, pensei, poderia fazê-la sentir-se menos solitária.
- Pena dela? Exatamente. São amantes? Foram?
- Não, absolutamente não. Não tentei. Nem ela... Por quê? Ela lhe disse que tínhamos sido amantes?
- Não, não disse, porém preciso de confirmação, seja como for. Quando houver uma contradição, eu lhe direi, não precisa se preocupar com isso. Por que motivo, tendo o senhor simpatizado tanto com ela, e pelo que pude tirar de Gladia, ela lhe ficou muito agradecida, nenhum dos dois tomou a iniciativa? Fui informado de que, em Aurora, propor sexo é quase igual a um comentário sobre o tempo.
Fastolfe franziu a testa.
- O senhor nada sabe sobre isso, Sr. Baley. Não nos julgue pelos padrões do seu próprio mundo. O sexo não é assunto de muita importância para nós, porém o usamos com cuidado. Não parece ser assim para o senhor, mas nenhum de nós o propõe levianamente. Gladia, sem conhecer nossos costumes e sexualmente frustrada em Solaria, talvez se tenha oferecido levianamente... ou desesperadamente, melhor dizendo, e talvez não seja surpreendente, portanto, que não tenha gostado do resultado.
- O senhor não procurou melhorar as coisas?
- Oferecendo-me? Eu não sou o que ela precisa e, nesse ponto, ela não é o que eu preciso. Senti pena dela. Gosto de Gladia. Admiro seu talento artístico. E quero que seja feliz... Afinal de contas, Sr. Baley, o senhor certamente concorda que a simpatia de um ser humano por outro não precisa repousar no desejo sexual ou outra coisa, a não ser o sentimento humano decente. O senhor nunca sentiu simpatia por alguém? Nunca desejou ajudar alguém sem outro motivo que a boa sensação de aliviar o sofrimento de outra pessoa? De que espécie de planeta veio o senhor?
- O que o senhor disse é justificado, Dr. Fastolfe. Não duvido de que o senhor seja um ser humano decente. Todavia, seja indulgente comigo. Quando lhe perguntei pela primeira vez por que tinha dado Jander a Gladia, não me disse o que acaba de me dizer... e também com enorme emoção, devo acrescentar. Seu primeiro impulso foi tergiversar, hesitar, ganhar tempo, perguntando por que não. - Admitindo que o senhor finalmente me contou a verdade, o que foi que o deixou embaraçado de saída na pergunta? Que motivo, que o senhor não quis admitir, teve, antes de resolver defender o motivo quis confessar? Desculpe-me por insistir, mas preciso saber: e, garanto-lhe, não por curiosidade pessoal. Se o que me disser não ter utilidade neste triste caso, pode ter certeza de que foi atirado num buraco negro.
Fastolfe replicou em voz baixa:
- Com toda a honestidade, não sei direito por que evitei sua pergunta. O senhor me surpreendeu numa coisa que talvez eu não quisesse enfrentar. Dê-me um tempo, Sr. Baley.
Ficaram juntos, calados. O criado retirou a mesa e saiu da sala. Daneel e Giskard estavam em outro lugar (presumivelmente vigiando a casa). Baley e Fastolfe ficaram finalmente sós numa sala livre de robôs.
- Por fim, Fastolfe falou:
- Não sei o que devo dizer-lhe, porém permita-me recuar ai- " guns decênios. Tenho duas filhas. Talvez o senhor saiba. São de mães diferentes...
- O senhor preferiria ter filhos, Dr. Fastolfe? O homem mostrou-se genuinamente surpreso.
- Não. De maneira nenhuma. A mãe da minha segunda filha queria um filho, acho eu, mas não consenti na inseminação artificial com esperma selecionado, nem mesmo com o meu próprio, e insisti no lançamento natural do dado genético. Antes que pergunte por que, foi porque prefiro uma certa operação de chance na vida e porque penso, no conjunto, que queria uma oportunidade de ter uma filha. Eu teria aceito um filho, compreenda, mas não queria abandonar a possibilidade de uma filha. Seja como for, aprovo filhas. Bem, minha segunda foi também mulher e esse talvez seja um dos motivos da mãe ter desfeito o casamento logo após o nascimento. Por outro lado, uma considerável porcentagem de casamentos é desfeita após um nascimento e assim eu talvez não necessite de um motivo especial.
- Suponho que ela levou a filha. Fastolfe dirigiu um olhar confuso a Baley.
- Por que ela faria isso?... Mas esqueci. Você é da Terra. Não, claro que não. A criança foi levada para um berçário, onde Poderia ser devidamente cuidada, claro.
Na realidade, porém - franziu o nariz como que subitamente embaraçado por uma recordação curiosa - não foi posta lá. Resolvi criá-la. Era legal essa attude, mas não muito comum. Eu era muito moço, claro, não tinha ainda atingido os cem anos, mas já havia me distinguido na robótica.
- Conseguiu?
- Quer dizer, educá-la com sucesso?
- Ah, sim. Fiquei gostando muito dela. Chamei-a de Vasilia. Era o nome de minha mãe, sabe - Deu uma risadinha reminiscente. - Adquiri esse estranho traço de sentimento... como essa afeição por meus robôs. Nunca encontrei minha mãe, claro, mas o nome dela está na minha lista. E ela ainda vive, segundo me consta, por isso posso vê-la... mas acho que é um tanto nojento ter contato com alguém de cujo útero se saiu... Onde estava eu?
- O senhor deu o nome de Vasilia à sua filha.
- Sim... trouxe-a e realmente fiquei gostando dela. Muito mesmo. Pude ver onde estava a atração ao fazer uma coisa assim, mas, claro, tornei-me um incômodo para meus amigos e tive de mantê-la afastada quando precisava fazer um contato, social ou profissional. Lembro de uma vez...
Fez uma pausa.
- Sim?
- É uma coisa que não me vem à memória há décadas. Ela se aproximou correndo, chorando por algum motivo, e atirou-se em meus braços quando o Dr. Sarton estava comigo, discutindo um dos primeiros programas de construção de robôs humaniformes. Vasilia tinha apenas sete anos de idade, acho, e, claro, abracei-a, beijei-a e esqueci o trabalho, que era praticamente inesquecível para mim. Sarton saiu, tossindo, sufocado... e muito indignado. Precisei de toda uma semana para restabelecer contato com ele e recomeçar as deliberações. As crianças não provocam esse efeito nas pessoas, suponho, mas há muito poucas crianças e são encontradas muito raramente.
- E sua filha, Vasilia, gostava do senhor?
- Ah, sim... pelo menos até... Gostava muito de mim. Mandei-a à escola e fiz com que fosse dada à sua mente a máxima condição de desenvolvimento.
- O senhor disse que ela gostava do senhor até... alguma coisa. Não concluiu a frase. Então houve uma época em que ela deixou de gostar do senhor. Quando foi isso?
- Ela queria ter sua própria moradia quando se tornou crescida. Era uma coisa natural.
- E o senhor não queria?
- Que o faz supor que eu não queria? Claro que queria. O senhor está concluindo que sou um monstro, Sr. Baley.
- Devo concluir, em vez disso, que tão logo sua filha atingiu a idade de ter sua própria casa, não mais sentiu a mesma afeição pelo senhor que tinha naturalmente, quando era sua filha dependente, morando em sua casa?
- Não é tão simples assim. De fato, foi um pouco mais complicado. Veja... - Fastolfe parecia embaraçado. - Recusei-a quando ela se ofereceu a mim.
- Ela se ofereceu ao senhor? - perguntou Baley, horrorizado.
- Isso era uma coisa natural - afirmou Fastolfe, com ar de indiferença. - Ela me conhecia melhor. Eu a tinha educado em sexo, encorajei-a a experimentar, levei-a aos Jogos de Eros, fiz o que pude por ela. Era uma coisa a ser esperada e fui bobo por não ter esperado, deixando me enredar.
- Mas incesto? Fastolfe repetiu:
- Incesto? Ah, sim, um termo terrestre. Isso não existe em Aurora, Sr. Baley. Poucos auroreanos conhecem sua família mais chegada. Naturalmente, se o casamento estiver em causa e houve um requerimento de filhos, há uma pesquisa genealógica, mas que tem isso a ver com o sexo, socialmente falando? Não, não, a coisa anormal foi eu ter recusado minha própria filha.
Enrubesceu, principalmente nas orelhas.
- Eu devia esperar isso - murmurou Baley.
- Não tenho motivos decentes para isso, também... pelo menos nenhum que pudesse explicar a Vasilia. Foi criminoso de minha parte não ter previsto aquilo e poder preparar uma base para uma rejeição racional de alguém tão jovem e inexperiente, se fosse necessário, que não a magoasse e a submetesse a uma dolorosa humilhação.
Estou de fato insuportavelmente envergonhado por ter assumido à responsabilidade incomum de ter recolhido uma criança, apenas para submetê-la a essa experiência desagradável. Pareceu-me que Podíamos continuar nossa relação de pai e filha - como amigo e amiga - porém ela não desistiu. Por mais que eu a recusasse, não importando o carinho que eu usasse, as coisas pioraram entre nós.
- Até que finalmente...
- Finalmente, ela quis sua própria casa. A princípio, me opus, não porque não quisesse que ela não tivesse uma, mas porque eu Queria restaurar nossa amizade antes que partisse. Nada adiantou.
Foi talvez o período de minha vida em que mais me esforcei. Por fim, ela simplesmente, e um tanto violentamente, insistiu em partir e não pude evitar mais. Nessa época, ela já era roboticista profissional, e estou grato por não ter abandonado a profissão por minha causa, e foi capaz de arranjar uma casa sem minha ajuda. Depois de ter-se instalado, de fato, desde então tivemos muito poucos contatos.
- Pode ser, Dr. Fastolfe, uma vez que ela não abandonou a robótica, que não se considere totalmente estranha.
- É o que ela faz de melhor e no que tem mais interesse. Nada tem a ver comigo. Sei disso porque, para começar, pensei como o senhor e tentei vários contatos que não foram aceitos.
- O senhor sente falta dela, Dr. Fastolfe?
- Claro que sim, Sr. Baley... É um exemplo do erro de se ter um filho. Entra-se num impulso irracional, num desejo atávico, que leva a inspirar à filha o mais forte sentimento possível de amor e depois nos sujeita à possibilidade de termos de recusar a primeira proposta dessa mesma filha de se entregar e marcá-la emocionalmente para sempre. E, ainda mais, a gente se submete a isso pelo sentimento irracional de pena de não ter feito. É uma coisa que nunca senti, nem antes nem depois. Ela e eu sofremos desnecessariamente e a culpa foi toda minha.
Fastolfe caiu numa espécie de meditação e Baley perguntou suavemente:
- E o que tem tudo isso a ver com Gladia? Fastolfe sobressaltou-se.
- Ah! Eu tinha esquecido. Bem, é muito simples. Tudo o que falei sobre Gladia é verdade. Eu gostava dela. Simpatizava com ela. Admirava seu talento. Mas, para completar, ela parece com Vasilia. Notei a semelhança quando vi a primeira reportagem de hiperonda sobre sua chegada de Solaria. Era espantosa, o que me fez ficar interessado.
- Suspirou. - Quando soube que ela, como Vasilia, também tinha sido marcada pelo sexo, foi mais do que pude suportar. Arranjei para que ela viesse morar perto de mim. Tornei-me seu amigo e fiz o que pude para amortecer suas dificuldades de adaptação a um mundo estranho.
- Então ela é uma filha-substituta.
- De certo modo, sim. Acho que pode considerar assim, Sr. Baley... E o senhor não tem idéia de como sou grato por ela jamais ter metido na cabeça a idéia de se oferecer a mim. Tê-la recusado seria reviver minha rejeição de Vasilia. Tê-la aceito por incapacidade de repetir a rejeição seria amargurar minha vida, pois então eu teria sentido que estava fazendo por aquela estranha, aquele pálido reflexo de minha filha, o que não tinha feito por ela. De qualquer maneira... Mas, não importa, o senhor agora pode ver por que hesitei em responder-lhe. De certa forma, pensar nisso me faz voltar a essa tragédia em minha vida.
- E sua outra filha?
- Lumen? - falou Fastolfe. indiferente. - Nunca tive qualquer contato com ela. embora receba notícias dela de vez em quando.
- Ouvi dizer que se candidatou a um cargo político.
- Um cargo local. Pelos Globais.
- O que é isso?
- Os Globais. Eles lutam apenas por Aurora: somente o nosso globo, como vê. Os auroreanos devem assumir a iniciativa de colonizar a galáxia. Todos os outros devem ser impedidos, o máximo possível, especialmente os terráqueos. "Egoísmo esclarecido", é como o denominam.
- Claro que esse não é o seu ponto de vista.
- Sem dúvida. Eu chefio o Partido Humanista, que acredita que todos os seres humanos têm direito à Galáxia. Quando falo em "meus inimigos", estou me referindo aos Globais.
- Lumen, então, é um dos seus inimigos.
- Vasilia também é, como membro do Instituto de Robótica de Aurora, IRA, fundado há poucos anos, dirigido por roboticistas que me consideram um demônio a ser derrotado a qualquer preço. Contudo, até onde posso saber, minhas diversas ex-mulheres são apolíticas, talvez mesmo humanistas. - Riu maliciosamente e prosseguiu: - Bem, Sr. Baley, fez todas as perguntas que tinha em mente?
As mãos de Baley procuraram ao acaso bolsos na sua roupa auroreana - coisa que fazia periodicamente desde que começou a usá-las na nave - e não os encontrou. Conformou-se, como fazia às vezes, em cruzar os braços no peito.
- Na verdade, Dr. Fastolfe - disse - não estou certo de que o senhor tenha realmente respondido à primeira pergunta. Parece-me que o senhor nunca se cansa de evitá-la.
Por que deu Jander a Gladia? Precisamos trazer tudo à tona, para que possamos ver a luz onde agora só há trevas.
Fastolfe tornou a ruborizar-se. Provavelmente de raiva, desta vez, mas continuou a falar calmamente.
- Não me intimide, Sr. Baley - disse Fastolfe. - Já lhe respondi. Tive pena de Gladia e pensei que Jander poderia fazer-lhe companhia. Falei-lhe mais francamente que a qualquer outra pessoa, em parte por causa da minha posição e em parte porque o senhor não é auroreano. Em troca, exijo o devido respeito.
Baley mordeu o lábio inferior. Ele não estava na Terra. Não tinha autoridade oficial a apoiá-lo, mas apenas seu orgulho profissional.
- Peço-lhe desculpas, Dr. Fastolfe - replicou - se feri seus sentimentos. Não quis dizer que o senhor não está sendo verídico ou pouco cooperador. Não obstante, não posso agir sem conhecer toda a verdade. Vou sugerir-lhe a resposta possível que estou esperando e o senhor me dirá se estou certo, quase certo ou completamente errado. Pode ser que o senhor tenha dado Jander a Gladia com o objetivo de que ele pudesse servir como foco do impulso sexual dela e assim não tivesse ocasião de se oferecer ao senhor? Talvez não tenha sido um motivo consciente, mas pense nisso agora. É possível que isso tenha Contribuído para o presente?
Fastolfe pegou um pequeno enfeite leve e transparente que estava sobre a mesa de jantar. Virou-o sem parar. A não ser por esse movimento, Fastolfe parecia petrificado.
Finalmente, respondeu:
- Talvez sim, Sr. Baley. Certamente, após ter-lhe emprestado Jander - por falar nisso, não foi um presente total - fiquei menos preocupado sobre a possibilidade de Gladia oferecer-se a mim.
- Sabe se Gladia usou Jander para relações sexuais?
- Perguntou a Gladia sobre isso, Sr. Baley?
- Isso nada tem a ver com minha pergunta. O senhor sabe? Testemunhou alguma relação claramente sexual entre eles? Algum dos seus robôs lhe informou a respeito? Ela própria lhe disse?
- A resposta a todas essas perguntas, Sr. Baley, é não. Se me detenho para pensar nisso, não há nada de estranho particularmente no uso de robôs para fins sexuais, tanto por homens quanto por mulheres. Os robôs comuns não são especialmente adaptados a esse fim, porém os seres humanos são hábeis a esse respeito. Quanto a Jander, foi adaptado para isso porque era tão humaniforme quanto pude torná-lo...
- E por isso podia tomar parte num ato sexual.
- Não, nunca tivemos isso em mente. Foi o problema abstrato de construir um robô completamente humaniforme que levou-nos, o Dr. Sarton e eu, a isso.
- Mas esses robôs humaniformes são idealmente indicados para o sexo, não são?
- Suponho que sim, agora que me permito pensar nisso, e confesso que escondi na mente, desde o começo, que Gladia podia usar Jander com esse fim. Se o fez, espero que tenha ficado satisfeita. Considerarei meu empréstimo a ela uma boa ação, se ficou.
- O senhor não teria contado com mais que uma boa ação?
- De que modo?
- Que diria o senhor se eu lhe contasse que Gladia e Jander eram marido e mulher?
A mão de Fastolfe, ainda segurando o enfeite, fechou-se convulsivamente, apertando-o durante um instante, para depois deixá-lo cair.
- Como? Isso é ridículo. Legalmente impossível. Não poderiam ter filhos e assim não seria concebível um requerimento para isso. Sem a intenção de um pedido assim, não pode haver casamento.
- Não é um problema de legalidade, Dr. Fastolfe. Gladia é solariana, lembre, e não tem a perspectiva auroreana. É uma questão de emoção. A própria Gladia me disse que considerou Jander como marido. Acho que agora se considera viúva, com outro trauma sexual: e muito severo. Se, de alguma forma, o senhor conscientemente contribuiu para isso...
- Pelas estrelas - disse Fastolfe com desusada emoção - não contribuí. O que quer que estivesse na minha cabeça, nunca imaginei que Gladia pudesse fantasiar o casamento com um robô, por mais humaniforme que fosse. Nenhum auroreano poderia imaginar isso.
Baley balançou a cabeça e ergueu a mão.
- Acredito no senhor. Não creio que o senhor seja bastante ator para me enrolar numa sinceridade forjada. Mas tenho que saber. Afinal de contas, seria possível que...
- Não, não seria. Possível que eu previsse essa situação? Que eu deliberadamente criasse essa abominável viuvez por algum motivo? Nunca. Não era concebível e, assim sendo, não a concebi. Si. Baley, o que quer que eu tivesse em mente ao colocar Jander na casa de Gladia, foi para o bem dela. Eu não quis fazer isso. Ter boas intenções é uma pobre defesa, eu sei, mas é tudo o que tenho a oferecer.
- Dr. Fastolfe, não vamos mais nos referir a isso - disse Baley. - O que tenho agora a oferecer é uma possível solução do mistério.
Fastolfe respirou fundo e reclinou-se na cadeira.
- O senhor fez várias insinuações quando voltou da casa de Gladia. - Olhou para Baley com um ar de brutalidade. - Não podia me ter dado essa "chave" desde o começo?
Precisávamos passar por tudo... isso?
- Lamento, Dr. Fastolfe. A chave não faria sentido sem tudo... isso.
- Está bem. Concordo.
- Jander ficou numa posição que o senhor, o maior teórico robótico do mundo todo, não previu, por seu próprio consentimento. Agradou tanto Gladia que ela se apaixonou por ele profundamente e passou a considerá-lo seu marido. E se em vez de agradá-la ele a tivesse desagradado?
- Não sei bem o que quer dizer.
- Bem, veja, Dr. Fastolfe. Ela estava um tanto reservada a respeito. Sei que em Aurora os assuntos sexuais não são coisas que se escondam a qualquer custo.
- Não os anunciamos nas hiperondas - disse Fastolfe secamente - mas não fazemos o maior segredo disso como o fazemos de outros assuntos estritamente pessoais. Sabemos em geral quem foi o último parceiro de alguém e, se se trata de amigos, freqüentemente temos uma idéia de como é bom, entusiástico ou fora do comum o outro parceiro, ou ambos reciprocamente. É uma questão de conversar ao acaso.
- Sim, mas o senhor nada sabia da ligação de Gladia com Jander.
- Eu desconfiava...
- Não é a mesma coisa. Ela nada lhe disse. O senhor nada viu. Nem qualquer robô lhe contou. Ela conservou o fato em segredo, mesmo para o senhor, seu melhor amigo em Aurora. É evidente que os robôs dela receberam ordens estritas de nunca discutirem Jander e este deve ter sido cuidadosamente instruído para nada deixar transparecer.
- Suponho que seja uma conclusão sólida.
- Por que Gladia faria isso, Dr. Fastolfe?
- Um senso de privacidade solariana com relação ao sexo?
- Não é a mesma coisa que dizer ter ela ficado envergonhada?
- Não tinha motivo para isso, embora o fato de considerar Jander como marido pudesse torná-la risível.
- Ela poderia ter ocultado essa parte com facilidade sem esconder tudo. Suponha, à sua maneira solariana, que tenha ficado envergonhada.
- Bem, e depois?
- Ninguém gosta de ficar envergonhado: e ela pode ter culpado Jander por isso, na forma um tanto irracional que as pessoas têm de atribuir a outros a culpa pelos dissabores que são claramente sua própria culpa.
- Sim?
- Deve ter havido horas em que Gladia, que tem um temperamento explosivo, debulhou-se em lágrimas, digamos, e censurou Jander por ser a fonte de sua vergonha e sofrimento.
Pode não ter durado muito e ela talvez tenha mudado para pedidos de desculpas e cadeias, mas Jander não teria claramente pensado que era, realmente, a fonte de sua vergonha e sofrimento?
- Talvez.
- E isso não poderia ter significado para Jander que, se continuasse a relação, iria torná-la infeliz, e que se terminasse a ligação iria fazê-la sofrer? O que quer que fizesse, quebraria a Primeira Lei e, incapaz de agir sem essa violação, só poderia encontrar refúgio em não agir absolutamente... e assim entrou em congelamento mental. Lembra do que me contou hoje do lendário robô leitor de mentes, que foi levado à paralisia por aquela pioneira da robótica?
- Por Susan Calvin, sim, lembro. Estou entendendo! O senhor preparou sua cena baseado na velha lenda. Muito esperto, Sr. Baley, mas não funciona.
- Por quê? Quando disse que só o senhor podia provocar um congelamento mental em Jander, o senhor não tinha a menor idéia de que ele estivesse tão profundamente envolvido nessa situação tão inesperada. Ela desenrola-se exatamente paralela à de Susan Calvin.
"Vamos supor que essa história sobre Susan Calvin e o robô leitor de pensamentos não passe de uma lenda totalmente fictícia. Encaremo-la seriamente. Continuará a não haver paralelo entre ela e a situação de Jander. No caso de Susan Calvin, estávamos tratando com um robô inacreditavelmente primitivo, um que hoje nem mesmo conseguiria a situação de brinquedo. Ele só poderia lidar qualitativamente com esses temas: A cria sofrimento, não-A cria sofrimento conseqüentemente, congelamento mental.
- E Jander? - perguntou Baley.
- Qualquer robô moderno, qualquer robô do último século teria pesado o assunto qualitativamente. Qual das duas situações, A ou não-A, provocaria o maior sofrimento?
O robô teria de chegar a uma rápida decisão e optar pelo mínimo de sofrimento. A possibilidade de que julgasse as duas alternativas mutuamente exclusivas para produzir precisamente quantidades iguais de sofrimento é pequena, e mesmo que assim fosse, o robô moderno é dotado de um fator fortuito. Se A e não-A são fatores de sofrimento precisamente idênticos, de acordo com o julgamento dele, esse robô escolhe um ou outro de uma forma totalmente imprevisível e depois o segue cegamente. Não entra em congelamento mental.
- Está dizendo que é impossível para Jander entrar em congelamento mental? O senhor disse que poderia ter feito.
- No caso de um cérebro positrônico humaniforme, há uma maneira de pôr de lado o fator acaso, que depende inteiramente da forma em que o cérebro é construído. Mesmo que alguém conheça a teoria básica, é muito difícil e prolongado o processo para poder levar o robô ao jardim, por assim dizer, por uma hábil sucessão de perguntas e ordens para, finalmente, induzir o congelamento mental. É impensável que possa ser feito por acidente e a simples existência de uma evidente contradição, como a produzida por amor e vergonha simultaneamente, não pode fazer a coisa sem o ajustamento quantitativo mais cuidadoso, sob condições as mais desusadas... O que nos deixa, como venho dizendo, a possibilidade não determinista como a única maneira possível de ter acontecido.
- Mas seus inimigos insistirão que sua própria culpa é a mais provável... Não podemos, por nossa vez, insistir que Jander foi levado ao congelamento mental pelo conflito criado pelo amor e vergonha de Gladia? Isso não pareceria plausível? E não poria a opinião pública ao seu lado?
Fastolfe franziu a testa.
- Sr. Baley, o senhor é muito afoito. Pense seriamente nisso. Se tentarmos sair do nosso dilema desta forma um tanto desonesta, quais serão as conseqüências? Já não falo na vergonha e sofrimento de Gladia, que terá de suportar não apenas a perda de Jander, mas a sensação de que contribuiu para essa perda se, de fato, sentiu realmente essa vergonha e a revelou de alguma forma. Não quero fazer isso e assim deixemo-la de lado, se pudermos. Considere em lugar disso que meus inimigos dirão que emprestei Jander a ela exatamente para provocar o que aconteceu. Eu teria feito isso, diriam, com o objetivo de desenvolver um método de congelamento mental em robôs humaniformes, que me isentaria de toda a responsabilidade evidente. Ficaríamos piores do que estamos agora, pois eu não seria apenas acusado de ser um intrigante ardiloso, como estou sendo, mas, ainda, de me ter comportado monstruosamente com relação a uma mulher insuspeita, de quem fingi ser amigo, coisa que há muito venho evitando.
Baley ficou tonto. Sentiu o queixo cair e sua voz transformou-se num balbucio:
- Certamente, eles não irão...
- Irão, sim. O senhor mesmo esteve meio inclinado a pensar assim, não faz muito tempo.
- Apenas como uma remota...
- Meus inimigos não a considerarão remota e não a espalharão como remota.
Baley corou. Sentiu a onda de calor e não conseguiu encarar Fastolfe. Pigarreou e disse:
- Tem razão. Decidi-me por uma saída sem pensar e só me resta pedir-lhe desculpas. Estou profundamente envergonhado... Não há saída, suponho, mas a verdade... se conseguirmos descobri-la.
- Não se desespere - replicou Fastolfe. - O senhor já descobriu coisas ligadas a Jander com as quais nunca sonhei. Pode descobrir mais e, finalmente, o que parecer um completo mistério para nós, agora, pode se desenrolar e ficar evidente. Que planeja fazer a seguir?
Baley não conseguiu pensar em nada em meio à vergonha do seu fiasco. Replicou:
- Realmente não sei.
- Bem, então não é justo eu perguntar. O senhor teve um dia cansativo e nada fácil. Não é de estranhar que seu cérebro esteja um tanto lento agora. Por que não descansa, não vê um filme, não dorme? Estará melhor de manhã.
Baley balançou a cabeça e resmungou:
- Talvez tenha razão.
Mas, naquele momento, não pensava que iria sentir-se melhor de manhã.
O quarto estava frio, tanto em temperatura como em ambiente. Baley tremeu ligeiramente. Uma temperatura tão baixa num quarto produzia a desagradável sensação de estar no Exterior. As paredes eram ligeiramente esbranquiçadas e (incomum na casa de Fastolfe) não tinham enfeites. O chão parecia de marfim liso, mas ao pé descalço era acarpetado. O leito era branco e o cobertor liso era frio ao toque.
Sentou-se na beira do colchão e achou-o pouco elástico ao seu peso.
Virou-se para Daneel, que tinha entrado com ele:
- Daneel, você fica perturbado quando um ser humano mente?
- Sei que os humanos mentem, Colega Elijah. Às vezes uma mentira pode ser útil ou mesmo obrigatória. O que sinto a respeito de uma mentira depende de quem a diz, da ocasião e do motivo.
- Você sempre sabe quando um ser humano mente?
- Não, Colega Elijah.
- Você acha que o Dr. Fastolfe mente com freqüência?
- Nunca vi o Dr. Fastolfe mentir.
- Mesmo em relação à morte de Jander?
- Até onde posso saber, ele diz sempre a verdade.
- Talvez ele o tenha instruído a dizer isso... posso perguntar?
- Não me instruiu, Colega Elijah.
- Mas talvez lhe tenha também ensinado a dizer que... Parou. Novamente... que adiantava inquirir um robô? E neste caso particular era um convite a uma regressão interminável.
Percebeu subitamente que o colchão estava cedendo um pouco sob ele, até meio envolver seus quadris. Levantou-se repentinamente e disse:
- Daneel, há alguma forma de aquecer o quarto?
- Ele ficará aquecido quando você estiver sob as cobertas, com a luz apagada, Colega Elijah.
- Ah. - Olhou em torno, desconfiado. - Quer apagar a luz e ficar no quarto, Daneel, quando eu me deitar?
A luz apagou-se quase imediatamente e Baley percebeu que sua suposição de que aquele quarto, pelo menos, não era decorado, estava completamente errada. Assim que escureceu, sentiu-se no Exterior. Ouviu o suave barulho do vento nas árvores e o pequeno e sonolento murmúrio de distantes formas de vida. Havia também a ilusão de estrelas acima de sua cabeça, com uma nuvem ocasional deslizando, vagamente visível.
- Acenda a luz, Daneel!
A claridade inundou o quarto.
- Daneel - disse Baley - não quero nada disso. Não quero estrelas, nuvens, ruídos, árvores, vento... nem cheiros também. Quero trevas... escuridão informe. Pode dar um jeito?
- Claro, Colega Elijah.
- Então faça isso. E me mostre como posso apagar a luz quando estiver pronto para dormir.
- Estou aqui para protegê-lo, Colega Elijah. Baley retrucou, aborrecido:
- Tenho certeza de que pode fazer isso do outro lado da porta. Imagino que Giskard deve estar do outro lado das janelas, se de fato existirem janelas por detrás das cortinas.
- Existem... Se atravessar aquela soleira, Colega Elijah, encontrará um Pessoal só para você. Aquele trecho da parede não é sólido e poderá facilmente atravessá-lo.
A luz acenderá assim que entrar e apagará quando sair... e não há decoração. Poderá banhar-se, se desejar, ou fazer o que quiser antes de sair ou depois de acordar.
Baley virou-se para o lado indicado. Não viu abertura na parede, mas o chão enquadrado naquele ponto revelou uma espessura como se fosse um umbral.
- Como verei no escuro, Daneel? - perguntou.
- Esse trecho da parede, que não é uma parede, brilhará fracamente. Para iluminar o quarto, há essa depressão na cabeceira da sua cama, que, uma vez colocando o dedo nela, apagará ou acenderá a luz.
- Obrigado. Agora pode se retirar.
Meia hora depois, terminou com o Pessoal e meteu-se sob o cobertor, com a luz apagada, envolto por uma agradável escuridão.
Como dissera Fastolfe, tinha sido um dia cansativo. Era quase inacreditável que tivesse chegado a Aurora apenas naquele dia. Aprendera muito e no entanto nada lhe adiantara.
Ficou no escuro e repassou os acontecimentos do dia, na esperança de que alguma coisa aparecesse que lhe tivesse escapado antes... porém foi tempo perdido.
Era demais para o tranqüilo, pensativo, atento e sutil Elijah Baley do drama da hiperonda.
O colchão estava outra vez envolvendo-o, como um cercado aquecido. Moveu-se ligeiramente e o colchão esticou-se sob ele, para depois tornar a ajustar-se à sua nova posição.
Não adiantava tentar, com sua mente cansada e sonolenta, reexaminar o dia, mas não pôde evitar fazê-lo uma segunda vez, seguindo seus próprios passos, seu primeiro dia em Aurora: do espaçoporto à casa de Fastolfe, depois à de Gladia e finalmente de volta a Fastolfe.
Gladia - mais bela do que imaginava, mas dura - havia algo duro nela... ou apenas tinha se coberto com uma carapaça protetora... pobre mulher. Pensou carinhosamente na reação dela ao tocar o rosto dele... se pudesse ter permanecido com Gladia, poderia tê-la ensinado... auroreanos estúpidos... uma atitude nojentamente indiferente com relação ao sexo... vale tudo... significando que nada vale... não vale a pena... estúpidos... para a casa de Fastolfe, para a de Gladia, de volta a Fastolfe... de volta a Fastolfe.
Moveu-se ligeiramente e sentiu, distraidamente, o colchão tornar a remodelar-se. De volta a Fastolfe. Que aconteceu no caminho de volta a Fastolfe? Alguma coisa dita? Não dita? E na nave, antes de ter chegado a Aurora... alguma coisa que combinasse...
Baley estava no mundo vago da sonolência, quando a mente se liberta e segue sua própria lei. É como o corpo voando, pairando no ar, sem gravidade.
Por seu próprio acordo, estava pegando os acontecimentos... pequenos aspectos que não tinha notado... juntando-os... reunindo uma coisa à outra... entrando no lugar... formando uma rede... um tecido...
Então pareceu-lhe ter ouvido um barulho que o levou a um nível de consciência. Prestou atenção e nada ouviu, mergulhando novamente na sonolência, para retomar a linha de pensamento... e ela o enganou.
Era como uma obra de arte afundando num pântano. Podia ainda ver seus contornos, suas massas de cor. Ficaram diminuídos, mas continuava sabendo que estavam ali.
E mesmo quando tentou agarrar desesperadamente, desapareceram juntos e ele nada lembrou. Nada mesmo.
Baley tinha realmente imaginado tudo ou foi uma cilada da memória, uma ilusão nascida de uma bobagem flutuante numa mente adormecida? E ele estava, de fato, adormecido.
Quando acordou momentaneamente, durante a noite, disse para si mesmo que tinha uma idéia. Uma idéia importante.
Mas de nada se lembrou, exceto que alguma coisa estivera ah.
Permaneceu acordado por algum tempo, perscrutando as trevas. Se de fato alguma coisa estivera ali... tornaria a voltar.
Ou não! (Jehoshaphat!)
E tornou a adormecer.
Fastolfe e Vasilia
Baley acordou sobressaltado e prendeu a respiração com forte desconfiança. Havia um leve e irreconhecível odor no ar, que desapareceu na sua segunda inspiração.
Daneel estava parado gravemente ao lado da cama.
- Espero, Colega Elijah, que tenha dormido bem.
Baley olhou ao redor. As cortinas ainda estavam fechadas, porém era dia claro no Exterior. Giskard estava usando roupa, da cabeça aos pés, completamente diferente da que vestira no dia anterior.
- Muito bem, Daneel - respondeu Baley. - Que foi que me acordou?
- Uma injeção de antisomnin na circulação de ar do quarto, Colega Elijah. Ela ativa o sistema de despertar. Usamos quantidade abaixo do normal, pois não tínhamos certeza da sua reação. Talvez devêssemos ter usado quantidade ainda menor.
- Pareceu-me como um chapinhar na parte traseira. Que horas são?
- São 0705, pelo sistema auroreano - respondeu Daneel. - Fisiologicamente, o desjejum estará pronto em meia hora.
Respondeu sem qualquer traço de humor, embora um ser humano pudesse descobrir um sorriso apropriado.
Giskard disse, com o tom mais seco e menos modulado que o de Daneel:
- Senhor, o amigo Daneel e eu não podemos entrar no Pessoal.
Se o senhor quiser entrar e se nos disser se precisa de alguma coisa, lhe forneceremos imediatamente.
- Sim, claro.
Baley levantou-se, virou-se e saiu da cama. Giskard começou imediatamente a revirar a cama.
- Quer me dar seu pijama, senhor?
Baley hesitou apenas um instante. Era um robô e nada mais. Despiu-se e entregou a roupa a Giskard, que a pegou com um leve inclinar de cabeça em sinal de aceitação.
Baley olhou-se com desgosto. Tomou subitamente consciência de um corpo de meia-idade, que estava muito provavelmente em pior condição que o de Fastolfe, que era quase três vezes mais velho.
Procurou automaticamente os chinelos e verificou não haver nenhum. Presumivelmente, não precisava deles. O chão estava quente e macio, ao toque dos seus pés.
Entrou no Pessoal e pediu instruções. Do outro lado do ilusório trecho de parede, Giskard explicou-lhe solenemente o funcionamento do barbeador, do fornecedor de dentifrício, como fazer funcionar automaticamente a água e controlar a temperatura do chuveiro.
Tudo era em escala maior e mais trabalhada que o que a Terra tinha para oferecer e não havia tabiques do outro lado dos quais pudesse ouvir os movimentos e ruídos involuntários de outra pessoa, coisa que precisava ignorar com determinação para manter a ilusão de privacidade.
Era eficiente, pensou Baley, sombrio, ao utilizar o luxuoso ritual, mas era uma eficiência à qual (percebeu logo) podia se acostumar. Se demorasse algum tempo em Aurora, iria sentir o choque cultural da volta à Terra dolorosamente intenso, especialmente no que se referia ao Pessoal. Esperava que o reajustamento não fosse demorado, mas também esperava que todo terráqueo que colonizasse novos mundos não se sentisse compelido a agarrar-se ao conceito de Pessoais Comunitários.
Talvez, pensou Baley, fosse essa a maneira de definir "eficiente": o que leva alguém a se habituar com facilidade.
Baley saiu do Pessoal tendo realizado várias funções, queixo raspado, dentes reluzentes, corpo banhado e seco.
Virou-se para um dos robôs:
- Giskard, onde está o desodorante?
- Não compreendo, senhor - respondeu o robô. Daneel interferiu depressa:
- Quando você ativou o ensaboador, Colega Elijah, recebeu também um efeito desodorante. Peço-lhe que desculpe a incompreensão do amigo Giskard. Falta-lhe a experiência que tive na Terra.
Baley ergueu as sobrancelhas, duvidoso, e começou a vestir-se com o auxílio de Giskard.
- Estou vendo - comentou - que você e Giskard continuam ao meu lado o tempo todo. Houve alguma tentativa de me pôr fora do caminho?
- Nenhuma até agora, Colega Elijah - retrucou Daneel. - Apesar disso, será conveniente que eu e o amigo Giskard fiquemos ao seu lado o tempo todo, se for possível conseguirmos isso.
- Por que, Daneel?
- Por dois motivos, Colega Elijah. Primeiro porque podemos ajudá-lo em qualquer aspecto da cultura ou folclore que não lhe forem familiares. Segundo, o amigo Giskard, em particular, pode registrar e reproduzir cada palavra de qualquer conversa que você tiver. Pode lhe ser valioso. Você deve lembrar que houve horas nas suas conversas tanto com o Dr. Fastolfe como com a Srta. Gladia em que eu e o amigo Giskard estávamos distantes ou em outra sala...
- Então essas conversas não foram gravadas por Giskard?
- Na verdade foram, Colega Elijah, mas com baixa fidelidade... e talvez haja trechos não tão claros quanto gostaríamos que estivessem. Seria melhor que ficássemos tão perto de você quanto o necessário.
- Daneel - perguntou Baley - você é de opinião que eu ficaria muito mais à vontade se pensasse em vocês como guias e aparelhos de gravação que como guardas? Por que não chegar simplesmente à conclusão de que, como guardas, vocês são totalmente desnecessários? Uma vez que não tem havido tentativas até agora, por que não é possível concluir que não haverá tentativas contra mim, no futuro?
- Não, Colega Elijah, tal atitude seria uma falta de atenção. O Dr. Fastolfe acha que o senhor é visto com grande apreensão pelos seus inimigos. Eles tentaram persuadir o Presidente a não dar permissão ao Dr. Fastolfe para chamá-lo e certamente continuarão a tentar convencê-lo a mandá-lo de volta para a Terra, o mais depressa possível.
- Essa espécie de oposição pacífica não necessita de medidas de segurança.
- De fato, mas se a oposição tem motivos para temer que você possa absolver o Dr. Fastolfe, é possível que seja levada a extremos. Afinal de contas, você não é auroreano e as restrições à violência em nosso mundo podem ser, portanto, em seu caso, bastante enfraquecidas.
Baley replicou com dureza:
- O fato de eu estar aqui todo um dia e nada ter acontecido deveria aliviar suas mentes consideravelmente e reduzir bastante a ameaça de violência.
- Poderia de fato ser assim - disse Daneel, sem demonstrar ter percebido o tom de ironia na voz de Baley.
- Por outro lado - disse Baley - se eu parecer estar progredindo, o perigo pode imediatamente aumentar.
Daneel parou para pensar e depois replicou:
- Seria uma conseqüência lógica.
- Portanto, você e Giskard irão comigo para onde eu for, por via das dúvidas, para o caso de eu dar um jeito de fazer meu trabalho bem demais.
Daneel fez nova pausa e depois disse:
- Sua forma de colocar o problema, Colega Elijah, me confunde, porém parece ter razão.
- Nesse caso - concluiu Baley - estou pronto para o desjejum, embora meu apetite fique diminuído com a informação de que a alternativa para o meu fracasso é a tentativa de assassinato.
Fastolfe sorriu para Baley no outro lado da mesa.
- Dormiu bem, Sr. Baley?
Baley examinou, fascinado, a fatia de presunto. Devia ter sido cortada com uma faca. Estava granulosa, com uma discreta faixa de gordura de um lado. Em suma, não fora beneficiada. O resultado era um gosto muito forte de presunto, por assim dizer.
Havia também ovos fritos, com a gema parecendo uma meia esfera achatada no centro, rodeada de branco, parecendo com as margaridas que Ben lhe tinha mostrado no campo, na Terra. Intelectualmente, ele sabia com que um ovo se parecia antes de ser processado e sabia que era composto de uma gema e uma clara, porém nunca os tinha visto continuarem separados, depois de preparados para serem comidos. Mesmo a bordo da nave e em Solaria, os ovos eram servidos mexidos.
Ergueu os olhos agora atentos para Fastolfe.
- Perdão?
Fastolfe repetiu, paciente:
- Dormiu bem?
- Sim, muito bem. Teria provavelmente continuado dormindo, não fosse o antisomnin.
- Ah, sim. Não é o tratamento que um hóspede tem direito de esperar, mas acho que o senhor pode querer começar cedo.
- Tem toda razão. E afinal de contas não sou exatamente um hóspede.
Fastolfe ficou alguns instantes comendo em silêncio. Sorveu a bebida quente e depois falou:
- Teve alguma inspiração durante a noite? Acordou talvez com uma nova perspectiva, com uma nova idéia?
Baley olhou desconfiado para Fastolfe, mas o rosto do interlocutor não revelava ironia. Ao levar sua bebida aos lábios, Baley disse:
- Temo que não. Estou tão inútil hoje como na noite passada. Tomou um gole e involuntariamente fez uma careta.
- Desculpe. Está achando a bebida intragável? Baley resmungou e cautelosamente tornou a prová-la.
- É apenas café, como sabe - informou Fastolfe. - Sem cafeína.
Baley franziu a testa.
- Não tem sabor de café e... desculpe, Dr. Fastolfe, não quero começar a parecer paranóico, mas Daneel e eu acabamos de fazer uma brincadeira sobre a possibilidade de violência contra mim: brincadeira de minha parte, claro, e não da parte de Daneel, e continuo pensando que, uma vez que possam me pegar é...
Não terminou a frase.
As sobrancelhas de Fastolfe ergueram-se. Pegou o café de Baley com um murmúrio de desculpas e cheirou-o. Depois, retirou um pouco com uma colherinha e provou, dizendo depois:
- Perfeitamente normal, Sr. Baley. Não é uma tentativa de envenenamento.
- Desculpe - replicou Baley - por me portar tão bobamente, uma vez que sei ter sido isto preparado por seus próprios robôs...
Mas tem certeza?
Fastolfe sorriu.
- Robôs já foram adulterados antes... Contudo, desta vez não houve adulteração. Apenas este café, apesar de universalmente popular em vários mundos, provém de diversas variedades. É notório que cada ser humano prefere o café do seu próprio mundo. Desculpe, Sr. Baley, não tenho nenhuma variedade da Terra para lhe oferecer. Prefere leite? Ele é relativamente constante de mundo para mundo. Suco de fruta? O suco de toronja auroreana é considerado geralmente superior em todos os mundos. Há os que supõem, sem provas, que nós o deixamos fermentar um pouco, mas, claro, não é verdade. Água?
- Experimentarei seu suco de toronja. - Baley olhou desconfiado para o café: - Acho que devo procurar me habituar a isto.
- De forma alguma - replicou Fastolfe. - Por que procurar o desagradável, se é desnecessário?... Portanto - seu sorriso pareceu um pouco tenso, quando voltou ao comentário anterior - a noite e o sono não lhe proporcionaram nenhuma reflexão útil?
- Lamento - disse Baley. Depois, franzindo a testa como se lembrasse alguma coisa: - Contudo...
- Contudo?
- Tenho a impressão de que pouco antes de cair no sono, no limbo da livre associação entre o sono e a vigília, pareceu-me ter conseguido alguma coisa.
- De fato? O quê?
- Não sei. O pensamento me despertou totalmente, mas não permaneceu. Ou talvez eu tenha sido distraído por um som imaginado. Não lembro. Agarrei-me à idéia, mas não consegui retê-la. Desapareceu. Acho que esta espécie de coisa não é incomum.
Fastolfe ficou pensativo.
- Tem certeza?
- Realmente, não. O pensamento surgiu tão tênue, tão rapidamente, que nem pude realmente estar certo de tê-lo pensado. E mesmo que o tivesse, pareceu-me ter lógica apenas porque estava semi-adormecido. Se se repetisse agora, em plena luz do dia, podia não ter qualquer sentido.
- Mas por mais fugitivo e o que quer que fosse, deveria certamente ter deixado traço.
- Imagino que sim, Dr. Fastolfe. E nesse caso voltará. Espero.
- Devemos esperar?
- Que mais podemos fazer?
- Há uma coisa denominada Sonda Psíquica.
Baley recostou-se na cadeira e encarou Fastolfe um momento. Depois disse:
- Ouvi falar nela. Não a usamos na Terra nas tarefas policiais.
- Não estamos na Terra, Sr. Baley - replicou suavemente Fastolfe.
- Pode prejudicar o cérebro, não é?
- Provavelmente não, se em mãos capazes.
- Mas não é impossível, mesmo em mãos capazes - replicou Baley. - Estou informado de que não pode ser usada em Aurora, a não ser em condições claramente definidas.
É aplicada nos culpados de crime capital ou...
- Sim, Sr. Baley, porém quando se trata de auroreanos. E o senhor não é auroreano.
- Está dizendo que por ser terráqueo devo ser tratado como não humano?
Fastolfe sorriu e abriu os braços.
- Vamos, Sr. Baley, foi apenas uma idéia. Ontem à noite o senhor se mostrou bastante desesperado para sugerir tentar resolver o problema colocando Gladia numa posição trágica e terrível. Eu comecei a imaginar se o senhor está bastante desesperado para arriscar-se.
Baley esfregou os olhos e durante um minuto ou mais permaneceu calado. Depois, com voz alterada, disse:
- Eu estava errado na noite passada. Confesso. Quanto a este assunto, não há garantia de que o que eu pensei, quando meio adormecido, tenha alguma importância para o caso. Pode ter sido pura fantasia... um disparate ilógico. Pode não ter havido nenhum pensamento. Nada. Considera acertado, por menor que seja a probabilidade de lucro, arriscar a inutilização do meu cérebro, quando, segundo o senhor diz, é dele que depende a solução do problema?
Fastolfe balançou a cabeça.
- O senhor defende seu caso com muita eloqüência... e eu não falava realmente a sério.
- Obrigado, Dr. Fastolfe.
- Mas para onde vamos daqui?
- Por uma coisa, quero falar outra vez com Gladia. Há pontos que precisam ser esclarecidos.
- Devia tê-los abordado na noite passada.
- Devia, porém já possuía mais dados que os que podia adequadamente absorver na noite passada e houve coisas que me escaparam. Sou investigador e não computador infalível.
- Não lhe estou culpando - disse Fastolfe. - Apenas odeio ver Gladia desnecessariamente perturbada. À vista do que me disse ontem à noite, só posso deduzir que ela deve estar profundamente tensa.
- Sem dúvida. Mas também está profundamente ansiosa para descobrir o que aconteceu: quem, se foi alguém, matou aquele que ela considerava seu marido. Isso também é compreensível. Tenho certeza de que ela quer me ajudar... E também desejo falar com mais alguém.
- Quem?
- Sua filha Vasilia.
- Vasilia? Para quê? com que fim?
- Ela é roboticista. Desejo conversar com outro roboticista que não o senhor.
- Não quero isso, Sr. Baley.
Tinham acabado de comer. Baley levantou-se.
- Dr. Fastolfe, preciso lembrar-lhe mais uma vez que estou aqui a seu pedido. Não tenho qualquer autorização formal para agir como policial. Não tenho ligação com autoridades auroreanas. A única possibilidade que tenho de ir ao fundo desta encrenca dolorosa é esperar que várias pessoas cooperem voluntariamente comigo e respondam minhas perguntas.
"Se o senhor me impede disso, fica evidente que não posso ir além de onde estou, que é lugar nenhum. Vai parecer também muito mal para o senhor, e portanto para a Terra, e por isso tenho de insistir para que não se ponha no meu caminho. Se me tornar possível interrogar quem eu quiser, ou mesmo simplesmente tentar tornar isso possível, intercedendo a meu favor, então os habitantes de Aurora com certeza considerarão esse fato como um sinal de inocência consciente de sua parte.
Se dificultar minha investigação, por outro lado, a que outra conclusão chegarão que não a de que o senhor é culpado e teme ser denunciado?
Fastolfe retrucou, com aborrecimento mal reprimido:
- Compreendo perfeitamente, Sr. Baley. Mas, por que Vasilia? Há outros roboticistas.
- Vasilia é sua filha. Ela o conhece bem. Pode ter opiniões firmes sobre a possibilidade de ter o senhor destruído um robô.
Sendo ela membro do Instituto de Robótica, e estando ao lado dos seus inimigos políticos, qualquer prova favorável que possa dar será persuasiva.
- E se testemunhar contra mim?
- Bem, enfrentaremos isso quando acontecer. Quer comunicar-se com ela e pedir-lhe que me receba?
Resignadamente, Fastolfe retrucou:
- Vou atendê-lo, mas está enganado se pensa que posso facilmente persuadi-la a vê-lo. Ela pode estar muito ocupada... ou pensar que está. Pode estar fora de Aurora.
Pode simplesmente não querer ser envolvida. Procurei explicar, na noite passada, que ela tem motivo, ou pensa que tem, para me ser hostil. Se pedir-lhe, de fato, que o receba, pode impeli-la a recusar, apenas para mostrar que não gosta de mim.
- Quer tentar, Dr. Fastolfe? Fastolfe suspirou.
- Tentarei enquanto o senhor estiver na casa de Gladia... Suponho que quer vê-la pessoalmente. Posso indicar-lhe que um visor tridimensional faz o mesmo efeito.
A imagem é bastante definida em qualidade, não se podendo dizer o mesmo de um encontro pessoal.
- Sei disso, Sr. Fastolfe, mas Gladia é solariana e tem associação de idéias desagradáveis com visão tridimensional. E em todo caso sou de opinião que estar ao alcance da mão é mais produtivo. A presente situação é delicada demais e as dificuldades enormes para mim, para desistir disso.
- Bem, avisarei Gladia. - Virou-se para sair, hesitou e tornou a voltar-se. - Mas, Sr. Baley...
- Sim, Dr. Fastolfe?
- Ontem à noite o senhor disse que a situação era muito séria para que o senhor levasse em consideração tudo o que pudesse afetar Gladia. Havia, frisou o senhor, coisas mais importantes a considerar.
- É verdade, mas pode confiar em que não a perturbarei, se puder evitar.
- Não estou falando de Gladia agora. Adivirto-o apenas de que esse ponto de vista essencialmente seu deve ser estendido a mim. Não espero que se preocupe com minha conveniência ou orgulho, se tiver a possibilidade de falar com Vasilia. Não estou me referindo aos resultados, mas se conseguir conversar com ela, devo suportar todos os aborrecimentos conseqüentes e o senhor não deve procurar me poupar. Compreende?
- Para ser totalmente honesto, Dr. Fastolfe, nunca foi minha intenção poupá-lo. Se eu tivesse de pesar sem embaraço ou vergonha em relação ao bem-estar de sua política e em relação ao bem-estar do meu mundo, eu não hesitaria um só momento em envergonhá-lo.
- Ótimo!... E, Sr. Baley, devemos estender essa atitude também ao senhor. Não devemos permitir que sua conveniência se atravesse no caminho.
- Não lhe foi permitida quando o senhor resolveu me trazer aqui sem que eu fosse consultado.
- Estou me referindo a outra coisa mais. Se após um razoável espaço de tempo não muito longo, apenas razoável, não progredir no sentido de obter uma solução, teremos de examinar a possibilidade da sondagem psíquica. Nossa última chance pode estar no que sua mente sabe que o senhor não sabe que ela sabe.
- Pode ser nada, Dr. Fastolfe. Fastolfe olhou com tristeza para Baley.
- Concordo. Mas como disse, referente à possibilidade de Vasilia testemunhar contra mim... bem, nós o enfrentaremos quando chegar a hora.
Tornou a virar-se e saiu da sala.
Baley, pensativo, viu-o afastar-se. Parecia-lhe agora que, se tivesse feito progresso, teria de enfrentar represálias físicas de caráter desconhecido, mas possivelmente perigosas. E se não tivesse progredido, teria de enfrentar a Sonda Psíquica, que não era melhor em nada.
- Jehoshaphat! - murmurou baixinho para si mesmo.
A caminhada até a casa de Gladia pareceu-lhe mais curta que a anterior. O dia estava ensolarado e agradável novamente, porém a paisagem não parecia absolutamente a mesma. Os raios do sol vinham de outra direção, claro, e a coloração estava ligeiramente diferente. Podia ser que a vida vegetal fosse um tanto diversa pela manhã em relação à tarde... ou cheirasse de outra maneira. Baley, certa vez, tinha pensado assim a respeito da vegetação terrestre pensou.
Daneel e Giskard estavam novamente em sua companhia, mas caminhavam mais perto e pareciam menos intensamente atentos. Baley perguntou, à toa: O sol brilha o tempo todo aqui?
- Não, Colega Elijah - replicou Daneel. - Se não, seria desastroso para a flora e, por extensão, para a humanidade. A previsão, de fato, é que o céu ficará anuviado no decorrer do dia.
- Que é aquilo? - perguntou Baley, assustado.
Um animalzinho castanho-acinzentado estava escondido na relva. Vendo-os, afastou-se devagar.
- Um coelho, senhor - respondeu Giskard.
Baley sentiu-se menos tenso. Já os tinha visto nos campos da Terra.
Gladia não os esperava na porta, desta vez, porém evidentemente os aguardava. Quando um robô fê-los entrar, não se levantou mas disse, entre zangada e fatigada:
- O Dr. Fastolfe me informou que você precisava me ver novamente. De que se trata?
Usava um vestido visivelmente colado ao corpo e sem nada por baixo. O cabelo estava repuxado para trás sem cuidado e tinha o rosto pálido. Parecia mais cansada que no dia anterior e era claro que tinha dormido pouco.
Daneel, lembrando o que tinha acontecido na véspera, não entrou na sala. Giskard, contudo, entrou, deu uma olhada atenta em volta e retirou-se para um nicho de parede.
Um dos robôs de Gladia ficou num outro nicho.
- Lamento muito, Gladia - disse Baley - ter de incomodá-la novamente.
- Esqueci de lhe dizer, na noite passada - replicou a moça - que, depois que Jander for maçaricado, irão evidentemente reciclá-lo para tornar a ser utilizado nas fábricas de robôs. Suponho que será divertido saber que, cada vez que eu olhar para um robô recentemente montado precisarei de algum tempo para perceber que muitos dos átomos de Jander são parte dele.
- Nós também, quando morremos - informou Baley - somos reciclados... e quem sabe que átomos de quem estão em você e em mim neste instante e em quem os nossos estarão um dia.
- Você tem toda a razão, Elijah, o que me faz lembrar como é fácil filosofar sobre as desgraças alheias.
- Isso também é verdade, Gladia, mas não vim aqui filosofar.
- Diga então a que veio.
- Preciso fazer-lhe perguntas.
- As de ontem não foram suficientes? Passou esse tempo todo pensando em novas?
- Em parte, sim, Gladia. Você me disse ontem que mesmo após viver com Jander, como marido e mulher, houve quem se oferecesse a você, que recusou.
É sobre isso que preciso inquiri-la.
- Por quê?
Baley ignorou a pergunta.
- Diga-me, quantos se ofereceram durante seu casamento com Jander?
- Não mantenho registros, Elijah. Três ou quatro.
- Alguns insistiram? Algum se ofereceu mais de uma vez?
Gladia, que estava evitando encará-lo, enfrentou-o e perguntou:
- Contou a outros? Baley sacudiu a cabeça.
- Só toquei nesse assunto com você. Contudo, pela sua pergunta, desconfio que um, pelo menos, insistiu.
- Um. Santirix Gremionis. - Ela suspirou. - Os auroreanos têm nomes curiosos e o dele era curioso... mesmo para um auroreano. Nunca encontrei alguém tão persistente quanto ele. Era sempre educado, sempre aceitando minha recusa com um sorrisinho e uma mesura imponente, e depois, como se nada tivesse havido, tornava a tentar na semana seguinte ou mesmo no dia posterior. A mera repetição constituía-se, em si, uma pequena descortesia. Um auroreano correto aceitaria a recusa como definitiva, a menos que o companheiro em perspectiva deixasse razoavelmente claro que poderia haver uma mudança de idéia.
- Diga-me ainda: os que se ofereceram a você sabiam de sua relação com Jander?
- Não foi uma coisa que eu tenha citado em conversas casuais.
- Bem, então vamos considerar esse Gremionis especialmente. Ele sabia que Jander era seu marido?
- Nunca lhe disse.
- Não rejeite isso tão facilmente, Gladia. Não se trata de terem dito a ele. Ao contrário dos outros, ele se ofereceu repetidamente. Por falar nisso, com que freqüência?
Três vezes? Quatro? Quantas?
- Não contei - retrucou Gladia, com ar cansado. - Pode ter sido uma dúzia ou mais. Se ele não fosse uma pessoa agradável, eu teria determinado que meus robôs lhe impedissem a entrada.
- Ah, mas não mandou. E leva tempo fazer vários pedidos, ele veio vê-la. Encontrou-a. Teve tempo de notar a presença de Jander e como você se comportava com ele.
Ele poderia não notar essa relação?
Gladia balançou a cabeça.
- Duvido. Jander nunca aparecia quando eu estava com um ser humano.
- Que instruções lhe deu? Presumo que o tenha feito.
- Sim. E antes que você sugira que eu tinha vergonha da relação, era somente uma tentativa de evitar aborrecimentos e complicações. Eu conservei um certo instinto de privacidade com relação ao sexo que os auroreanos não têm.
- Torne a pensar. Ele teria adivinhado? Veja, um homem apaixonado...
- Apaixonado! - Sua voz era quase um resmungo. - Que sabem os auroreanos de amor?
- Um homem que acha estar apaixonado. Você não corresponde. Não poderia ele, com a sensibilidade e a desconfiança de um apaixonado desiludido, ter adivinhado? Imagine!
Não poderia ele ter feito uma referência direta a Jander? Alguma coisa que lhe tenha despertado uma leve suspeita...
- Não! Não! Seria inaudito para um auroreano comentar desairosamente as preferências sexuais ou os hábitos de outros.
- Não necessariamente de forma desairosa. Um comentário bem-humorado, talvez. Qualquer indicação de que desconfiou da existência de uma relação.
- Não! Se o jovem Gremionis tivesse dito qualquer coisa assim, jamais veria o interior da minha casa novamente e eu teria providenciado para que nunca mais se aproximasse de mim... Porém nunca fez isso. Ele era a própria imagem do homem bem-educado comigo.
- Você diz "jovem". Que idade tem Gremionis?
- Mais ou menos a minha. Trinta e cinco. Talvez até um ou dois anos menos.
- Uma criança - disse Baley, com tristeza. - Até mais moço que eu. Mas nessa idade... Suponha que ele tenha adivinhado sua relação com Jander e ficasse calado.
Apesar disso, não teria ficado enciumado?
- Enciumado?
Ocorreu a Baley que a palavra podia ter pouca significação em Aurora ou Solaria.
- Zangado porque você preferiu outro a ele. Gladia respondeu, rispidamente:
- Conheço o significado da palavra "enciumado". Repeti-a apenas por surpresa ao ver que você pensa que os auroreanos são ciumentos. Em Aurora, as pessoas não são ciumentas em relação ao sexo. Por outras coisas, sim, mas não a respeito do sexo. - Havia um claro ar de desdém em seu rosto. - Mesmo que tivesse ficado enciumado, qual a importância disso? Que poderia fazer?
- Não seria possível que ele dissesse a Jander que a relação com um robô poderia tornar perigosa sua posição em Aurora...
- Isso não seria verdade!
- Jander teria acreditado se lhe fosse dito... acreditaria que a estava pondo em perigo, comprometendo-a. Não teria sido esse o motivo do congelamento mental?
- Jander nunca teria acreditado nisso. Tornou-me feliz em cada dia em que foi meu marido e eu lhe disse isso.
Baley permaneceu tranqüilo. Ela estava perdendo a calma, porém ele simplesmente queria esclarecer o assunto.
- Tenho certeza de que ele acreditou em você, mas poderia também sentir-se obrigado a crer em alguém mais que lhe disse o contrário. Se dessa forma ele fosse apanhado num insuportável dilema da Primeira Lei...
O rosto de Gladia contorceu-se e ela guinchou:
- É uma loucura. Você está apenas me contando a velha história da carochinha de Susan Calvin e do robô leitor de pensamentos. Ninguém com mais de dez anos de idade acredita nisso.
- Não é possível que...
- Não, não é. Sou de Solaria e conheço bastante sobre robôs para saber que não é possível. Seria preciso um especialista incrível para amarrar a Primeira Lei num robô. O Dr. Fastolfe pode ser capaz disso, mas Santirix Gremionis, certamente não. Gremionis é um requintado. Trabalha com seres humanos. É estilista e desenhista de roupas. Faço o mesmo, mas com robôs. Gremionis jamais tocou num robô. Nada sabe a respeito deles, a não ser ordenar a um deles que feche a janela ou coisa assim.
Está querendo me dizer que foi a relação de Jander comigo... comigo... - bateu com a ponta do dedo no esterno rudemente, onde o arredondado dos seus pequenos seios mal se notava sob o vestido - que causou a morte de Jander?
- Não foi nada que tenha feito conscientemente - replicou Baley querendo parar, mas incapaz disso. - E se Gremionis aprendeu com o Dr. Fastolfe como...
- Gremionis não conhece o Dr. Fastolfe e seja como for não teria compreendido nada do que ele lhe dissesse.
- Você não pode ter certeza do que Gremionis possa ou não ter compreendido, e quanto a não conhecer o Dr. Fastolfe... Grejnionis pode ter estado com freqüência na sua casa, se a perseguiu tanto, e...
- E o Dr. Fastolfe raramente esteve aqui. Na noite passada, quando veio com você, foi a segunda vez em que atravessou a soleira da minha porta. Temia que estar tão perto de mim me afastaria dele. Confessou isso uma vez. Perdeu a filha dessa maneira, pensou... uma coisa boba assim. Veja, Elijah, quando se vive vários séculos, tem-se bastante tempo para perder milhares de coisas. Seja agradecido por sua curta vida, Elijah.
Estava chorando incontrolavelmente. Baley olhou e sentiu-se impotente.
- Desculpe, Gladia. Não tenho outras perguntas. Posso chamar um robô? Você precisa de ajuda?
Ela balançou a cabeça e fez-lhe um aceno.
- Por favor, vá embora... vá embora - disse, com voz estrangulada. - Vá embora.
Baley hesitou e depois saiu da sala, atirando-lhe um último olhar duvidoso, antes de atravessar a porta. Giskard seguiu-o de perto e Daneel juntou-se a ele ao sair da casa. Baley mal notou. Percebeu vagamente que estava começando a aceitar a presença deles como uma sombra ou suas roupas, que estava atingindo um ponto em que iria sentir-se nu sem eles.
Caminhou depressa, de volta à casa de Fastolfe, com a cabeça num torvelinho. Seu desejo de ver Vasilia fora, a princípio, por desespero, por falta de outro objeto de curiosidade, mas agora as coisas tinham mudado. Havia a possibilidade de ter tropeçado em alguma coisa vital.
O rosto feio de Fastolfe estava vincado de rugas tristes quando Baley voltou.
- Algum progresso? - perguntou.
- Eliminei parte de uma possibilidade... Talvez.
- Parte de uma possibilidade? Como vai eliminar a outra parte? Melhor ainda, como estabelece o senhor uma possibilidade?
- Por considerar impossível eliminar uma possibilidade - replicou Baley - faz-se um início ao estabelecer uma.
- E se descobrir ser impossível eliminar a outra parte da possibilidade que misteriosamente mencionou?
Baley encolheu os ombros.
- Antes de perdermos tempo levando isso em conta, preciso ver sua filha.
Fastolfe ficou abatido.
- Bem, Sr. Baley, fiz o que pediu e procurei contato com ela. Precisei acordá-la.
- Quer dizer que ela está numa parte do planeta ainda noite? Não tinha pensado nisso. - Baley ficou triste. - Acho que ainda sou muito tolo para imaginar que estou na Terra. Nas Cidades subterrâneas, o dia e a noite perdem o significado e o tempo tende a ser uniforme.
- Não é tão mau assim. Eos é o centro robótico de Aurora e são poucos os roboticistas que moram fora dela. Vasilia estava dormindo e acordá-la em nada melhorou seu mau humor, ao que parece. Ela não quis falar comigo.
- Torne a insistir - disse Baley.
- Falei com seu robô-secretário e houve uma aborrecida troca de recados. Ela deixou muito claro que não queria falar comigo em hipótese alguma. Foi um pouco mais flexível com o senhor. O robô informou que ela lhe daria cinco minutos no seu canal de vídeo particular, se o senhor ligar - Fastolfe consultou a faixa de tempo na parede - em meia hora. Não o verá pessoalmente, em nenhuma circunstância.
- As condições são insuficientes e o tempo também. Preciso vê-la pessoalmente pelo tempo que me for necessário. O senhor explicou a importância disso, Dr. Fastolfe?
- Tentei. Ela não se interessou.
- O senhor é seu pai. com certeza...
- Ela é menos inclinada a modificar sua decisão em meu benefício que por um estranho apanhado ao acaso. Sei disso e assim utilizei Giskard.
- Giskard?
- Ah, sim. Giskard é o seu predileto. Quando ela estudava robótica na universidade, tomou a liberdade de fazer alguns pequenos ajustes na programação dele: e nada
como isso para tornar mais íntima a relação com um robô... exceto com o método de Gladia, é claro. Era quase como se Giskard fosse Andrew Martin.
- Quem é Andrew Martin?
- Quem foi, e não quem é - replicou Fastolfe. - Nunca ouviu falar nele?
- Nunca!
- Que estranho! Todas as velhas lendas dos senhores dão a Terra como seu berço e no entanto não é conhecido nela. Andrew Martin foi um robô que pouco a pouco, passo a passo, foi considerado como se tornando humaniforme. Não há dúvida de que, antes de Daneel, existiram robôs humaniformes, mas todos simples brinquedos, pouco mais que autômatos. Apesar disso, contaram-me histórias incríveis sobre a capacidade dele: um sinal seguro da natureza lendária do relato. Houve uma mulher, parte das lendas, conhecida geralmente como Mocinha. A relação é muito complicada para ser contada agora, mas suponho que cada menina em Aurora sonhou ser Mocinha e ter Andrew Martin como robô. Vasilia também... e Giskard foi seu Andrew Martin.
- Bem, e depois?
- Pedi ao robô para dizer-lhe que o senhor iria acompanhado por ele, Giskard. Ela não o vê há anos e pensei que podia amaciá-la, levando-a a concordar em recebê-lo.
- Mas presumo que não deu resultado.
- Não deu.
- Então, precisamos pensar em outra coisa. Deve haver outro modo de convencê-la a me receber.
- Talvez o senhor consiga pensar num - replicou Fastolfe. - Dentro de instantes o senhor vai vê-la no trimensic e terá cinco minutos para convencê-la de que precisa encontrá-lo pessoalmente.
- Cinco minutos! Que posso fazer em cinco minutos?
- Não sei. Afinal de contas, é melhor que nada.
Quinze minutos depois, Baley estava diante da tela tridimensional, pronto para conhecer Vasilia Fastolfe.
O Dr. Fastolfe tinha saído, dizendo, com um sorriso irônico que sua presença certamente tornaria a filha menos acessível à persuasão. Daneel também não estava presente. Só Giskard permaneceu para fazer companhia a Baley.
- O canal trimensic da Dra. Vasilia está aberto para recepção - disse Giskard. - Está pronto, senhor?
- Tanto quanto possível - retrucou Baley, soturno. Recusou sentar-se, sentindo que poderia ser mais imponente se ficasse em pé (Quão imponente pode ser um terráqueo?).
A tela iluminou-se enquanto o resto da sala ficou na penumbra e uma mulher surgiu, meio desfocada no início. Estava em pé, encarando-o, com a mão pousada numa bancada de laboratório, cheio de diagramas (Sem dúvida ela também tinha planejado ser imponente).
Tão logo o foco apurou, a orla da tela dissolveu-se e a imagem de Vasilia (se era ela) tornou-se nítida e tridimensional. Estava numa sala com todos os sinais de uma sólida realidade, com a diferença de que o ambiente em nada combinava com o da sala em que Baley se encontrava e a divisão era nítida.
A moça usava uma saia castanho-escura que se prolongava em pernas de calças largas semitransparentes, de forma a que suas pernas do meio das coxas para baixo, eram vistas através do tecido. A blusa era apertada e sem mangas, deixando os braços nus até os ombros. O decole era baixo e o cabelo, muito louro, cheio de caracóis.
Não tinha a simplicidade do pai, nem suas enormes orelhas. Baley supôs que ela tivera uma bela mãe e que foi agraciada com a distribuição dos genes.
Era baixa e Baley notou uma grande semelhança com Gladia nas feições, embora sua expressão fosse muito mais fria e tivesse a marca de uma personalidade dominadora.
A moça perguntou secamente:
- O senhor é o terráqueo que veio resolver os problemas do meu pai?
- Sim, Dra. Fastolfe - retrucou Baley, de forma igualmente seca.
- Pode me chamar de Dra. Vasilia. Não desejo ser confundida com meu pai.
Dra. Vasilia, preciso da oportunidade de conversar com a senhora, pessoalmente, por um período razoavelmente extenso.
- Não duvido disso. O senhor é, claro, um terráqueo e uma fonte certa de infecções.
- Passei por tratamento médico e estou livre disso. Seu pai esteve constantemente comigo durante um dia inteiro.
- Meu pai finge ser idealista e precisa fazer bobagens de vez em quando para sustentar seu fingimento. Não desejo imitá-lo.
- Devo acreditar que a senhora não quer que façam mal a ele. Mas vai fazer com que ele seja atingido se recusar ver-me.
Está perdendo tempo. Não o verei, a não ser desta maneira, e metade do período que concedi já se passou. Se o senhor desejar, podemos parar agora, caso ache insatisfatória esta decisão.
- Giskard está aqui, Dra. Vasilia, e deseja pedir-lhe que me encontre.
Giskard entrou no campo de visão.
- Bom dia, mocinha - disse, em voz baixa.
Por um momento, Vasilia ficou embaraçada e, quando falou, foi num tom mais brando.
- Estou vendo você com prazer, Giskard e o verei sempre que você quiser, mas não desejo encontrar esse terráqueo, mesmo que você insista.
- Nesse caso - disse Baley, usando desesperadamente todos os seus trunfos - devo entregar o caso de Santirix Gremionis ao público sem tê-la consultado.
Vasilia arregalou os olhos, sua mão na mesa ergueu-se vivamente e crispou-se.
- Que é que há com Gremionis?
- Só que ele é um rapaz bonito e a conhece muito bem. Tenho de tratar com assuntos dessa natureza sem ouvir o que a senhora tem a dizer?
- Vou dizer-lhe imediatamente o que...
- Não - replicou Baley, erguendo a voz. - Não me dirá nada a não ser que possa vê-la cara a cara.
A moça retorceu a boca.
- Nesse caso, Vou vê-lo, mas não ficarei junto do senhor um instante mais que o que determinei. Estou lhe avisando... e traga Giskard.
A ligação tridimensional foi cortada com um estalo e Baley sentiu-se tonto à súbita mudança do fundo. Procurou uma cadeira e sentou-se.
Giskard estava segurando seu braço, para garantir sua chegada a salvo na cadeira.
- Em que posso ajudá-lo, senhor? - perguntou,
- Eu estou bem - replicou Baley. - Só preciso recuperar o fôlego.
O Dr. Fastolfe se encontrava parado à frente dele.
- Peço-lhe novamente desculpas, por ter falhado como anfitrião. Ouvi numa extensão equipada para receber sem transmitir. Eu desejava ver minha filha, embora ela não quisesse me ver.
- Compreendo - respondeu Baley ligeiramente ofegante. - Se os seus costumes determinam que o que o senhor fez precisa de desculpas, eu o desculpo.
- O que é isso sobre Santirix Gremionis? Nunca ouvi falar nesse nome.
Baley encarou Fastolfe e replicou:
- Dr. Fastolfe, Gladia me falou nele hoje de manhã. Quase nada sei a seu respeito, mas aproveitei a oportunidade para dizer à sua filha aquilo. As probabilidades são contra mim, mas, apesar disso, os resultados foram os que eu desejava. Como sabe, posso tirar deduções úteis, mesmo de poucas informações, e por isso é melhor o senhor me deixar em paz para continuar. Por favor, no futuro, coopere completamente e não me faça mais menção da Sonda Psíquica. Fastolfe ficou calado e Baley sentiu uma grande satisfação por ter imposto sua vontade primeiro à filha e depois ao pai.
Não sabia quanto tempo poderia continuar agindo assim.
Vasilia
Baley parou na porta do carro aerodinâmico e disse, com firmeza:
- Giskard, não quero que as janelas sejam escurecidas. Não quero sentar nos fundos. Quero viajar na frente e observar o Exterior. Uma vez que eu fique entre você e Daneel, estarei bastante seguro, a menos que o próprio carro seja destruído. E nesse caso seremos todos destruídos e não importa se eu estiver na frente ou atrás.
Giskard reagiu à força do argumento, curvando-se respeitosamente.
- Senhor, se o senhor sentir-se doente...
- Então você parará o carro e eu irei para o assento traseiro e você escurecerá as janelas. Ou nem mesmo precisará parar. Posso pular por cima do assento dianteiro enquanto você se mexe. O ponto, Giskard, é que é muito importante para mim tornar-me o mais familiarizado possível com Aurora e também ficar da mesma maneira acostumado com o Exterior. Esta declaração é uma ordem, Giskard.
Daneel disse, tranqüilamente:
- O colega Elijah tem razão, amigo Giskard. Ele estará razoavelmente a salvo.
Giskard, talvez com relutância (Baley não pôde interpretar a expressão do seu rosto pouco humano), concordou e sentou-se no comando. Baley acompanhou-o e olhou pelo vidro claro do pára-brisa, sem a segurança que aparentou na voz. Contudo, a pressão de um robô de cada lado era reconfortante.
O carro levantou-se nos jatos de ar comprimido e balançou um pouco, como se estivesse procurando uma posição segura. Baley sentiu uma estranha sensação na boca do estômago e tratou de não lamentar sua heróica performance de momentos antes. Não adiantava tentar dizer-se que Daneel e Giskard não davam sinais de medo e deviam ser imitados. Eram robôs e não podiam sentir medo.
E então o carro andou para a frente, subitamente, e Baley sentiu-se esmagado contra o encosto do assento Dentro de um minuto, movia-se a uma velocidade tão grande quanto a que sentia no Caminho Expresso de City. Uma estrada relvada e larga estendia-se à sua frente.
A velocidade parecia ainda maior porque não havia as luzes amigas e os prédios de City em ambos os lados, mas enormes extensões verdes e formações irregulares. Baley lutou para manter a respiração calma e para falar o mais naturalmente possível, sobre assuntos neutros.
- Não passamos por terras cultivadas, Daneel. Parece-me terras devolutas.
- Estamos em território citadino, Colega Elijah - replicou Daneel. - São propriedades particulares.
- Citadino?
Baley não pôde aceitar. Sabia como era uma Cidade.
- Eos é a maior e mais importante cidade de Aurora. A primeira a ser construída. A Legislatura do Mundo Auroreano está aqui. O Presidente da Legislatura tem sua propriedade aqui e estamos passando por ela.
Não apenas uma cidade, porém a maior. Baley olhou em torno.
- Eu tinha a impressão de que Fastolfe e Gladia possuíam casas nos subúrbios de Eos. Devo pensar que passamos agora os limites da cidade?
- Em absoluto, Colega Elijah. Estamos passando pelo centro. Os limites ficam a sete quilômetros de distância daqui e nosso destino situa-se a cerca de quarenta quilômetros além.
- O centro da cidade? Não vejo prédios.
- Não foram feitos para serem vistos da estrada, porém há um que pode vislumbrar entre as árvores. É a moradia de Fuad Labord, escritor famoso.
- Conhece todas as casas de vista?
- Estão nos meus bancos de memória - replicou Daneel, com solenidade.
- Não há trânsito na estrada. Por quê?
- As distâncias maiores são cobertas por carros aéreos ou subterrâneos magnéticos. As ligações tridimensionais...
- Em Solaria eles são chamados exibidores - disse Baley.
- E aqui também, nas conversas informais, mas TVC em ocasiões solenes. Abrange a maior parte das comunicações. Finalmente, os auroreanos gostam de andar e não é incomum caminharem vários quilômetros para visitas de cortesia ou mesmo encontros de negócios, quando o tempo não é essencial.
- E quando devemos atingir um lugar muito afastado para andar, muito perto para carros aéreos, e exibidores tridimensionais não são desejados, usa-se o carro de superfície.
- Um plano aerodinâmico, mais especificamente, Colega Elijah, que é denominado carro de superfície, suponho.
- Quanto tempo leva ele para chegar à casa de Vasilia?
- Não muito, Colega Elijah. Ela está no Instituto de Robótica, como talvez você saiba.
Houve uns instantes de silêncio e depois Baley disse:
- Está nublado ali no horizonte.
Giskard fazia uma curva a alta velocidade, o carro inclinando-se num ângulo de trinta graus. Baley abafou um gemido e agarrou-se a Daneel, que colocou o braço esquerdo nos ombros de Baley, apertando-o com força. Lentamente, Baley soltou a respiração à medida que o carro se endireitava.
- Sim - disse Daneel - aquelas nuvens resultarão em chuva mais tarde, como foi previsto.
Baley franziu a testa. Tinha sido apanhado pela chuva uma vez - uma vez - durante seu trabalho experimental no campo Exterior da Terra. Era como ficar sob um chuveiro frio, vestido. Fora tomado de pânico total por um instante, quando percebeu que não tinha como pegar uma torneira e desligá-la. A água poderia correr Para sempre!...
Depois, todos começaram a correr e ele junto, à procura da secura e segurança de City.
Mas estava em Aurora e não tinha idéia de como proceder quando começasse a chover e não havia City para se abrigar nela. Correr para a casa mais próxima? Os refugiados seriam automaticamente bem recebidos?
Então houve outra virada rápida e Giskard disse:
- Senhor, estamos no estacionamento do Instituto de Robótica. Podemos agora entrar e visitar a casa da Dra. Vasilia, no terreno do Instituto.
Baley balançou a cabeça. A viagem levara entre quinze e vinte minutos (segundo imaginou, pelo tempo da Terra) e ele ficou contente por ter acabado. Disse, um tanto ofegante:
- Desejo saber alguma coisa a respeito da filha do Dr. Fastolfe, antes de encontrá-la. Você a conhece, Daneel?
- Quando passei a existir - replicou o robô - o Dr. Fastolfe e a filha estavam separados havia muito tempo. Nunca a encontrei.
- Mas você, Giskard, você e ela se conhecem muito bem. Não é verdade?
- É, senhor - replicou Giskard, impassível.
- E gostam um do outro?
- Acho, senhor - falou Giskard - que a filha do Dr. Fastolfe gosta de minha presença.
- E você tem prazer de estar com ela? Giskard pareceu escolher as palavras.
- Dá-me a sensação que eu considero ser a que os humanos denominam de "prazer" de estar com todo ser humano.
- Porém mais ainda com Vasilia, penso. Tenho razão?
- O prazer dela de estar comigo, senhor - replicou Giskard - parece estimular os potenciais positrônicos que produzem as ações em mim equivalentes às que o prazer produz nos seres humanos. Ou foi isso o que o Dr. Fastolfe me disse uma vez.
Baley perguntou, de repente:
- Por que Vasilia abandonou o pai? Giskard ficou calado.
Baley insistiu, com a súbita dureza de um terráqueo se dirigindo a um robô:
- Fiz-lhe uma pergunta, rapaz.
Giskard moveu a cabeça e olhou para Baley que, por um momento, pensou que o brilho dos olhos do robô pudesse se transformar num fulgor de ressentimento devido à palavra humilhante.
Contudo, Giskard falou humildemente e seus olhos nada revelaram quando replicou:
- Gostaria de responder, senhor, porém a Srta. Vasilia me proibiu de revelar tudo o que concerne a essa separação.
- Mas estou ordenando que me responda e posso insistir mais rispidamente, de fato... se eu desejar.
- Desculpe - retrucou Giskard. - A Srta. Vasilia, já naquele tempo, era especialista em robótica e as ordens que me deu foram suficientemente fortes para permanecerem, a despeito de tudo o que o senhor possa dizer.
- Ela deveria ser muito hábil com robôs, pois o Dr. Fastolfe me disse que ela o programou certa vez - replicou Baley.
- Aquilo não foi perigoso, senhor. O Dr. Fastolfe sempre poderia corrigir os enganos.
- E ele precisou?
- Não, senhor.
- De que natureza foi a reprogramação?
- De pouca monta, senhor.
- Talvez. Mas me responda: que foi que ela exatamente fez? Giskard hesitou e Baley percebeu logo o que aquilo significava.
- Temo - retrucou o robô - que as perguntas referentes à reprogramação não possam ser respondidas por mim.
- Proibiram-lhe?
- Não, senhor, mas a reprogramação automaticamente elimina a anterior. Se mudei em alguma coisa, para mim parece que sempre foi assim e não lembro do que fui antes de ter mudado.
- Então como sabe que a reprogramação foi de pouca monta?
- Como o Dr. Fastolfe nunca sentiu necessidade de corrigir o que a Srta. Vasilia fez, como me disse uma vez, suponho apenas que as mudanças foram mínimas. O senhor poderá perguntar à Srta. Vasilia, senhor.
- Perguntarei - disse Baley.
- Temo porém que ela se recuse a responder, senhor.
Baley ficou abatido. Até então, tinha interrogado apenas o Dr. Fastolfe, Gladia e os dois robôs, que fizeram o possível para cooperar. Agora, pela primeira vez, iria enfrentar alguém inamistoso.
Baley saltou do veículo, que estava pousado numa nesga de grama, e sentiu um certo prazer em ter uma coisa sólida sob os pés.
Olhou em volta, surpreso, pois os prédios eram menos espalhados e à sua direita havia um especialmente grande, de construção baixa, mais ou menos como um bloco de metal e vidro em ângulos retos.
- É aquele o Instituto de Robótica? - perguntou.
- Todo este conjunto é o Instituto, Colega Elijah - replicou Daneel. - Está vendo apenas uma parte e é mais densamente construído do que o normal em Aurora, porque é uma entidade política autônoma. Contém casas particulares, ginásios comunais, laboratórios, bibliotecas, etc. O prédio maior é o centro administrativo.
- Isso é tão pouco auroreano, com todos esses edifícios à vista, a julgar pelo que vi em Eos, que posso imaginar ter havido uma desaprovação geral.
- Acredito que sim, Colega Elijah, mas o chefe do Instituto se dá bem com o Presidente, que tem muita influência, e houve uma licença especial, ouvi dizer, em face das necessidades da pesquisa. - Daneel olhou em torno, pensativo. - É de fato mais compacto do que eu supunha.
- Mais do que você tinha suposto? Daneel, você nunca esteve aqui?
- Não, Colega Elijah.
- E você, Giskard?
- Não, senhor - replicou Giskard.
- Vocês vieram até aqui sem a menor dificuldade - comentou Baley - e pareceu-me que conheciam o lugar.
- Fomos devidamente informados, Colega Elijah - disse Daneel - uma vez que foi necessário virmos com você.
Baley sacudiu a cabeça, pensativo, questionando a seguir:
- Por que o Dr. Fastolfe não veio conosco?
Achou, mais uma vez, que não adiantava tentar pegar um robô descuidado. Feita uma pergunta rapidamente - ou inesperadamente - o robô apenas esperava até que ela fosse absorvida, para então responder. Nunca eram apanhados desprevenidos.
- Como disse o Dr. Fastolfe - replicou Daneel - ele não é membro do Instituto e achou que seria impróprio fazer uma visita sem ser convidado.
- Mas por que não é membro?
- Nunca me disseram o motivo, Colega Elijah.
Baley virou-se para Giskard, que respondeu imediatamente:
- Nem a mim, senhor.
Não sabiam? Foram instruídos para dizer que não sabiam?- Baley encolheu os ombros. Não importava. Os seres humanos podiam mentir e os robôs podiam ser instruídos a mentir.
Claro, os seres humanos podiam ser intimados ou levados a mentir - se o inquiridor fosse bastante hábil ou muito bruto - e os robôs podiam ser manobrados sem instruções - se o inquiridor fosse bastante hábil ou muito inescrupuloso - mas as habilidades eram diferentes e Baley nada sabia sobre robôs.
- Onde será possível encontrar a Dra. Vasilia Fastolfe? - perguntou Baley.
- Sua casa está exatamente à nossa frente - retorquiu Daneel.
- Você então foi bem instruído quanto à sua localização?
- Foi impresso em nossos bancos de memória, Colega Elijah.
- Bem, nesse caso, vá na frente.
O sol laranja estava alto no céu agora e sem dúvida era quase meio-dia. Quando se aproximaram da casa de Vasilia, entraram na sombra do edifício e Baley encolheu-se ligeiramente ao sentir a temperatura cair imediatamente.
Seus lábios contraíram-se ao pensamento de ocupar e colonizar mundos sem Cidades, onde a temperatura não fosse controlada, mas sujeita a variações idiotas e imprevisíveis.
E notou, preocupado, que as nuvens no horizonte tinham se aproximado um pouco. Podia, também, chover a qualquer momento, com a água caindo em catadupas.
Terra! Que saudade das Cidades!
Giskard caminhou na frente para a casa e Daneel pegou o braço de Baley, evitando que este o seguisse.
Claro! Giskard estava fazendo um reconhecimento.
Daneel procedeu da mesma maneira. Seus olhos examinaram os arredores com uma atenção que nenhum ser humano teria conseguido. Baley tinha certeza de que aqueles olhos robóticos nada perderiam. (Ficou imaginando por que os robôs não eram equipados com quatro olhos, eqüitativamente distribuídos ao redor da cabeça... ou uma faixa ótica rodeando-a completamente. Não Daneel, uma vez que precisava ter aparência humana. Mas, por que não Giskard? Ou provocaria complicações de visão que os recursos positrônicos não Podiam dominar? Durante um momento, Baley teve uma visão fugaz de complexidades que complicavam a vida de um roboticista.
Giskard reapareceu na soleira da porta e fez um sinal. O braço de Daneel exerceu uma respeitosa pressão e Baley adiantou-se. A Porta ficou entreaberta.
Não havia fechadura na casa de Vasilia, mas também as de
Gladia e Fastolfe não tinham, lembrou Baley subitamente. A população escassa e a separação entre as habitações ajudavam a garantir a privacidade e, sem dúvida, o costume de não-intromissão também ajudava. E, pensando bem, os guardas-robôs ubíquos eram mais eficientes que qualquer fechadura.
A pressão da mão de Daneel no antebraço fez Baley parar. Giskard, à frente deles, estava falando em voz baixa com dois robôs, que eram mais ou menos parecidos com Giskard.
Baley sentiu repentinamente a boca do estômago gelar. E se por uma rápida manobra outro robô substituísse Giskard? Ele seria capaz de reconhecer a substituição?
Distinguir um do outro? Seria deixado com um robô sem instruções especiais para vigiá-lo, um que pudesse inocentemente levá-lo a correr perigo e depois reagir com rapidez insuficiente, quando fosse necessário protegê-lo?
Contendo a voz, virou-se calmamente para Daneel:
- Incrível a semelhança desses robôs, Daneel. Pode distingui-los?
- Certamente, Colega Elijah. O padrão de suas roupas é diferente e também os seus números de código.
- Para mim não parecem diferentes.
- Você não está acostumado a notar detalhes assim. Baley tornou a olhar.
- Que números de código?
- São facilmente visíveis, Colega Elijah, quando se sabe onde olhar e quando os olhos são mais sensíveis aos raios infravermelhos que os dos humanos.
- Assim sendo, terei problemas se precisar identificar um, não é?
- Absolutamente não, Colega Elijah. Basta perguntar a um robô seu nome todo e número de série. Ele lhe dirá.
- Mesmo que tenha sido instruído para me fornecer um falso?
- Para que um robô seria instruído dessa forma? Baley resolveu não explicar.
Giskard, de qualquer maneira, estava voltando. Virou-se para Baley:
- Senhor, vai ser recebido. Por aqui, por favor.
Os dois robôs da casa caminharam na frente. Atrás deles, Baley e Daneel, este continuando a segurar o detetive protetoramente. Fechando a retaguarda, Giskard. Os dois robôs pararam diante de uma porta dupla, que se abriu automaticamente, para os dois lados. A peça interna era cheia de uma parca luz cinzenta: luz diurna filtrando-se por cortinas espessas.
Baley distinguiu, não muito nitidamente, um pequeno vulto humano na sala, meio sentado numa banqueta alta, com o cotovelo apoiado numa mesa que ocupava a extensão da parede.
Baley e Daneel entraram, seguidos de Giskard. A porta fechou-se, tornando a peça ainda mais escura.
Uma voz feminina ordenou rispidamente:
- Parem aí! Fiquem onde estão!
E a peça foi inundada pela plena luz do dia.
Baley piscou e ergueu os olhos. O teto era vitrificado e podia-se ver o sol por ele. O sol parecia estranhamente fraco, porém, podendo ser encarado, apesar de não parecer afetar a qualidade da luz interior. Presumivelmente, o vidro (ou o que quer que fosse a substância transparente) difundia a luz sem absorvê-la.
Baley olhou para a mulher, que continuava mantendo sua posição no banco, e perguntou:
- Dra. Vasilia Fastolfe?
- Dra. Vasilia Aliena, se deseja o nome todo. Não uso nomes de outras pessoas. Pode chamar-me Dra. Vasilia.
É o nome pelo qual sou comumente conhecida no Instituto.
- Sua voz, até ali bastante ríspida, suavizou-se. - E como vai, meu velho amigo Giskard?
Giskard respondeu, num tom estranhamente diferente do seu habitual:
- Meus cumprimentos... - Fez uma pausa e completou: -
Eu a saúdo, Mocinha. Vasilia sorriu.
- E isto, suponho, é o robô humaniforme sobre o qual ouvi falar: Daneel Olivaw?
- Sim, Dra. Vasilia - replicou Daneel com rispidez.
- E finalmente, temos... o terráqueo.
- Elijah Baley, Doutora - apresentou-se Baley, secamente.
- Sim, sei que os terráqueos têm nomes e que o seu é Elijah Baley - retrucou ela, friamente. - O senhor não se parece com aquele ator detestável que fez o seu papel no espetáculo de hiperonda.
- Sei disso, Doutora.
- O que desempenhou o papel de Daneel tinha melhor aparência, contudo, mas suponho que não estamos aqui para discutir o espetáculo.
- Sim, não estamos.
- Julgo que nos encontramos aqui, terráqueo, para falar sobre o que quer saber a respeito de Santirix Gremionis e acabar com isso Não é?
- Não completamente - replicou Baley. - Esse não é o motivo básico da minha vinda, embora imagine que cuidaremos dele.
- De fato? O senhor tem a impressão de que estamos aqui para uma longa e complicada discussão sobre qualquer tema que tenha escolhido?
- Acho, Dra. Vasilia, que seria bom para a senhora permitir-me que conduza esta entrevista como eu julgar melhor.
- Está me ameaçando?
- Não.
- Bem, nunca conheci um terráqueo e posso estar interessada em ver até onde o senhor parece com o ator que desempenhou seu papel: isto é, de outras formas que não a aparência. O senhor é realmente a pessoa superior que parece ser no espetáculo?
- Espetáculo - retrucou Baley com claro desgosto - que foi superdramatizado e exagerou muito minha personalidade. Gostaria que me aceitasse como sou e me julgue apenas como lhe apareço agora.
Vasilia riu.
- Pelo menos o senhor não parece intimidado por mim. É um ponto a seu favor. Ou o senhor pensa que essa coisa de Gremionis que tem na cabeça coloca-o na posição de me dar ordens?
- Só vim aqui para descobrir a verdade a respeito da morte do robô humaniforme, Jander Panell.
- Morte? Ele então alguma vez esteve vivo?
- Uso esta palavra em lugar de "tornado inoperante". Dizer "morte" a deixa confusa?
- O senhor argumenta bem - replicou Vasilia. - Debrett, traga uma cadeira para o terráqueo. Ele ficará cansado em pé, se a conversa for longa. Depois volte para seu nicho. E você também pode escolher um, Daneel. Giskard, fique aqui comigo.
Baley sentou-se.
- Obrigado, Debrett. Dra. Vasilia, não tenho autoridade para interrogá-la. Não tenho recursos legais para forçá-la a responder minhas perguntas. Contudo, a morte de Jander Panell colocou seu pai numa posição um tanto...
- Colocou quem numa posição?
- Seu pai.
- Terráqueo, às vezes me refiro a uma certa pessoa como meu pai, porém ninguém mais. Por favor, use o nome correto.
- Dr. Hans Fastolfe. É seu pai, não é? Para efeito de registro?
- O senhor está usando um termo biológico - replicou Vasilia. - Eu partilho genes com ele de uma forma característica do que, na Terra, seria considerada uma relação pai-filha. Aqui em Aurora isso é indiferente, exceto em assuntos genéticos e médicos. Posso conceber meu sofrimento, resultante de estados metabólicos, nos quais seria apropriado considerar a fisiologia e a bioquímica dos que partilham os genes comigo: pais, irmãos, filhos e assim por diante. Caso contrário, essas relações não são geralmente citadas numa sociedade auroreana educada. Estou lhe explicando isto porque é terráqueo.
- Se ofendi os costumes, foi por ignorância e peço desculpas - respondeu Baley. - Posso me referir à pessoa em discussão pelo nome?
- Certamente.
- Nesse caso, a morte de Jander Panell colocou o Dr. Hans Fastolfe numa posição um tanto difícil e presumo que isso deve preocupá-la a ponto de querer ajudá-lo.
- O senhor supõe isso, não é? Por quê?
- Ele é seu... Ele a trouxe à vida. Cuidou da senhora. Tinham uma afeição profunda um pelo outro. Ele ainda sente uma profunda afeição pela senhora.
- Ele lhe disse isso?
- Tornou-se óbvio nos detalhes da nossa conversa... até mesmo pelo fato dele ter tanto interesse pela solariana, Gladia Delftiarre, que se parece com a senhora.
- Ele lhe disse isso?
- Sim, mas mesmo que não dissesse, a semelhança é evidente.
- Todavia, terráqueo, nada devo ao Dr. Fastolfe. Pode pôr de lado essas suposições.
Baley pigarreou.
- À parte os sentimentos pessoais que possa ter ou não, há o futuro da Galáxia. O Dr. Fastolfe deseja novos mundos para serem explorados e colonizados por seres humanos. Se as repercussões políticas da morte de Jander levarem à exploração e colonização de novos mundos por robôs, o Dr. Fastolfe crê que isso será catastrófico para Aurora e para a humanidade. Certamente, a senhora não quererá participar desse desastre.
Vasilia encarou-o respondeu, indiferente:
- Certamente que não, se eu concordar com o Dr. Fastolfe. Não concordo. Não vejo perigo em ter robôs humaniformes realizando o trabalho. Estou aqui no Instituto, de fato, para tornar isso possível. Sou Globalista. Como o Dr. Fastolfe é Humanista, torna-se meu inimigo político.
Suas respostas foram cortantes e diretas, nem um instante mais do que deviam ser. De cada vez seguia-se um silêncio marcante, embora ela ficasse esperando, com interesse, a pergunta seguinte. Baley teve a impressão de que Vasilia estava curiosa a respeito dele, divertida, como que apostando consigo mesma sobre qual seria a nova pergunta, determinada a dar-lhe exatamente o mínimo de informação necessária, para forçar outra pergunta.
- A senhora é membro do Instituto há muito tempo? - perguntou Baley.
- Desde sua fundação.
- Ele tem muitos membros?
- Imagino que um terço dos roboticistas auroreanos são membros, embora apenas cerca de metade more realmente e trabalhe no recinto do Instituto.
- Outros membros do Instituto partilham da sua opinião sobre a exploração robótica de outros mundos? Eles são inteiramente contra o ponto de vista do Dr. Fastolfe?
- Desconfio que a maioria é Globalista, mas nunca votamos a esse respeito nem discutimos formalmente. O senhor terá de perguntar-lhes um a um.
- O Dr. Fastolfe é membro do Instituto?
- Não.
Baley esperou um pouco, porém ela nada acrescentou à negativa.
- Não é surpreendente? - perguntou. - Era de esperar que ele, mais do que todos, fosse membro.
- Acontece que não o queremos. E o que é menos importante, talvez, ele não nos quer.
- Não é ainda mais surpreendente?
- Não sei por quê. - E depois, como que incitada a dizer mais por uma irritação interior, acrescentou: - Ele mora na cidade de Eos. Suponho, terráqueo, que sabe o significado do nome.
Baley balançou a cabeça e replicou:
- Eos é a antiga deusa grega do alvorecer, como Aurora é a antiga deusa romana do amanhecer.
- Exatamente. O Dr. Han Fastolfe mora na Cidade do Amanhecer, no Mundo do Amanhecer, porém não acredita na Aurora. Ele não compreende o método necessário de expansão pela Galáxia, convertendo o Amanhecer Espacial em amplo Dia Galáctico. A exploração da Galáxia com robôs é a única forma prática de realizar a tarefa e ele não quer aceitar isso... ou nós.
- Por que é o único método prático? - perguntou Baley, devagar. - Aurora e os outros mundos Espaciais não foram colonizados e explorados por robôs, mas por seres humanos.
- Retificação: por terráqueos. Foi tão dispendioso e ineficiente, que hoje não há terráqueos que queiram ser futuros colonizadores. Nós nos tornamos Espaciais, de vida e saúde longas, temos robôs que são infinitamente mais versáteis e flexíveis que os disponíveis aos seres humanos que originalmente colonizaram nossos mundos.
Os tempos e significado são totalmente diferentes... e hoje só a exploração robótica é realizável.
- Suponhamos que a senhora tenha razão e o Dr. Fastolfe esteja errado. Mesmo assim, ele tem um ponto de vista lógico. Por que ele e o Instituto não se aceitam? Simplesmente porque estão em desacordo nesse ponto?
- Não, o desacordo é comparativamente menor. Há um conflito mais fundamental.
Baley fez uma nova pausa e outra vez ela nada acrescentou ao comentário. O detetive não a sentiu longe de mostrar irritação e por isso, calmamente, quase tateando, prosseguiu:
- Qual o conflito mais fundamental?
O divertimento na voz de Vasilia por pouco veio à tona. Suas feições suavizaram-se um pouco e durante um momento ela se pareceu mais com Gladia.
- Acho que não adivinharia sem que lhe fosse explicado.
- É justamente por isso que estou perguntando, Dra. Vasilia.
- Muito bem, terráqueo, disseram-me que os terráqueos têm vida curta. Não fui enganada, não é?
Baley encolheu os ombros:
- Alguns de nós chegam a cem anos, tempo da Terra. - Pensou um pouco. - Talvez uns cento e trinta anos métricos mais ou menos.
- E que idade tem o senhor?
- Quarenta e cinco pela medida padrão, sessenta pela métrica.
- Eu tenho sessenta e seis, pela métrica. Pretendo viver três séculos métricos no máximo... se tiver cuidado.
Baley abriu os braços.
- Meus parabéns.
- Há desvantagens.
- Disseram-me esta manhã que em três ou quatro séculos há o risco de serem acumuladas muitas perdas.
- Temo que sim - replicou Vasilia. - E também muitas possibilidades de ganho. No todo, equilibra.
- Quais são então as desvantagens?
- O senhor não é cientista, claro.
- Sou um cidadão... um policial, se preferir.
- Mas talvez conheça cientistas em seu mundo.
- Conheci alguns - disse Baley, com cautela.
- Sabe como trabalham? Fomos informados de que na Terra eles cooperam sem necessidade. Que eles têm no máximo meio século de trabalho ativo no decorrer de suas curtas vidas. Menos de sete décadas métricas. Não se pode fazer muito nesse curto espaço.
- Alguns dos nossos cientistas realizaram um grande trabalho em muito menos tempo.
- Porque se valeram das descobertas de outros anteriores a eles e se beneficiaram das descobertas de outros contemporâneos, não é?
- Claro. Temos uma comunidade científica para a qual todos contribuem no desenrolar do espaço e do tempo.
- Exatamente. De outro modo não daria certo. Cada cientista, cônscio da improbabilidade de conseguir muito sozinho, é levado a se integrar na comunidade, não podendo evitá-lo. O progresso torna-se então muito mais do que seria se isso não existisse.
- E não é assim também em Aurora e nos outros mundos Espaciais? - perguntou Baley.
- Teoricamente, é, na prática, nem tanto. As pressões numa sociedade de vida longa são menores. Os cientistas têm três ou três e meio séculos para se dedicarem a um problema, de maneira que existe a idéia de que um progresso significativo pode nascer, nesse tempo, de um trabalhador solitário. Torna-se possível sentir-se uma espécie de avareza intelectual: querer realizar uma coisa sozinho, assumir-lhe a propriedade como uma faceta particular de progresso, propenso a ver diminuído o progresso geral, em vez de desistir do conceito de ser só seu. E o avanço geral é diminuído nos mundos Espaciais, como conseqüência, a ponto de lhes ser difícil superar o trabalho feito na Terra, apesar de nossas enormes vantagens.
- Presumo que não diria isso se eu não soubesse que o Dr. Han Fastolfe age dessa maneira.
- Ele certamente age assim. Foi sua análise teórica do cérebro positrônico que tornou o robô humaniforme possível. Usou-a para construir, com a ajuda do falecido Dr. Sarton, seu amigo robô Daneel, porém não divulgou os detalhes importantes de sua teoria, nem deixou-a ao alcance de mais ninguém. Dessa forma, ele, e só ele, tem o domínio da produção de robôs humaniformes.
Baley franziu a testa.
- E o Instituto de Robótica dedica-se à cooperação entre cientistas?
- Exatamente. O Instituto foi construído sobre mais de uma centena de roboticistas famosos de idades, progressos e capacidades diversos, e esperamos instalar ramificações em outros mundos, tornando-o uma associação interestelar. Nós todos nos dedicamos a comunicar nossas descobertas ou especulações individuais voluntariamente a um fundo comum pelo bem de todos, o que vocês, terráqueos, fazem porque suas vidas são muito curtas.
"Isso, no entanto, o Dr. Han Fastolfe não faz. Tenho certeza de que o senhor pensa ser o Dr. Han Fastolfe um nobre idealista auroreano patriótico, mas ele não coloca sua propriedade intelectual, como a considera, no fundo comum e por isso não nos quer. E como assume uma atitude de propriedade individual sobre as descobertas científicas, não o queremos. Suponho que agora não mais considerará o mútuo antagonismo como mistério.”
Baley balançou a cabeça e perguntou:
- A senhora acha que vai adiantar... essa desistência voluntária da glória pessoal?
- É preciso - replicou Vasilia, sombria.
- E o Instituto, pelo esforço conjunto, duplicou o trabalho individual do Dr. Fastolfe e redescobriu a teoria do cérebro positrônico humaniforme?
- Conseguiremos, com o tempo. É inevitável.
- E não estão fazendo uma tentativa de abreviar o tempo necessário, persuadindo o Dr. Fastolfe a revelar o segredo?
- Acho que estamos a caminho de persuadi-lo.
- Por intermédio do escândalo Jander?
- Não acho que o senhor precise fazer essa pergunta... Bem disse-lhe tudo o que o senhor desejava, terráqueo?
- Contou-me algumas coisas que eu não sabia - confessou Baley.
- Então está na hora de me falar sobre Gremionis. Por que ligou o nome desse barbeiro a mim?
- Barbeiro?
- Ele se considera cabeleireiro de classe, entre outras coisas, porém é barbeiro, pura e simplesmente. Fale-me sobre ele... ou vamos considerar a entrevista terminada.
Baley sentiu-se fatigado. Pareceu-lhe claro que Vasilia havia gostado do duelo. Ela lhe deu o bastante para aguçar seu apetite e ele agora iria ser forçado a comprar material suplementar, fornecendo-lhe informações. E não tinha nenhuma. Ou, pelo menos, só tinha palpites E se nenhum deles estava errado, vitalmente errado, ele estava acabado.
Por essa razão, fez algumas esquivas.
- A senhora compreende, Dra. Vasilia, que não pode se livrar fingindo que é uma farsa supor que há uma ligação da senhora com Gremionis.
- Por que não, onde está a farsa?
- Ah, não. Se fosse farsa, a senhora teria rido na minha cara e desligado o contato tridimensional. O simples fato de ter a senhora concordado em abandonar sua posição anterior e me receber, o simples fato de a senhora ter falado comigo durante esse tempo e me ter dito muitas coisas, é uma confissão clara de que a senhora sente que eu possivelmente estou com a faca no seu pescoço.
Os músculos do maxilar de Vasilia contraíram-se e ela rebateu, em voz baixa e irada:
- Olhe aqui, homenzinho da Terra, minha posição é vulnerável e você provavelmente sabe disso. Sou filha do Dr. Fastolfe e há alguns aqui no Instituto que são bastante idiotas, ou bastante patifes, para desconfiar de mim por isso. Não sei que espécie de coisa o senhor possa ter ouvido ou inventado, porém que é mais ou menos uma farsa, não há dúvida. Não obstante, por mais ridícula que seja, pode ser usada eficientemente contra mim. Por isso estou disposta a um acordo. Contei-lhe algumas coisas e posso dizer-lhe mais, porém só se me revelar o que tem nas mãos e me convencer de que está falando a verdade. Agora comece.
- Se tentar me pregar peças, não ficarei em pior posição que agora se o expulsar... e terei pelo menos o prazer de fazer isso. E usarei o prestígio que tiver com o Presidente para que ele cancele a decisão de ter-lhe permitido vir aqui e o mande de volta à Terra. Há uma enorme pressão contra ele agora para fazer isso e o senhor não vai querer que eu junte meu esforço aos deles.
"Portanto fale! Já!"
O impulso de Baley foi atingir o ponto crucial, tateando para ver se tinha razão. Mas sentiu que não adiantaria. Ela perceberia o que ele estava fazendo – Vasilia não era boba - e o impediria. Ele estava na trilha de alguma coisa, sabia, e não queria estragar. O que a moça dissera sobre sua posição vulnerável como resultado de sua relação com o pai podia ser verdade, porém ela não teria ficado apavorada ao vê-lo se não tivesse desconfiado que a noção que ele tinha não era completamente ridícula.
Precisava, portanto, surgir com alguma coisa importante, capaz de estabelecer imediatamente uma espécie de domínio sobre ela. Dessa forma... ao jogo.
- Santirix Gremionis - disse Baley - se ofereceu a você. - E antes que Vasilia pudesse reagir, aumentou a parada, dizendo, com um toque de aspereza: - E não uma vez, mas várias.
Vasilia crispou os dedos no joelho, levantando-se e sentando-se no banco como que para se acomodar melhor. Olhou para Giskard, que continuou imóvel e inexpressivo ao seu lado.
Depois, virou-se para Baley e disse:
- Bem, aquele idiota se oferece a todos, sem olhar idade e sexo. Seria de espantar que não me desse atenção.
Baley fez o gesto de afastar aquilo (Ela não riu. Não terminou a entrevista. Nem mesmo deu uma demonstração de fúria. Estava esperando para ver que conclusão ele tiraria da declaração, pois tinha agarrado alguma coisa pelo rabo).
- Isso é exagero, Dra. Vasilia - disse Baley. - Contudo ninguém, por mais indiscriminado que fosse, deixaria de escolher e no caso desse Gremionis, a senhora foi escolhida, e apesar de sua recusa a aceitá-lo, ele continuou a se oferecer, contrariando o costume auroreano.
- Estou contente por ter o senhor sabido que o recusei. Há quem ache que por uma questão de cortesia deve aceitar qualquer oferecimento, ou quase todo oferecimento, mas essa não é a minha opinião. Não sei por que deva submeter-me a uma coisa desinteressante que só vai desperdiçar meu tempo. Tem alguma objeção a isso, terráqueo?
- Nada tenho a dizer, favorável ou não. sobre os costumes auroreanos.
(Ela estava esperando, prestando atenção a ele. Esperando o quê? Seria pelo que ele queria dizer, mas não tinha certeza de que ousasse?)
A moça falou, esforçando-se para parecer divertida:
- O senhor tem alguma coisa a oferecer... ou já terminamos?
- Ainda não - replicou Baley, forçado agora a fazer outro jogo. - A senhora reconheceu essa perseverança não-auroreana em Gremionis e ocorreu-lhe que poderia tirar partido dela.
- De fato? Que loucura! Que partido eu poderia tirar?
- Uma vez que ele estava fortemente atraído pela senhora, não seria difícil conseguir que ele fosse atraído por outra que se parecesse muito com a senhora. Incitou-o a isso. talvez lhe prometendo aceitá-lo se a outra não o fizesse.
- Quem é essa pobre mulher que se parece tanto comigo?
- A senhora não sabe? Ora, vamos, Dra. Vasilia, deixe de ingenuidade. Estou me referindo à solariana Gladia, colocada pelo Dr. Fastolfe sob sua proteção exatamente porque se parece com a senhora. Não ficou surpresa quando me referi a isso, no início da nossa conversa. Agora é muito tarde para fingir ignorância.
Vasilia olhou-o severamente.
- E do interesse dele por essa mulher o senhor deduziu que primeiro ficou interessado em mim? Foi por causa dessa suposição absurda que se aproximou de mim?
- Não é inteiramente uma suposição absurda. Há outros fatores substanciais. Nega tudo isso?
Vasilia passou a mão pensativamente sobre a mesa comprida ao seu lado e Baley imaginou que detalhes conteriam as folhas de papel nela. Pôde distinguir, a distância, fórmulas complexas que lhe eram totalmente desconhecidas, por mais que as examinasse cuidadosamente.
- Estou ficando cansada - disse Vasilia. - O senhor me disse que Gremionis esteve interessado primeiro em mim e depois na solariana que se parece comigo. E agora quer que eu negue isso. Por que devo me dar ao trabalho de negar? Ou que importância tem? Mesmo que fosse verdade, como isso poderia me incomodar, afinal? Está dizendo que fiquei aborrecida pelas atenções que não pedi e que habilidosamente desviei. E daí?
- Não é tanto o que fez, mas por que fez - replicou Baley. - A senhora sabia que Gremionis era um tipo persistente. Ofereceu-se à senhora insistentemente e iria fazer a mesma coisa com Gladia.
- Se ela o recusasse.
- Gladia é solariana, com problemas sexuais, e recusou todos, coisa que, ouso dizer, a senhora sabia e por isso imagino que em virtude do seu estremecimento com seu pa... Dr. Fastolfe, tinha bastante sensibilidade para ficar de olho num substituto para ele.
- Então é um ponto para ela. Se recusou Gremionis, revelou bom gosto.
- Sabe que não há "se" nisso. A senhora sabia que recusaria.
- Mesmo assim... e daí?
- Oferecimentos insistentes a ela teriam significado que Gremionis freqüentava a casa de Gladia, que queria se ligar a ela.
- Pela última vez. E daí?
- E na casa dela existia um objeto muito incomum, um dos dois robôs humaniformes existentes, Jander Panell.
Vasilia hesitou, mas depois perguntou:
- Até onde quer chegar?
- Acho que a senhora notou que se o robô humaniforme, de alguma forma, fosse morto em circunstâncias que implicassem o Dr. Fastolfe, isso poderia ser usado como uma arma para forçá-lo a revelar o segredo do cérebro positrônico humaniforme. Gremionis, aborrecido com a constante recusa de Gladia a aceitá-lo e dada a oportunidade de sua presença na casa dela, pôde ser induzido a executar uma brutal vingança, matando o robô.
Vasilia piscou rapidamente.
- Aquele pobre barbeiro poderia ter um monte de razões e outras tantas oportunidades e não iria adiantar. Ele não saberia como mandar um robô dar um aperto de mão com eficiência.
Como faria ele para, num ano-luz, impor um congelamento mental a um robô?
- O que nos leva agora finalmente ao ponto - replicou Baley suavemente - um ponto que eu acho ter a senhora previsto, pois evitou despedir-me porque precisava ter certeza se eu tinha esse ponto na cabeça ou não. O que quero dizer é que Gremionis fez o trabalho, com a ajuda deste Instituto de Robótica, agindo por seu intermédio.
Ainda Vasilia
Foi como se um drama de hiperonda tivesse feito uma parada numa imobilidade holográfica. Nenhum dos robôs se mexeu, claro, nem também Baley e a Dra. Vasilia Aliena. Longos segundos - anormalmente longos - passaram antes que Vasilia soltasse a respiração e, bem devagar, ficasse em pé.
Seu rosto se contraiu num sorriso sem humor e falou em voz baixa.
- O senhor está afirmando, terráqueo, que eu sou um acessório na destruição do robô humaniforme?
- Foi mais ou menos isso o que me ocorreu, Doutora – disse Baley.
- Obrigada pelo pensamento. A entrevista está terminada e o senhor pode se retirar.
Vasilia apontou a porta.
- Acho que não quero - replicou Baley.
- Não estou consultando seus desejos, terráqueo.
- Mas deve, pois como pode me fazer sair contra minha vontade?
- Tenho robôs que por determinação minha o farão retirar-se educada, mas firmemente, sem machucar nada a não ser sua auto-estima... se tiver uma.
- A senhora só tem um robô aqui. Eu tenho dois que não deixarão isso acontecer.
- Tenho vinte ao alcance da voz.
- Dra. Vasilia, compreenda, por favor! A senhora ficou surpresa ao ver Daneel. Desconfio que apesar de trabalhar no Instituto de Robótica, onde os robôs humaniformes são prioritários, nunca viu realmente um completo e funcionando. Seus robôs, conseqüentemente, também não viram. Veja agora Daneel. Ele parece humano. Parece mais humano que qualquer outro já existente, com exceção do falecido Jander. Para seus robôs, ele certamente parece humano. Ele saberá como dar uma ordem de maneira a que eles lhe obedeçam, de preferência, talvez, à senhora.
- Posso se necessário chamar vinte humanos do Instituto, que o expulsarão, talvez um pouco machucado, e seus robôs, mesmo Daneel, não conseguirão agir eficientemente.
- Como pretende chamá-los, já que meus robôs não lhe permitirão mover-se? Eles têm reflexos extraordinariamente rápidos.
Vasilia repuxou os lábios de uma forma que não podia ser considerada como um sorriso.
- Sobre Daneel, nada posso dizer, mas conheci Giskard quase minha vida inteira. Não creio que ele faça alguma coisa para me impedir de solicitar ajuda e acho que fará com que Daneel também não interfira.
Baley procurou evitar que sua voz tremesse, como se patinasse em gelo cada vez mais delgado... e sabia disso. Falou:
- Antes que faça alguma coisa, talvez a senhora possa perguntar a Giskard como ele agirá se lhe der ordens que entrem em conflito com as minhas.
- Giskard? - perguntou Vasilia, com ar de absoluta confiança.
Giskard fixou o olhar em Vasilia e retrucou, com um estranho tom de voz:
- Mocinha, sou obrigado a proteger o Sr. Baley. Ele tem prioridade.
- De fato? Por ordem de quem? Deste terráqueo? Deste estrangeiro?
- Por ordem do Dr. Han Fastolfe - respondeu o robô.
Os olhos de Vasilia relampejaram e a moça tornou a sentar-se, devagar, no banco. As mãos, pousadas no colo, tremiam e ela disse, com os lábios quase fechados:
- Ele também pode levar você.
- Se isso não basta, Dra. Vasilia - interveio Daneel subitamente, por vontade própria - eu também porei o bem-estar do Colega Elijah acima do seu.
Vasilia examinou Daneel com curiosidade amarga.
- Colega Elijah? É assim que o chama?
- É, Dra. Vasilia. Minha escolha decorre não apenas das instruções do Dr. Fastolfe, mas também porque ele e eu somos colegas nesta investigação e porque... - Daneel fez uma pausa como que confuso pelo que ia dizer, mas depois, apesar disso, completou: - somos amigos.
- Amigos? - repetiu Vasilia. - Um terráqueo e um robô humaniforme? É um belo par. Nenhum dos dois é humano.
Baley disse, rispidamente:
- Apesar disso, unidos pela amizade. Para seu próprio bem, não experimente a força da nossa... - Agora foi sua vez de se interromper e, para sua surpresa, completou a frase que parecia impossível: - ... amizade.
Vasilia virou-se para Baley.
- Que deseja?
- Informações. Fui chamado a Aurora, este Mundo do Amanhecer, para solucionar um fato que não parece ter uma explicação simples, do qual o Dr. Fastolfe é falsamente acusado, com a possibilidade, além disso, de conseqüências terríveis para seu mundo e o meu. Daneel e Giskard compreendem bem essa situação e sabem que só a Primeira Lei, imediatamente e em toda a sua plenitude, pode ter precedência aos meus esforços para resolver o mistério. Como eles ouviram o que eu disse e sabem que a senhora poderá ser, possivelmente, um acessório do crime, compreendem que não devem permitir que esta entrevista termine. Assim sendo, torno a dizer, não se arrisque a ações que eles possam executar se a senhora se recusar a responder minhas perguntas. Acusei-a de ser um acessório no assassinato de Jander Panell. Nega ou não essa acusação?
Precisa responder.
Vasilia disse amargamente:
- Vou responder. Nunca tive medo! Assassinato? Um robô é posto fora de ação e isso é assassinato? Bem, nego, seja assassinato ou o que for! Nego com todas as minhas forças. Não forneci a Gremionis informações sobre robótica, com a finalidade de permitir-lhe dar um fim a Jander. Não conheço bastante para isso e desconfio que alguém no Instituto conheça.
- Não sei dizer se a senhora possui conhecimentos suficientes para ter ajudado a cometer o crime ou se alguém no Instituto tem. Podemos contudo discutir o motivo. Primeiro, a senhora pode ter um sentimento de ternura por esse Gremionis. Todavia, por mais que a senhora possa rejeitar seus oferecimentos, por mais desprezível possa achá-lo como um possível amante, seria muito estranho que a senhora se sentisse envaidecida por sua persistência, a ponto de desejar ajudá-lo se ele lhe implorasse sem as exigências sexuais com que a aborrecia?
- Está dizendo que ele poderia ter vindo me procurar e pedisse: "Vasilia, querida. Preciso liquidar um robô. Por favor me diga como fazê-lo e lhe ficarei gratíssimo."
E eu responderia: "Ora, claro, querido, eu adoraria ajudá-lo a cometer um crime"... Ridículo! Só um terráqueo, ignorante dos nossos costumes, pode acreditar que uma coisa dessas possa acontecer. E precisaria ser um terráqueo especialmente burro.
- Talvez, porém devemos examinar todas as possibilidades. Por exemplo, como uma segunda possibilidade, a senhora não poderia estar ciumenta pelo fato de Gremionis ter transferido seu afeto e por isso o tenha ajudado sem considerar uma ternura abstrata, mas com um desejo bem concreto de tê-lo de volta?
- Ciumenta? É uma emoção da Terra. Se não quero Gremionis para mim, por que devo me preocupar se ele se oferece a outra mulher e ela o aceita ou, também, se outra mulher se oferece e ele a aceita?
- Já me disseram que o ciúme sexual não existe em Aurora e estou pronto a admitir que é verdade teoricamente, mas que essas teorias raramente se mantêm na prática.
Certamente, há exceções. Mais ainda, o ciúme é freqüentemente um sentimento irracional e não pode ser eliminado com a simples lógica. Mas deixemos isso de lado por agora. Como terceira possibilidade a senhora pode ter ciúmes de Gladia e desejar prejudicá-la, mesmo que não se preocupe nem um pouco com Gremionis.
- Ciúme de Gladia? Nunca a vi, exceto uma vez na hiperonda, quando ela chegou a Aurora. O fato de a terem achado parecida comigo de vez em quando nunca me preocupou.
- Talvez a preocupasse que ela ficasse aos cuidados do Dr. Fastolfe, sua predileta, quase a filha que a senhora foi anteriormente? Ela a substituiu.
- Ela é bem-vinda por isso. Nada me preocuparia menos.
- Mesmo se fossem amantes?
Vasilia encarou Baley com fúria crescente e gotas de suor começaram a surgir na raiz dos seus cabelos.
- Não precisamos discutir isso - replicou. - O senhor pediu-me que negasse a alegação do que eu tinha sido o acessório do que chamou de assassinato e eu neguei.
Disse-lhe que me faltava a capacidade e o motivo. Agradecerei se apresentar seu caso a toda Aurora. Exiba suas bobas tentativas de me fornecer um motivo. Mantenha, se desejar, que eu tenho capacidade para isso. O senhor não vai chegar a lugar nenhum. Absolutamente nenhum.
E apesar dela estar tremendo de raiva, Baley achou que havia convicção na voz da moça.
Vasilia não temia a acusação.
Concordara em vê-lo e por isso ele estava nas pegadas de alguma coisa que ela temia... talvez desesperadamente.
Porém ela não temia aquilo.
Onde então tinha ele errado?
Baley falou, perturbado, procurando uma saída:
- Suponhamos que eu aceite sua afirmação, Dra. Vasilia. Suponhamos que eu concorde que a minha desconfiança de que a senhora tenha sido um acessório naquele... roboticídio... esteja errada. Isso não significa que seja impossível a senhora me ajudar.
- E por que deveria?
- Por dignidade humana - replicou Baley. - O Dr. Han Fastolfe garante que não foi ele, que não é um roboticida, que não colocou o tal robô Jander fora de ação. A senhora conheceu o Dr. Fastolfe melhor que ninguém, supõe-se. Passou anos numa relação íntima com ele como filha querida, do nascimento à puberdade. Viu-o em horas e condições que ninguém mais viu. Quaisquer que sejam seus sentimentos atuais a seu respeito, o passado não é modificado por eles. Conhecendo-o como o conhece, a senhora deve ser capaz de testemunhar que seu caráter não lhe permite destruir um robô, principalmente aquele que é um dos seus grandes sucessos. Irá prestar esse depoimento francamente? Diante de todos os mundos? Seria uma grande ajuda.
O rosto de Vasilia endureceu.
- Compreenda-me - disse, pronunciando as palavras destacadamente. - Não quero ser envolvida.
- A senhora precisa ser.
- Por quê?
- Não deve nada a seu pai? Ele é seu pai. Mesmo que a palavra nada lhe signifique, há uma ligação biológica. E além disso, pai ou não, ele cuidou da senhora, alimentou-a e sustentou-a durante anos. Deve-lhe alguma coisa por isso.
Vasilia estremeceu. Era visível e seus dentes chocaram-se. Tentou falar, não conseguiu, respirou fundo duas vezes e tornou a tentar. Finalmente, disse:
- Giskard, está ouvindo isto? Giskard inclinou a cabeça.
- Sim, Mocinha.
- E você, humaniforme... Daneel?
- Estou, Dra. Vasilia.
- Também ouviu tudo?
- Sim, Dra. Vasilia.
- Ambos compreendem que o terráqueo insiste para que eu dê prova do caráter do Dr. Fastolfe?
Os dois balançaram a cabeça.
- Então falarei... contra minha vontade e meu ódio. Isso porque senti que devo a esse meu pai um mínimo de consideração como meu gerador e educador, que anteriormente me impediu de testemunhar. Mas agora quero. Ouça-me, terráqueo. O Dr. Han Fastolfe, de cujos genes partilho, não cuidou de mim... mim... mim como um ser humano separado, distante. Não passei de uma experiência, de um fenômeno em observação. Baley sacudiu a cabeça.
- Não foi isso o que perguntei. Ela virou-se, furiosa, para ele.
- O senhor insistiu para que eu falasse e eu Vou falar... e essa será a resposta: o Dr. Fastolfe se interessava por uma coisa. Uma coisa. Só uma coisa. O funcionamento do cérebro humano. Desejava reduzi-lo a equações, a um diagrama, a um quebra-cabeça resolvido e assim criar uma ciência matemática do comportamento humano, que lhe permitisse prever o futuro do homem. Chamou-a "psicohistória". Duvido que o senhor tenha conversado com ele por uma hora sem que isso fosse mencionado. É a sua monomania.
Vasilia examinou o rosto de Baley e gritou, numa alegria feroz)
- Eu sabia! Falou-lhe dela. Então deve ter-lhe dito que está interessado em robôs até que eles possam levá-lo ao cérebro humano. Ele está interessado em robôs humaniformes até que estes possam levá-lo ainda mais perto do cérebro humano... Sim, ele também lhe disse isso.
"A teoria básica que tornou os robôs humaniformes possíveis surgiu, tenho a certeza, da sua tentativa de compreender o cérebro humano e ele se agarra a ela, não permitindo que ninguém mais a veja porque deseja resolver inteiramente o problema do cérebro humano sozinho nos dois séculos, mais ou menos, que lhe restam. Tudo está subordinado a isso. O que certamente me inclui.”
Baley, tentando enfrentar o fluxo de ódio, perguntou em voz baixa:
- De que maneira isso a inclui, Dra. Vasilia?
- Quando eu nasci, deveria ter sido colocada com outros iguais a mim nas mãos de profissionais que soubessem cuidar de crianças. Não devia ter sido posta aos cuidados de um amador, pai ou não, cientista ou não, não deviam ter permitido ao Dr. Fastolfe sujeitar uma criança àquele ambiente, se fosse alguém que não Han Fastolfe.
Ele usou todo o seu prestígio para conseguir, convocou cada devedor, persuadiu cada pessoa-chave que pôde, até obter o controle sobre mim.
- Ele a amava - murmurou Baley.
- Me amava? Qualquer outra criança daria no mesmo, porém não havia outra disponível. O que ele queria era a presença de uma criança em crescimento, um cérebro em desenvolvimento. Queria fazer um estudo acurado do seu método de desenvolvimento, de como crescia. Precisava de um cérebro humano ainda primitivo, crescendo complexo, para poder examiná-lo detalhadamente. com essa finalidade, submeteu-me a um ambiente anormal para experiências sutis, sem nenhuma consideração por mim como ser humano.
- Não posso acreditar. Mesmo que ele estivesse interessado em você como objeto de experiência, ainda assim podia preocupar-se com você como ser humano.
- Não. Você fala como terráqueo. Talvez na Terra haja uma espécie de cuidado com as ligações biológicas. Aqui não há. Eu fui para ele objeto de experiência. Ponto final.
- Mesmo que assim fosse no começo, o Dr. Fastolfe não podia deixar de amá-la: alguém desamparado entregue aos cuidados dele.
Mesmo que não houvesse nenhuma ligação biológica, mesmo que a senhora fosse um animal, digamos, ele acabaria por amá-la.
- Ah, o senhor acha? - perguntou, em tom amargo. - O senhor não conhece a força da indiferença em alguém como o Dr. Fastolfe. Se para melhorar seus conhecimentos precisasse eliminar minha vida, ele o faria sem a menor hesitação.
- Isso é ridículo, Dra. Vasilia. O tratamento que lhe deu foi tão bondoso e atencioso, que lembrava amor. Sei disso. A senhora... a senhora se ofereceu a ele.
- Ele lhe disse isso, não é? Sim, disse. Nunca, mesmo atualmente, ele parou para pensar se essa revelação poderia me embaraçar... Sim, ofereci-me a ele e por que não? Ele era apenas o único ser humano que eu realmente conhecia. Era só superficialmente gentil comigo e eu não compreendia seus verdadeiros objetivos. Foi um alvo natural para mim. Depois, também, ele tratou de me introduzir na estimulação sexual, sob condições controladas: os controles que ele instalou. Foi inevitável que eu finalmente me virasse para ele. Fui obrigada, pois não havia mais ninguém... e ele recusou.
- E odiou-o por isso?
- Não. No começo, não. Não durante anos. Apesar do meu desenvolvimento sexual ter sido reprimido e distorcido, cujos efeitos sinto até hoje, não o culpei. Eu não sabia o suficiente. Arranjei desculpas para ele. Estava ocupado. Tinha outras. Precisava de uma mulher mais velha. O senhor ficaria espantado com a minha inventividade para descobrir motivos para sua recusa. Só anos depois percebi que havia alguma coisa errada e tratei de descobri-la, de encará-la. "Por que ele me recusa?", perguntei.
"Me forçando poderia ter-me posto no caminho certo, resolveria tudo."
Vasilia fez uma pausa, engolindo, e cobriu os olhos com as mãos por um instante. Baley esperou, imóvel por causa do embaraço. Os robôs mantinham-se inexpressivos (incapazes, até onde Baley podia saber, de experimentar qualquer modificação nos dispositivos positrônicos que deveriam produzir uma sensação que se parecesse com o embaraço humano).
Ela prosseguiu, mais calma:
- Ele evitou a pergunta o mais que pôde, mas fui cada vez mais insistente. "Por que me recusa?". "Por que me recusa?". Ele não hesitava em fazer sexo. Vi em várias ocasiões... Lembro-me de ter imaginado se ele preferia homens. Quando não há crianças em causa, as preferências pessoais em casos assim não tinham a menor importância e alguns homens podiam ter nojo de mulheres e vice-versa. Não foi assim com esse homem que chama de meu pai. Ele gostava de mulheres, às vezes garotas, tão jovens como eu era quando me ofereci pela primeira vez. "Por que me recusava?". Finalmente respondeu-me... e duvido que saiba qual foi a resposta.
A moça parou e esperou, com ar irônico.
Baley mexeu-se, inquieto, e falou, num resmungo:
- Ele não quis ter relações sexuais com a filha?
- Ah, não seja bobo. Que diferença isso faz? Levando em conta que em Aurora raramente um homem sabe quem é sua filha, qualquer um que faça amor com qualquer mulher alguns decênios mais moça pode ser... Mas esqueça, é evidente. O que ele respondeu... ah, como lembro as palavras... foi: "Sua idiota! Se eu me meter com você dessa maneira, como posso manter minha objetividade... e de que me adiantaria continuar a estudá-la?."
"Nessa época, veja bem, eu sabia o interesse dele pelo cérebro humano. Comecei mesmo a seguir seus passos e por minha vez, estava me tornando roboticista. Trabalhei nesse sentido com Giskard e fiz experiências com a programação dele. Trabalhei muito bem, não foi, Giskard?”
- Foi, sim, Mocinha - replicou o robô.
- Mas pude constatar que aquele homem a quem o senhor chama de meu pai não me considerava um ser humano. Ele estava querendo me ver deformada para sempre, em vez de arriscar sua objetividade. Suas observações lhe significavam mais que minha normalidade. A partir daí, soube quem ele era, quem eu era... e abandonei-o.
O silêncio pairou, pesado, no ar.
A cabeça de Baley latejava levemente. Ele queria perguntar: a senhora não pode levar em conta o egocentrismo de um grande cientista? A importância de um grande problema?
Não poderia desculpar uma coisa dita talvez com irritação ao ser forçado a discutir o que não queria? A própria ira de Vasilia não era agora do mesmo tipo? A concentração de Vasilia em sua própria "normalidade" (o que quer que isso significasse para ela), excluindo talvez os dois problemas mais importantes com que se defrontava a humanidade - a natureza do cérebro humano e a colonização da Galáxia - não significava um egocentrismo muito menos desculpável?
Porém não podia fazer nenhuma dessas perguntas. Não sabia como, de modo a dar-lhes um senso real para aquela mulher, nem tinha a certeza de que iria compreendê-la, se ela respondesse.
Que estava ele fazendo naquele mundo? Não podia compreender-lhe os objetivos, qualquer que fosse a explicação. Nem eles poderiam compreender os seus.
Cansado, Baley disse:
- Lamento, Dra. Vasilia. Sei que está zangada, mas se puder conter um pouco sua raiva e levar em conta, em lugar dela, o caso do Dr. Fastolfe e do robô assassinado, não poderia a senhora ver que estamos lidando com duas coisas diferentes? O Dr. Fastolfe pode ter querido examiná-la de uma forma objetiva e calma, mesmo à custa da sua infelicidade, e ainda assim estar anos-luz afastado do desejo de destruir um robô humaniforme avançado.
Vasilia ficou rubra.
- O senhor não compreende o que estou lhe dizendo, terráqueo? - gritou. - Acha que falei aquilo tudo apenas porque penso que você ou outro qualquer esteja interessado na triste história da minha vida? Por falar nisso, supõe que me dá prazer me expor desta maneira?
"Conto-lhe isto apenas para mostrar-lhe que o Dr. Han Fastolfe, meu pai biológico, como o senhor nunca se cansa de frisar, destruiu Jander. Claro que o fez. Tenho evitado dizer isso porque ninguém, a não ser o senhor, foi bastante idiota para me perguntar e por causa de um resquício de consideração que tenho por aquele homem.”
Porém agora que me perguntou, digo, e por Aurora continuarei a dizer isso para quem quer que seja. Publicamente, se necessário.
"O Dr. Han Fastolfe destruiu Jander Panell. Tenho certeza disso. Não lhe basta?"
Baley olhou horrorizado para aquela mulher enlouquecida. Gaguejou e recomeçou:
- Não consigo compreender, Dra. Vasilia. Por favor, acalme-se e raciocine. Por que deveria o Dr. Fastolfe destruir o robô? Que tem isso a ver com a forma como a tratou?
Imagina ser uma espécie de represália contra a senhora?
Vasilia estava ofegante (Baley notou, distraído e sem intenção consciente, que apesar de Vasilia ser menos encorpada que Gladia, seus seios eram maiores) e lutou para manter a voz controlada.
- Já não lhe disse, terráqueo, que Han Fastolfe estava interessado em estudar o cérebro humano? Não hesitou em pô-lo sob tensão, visando a observar os resultados.
E preferia cérebros fora do comum, os de uma criança, por exemplo, a fim de acompanhar seu desenvolvimento. Qualquer um, menos um comum.
- Mas o que tem isso a ver com...
- Então pergunte a si mesmo por que ele se interessou pela estrangeira.
- Por Gladia? Perguntei-lhe e ele me disse. Ela o fazia lembrar-se da senhora, e a semelhança é de fato evidente.
- E quando o senhor me disse isso antes, achei graça e perguntei-lhe se acreditava nele. Torno a perguntar. Acredita?
- Por que não devo?
- Porque não é verdade. A semelhança pode ter-lhe atraído a atenção, mas o motivo real do interesse é que a estrangeira é... estrangeira. Ela foi educada em Solaria, sob a hipótese e axiomas sociais diferentes dos de Aurora. Portanto, ele poderia examinar um cérebro diferente dos nossos, o que lhe daria uma interessante perspectiva.
Não está compreendendo?... Falando nisso, por que ele está interessado no senhor, terráqueo? Ele é tão bobo que pense ser o senhor capaz de resolver um problema auroreano, quando o senhor nada sabe sobre Aurora?
Daneel tornou a intervir repentinamente e Baley sobressaltou-se ao som da voz dele.
- Dra. Vasilia - disse Daneel - o Colega Elijah solucionou um problema em Solaria, apesar de desconhecer completamente aquele planeta.
- É verdade - replicou Vasilia, carrancuda. - Todos os mundos viram isso naquele programa de hiperonda. E o raio pode cair, também, mas não acredito que Han Fastolfe ache que ele vai cair duas vezes no mesmo lugar. Não, terráqueo, o senhor o interessou, em primeiro lugar por ser da Terra. O senhor possui outro cérebro alienígena, que ele pode examinar e manipular.
- Certamente, Dra. Vasilia, a senhora não acredita que ele arriscasse matérias de importância vital para Aurora e mandasse buscar alguém que sabia ser inútil, apenas para examinar um cérebro incomum.
- Claro que ele faria. Não é esse o centro de tudo o que estou lhe dizendo? Não há crise atingindo Aurora que ele acredite, mesmo por um instante, ser tão importante quanto resolver o problema do cérebro. Posso lhe dizer exatamente o que ele responderá se lhe perguntar. Aurora pode erguer-se ou afundar, florescer ou apodrecer, e tudo isso será sem importância se comparado com o problema do cérebro, pois se os humanos realmente compreenderem, tudo o que foi perdido no decorrer de um milênio de decisões descuradas ou erradas será recuperado num decênio de desenvolvimento humano inteligentemente orientado pelo sonho dele de "psico-história". Ele usará o mesmo argumento para justificar qualquer coisa, mentiras, crueldade, tudo, dizendo apenas que tudo foi tentado para servir ao objetivo de adiantar o conhecimento do cérebro.
- Não posso imaginar que o Dr. Fastolfe seja cruel. É o mais gentil dos homens.
- Acha? Quanto tempo passou com ele?
- Poucas horas na Terra, há três anos - replicou Baley. - Um dia agora, aqui em Aurora.
- Um dia inteiro. Um dia inteiro. Convivi quase que constantemente com ele durante trinta anos e a partir daí, acompanhei sua carreira com atenção. E o senhor esteve com ele um dia inteiro, terráqueo? Bem, nesse único dia ele nada fez que o amedrontasse ou humilhasse?
Baley ficou calado. Pensou no ataque súbito com o codimentador, do qual foi salvo por Daneel, do Pessoal e suas dificuldades, graças à sua natureza oculta, a longa caminhada no Exterior, feita para testar sua capacidade de se adaptar ao ar livre.
- Sei que ele fez - insistiu Vasilia. - Seu rosto, terráqueo, não é a máscara de disfarce que o senhor pensa que é. Ele o ameaçou com a Sonda Psíquica?
- Ele a mencionou - disse Baley.
- Um dia... e já a mencionou. Presumo que o tenha perturbado?
- Sim.
- E não havia motivo para mencioná-la?
- Ah, havia, sim - respondeu Baley depressa. - Eu disse que tinha pensado numa coisa e esquecido, o que propiciou a sugestão de que a Sonda Psíquica podia ser usada para recuperar o pensamento.
- Não, não podia - afirmou Vasilia. - A Sonda Psíquica não pode ser usada com bastante delicadeza para isso... e se fosse tentado, as possibilidades seriam consideráveis de uma permanente avaria do cérebro.
- Certamente não seria, se manejada por um especialista: pelo Dr. Fastolfe, por exemplo.
- Por ele? Ele não tem o menor conhecimento da Sonda. Fastolfe é teórico e não técnico.
- Então por outra pessoa. Na verdade, não se referiu a si mesmo.
- Não, terráqueo. Por ninguém. Pense! Pense! Se a Sonda Psíquica pudesse ser usada em seres humanos com segurança por qualquer um e se Han Fastolfe estivesse preocupado com o problema da desativação do robô, então por que não sugeriu que a Sonda Psíquica fosse aplicada nele mesmo?
- Nele mesmo?
- Não me diga que isso não lhe ocorreu! Qualquer cabeça pensante chegaria à conclusão de que Fastolfe é culpado. O único ponto em favor de sua inocência é que ele próprio insiste nela. Bem, por que então ele não se oferece para provar sua inocência, submetendo-se à sondagem psíquica, mostrando que nenhuma parcela de culpa pode ser tirada dos recessos do seu cérebro? Ele sugeriu isso, terráqueo?
- Não, não sugeriu. Pelo menos a mim.
- Porque ele sabe com certeza que é perigosamente mortal. Mas não hesitou em sugerir no seu caso, apenas para observar como funciona seu cérebro sob pressão, como o senhor reage ao medo. Ou talvez, lhe tenha ocorrido que, apesar do perigo que a Sonda é para o senhor, possa fornecer-Me alguns dados interessantes, até onde seu cérebro terráqueo está envolvido. Diga-me então: isso não é crueldade?
Baley afastou a idéia com um gesto firme do braço direito:
- Como isso se aplica ao caso real: ao roboticídio?
- A solariana atraiu a atenção do meu antigo pai. Tinha um cérebro interessante... para seus objetivos. Portanto, deu-lhe o robô, Jander, para ver o que acontecia se uma mulher, não educada em Aurora, lidasse com um robô de aparência humana em todos os detalhes. Ele sabia que uma auroreana teria imediatamente relações sexuais com ele, sem se perturbar com isso. Confesso que eu teria um problema porque não fui educada normalmente, mas nenhuma auroreana comum teria. A solariana, por outro lado, ficaria muito Perturbada porque foi educada num mundo extremamente robotizado e tinha atitudes mentais rigidamente incomuns em relação aos robôs. A diferença, como vê, podia ser muito instrutiva para meu pai, que tentou com essas variações construir sua teoria do funcionamento do cérebro. Han Fastolfe esperou meio ano até que a solariana chegasse a ponto de poder talvez começar a fazer os primeiros movimentos de aproximação...
- Seu pai nada sabia sobre as relações entre Gladia e Jander - interrompeu-a Baley.
- Quem lhe disse isso, terráqueo? Meu pai? Gladia? Se ele naturalmente estava mentindo, ela provavelmente não sabia. Pode ter certeza de que Fastolfe sabia o que vinha acontecendo, tinha de saber, pois devia fazer parte do seu estudo de como um cérebro humano cedia sob as condições solarianas.
"E depois pensou, e estou tão certa disto como se lesse os pensamentos dele. no que poderia acontecer agora, no ponto em que a mulher estivesse exatamente começando a confiar em Jander, se subitamente, sem motivo, ela o perdesse. Ele sabia como uma auroreana reagiria. Sentiria desapontamento e depois procuraria um substituto, porém que faria uma solariana? Portanto, deu um jeito para pôr Jander fora de ação...”
- Destruir um robô tão valioso apenas para satisfazer uma curiosidade trivial?
- É monstruoso, não? Mas foi o que Han Fastolfe decidiu fazer. Portanto, volte a ele, terráqueo, e diga-lhe que seu joguinho acabou. Se até agora o planeta em geral não acreditou na culpa dele, vai certamente acreditar, depois do meu depoimento.
Por um longo momento, Baley ficou aturdido, enquanto Vasilia o olhava com uma espécie de prazer sombrio, o rosto duro e completamente diferente do de Gladia.
Nada havia a fazer...
Baley levantou-se, sentindo-se velho... muito mais velho que seus 45 anos padrão (idade de criança para aqueles auroreanos). Até ali, tudo o que fizera não tinha levado a nada. Pior ainda, a cada um dos seus movimentos, as cordas pareciam apertar-se em torno de Fastolfe.
Ergueu os olhos para o teto transparente. O sol estava bem alto, porém talvez já tivesse passado seu zênite, pois se apresentava muito pequeno, sendo obscurecido intermitentemente por nuvens esparsas. Vasilia percebeu o olhar para cima. Moveu o braço para um lugar do grande banco perto do qual se sentara e a transparência do teto cessou. Ao mesmo tempo, uma luz brilhante inundou a sala, com o mesmo tom levemente alaranjado do sol.
- Acho que a entrevista acabou - disse ela. - Não tenho mais motivos para vê-lo novamente... ou o senhor a mim, terráqueo. Talvez seja melhor o senhor deixar Aurora.
O senhor causou - sorriu sem alegria e disse as palavras seguintes quase brutalmente- bastante prejuízo a meu pai, embora menos do que ele merece.
Baley caminhou para a porta e seus dois robôs juntaram-se a ele. Giskard perguntou, em voz baixa:
- Sente-se bem, senhor?
Baley encolheu os ombros. Que poderia responder?
- Giskard! - gritou Vasilia. - Se o Dr. Fastolfe achar que não precisa mais de você, quer vir trabalhar comigo?
Giskard olhou-a, com ar tranqüilo.
- Se o Dr. Fastolfe permitir, virei. Mocinha. Ela sorriu, contente.
- Venha, por favor, Giskard. Sinto sempre saudades de você.
- Penso muito na senhora, Mocinha. Baley virou-se ao chegar à porta.
- Dra. Vasilia, a senhora tem um Pessoal que eu possa usar? A moça arregalou os olhos.
- Claro que não, terráqueo. Há pessoais comunitários aqui e ali no Instituto. Seus robôs poderão levá-lo.
Baley olhou e sacudiu a cabeça. Não era de espantar que ela não quisesse que um terráqueo infeccionasse suas dependências, mas ainda assim ficou indignada. Com raiva, mais que num tom racional, Baley disse:
- Dra. Vasilia, se eu fosse a senhora, não gostaria de falar na culpa do Dr. Fastolfe.
- E o que me impede?
- O perigo da descoberta de suas relações com Gremionis. O Perigo para a senhora.
- Não seja ridículo. O senhor admitiu que não houve trama entre mim e Gremionis.
- Na verdade, não. Concordei que parecia haver motivo para concluir não ter havido uma conspiração direta entre a senhora e Gremionis para destruir Jander. Permanece a possibilidade de uma trama indireta.
- O senhor está louco. O que é uma trama indireta?
- Não desejo discutir isso diante dos robôs do Dr. Fastolfe... a menos que a senhora insista. E por que insistiria? A senhora sabe muito bem o que eu quero dizer.
Não havia motivo para Baley pensar que ela aceitasse esse blefe. Ele simplesmente tornaria a situação ainda pior.
Porém ela não aceitou. Franzindo a testa, Vasilia retraiu-se.
Baley pensou: há, portanto, uma trama indireta, seja qual for, e isso a conterá até que descubra ser um blefe.
Um pouco mais animado, Baley falou:
- Repito, nada diga sobre o Dr. Fastolfe.
Mas, claro, não tinha idéia de quanto tempo ganhou: talvez pouquíssimo.
11 Gremionis
Estavam de volta ao carro: os três na frente, com Baley mais uma vez no meio, sentindo a pressão em ambos os lados. Baley ficou-lhes grato pelo cuidado infatigável que tinham com ele, apesar de serem máquinas, incapazes de desobedecer ordens.
E depois pensou: por que rejeitá-los com a palavra "máquinas"? São máquinas boas num universo de gente muitas vezes má. Não tenho o direito de preferir a subcategoria máquinas versus gente a bons versus maus. E Daneel, pelo menos, para mim não é máquina.
- Preciso tornar a perguntar-lhe, senhor: sente-se bem? - falou Giskard.
Balançando a cabeça, Baley replicou:
- Muito bem, Giskard. Muito contente por estar aqui fora com vocês.
O céu se apresentava, em sua quase totalidade, branco: realmente branco. Soprava um suave vento fresco, perfeitamente sentido quando entraram no carro.
- Colega Elijah - disse Daneel - prestei muita atenção à conversa entre você e a Dra. Vasilia. Não desejo fazer nenhum comentário desfavorável ao que ela disse, porém preciso dizer-lhe que, segundo tenho observado, o Dr. Fastolfe é um ser humano generoso e educado. Ele jamais, que eu saiba, foi deliberadamente cruel, nem, até onde posso julgar, sacrificou o bem-estar básico de um ser humano às necessidades da sua curiosidade.
Baley examinou o rosto de Daneel, que lhe deu de certa maneira a impressão de grande sinceridade.
- Você poderia - perguntou - dizer alguma coisa contra o Dr. Fastolfe, mesmo que ele de fato fosse cruel e imprudente?
- Eu poderia ficar calado.
- Mas você ficaria?
- Se mentindo eu atingisse a Dra. Vasilia, lançando uma dúvida injustificável sobre sua veracidade, e se mantendo-me em silêncio prejudicasse o Dr. Fastolfe, dando nova feição às acusações verdadeiras contra ele, e se ambos os dados fossem para mim iguais em intensidade, então eu teria necessidade de permanecer calado. Tudo sendo eqüitativamente igual, o dano produzido por uma ação supera em geral o resultante da inação.
- Então - replicou Baley - apesar da Primeira Lei estabelecer: "Um robô não pode causar dano a um ser humano ou, pela inação, permitir que um ser humano seja ferido", as duas metades da lei não são iguais? Uma falta decorrente de ação, diz você, é maior que uma resultante de omissão.
- O texto da lei é apenas uma descrição aproximada das constantes variações da força positronomotiva das circunvoluções do cérebro robótico, Colega Elijah. Não tenho suficiente conhecimento para descrever o assunto matematicamente, porém conheço minhas tendências.
- E elas são sempre escolher não fazer a fazer, se o dano for em geral igual em ambas as direções?
- Em geral. E sempre escolher a verdade em vez da não-verdade, se o dano for semelhante em ambas as direções. Em geral, quero dizer.
- E nesse caso, uma vez que você refuta a Dra. Vasilia, causando-lhe dano por isso, só o faz porque a Primeira Lei é suficientemente atenuada pelo fato de que você está dizendo a verdade?
- Exatamente, Colega Elijah.
- Contudo, o fato é que você diria o que disse, apesar de ser mentira... desde que o Dr. Fastolfe o instruísse com a necessária intensidade para que dissesse aquela mentira, quando necessário, e recusasse confessar que tinha sido instruído para isso.
Houve um silêncio e depois Daneel replicou:
- Exatamente, Colega Elijah.
- É uma complicação danada, Daneel... mas ainda acredita que o Dr. Fastolfe não matou Jander Panell?
- Minha experiência com ele diz que falou a verdade, Colega Elijah, e não iria causar dano ao amigo Jander.
- No entanto, o próprio Dr. Fastolfe apresentou um motivo poderoso para isso, enquanto a Dra. Vasilia expôs uma razão totalmente diversa, uma que é exatamente tão forte e mais infame que a primeira. - Baley refletiu por um instante. - Se o público tivesse conhecimento dos dois motivos, a crença da culpa do Dr. Fastolfe seria universal.
Virou-se subitamente para Giskard.
- E você, Giskard? Você conhece o Dr. Fastolfe há mais tempo que Daneel. Concorda em que ele não podia ter cometido o crime e destruído Jander, baseado no que sabe do caráter do Dr. Fastolfe?
- Concordo, senhor.
Baley examinou o robô, indeciso. Era menos avançado que Daneel. Até onde podia ser acreditado como uma testemunha confirmadora? Não poderia ser compelido a acompanhar
Daneel para o lado que este escolhesse?
- Também conheceu a Dra. Vasilia, não? - perguntou.
- Conheci-a muito bem - retrucou Giskard.
- E gosta dela, suponho.
- Ela esteve aos meus cuidados durante anos e essa tarefa nunca me perturbou.
- Apesar dela interferir em sua programação?
- Ela era muito hábil.
- Ela mentiria a respeito do pai... quero dizer, a respeito do Dr. Fastolfe?
Giskard titubeou.
- Não, senhor. Não mentiria.
- Então quer dizer que ela falou a verdade?
- Não exatamente, senhor. O que estou dizendo é que ela acredita dizer a verdade.
- Porém como pode ela acreditar verdadeiras as coisas terríveis sobre o pai se na realidade ele é a espécie de pessoa que Daneel afirma que é?
Giskard retrucou, calmamente:
- Ela está magoada por vários fatos, acontecidos em sua juventude, cuja culpa atribui ao Dr. Fastolfe e pelos quais ele pode ter sido involuntariamente responsável... de um certo modo. Tenho a impressão de que esses acontecimentos não deveriam ter as conseqüências que tiveram. Contudo, os seres humanos não são governados pelas estritas leis da robótica. Portanto, é difícil avaliar as complexidades dos seus motivos, na maior parte das vezes.
- Muito verdadeiro - resmungou Baley.
- O senhor pensa - perguntou Giskard - que a tarefa de provar a inocência do Dr. Fastolfe é sem esperança?
Baley franziu as sobrancelhas.
- Talvez. Como está, não vejo saída... e se a Dra. Vasilia falar o que ameaçou fazer...
- Mas o senhor a proibiu de falar. Explicou-lhe que seria perigoso para ela mesma.
Baley sacudiu a cabeça.
- Eu estava blefando. Não sabia mais o que dizer.
- Então pretende desistir?
Ante a pergunta, Baley replicou violentamente:
- Não! Se fosse apenas por Fastolfe, talvez. Afinal de contas, que dano físico lhe adviria? Roboticídio nem mesmo é crime, evidentemente, não passa de uma transgressão.
No máximo, perderia a influência política e talvez ficasse incapacitado para continuar durante algum tempo suas atividades científicas. Eu lamentaria ver isso acontecer, porém se nada há mais que eu possa fazer, então não há.
"E se fosse apenas por mim, também poderia desistir. O fracasso mancharia a minha reputação, mas quem pode construir uma casa de tijolos sem tijolos? Voltaria para a Terra um tanto deslustrado, passaria a ter uma vida miserável e apagada, mas é uma possibilidade que todos os terráqueos, homens ou mulheres, têm de enfrentar.”
Homens melhores do que eu já sofreram isso, também injustamente.
"Contudo, é um problema da Terra. Se eu falhar, juntamente com a dolorosa perda para mim e para o Dr. Fastolfe, todo o povo da Terra verá o fim das suas esperanças de abandonar o globo terrestre e se espalhar pela Galáxia. Por esse motivo, não posso fracassar e devo continuar, haja o que houver, enquanto não for fisicamente expulso deste mundo."
Tendo terminado quase num sussurro, repentinamente levantou os olhos e disse, num tom irritado:
- Por que estamos parados aqui, Giskard? Você ligou o motor para se divertir?
- Com o devido respeito, senhor - respondeu Giskard - o senhor não me disse para onde levá-lo.
- É verdade!... Desculpe, Giskard. Primeiro me levem para o pessoal Comunitário a que a Dra. Vasilia se referiu. Vocês dois podem estar imunes a coisas assim, mas eu tenho uma bexiga que precisa ser esvaziada. Depois descubra um lugar perto, onde eu possa comer. Tenho um estômago que precisa ser enchido. E depois disso...
- Sim, Colega Elijah? - perguntou Daneel.
- Para lhe falar a verdade, Daneel, não sei. Contudo, depois de eu ter satisfeito essas necessidades puramente físicas, pensarei em alguma coisa.
E como Baley desejou poder acreditar nisso.
O veículo não deslizou pelo terreno durante muito tempo. Parou, sacudindo um pouco, e Baley sentiu a estranha contração habitual do estômago. A pequena oscilação lembrou-o de que se encontrava num veículo, afastando a sensação temporária de estar a salvo dentro de paredes e entre robôs. Pelo vidro dianteiro e pelos laterais (e traseiro se virasse a cabeça), via a brancura do céu e o verde da folhagem, tudo indicando o Exterior: isto é, o nada. Engoliu, preocupado.
Tinham parado num pequeno edifício.
Baley perguntou:
- É o Pessoal Comunitário?
- É o mais próximo dentre os existentes no recinto do Instituto, Colega Elijah - informou Daneel.
- Você o achou logo. Essas construções também estão incluídas no mapa implantado na sua memória?
- Exatamente, Colega Elijah.
- Este pode ser usado agora?
- Pode, Colega Elijah, e ao mesmo tempo por três ou quatro.
- Há espaço para mim?
- Provavelmente, Colega Elijah.
- Bem, nesse caso, deixe-me sair. Irei ver...
Os robôs não se mexeram. Giskard se antecipou:
- Senhor, não vamos poder entrar.
- Sim, sei disso, Giskard.
- Não teremos condições de protegê-lo adequadamente, senhor.
Baley franziu a testa. O robô inferior tinha, naturalmente, o cérebro mais rígido e Baley repentinamente viu o perigo de não lhe ser permitido afastar-se da vigilância deles e, portanto, não lhe deixarem entrar no Pessoal. Deu à voz um tom de pressa e virou-se para Daneel, do qual podia esperar uma melhor compreensão das necessidades humanas.
- Não posso fazer nada, Giskard... Daneel, não tenho escolha. Deixe-me sair do carro.
Giskard olhou para Baley, sem mover-se, e durante um horrível momento o detetive pensou que o robô iria sugerir que se aliviasse no campo ali mesmo: ao ar livre, como um animal.
O momento passou. Daneel sugeriu:
- Acho que podemos deixar que o Colega Elijah aja como quiser a esse respeito.
Então Giskard pediu a Baley:
- Se puder esperar um pouquinho, senhor, primeiro Vou me aproximar do prédio.
Baley fez uma careta. Giskard caminhou sem pressa para o edifício e depois, deliberadamente, deu-lhe a volta. Baley podia ter previsto que tão logo Giskard desaparecesse de vista sua urgência iria aumentar.
Procurou distrair os nervos, olhando o panorama em volta. Após o exame, percebeu fios muito finos no ar, aqui e ali: fios escuros de cabelos quase invisíveis no ar, contra o céu branco. No começo, não os viu. O que lhe chamou a atenção primeiro foi um objeto oval deslizando por entre as nuvens. Percebeu que era um veículo e que não estava flutuando, mas suspenso num longo fio horizontal. Acompanhou o fio com os olhos de um lado para outro, notando outros semelhantes. Depois descobriu outro veículo mais longe... e ainda outro mais afastado. O mais distante dos três era uma mancha indistinta, cuja natureza compreendeu apenas porque tinha visto os mais próximos.
Eram, sem dúvida, carros-cabo para transporte interno de uma parte do Instituto de Robótica para outra.
Como tudo era espalhado, pensou Baley. Como o Instituto consumia espaço desnecessariamente.
Apesar disso, ao agir assim, não consumia a superfície. Os edifícios eram suficientemente espaçados, fazendo com que o verde aparecesse intocado e a vida animal e vegetal continuasse (imaginou Baley) como se tudo estivesse vazio.
Solaria, lembrou Baley, tinha sido vazio. Não havia dúvida de que todos os mundos Espaciais eram vazios, a começar por Aurora, o mais habitado, tão vazio, mesmo ali na região mais construída do planeta. Aliás, mesmo a Terra, fora das Cidades, era vazia.
Mas havia as Cidades e Baley sentiu um agudo ataque de saudade, que teve de afastar.
- Ah, o amigo Giskard terminou sua inspeção - comentou
Daneel.
Giskard estava de volta e Baley falou, asperamente:
- Então? Você terá a generosidade de me permitir... Parou. Por que tinha de gastar sua ironia com a pele impenetrável de um robô?
- O Pessoal está desocupado - disse Giskard.
- Ótimo! Então saiam da frente.
Baley abriu a porta do aerocarro e pisou a estreita passagem de cascalho. Andou rapidamente, seguido de Daneel.
Quando chegou na porta do prédio, Daneel, calado, mostroulhe o contato para abri-la. Daneel não se atreveu a tocá-lo. Presumivelmente, pensou Baley, tocar o contato sem instruções precisas indicaria a intenção de entrar... e mesmo a intenção não era permitida.
Baley apertou o botão e entrou, deixando os robôs sozinhos.
Só após se ver no Pessoal é que lhe ocorreu que Giskard possivelmente não tinha examinado o interior para ver se estava desocupado, que o robô devia ter achado isso pela aparência externa: um procedimento, no mínimo, duvidoso.
E Baley percebeu, com desconforto, que pela primeira vez estava isolado dos seus protetores... e que eles, no outro lado da porta, não poderiam entrar facilmente se alguma coisa lhe acontecesse subitamente. E se ele, naquele instante, não estivesse só? E se algum inimigo tivesse sido avisado por Vasilia, que sabia estar ele à procura de um Pessoal, e se esse inimigo estivesse naquele instante escondido no prédio?
Baley verificou súbita e desconfortavelmente que (como não aconteceria na Terra) estava totalmente desarmado.
Na verdade, o prédio não era grande. Tinha pequenos mictórios, lado a lado, meia dúzia deles, pias, também alinhadas, igualmente meia dúzia. Não havia chuveiros, toalhas, tampouco aparelhos de barbear.
Havia meia dúzia de boxes, separados por tabiques, cada um com uma portinha. Talvez não houvesse ninguém dentro...
As portas não iam até o chão. Andando silenciosamente, curvou-se e deu uma olhada sob cada porta, procurando pernas. Depois se aproximou de cada porta, experimentando-as, empurrando-as, tenso, pronto a fechá-las ao menor sinal de qualquer coisa adversa e a correr para a porta que levava ao Exterior.
Todos os compartimentos se encontravam vazios.
Olhou em volta, para ter certeza de que não havia outros esconderijos.
Nada encontrou.
Foi até à porta que dava para o Exterior e não viu qualquer maneira de trancá-la. Pensou, então, que naturalmente não tinha sentido trancá-la. O Pessoal era para uso de muita gente ao mesmo tempo. Todos deveriam poder entrar quando necessitassem.
Mas não podia procurar outro, pois o perigo existia em todos... e além disso não podia esperar mais.
Durante um momento, foi incapaz de decidir que mictório usar. Podia servir-se de qualquer deles. E uma outra pessoa também podia.
Decidiu-se pelo mais próximo e, cônscio do vazio em volta, sentiu imediatamente a pressão da bexiga presa. Sentia a necessidade, mas teve de esperar, impaciente, que a sensação de apreensão diante da possível entrada de outros se dissipasse.
Não temia mais a entrada de inimigos e sim a de qualquer um.
Então pensou: os robôs, no mínimo, retardarão a entrada de alguém. com esse pensamento, procurou relaxar...
Depois de urinar, grandemente aliviado, ao virar-se para uma pia, ouviu uma voz meio esganiçada, um tanto tensa.
- É Elijah Baley?
Baley retesou-se. Apesar de toda a sua apreensão e precauções, não tinha percebido a entrada de alguém. No fim, tinha ficado inteiramente absorvido pelo simples ato de esvaziar a bexiga, uma coisa que não devia ocupar a mais ínfima parte de sua mente consciente (Estaria ficando velho?).
Na verdade, não havia nenhuma espécie de perigo na voz que ouvia. Estava isenta de ameaça. Podia ser que Baley simplesmente tivesse a certeza - e confiança interiormente - de que Daneel, pelo menos, se não Giskard, não teria permitido o perigo.
O que aborreceu Baley foi apenas a entrada. Em toda a sua vida, nunca tinha sido abordado ou ficado sozinho com um homem num Pessoal. Na Terra, era o maior tabu, e em Solaria (e, até agora, em Aurora) só tinha usado Pessoais Individuais.
Ouviu novamente a voz. Impaciente.
- Ora! Tem de ser Elijah Baley.
Baley virou-se lentamente. Era um homem de altura média, elegantemente vestido com uma roupa de vários tons de azul combinando. Tinha a pele e o cabelo claros e um bigodinho levemente mais escuro que o cabelo. Baley ficou olhando, fascinado, para a pequena faixa de pêlos no lábio superior. Era a primeira vez que via um Espacial de bigode.
Baley respondeu (e cheio de vergonha por falar num Pessoal):
- Sou Elijah Baley.
Sua voz, mesmo aos seus ouvidos, soou como um sussurro áspero e inconvincente.
Certamente, o Espacial não estava convencido. Semicerrando os olhos e fixando-o, disse:
- Os robôs lá fora disseram que Elijah Baley estava aqui, mas o senhor não se parece com o que se apresentou na hiperonda. Nada mesmo.
Aquela dramatização idiota! pensou Baley, irritado. Ninguém o encontraria, para o resto da vida, sem ter sido envenenado preliminarmente por aquela representação impossível. Ninguém o aceitaria de saída como um ser humano, como um ser humano falível... e quando descobrissem sua falibilidade, passariam, desapontados, a considerá-lo um idiota.
Virou, cheio de irritação, para a pia, molhou as mãos e depois sacudiu-as no ar, enquanto imaginava onde poderia estar o jato de ar quente. O Espacial apertou o botão e surgiu no ar um pedacinho de penugem absorvente.
- Obrigado - disse Baley, pegando-o. - Eu não estava no espetáculo da hiperonda. Foi um ator.
- Sei disso, mas deveriam ter escolhido um mais semelhante, não acha? - Parecia estar envergonhado. - Preciso falar com o senhor.
- Como conseguiu passar por meus robôs?
Outra vez, deu a impressão de se sentir envergonhado.
- Quase não consegui - replicou o Espacial. - Eles tentaram me impedir e eu só tinha um robô comigo. Tive de fingir uma emergência para entrar e eles me examinaram.
Puseram as mãos sobre mim para verificar se eu estava com alguma coisa perigosa. Eu o teria processado... se o senhor não fosse terráqueo. O senhor não pode dar a robôs essa espécie de ordens que coíbem um ser humano.
- Lamento - disse Baley, secamente - mas não sou eu quem dá ordens a eles. Em que posso servi-lo?
- Preciso falar-lhe.
- Está falando... Quem é o senhor? O outro pareceu hesitar e depois disse:
- Gremionis.
- Santirix Gremionis?
- Exatamente.
- Deseja falar comigo?
Por um momento Gremionis ficou olhando para Baley, evidentemente embaraçado. Depois resmungou:
- Bem, já que estou aqui... se não se importa... posso... - e deu um passo para a fileira de mictórios.
Baley percebeu, nauseado, o que Gremionis pretendia fazer. Virou-se apressadamente e disse:
- Esperarei lá fora.
- Não, não, não vá - pediu Gremionis num tom desesperado, quase um guincho. - Não vai demorar nada! Por favor!
Acontece que Baley queria agora, quase tão desesperadamente, falar com Gremionis e não pretendia fazer nada que pudesse ofendê-lo, impedindo-o de falar, por outro
lado, não tinha nenhuma vontade de atender ao pedido dele.
Permaneceu de costas e franziu os olhos, quase fechando-os numa espécie de reflexão horrorizada. Somente quando Gremionis se aproximou fazendo a volta em torno dele, amassando uma toalha felpuda, Baley pôde tornar a se acalmar um pouco.
- Que quer falar comigo? - tornou a perguntar.
- Gladia... a solariana... Gremionis hesitou e parou.
- Conheço Gladia - replicou Baley friamente.
- Gladia me procurou - tridimensionalmente, sabe - e me disse que o senhor fez perguntas a meu respeito. Ela queria saber se eu tinha de algum modo maltratado o robô que lhe pertencia... um com aspecto humano, como um dos que está lá fora...
- Bem, o senhor maltratou, Sr. Gremionis?
- Não! Eu nem mesmo sabia que Gladia possuía um robô desse tipo até... O senhor lhe disse que eu maltratei?
- Eu só estava fazendo perguntas, Sr. Gremionis. Gremionis tinha fechado o punho direito e esmurrava nervosamente a mão esquerda. Falou energicamente:
- Não quero ser acusado falsamente... sobretudo quando uma acusação falsa pode afetar minha relação com Gladia.
- Como me encontrou? - perguntou Baley.
- Ela me interrogou sobre o tal robô - replicou Gremionis - e disse que o senhor quis saber a meu respeito. Eu tinha sabido que o senhor foi chamado a Aurora pelo Dr. Fastolfe para solucionar esse... quebra-cabeça do robô. Foi no noticiário da hiperonda. E...
As palavras surgiam como se estivessem vindo à tona com a maior dificuldade.
- Continue - disse Baley.
- Eu precisava falar com o senhor e explicar-lhe que nada tinha a ver com o tal robô. Nada! Gladia não sabia onde o senhor estava, mas pensei que o Dr. Fastolfe saberia.
- Então comunicou-se com ele?
- Ah, eu... eu acho que não teria coragem para isso... Ele é um cientista muito importante. Porém Gladia falou-lhe em meu nome. Ela é... dessa espécie de gente.
O doutor informou-a de que o senhor tinha ido visitar a filha dele, Dra. Vasilia Aliena. Foi bom, porque eu a conheço.
- Sim, sei disso - replicou Baley. Gremionis ficou ansioso.
- Como o senhor... O senhor também fez-lhe perguntas a meu respeito? - Sua ansiedade estava se transformando em sofrimento. - Finalmente videofonei para a Dra. Vasilia e ela me disse que o senhor tinha acabado de sair e que eu provavelmente o encontraria em algum Pessoal Coletivo, e este é o mais próximo da moradia dela. Eu tinha a certeza de não haver motivo para que o senhor procurasse um mais distante. Quero dizer, por que faria isso?
- Raciocinou corretamente, mas como chegou aqui tão depressa.
- Trabalho no Instituto de Robótica e moro aqui. Minha motopatinete me trouxe rapidamente.
- Veio sozinho?
- Vim! com um único robô. A motopatinete tem dois lugares.
- E seu robô está esperando lá fora?
- Está.
- Diga-me novamente por que me quer ver.
- Quero ter certeza de que o senhor não pensa que eu tenha alguma coisa a ver com o tal robô. Nunca ouvi falar nele até esse negócio todo explodir no noticiário.
- Assim, posso falar com o senhor?
- Agora?
- Sim, mas não aqui - disse Baley, com firmeza. - Vamos sair.
Como era estranho, pensou Baley, que ficasse tão contente em sair do abrigo das paredes para o Exterior. Havia alguma coisa mais completamente discrepante naquele.
Pessoal que em qualquer outra coisa que tivesse encontrado, tanto em Aurora como em Solaria. Ainda mais desconcertante que o indiscriminado uso planetário, tinha sido o horror de ser procurado aberta e casualmente... o horror do comportamento que não estabelecia nenhuma diferença entre aquele lugar e sua finalidade com qualquer outro lugar e finalidade. Os livros-filmes que tinha examinado não se referiam a nada semelhante. Evidentemente, como Fastolfe tinha frisado, não haviam sido escritos para terráqueos e sim para auroreanos e, em menor extensão, para possíveis turistas dos outros 49 mundos Espaciais. Afinal de contas, os terráqueos quase nunca visitavam os mundos Espaciais e muito menos Aurora. Não são bem-vindos. Então por que deviam ser dirigidos a eles?
E por que os livros-filmes deveriam estender-se sobre o que todos sabiam? Por que amolar com dados como ser Aurora esférica, a água molhada e que um homem podia se dirigir a outro livremente num Pessoal?
Mas isso não era uma zombaria com o nome do prédio? Baley sentiu-se incapaz de deixar de pensar que os Pessoais Femininos na Terra eram, como Jessie freqüentemente lhe dissera, onde as mulheres conversavam incessantemente, sem sentir qualquer desconforto. Por que as mulheres, e os homens não? Baley nunca pensara seriamente nisso antes, aceitando-o apenas como costume - inquebrável - mas, se as mulheres podiam, por que não os homens?
Não importava. O pensamento só afetou seu intelecto e não o que quer que existisse em sua mente capaz de fazê-lo sentir-se oprimido e profundamente desgostoso com a idéia. Repetiu:
- Vamos sair. Gremionis protestou:
- Mas seus robôs estão lá.
- Estão. E daí?
- Porém é uma coisa que quero dizer-lhe em particular, de homem a homem - terminou, gaguejando na frase.
- Suponho que quis dizer de espacial para terráqueo.
- Como quiser.
- Meus robôs são necessários. São meus companheiros de investigação.
- Mas isto nada tem a ver com a investigação. É o que estou tentando dizer-lhe.
- Eu julgarei se tem ou não - replicou Baley, com firmeza, caminhando para fora do Pessoal.
Gremionis hesitou e depois acompanhou-o.
Daneel e Giskard estavam esperando: imóveis, inexpressivos, pacientes. Baley pensou ter descoberto um traço de preocupação no rosto de Daneel, mas, por outro lado, achou que podia estar apenas lendo essa emoção naquelas feições humanas de um ser não humano. Giskard, o de aspecto menos humaniforme, nada mostrou, claro, mesmo ao mais interessado.
Um terceiro robô também os aguardava: presumivelmente o de Gremionis. Era ainda mais simples de aparência que Giskard e tinha um ar andrajoso. Era claro que Gremionis não estava muito bem.
Daneel falou, de uma forma que Baley automaticamente considerou ser de grande alívio:
- Sinto-me contente por vê-lo bem, Colega Elijah.
- Muito bem. Contudo, estou curioso a respeito de uma coisa. Se tivesse me ouvido gritar assustado, lá dentro, vocês teriam entrado?
- Imediatamente, senhor - respondeu Giskard.
- A necessidade de proteger um ser humano, o senhor, em especial, seria prioritária, senhor.
- É isso mesmo, Colega Elijah - confirmou Daneel.
- Fico contente - disse Baley. - Este aqui é Santirix Gremionis. Sr. Gremionis. apresento-lhe Daneel e Giskard.
Ambos os robôs curvaram a cabeça gravemente. Gremionis apenas os olhou e ergueu a mão num gesto de agradecimento indiferente.
Não se deu ao trabalho de apresentar seu próprio robô.
Baley olhou em volta. A luz tinha diminuído a olhos vistos, o vento estava áspero, o ar mais frio e o sol completamente escondido pelas nuvens. Havia um resplendor nos arredores que não parecia afetar Baley, que continuava a se deliciar por ter fugido do Pessoal. Sentiu-se incrivelmente animado por ter realmente experimentado a sensação de contentamento por estar no Exterior. Sabia que era uma situação especial, mas era um começo e não podia deixar de considerar uma vitória.
Baley estava se virando para Gremionis, a fim de retomar a conversa, quando seus olhos surpreenderam um movimento. Atravessando o relvado, vinha uma mulher, acompanhada de um robô. Caminhava na direção deles, embora parecesse totalmente alheia à sua presença. Estava indo diretamente para o Pessoal.
Baley estendeu o braço na direção da mulher, como que querendo para-la, apesar dela ainda estar a trinta metros de distância, e resmungou:
- Ela não sabe que é um Pessoal masculino?
- Como? - disse Gremionis.
A mulher continuou a se aproximar, enquanto Baley permaneceu olhando, completamente aturdido. Finalmente, o robô da mulher parou ao lado, esperando, e a mulher entrou no prédio.
Baley disse, desanimado:
- Ela não pode entrar ali.
- Como não? - retrucou Gremionis. - É coletivo.
- Mas é para homens.
- É para gente - replicou Gremionis, agora completamente confuso.
- Para ambos os sexos? com certeza não está dizendo isso.
- Para qualquer ser humano. Claro que estou dizendo isso! Como queria que fosse! Não compreendo.
Baley afastou-se. Poucos minutos antes, ele tinha pensado que uma conversa num Pessoal era o cúmulo do mau gosto, das Coisas Proibidas.
Se tivesse tentado pensar em coisa ainda pior, jamais teria imaginado a possibilidade de encontrar uma mulher num Pessoal. As convenções da Terra exigiam que ele ignorasse a presença de outros nos grandes Pessoais coletivos daquele mundo, porém, nem todas as convenções jamais inventadas lhe impediam de saber se uma pessoa passando por ele era homem ou mulher.
E se, quando ele estava no Pessoal, uma mulher tivesse entrado, casualmente, indiferentemente, como essa tinha acabado de fazer? Ou, pior ainda, se ele tivesse entrado num Pessoal e desse com uma mulher lá?
Não podia calcular qual seria sua reação. Nunca tinha examinado a possibilidade de se encontrar só nessa situação, porém considerou a idéia totalmente intolerável.
E os livros-filmes também nada lhe tinham informado a respeito.
Tinha visto os filmes com o objetivo de não iniciar a investigação no desconhecimento total da vida auroreana... e eles o tinham deixado na completa ignorância do que era importante.
Então, como podia enfrentar aquele intrincado quebra-cabeça tríplice da morte de Jander quando, a cada passo, via-se mergulhado em ignorância?
Pouco antes, tinha-se sentido vitorioso por causa do relativo domínio dos medos do Exterior, porém agora estava enfrentando a sensação de desconhecer tudo, até mesmo a natureza da sua ignorância.
Foi então, enquanto lutava para não retratar a mulher passando pelo espaço anteriormente ocupado por ele mesmo, que chegou quase ao desespero total.
Giskard tornou a falar (e de uma forma que foi possível detectar preocupação em suas palavras... se não no tom):
- Não se sente bem, senhor? Precisa de ajuda? Baley resmungou:
- Não, não, estou bem... Mas vamos embora. Estamos atrapalhando as pessoas que querem usar este prédio.
Caminhou depressa para o aerocarro, parado na faixa além do caminho de cascalho. No outro lado, havia um pequeno veículo de duas rodas, com dois assentos, um atrás do outro. Baley concluiu que era a patinete de Gremionis.
Baley percebeu que sua sensação de depressão e sofrimento tinha se acentuado pelo fato de sentir fome. Já passara da hora do almoço e ele estava em completo jejum.
Virou-se para Gremionis.
- Conversemos... mas, se não se importa, faremos isso almoçando. Quero dizer, se o senhor ainda não almoçou... e se não se importar de comer comigo.
- Onde vai almoçar?
- Não sei. Onde se almoça no Instituto?
- Não na Sala de Jantar Coletiva. Lá não poderemos conversar - replicou Gremionis.
- Sugere uma alternativa?
- Venha à minha casa - disse Gremionis apressadamente. - Não é das mais elegantes daqui. Não sou um dos seus importantes executivos. Contudo, tenho alguns robôs serviçais e podemos sentar numa mesa decente... Faremos assim: Vou na minha patinete com Brundij, meu robô, sabe?, e o senhor me seguirá. O senhor terá de ir devagar, pois minha casa fica a pouco mais de um quilômetro daqui. Levaremos uns dois ou três minutos.
Afastou-se meio apressado e ansioso. Baley viu-o ir-se e pensou haver nele qualquer coisa de desajeitamento juvenil. Realmente, não era fácil avaliar sua idade, os Espaciais não mostram a idade e Gremionis podia facilmente ter 50 anos. Porém agia como jovem, quase como um terráqueo juvenil. Baley não sabia exatamente o que, mas havia nele alguma coisa que dava essa impressão.
Baley virou-se repentinamente para Daneel:
- Conhece Gremionis, Daneel?
- Jamais o encontrei, Colega Elijah.
- E você, Giskard?
- Encontrei-o uma vez, senhor, mas de passagem.
- Sabe alguma coisa sobre ele, Giskard?
- Nada que não seja superficial, senhor.
- Idade? Personalidade?
- Não, senhor.
- Pronto - gritou Gremionis.
Sua patinete estava zumbindo um tanto asperamente. Era claro que não possuía jato. As rodas não se erguiam do solo. Brundij estava sentado detrás de Gremionis.
Giskard, Daneel e Baley tornaram a entrar depressa no aerocarro.
Gremionis partiu num amplo círculo, o vento agitando seus cabelos para trás e Baley teve a súbita sensação de como seria o vento quando alguém viajava num veículo aberto, como uma patinete. Ficou grato por estar completamente encerrado num aerocarro, aquilo lhe pareceu repentinamente uma forma muito mais civilizada de viajar.
A patinete ficou horizontal e partiu com um barulho abafado. Gremionis sacudiu a mão, convidando-os a segui-lo. O robô às suas costas conservava o equilíbrio com uma facilidade quase negligente, sem segurar a cintura de Gremionis, como Baley tinha a certeza de que um humano precisaria fazer.
O aerocarro seguiu atrás. Embora o suave movimento para a frente da patinete parecesse muito veloz, devia-se isso ao seu pequeno tamanho. O aerocarro tinha dificuldade de manter a velocidade bastante reduzida para não ultrapassá-lo.
- Novamente uma coisa me confunde - disse Baley, pensativo.
- Que coisa, Colega Elijah? - perguntou Daneel.
- Vasilia chamou esse Gremionis desprezivelmente de "barbeiro". Evidentemente, trabalha com cabelo, roupas e outros materiais de adorno individual humano. Por que então ele tem um estabelecimento no terreno do Instituto de Robótica?
Ainda Gremionis
Poucos minutos depois, Baley entrava na quarta casa auroreana que via desde sua chegada ao planeta, havia um dia e meio: a de Fastolfe, a de Gladia, a de Vasilia e agora a de Gremionis.
Esta parecia menor e mais banal que as outras, apesar de mostrar-se ao olhar inexperiente de Baley a respeito das coisas auroreanas, de construção recente. A marca representativa das moradias auroreanas - os nichos para robôs - estavam, contudo, presentes. Tão logo entraram, Giskard e Daneel dirigiram-se para dois que estavam vagos e ficavam de frente para a sala, imóveis e silenciosos. Brundij, o robô de Gremionis, dirigiu-se a uma terceira cavidade, com presteza quase igual.
Não houve sinal de dificuldade na escolha ou a tendência de um nicho ser disputado por dois robôs, mesmo que momentaneamente. Baley ficou pensando como os robôs evitavam conflitos e achou que deveria haver comunicação entre eles, de uma forma subliminal para os seres humanos. Era uma coisa (caso se lembrasse) sobre a qual precisava consultar Daneel.
Baley reparou que Gremionis também estava examinando os nichos.
Gremionis levou a mão ao lábio superior e, durante um momento, seu indicador alisou o bigodinho. Falou, meio indeciso:
- Seu robô, o de aparência humana, não me parece dever estar no nicho. É Daneel Olivaw, não é? O robô do Dr. Fastolfe?
- É - replicou Baley. - Também participou do hiperdrama.
Ou pelo menos um ator... que desempenhou seu papel.
- Sim, lembro.
Baley notou que Gremionis - como Vasilia, Gladia e Fastolfe - mantinha uma certa distância. Parecia haver um campo de repulsão - invisível, impalpável, insensível - em torno de Baley, que mantinha os Espaciais impedidos de se aproximarem mais, que os levava a fazer uma curva para evitá-lo, quando passavam por ele.
Baley ficou imaginando se Gremionis tinha consciência daquilo ou se era completamente automático. E o que fariam com as cadeiras em que ele sentava quando em suas casas, os pratos em que comia, as toalhas que usava? A lavagem comum seria suficiente? Teriam sistemas especiais de esterilização? Jogariam tudo fora? As casas seriam desinfetadas assim que ele deixasse o planeta... ou todas as noites? E o Pessoal Coletivo que ele usou? Seria derrubado e reconstruído? E a mulher que entrou inadvertidamente após sua saída? Ou seria ela, possivelmente, a desinfetadora?
Percebeu que estava sendo tolo.
Que fosse tudo para o espaço exterior. O que os auroreanos faziam e como lidavam com seus problemas era assunto deles e não iria encher sua cabeça com isso. Jehoshaphat!
Tinha os seus e, naquele instante, o mais importante era Gremionis... e se ocuparia dele depois do almoço.
O almoço foi simples, amplamente vegetariano, mas, pela primeira vez, teve um pequeno problema. Cada prato tinha o gosto bem definido. As cenouras sabiam bastante fortemente a cenouras e as ervilhas a ervilhas, por assim dizer.
Talvez um pouco demais.
Comeu com certa dificuldade e procurou reprimir a leve revolta do seu estômago.
Ao fazê-lo, notou que estava se habituando a isso... como se suas papilas gustativas estivessem saturadas e pudesse tratar o excesso com mais facilidade. Ocorreu a Baley, com tristeza, que, se continuasse por algum tempo esse contato com a comida auroreana, voltaria para a Terra sentindo falta daquela distinção de sabor e se ressentindo do fluxo do paladar da Terra.
Mesmo o frescor de vários produtos - que o espantara no começo, que ao se aproximarem dos seus dentes pareciam criar um ruído que, certamente (pensou), devia interferir com a conversa - Já passara a ser a excitante prova de que ele de fato estava comendo.
Numa refeição da Terra havia um silêncio que o levava a perder alguma coisa.
Começou a comer com atenção, estudando os sabores. Talvez, quando os terráqueos se instalassem em outros mundos, esse tipo de alimento espacial se tornasse a marca da nova dieta, principalmente se não houvesse robôs para preparar e servir as refeições.
E depois pensou, inquieto, não quando mas se os terráqueos se estabelecessem em outros mundos... e se isso só dependesse dele, o detetive Elijah Baley. A responsabilidade pesou-lhe.
A refeição terminou. Dois robôs trouxeram os guardanapos quentes e úmidos para limpar as mãos. Somente que não eram guardanapos comuns, pois quando Baley depositou o seu no prato, ele pareceu mexer-se ligeiramente, diluir-se e tornar-se transparente. Depois, subitamente, tornou-se insubstancial e subiu para o teto. Baley teve um sobressalto e seus olhos ergueram-se, acompanhando, boquiaberto, o fugaz guardanapo.
- É uma coisa nova que acabo de comprar - disse Gremionis. - Descartável, como vê, mas ainda não sei se gosto. Há quem afirme que ela obstruirá o escapamento depois de algum tempo e outros estão preocupados com a poluição, pois dizem que certamente penetrará nos pulmões. O fabricante sustenta que não, mas...
Baley percebeu subitamente que não tinha dito uma só palavra durante a refeição e que aquela fora a primeira vez que ambos tinham falado, após a pequena troca de palavras sobre Daneel, antes do almoço ser servido... E não sentira aquela perda de tempo com guardanapos.
Baley perguntou, meio grosseiro:
- O senhor é barbeiro, Sr. Gremionis?
O interlocutor ruborizou-se, a pele clara avermelhando-se até o couro cabeludo. com voz sufocada, perguntou, por sua vez:
- Quem lhe disse?
- Se esta é uma forma indelicada de perguntar por sua profissão, desculpe - justificou-se Baley. - É uma forma comum de falar na Terra e nada tem de insultuosa.
- Sou desenhista de roupas e estilista. É um ramo reconhecido de arte. Sou de fato um artista pessoal.
Tornou a alisar o bigode.
- Reparei no seu bigode - disse Baley, sério. - Em Aurora, é comum deixar o bigode crescer?
- Não, não é. Espero que se torne um hábito. Veja os rostos masculinos... Grande parte deles pode ser acentuada e melhorada pela modelagem artística dos pêlos faciais. Tudo está no desenho que é parte da minha profissão.
O senhor pode ir até muito longe, claro. No mundo de Pallas, é comum a prática de tingir os pêlos faciais de vários tons. Cada fio é individualmente colorido para produzir uma espécie de mistura. Ora, isso é bobagem. Não permanece, as cores mudam com o tempo e fica horrível. Mas mesmo assim em certos casos, é preferível a rostos lisos. Não é menos atraente que um deserto facial... Esta frase é minha. Uso-a em minhas entrevistas com clientes potenciais e faz muito efeito. As mulheres podem passar sem pêlos faciais porque recorrem a outros meios. No mundo de Smitheus...
Havia uma qualidade hipnótica em suas palavras calmas, rápidas, e na expressão sincera do seu rosto, na maneira pela qual seus olhos se arregalavam e permaneciam fixos em Baley com intensa sinceridade. Baley precisou quase de força física para se libertar.
- O senhor é roboticista, Sr. Gremionis? - perguntou. Gremionis pareceu assustado e um tanto confuso por ter sido interrompido.
- Roboticista?
- Sim. Roboticista.
- Não, de modo nenhum. Uso robôs, como todo mundo, mas não sei o que há dentro deles... Não me importo mesmo em saber.
- Mas mora aqui, nas terras do Instituto de Robótica. Por quê?
- E por que não?
A voz de Gremionis estava claramente mais hostil.
- Se não é roboticista... Gremionis fez uma careta.
- Que bobagem! O Instituto, quando foi planejado, há anos, tinha a intenção de ser uma comunidade auto-suficiente. Possuíamos nossas próprias oficinas de manutenção de veículos de transportes, nossos consertadores de robôs, nossos médicos, nossos construtores. Nosso pessoal mora aqui e, se precisamos de um artista pessoal, esse é Santirix Gremionis, e eu também moro aqui. Há alguma coisa com a minha profissão que me impeça?
- Eu não disse isso.
Gremionis virou-se com um resto de petulância que a retratação de Baley não acalmou. Apertou um botão e, após ter examinado uma faixa retangular multicolorida, fez uma coisa notavelmente parecida com tamborilar os dedos um pouco.
Uma esfera caiu suavemente do teto e ficou suspensa cerca de um metro sobre suas cabeças. Abriu-se em gomos como se fosse uma laranja e um jogo de cores começou no seu interior, juntamente com um suave som. Os dois se fundiram tão habilmente que Baley, olhando espantado, descobriu que após um instante ficou difícil distinguir um do outro.
As janelas escureceram e os gomos se tornaram mais brilhantes.
- Claro demais? - perguntou Gremionis.
- Não - respondeu Baley, após um instante de hesitação.
- É para servir de fundo e escolhi uma combinação suave para que possamos conversar mais facilmente, de forma civilizada. - Depois acrescentou, rispidamente: - Vamos ao que interessa?
Baley afastou sua atenção do - fosse o que fosse (Gremionis não lhe dera um nome) - com alguma dificuldade e respondeu:
- Por favor. Eu também gostaria.
- O senhor estará me acusando de ter alguma coisa a ver com a imobilização do robô Jander?
- Tenho estado investigando as circunstâncias em que o robô acabou.
- Mas citou-me como ligado a isso... Na realidade, há pouco o senhor me perguntou se eu sou roboticista. Sei no que estava pensando. Estava tentando me levar a confessar que sei alguma coisa de robótica, para poder me acusar de... de... destruidor do robô.
- Pode dizer assassino.
- Assassino? Não se pode matar um robô... Seja como for, não o destruí, matei ou o que quer que chame a isso. Afirmo-lhe que não sou roboticista. Nada conheço de robótica. Como pode pensar que...
- Preciso investigar todas as ligações, Sr. Gremionis. Jander pertencia a Gladia, a solariana, e o senhor se dá com ela. É essa a ligação.
- Pode haver muita gente que se dê com ela. Isso não é uma ligação.
- Está querendo dizer que nunca viu Jander, nas vezes em que esteve na casa dela?
- Nunca! Nem uma vez!
- Nunca soube que a moça tinha um robô humaniforme?
- Não
- Ela nunca o mencionou?
- Gladia tinha robôs por todos os lados. Todos robôs comuns. Nunca falou ter outro tipo.
Baley encolheu os ombros.
- Muito bem. Não tenho motivo até agora para supor que não seja verdade.
- Então diga isso a Gladia. Foi por isso que quis vê-lo. Para pedir-lhe que fizesse isso. Para insistir.
- Gladia tem algum motivo para pensar diferente?
- Claro. O senhor envenenou-lhe a mente. O senhor a interrogou a meu respeito nessa ligação e ela aceitou... ficou duvidosa... A verdade é que hoje de manhã ela me videofonou e me perguntou se eu tinha alguma coisa a ver com aquilo. Já lhe disse isso.
- E o senhor negou?
- Claro e com toda a energia também, porque nada tenho a ver com aquilo. Mas não é convincente, dito por mim. Preciso que ela ouça do senhor. Quero que lhe diga que, na sua opinião, eu nada tenho a ver com essa encrenca toda. Basta dizer que não tenho e não poderá, sem prova, afinal, destruir minha reputação. Posso denunciá-lo.
- A quem?
- À Comissão de Defesa Pessoal. À Legislatura. O diretor deste Instituto é muito amigo do próprio Presidente e já lhe enviei um completo relatório sobre o caso.
Não estou esperando, compreenda, estou agindo.
Gremionis sacudiu a cabeça com a atitude que poderia ser considerada como violenta, mas que não convencia inteiramente, em virtude da brandura do seu rosto.
- Olhe - disse ele - não estamos na Terra. Aqui somos protegidos. Seu planeta, com sua superpopulação, faz sua gente morar em muitas colméias e formigueiros. Os senhores se acotovelam, se sufocam... e não importa. Uma vida ou um milhão... não importa.
Baley, lutando para não revelar desprezo na voz, disse:
- O senhor andou lendo romances históricos.
- Claro, andei... e eles descrevem as coisas como são. Não é possível haver bilhões de pessoas num único mundo, sem ser assim... Em Aurora, cada um tem uma vida valiosa. Somos protegidos fisicamente, individualmente, por nossos robôs, e por isso nunca há um ataque, para não dizer assassinato, em Aurora.
- com exceção de Jander.
- Isso não é assassinato, trata-se apenas de um robô. E somos protegidos de espécies de danos mais sutis que um assalto, por nossa Legislatura. A Comissão de Defesa Pessoal está sempre atenta, muito atenta, a qualquer ação que injustamente manche a reputação ou a posição social de um cidadão. Um auroreano, agindo como o senhor, estaria bastante encrencado. Quanto a um terráqueo... bem...
- Estou procedendo a uma investigação a convite, presumo, da Legislatura - retrucou Baley. - Não acredito que o Dr. Fastolfe me tenha trazido aqui sem autorização da Legislatura.
- Talvez, mas isso não lhe dá o direito de ultrapassar os limites de uma investigação justa.
- Então vai apresentar o caso à Legislatura?
- Vou fazer com que o diretor do Instituto...
- Por falar nisso, como ele se chama?
- Kelden Amadiro. Vou pedir-lhe que apresente o caso à Legislatura, e ele é membro da Legislatura, sabe, pois é um dos chefes do Partido Globalista. Portanto, acho melhor que o senhor deixe claro para Gladia que sou inteiramente inocente.
- Eu também gostaria, Sr. Gremionis, porque desconfio de que o senhor é inocente, mas como posso transformar a suspeita em certeza, a menos que me permita fazer-lhe algumas perguntas?
Gremionis hesitou. Depois, com ar desafiador, reclinou-se na cadeira, colocando as mãos na nuca, a imagem de alguém totalmente incapaz de parecer à vontade.
- Pergunte - disse ele. - Nada tenho a esconder. E depois, ligue para Gladia aqui por este transmissor tridimensional às suas costas e conte-lhe... ou estará mais encrencado do que pode imaginar.
- Compreendo. Mas, primeiro: há quanto tempo conhece a Dra. Vasilia Fastolfe, Sr. Gremionis? Ou Dra. Vasilia Aliena, se a conhece por este nome?
Gremionis hesitou e depois respondeu, com voz tensa:
- Por que pergunta? Qual é a relação?
Baley suspirou e seu rosto sombrio ficou ainda mais triste.
- Quero lembrar-lhe, Sr. Gremionis, de que o senhor nada tem a esconder e que deseja me convencer da sua inocência, para que eu possa fazer o mesmo com Gladia.
Diga-me apenas há quanto tempo a conhece. Se não a conheceu, diga apenas isso... porém antes de fazê-lo é justo informá-lo de que a Dra. Vasilia declarou que o senhor a conhecia muito bem, bastante bem, pelo menos, para se oferecer a ela.
Gremionis ficou mortificado. Falou, com voz trêmula:
- Não sei por que querem fazer disso um problemão. Um oferecimento é uma interação social perfeitamente natural, que não diz respeito a ninguém mais... Claro, o senhor é terráqueo e por isso faz um estardalhaço sobre o assunto.
- Eu soube que ela não o aceitou.
Gremionis juntou as mãos no colo, de punhos cerrados.
- Aceitar ou recusar é problema só dela. Houve gente que se ofereceu a mim e que eu recusei. Não é assim importante.
- Está bem. Há quanto tempo a conhece?
- Há alguns anos. Cerca de quinze.
- Conheceu-a quando ainda morava com o Dr. Fastolfe?
- Naquela época eu não passava de uma criança - replicou, corando.
- Como a conheceu?
- Quando terminei meu treinamento como artista pessoal, chamaram-me para desenhar-lhe um guarda-roupa. Ela ficou satisfeita e depois disso passou a usar meus serviços, nessa especialidade, exclusivamente.
- Foi por recomendação dela, então, que o senhor obteve sua presente posição como, digamos, artista pessoal oficial dos membros do Instituto de Robótica?
- Ela reconheceu minha qualidade. Fui experimentado, juntamente com outros, e ganhei a posição por meus méritos.
- Porém ela o recomendou?
Com secura e aborrecimento. Gremionis respondeu:
- Sim.
- E o senhor achou que a única forma decente de retribuir-lhe foi se oferecer a ela.
Gremionis fez uma careta ao passar a língua nos lábios, como que provando uma coisa desagradável.
- Isso... é... nojento! Suponho que um terráqueo pensaria dessa maneira. Meu oferecimento quis apenas dizer que eu sentia prazer nisso.
- Por ser ela atraente e com uma personalidade ardente? Gremionis hesitou.
- Bem, não poderia dizer que ela tem uma personalidade ardente - replicou com cautela - mas sem dúvida é atraente.
- Disseram-me que o senhor se oferece a todos: sem distinção.
- É mentira.
- O quê é mentira? Que o senhor se oferece a todos ou o que me disseram?
- Que eu me ofereço a todos. Quem lhe falou?
- Não acho que iria adiantar responder a essa pergunta. O senhor gostaria que eu o citasse como fonte de informações embaraçosas? Falaria francamente comigo se acreditasse?
- Bem, quem disse é mentiroso.
- Talvez tenha sido apenas um exagero dramático. Ofereceusse a outros antes de fazê-lo à Dra. Vasilia?
Gremionis desviou o olhar.
- Uma ou duas vezes. Nada sério.
- Mas com a Dra. Vasilia era a sério.
- Bem...
- Tive conhecimento de que se ofereceu a ela incessantemente, coisa contrária aos costumes auroreanos.
- Ah, os costumes auroreanos... - começou Gremionis, furioso. Depois cerrou fortemente os lábios e franziu a testa. - Olhe, Sr. Baley, posso lhe falar confidencialmente?
- Pode. Todas as minhas perguntas têm como objetivo me certificarem de que o senhor nada tem a ver com a morte de Jander. Uma vez satisfeito nesse ponto, pode ficar certo de que manterei suas declarações em segredo.
- Pois muito bem. Não houve nada errado... nada de que eu me envergonhasse, fique sabendo. Apenas tenho um forte senso de privacidade e tenho o direito a ela, se desejar, não tenho?
- Inteiramente - retrucou Baley, consolando-o.
- Veja, sinto que o sexo social é melhor quando há um profundo amor e afeição entre os participantes.
- Imagino que seja verdade.
- E assim não há necessidade de outros, não concorda?
- Parece-me... plausível.
- Sempre sonhei em encontrar a companheira perfeita, sem precisar procurar alguém mais. Chamam a isso monogamia. Não existe em Aurora, mas existe em alguns mundos... a Terra também tem, não é, Sr. Baley?
- Teoricamente, Sr. Gremionis.
- É o que eu quero. Venho procurando há anos. Quando às vezes fiz sexo, percebi que alguma coisa estava faltando. Então conheci a Dra. Vasilia e ela me disse... bem, as pessoas fazem confidencias aos seus artistas pessoais porque é um trabalho muito particular... e esta é a parte realmente confidencial...
- Bem, prossiga.
Gremionis passou a língua nos lábios.
- Se o que eu falar agora espalhar-se, estou perdido. Ela fará o que puder para que eu não consiga mais comissões. Tem certeza de que isto tem alguma relação com o caso?
- Garanto-lhe com todas as minhas forças, Sr. Gremionis, que pode ser muito importante.
- Bem, então - Gremionis não pareceu muito convencido - o fato é que concluí do que a Dra. Vasilia me disse, juntando os dados, que ela - sua voz tornou-se um murmúrio - é virgem.
- Compreendo - falou Baley calmamente (lembrando a certeza de Vasilia de que a recusa de seu pai tinha deformado sua vida, dando uma demonstração mais firme de seu ódio ao pai).
- Aquilo excitou-me. Pareceu-me que podia tê-la inteiramente para mim e que seria o único dela. Não posso explicar o quanto isso significava para mim. Isso tornou-a maravilhosamente bela aos meus olhos e só fez querê-la muito.
- Portanto, o senhor se ofereceu a ela?
- Sim.
- Insistentemente. Não sentiu-se desencorajado pelas recusas?
- Elas só faziam reforçar sua virgindade, por assim dizer, e deixou-me mais ansioso. Tornou-se mais excitante porque não era fácil. Não sei explicar e não espero que compreenda.
- Realmente, Sr. Gremionis, eu compreendo... Mas chegou um momento em que o senhor parou de se oferecer à Dra. Vasilia?
- De fato, chegou.
- E começou a se oferecer a Gladia?
- Na verdade, sim.
- Insistentemente?
- Ora, sim.
- Por quê? Por que a troca?
- A Dra. Vasilia finalmente deixou claro - disse Gremionis - que não havia chance, depois apareceu Gladia, que se parecia com a Dra. Vasilia, e... e... aconteceu.
- Porém Gladia não é virgem. Foi casada em Solaria e me disseram que aqui em Aurora teve muitas relações.
- Eu sabia disso, porém ela... parou. Sabe, ela é solariana de nascimento e não auroreana e não conhece os costumes de Aurora. Porém parou porque não gosta do que considera "promiscuidade".
- Ela lhe disse isso?
- Sim. A monogamia é um costume solariano. Não era feliz no casamento, porém era uma coisa a que estava acostumada e por isso nunca apreciou a maneira auroreana, quando tentou... e a monogamia é também o que eu quero. Compreende?
- Sim. Mas, para começar, como a conheceu?
- Apenas conheci. Ela apareceu na hiperonda quando chegou em Aurora, uma romântica refugiada de Solaria. E desempenhou um papel naquele drama da hiperonda...
- Sim, sim, porém houve mais alguma coisa, não?
- Não sei o que mais está querendo.
- Bem, então deixe-me adivinhar. Não chegou um momento em que a Dra. Vasilia disse que o estava recusando definitivamente... e ela não lhe sugeriu uma alternativa?
Gremionis, subitamente furioso, gritou:
- A Dra. Vasilia lhe disse isso?
- Não com tantas palavras, porém, apesar disso, acho que sei o que aconteceu. Ela não lhe falou que poderia ser vantajoso que o senhor se voltasse para a recém-chegada no planeta, a jovem de Solaria, que era pupila ou protegida do Dr. Fastolfe... que, como o senhor sabe, é pai da Dra. Vasilia? Quem sabe a Dra. Vasilia não lhe tenha informado que todos achavam a jovem, Gladia, bastante parecida com ela, porém mais moça e um temperamento mais vivo? Em suma, a Dra. Vasilia não o encorajou a transferir sua atenção para Gladia?
Gremionis estava visivelmente sofrendo. Encarou Baley e tornou a desviar o olhar. Foi a primeira vez que Baley viu nos olhos de um Espacial um ar de medo... ou era de terror? (Baley balançou levemente a cabeça. Precisava não demonstrar muita satisfação por ter assustado um Espacial. Poderia prejudicar sua objetividade.)
- Então? - perguntou. - Estou certo ou errado? E Gremionis respondeu, em voz baixa:
- Assim aquele espetáculo de hiperonda não era exagerado... O senhor lê pensamentos?
Baley retrucou calmamente:
- Apenas faço perguntas... que o senhor não respondeu francamente. Estou certo ou errado?
- Foi quase assim - respondeu Gremionis. - Não exatamente. Ela se referiu a Gladia, mas... - Mordeu o lábio inferior e continuou: - Mas dá no mesmo. Foi mais ou menos como o senhor descreveu.
- E não ficou desapontado? Achou que Gladia parecia com a Dra. Vasilia?
- Aparentemente. - Os olhos de Gremionis reluziram. - Mas não realmente. Colocadas lado a lado, se notaria a diferença. Gladia tinha muito maior delicadeza e graça.
Maior espírito de... de alegria.
- Ofereceu-se a Vasilia desde que conheceu Gladia?
- Está louco? Claro que não.
- Mas ofereceu-se a Gladia?
- Sim.
- E ela o recusou?
- Bem, recusou, mas precisa entender que ela necessitava ter certeza como eu deveria ter. Pense no engano meu se levasse a Dra. Vasilia a me aceitar. Gladia não queria cometer esse engano e não a culpo.
- Mas o senhor não considerou que poderia ser um engano para ela aceitá-lo e por isso insistiu várias vezes.
Gremionis olhou Baley com ar vago durante um momento e depois estremeceu. Esticou o lábio inferior como um garoto revoltado.
- O senhor diz isso de maneira insultuosa...
- Desculpe. Não pretendia isso. Por favor, responda.
- Bem, de fato.
- Quantas vezes se ofereceu?
- Não contei. Umas quatro. Bem, cinco. Talvez mais.
- E ela o recusou sempre.
- Sim. Do contrário eu não teria insistido, não é?
- Ela o recusou com ar zangado?
- Ora, não. Isso não é de Gladia. com muita bondade.
- Isso o fez se oferecer a alguém mais?
- Como?
- Ora, Gladia o recusou. Uma forma de reagir seria oferecer-se a outra pessoa. Por que não? Se Gladia não o queria...
- Não Eu não queria ninguém mais.
- E por que, pode imaginar? Gremionis replicou ardorosamente:
- Como Vou saber por quê? Eu queria Gladia. Foi uma... foi uma espécie de loucura, porém julgo ser a melhor espécie de insanidade. Ficaria maluco se nau tivesse aquela espécie de demência... Não espero que compreenda.
- Tentou explicar a Gladia? Ela poderia entender.
- Nunca. Ela ficaria angustiada, embaraçada. Não fale nisso. Eu devia ter procurado um mentologista.
- Não procurou?
- Não.
- Por quê? Gremionis franziu a testa.
- O senhor tem uma forma muito rude de fazer perguntas, terráqueo.
- Talvez porque sou terráqueo. Não sei fazer melhor. Mas também sou investigador e preciso conhecer essas coisas. Por que não procurou um mentologista?
Surpreendentemente, Gremionis riu.
- Já lhe disse. A cura seria loucura maior que a doença. Eu preferia estar com Gladia e ser recusado, a estar com outra pessoa e aceito... Imagine estar com a cabeça no lugar e querer ficar assim. Qualquer mentologista iria me submeter a tratamento.
Baley pensou um pouco e disse:
- Sabe que a Dra. Vasilia é de algum modo mentologista?
- É roboticista. Dizem que é o que há de mais parecido. Se alguém sabe como um robô funciona, tem uma idéia de como trabalha um cérebro humano. É o que dizem.
- Não lhe ocorre que Vasilia conhecia esses estranhos sentimentos que o senhor tinha por Gladia?
Gremionis ficou firme.
- Nunca disse a ela... Quero dizer, tão explicitamente.
- Não acha possível que ela tenha percebido seus sentimentos sem precisar perguntar? Ela sabe que o senhor se ofereceu várias vezes a Gladia?
- Bem... ela perguntaria como eu estava indo. Em nome de uma velha amizade, sabe? Eu diria coisas. Nada íntimo.
- Tem certeza de que nunca houve nada íntimo? com certeza ela o encorajou a continuar se oferecendo.
- Sabe... agora que falou nisso, parece que estou vendo de uma nova forma. Não sei como conseguiu meter na minha cabeça. Suponho que seja a maneira de perguntar, mas agora acho que ela continua a encorajar minha amizade com Gladia. Ela a apoiou ativamente. - Parecia muito preocupado. - Nunca me ocorreu antes. Realmente jamais pensei a respeito.
- Por que acha que ela o encorajou a se oferecer repetidamente a Gladia?
Gremionis franziu as sobrancelhas tristemente e tocou no bigode com o dedo.
- Suponho que possam pensar que ela estava querendo se livrar de mim. Tentando deixar claro que eu não queria aborrecê-la. - Deu uma risadinha. - Isso não é muito lisonjeiro para mim, acha?
- A Dra. Vasilia deixou de ser amistosa com o senhor?
- De maneira nenhuma. Ficou mais amistosa... que antes.
- Ela procurou ensiná-lo como ter maior sucesso com Gladia? A mostrar maior interesse pelo trabalho de Gladia, por exemplo?
- Ela não precisava fazer isso. O trabalho de Gladia e o meu eram muito parecidos. Eu trabalho com seres humanos e ela com robôs, porém somos ambos desenhistas, artistas... Como sabe, isso provoca a aproximação. As vezes, ajudamos um ao outro. Quando não estou me oferecendo e sendo recusado, somos bons amigos... Isso é muito, se pensar a respeito.
- A Dra. Vasilia sugeriu-lhe mostrar um interesse maior no trabalho do Dr. Fastolfe?
- Por que faria isso? Nada sei a respeito do trabalho do Dr. Fastolfe.
- Gladia podia estar no trabalho do seu benfeitor e poderia ser uma forma de o senhor cair-lhe nas boas graças.
Gremionis franziu os olhos. Levantou-se de forma explosiva, caminhou até o outro lado da sala, voltou, parou diante de Baley e disse:
- Agora-olhe-aqui. Não sou o maior cérebro do planeta, nem mesmo o segundo maior, mas não sou um total idiota. Sei onde o senhor está querendo chegar.
- Ah?
- Todas as suas perguntas serviram para me levar a dizer que a
Dra. Vasilia me fez ficar apaixonado... É isso - parou, subitamente surpreso - estou apaixonado, como nos romances históricos. - Pensou sobre aquilo, com os olhos iluminados pelo encantamento. Então a ira voltou. - Que ela me fez ficar apaixonado e continuar assim, de forma a que eu pudesse descobrir coisas do Dr. Fastolfe e aprender como imobilizar Jander, aquele robô.
- Não acha que foi isso?
- Não, não foi - gritou Gremionis. - Não sei nada de robótica. Nada. Mesmo que me fosse tudo cuidadosamente explicado, eu não compreenderia. E nem Gladia, suponho.
Além disso, não perguntei a alguém sobre robótica. Nunca me informaram, seja o Dr. Fastolfe ou qualquer outra pessoa, a respeito. Jamais me sugeriram que me enfronhasse no assunto. Nem a Dra. Vasilia. Sua teoria podre não funciona. - Abriu os braços. - Não funciona. Esqueça-a.
Recostou-se, cruzou os braços vigorosamente no peito e transformou os lábios numa linha fina, eriçando o bigodinho.
Baley ergueu os olhos para a laranja não segmentada, que ainda estava zumbindo seu canto baixo, agradavelmente variado, exibindo uma suave mudança de colorido ao se balançar num arco pequeno e lento.
Se a explosão de Gremionis preocupou sua linha de ataque, não o demonstrou.
- Compreendo o que está dizendo - falou. - Mas também é verdade que continua vendo muito Gladia, não é?
- Sim, continuo.
- Seus oferecimentos insistentes não a ofenderam... e as repetidas recusas dela não o deixaram zangado?
- Meus oferecimentos eram educados - respondeu Gremionis, encolhendo os ombros. - As recusas de Gladia eram gentis. Por que nos ofenderíamos?
- Mas como passavam o tempo juntos? Afastada evidentemente a hipótese de sexo e não conversando sobre robótica, que fazia o senhor?
- É o que sobra numa camaradagem: sexo e robótica? Passávamos muito bem o tempo. Conversávamos, por exemplo. Ela era muito curiosa a respeito de Aurora e eu passava horas descrevendo o Planeta. Ela o tinha visto pouquíssimo, como sabe. E Gladia igualmente falando de Solaria e que inferno é aquilo lá. Eu preferia morar na Terra... sem querer ofender. E seu marido falecido está lá.
Que sujeito ordinário ele foi. Gladia teve uma vida miserável, pobre mulher.
"Fomos a concertos, levei-a algumas vezes ao Instituto de Arte e trabalhamos juntos. Já lhe contei isso. Trabalhávamos juntos nos meus desenhos ou nos dela. Para ser completamente honesto, não acho que trabalhar em robôs seja muito compensador, mas todos temos nossas noções a respeito. Por falar nisso, ela se divertia muito quando eu lhe explicava por que era tão importante cortar corretamente o cabelo... como sabe, o dela não era muito bem cortado. Porém, na maior parte do tempo, passeávamos.
- Passeavam? Onde?
- Em lugar nenhum especialmente. Apenas passeávamos. É hábito dela: foi educada assim em Solaria. O senhor já esteve em Solaria?... Sim, claro que já esteve. Desculpe.
Há em Solaria enormes propriedades com apenas um ou dois humanos e uma quantidade de robôs. Pode-se andar quilômetros sem encontrar alguém e Gladia diz que isso nos dá a sensação de possuir o planeta todo. Os robôs estão sempre presentes, claro, cuidando das pessoas ou vigiando-as, mas conservando-se fora de vista. Gladia sente falta, aqui em Aurora, dessa sensação de proprietária de um mundo.
- Está dizendo que ela deseja possuir um mundo?
- Refere-se a uma espécie de ambição de poder? Gladia? Que loucura! Ela só quer dizer que sente falta da sensação de estar só com a natureza. Para mim isso nada significa, mas gosto de animá-la, sabe. Claro, é quase impossível ter o sentimento solariano em Aurora. É-se obrigado a ter gente em volta, especialmente na área metropolitana de Eos, e os robôs não foram programados para ficarem invisíveis. Na verdade, os auroreanos em geral passeiam com robôs... Contudo, conheço algumas estradas agradáveis, não muito freqüentadas, e Gladia gosta delas.
- E o senhor também?
- Ora, apenas porque assim estou ao lado dela. Os auroreanos também são andarilhos, porém confesso que eu não. A princípiomeus músculos reclamavam e Vasilia ria de mim.
- Ela sabia que o senhor fazia essas caminhadas, não é?
- Bem, um dia cheguei capengando, com dores nas coxas, e tive de contar-lhe. Ela riu e disse que era uma boa idéia e que a melhor maneira de um andarilho aceitar um oferecimento era caminhar com ele.
"Continue", disse Vasilia, "e ela deixará de recusar antes que você tenha a oportunidade de tornar a se oferecer. Ela mesma se oferecerá". Acontece que Gladia não se ofereceu, mas finalmente passei a gostar muito de andar.”
Gremionis parecia ter superado o acesso de raiva e se mostrava agora muito mais à vontade. Devia estar pensando nos passeios, supôs Baley, pois seu rosto exibia um leve sorriso. Ficou agradável - e vulnerável - com o pensamento voltado para uma passagem da conversa. Baley quase sorriu também.
- Vasilia sabia, então, que o senhor continuou com os passeios?
- Acho que sim. Passei a folgar nas quartas e sábados, para combinar com os dias de Gladia... e Vasilia às vezes brincava sobre meus "passeios" quando eu mostrava esboços.
- A Dra. Vasilia participava desses passeios?
- Claro que não.
Baley mudou de posição na cadeira e ficou olhando atentamente para as pontas dos dedos, quando disse:
- Suponho que levava robôs nesses passeios.
- Correto. Um meu e outro dela. Porém, mantinham-se afastados. Eles não andavam da maneira que Gladia chamava de auroreana. Ela queria a solidão solariana, costumava dizer. Por isso concordei, embora no começo tivesse cãibras no pescoço de tanto olhar em volta para ver se Brundij estava por ali.
- E que robô acompanhava Gladia?
- Não era sempre o mesmo. Qualquer que fosse, estava sempre invisível. Não cheguei a falar com ele.
- Eliander?
Parte da expressão alegre desapareceu do rosto de Gremionis imediatamente.
- Que tem ele? - perguntou.
- Ele alguma vez foi? Se tivesse ido, o senhor saberia, não é?
- Um robô humaniforme? Claro que saberia. Porém ele não nos acompanhou... jamais.
- Tem certeza?
- Certeza absoluta. - Gremionis fez uma careta. - Suponho que ela o considerava muito valioso para ser usado em tarefas que Qualquer robô comum podia fazer.
- O senhor parece aborrecido. Também pensava assim?
- Ele pertencia-lhe. Não me preocupava com isso.
- E nunca o viu dentro da casa de Gladia?
- Nunca.
- Ela alguma vez se referiu a ele? Fez algum comentário a respeito?
- Não que eu lembre.
- Não achava isso estranho? Gremionis balançou a cabeça.
- Não. Por que conversar sobre robôs?
Os olhos escuros de Baley examinaram o rosto do outro.
- O senhor tinha alguma idéia da relação de Gladia com Jander?
- Está querendo me dizer que havia sexo entre eles? - perguntou Gremionis.
- Ficaria surpreso se houvesse? Gremionis retrucou, impassível:
- Acontece. Não é incomum. Às vezes pode-se usar um robô, se se deseja. E um robô humaniforme, completamente humaniforme, suponho...
- Completamente - confirmou Baley, fazendo um gesto adequado.
Os lábios de Gremionis curvaram-se para baixo.
- Bem, nesse caso, seria difícil uma mulher resistir.
- Ela lhe resistiu. Não fica aborrecido por Gladia ter preferido um robô?
- Bem, se for assim, apesar de não achar que seja verdade... mas se for, não há motivo de preocupação. Um robô é apenas um robô. Uma mulher e um robô, ou um homem e um robô, é apenas masturbação.
- Honestamente, nunca soube dessa relação, Sr. Gremionis? Nunca desconfiou?
- Jamais pensei nisso - reafirmou Gremionis.
- Não sabia? Ou sabia e não deu importância? Gremionis franziu a testa, zangado.
- O senhor está forçando outra vez. Que quer que eu diga? Agora que me meteu isso na cabeça e forçou, parece-me, olhando para trás, que talvez eu tivesse pensado a respeito de alguma coisa assim. Seja como for, jamais senti estar acontecendo alguma coisa, antes do senhor começar a fazer perguntas.
- Tem certeza?
- Sim, tenho. Não me irrite.
- Não o estou irritando. Estou apenas imaginando se era possível que soubesse estar Gladia transando regularmente com Jander, que soubesse que jamais seria aceito como seu amante enquanto persistisse essa situação, que o senhor gostasse tanto dela que nada o impediria de eliminar Jander, que, em suma, estivesse tão enciumado que...
Nesse momento, Gremionis - como uma mola muito retesada, presa com dificuldade durante alguns minutos, sendo subitamente solta - atirou-se sobre Baley com um berro incoerente. Baley, tomado completamente de surpresa, atirou-se instintivamente para trás, com a cadeira caindo-lhe em cima.
Sentiu imediatamente braços fortes agarrando-o. Baley foi levantado, a cadeira endireitada, e percebeu que estava nas mãos de um robô. Como foi fácil esquecer que eles se achavam no quarto, silenciosos e imóveis dentro dos seus nichos. Contudo, não foram Daneel nem Giskard que o socorreram, porém o robô de Gremionis, Brundij.
- Senhor - disse o robô, com a voz ligeiramente alterada - espero que não tenha se machucado.
Onde estavam Daneel e Giskard?
A pergunta foi respondida imediatamente. Os robôs dividiram a tarefa clara e rapidamente. Daneel e Giskard, considerando instantaneamente que uma cadeira virada oferecia menos perigo de dano a Baley que um Gremionis enlouquecido, atiraram-se sobre o anfitrião, Brundij, vendo que não era necessitado desse lado, cuidou do bem-estar do convidado.
Gremionis - ainda ofegante - ficara completamente imobilizado pela ação dupla dos robôs de Baley.
Gremionis falou, num murmúrio que mal se ouviu:
- Soltem-me. Já me dominei.
- Sim, senhor - disse Giskard.
- Claro, Sr. Gremionis - assentiu Daneel, num tom quase amável.
Mas apesar de terem largado o homem, nenhum se afastou durante um certo tempo. Gremionis olhou para os lados, alisou a roupa e depois, deliberadamente, sentou-se.
Sua respiração ainda estava agitada e seu cabelo, um pouco despenteado.
Baley se pôs de pé, a mão apoiada no espaldar da cadeira em que estivera sentado.
- Lamento, Sr. Baley, por perder a cabeça. Nunca fiz isto desde que sou adulto. O senhor me acusou de ser ci-ciumento. É uma palavra que nenhum auroreano respeitável usaria para se dirigir a um outro, porém eu devia ter lembrado que o senhor é terráqueo. É uma palavra que só encontramos nos romances históricos e mesmo neles ela é usualmente grafada "c", seguido de reticências. Claro, no seu mundo não é assim, compreendo.
- Também lamento, Sr. Gremionis - replicou Baley em tom sério - que meu esquecimento dos costumes auroreanos me tenha feito errar nesse caso. Garanto-lhe que não se repetirá. - Também sentou-se e acrescentou: - Não creio que haja muito mais coisas a discutir...
Gremionis não pareceu ouvir.
- Quando eu era criança - disse - eu às vezes agredia alguém e era agredido, continuando assim por algum tempo até que os robôs se dessem ao trabalho de nos separar, claro...
Daneel interveio:
- Se me permite, Colega Elijah, ficou assentado que a total supressão da agressividade nas crianças tinha conseqüências indesejáveis. Uma certa quantidade de brinquedos envolvendo competições físicas é permitida, e até encorajada, desde que ninguém se machuque. Os robôs que cuidam de jovens são meticulosamente programados para ser capazes de distinguir as possibilidades e nível de dano que possam ocorrer. Eu, por exemplo, não sou adequadamente programado para isso e não estou qualificado como guardião de jovens, exceto em situações de emergência e por pouco tempo... E Giskard também não.
- Suponho que esse comportamento agressivo é suspenso na adolescência.
- Gradualmente - respondeu Daneel - à medida que o nível de dano que possa ocorrer aumente e o desejo de autodomínio se torne mais acentuado.
- Quando cheguei na época do segundo grau - disse Gremionis - eu, como todos os auroreanos, sabia muito bem que toda competição apoiava-se na comparação da capacidade mental e do talento...
- Nenhuma competição física? - perguntou Baley.
- Certamente, mas apenas de forma a não provocar contato físico deliberado com a intenção de ferir.
- Mas desde a adolescência...
- Nunca agredi ninguém. Claro, não tinha a quem. Tive vontade de fazê-lo em inúmeras ocasiões, de fato. Suponho que não estaria inteiramente normal se o fizesse, mas até agora tenho sido capaz de evitar. Porém ninguém me chamou... assim antes.
- Não ia adiantar agredir, em todo caso - comentou Baley - pois seria impedido por robôs, não é? Suponho que há sempre um robô ao alcance da voz em cada lado: do agressor e do agredido.
- De fato... Mais um motivo para me sentir envergonhado de ter perdido a calma. Confio em que o senhor não colocará isso em seu relatório.
- Garanto-lhe que não contarei a ninguém a respeito. Isso nada tem a ver com o caso.
- Obrigado. O senhor disse que a entrevista acabou?
- Acho que sim.
- Neste caso, o senhor fará o que lhe pedi?
- O que foi?
- Dizer a Gladia que eu não sou responsável pela imobilização de Jander.
Baley hesitou.
- Direi a ela que essa é a minha opinião.
- Por favor, não deixe dúvidas - pediu Gremionis. - Quero que ela fique inteiramente certa de que não tive nada com aquilo, principalmente se ela gostava do robô do ponto de vista sexual. Eu não poderia suportar que Gladia pensasse que eu estivesse c-c... Como solariana, ela pode pensar isso.
- Sim, pode - replicou Baley, pensativo.
- Mas olhe - insistiu Gremionis, rápida e honestamente - nada sei sobre robôs e ninguém, a Dra. Vasilia ou outra pessoa, jamais me falou deles: de como funcionam, quero dizer. Não há meio de eu poder ter destruído Jander.
Por um momento, Baley pareceu estar engolfado em pensamentos. Depois falou, com nítida relutância:
- Só me resta acreditar no senhor. Para ser claro, não sei tudo. E é possível, e digo isto sem intenção de ofender, que tanto o senhor como a Dra. Vasilia, ou ambos, estejam mentindo. Sei pouquíssimo sobre a natureza interior da sociedade auroreana e sou, Portanto, fácil de ser enganado. Apesar disso, não Vou deixar de acreditar no senhor. Não obstante, só posso dizer a Gladia que na minha opinião o senhor é completamente inocente. Contudo, preciso dizer "na minha opinião". Acho que ela considerará bastante forte. com tristeza, Gremionis desabafou:
- Então tenho de me contentar com isso... Mas, se adiantar, garanto-lhe, sob palavra de um cidadão auroreano, que sou inocente.
Baley esboçou um sorriso.
- Eu nem sonharia em duvidar de sua palavra, porém meu treinamento me força a confiar somente em provas objetivas.
Levantou-se, olhou solenemente para Gremionis durante um momento e depois acrescentou:
- O que Vou dizer não deve ser encarado de maneira errada, Sr. Gremionis. Acho que o senhor está interessado em que eu tranqüilize Gladia a esse respeito, porque deseja conservar a amizade dela.
- Desejo muito, Sr. Baley.
- E pretende em ocasião mais propícia oferecer-se novamente? Gremionis corou, engoliu em seco visivelmente e replicou:
- Sim, pretendo.
- Posso então fazer-lhe uma advertência, senhor? Não insista.
- Pode guardar sua advertência. Não tenho a menor intenção de desistir.
- Quero dizer que não aja da maneira costumeira. O senhor pode tentar simplesmente - Baley desviou o olhar, sentindo-se incrivelmente embaraçado - abraçá-la e beijá-la.
- Não - retrucou Gremionis francamente. - Por favor. Uma mulher auroreana não suportaria isso. Nem um homem auroreano.
- Sr. Gremionis, não quer lembrar-se de que Gladia não é auroreana? É solariana e tem outros hábitos, outras tradições. Eu tentaria isso, se fosse o senhor.
Ao desviar o olhar, Baley escondeu uma súbita fúria interior. Que lhe significava Gremionis, para dar-lhe esse conselho? Por que dizer a outro que fizesse o que ansiava por fazer?
Amadiro
Baley voltou ao assunto, dando à voz um tom mais profundo que o habitual.
- Sr. Gremionis, o senhor citou há pouco o chefe do Instituto de Robótica. Quer me dizer novamente o nome dele?
- Kelden Amadiro.
- E o senhor tem como contatá-lo daqui?
- Bem, sim e não. Pode-se contatar sua recepcionista ou seu assistente. Duvido que a ele pessoalmente. É uma pessoa um tanto presunçosa, me disseram. Não o conheço, claro. Vejo-o de vez em quando, mas nunca falei com ele.
- Devo concluir, assim, que ele não o usa como desenhista do seu guarda-roupa?
- Não sei se ele tem algum, e nas poucas ocasiões em que o vi, parece que não, e eu prefiro que o senhor não repita esse comentário.
- Garanto que o senhor tem razão, mas não repetirei - disse Baley com ar grave. - Gostaria de entrar em contato com ele, apesar da sua reputação de presunçoso. Se o senhor tem um trimensic, posso usá-lo com esse fim?
- Brundij pode fazer a ligação para o senhor.
- Não, meu colega Daneel poderá fazê-lo. Isto é, se o senhor não se importa.
- Absolutamente, não me importo - replicou Gremionis. - O aparelho está lá, por isso basta me acompanhar, Daneel. O número que deve chamar é 75-30-sobre-20. Daneel inclinou a cabeça.
- Obrigado, senhor.
A sala do trimensic estaria completamente vazia, não fosse umacoluna fina num dos cantos, que terminava numa superfície horizontal à altura da cintura, na qual havia um móvel bastante complicado. A coluna ficava no centro de um círculo cinza no chão verde-claro. Próximo, outro círculo do mesmo tamanho e cor, mas sem coluna.
Daneel aproximou-se da coluna e, ao fazê-lo, o círculo em que ela estava iluminou-se com um leve brilho branco. A mão dele dirigiu-se para o móvel, os dedos tamborilando rápidos demais para Baley perceber direito o que faziam. Um segundo depois, o outro círculo iluminou-se exitamente da mesma maneira. Apareceu nele um robô, de aparência tridimensional, mas com um leve piscar que afastava a idéia de uma imagem holográfica. Ao lado dele, um móvel igual ao existente ao lado de Daneel, porém piscou e era também uma imagem.
- Sou R. Daneel Olivaw - disse o robô - acentuando o "R." para que o robô não o confundisse com um ser humano - e represento meu colega Elijah Baley, cidadão da Terra. Meu colega deseja falar com o Mestre Roboticista Kelden Amadiro.
- O Mestre Roboticista Amadiro está em reunião - respondeu o robô. - Não será suficiente falar com o Roboticista Cieis?
Daneel olhou rapidamente para Baley, que lhe fez um sinal. O robô concordou:
- Será perfeitamente satisfatório.
- Se você pedir ao Cidadão Baley que ocupe o seu lugar - retrucou o outro robô - tentarei localizar o Roboticista Cieis.
Daneel falou suavemente:
- Talvez fosse melhor que você primeiro...
- Está bem assim, Daneel - interrompeu Baley. - Não me importo de esperar.
- Colega Elijah, como representante pessoal do Mestre Roboticista Han Fastolfe, você adquiriu sua posição social, pelo menos temporariamente. Não é sua obrigação esperar...
- Está bem, Daneel - disse Baley, com bastante ênfase para evitar a continuação da discussão. - Não quero provocar demora com um debate sobre etiqueta social.
Daneel saiu do círculo e Baley entrou. Sentiu um leve zumbido (talvez puramente imaginário), que passou imediatamente.
A imagem do robô, no outro círculo, esmaeceu e sumiu. Baley aguardou com paciência e finalmente outra imagem começou a se formar e adquiriu uma aparência tridimensional.
- Sou o Roboticista Maloon Cicis - disse o vulto, com voz um tanto áspera e clara.
Tinha o cabelo curto, cor de bronze, que, sozinho, bastava para lhe dar o que Baley pensava ser um ar tipicamente Espacial, embora houvesse uma certa assimetria não-Espacial no nariz.
Baley falou, com voz calma:
- Sou o Cidadão Elijah Baley, da Terra, e desejo falar com o Mestre Roboticista Kelden Amadiro.
- Marcou hora, Cidadão?
- Não, senhor.
- É preciso marcar, se deseja vê-lo... e não há hora disponível nesta semana nem na próxima.
- Sou o detetive Elijah Baley, da Terra...
- Entendi bem quem é. E isso não altera os fatos.
- A pedido do Dr. Han Fastolfe e com autorização da Legislatura do Mundo de Aurora, estou investigando o assassinato do robô Jander Panell... - começou Baley, quando foi interrompido.
- O assassinato do robô Jander Panell? - perguntou Cicis, com um desprezo que a polidez não mascarava.
- Roboticídio, então, se prefere assim. Na Terra, a destruição de um robô pode não importar muito, mas em Aurora, onde os robôs são tratados mais ou menos como seres humanos, pareceu-me poder usar a palavra "assassinato".
- Contudo, seja assassinato, roboticídio ou nada disso, continua sendo impossível ver o Mestre Roboticista Amadiro.
- Posso mandar-lhe um recado?
- Pode.
- Será entregue a ele imediatamente? Já?
- Posso tentar, mas evidentemente não posso garantir.
- Assim está bem. Vou me referir a várias coisas e numerá-las. Talvez o senhor quisesse anotá-las. Cieis esboçou um sorriso.
- Acho que sou capaz de lembrar.
- Primeiro, onde há um assassinato, há um assassino, e eu gostaria de dar ao Dr. Amadiro uma possibilidade de se defender...
- Como! - disse Cieis.
(E Gremionis, no outro lado da sala, ficou de boca aberta.) Baley tratou de imitar o sorriso que desapareceu subitamente dos lábios do outro.
- Estou sendo muito rápido para o senhor? Gostaria, afinal de contas, de tomar notas?
- O senhor está acusando o Mestre Roboticista de envolvido com o caso desse Jander Panell?
- Pelo contrário, Roboticista. Justamente porque não quero acusá-lo é que preciso vê-lo. Detestaria ter de fazer qualquer ligação entre o Mestre Roboticista e o robô imobilizado, baseado em informações incompletas, quando uma palavra dele poderia esclarecer tudo.
- O senhor está louco!
- Muito bem. Diga então ao Mestre Roboticista que um louco deseja dar-lhe uma palavra com o propósito de evitar acusá-lo de assassinato. Esta é a primeira. Tenho uma segunda. Pode dizer-lhe que o referido louco acabou de realizar um completo interrogatório do Artista Pessoal Santirix Gremionis e que está videofonando da casa dele. E a terceira... estou indo muito depressa?
- Não! Termine!
- A segunda é: talvez o Mestre Roboticista, que certamente tem muitas coisas na cabeça mais urgentes, não lembre quem o Artista Pessoal Santirix Gremionis é. Nesse caso, identifique-o como alguém que mora no recinto do Instituto e que, no último ano, fez longos passeios com Gladia, a solariana que mora em Aurora.
- Não posso transmitir um recado tão ridículo e insultuoso, terráqueo.
- Neste caso, diga-lhe que irei imediatamente à Legislatura e declararei que não posso continuar a investigação porque um tal Maloon Cicis assume a responsabilidade de me afirmar que o Mestre Roboticista Kelden Amadiro não me dará assistência na investigação da destruição do robô Jander Panell e não quer se defender de acusações de ser responsável por aquela destruição.
Cicis ficou vermelho.
- O senhor não ousará dizer nada disso.
- Não? Que tenho a perder? Por outro lado, como isso repercutirá no povo? Afinal de contas, os auroreanos sabem perfeitamente que o Dr. Amadiro só fica abaixo do Dr. Fastolfe em robótica e que, se este não foi responsável pelo roboticídio... É necessário continuar?
- Terráqueo, o senhor vai descobrir que as leis de Aurora contra a difamação são severas.
- Sem a menor dúvida, mas se o Dr. Amadiro está sendo efetivamente difamado, seu castigo será possivelmente maior que o meu. Contudo, por que o senhor simplesmente não lhe transmite meu recado agora? Então, se ele explicar apenas uns pontos secundários, podemos evitar tudo isso.
Cicis franziu o cenho e retrucou, formal:
- Direi ao Dr. Amadiro e o aconselharei vivamente a não recebê-lo.
Desapareceu. Baley tornou a esperar com paciência, enquanto Gremionis gesticulava agitadamente, dizendo, a meia voz:
- Não pode fazer isso, Baley. Não pode. Baley acenou-lhe para que ficasse calado.
Uns cinco minutos depois (pareceu muito mais a Baley), Cicis tornou a surgir, aparentando muita irritação.
- O Dr. Amadiro virá me substituir dentro de minutos e falará com o senhor. Espere!
A resposta de Baley foi imediata:
- Não aceito esperar. Irei diretamente ao escritório do Dr. Amadiro e o verei lá.
Saiu do círculo cinzento e fez um gesto de corte a Daneel, que prontamente interrompeu a ligação.
Gremionis falou, com uma espécie de engasgo:
- O senhor não pode falar com o pessoal do Dr. Amadiro dessa maneira, terráqueo.
- Pois acabo de falar - replicou Baley.
- O senhor vai ser expulso do planeta em doze horas.
- Se eu não progredir na resolução dessa confusão, serei também expulso do planeta em doze horas.
Daneel acrescentou:
- Colega Elijah, temo que o Sr. Gremionis esteja justamente alarmado. A Legislatura do Mundo de Aurora nada mais pode fazer que expulsá-lo, uma vez que você não é cidadão auroreano. Não obstante, podem insistir com as autoridades da Terra para que o castiguem severamente e elas o farão. Num caso assim, não podem resistir a uma exigência auroreana. Não quero que seja castigado dessa maneira, Colega Elijah.
Baley retrucou, com voz melancólica:
- Nem eu desejo esse castigo, Daneel, mas tenho de me arriscar... Sr. Gremionis, desculpe-me por ter dito a ele que estava falando da sua casa. Tinha de fazer alguma coisa para persuadi-lo a ver-me e achei que ele podia dar importância ao fato. Afinal de contas, falei apenas a verdade.
Gremionis balançou a cabeça.
- Se eu soubesse o que ia fazer, Sr. Baley, não lhe teria permitido que ligasse da minha casa. Tenho certeza de que perderei minha posição aqui e - com amargura - que vai o senhor fazer por mim que possa mudar isso?
- Farei o que puder, Sr. Gremionis, para que o senhor não perca sua posição. Tenho esperança de que não o persigam. Contudo, se eu fracassar, o senhor pode me descrever como um louco que fez acusações brutais contra o senhor e o atemorizou com ameaças de calúnias, forçando-o a me deixar usar seu videofone. Tenho certeza de que o Dr. Amadiro acreditará. Afinal de contas, o senhor já lhe enviou um memorando queixando-se de que eu o caluniei, não é mesmo?
Baley ergueu a mão e acenou, despedindo-se.
- Adeus, Sr. Gremionis. Novamente obrigado. Não se preocupe e... lembre o que lhe disse em relação a Gladia.
Imprensado entre Daneel e Giskard, Baley saiu da casa de Gremionis, mal percebendo o fato de estar andando novamente no espaço aberto.
Uma vez fora, foi diferente. Baley parou e ergueu os olhos.
- Estranho - falou - não acho que tenha passado muito tempo, mesmo levando em conta o fato de que o dia auroreano é ligeiramente mais curto que o padrão.
- Que foi, Colega Elijah? - perguntou Daneel, solícito.
- O sol se pôs. Eu não contei com isso.
- O sol ainda não se pôs, senhor - interveio Giskard. - Faltam duas horas para o poente.
- É uma tempestade se formando. Colega Elijah - explicou Daneel. - As nuvens estão engrossando, porém a tempestade não se desencadeará antes de algum tempo.
Baley estremeceu. As trevas em si não o perturbavam. De fato, quando no Exterior, a noite, com sua sugestão de paredes envolventes, era muito mais suave que o dia, que alargava os horizontes e abria o espaço em todas as direções.
Preocupava-o não ser ainda noite nem dia.
Procurou novamente lembrar-se de como tinha sido no dia em que choveu quando ele estava no Exterior.
Lembrou-se subitamente de que nunca estivera fora quando nevou e nem mesmo tinha certeza de como era a chuva de sólida água cristalina. A descrição com palavras era, certamente, insuficiente. As crianças saíam às vezes para escorregar ou deslizar - ou o que quer que fosse - e retornavam guinchando de excitação... mas sempre felizes por voltarem para o interior da Cidade. Ben tentou uma vez fazer um par de esquis, seguindo as instruções de um livro antigo ou coisa assim, e acabou meio soterrado num monte daquela coisa branca. E mesmo a descrição de Ben de como era ver e sentir a neve foi angustiantemente vaga e insatisfatória.
Depois, também, ninguém saiu quando estava realmente nevando, em conseqüência do material estar espalhado no chão. Baley pensou, nesse ponto, que a única coisa que todos concordavam era que só nevava quando fazia muito frio.
Agora não fazia muito frio. Estava apenas frio. Aquelas nuvens não significavam que fosse nevar... Sem saber por que, sentiu-se pouquíssimo consolado.
Aquele não era como os dias nublados da Terra, que ele já presenciara. Na Terra, as nuvens eram mais claras, tinha certeza. Eram cinza-esbranquiçadas, mesmo quando cobriam o céu completamente. Aqui, a luz - o que quer que fosse - era um tanto esverdeada, de uma palidez espectral.
Será porque o sol de Aurora era mais amarelo que o da Terra?
- A cor do céu está... estranha? - perguntou. Daneel ergueu os olhos.
- Não, Colega Elijah. É uma tempestade.
- Vocês têm sempre tempestades assim?
- Nesta época do ano, sim. Temporais ocasionais. Não é surpresa. Foi consignada na previsão do tempo ontem e novamente esta manhã. Terminará antes da aurora e os campos aproveitarão a água. As chuvaradas têm sido um pouco abaixo do normal ultimamente.
- E provoca também esse frio? Isso é normal?
- Ah, sim... Mas entremos no aerocarro, Colega Elijah. Ele pode ser aquecido.
Baley fez um aceno de cabeça e caminhou para o aerocarro, estacionado no trecho gramado onde tinha sido colocado antes do almoço. Parou.
- Espere. Não perguntei a Gremionis como ir até à casa... ou ao escritório de Amadiro.
- Não há necessidade, Colega Elijah - disse Daneel imediatamente, segurando o cotovelo de Baley e empurrando-o suave, mas inequivocamente, para a frente. - O amigo Giskard tem a planta do Instituto gravada perfeitamente em seus bancos de memória e nos levará ao Edifício da Administração. É muito provável que o Dr. Amadiro tenha seu escritório lá.
Giskard confirmou:
- Minhas informações dizem que efetivamente o escritório do Dr. Amadiro é no Edifício da Administração. Se por acaso não estiver lá, mas em casa, esta fica perto.
Baley foi metido novamente no assento da frente, entre os dois robôs. Recebeu com prazer especialmente Daneel, com o calor do seu corpo humaniforme. Apesar da cobertura exterior, semelhante a tecido, ser isolante e não tão fria ao toque quanto o metal nu seria, era o mais agradável dos dois, já que Baley sentia muito frio.
Baley sentiu-se a ponto de pôr o braço sobre os ombros de Daneel, com a intenção de sentir-se confortável puxando-o contra si. Confuso, colocou a mão no colo, e comentou:
- Não gosto de como as coisas parecem lá fora.
Daneel, talvez num esforço para afastar o pensamento de Baley do Exterior, disse:
- Colega Elijah, como sabia que a Dra. Vasilia tinha estimulado o Sr. Gremionis a se interessar pela Srta. Gladia? Não o vi receber nenhuma prova disso.
- Não recebi - replicou Baley. - Eu estava bastante desesperado e dei tiros no escuro... isto é, joguei com acontecimentos de pouca probabilidade. Gladia tinha me dito que Gremionis era a única pessoa suficientemente interessada nela, para se oferecer várias vezes. Pensei que ele talvez tivesse matado Jander por ciúme. Não supus que ele pudesse saber o bastante sobre robótica para fazê-lo, mas soube depois que a filha de Fastolfe, Vasilia, era roboticista e se parecia fisicamente com Gladia. Fiquei imaginando se Gremionis, estando fascinado por Gladia, não pudesse ter sentido o mesmo por Vasilia antes... e se o assassinato poderia possivelmente ser o resultado de um complô dos dois. Foi supondo obscuramente a existência desse complô que fui capaz de persuadir Vasilia a me falar.
- Mas não houve complô, Colega Elijah - retrucou Daneel - pelo menos no que se refere à destruição de Jander. Vasilia e Gremionis não poderiam ter efetuado a destruição, mesmo que tivessem agido juntos.
- Concordo... e apesar disso Vasilia ficou nervosa com a sugestão de ter tido uma ligação com Gremionis. Por quê? Quando Gremionis nos disse ter ficado, primeiro, atraído por Vasilia e depois por Gladia, imaginei se a ligação dos dois tinha sido mais indireta, se Vasilia podia tê-lo encorajado a fazer a transferência, por algum motivo mais remoto, e, apesar disso, ligado à morte de Jander. Afinal de contas, tinha de haver uma ligação entre ambos, a reação de Vasilia à sugestão provou isso.
"Minha suspeita era correta. Vasilia tinha maquinado a mudança de Gremionis de uma mulher para a outra. Gremionis ficou, também, assombrado pelo meu conhecimento disso, o que foi útil, pois se o assunto fosse completamente inocente, não haveria motivo para mantê-lo em segredo... e era evidentemente segredo. Você lembra que Vasilia não mencionou ter insistido com Gremionis para assediar Gladia. Quando lhe disse que o rapaz tinha se oferecido a ela, Vasilia agiu como se fosse a primeira vez que tivesse ouvido aquilo.”
- Mas, Colega Elijah, que importância tem isso?
- Vamos descobrir. Parece-me que não há importância em si, tanto para Gremionis como para Vasilia. Nesse caso, se não houver nenhuma importância, pode existir uma terceira pessoa envolvida. Se não tiver nenhuma relação com o caso Jander, então deve existir um roboticista mais capaz que Vasilia... e este pode ser Amadiro. Assim, insinuei a existência de um complô, frisando deliberadamente que eu havia interrogado Gremionis e estava ligando da casa dele... e isso também deu certo.
- Porém continuo sem saber o que significa tudo isso, Colega Elijah.
- Também eu... a não ser por algumas especulações. Mas talvez descubramos na casa de Amadiro. Nossa situação é tão ruim, veja, que nada temos a perder manobrando e supondo.
Durante este diálogo, o aerocarro tinha se elevado nos jatos e movia-se numa altura moderada. Ultrapassava uma fileira de arbustos e voltara a flutuar sobre áreas gramadas e estradas de cascalho. Baley reparou que, onde a relva estava mais crescida, era varrida para o lado pelo vento como se um aerocarro invisível - e muito maior - estivesse passando por cima. Baley disse:
- Giskard, você está gravando as conversas havidas na sua presença, não é?
- Estou, sim senhor.
- E pode reproduzi-las, se necessário?
- Posso, senhor.
- E situar com facilidade e reproduzir uma declaração feita por alguém?
- Sim, senhor. Não será preciso ouvir a gravação toda.
- E pode se necessário testemunhar num tribunal?
- Eu, senhor? Não, senhor. - Os olhos de Giskard estavam firmemente fixos na estrada. - Uma vez que um robô pode ser levado a mentir por uma ordem bem dada e como todas as exortações e ameaças de um juiz não podem ajudar, a lei considera sabiamente que um robô é uma testemunha incompetente.
- Então, nesse caso, para que servem suas gravações?
- Isso, senhor, é diferente. Uma gravação, uma vez feita, não pode ser alterada a uma simples ordem, apesar de poder ser apagada. Essa gravação pode, contudo, ser admitida como prova. Não há precedentes firmados, contudo, e se é admitida ou não, depende do caso e do juiz.
Baley não soube dizer se a declaração era em si deprimente ou se foi influenciado pela desagradável luz funérea que banhava a paisagem.
- Está podendo ver bem para dirigir, Giskard? - perguntou.
- Certamente, senhor, embora não precise. O aerocarro está equipado com radar computadorizado, que lhe permite evitar obstáculos automaticamente, mesmo que eu, inexplicavelmente, falhasse na minha obrigação. E esteve em operação ontem de manhã, quando viajamos com todo o conforto, apesar de todas as janelas estarem escurecidas.
- Colega Elijah - disse Daneel, novamente mudando a conversa, para afastar da cabeça de Baley a tempestade que se aproximava - espera mesmo que o Dr. Amadiro possa ser útil?
Giskard pousou o aerocarro num gramado vazio, na frente de um edifício grande mas não muito alto, com uma fachada intricadamente esculpida, evidentemente nova, mas dando a impressão de imitar alguma coisa muito antiga.
Baley viu logo que se tratava do Edifício da Administração, sem que lhe dissessem.
- Não, Daneel - retrucou - desconfio que Amadiro deve ser inteligente demais para nos dar o menor pretexto para agarrá-lo.
- Se é assim, que pretende fazer a seguir?
- Não sei - disse Baley com uma triste sensação de déjà vu - mas pensarei em alguma coisa.
Quando Baley entrou no Edifício da Administração, sua primeira sensação foi alívio por estar saindo do Exterior com aquela iluminação estranha. A segunda foi de divertimento irônico.
Ali em Aurora, as moradias - as casas particulares - eram todas estritamente auroreanas. Ele não podia nem por um instante, quando na sala de estar de Gladia, almoçando na sala de jantar de Fastolfe, conversando no escritório de Vasilia, ou usando o aparelho tridimensional de Gremionis, sentir-se na Terra. Éramos quatro completamente diferentes uns dos outros, porém todos deKro de um certo tipo, inteiramente diverso do existente nos apartamentos subterrâneos da Terra.
Contudo, o Edifício da Administração exalava oficialismo e, aparentemente, transcendia a variedade humana comum. Não pertencia ao mesmo tipo de moradias auroreanas, da mesma forma que um prédio oficial na City natal de Baley se parecia com um apartamento nos Setores habitacionais, mas os dois prédios oficiais nos dois mundos, de natureza tão amplamente diferentes, pareciam-se estranhamente.
Aquela era a primeira vez em Aurora que Baley, por um instante, imaginou-se na Terra. Ali estavam os mesmos longos e frios corredores vazios, o mesmo denominador comum vulgar de quadros e decoração, com cada fonte de luz desenhada como que para irritar tão pouca gente quanto possível e para agradar também poucas.
Havia alguns toques que não existiam na Terra: os ocasionais Potes de plantas suspensos, por exemplo, florindo na luz e equipados com mecanismos (Baley supôs) automaticamente comandados para regar. Esse toque natural não existia na Terra e sua presença não lhe agradou. Aqueles vasos não cairiam, às vezes? Não atrairiam insetos? A água não pingaria?
Também faltavam algumas coisas ali. Na Terra, quando se estava no interior de uma cidade, havia sempre o enorme e agradável zumbido da gente e das máquinas... mesmo nos edifícios administrativos mais friamente oficiais. Era o "Ativo Zumbido da Fraternidade", para usar a frase popular entre os políticos e jornalistas da Terra.
Em Aurora, ao contrário, era o silêncio. Baley não tinha reparado especialmente o silêncio nas casas que visitou naquele e no dia anterior, uma vez que tudo parecia tão inatural que mais uma coisa estranha escapou à sua observação. Na verdade, tinha notado muito mais o suave murmúrio da vida dos insetos no exterior ou o vento na vegetação, que a ausência do constante "Zumbido de Humanidade" (outra expressão popular).
Ali, contudo, onde parecia haver um toque de Terra, a ausência do "Zumbido" era tão desconcertante quanto o perceptível toque alaranjado da luz artificial - que era muito mais notável contra o branco leitoso das paredes ali que entre a decoração agitada que caracterizava as casas auroreanas.
O devaneio de Baley não perdurou. Eles estavam parados exatamente na entrada principal e Daneel tinha erguido o braço para que os outros dois parassem. Passaram-se cerca de 30 segundos antes que Baley, falando num sussurro automático, provocado pelo silêncio circundante, perguntou:
- Por que paramos?
- Porque é aconselhável, Colega Elijah - replicou Daneel. - Há um campo picante adiante.
- Um o quê?
- Um campo picante, Colega Elijah. Na verdade, o nome é um eufemismo. Ele estimula as extremidades nervosas e provoca uma dor aguda. Os robôs podem passar, mas humanos não. Qualquer ruptura, porém, seja feita por humano ou robô, dispara um alarma.
- Como pode saber que existe ali um campo picante? - perguntou Baley.
- Ele pode ser visto, Colega Elijah, se souber como procurar. O ar parece cintilar um pouco e a parede além tem uma coloração levemente esverdeada se comparada com a outra defronte.
- Não tenho certeza de estar vendo - disse Baley, indignado
E se me avisassem, ou a outro desprevenido, para que não sofresse essa experiência traumatizante?
- Os membros do Instituto usam um aparelho neutralizador
- replicou Daneel. - Os visitantes quase sempre são recebidos por um ou mais robôs, que certamente percebem o campo picante.
Um robô estava se aproximando pelo corredor, no outro lado do campo (a cintilação do campo foi mais facilmente notada contra a silenciosa suavidade de sua superfície metálica). Pareceu ignorar Giskard, mas por um momento hesitou, quando olhou de Baley para Daneel e novamente para Baley. Depois, tendo tomado uma decisão, dirigiu-se ao último (talvez, pensou o terráqueo, Daneel parecesse humano demais para ser humano).
- Seu nome, senhor? - perguntou o robô.
- Detetive Elijah Baley, da Terra. Estou acompanhado de dois robôs da casa do Dr. Han Fastolfe: Daneel Olivaw e Giskard Reventlov.
- Identidade, senhor?
O número de série de Giskard apareceu em suave fosforescência no lado esquerdo do seu peito.
- Respondo pelos outros dois, amigo - disse ele.
O robô examinou o número um momento, como se o estivesse comparando com um arquivo em seus bancos de memória. Depois, balançou a cabeça e disse:
- Número de série aceito. Podem passar.
Daneel e Giskard adiantaram-se imediatamente, porém Baley caminhou devagar. Estendeu um braço, para experimentar a chegada da dor.
- O campo desapareceu - informou-o Daneel. - Será restabelecido após termos passado, Colega Elijah.
Antes assim, pensou Baley, e continuou a caminhar arrastando os pés até ter ultrapassado o ponto em que a barreira do campo devia ter estado.
Os robôs, sem mostrar sinais de impaciência ou reprovação, esperaram que o relutante Baley emparelhasse com eles.
Depois passaram para uma rampa em espiral, com largura para apenas duas pessoas. O robô tomou a dianteira, Baley e Daneel ficaram lado a lado atrás dele (a mão de Daneel manteve-se de leve, mas quase possessivamente, no cotovelo de Baley), e Giskard fechava a fila.
Baley sentiu seus sapatos apontando para cima de forma levemente desconfortável e sentiu vagamente que seria um tanto cansativo subir aquela rampa muito íngreme, tendo de inclinar-se para a frente, a fim de evitar um escorregão desajeitado. Tanto as solas dos seus sapatos como a superfície da rampa - ou ambas - deviam ser rugosas. Mas na realidade não eram.
O robô-guia falou:
- Sr. Baley.
Parecia estar advertindo sobre alguma coisa e sua mão visivelmente apertou o corrimão que estava segurando.
Imediatamente, a rampa dividiu-se em seções que deslizaram umas contra as outras, formando degraus. Logo depois, a rampa toda começou a erguer-se. Deu uma volta completa, atravessando o teto, uma seção do qual tinha se retraído, e quando parou, estavam no que era (presumivelmente) o segundo andar. Os degraus desapareceram e os quadros saíram.
Baley olhou para trás, com curiosidade.
- Suponho que também atenda os que querem descer, mas e se mais gente quiser subir que descer? Ela terminará erguendo-se meio quilômetro no céu ou mergulhando na terra, em caso contrário.
- Esta é uma espiral ascendente - disse Daneel, em voz baixa.
- Há descendentes separadas.
- Mas tem de descer novamente, não tem?
- Ela dobra no topo, ou no fundo, conforme o caso, Colega Elijah, e nos períodos de inatividade ela desenrola-se, por assim dizer. Esta ascendente está descendo agora.
Baley olhou para trás. A superfície lisa estava deslizando para baixo, mas não exibia irregularidade ou sinal cujo movimento ele pudesse perceber.
- E se alguém quiser usá-la quando estiver subindo até o topo?
- Terá então de esperar pelo seu desenrolar, que levará menos de um minuto... Há também lances de escadas, Colega Elijah, e muitos auroreanos não hesitam em usá-los. Os robôs quase sempre os usam. Como o senhor é visita, estão lhe oferecendo a cortesia da espiral.
Agora andavam novamente por um corredor, em direção a uma porta mais ornamentada que as outras.
- Então, eles estão me oferecendo cortesia - disse Baley. - Bom sinal.
Talvez fosse outro bom sinal a aparição de um auroreano na soleira da porta. Era alto, pelo menos oito centímetros mais alto que Daneel, que era cinco cm mais alto que Baley. Também era encorpado, um tanto pesado, de rosto redondo, nariz de batata, cabelo preto e crespo, moreno e sorridente.
O mais visível era o sorriso. Amplo e aparentemente sincero, revelava dentes salientes, brancos e bem-feitos.
- Ah, é o Sr. Baley, o famoso investigador da Terra - disse ele - que veio ao nosso planetinha para provar que sou um temível vilão. Entre, entre. Seja bem-vindo.
Desculpe se meu capaz assistente, Roboticista Maloon Cieis, lhe deu a impressão de que eu não poderia recebê-lo, mas trata-se de um sujeito cauteloso e se preocupa muito mais com o meu tempo que eu mesmo.
Afastou-se para um lado a fim de Baley entrar e bateu-lhe levemente na espádua com a palma da mão, quando o terráqueo passou. Pareceu um gesto de amizade de uma espécie ainda não experimentada por Baley em Aurora.
Baley falou, cauteloso (estaria sendo arrogante demais?):
- Presumo que o senhor seja o Mestre Roboticista Kelden Amadiro?
- Exatamente. Exatamente. O homem que pretende destruir o Dr. Han Fastolfe como força política neste planeta... mas isso, espero persuadi-lo, realmente não faz de mim um vilão. Afinal de contas, não sou eu quem está tentando provar que é Fastofe o vilão, simplesmente por causa do vandalismo inútil que ele cometeu na estrutura da sua própria criação... pobre Jander. Digamos apenas que eu desejo demonstrar que Fastolfe é... um engano.
Fez um gesto leve e o robô que os trouxera dirigiu-se a um nicho.
Assim que a porta se fechou, Amadiro indicou alegremente a Baley uma poltrona acolchoada e com admirável economia apontou com a outra mão nichos para Daneel e Giskard também.
Baley reparou que Amadiro olhou para Daneel com uma ânsia momentânea e que, nesse instante, o sorriso desapareceu, dando lugar em seu rosto a um semblante de ódio.
Tão rápido como se fora, o sorriso reapareceu. Baley ficou pensando se aquela mudança de expressão momentânea seria fruto de sua própria imaginação.
- Já que fomos brindados com esse horrível mau tempo - disse Amadiro - vamos passar sem essa ineficaz luz diurna com que estamos sendo agraciados duvidosamente.
De algum modo (Baley não percebeu exatamente o que Amadiro fez no painel de comando de sua escrivaninha) as janelas escureceram e as paredes brilharam com uma suave luz diurna. O sorriso de Amadiro aumentou.
- Na verdade, não temos muito a conversar a respeito, Sr. Baley. Tomei a precaução de falar com o Sr. Gremionis enquanto o senhor vinha para cá. Diante do que ele disse, resolvi chamar também a Dra. Vasilia. Aparentemente, Sr. Baley, o senhor acusou-os de cumplicidade na destruição de Jander, e, se bem compreendi, também me acusou.
- Apenas fiz perguntas, Dr. Amadiro, como pretendo fazer agora.
- Sem dúvida, mas o senhor é terráqueo, e por isso não percebe a enormidade de suas ações e lamento realmente que deva, à vista disso, sofrer as conseqüências delas...
O senhor provavelmente sabe que Gremionis me enviou um memorando a respeito de sua calúnia contra ele.
- Ele me disse, porém interpretou mal meu procedimento. Não era calúnia.
Amadiro franziu os lábios, como se estivesse examinando a declaração.
- Ouso dizer que o senhor tem razão do seu ponto de vista, Sr. Baley, mas não compreende a definição auroreana da palavra. Fui obrigado a remeter o memo de Gremionis ao Presidente e, como resultado, é muito provável que o senhor seja expulso do planeta amanhã de manhã. Lamento, claro, mas temo que sua investigação tenha chegado ao fim.
Ainda Amadiro
Baley ficou perplexo. Não sabia o que fazer de Amadiro e não tinha esperado aquela confusão dentro dele. Gremionis o descrevera como "convencido". Pelo que Cicis dissera, esperava um Amadiro autocrático. Pessoalmente, contudo, era alegre, simples, mesmo amistoso. Porém, a acreditar em suas palavras, Amadiro estava calmamente pondo um fim na investigação. E o fazia impiedosamente... apesar de esboçar o que parecia um sorriso de pena.
Como era ele?
Automaticamente, Baley lançou um olhar aos nichos onde Giskard e Daneel estavam, o primitivo Giskard, inexpressivo, claro, o adiantado Daneel calmo e silencioso. Que Daniel houvesse conhecido Amadiro em sua curta existência era, por isso, improvável. Por outro lado, Giskard, em seus (quantos?) decênios de vida, podia perfeitamente tê-lo conhecido.
Baley cerrou os lábios, ao pensamento de que podia ter perguntado antes a Giskard como Amadiro era. Nesse caso, agora estaria em melhores condições para julgar o que era real na atual Personalidade do roboticista e o que era inteligentemente planejado.
Porque, pela Terra... ou apesar dela, pensou Baley, ele não usa recursos de robótica mais inteligentemente? Ou por que Giskard tinha dado informações voluntárias... mas, não, não era Justo. Faltava claramente a Giskard capacidade para atividade independente desse tipo. Ele prestaria informações a pedido, pensou Baley, porém nada forneceria por iniciativa própria.
Amadiro percebeu o breve piscar de olhos de Baley e disse:
- Acho que sou um contra três. Como vê, não tenho aqui no escritório nenhum dos meus robôs, embora haja uma quantidade ao alcance da voz, confesso, enquanto o senhor tem dois robôs de Fastolfe: o velho e fiel Giskard e Daneel, a maravilha da construção.
- Vejo que conhece ambos - disse Baley.
- Apenas de reputação. Vejo-os realmente - eu, roboticista, quase disse "em carne e osso" - vejo-os realmente pela primeira vez fisicamente neste momento, embora já tenha visto Daneel personificado por um ator naquela peça da hiperonda.
- Ao que parece, todo mundo em todos os mundos viu aquele espetáculo - disse Baley, carrancudo. - Isso torna minha vida como indivíduo difícil.
- Não comigo - retrucou Amadiro, aumentando o sorriso. - Garanto-lhe que nunca levei a sério sua personificação teatral. Suponho que o senhor seja limitado na vida real. E de fato é... ou não teria incorrido tão facilmente em acusações infundadas em Aurora.
- Dr. Amadiro - disse Baley - garanto-lhe que eu não estava fazendo acusações formais. Estava apenas realizando uma investigação e examinando possibilidades.
- Não me entenda mal - replicou Amadiro com súbita franqueza. - Não tenciono culpá-lo. Tenho certeza de que o senhor se comporta de acordo com os padrões da Terra.
Acontece que agora o senhor se coloca contra os padrões auroreanos. Nós cultivamos nossa reputação com incrível persistência.
- Se é assim, Dr. Amadiro, o senhor e outros Globalistas não andam caluniando o Dr. Fastolfe com suspeitas muito maiores que as pequenas coisas que andei fazendo?
- De fato - concordou Amadiro. - Mas sou um importante auroreano e gozo de certo prestígio, enquanto que o senhor é terráqueo sem nenhuma influência. Isso é muito injusto, confesso e deploro, mas os mundos são assim. Que podemos fazer? Além disso, a acusação contra Fastolfe pode ser sustentada, e será, e calúnia não é calúnia quando é verdade. Seu erro foi fazer acusações que simplesmente não podem ser mantidas. Estou convicto de que o senhor terá de admitir que nem o Sr. Gremionis nem a Dra. Vasilia Aliena, ou ambos juntos, incapacitaram o pobre Jander.
- Nem os acusei formalmente.
- Talvez não, mas o senhor não pode, em Aurora, se abrigar detrás da palavra "formalmente". Foi muito mau Fastolfe não tê-lo avisado disso, quando o trouxe para fazer essa investigação, essa, como temo que seja agora, infeliz investigação.
Baley sentiu o canto da boca repuxar-se quando pensou que de fato Fastolfe podia tê-lo avisado.
- Serei processado ou já está tudo resolvido? - perguntou Baley.
- Claro que será processado, antes de ser condenado. Não somos bárbaros, aqui em Aurora. O Presidente levará em consideração o memo que lhe enviei, bem como minha sugestão a respeito. Provavelmente consultará Fastolfe, como a outra parte diretamente interessada, e depois promoverá um encontro entre nós três, talvez amanhã.
Será tomada uma decisão então - ou mais tarde - que será ratificada por toda a Legislatura. Todos os trâmites legais serão seguidos, asseguro-lhe.
- A letra da lei será seguida, sem dúvida, mas e se o Presidente já tiver se decidido, e se nada do que disser for aceito, e se a Legislatura simplesmente aprovar uma decisão predeterminada? Isso é possível?
Amadiro de fato não sorriu a isso, mas pareceu sutilmente divertido.
- O senhor é realista, Sr. Baley. Isso me agrada. Os que sonham com a justiça ficam facilmente desapontados... e é habitualmente essa gente maravilhosa que detestamos ver assim.
O olhar de Amadiro tornou a fixar-se em Daneel.
- Um trabalho notável, este robô humaniforme - falou. - É espantoso como Fastolfe manteve o segredo. E é uma vergonha que Jander tenha sido perdido. Fastolfe fez o inesquecível.
- Senhor, o Dr. Fastolfe nega que esteja implicado, seja como for.
- Sim, Sr. Baley, claro que ele nega. Ele disse que eu estou implicado? Ou isso é idéia totalmente sua?
Baley retrucou pausadamente:
- A idéia não é minha. Apenas desejo interrogá-lo a respeito. Quanto ao Dr. Fastolfe, não é candidato a uma de suas acusações de calúnia. Ele tem certeza de que o senhor nada tem a ver com o que aconteceu a Jander, porque está convencido de que lhe falta o conhecimento e capacidade para imobilizar um robô humaniforme.
Se Baley esperava provocar coisas dessa maneira, não conseguiu. Amadiro aceitou o insulto sem perder o bom humor e replicou:
- Nisso ele tem razão, Sr. Baley. A capacidade suficiente não é achada em qualquer roboticista, vivo ou morto, exceto no próprio Fastolfe. Não é o que ele afirma, o nosso modesto mestre dos mestres?
- Sim, é.
- Então que acha ele ter acontecido a Jander?
- Um acaso. Pura eventualidade. Amadiro riu.
- Ele terá calculado a probabilidade de tal acontecimento fortuito?
- Sim. Mestre de Robótica. Porém mesmo uma possibilidade extremamente improvável pode ter acontecido, principalmente se houve incidentes que propiciaram as probabilidades.
- Tais como?
- É o que estou esperando descobrir. Uma vez que o senhor já deu um jeito para me expulsar do planeta, procura agora impedir qualquer inquirição... ou posso continuar minha investigação até o momento em que minha atividade a respeito seja legalmente determinada?... Antes de responder, Dr. Amadiro, por favor, considere que a investigação ainda não terminou legalmente, e em qualquer audiência que possa haver, seja amanhã ou depois, estarei em condições de acusá-lo de negar-se a responder minhas perguntas, se insistir em terminar agora esta entrevista. Isso pode influir na decisão do Presidente.
- Não influirá, caro Sr. Baley. Não imagine que pode, de alguma forma, meter-se comigo... Contudo, pode me interrogar o tempo que quiser. Cooperarei totalmente, quando mais não seja, para gozar do espetáculo do bom Fastolfe tentando inutilmente livrar-se da sua infeliz façanha. Não sou excessivamente vingativo, Sr. Baley, mas o fato de Jander ter sido criação de Fastolfe não dá a este o direito de destruí-lo.
- Ainda não ficou legalmente comprovado - retrucou Baley - que ele tenha feito aquilo, de sorte que o que o senhor acaba de dizer é, pelo menos potencialmente, calúnia.
Contudo, deixemos isso de lado e continuemos a entrevista. Preciso de informações. Farei as perguntas breve e diretamente, se responder da mesma forma, terminaremos rapidamente.
- Não, Sr. Baley. Não é o senhor quem estabelecerá as condições desta entrevista - retrucou Amadiro. - Sei que um ou ambos os seus robôs estão equipados para gravar toda a nossa conversa.
- Acho que sim.
- Sei que sim. Também tenho um gravador. Não pense, meu bom Sr. Baley, que poderá me levar por um cipoal de respostas curtas até alguma coisa que sirva aos interesses de Fastolfe. Responderei como quiser e quando tiver certeza de que não serei mal interpretado. E meu próprio gravador me ajudará a ficar certo de que não Vou ser mal compreendido.
Agora, pela primeira vez, havia uma sugestão de crueldade detrás da atitude amistosa de Amadiro.
- Pois muito bem, mas se suas respostas forem deliberadamente confusas e evasivas, isso também aparecerá na gravação.
- Evidentemente.
- Isto posto, posso, para começar, pedir-lhe um copo d'água?
- Imediatamente... Giskard, quer atender ao Sr. Baley?
O robô saiu imediatamente do seu nicho. Ouviu-se o inevitável tinido do gelo no bar existente no outro lado da sala e logo depois um copo grande de água gelada era colocado na escrivaninha, diante de Baley.
- Obrigado, Giskard - disse Baley e esperou que o robô voltasse para seu nicho. E virando-se para o roboticista: - Dr. Amadiro, estou certo ao considerá-lo o chefe do Instituto de Robótica?
- Sim, está.
- É seu fundador?
- Também. Como vê, respondo com brevidade.
- Há quanto tempo ele existe?
- Como um conceito, há décadas. Andei reunindo pessoas afins durante pelo menos quinze anos. Há doze anos obtivemos licença da Legislatura. A construção começou
há nove anos e o trabalho efetivo há seis. Na sua forma atual, o Instituto tem dois anos e há planos a longo prazo para finalmente expandir-se...
É uma resposta longa, senhor, mas dita de forma razoavelmente concisa.
- Por que achou necessário fundar o Instituto?
- Ah, Sr. Baley. O senhor está esperando no mínimo uma resposta cansativa.
- Como quiser, senhor.
Nesse momento, entrou um robô com uma bandeja de pequenos sanduíches e pastéis ainda menores, nenhum familiar a Baley. Experimentou um sanduíche e achou-o crocante, não o considerando exatamente desagradável, mas bastante estranho, terminando-o com esforço. Rebateu-o com o que restava de água no copo.
Amadiro ficou observando com uma espécie de divertimento simpático e continuou:
- Precisa compreender, Senhor Baley, que nós, auroreanos somos um povo extraordinário. Também o são os Espaciais, e,em geral. Mas estou me referindo agora especialmente aos auroreanos. Somos descendentes de terráqueos, coisa sobre a qual a maior parte de nós não gosta de pensar, mas fomos auto-selecionados.
- Que significa isso, senhor?
- Os terráqueos moraram durante muito tempo num planeta cada vez mais abarrotado, sendo forçados a se reunir em cidades ainda mais super-habitadas que, finalmente, tornaram-se as colméias e formigueiros que o senhor chama de Cidades, com C maiúsculo. Que espécie de terráqueo então deixaria a Terra, partindo para outros mundos, vazios e hostis, para construir novas sociedades do nada, sociedades que não poderia usufruir de forma total durante sua própria vida: árvores que ainda seriam mudas quando morresse, por assim dizer?
- Gente um tanto incomum, suponho.
- Muito incomum. Especialmente, gente que não era muito dependente de multidões, por lhe faltar a capacidade de enfrentar o vazio. Gente que preferia até esse vazio, que gostaria de trabalhar para si mesma e encarar os próprios problemas, em vez de se esconder na multidão e dividir o ônus, uma vez que sua própria carga é virtualmente nenhuma. Individualistas, Sr. Baley, individualistas!
- Compreendo.
- E nossa sociedade tem isso como fundamento. Em qualquer direção em que os mundos Espaciais se desenvolveram posteriormente, nosso individualismo foi reforçado.
Em Aurora, somos orgulhosamente humanos, em vez de sermos carneiros desordenados como na Terra... Considere, Sr. Baley, que uso a metáfora não como uma forma de ridicularizar a Terra. Esta é uma sociedade simplesmente diferente, à qual não admiro, mas que o senhor, suponho, acha confortável e ideal.
- Que tem isso a ver com a fundação do Instituto, Dr.
Mesmo o individualismo orgulhoso e saudável tem suas desvantagens. Os maiores cérebros, trabalhando individualmente, mesmo durante séculos, não podem progredir rapidamente, se recusam divulgar suas descobertas. Um quebra-cabeça complicado pode reter um cientista durante um século, quando um seu colega já tem a solução e nem mesmo tem idéia do quebra-cabeça que pode resolver... O Instituto é uma tentativa, pelo menos no limitado campo da robótica, de introduzir uma certa comunidade de pensamento.
- Será que o complicado quebra-cabeça a que está se referindo é a construção de um robô humaniforme?
Os olhos de Amadiro cintilaram.
- Sim, é evidente, não acha? Foi há 26 anos que o novo sistema matemático de Fastolfe, que ele denomina "análise intersetorial", tornou possível planejar robôs humaniformes... porém ele guardou o segredo. Anos depois, quando todos os difíceis detalhes técnicos tinham sido resolvidos, ele e o Dr. Sarton usaram a teoria para construir Daneel.
Depois, Fastolfe sozinho fez Jander. Mas, também, todos os detalhes foram conservados secretos.
"A maior parte dos roboticistas encolheu os ombros e achou natural. Só lhes restava tentar individualmente descobrir, sem ajuda, os detalhes. Eu, de minha parte, pensei na possibilidade de um Instituto, onde os esforços pudessem ser conjugados. Não foi fácil persuadir outros roboticistas da utilidade do plano, nem convencer a Legislatura a fundá-lo, contra a formidável oposição de Fastolfe, ou perseverar durante anos de trabalho, mas aqui estamos.”
- Por que o Dr. Fastolfe se opôs? - perguntou Baley.
- Para começar, amor-próprio comum... e não acho que isso seja ruim, compreenda. Todos nós temos amor-próprio natural. Vem com o domínio do individualismo. Acontece que Fastolfe se considera o maior roboticists da história e também acha que o robô humaniforme é sua realização particular. Não o quer reproduzido por um grupo de roboticistas, sem individualidade, se comparados com ele. Imagino que ele considerou o fato como um complô de gente inferior para minimizar e descaracterizar seu grande triunfo.
- O senhor disse que foi esse o motivo dele, "para começar". Significa que o Dr. Fastolfe tinha outros motivos. Quais eram?
- Também se opôs ao nosso plano de utilização dos robôs humaniformes.
- Que uso, Dr. Amadiro?
- Ora, ora. Não se faça de inocente. O Dr. Fastolfe com certeza lhe contou os planos dos Globalistas para a colonização da Galáxia.
- Contou, e por falar nisso, a Dra. Vasilia se referiu às dificuldades de progresso científico entre os individualistas. Contudo isso não impede que eu queira ouvir seu ponto de vista a respeito! Nem isso irá impedi-lo de me dizer. Por exemplo, quer que eu aceite a interpretação do Dr. Fastolfe dos planos globalistas, como sem preconceitos e imparciais... e quer gravar isso? Ou preferirá descrever seus planos com suas próprias palavras?
- Digamos, Sr. Baley, que o senhor não tem a intenção de me deixar escolher.
- Nenhuma, Dr. Amadiro.
- Muito bem. Eu, ou melhor, nós, devo dizer, pois os membros do Instituto pensam o mesmo a esse respeito, olhamos para o futuro e desejamos ver a humanidade abrindo cada vez mais novos planetas ,à colonização. Não queremos porém que o processo de auto-seleção destrua os planetas mais antigos ou os reduza à agonia, como no caso, desculpe, da Terra. Não queremos que os novos planetas levem os melhores de nós, deixando o rebotalho. Está percebendo, não?
- Continue, por favor.
- Em qualquer sociedade de orientação robótica, como a nossa, a solução fácil é mandar robôs como colonizadores. Os robôs construirão a sociedade e o mundo e nós poderemos então ter mais tarde os seguidores sem seleção, pois o novo mundo será tão confortável e adaptado a nós mesmos quanto nós aos velhos mundos, de forma que poderemos partir para os novos mundos sem deixar o lar, por assim dizer.
- Os robôs não irão criar mundos robóticos em vez de humanos?
- Claro, se mandarmos robôs que não passem de robôs. Temos contudo a oportunidade de enviar robôs humaniformes como Daneel que, ao criarem mundos para eles, estarão criando automaticamente mundos para nós. O Dr. Fastolfe, no entanto, foi contra. Encontrou virtudes no pensamento de seres humanos construindo um novo mundo num planeta estranho e medonho, sem querer ver que o esforço custará não apenas grandes quantidades de vidas humanas, como iria criar um mundo modelado por acontecimentos catastróficos num lugar não semelhante aos mundos que conhecemos.
- Como os mundos Espaciais são, hoje, diferentes da Terra e entre eles?
Amadiro perdeu por instantes a jovialidade e ficou pensativo.
- Realmente, Sr. Baley, o senhor tocou num ponto importante. Estou discutindo unicamente Aurora. Os mundos Espaciais diferem de fato uns dos outros e não tenho grande simpatia pela maioria deles. É claro para mim, embora possa ser preconceito, que Aurora, o mais antigo deles, é também o melhor e o mais bem-sucedido. Não quero uma variedade de novos mundos, quando apenas alguns podem ser realmente valiosos. Quero muitos Auroras, incontáveis milhões de Auroras, e por esse motivo quero novos mundos transformados em Auroras antes dos seres humanos chegarem lá. Por falar nisso, esse é o motivo de nos chamarmos "Globalistas". Estamos preocupados com este nosso globo, Aurora, e não com outro.
- Não vê valor na variedade, Dr. Amadiro?
- Se variedade significa qualidade, talvez haja valor, mas se alguns, ou a maior parte, forem inferiores, em que isso beneficiaria a humanidade?
- Quando iniciará essa empreitada?
- Quando tivermos robôs humaniformes para trabalhar. Até agora só existiam os dois de Fastolfe e ele destruiu um deixando apenas Daneel, como único espécime.
Olhou rapidamente para Daneel, enquanto falava.
- Quando terá robôs humaniformes?
- É difícil dizer. Ainda não chegamos ao ponto do Dr. Fastolfe.
- Apesar dele ser um e os senhores muitos, Dr. Amadiro? Amadiro encolheu ligeiramente os ombros.
- Está pondo fora seu sarcasmo, Sr. Baley. Fastolfe começou bem antes de nós, e apesar do Instituto ter existido durante muito tempo em embrião, só estamos trabalhando plenamente há dois anos. Além disso, será necessário que igualemos Fastolfe e o ultrapassemos. Daneel é um bom produto, porém não passa de um protótipo, não sendo suficientemente bom.
- De que maneira os robôs humaniformes precisam ser melhorados além do ponto de Daneel?
- Evidentemente, precisam ser mais humanos. Devem existir de ambos os sexos e terem o equivalente a filhos. Deveremos ter uma expansão geral se quisermos edificar uma sociedade humana suficiente nos planetas.
- Estou prevendo dificuldades, Dr. Amadiro.
- Sem dúvida. Muitas dificuldades. E quais as que prevê, Sr. Baley?
- Se puder produzir robôs humaniformes a tal ponto de poderem edificar uma sociedade humana, e se forem construídos com uma expansão geral em ambos os sexos, como serão capazes de distingui-los dos seres humanos?
- Isso terá importância?
- Pode ter. Se tais robôs forem muito humanos, poderão se misturar com a sociedade auroreana e tornar-se parte de grupos familiares humanos... e não poderão ser adequados ao serviço de pioneiros.
Amadiro riu.
- É claro que o senhor ficou pensando nisso por causa da ligação de Gladia Delmarre com Jander. Olhe, conheço um pouco da sua entrevista com aquela mulher, por intermédio de Gremionis e da Dra. Vasilia. Lembro-lhe que Gladia é de Solaria e sua noção do que seja um marido não é necessariamente idêntica à dos auroreanos.
- Eu não estava pensando especialmente nela. Estava pensando que o sexo em Aurora é amplamente interpretado e que robôs como parceiros sexuais ainda hoje são tolerados, mesmo com os de aparência apenas aproximadamente humaniforme. Se não é possível realmente distinguir um robô de um ser humano...
- Há os filhos. Robôs não podem ter filhos.
- Mas isso nos leva a outro ponto. Os robôs precisarão ser longevos, uma vez que a própria edificação da sociedade pode levar séculos.
- De qualquer forma, deverão ser longevos se parecidos com os auroreanos.
- E os filhos: também duradouros? Amadiro ficou calado.
- Serão filhos-robôs artificiais - disse Baley - e nunca crescerão: não envelhecerão nem ficarão maduros. Isso certamente criará um elemento suficientemente não humano para provocar dúvida sobre a natureza da sociedade.
Amadiro suspirou.
- O senhor é perspicaz, Sr. Baley. Pensamos de fato em desenvolver um plano onde os robôs possam produzir filhos que de certo modo cresçam e se desenvolvam... pelo menos o tempo suficiente para estabelecer a sociedade que desejamos.
- E então, quando os humanos chegarem, os robôs poderão ser reconduzidos a planos mais robóticos de comportamento.
- Talvez... se parecer aconselhável.
- E a produção de crianças? Sem dúvida, poderá ser melhor se o sistema usado for o mais humano possível, não acha?
- Possivelmente.
- Sexo, fecundação, nascimento?
- Possivelmente.
- E se esses robôs constituírem uma sociedade tão humana que não possa ser diferençada, então, quando os verdadeiros seres humanos chegarem, não será possível que os robôs ofendam-se e tratem de impedir sua entrada? Os robôs não irão reagir aos auroreanos como os senhores com os terráqueos?
- Sr. Baley, os robôs continuarão a ser limitados pelas Três
Leis.
- As Três Leis falam de não causar dano a seres humanos e de obedecê-los.
- Exatamente.
- E se os robôs ficarem tão semelhantes aos seres humanos que se considerem como estes, aos quais devem proteger e obedecer? Podem perfeitamente colocar-se acima dos imigrantes.
- Meu bom Sr. Baley, por que se preocupa tanto com tudo isso? São coisas de um futuro longínquo. Haverá soluções, à medida que avançarmos no tempo e compreendermos, pelo estudo, o que serão realmente esses problemas.
- Pode acontecer, Sr. Amadiro, que os auroreanos não fiquem muito de acordo com o que o senhor está planejando, quando compreenderem do que se trata. Podem preferir o ponto de vista do Dr. Fastolfe.
- Será? Fastolfe pensa que se os auroreanos não podem colonizar novos planetas diretamente e sem a ajuda de robôs, então os terráqueos devem ser estimulados a fazê-lo.
- Parece-me de muito bom senso - replicou Baley.
- Porque o senhor é terráqueo, meu bom Baley. Garanto-lhe que os auroreanos não acharão agradável ter terráqueos pululando nos novos mundos, construindo novas colméias e constituindo uma espécie de império galáctico com seus trilhões e quatrilhões, reduzindo os mundos Espaciais a quê? À insignificância no melhor e à extinção, no pior dos casos.
- Mas a alternativa é mundos de robôs humaniformes, construindo sociedades quase-humanas e permitindo seres humanos não verdadeiros entre eles. Pouco a pouco, seria desenvolvido um império galáctico robótico, reduzindo os mundos Espaciais à insignificância no melhor e à extinção no pior dos casos. Certamente, os auroreanos irão preferir um Império Galáctico humano a um robótico.
- Por que tem tanta certeza disso, Sr. Baley?
- A forma que a sua sociedade toma agora me dá certeza. Contaram-me, na viagem para cá, que não era feita qualquer distinção entre robôs e humanos em Aurora, porém evidentemente não é verdade. Poderá existir um desejo disso, que faz os auroreanos se gabarem, mas não há.
- O senhor está aqui há quanto tempo? Menos de dois dias, e já pode afirmar isso?
- Sim, Dr. Amadiro. Talvez por eu ser exatamente um estranho, posso ver claramente. Não estou cego por costumes e ideais. Não é permitido aos robôs entrarem nos Pessoais e essa distinção está claramente estabelecida. Permite aos seres humanos encontrarem um lugar onde possam ficar sós. O senhor e eu sentamo-nos à vontade, enquanto os robôs permanecem em pé nos nichos, como vê - Baley moveu o braço na direção de Daneel - o que é outra distinção. Acho que os seres humanos, mesmo auroreanos, estarão sempre ansiosos para fazer distinções e preservar sua humanidade.
- Espantoso, Sr. Baley.
- De modo nenhum, Dr. Amadiro. O senhor perdeu. Mesmo que o senhor quisesse incutir aos auroreanos em geral que o Dr. Fastolfe destruiu Jander, mesmo que o senhor reduza o Dr. Fastolfe à impotência política, mesmo que o senhor consiga que a Legislatura e o povo auroreanos aprovem seu plano de colonização robótica, o senhor apenas terá ganho tempo. Tão logo os auroreanos percebam as implicações do seu plano, ficarão contra o senhor. Será melhor portanto que ponha um fim na sua campanha contra o Dr. Fastolfe e se junte a ele para trabalhar num acordo pelo qual a colonização de novos mundos por terráqueos possa ser conseguida de forma a não representar uma ameaça a Aurora nem aos mundos Espaciais em geral.
- Espantoso, Sr. Baley - repetiu Amadiro.
- O senhor não tem escolha - replicou Baley francamente. Porém Amadiro respondeu, num tom divertido e calmo:
- Quando digo que seus comentários são espantosos, não me refiro ao conteúdo deles, mas apenas ao fato de que os faz... e pensa valerem alguma coisa.
Baley ficou vendo Amadiro pegar o último pastel, pondo metade dele na boca com evidente prazer.
- Muito bom - disse Amadiro - gosto bastante de comer. Eu estava dizendo o quê?... Ah, sim. Sr. Baley, acha ter descoberto un segredo? Que eu lhe tenha dito uma coisa que nosso mundo ainda não saiba? Que meus planos são perigosos, mas que eu os conto a cada recém-chegado? Imagino que possa pensar que, caso converse longamente com o senhor, certamente direi algumas bobagens, das quais o senhor poderá tirar partido. Convença-se do contrário. Meus planos de cada vez mais robôs humaniformes, famílias robóticas e por uma cultura tão humana quanto possível constam dos registros. Estão à disposição da Legislatura e de quem estiver interessado.
- A população os conhece? - perguntou Baley.
- Provavelmente não. Ela tem suas prioridades e está mais interessada na próxima refeição, no próximo programa da hiperonda, na próxima disputa de futebol espacial, que no próximo século ou milênio. Contudo, a população terá tanto prazer em aceitar meus planos quanto os intelectuais que já os conhecem.
- Tem certeza?
- Por mais estranho que pareça, tenho. Receio que o senhor não compreenda a intensidade de sentimentos que os auroreanos e Espaciais em geral têm em relação aos terráqueos. Não partilho desses sentimentos, creia, e sinto-me, por exemplo, bem à vontade com o senhor. Não tenho o medo primitivo da infecção, não imagino que o senhor cheire mal e não lhe atribuo toda espécie de peculiaridades pessoais que considero ofensivas, como também não penso que o senhor e os seus estejam planejando matar-nos e roubar nossas propriedades... mas a maioria dos auroreanos pensa assim. Pode não estar muito à flor da pele e os auroreanos podem, mesmo, ser muito educados com terráqueos que pareçam inofensivos, mas submeta-os ao exame e todo o seu ódio e desconfiança emergirão. Diga-lhes que os terráqueos abundam nos novos mundos e se anteciparão à ocupação da galáxia e eles urrarão pela destruição da Terra, antes que isso aconteça.
- Mesmo que a alternativa seja uma sociedade robótica?
- Certamente. O senhor não compreende como nos sentimos com relação aos robôs. Eles nos são familiares. Sentimo-nos em casa com eles.
- Não, eles são seus criados. Sentem-se superiores a eles e em casa apenas enquanto essa superioridade for mantida. Se sentirem-se ameaçados por uma reviravolta, por eles poderem tornar-se seus superiores, reagirão horrorizados.
- Está dizendo isso porque seria a forma dos terráqueos reagirem.
- Não. Os senhores os mantêm fora dos Pessoais. É um sintoma.
- Aqueles compartimentos não servem a eles para nada. Têm seus próprios locais de asseio e não evacuam... Claro, não são verdadeiramente humaniformes. Se fossem, não poderíamos fazer essa distinção.
- Iriam temê-los ainda mais.
- É verdade? - perguntou Amadiro. - Que bobagem. O senhor teme Daneel? Se eu acreditar naquela peça da hiperonda, e confesso que não posso acreditar, o senhor desenvolveu uma afeição enorme por Daneel. Continua com o mesmo sentimento?
O silêncio de Baley foi eloqüente e Amadiro tirou partido da vantagem.
- Neste instante - prosseguiu - o senhor está pouco ligando ao fato de Giskard permanecer calado e indiferente num nicho, mas posso afirmar, por pequenos exemplos da linguagem corporal, que está preocupado pelo fato de acontecer o mesmo a Daneel. O senhor acha que ele é humano demais na aparecia, para ser tratado como robô.
Não o teme mais pelo fato dele parecer humano.
- Sou terráqueo. Temos robôs - retorquiu Baley - mas não uma cultura robótica. Meu caso não serve de julgamento.
- E Gladia, que preferiu Jander a seres humanos...
- Ela é solariana. Também não pode julgar pelo caso dela.
- Então, baseado em que o senhor julga? Está apenas presumindo. Para mim é evidente que se um robô é suficientemente humano, deve ser aceito como tal. O senhor exige prova de que eu não sou robô? O fato de eu parecer humano é suficiente. No fundo, não nos iremos preocupar se um novo mundo for colonizado por auroreanos humanos de fato ou na aparência, se ninguém puder fazer a distinção. Mas humano ou robô, os colonizadores, seja como for, serão auroreanos e não terráqueos.
Baley vacilou. E de maneira pouco convincente perguntou:
- E se os senhores nunca souberem como construir um robô humaniforme?
- Por que o senhor julga isso? Repare que eu disse "nós". Temos muita gente envolvida nisso.
- Pode acontecer que uma quantidade de mediocridades não substitua um gênio.
Amadiro replicou friamente:
- Não somos mediocridades. Fastolfe ainda vai achar proveitoso juntar-se a nós.
- Acho que não.
- Acho que sim. Ele não gostará de ficar sem força na Legislatura, e quando nossos planos de colonizar a Galáxia forem acionados e ele vir que sua oposição não nos parará, virá juntar-se a nós. É humano proceder assim.
- Não creio que o senhor vença - afirmou Baley.
- Isso porque o senhor pensa que de uma forma ou de outra sua investigação absolverá Fastolfe e me culpará, a mim ou talvez a outro.
- É possível - disse Baley, em desespero. Amadiro sacudiu a cabeça.
- Meu amigo, se eu pensasse que sua ação estragaria meus planos, estaria calmamente sentado aqui, esperando a destruição?
- Não, não estaria. Faria o impossível para interromper esta investigação. Mas, por que, se tem confiança em que nada que eu possa fazer o atrapalhará?
- Bem - disse Amadiro - o senhor pode me atrapalhar, desmoralizando alguns membros do Instituto. O senhor não pode se tornar perigoso, mas pode se tornar incômodo... e não quero nenhuma das duas coisas. Portanto, se eu puder, porei um fim no incômodo, mas de forma razoável, suave, mesmo. Se o senhor for realmente perigoso...
- Nesse caso, que poderá fazer, Dr. Amadiro?
- Posso mandar pegá-lo e aprisioná-lo até ser expulso. Não creio que os auroreanos se preocupem demais com o que poderei fazer a um terráqueo.
- O senhor está querendo me intimidar e isso não vai adiantar - retrucou Baley. - Sabe muito bem que não pode pôr a mão em mim, com meus robôs presentes.
- Já lhe ocorreu que tenho uma centena de robôs ao alcance da voz? Que podem os seus fazer contra eles?
- Não têm condições de me causar dano. São incapazes de distinguir entre auroreanos e terráqueos. Sou humano, dentro do sentido das Três Leis.
- Podem mantê-lo imobilizado, sem causar-lhe dano, enquanto seus robôs são destruídos.
- Será difícil - replicou Baley. - Giskard pode ouvi-lo, e se fizer um gesto chamando seus robôs, ele o imobilizará. Move-se muito depressa, e tão logo isso aconteça, seus robôs serão inúteis, mesmo que possa chamá-los. Eles compreenderão que qualquer movimento contra mim resultará em dano para o senhor.
- Está dizendo que Giskard me atacaria?
- Para me proteger? Certamente. Ele o mataria, se absolutamente necessário.
- Certamente, não está querendo dizer isso.
- Estou - afirmou Baley. - Daneel e Giskard receberam ordens para me proteger. A Primeira Lei, que se refere a isso, foi reforçada pela habilidade do Dr. Fastolfe... especificamente em relação a mim. Nunca me explicaram claramente, mas tenho certeza de que é verdade. Se os meus robôs tiveram de escolher entre causarlhe dano ou a mim, apesar de terráqueo, será fácil para eles escolherem o senhor. Imagino que o senhor sabe muito bem que o Dr. Fastolfe não está muito ansioso para assegurar seu bem-estar.
Amadiro deu uma risada, que torceu seu rosto.
- Tenho certeza de que o senhor tem razão a esse respeito, Sr. Baley, mas é bom que o senhor diga. Sabe, meu bom senhor, que também estou gravando esta entrevista, eu lhe disse no começo, e sinto-me satisfeito por tê-lo feito. É possível que o Dr. Fastolfe apague a última parte desta conversa, mas garanto-lhe que eu não. Ficou claro, do que o senhor disse, que ele está bem preparado para achar um meio robótico de me causar dano, mesmo matar-me, se conseguir, mas que não pode ser deduzido dos termos desta conversa, ou de outra, que planejo feri-lo fisicamente ou mesmo ao senhor. Quem de nós é o vilão, Sr. Baley?... Acho que o senhor já sabe e, portanto, penso que é uma boa hora para terminarmos a entrevista.
Levantou-se ainda sorrindo e Baley, meio engasgado, ergueu-se também, quase mecanicamente.
- Contudo, ainda tenho uma coisa a dizer - acrescentou Amadiro. - Nada tem a ver com nossa pequena desavença aqui em Aurora: minha com Fastolfe. Em vez disso, com seu próprio problema, Sr. Baley.
- Meu problema?
- Talvez eu deva dizer o problema da Terra. Imagino que o senhor sente-se muito ansioso para salvar o pobre Fastolfe da sua própria asneira, porque julga que isso dará ao seu planeta uma oportunidade de expansão... Não pense assim, Sr. Baley. O senhor está enganado redondamente, para usar uma expressão vulgar que encontrei em alguns dos romances clássicos do seu planeta.
- Essa expressão não me é familiar - retrucou Baley secamente.
- Quero dizer que sua situação inverteu-se. Veja, quando meu ponto de vista vencer na Legislatura, e note que digo "quando" e não "se", a Terra será forçada, confesso, a permanecer no seu próprio sistema planetário, mas realmente para o seu próprio bem. Aurora terá a primazia da expansão e de estabelecer um império interminável.
Se então soubermos que a Terra será apenas a Terra e nunca alguma coisa mais, que preocupação será ela para nós? com a Galáxia à nossa disposição, não invejaremos os terráqueos por causa do seu mundo. Ficaremos mesmo dispostos a tornar a Terra muito confortável e prática para seus habitantes.
"Por outro lado, Sr. Baley, se os auroreanos fizerem o que Fastolfe pede e permitirem que a Terra envie expedições colonizadoras, então não levará muito tempo para que ocorra a um número crescente de nós que a Terra irá se apossar da Galáxia e que nós seremos cercados e encurralados, que seremos levados à decadência e à morte.”
Depois disso, nada poderei fazer. Meu sentimento generoso em relação aos terráqueos não será capaz de resistir ao fogoso crescimento da suspeita e dos preconceitos auroreanos, o que será então muito ruim para a Terra.
"Portanto, Sr. Baley, se estiver verdadeiramente preocupado com seu próprio povo, deve estar mesmo muito ansioso para que Fastolfe não tenha sucesso em impor a este planeta seu plano tolo. O senhor poderá ser um forte aliado meu. Pense nisso. Olhe, garanto-lhe uma amizade sincera e honesta, ao senhor e ao seu planeta.”
Amadiro continuava exibindo o enorme sorriso, mas agora francamente cruel.
Baley e seus robôs saíram com Amadiro, acompanhando-o pelo corredor.
O auroreano parou numa porta imperceptível e disse:
- Deseja usar as facilidades antes de partir?
Durante um momento, Baley franziu a testa, confuso, pois não tinha compreendido. Depois lembrou-se da frase antiquada que Amadiro usara, graças às suas próprias leituras dos romances clássicos.
- Houve um antigo general - replicou - cujo nome esqueci, que, atento às exigências da súbita assimilação na vida militar, disse uma vez: "Nunca recuse uma oportunidade de mijar."
Amadiro sorriu francamente e comentou:
- Excelente conselho. Quase tão bom quanto o meu de pensar seriamente sobre o que eu disse... Mas noto que mesmo assim o senhor hesita. Certamente, não está pensando que estou lhe estendendo uma armadilha. Acredite-me, não sou selvagem. O senhor é meu hóspede nesta casa, e por esse único motivo o senhor está perfeitamente a salvo.
- Se hesitei - falou Baley, com cuidado - foi porque estou considerando a necessidade de usar as suas... facilidades, uma vez que não sou auroreano.
- Bobagem, meu caro Baley. Qual a sua alternativa? As necessidades têm primazia. Por favor, use-as. Deixe que isso se torne o símbolo de que não me submeto aos preconceitos auroreanos generalizados e desejo bem ao senhor e à Terra.
- Pode dar um passo à frente?
- Em que direção, Sr. Baley?
- Pode mostrar-me que também é superior ao preconceito deste planeta contra robôs...
- Não há preconceitos contra robôs - atalhou Amadiro apressadamente.
Baley abanou a cabeça com solenidade, numa aceitação aparente da afirmação, e completou a frase:
- ...Permitindo-lhes que entrem no Pessoal comigo. Habitueime a sentir-me inconfortável sem eles.
Durante um momento, Amadiro pareceu abalado. Recobrou-se quase imediatamente e disse, franzindo o cenho:
- Pois não, Sr. Baley.
- Mas quem estiver aí dentro poderá se opor vigorosamente. Não quero provocar um escândalo.
- Não há ninguém aí. Este é um Pessoal individual e se houvesse alguém fazendo uso dele, a plaqueta indicaria isso.
- Obrigado, Dr. Amadiro - disse Baley. Abriu a porta e falou: - Giskard, entre por favor.
Giskard hesitou visivelmente, mas nada disse e entrou. A um gesto de Baley, Daneel seguiu-o, mas, ao entrar, pegou Baley pelo braço e empurrou-o para dentro.
Baley disse, quando a porta fechou-se às suas costas:
- Sairei logo. Obrigado por ter permitido.
Entrou no banheiro com o máximo de despreocupação que pôde demonstrar, mas apesar disso sentiu uma rigidez na boca do estômago. O local teria alguma surpresa desagradável?
Baley no entanto encontrou o Pessoal vazio. Não havia mesmo muito onde procurar. Era menor que o da casa de Fastolfe.
Finalmente, reparou em Daneel e Giskard, silenciosamente imóveis lado a lado, costas para a porta, como que esforçando-se para ocupar o menor espaço possível.
Baley tentou falar normalmente, mas o que surgiu foi um resmungo baixo. Pigarreou com força desnecessária e disse:
- Podem vir mais para dentro... e você não precisa ficar calado, Daneel (Este havia estado na Terra. Conhecia o tabu terráqueo contra falar no Pessoal).
Daneel mostrou seu conhecimento imediatamente. Colocou o indicador sobre os lábios. Baley disse:
- Eu sei, eu sei, mas esqueça. Se Amadiro pode esquecer o tabu auroreano sobre robôs nos Pessoais, posso esquecer o terráqueo sobre falar aqui.
- Isso não o fará sentir-se mal, Colega Elijah? - perguntou
Daneel, em voz baixa.
- Nem um pouco - replicou Baley em tom normal (Realmente, falar com Daneel, um robô, era diferente. O som da fala num recinto como aquele, quando não havia de fato nenhum ser humano, não era tão horrendo quanto poderia ser. Na verdade, nada tinha de pavoroso quando só havia robôs presentes, por mais humaniforme que um deles pudesse ser. Claro que Baley não pôde dizer isso. Embora Daneel não tivesse sentimentos que um humano pudesse ferir, Baley tinha por ele.
E então Baley pensou em mais uma coisa, passando a sentir intensamente a sensação de estar sendo um trouxa completo.
- Ou - perguntou a Daneel, numa voz tornada repentinamente baixíssima - está sugerindo silêncio porque este local está vigiado?
A última palavra surgiu apenas pelo formato da boca.
- Se está pensando, Colega Elijah, que gente fora daqui pode pegar o que se fala dentro, por intermédio de algum aparelho, isso é impossível.
- Impossível por quê?
A descarga foi dada automaticamente com rápida e silenciosa eficiência e Baley dirigiu-se à pia.
- Na Terra, a densidade habitacional das Cidades torna a privacidade impossível - disse Daneel. - É assegurado o direito de escutar, e o uso de um aparelho para tornar a escuta mais eficiente pode parecer natural. Se um terráqueo não quer ser ouvido, simplesmente não fala, sendo talvez por isso que o silêncio é tão exigido em lugares onde há uma pretensa privacidade, como nos lugares que você chama Pessoais.
"Em Aurora, por outro lado, como em todos os mundos Espaciais, a privacidade existe realmente e é muito valorizada. Você lembra de Solaria, onde isso é levado a extremos de fanatismo. Mas mesmo em Aurora, que não é Solaria, cada ser humano é isolado de qualquer outro ser humano, por uma quantidade de espaço impensável na Terra e por uma parede de robôs para reforçar. Quebrar essa privacidade seria um ato inconcebível.
- Quer dizer que seria crime colocar uma escuta aqui? - perguntou Baley.
- Muito pior, Colega Elijah. Um cavalheiro civilizado auroreano não procederia assim.
Baley olhou em volta. Daneel, interpretando o gesto errado, tirou uma toalha de um compartimento, que poderia não ser perceptível instantaneamente a olhos desacostumados, estendendo-a a Baley.
Baley aceitou-a, porém não foi ela o objeto do olhar inquiridor dele. Seus olhos estavam procurando uma escuta, pois achava difícil acreditar que alguém desprezasse essa vantagem sob o pretexto de não ser um comportamento civilizado. Contudo, não adiantou, e Baley, um tanto desanimado, percebeu isso. Ele não tinha capacidade para descobrir uma escuta auroreana, mesmo que houvesse uma. Não sabia o que procurar numa cultura estranha.
Em conseqüência, seguiu um outro fio de suspeita em sua mente.
- Diga-me, Daneel, já que você conhece os auroreanos melhor que eu, por que você acha que Amadiro está se dando tanto trabalho por minha causa? Abre-se comigo. Me recebe. Me oferece o uso disto... coisa que Vasilia não fez. Parece não ter mais nada a fazer senão ficar à minha disposição. Polidez?
- Muitos auroreanos se vangloriam de sua polidez. Talvez Amadiro seja um deles. Várias vezes frisou que não é selvagem.
- Outra pergunta: por que acha que ele permitiu que eu trouxesse você e Giskard aqui?
- Acho que para eliminar suas desconfianças de que o oferecimento do Pessoal pudesse esconder uma cilada.
- Por que iria me incomodar? Por estar preocupado com a possibilidade de eu experimentar uma ansiedade desnecessária?
- Imagino que outro gesto de um cavalheiro auroreano civilizado.
Baley sacudiu a cabeça.
- Bem, se este banheiro está vigiado e Amadiro pode me ouvir, que me ouça. Não o considero um cavalheiro auroreano civilizado. Ele deixou bem claro que se não abandono minha investigação, fará com que toda a Terra sofra com isso. É assim que age um cavalheiro civilizado? Ou um chantagista da pior espécie?
- Um cavalheiro auroreano - retrucou Daneel - pode achar necessário proferir ameaças, mas se o fizer, usará maneiras cavalheirescas.
- Como fez Amadiro. É, assim, a maneira e não o conteúdo da fala que distingue um cavalheiro. Mas então, Daneel, você é robô e portanto não pode realmente criticar um ser humano, não é?
- Seria muito difícil para mim - replicou Daneel. - Mas posso lhe fazer uma pergunta, Colega Elijah? Por que pediu licença para me trazer e ao amigo Giskard a este lugar? Pareceu-me, antes, que você relutou em acreditar estar em perigo. Resolveu agora que só está a salvo na nossa presença?
- Não, de forma alguma, Daneel. Sinto-me agora ainda mais convencido de que não estou e nunca estive em perigo.
- No entanto, Colega Elijah, havia uma clara suspeita em seus gestos, quando entrou aqui. Você ficou procurando.
- Claro! - retrucou Baley. - Eu disse que não estou em perigo, mas não falei que não há perigo.
- Acho que não percebo a diferença, Colega Elijah - disse o robô.
- Discutiremos isso mais tarde, Daneel. Ainda não tenho certeza se há ou não escutas aqui.
Baley tinha acabado.
- Bem, Daneel - continuou ele. - Venho agindo com calma a respeito disto, não tive a menor pressa. Agora já posso tornar a sair e fico pensando se Amadiro continua nos esperando depois de todo este tempo ou se delegou poderes a um subalterno para o trabalho de nos mostrar a saída.
Afinal de contas, Amadiro é um homem ocupado e não pode gastar um dia inteiro comigo. Que acha, Daneel?
- Seria mais lógico que o Dr. Amadiro designasse alguém.
- E você, Giskard? Que acha?
- Concordo com o amigo Daneel, embora minha experiência me ensine que os seres humanos nem sempre têm uma reação normal.
- Da minha parte - disse Baley - desconfio que Amadiro está esperando por nós com muita paciência. Se alguma força levou-o a gastar todo esse tempo conosco, estou propenso a pensar que ela, qualquer que seja, ainda não enfraqueceu.
- Não sei de que força está falando, Colega Elijah - comentou Daneel.
- Nem eu, Daneel - replicou - o que me deixa muito aborrecido. Vamos agora abrir a porta e ver.
Amadiro esperava-os fora da porta, exatamente onde Baley o deixara. Sorriu-lhes, sem demonstrar impaciência. Baley não pôde resistir a lançar um olhar de eu-não-disse? a Daneel, que nem se deu por achado.
- Lamentei, Sr. Baley - disse Amadiro - que o senhor não tenha deixado aqui Giskard, quando entrou no Pessoal. Eu poderia tê-lo conhecido no passado, quando Fastolfe e eu nos dávamos melhor, mas por qualquer motivo isso nunca aconteceu. Sabe, Fastolfe foi meu professor.
- Foi? - perguntou Baley. - Eu não sabia disso.
- Não havia motivo para que soubesse a menos que lhe dissessem... e nos poucos dias em que está no planeta, o senhor mal teve tempo para ficar a par dessa trivialidade. suponho... Ora, vamos, ocorreu-me que o senhor dificilmente me considerará hospitaleiro, se eu não me aproveitar da sua vinda ao Instituto para mostrar-lhe tudo aqui.
- Realmente - replicou Baley, formalizando-se - preciso...
- Insisto - disse Amadiro, dando à sua voz uma nota de pressão. - O senhor chegou ontem de manhã a Aurora e duvido que ficará muito mais aqui. Esta pode ser a única oportunidade de dar uma olhada num moderno laboratório de pesquisas robóticas.
Deu o braço a Baley e continuou a falar num tom familiar ("Tagarelar", foi a palavra que ocorreu ao espantado terráqueo).
- O senhor lavou-se e fez suas necessidades - prosseguiu Amadiro. - Talvez haja outros roboticistas que queira interrogar e fico contente com isso, pois estou determinado a mostrar que não lhe opus obstáculos no pouco tempo que ainda lhe será permitido prosseguir sua investigação. Na realidade, não há motivo para que o senhor não jante conosco.
Giskard falou:
- Se posso interromper, senhor...
- Não pode! - replicou Amadiro, com inequívoca firmeza, e o robô silenciou.
Amadiro virou-se para Baley:
- Meu caro Sr. Baley, eu compreendo esses robôs. Quem mais os conheceria melhor?... Exceto o infeliz Fastolfe, claro. Giskard, estou certo, ia lembrá-lo de que tem um encontro, uma promessa um negócio... o que não é verdade. Como a investigação está no fim, garanto-lhe, nada do que ele ia lembrá-lo tem importância. Esqueçamos essas bobagens e, por pouco tempo, sejamos amigos.
"Precisa compreender, meu bom Sr. Baley - prosseguiu - que sou um admirador da Terra e sua cultura. Não é tema dos mais populares em Aurora, porém acho-o fascinante.”
Estou especialmente interessado na história passada da Terra, na época em que havia centenas de línguas e o Padrão Interestelar ainda não tinha sido desenvolvido...
Por falar nisso, permita-me que o cumprimente pelo seu conhecimento do Interestelar? "Por aqui, por aqui - continuou, virando uma esquina. - Estamos indo para a sala de simulação de caminho, que tem uma beleza estranha, onde talvez encontremos um simulador em operação. Realmente muito sinfônico... Mas eu estava falando da sua habilidade com o Interestelar. É uma das inúmeras superstições auroreanas referentes à Terra que seus habitantes falam uma versão quase incompreensível do Interestelar. Quando o espetáculo sobre o senhor foi produzido, muitos disseram que os atores não eram terráqueos, porque podiam ser entendidos, mas eu posso compreendê-lo.
Sorriu ao dizer isso.
- Tentei ler Shakespeare - continuou, com ar confidencial - porém não pude fazê-lo no original, claro, e a tradução é estranhamente fraca. Acredito que a falha reside na tradução e não em Shakespeare. Me sinto melhor com Dickens e Tolstoi, talvez porque escrevam em prosa, embora os nomes dos personagens sejam em ambos virtualmente impronunciáveis para mim.
"O que estou lhe querendo dizer, Sr. Baley, é que sou amigo da Terra. Sou mesmo. Quero o que for melhor para ela. Compreende?
Olhou para Baley e novamente a ferocidade insinuou-se em seus olhos cintilantes.
Baley ergueu a voz, interrompendo a suave cascata de frases do outro.
- Lamento não poder satisfazê-lo, Dr. Amadiro. Preciso continuar meu trabalho e não tenho mais perguntas a fazer, quer ao senhor, quer a qualquer outra pessoa aqui.
Se o senhor...
Baley parou. Ouviu um leve e curioso trovejar no ar. Ergueu os olhos, sobressaltado.
- Que é isso?
- Isso o quê? - perguntou Amadiro. - Não senti nada. - Olhou para os robôs, que seguiam os humanos, num silêncio solene. - Nada! - repetiu, desta vez com violência.
- Nada.
Baley viu naquilo o equivalente a uma ordem. Nenhum dos robôs podia agora declarar ter ouvido o trovejar, contradizendo abertamente um ser humano, a menos que o próprio Baley fizesse a contrapressão... o que ele achou não poder fazer com bastante competência, em face do profissionalismo de Amadiro.
Contudo, não tinha importância. Ele ouvira uma coisa e não era robô, não lhe falariam sobre aquilo.
- Segundo o senhor, Dr. Amadiro - comentou - me resta pouco tempo. É mais um motivo para que eu deva...
Novamente o ruído surdo. Mais alto. Baley falou, com voz áspera e cortante:
- Suponho que isso é exatamente o que o senhor não ouviu antes, nem está ouvindo agora. Deixe-me sair, senhor, ou pedirei a ajuda dos meus robôs.
Amadiro largou o braço de Baley imediatamente.
- Meu amigo, era só pedir. Venha! Vou levá-lo até à saída mais próxima, e se alguma vez voltar a Aurora, o que parece extremamente improvável, venha me visitar e faremos o passeio que lhe prometi.
Aumentaram o passo. Desceram a rampa em espiral, passaram pelo corredor e chegaram à ante-sala ampla e agora vazia, onde se encontrava a porta por onde tinham entrado.
As janelas da ante-sala estavam totalmente escuras. Já seria noite?
Não era. Amadiro resmungou para si mesmo:
- Tempo desgraçado! Eles escureceram as janelas. Virou-se para Baley:
- Acho que está chovendo, como previu a meteorologia e normalmente pode-se confiar nela: sempre, mesmo quando traz notícias desagradáveis.
A porta abriu-se e Baley recuou, ofegante. Um vento frio envolveu-os e açoitou o céu - não preto, mas cinza-escuro - balançando a copa das árvores.
A chuva caía torrencialmente. E enquanto Baley olhava, apavorado, um relâmpago cortou o céu com brilho cegante, tornando a ser ouvido, logo depois, o trovejar, desta vez com um estalo, como se o relâmpago tivesse rachado o firmamento e produzido aquele barulho.
Baley virou-se e refez correndo o caminho, gemendo.
Novamente Daneel e Giskard
Baley sentiu o forte aperto de Daneel em seus braços, logo abaixo dos ombros. Parou e obrigou-se a cessar aquela reação infantil. Viu que estava trêmulo.
Daneel disse, com enorme respeito:
- Colega Elijah, trata-se de um temporal-esperado-previstonormal.
- Sei disso - sussurrou Baley.
Sabia disso. Os temporais haviam sido descritos inúmeras vezes nos livros que lera, de ficção ou não. Vira-os em holografias e nos espetáculos de hiperonda: som, imagem e tudo.
A coisa real, contudo, o som e imagem verdadeiros, nunca havia penetrado nas entranhas da Cidade e ele realmente nunca experimentara algo parecido em toda a sua vida.
Apesar de tudo o que sabia - intelectualmente - sobre temporais, não pôde enfrentar - visceralmente - a realidade Não obstante as descrições, as coleções de palavras, a visão em pequenas reproduções em telas minúsculas, dos sons captados em gravadores, a despeito de tudo isso, não tinha idéia de que os relâmpagos fossem tão ofuscantes e velozes no céu, que o som fosse tão vibrantemente baixo quando rolava através de um mundo oco, que ambos fossem tão repentinos, e que a chuva pudesse parecer uma bacia invertida de água, caindo sem parar.
- Murmurou, desesperado:
- Não posso sair assim.
- Não precisa sair - retorquiu Daneel, apressado. - Giskard foi buscar o aerocarro. Vai ser encostado bem na porta para você. Não vai se molhar.
- Por que não esperamos até parar?
- Porque não será aconselhável, Colega Elijah. A chuva poderá continuar até depois de meia-noite, e se o Presidente chegar amanhã de manhã, como o Dr. Amadiro deixou implícito, será mais sábio passar a noite em reunião com o Dr. Fastolfe.
Baley virou-se com esforço para o lado de onde fugira e encarou Daneel. Os olhos do robô revelavam profunda preocupação, porém Baley pensou, desanimado, que não passava de sua própria interpretação da aparência deles. Daneel não tinha sentimentos, apenas impulsos positrônicos que os imitavam. (E talvez os seres humanos não tivessem sentimentos, apenas impulsos neurônicos que eram interpretados por sentimentos.)
Percebeu vagamente que Amadiro tinha se retirado.
- Amadiro me retardou deliberadamente: convencendo-me a ir ao Pessoal, conversando futilidades, evitando que você ou Giskard interrompesse e me avisasse sobre o temporal. Teria até tentado me persuadir a dar uma volta no prédio ou jantar com ele. Desistiu apenas porque ouviu o barulho do temporal. Era o que ele estava esperando.
- Parece que sim. Se a tempestade o mantiver aqui agora, talvez seja isso o que ele queira.
Baley respirou fundo.
- Você tem razão. Preciso ir... de qualquer maneira. Relutante, deu um passo para a porta, que ainda continuava aberta, tomada pela imagem cinza-escura da chuva que caía. Outro passo. Ainda outro... apoiado com todo o peso em Daneel.
Giskard estava esperando silenciosamente no limiar.
Baley parou e durante um momento fechou os olhos. Depois, em voz baixa, mais para si mesmo que para Daneel, falou:
- Preciso fazer isto - e tornou a andar para a frente.
- O senhor está bem? - perguntou Giskard. Era uma pergunta boba, resultante da programação do robô, pensou Baley, embora não muito pior que as feitas por seres humanos, às vezes estupidamente inapropriadas, fora da programação ou da etiqueta.
- Estou - replicou Baley, com uma voz que tentou, e não conseguiu, fazer ficar acima de um sussurro rouco.
Era uma resposta inútil a uma pergunta boba, pois Giskard, embora robô, podia certamente ver que Baley não estava bem e que sua resposta era visivelmente mentirosa.
Contudo, a resposta foi dada e aceita, o que liberou Giskard para o próximo passo.
- Vou sair agora para apanhar o aerocarro e colocá-lo diante da porta.
- Ele funcionará... em toda esta... esta água, Giskard?
- Claro, senhor. Não se trata de uma chuva incomum.
Giskard afastou-se, andando com firmeza no aguaceiro. Os relâmpagos riscavam o céu quase continuamente e o trovão era um resmungo surdo que aumentava de vez em quando.
Pela primeira vez na vida, Baley invejou um robô. Imaginou ser capaz de andar dentro daquilo, ficar indiferente à água, à vista, ao som, ser capaz de ignorar os arredores e ter uma pseudovida que fosse absolutamente corajosa, não sentir medo da dor e da morte, porque não havia nem uma nem outra.
E também ser incapaz de um pensamento original, incapaz de lançar-se a intuições imprevisíveis...
Esses dons valeriam o que a humanidade pagava por eles?
Naquele instante, Baley não sabia dizer. Só sabia, já que não sentia mais terror, que não havia preço alto demais a pagar pela sua humanidade. Mas agora sentia apenas o bater do seu coração e o colapso de sua vontade, imaginando que utilidade podia ter um ser humano, se não pudesse superar esses terrores profundos, aquela intensa agorafobia.
Porém ele tinha estado no Exterior durante dois dias e dera um jeito de sentir-se quase confortável.
Contudo, o medo não tinha sido vencido. Agora sabia. Tinha-o suprimido pensando intensamente em outras coisas, mas a tempestade dominou toda a intensidade do pensamento.
Não podia permitir isso. Se tudo o mais fracassasse - pensamento, orgulho, vontade - então tinha de voltar envergonhado. Não Podia desmaiar diante do olhar impessoal e superior dos robôs. A vergonha iria ser mais forte que o medo. Sentiu o braço firme de Daneel na sua cintura e a vergonha o impediu de fazer o que naquele instante mais tinha vontade: virar-se e esconder o rosto no peito robótico. Talvez não pudesse resistir, se Daneel fosse humano...
Tinha perdido o contato com a realidade, pois estava ouvindo a voz de Daneel como se esta lhe chegasse de uma grande distância. Soava como se o robô estivesse sentindo alguma coisa semelhante ao pânico.
- Colega Elijah, está me ouvindo?
A voz de Giskard, da mesma distância, disse:
- Precisamos carregá-lo.
- Não - resmungou Baley. - Quero andar.
Talvez os robôs não o tivessem ouvido. Talvez ele realmente não tivesse falado, pensando apenas tê-lo feito. Sentiu-se erguido do chão. Seu braço esquerdo pendeu sem forças e ele lutou para erguêlo, para empurrá-lo contra o ombro de alguém, para tornar a levantá-lo, para tatear o chão com os pés e manter-se ereto.
Porém seu braço esquerdo continuou pendendo, desamparado, e seu andar foi inútil.
Percebeu, não sabia como, que estava se mexendo pelo ar e sentiu um borrifo no rosto. Não era realmente água e sim o ar úmido espalhando-se. Depois, sentiu a pressão de uma superfície dura em seu flanco esquerdo, e outra ainda mais resistente no lado direito.
Estava no aerocarro, mais uma vez entalado entre Giskard e Daneel. Percebeu com clareza que Giskard estava muito molhado.
Sentiu um jato de ar quente sobre ele. Entre a quase-escuridão externa e a película de água escorrendo na vidraça, que podiam perfeitamente ter escurecido... ou então, pensou Baley, a escuridão realmente instalou-se, tendo sido envolvidos pela treva total. O suave ruído do jato, assim que o aerocarro ergueu-se da grama e balançou, amordaçou o trovão e pareceu arrancar-lhe os dentes.
- Lamento o desconforto da minha superfície molhada, senhor - disse Giskard. - Eu seco depressa. Vamos esperar um pouco até o senhor se recuperar.
Baley estava respirando com mais facilidade. Sentia-se maravilhosa e confortavelmente fechado. Pensou: quero minha Cidade. Eliminem o Universo todo e que os Espaciais o colonizem. A Terra é tudo o que precisamos.
E mesmo enquanto pensava assim, sabia que era sua loucura quem acreditava nisso e não ele.
Sentiu necessidade de manter a mente ocupada.
Disse, com voz fraca:
- Daneel.
- Sim, Colega Elijah?
- A respeito do Presidente. Você acha que Amadiro estava julgando corretamente a situação, ao supor que o Presidente porá um fim à investigação ou estava apenas deixando que seus desejos pensassem por ele?
- Talvez, Colega Elijah, o Presidente queira realmente interrogar o Dr. Fastolfe e Amadiro a respeito. Seria um procedimento normal para decidir uma disputa dessa natureza. Há muitos precedentes.
- Mas por quê? - perguntou Baley, com voz fraca. - Se Amadiro é tão persuasivo, por que o Presidente não ordena simplesmente a paralisação da investigação?
- O Presidente - disse Daneel - está numa situação política difícil. Concordou inicialmente em que o trouxessem a Aurora, por insistência do Dr. Fastolfe, e não pode mudar de idéia tão abruptamente sem mostrar-se fraco, indeciso, e sem enraivecer o Dr. Fastolfe, que ainda é muito influente na Legislatura, da qual é membro.
- Então por que simplesmente não indefere o pedido de Amadiro?
- O Dr. Amadiro também tem influência, Colega Elijah, que provavelmente também aumenta. O Presidente precisa contemporizar ouvindo ambas as partes e dando pelo menos uma aparência de deliberação antes de chegar a uma decisão.
- Baseada em quê?
- No mérito, devemos presumir.
- Então, amanhã de manhã, preciso apresentar alguma coisa que persuada o Presidente a ficar do lado de Fastolfe em vez de contra ele. Se eu fizer, isso significará vitória?
- O Presidente não tem poderes discricionários - replicou Daneel - mas sua influência é grande. Se ele se colocar decididamente ao lado do Dr. Fastolfe, então, sob as atuais condições políticas, este provavelmente obterá o apoio da Legislatura.
Baley recomeçou a pensar com clareza.
- Essa explicação pode ser suficiente para justificar a tentativa de Amadiro de nos retardar. Ele deve ter raciocinado que eu ainda não tinha nada para apresentar ao Presidente e precisava apenas de uma protelação para que eu conseguisse alguma coisa no tempo que me resta.
- É o que parece, Colega Elijah.
- E só me deixou sair quando pensou que podia confiar no temporal para me prender aqui.
- Talvez, Colega Elijah.
- Neste caso, não podemos deixar que o temporal nos prenda.
- Para onde quer ir, senhor? - perguntou Giskard, calmamente.
- De volta à casa do Dr. Fastolfe.
- Podemos descansar mais um pouco, Colega Elijah? - perguntou Daneel. - Planeja contar ao Dr. Fastolfe que não vai continuar a investigação?
Baley disse secamente:
- Por que pergunta isso?
Sua voz alta e zangada era o sinal de que estava recuperado.
- Apenas porque temo que o senhor possa ter esquecido por um instante que o Dr. Amadiro insistiu para que você fizesse isso, pelo bem-estar da Terra - retrucou Daneel.
- Nada esqueci - disse Baley, sombrio - e estou surpreso, Daneel, que você possa pensar que isso tenha influído. Fastolfe precisa ser absolvido e a Terra deve poder enviar seus colonizadores pela Galáxia afora. Se houver perigo da parte dos Globalistas, esse perigo deve ser corrido.
- Mas sendo assim, Colega Elijah, por que voltar à casa do Dr. Fastolfe? Não me parece que tenhamos alguma coisa no momento a comunicar-lhe. Não há outro lugar onde irmos primeiro para continuar nossa investigação, antes de informar o Dr. Fastolfe?
Baley empertigou-se no assento e colocou a mão erh Giskard, agora completamente seco. Em voz normal, disse:
- Daneel, estou satisfeito com o progresso que fiz até agora. Vamos embora, Giskard. Para a casa do Dr. Fastolfe
E depois, cerrando os punhos e endurecendo o corpo, acrescentou:
- E o que é mais, Giskard, clareie as vidraças. Quero enfrentar a tempestade.
Baley prendeu a respiração, esperando a transparência. A caixinha que era o aerocarro não mais ficaria inteiramente fechada, não mais teria paredes lisas.
Assim que as vidraças foram clareadas, houve um relâmpago veloz demais, tornando o mundo mais escuro pelo contraste.
Baley não pôde evitar o medo quando tentou fortalecer-se para o trovão que, logo depois, ribombou e explodiu.
Daneel acalmou-o, dizendo:
- A tempestade não vai piorar e breve acabará.
- Não me importo que acabe ou não - disse Baley por entre os lábios trêmulos. - Vamos embora.
Esforçou-se, para seu próprio bem, em manter a ilusão de um ser humano aos cuidados de robôs.
O aerocarro subiu ligeiramente e imediatamente sofreu movimentos laterais tão violentos que Baley sentiu-se atirado fortemente contra Giskard.
Baley gritou (ou melhor, ofegou):
- Equilibre o veículo, Giskard!
Daneel passou o braço sobre seus ombros e puxou-o suavemente para trás. Seu outro braço estava enlaçado num pegador preso na beira do aerocarro.
- Isso não é possível, Colega Elijah - disse Daneel. - O vento está muito forte.
Baley sentiu os cabelos eriçarem-se.
- Você quer dizer... que estamos sendo arrastados?
- Não, claro que não - replicou Daneel. - Se o carro fosse antigrav, uma forma de tecnologia que ainda não existe, é claro, e se sua massa e inércia fossem eliminadas, aí, sim, seria carregado como uma pena pelo ar. Todavia, conservamos toda a nossa massa mesmo quando os jatos nos erguem e nos mantêm no ar, e assim nossa inércia resiste ao vento. Não obstante, o vento nos faz balançar, apesar do carro permanecer sob o controle total de Giskard.
- Pois não parece.
Baley estava ouvindo um leve zunido, que ele imaginou ser o vento rodopiando em torno do aerocarro, que abria caminho na atmosfera que protestava. Então o aerocarro deu uma guinada e Baley, que nada podia fazer por sua vida, agarrou-se ao pescoço de Daneel desesperadamente:
O robô aguardou um pouco. Quando Baley recuperou o fôlego e afrouxou o aperto, Daneel libertou-se facilmente do abraço, ao mesmo tempo em que aumentou ligeiramente a pressão do próprio braço em torno de Baley.
- Para Giskard manter o curso, Colega Elijah - disse ele - precisa contrapor-se ao vento usando assimetricamente os jatos do aerocarro. Foram enviados para um lado, fazendo assim o carro inclinar-se na linha do vento, e esses jatos têm de ser ajustados em força e direção sempre que o vento mude a força e a direção. Não há ninguém melhor para isso que Giskard, mas mesmo assim há balanços e guinadas ocasionais. Por isso deve desculpar Giskard se ele não participar da nossa conversa. Sua atenção está totalmente concentrada no aerocarro.
- O carro está... seguro?
Baley sentiu o estômago contrair-se só em pensar naquela maneira de enfrentar o vento. Ficou contentíssimo por não comer há horas. Não podia - não ousava - ficar enjoado nos estreitos limites do aerocarro. Esse pensamento o deixava ainda mais inseguro e procurou concentrar-se em outra coisa.
Pensou nas faixas móveis da Terra, em pular de uma para outra ao lado, mais rápidas, e depois para a próxima ainda mais veloz, voltando a seguir para as regiões mais lentas, inclinando-se habilmente ao vento, em ambas as direções, numa, quando se apressava (uma estranha palavra usada apenas pelos corredores de faixas) e noutra quando se retardava. Na sua juventude, Daneel podia fazer aquilo sem parar nem errar.
Daneel tinha se ajustado à necessidade sem problemas, e na única vez em que correram juntos nas faixas, Daneel o fizera com perfeição. Bem, agora era exatamente igual! O aerocarro estava correndo nas faixas. Absolutamente a mesma coisa!
Não a mesma coisa, com certeza. Na Cidade, a velocidade das faixas era fixa. O vento soprava de maneira completamente prevista, pois era apenas o resultado do movimento das faixas. Ali na tempestade, contudo, o vento tinha vontade própria ou, em vez disso, dependia de tantas variáveis (Baley estava deliberadamente tentando ser racional) que parecia ter mente própria... e Giskard tinha de aceitar. Era isso. Do contrário, era como percorrer as faixas com uma complicação a mais. As faixas moviam-se em velocidades variáveis, mudando repentinamente.
- E se nos chocarmos com uma árvore? - murmurou Baley.
- É muito improvável, Colega Elijah. Giskard é hábil demais para que isso aconteça. E estamos apenas pouco acima do solo, onde os jatos são muito poderosos.
- Então podemos bater numa pedra. Poderemos cair.
- Não bateremos numa pedra, Colega Elijah.
- Por que não? Como, pela Terra, Giskard pode ver por onde anda?
Baley olhou atentamente para a escuridão adiante.
- Estamos chegando ao ocaso - disse Daneel - e ainda há luz atravessando as nuvens. O suficiente para vermos com o auxílio dos faróis. E à medida que escurece, Giskard aumenta a claridade dos faróis.
- Que faróis? - perguntou Baley, irritado.
- Você não os pode ver bem porque eles têm um poderoso componente infravermelho, sensível aos olhos de Giskard, mas não aos seus. Mais ainda, o infravermelho é mais penetrante que as ondas luminosas mais curtas, e por esse motivo é mais eficiente na chuva, na neblina e na cerração.
Baley conseguiu revelar certa curiosidade em meio ao seu mal-estar.
- E seus olhos, Daneel?
- Os meus, Colega Elijah, foram construídos para serem o mais parecido possível com os dos humanos. Neste momento, talvez seja lamentável.
O aerocarro estremeceu e Baley tornou a prender a respiração. Sussurrando, disse:
- Os olhos dos Espaciais ainda estão adaptados ao sol da Terra, mesmo que os dos robôs não sejam. É também uma boa coisa, se isso ajudá-los a lembrar que são descendentes de terráqueos.
Parou de falar. Estava ficando mais escuro. Agora nada podia ver e os relâmpagos intermitentes também nada mostravam. Eram apenas cegantes. Fechou os olhos, o que não adiantou. Ficou ainda mais consciente do trovão furioso e ameaçador, não deveriam parar? Não deveria esperar que o pior da tempestade passasse?
Giskard disse, repentinamente:
- O veículo não está reagindo como devia.
Baley sentiu a viagem tornar-se irregular, como se a máquina estivesse sobre rodas e correndo em sulcos.
- Pode ser estrago da tempestade, amigo Giskard? - perguntou Daneel.
- Não está parecendo, amigo Daneel. E nem parece que esta máquina possa sofrer este tipo de desarranjo nesta ou em outra tempestade.
Baley assimilou o diálogo com dificuldade.
- "Estrago"? - murmurou. - Que tipo de estrago? Giskard respondeu:
- Penso que o compressor está vazando, senhor, mas pouco. Não é conseqüência de um rompimento comum.
- Como então aconteceu? - perguntou Baley.
- Talvez um estrago proposital, feito quando o veículo estava na porta do Edifício da Administração. Eu percebi então que durante pouco tempo fomos seguidos e cuidadosamente não ultrapassados.
- Por que, Giskard?
- Uma possibilidade, senhor, é que estavam nos esperando para liquidar-nos completamente.
O movimento do aerocarro tornou-se ainda mais irregular.
- Pode atribuir ao Dr. Fastolfe?
- Não me parece, senhor.
Baley tratou de pôr em ação sua mente vacilante.
- Nesse caso, julguei inteiramente mal o motivo de Amadiro para nos retardar. Conservou-nos aqui para que um ou mais dos seus robôs avariassem o aerocarro, de forma a nos deter no meio do deserto e dos relâmpagos.
- Mas por que faria isso? - perguntou Daneel, parecendo espantado. - Para pegá-lo?... Mas, de certa forma, já o tinha feito.
- Não é a mim que ele quer. Ninguém me quer - disse Baley, com uma raiva contida. - É você quem corre perigo, Daneel.
- Eu, Colega Elijah?
- Sim, você, Daneel!... Giskard, arranje um lugar seguro para pousar e assim que conseguir, Daneel deve saltar e procurar um abrigo para se proteger.
- Isso é impossível, Colega Elijah - retorquiu Daneel. - Não posso abandoná-lo quando você está sentindo-se mal... e ainda mais se há gente nos perseguindo e que pode causar-lhe mal.
- Daneel, eles o estão perseguindo - insistiu Baley. - Você precisa ir. Quanto a mim, ficarei no aerocarro. Não estou em perigo.
- Como posso acreditar nisso?
- Por favor! Por favor! Como posso explicar a coisa toda, com tudo girando... Daneel - a voz de Baley tornou-se desesperadamente calma - você é a pessoa mais importante aqui, muito mais que eu e Giskard juntos. Não se trata que eu esteja apenas preocupado e não queira que alguma coisa lhe aconteça. Toda a humanidade depende de você. Não se preocupe comigo, não passo de um homem, preocupe-se com bilhões. Daneel... por favor...
Baley sentiu-se balançar para a frente e para trás. Ou seria o aerocarro? Ou estariam os dois se arrebentando? Ou Giskard estava perdendo o controle? Ou estaria procurando se desviar?
Baley não se preocupou. Não se preocupou que o aerocarro caísse. Que virasse migalhas. O esquecimento seria bem-vindo. Qualquer coisa que eliminasse aquele terrível pavor, aquela total incapacidade de chegar a um acordo com o universo.
Exceto que tinha de assegurar a partida de Daneel: partida segura. Mas como?
Tudo era irreal e ele não estava em condições de explicar o que quer que fosse àqueles robôs. A situação era muito clara para ele, mas como transferir essa compreensão aos robôs, esses não-homens, que só compreendiam suas Três Leis e que deixariam a Terra toda e, com o tempo, a humanidade inteira ir para o inferno, porque só podiam se preocupar com o único homem aos seus cuidados?
Para que foram inventados os robôs?
E então, bastante estranhamente, Giskard, o menos importante dos dois, foi em sua ajuda.
Ele disse, com sua voz insignificante:
- Amigo Daneel, não posso conservar este aerocarro em movimento muito mais tempo. Talvez seja mais correto seguir a sugestão do Sr. Baley. Ele lhe deu uma ordem peremptória.
- Posso abandoná-lo, quando ele não está bem, amigo Giskard? - perguntou Daneel, perplexo.
- Você não pode sair para a tempestade com ele, amigo Daneel. Além disso, ele está tão ansioso para que você vá, que é capaz de piorar se você ficar.
Baley sentiu-se reviver.
- Sim... sim... - conseguiu resmungar. - Giskard tem razão. Vá com ele, Giskard, esconda-o, trate de evitar que volte... depois venha me buscar.
Daneel disse, impetuosamente:
- Não pode ser, Colega Elijah. Não podemos deixá-lo só abandonado, desprotegido.
- Não há perigo... não corro o menor perigo. Faça o que estou dizendo...
- Os que nos seguem são provavelmente robôs - comentou Giskard. - Seres humanos hesitariam em sair na tempestade. E robôs não causarão mal ao Sr. Baley.
- Podem levá-lo embora - retrucou Daneel.
- Não na tempestade, amigo Daneel, já que isso pode resultar num dano evidente para ele. Vou agora fazer o aerocarro parar, amigo Daneel. Você deve estar pronto a cumprir as ordens do Sr. Baley. E eu também.
- Ótimo! - suspirou Baley. - Ótimo!
Sentia-se grato àquele cérebro simples, que poderia mais facilmente ser impressionado e ao qual faltava a capacidade de se perder e de ficar em dúvida com requintes.
Vagamente, pensou em Daneel apanhado entre sua percepção do mal-estar de Baley e a insistência da ordem... e de seu cérebro quebrando sob o conflito.
Baley pensou: Não, não, Daneel. Faça apenas o que eu digo e não discuta.
Perdeu a força, quase a vontade de articular essa ordem, e deixou que ela permanecesse um pensamento.
O aerocarro baixou com um baque e um ruído seco e áspero de arrastar.
As portas se abriram, uma de cada lado, e depois fecharam-se com um suave sussurro. Imediatamente os robôs desapareceram. Tomada a decisão, cessou a hesitação e partiram numa velocidade que os seres humanos não podiam imitar.
Baley respirou fundo e estremeceu. O aerocarro estava agora firme. Era parte do solo.
Percebeu subitamente como seu sofrimento tinha sido o resultado do balanço e pulos do veículo, a sensação de insubstancialidade, de não estar ligado ao universo, mas à mercê de forças inanimadas e cegas.
Agora, porém, havia calma e ele abriu os olhos.
Não tinha percebido que estavam fechados.
Continuavam os relâmpagos no horizonte e o trovão era um ruído brando enquanto o vento, encontrando agora objeto mais resistente e menos submisso que até então, lançou uma nota mais aguda que antes.
Estava escuro. Os olhos de Baley eram apenas humanos e ele não viu luz de qualquer espécie, a não ser a ocasional manifestação do relâmpago. O sol certamente já se tinha posto e as nuvens eram espessas.
E pela primeira vez, desde que deixara a Terra, Baley estava só!
Só!
Tinha estado muito doente, muito fora de si, para poder avaliar. Mesmo agora, lutava para compreender o que fez e o que deveria fazer... se tivesse espaço em seu cérebro vacilante para mais que o único pensamento de que Daneel precisava ir embora.
Por exemplo, não perguntou onde estava agora, perto de onde Daneel e Giskard planejaram ir. Não sabia como funcionava qualquer setor do aerocarro pousado. Não podia, é claro, fazê-lo andar, mas poderia produzir calor se sentisse frio ou desligar o calor se fosse demais... exceto que não sabia como mandar a máquina realizar ambos.
Não sabia como escurecer as vidraças se quisesse encerrar-se ou abrir uma porta se quisesse sair.
A única coisa que podia fazer agora era esperar que Giskard voltasse. Certamente, era isso o que Giskard esperava que ele fizesse. A ordem que recebeu foi: venha me buscar.
Não havia indicação de que Baley mudaria de posição de forma alguma e a mente clara e ordenada de Giskard certamente interpretaria o "venha me buscar" como a certeza de que precisava voltar ao aerocarro.
Baley procurou adaptar-se a isso. De certa forma, só esperar já era um alívio, não precisar tomar decisões durante algum tempo, porque não haveria decisões que ele possivelmente pudesse tomar. Era um alívio estar firme, sentir-se repousado e livre dos terríveis relâmpagos e dos perturbadores ribombos.
Talvez pudesse até se permitir dormir.
Então inteiriçou-se... Ousaria?
Estavam sendo perseguidos. Estavam sendo observados. O aerocarro, enquanto estacionado e esperando por eles no Edifício da Administração do Instituto de Robótica, tinha sido mexido e, sem dúvida, os autores estariam breve sobre ele.
Esperava também eles e não apenas Giskard.
Tinha pensado nisso claramente, em meio ao seu sofrimento? o aparelho fora adulterado na frente do Edifício da Administração. Devia ter sido feito por qualquer um, porém mais provavelmente por alguém que sabia estar o carro lá... e quem melhor que Amadiro?
Amadiro provocara o atraso até a tempestade. Não havia viagens nas tempestades e ele tinha de ser suprimido nessa ocasião. Amadiro estudara a Terra e seus habitantes, vangloriava-se disso. Saberia exatamente que dificuldade um terráqueo tinha geralmente com o Exterior e especialmente com um temporal.
Devia ter absoluta certeza de que Baley ficaria reduzido ao desespero completo.
Mas, por que iria querer isso?
Para levar Baley de volta ao Instituto? Já o tivera lá, porém aquele era um Baley em plena posse de suas faculdades e com ele estavam dois robôs perfeitamente capazes de defendê-lo fisicamente. Agora seria diferente!
Se o aerocarro fosse estragado numa tempestade, Baley ficaria destroçado emocionalmente. Talvez pudesse até ficar inconsciente e sem dúvida não resistiria a ser levado de volta. Nem os dois robôs protestariam. com Baley evidentemente enfermo, sua única reação apropriada seria ajudar os robôs de Amadiro a salvá-lo.
De fato, os dois robôs deveriam acompanhar Baley, sem outro recurso.
E se alguém pusesse em dúvida a atuação de Amadiro, este poderia dizer que temera por Baley na tempestade, que tentara conservá-lo no Instituto, sem sucesso, que mandara seus robôs segui-lo e velar por sua segurança, e que quando o aerocarro pifou no temporal os robôs levaram Baley de volta ao abrigo. A menos que alguém compreendesse que tinha sido Amadiro quem mandara avariar o aerocarro (e quem acreditaria nisso... e como prová-lo?), a única reação pública possível seria elogiar Amadiro por seus sentimentos humanitários... ainda mais espantosos por serem dirigidos a um terráqueo subumano.
E então, que Amadiro faria com Baley?
Nada, exceto mantê-lo calado e sem ajuda por algum tempo. Baley não era propriamente a caça. Esse era o ponto.
Amadiro iria ter também os dois robôs que, nessa altura, estariam desamparados. Suas instruções os obrigavam, da maneira a mais imperiosa, a guardar Baley, e se este ficasse doente, precisando de cuidados, eles só poderiam obedecer as ordens de Amadiro, se elas fossem clara e evidentemente para o bem de Baley. Nem Baley estaria (talvez) suficientemente consciente para protegê-los com ordens posteriores... certamente não, se fosse mantido sob calmantes.
Estava claro! Estava claro! Amadiro pegaria Baley, Daneel e Giskard... mas de maneira incomum. Mandara-os para o Exterior, para a tempestade, visando a trazê-los de volta e tê-los novamente... de forma aproveitável. Especialmente Daneel! Daneel era a chave.
Como garantia, Fastolfe iria procurá-los finalmente e encontrálos, recuperá-los, porém já muito tarde, não é?
E que Amadiro queria com Daneel?
Baley, com a cabeça doendo, tinha certeza que sabia... mas como provar?
Não pôde pensar mais... Se pudesse escurecer as vidraças, conseguiria construir novamente um pequeno mundo interior, fechado e imóvel, e então talvez pudesse continuar pensando.
Mas não sabia como escurecer as vidraças. Só podia ficar parado, olhando a tempestade que diminuía, ouvir o bater da chuva nas vidraças, ver os relâmpagos que rareavam e ouvir o surdo trovejar.
Fechou os olhos com força. As pálpebras ergueram uma parede, porém ele não ousou dormir.
A porta do carro à sua direita abriu-se. Ouviu o ruído sibilante que fez. Sentiu a brisa fria e úmida entrar, a temperatura cair, o penetrante cheiro de coisas verdes e molhadas entrar e expulsar o leve e amigável perfume de combustível e forração que lhe lembrava de certa forma a City, que ele duvidava tornar a ver.
Abriu os olhos e teve a estranha sensação de um rosto robótico olhando-o... e oscilando para os lados, porém não se movendo realmente. Baley ficou tonto.
O robô, visto como uma sombra escura contra as trevas, parecia enorme. Tinha, de certa forma, um aspecto imponente.
- Desculpe, senhor - falou o robô. - O senhor não está em companhia de dois robôs?
- Embora - murmurou Baley, fingindo-se o mais doente possível e consciente de que não precisava representar.
Um relâmpago mais brilhante atravessou suas pálpebras, agora meio abertas.
- Embora! Embora para onde, senhor? - E enquanto esperava a resposta, perguntou: - Está doente, senhor?
Baley sentiu uma longínqua pontada de satisfação no que restava do seu íntimo ainda capaz de pensar. Se o robô não tinha instruções especiais, reagiria aos claros sinais de doença de Baley antes de fazer alguma coisa. Ter perguntado primeiro pelos robôs significava instruções claras e precisas sobre sua importância.
Deu certo.
Procurou assumir uma energia e normalidade que não possuía e respondeu:
- Estou bem. Não se preocupe comigo.
Essa resposta provavelmente não convenceria um robô normal, porém aquela tinha sido tão apurada em relação a Daneel (evidentemente), que aceitou. E perguntou:
- Para onde foram os robôs, senhor?
- Para o Instituto de Robótica.
- Ao Instituto? Por que, senhor?
- Foram chamados pelo Mestre Roboticista Amadiro, que ordenou a volta deles. Estou esperando por eles.
- Mas por que não foi com eles, senhor?
- O Mestre Roboticista Amadiro não quis que eu ficasse exposto à tempestade. Mandou-me esperar aqui. Estou seguindo as ordens do Mestre Roboticista Amadiro.
Tinha a esperança de que repetindo o nome famoso, incluindo o título honorífico, juntamente com a palavra "ordem", o robô ficasse impressionado e o deixasse onde estava.
Por outro lado, se tivessem sido instruídos, com especial cuidado, para levar de volta Daneel, e se ficassem convencidos de que Daneel já estava a caminho do Instituto, haveria um declínio na intensidade de sua necessidade, em conexão com aquele robô. Teriam tempo de tornar a pensar em Baley. Diriam...
- Mas parece que o senhor não está muito bem - falou o robô.
Baley sentiu outra pontada de satisfação.
- Estou bem - repetiu.
Viu vagamente, detrás do robô, a aglomeração de vários outros - não pôde contá-los - com os rostos reluzindo em conseqüência dos relâmpagos ocasionais. Assim que os olhos de Baley se adaptaram à volta da escuridão, pôde ver o fraco luzir dos olhos deles.
Virou a cabeça. Também havia robôs na outra porta, apesar dela continuar fechada.
Quantos Amadiro teria mandado? Seria possível fazê-los voltar à força, se necessário? Então disse:
- A ordem do Mestre Roboticista Amadiro foi que meus robôs voltassem ao Instituto e eu esperasse. Você está vendo que eles voltaram e que estou esperando. Se foram enviados para socorrer, se têm um veículo, encontrem os robôs, que estão voltando, e os transportem. Este aerocarro está desarranjado.
Tentou falar sem hesitação e com firmeza, como um homem sadio. Não conseguiu inteiramente.
- Eles voltaram a pé, senhor?
- Achem-nos - retrucou Baley. - Suas ordens são claras. Houve hesitação. Hesitação clara.
Baley lembrou-se finalmente de mover o pé direito: adequadamente, esperou. Devia tê-lo feito antes, mas seu corpo físico não estava reagindo direito aos seus pensamentos.
Os robôs ainda hesitavam e Baley ficou preocupado. Ele não era Espacial. Não conhecia as palavras próprias, o tom adequado, o ar certo para dirigir robôs com a devida eficiência. Um roboticista capaz podia, com um gesto, um erguer de sobrancelha, dirigir um robô como se fosse uma marionete, cujas cordas puxasse... Principalmente se fosse o seu construtor.
Porém Baley não passava de um terráqueo.
Franziu a testa - era fácil fazê-lo em seu sofrimento - e murmurou um fatigado "Vão!", sacudindo as mãos.
Talvez o gesto fosse a última e necessária quantidade de peso de que precisava sua ordem... ou talvez tivesse chegado ao fim o tempo levado pelos condutos positrônicos dos robôs para determinar, pela voltagem e contravoltagem, como executar suas instruções, de acordo com as Três Leis.
De um modo ou de outro, tinham se decidido e, depois disso, não houve mais hesitação. Voltaram ao seu veículo, o que quer que fosse e onde estivesse, com a estudada velocidade que os fazia simplesmente desaparecer.
A porta que o robô havia deixado aberta começou a se fechar automaticamente. Baley estendeu o pé, para interromper o seu trajeto. Imaginou vagamente se o pé seria inteiramente decepado, ou se os ossos seriam esmagados, mas não o retirou. Certamente, nenhum veículo seria construído para tornar possível essa infelicidade.
Baley estava outra vez sozinho. Forçara robôs a abandonarem um ser humano evidentemente enfermo, utilizando a força de ordens dadas a eles por um competente mestre de robôs, que tinha procurado fortalecer a Segunda Lei em benefício próprio... e o fizera a ponto de Baley, com suas evidentes mentiras, ter subordinado a Primeira Lei a ela.
Seu trabalho se mostrou impecável, pensou Baley com uma vaga satisfação... e percebeu que a porta que começara a se fechar ainda estava entreaberta, mantida por seu pé, e esse pé não sofrerá o menor ferimento por causa disso.
Baley sentiu o ar frio e um filete de água gelada em seu pé. Era uma coisa assustadoramente anormal de sentir, mas não permitiu que a porta fechasse, pois não saberia depois abri-la (Como os robôs a teriam aberto? Indubitavelmente, não havia quebra-cabeças para os membros daquela cultura, porém não encontrou, em suas leituras sobre a vida auroreana, instruções suficientes de como se abre a porta de um aerocarro comum. Tudo importante era considerado sabido. Supunham que soubesse, muito embora estivesse teoricamente sendo informado).
Começou a apalpar-se, procurando os bolsos, quando pensou que eles não eram fáceis de achar. Não foram colocados nos lugares devidos e se achavam fechados, de forma que tinha de ser usado o tato até ser encontrado o gesto preciso que provocava a abertura. Tirou o lenço, fez uma bola e colocou-a entre a porta e o batente, de sorte que ela não ficasse totalmente fechada. Depois tirou o pé.
Agora pensar... se possível. Não tinha sentido manter a porta aberta, a menos que pretendesse sair. Contudo, sair com que objetivo?
Se esperasse onde estava, Giskard voltaria finalmente à sua procura e, presumivelmente, o poria a salvo.
Ousaria esperar?
Não sabia quanto tempo Giskard levaria para pôr Daneel em lugar seguro e retornar.
Mas também não sabia quanto demorariam os robôs perseguidores a achar que não encontrariam Daneel e Giskard em nenhum caminho que levasse ao Instituto (Era certamente impossível que Daneel e Giskard tivessem realmente voltado ao Instituto, procurando abrigo. Baley não tinha de fato proibido que o fizessem... mas, se fosse o único caminho possível?... Não! Impossível!).
Baley balançou a cabeça numa silenciosa negativa da possibilidade e ela reagiu doendo. Apertou-a com as mãos e rangeu os dentes.
Durante quanto tempo os robôs continuariam a procurar, antes de concluírem que Baley os enganara... ou se tinham enganado? Tornariam a voltar e o levariam preso, com muita delicadeza e cuidado, para não magoá-lo? Poderia mantê-los à distância dizendo-lhes que morreria se fosse exposto à tempestade?
Eles acreditariam? Iriam se comunicar com o Instituto a respeito? Claro que iriam. E depois chegariam seres humanos? Eles não estariam abertamente preocupados com seu bem-estar.
Se Baley saísse do carro e encontrasse um esconderijo nas árvores que o cercavam, seria muito mais difícil para os perseguidores encontrá-lo... e com isso ganharia tempo.
Porém seria mais difícil também para Giskard localizá-lo, Giskard que estava sob a influência de instruções mais intensas para defender Daneel que os robôs perseguidores encontrá-lo. A tarefa primordial daquele seria encontrar Baley...e a dos últimos achar Daneel.
Além disso, Giskard estava programado pelo próprio Fastolfe, e Amadiro, por mais hábil que fosse, não era competidor para Fastolfe.
Era certo, portanto, que, equiparadas todas as coisas, Giskard voltaria antes que os outros robôs conseguissem.
Mas estava tudo no mesmo nível? com uma leve tentativa de cinismo, Baley pensou: estou exausto e não posso realmente pensar. Procuro apenas me agarrar a tudo o que me proporcione consolo.
Porém, que mais podia fazer, além de jogar com as probabilidades, como ele as concebia?
Apoiou-se na porta e foi parar no Exterior. O lenço caiu no molhado, na relva luxuriante, e ele automaticamente curvou-se para apanhá-lo, conservando-o nas mãos ao cambalear para longe do carro.
Baley foi envolvido por uma pancada de chuva que ensopou seu rosto e mãos. Imediatamente, suas roupas ficaram coladas em seu corpo e ele começou a tremer de frio.
Um relâmpago penetrante rachou o céu - depressa demais para que ele fechasse os olhos - e depois um agudo ribombar, que o imobilizou de pavor e o obrigou a colocar as mãos nos ouvidos.
A tempestade teria recomeçado? Ou parecia mais violenta porque ele estava no espaço aberto?
Tinha de mover-se. Tinha de se afastar do carro, para que os perseguidores não o achassem muito facilmente. Não podia hesitar e ficar por perto, pois seria melhor ficar dentro do carro... e seco.
Tentou enxugar o rosto, porém o lenço que procurou utilizar estava tão molhado quanto seu rosto e Baley o atirou fora.
Avançou, de mãos estendidas. Havia uma lua em torno de Aurora? Lembrou ter ouvido alguma coisa a respeito e sua luz seria bem-vinda... Mas que adiantaria? Mesmo que ela existisse e estivesse agora no céu, as nuvens a escureceriam.
Sentiu uma coisa. Não pôde ver o que era, mas percebeu que devia ser a casca rugosa de uma árvore. Sem dúvida, uma árvore. Mesmo um habitante de City não se enganaria.
E então lembrou que o raio podia atingir árvores e matar pessoas. Não conseguiu lembrar se alguma vez leu a descrição de como era ser atingido por um raio ou se havia como evitá-lo. Não conheceu ninguém na Terra que tivesse sido vitimado por um raio.
Tateou seu caminho entre as árvores e foi presa do sofrimento da apreensão e medo. Quanto andaria em círculo, se continuasse caminhando na mesma direção?
Para a frente!
Os arbustos eram agora espessos e difíceis de transpor. Eram como dedos ossudos em forma de garras, prendendo-o. Avançou corajosamente e ouviu o rasgar de tecidos.
Para a frente!
Seus dentes chocavam-se e ele tiritava.
Outro relâmpago. Não muito ruim. Pôde ver rapidamente em volta.
Árvores! Uma quantidade delas. Estava num bosque. Muitas árvores eram mais perigosas que uma em relação ao raio?
Não sabia.
Adiantaria se ele realmente não tocasse numa?
Também não sabia. Morte por raio simplesmente não era um fator nas Cidades e os romances históricos (e às vezes os relatórios históricos) que a mencionavam nunca desciam a detalhes.
Olhou para o céu escuro e sentiu a umidade caindo. Esfregou os olhos molhados com as mãos molhadas.
Tropeçou andando e tentou erguer o pé mais alto ao pisar. Num certo ponto, patinhou num regato e escorregou nas pedrinhas do seu fundo.
Que estranho! Não ficou mais molhado que antes.
Prosseguiu. Os robôs não o achariam. E Giskard?
Não sabia onde estava. Ou para onde ia. Ou a que distância se achava de tudo.
Se quisesse retornar ao carro, não poderia.
Se estivesse tentando encontrar-se, não poderia.
E a tempestade continuaria sem parar e ele finalmente se dissolveria e escorreria num regatinho de Baley e ninguém jamais o acharia.
E suas moléculas dissolvidas iriam para o oceano.
Havia oceanos em Aurora?
Claro que havia! Eram tão grandes quanto os da Terra, mas tinham mais gelo nos pólos.
Ah, flutuaria até o gelo e se solidificaria lá, reluzindo ao sol laranja gelado.
Suas mãos estavam novamente tocando numa árvore... mãos molhadas... árvore molhada... ribombar de trovão... engraçado ele não ver o raio relampejar... o raio chega primeiro... seria atingido?
Nada sentiu a não ser o solo.
O solo estava debaixo dele porque seus dedos escavavam a lama fria. Virou a cabeça para poder respirar. Era mais confortável. Não precisava andar nunca mais. Podia esperar. Giskard o acharia.
Teve subitamente absoluta certeza disso. Giskard o acharia porque...
Não, esqueceu o porquê. Era a segunda vez que esquecia uma coisa. Antes de dormir... Tinha esquecido a mesma coisa de cada vez?... A mesma coisa?...
Não importava.
Ele estaria be... bem...
E ali ficou, só e inconsciente, na chuva, ao pé de uma árvore, enquanto a tempestade continuava.
Novamente Gladia
Mais tarde, olhando para trás e calculando o tempo, pareceu-lhe ter ficado inconsciente não menos de dez minutos, nem mais de vinte.
Naquele momento, porém, poderia ter sido de zero ao infinito. Ouviu uma voz. Não pôde entender as palavras, apenas a voz. Ficou perturbado pelo fato de que ela pareceu estranha e ficou satisfeito ao solucionar o assunto, reconhecendo tratar-se de voz feminina.
Sentiu-se abraçado, erguido, carregado. Um braço - o seu - estava pendente. Sua cabeça balançava.
Tentou fracamente empertigar-se, mas sem sucesso. Novamente a voz feminina.
Abriu os olhos com esforço. Sentia frio e estava molhado, percebendo subitamente que a água não o açoitava. E não estava escuro, não inteiramente. Havia uma vaga luz difusa e, nela, viu o rosto de um robô.
Reconheceu-o.
- Giskard - sussurrou, e ao dizer isso lembrou a tempestade e a viagem.
E Giskard o encontrou primeiro, achou-o antes dos outros robôs.
Baley pensou, satisfeito: eu sabia.
Deixou os olhos fecharem-se novamente e sentiu estar sendo movido rapidamente, porém com a leve mas clara irregularidade que significava que era carregado por alguém andando. Depois uma parada e uma ligeira arrumação, até ficar repousando em alguma coisa quente e confortável. Percebeu ser o assento de um carro coberto, talvez, com toalhas, mas não discutiu como sabia.
Depois veio a sensação de movimento suave pelo ar e o toque de tecido absorvente no rosto e mãos, a abertura de sua blusa, lufada de ar frio no peito e finalmente o corpo sendo secado.
Depois disso, as sensações aglomeraram-se.
Estava numa moradia. Visões de paredes, luzes, objetos (formas várias de mobiliário), que viu aqui e ali quando reabriu os olhos.
Sentiu suas roupas serem retiradas metodicamente e fez algumas fracas tentativas de ajudar, inúteis, e logo depois água quente e vigoroso esfregar. Aquilo continuou e ele não queria que parasse.
Num certo momento, ocorreu-lhe um pensamento e ele pegou o braço que o prendia.
- Giskard! Giskard! Ouviu a voz do robô:
- Estou aqui, senhor.
- Giskard, Daneel está a salvo?
- Está sim, senhor.
- Ótimo.
Baley tornou a fechar os olhos e não fez qualquer esforço em relação à secagem. Sentiu-se virado e revirado na corrente de ar seco e depois foi envolto no que parecia um roupão quente.
Que luxo! Nada semelhante lhe acontecia desde criança, e sentiu subitamente pena dos bebês que passavam por tudo aquilo e não tinham suficiente consciência para desfrutar o momento.
Ou tinham? Seria a memória oculta daquele luxo infantil uma determinante do comportamento adulto? Seria essa sua sensação agora apenas a expressão do deleite de ser novamente bebê?
E tinha ouvido uma voz feminina. A mãe?
Não. Não era possível.
(Mamãe?)
Agora estava numa cadeira. Teve a sensação e também o sentimento de que o curto e feliz período de infância renovada chegava ao fim. Tinha de retornar ao triste mundo da autoconsciência e do auto-auxílio.
Porém tinha havido uma voz de mulher... Que mulher?
Baley abriu os olhos.
- Gladia?
Foi uma pergunta, uma pergunta inesperada, porém no íntimo ele não ficou surpreso realmente. Pensando bem, ele havia, claro, reconhecido a voz dela.
Olhou em volta. Giskard se achava em pé no seu nicho, porém ele o ignorou. Cada coisa a seu tempo.
- Onde está Daneel? - perguntou.
- Tomou banho e enxugou-se no compartimento dos robôs e está vestindo roupas secas. Está cercado pelos meus empregados, que receberam suas ordens. Garanto-lhe que nenhum estranho se aproximará a menos de cinqüenta metros da minha casa, em qualquer direção, sem que saibamos imediatamente... Giskard também lavou-se e secou-se.
- Sim, estou vendo - replicou Baley.
Não estava preocupado com Giskard e sim com Daneel. Ficou aliviado ao ver que Gladia aceitou a necessidade de proteger Daneel e que ele não teria de enfrentar as complicações de explicar o assunto.
Contudo, havia uma brecha na parede de segurança e uma nota lamuriosa foi notada em sua voz, quando disse:
- Por que o deixou, Gladia? com sua saída, não ficou um ser humano em casa para impedir a aproximação de um bando de robôs externos. Daneel pode ser seqüestrado.
- Bobagem - retrucou a moça animadamente. - Não nos afastamos muito e o Dr. Fastolfe foi avisado. Muitos dos robôs dele juntaram-se aos meus e ele pode estar no local dentro de minutos, se necessário... e eu gostaria de ver um bando de robôs estranhos enfrentando-o.
- Viu Daneel desde que voltou, Gladia?
- Claro! Está bem, garanto-lhe.
- Obrigado!
Baley relaxou e fechou os olhos. Estranhamente, pensou: não foi tão mau assim.
Claro que não. Tinha sobrevivido, não tinha? Quando se deteve nisso, sentiu alguma coisa rir dentro dele e ficou feliz.
Tinha sobrevivido, não tinha?
Abriu os olhos e perguntou:
- Gladia, como me encontrou?
- Foi Giskard. Ele chegou aqui, ambos chegaram, e explicou-me rapidamente a situação.
De imediato tratei de colocar Daneel a salvo, porém ele não se mexeu até que lhe prometi mandar Giskard encontrar você. Ele foi muito veemente. Suas reações em relação a você são muito intensas, Elijah.
- Daneel ficou atrás, claro, muito infeliz, porém Giskard insistiu que eu lhe ordenara ficar ao alcance da voz. Você lhe deve ter dado ordens muito severas. Depois, entramos em contato com o Dr. Fastolfe e a seguir pegamos meu aerocarro particular.
Baley sacudiu a cabeça, fatigado.
- Você não devia ter ido, Gladia. Seu lugar era aqui, garantindo a segurança de Daneel.
O rosto de Gladia tornou-se zombeteiro.
- E deixá-lo moribundo na tempestade, segundo me disseram? Ou sendo aprisionado pelos inimigos do Dr. Fastolfe? Tenho uma pequena holografia minha deixando isso acontecer. Não, Elijah, eu poderia precisar manter os outros robôs longe de você, se tivessem chegado primeiro. Posso não ser muito boa numa porção de coisas, mas qualquer solariano pode dominar um grupo de robôs, garanto-lhe. Estamos acostumados.
- Porém, como me encontrou?
- Não foi tão difícil assim. Na verdade, seu aerocarro não se encontrava muito distante e poderíamos ter andado, se não fosse a tempestade. Nós...
- Quer dizer que quase chegamos à casa de Fastolfe? - perguntou Baley.
- Sim - respondeu Gladia. - E também seu carro não foi suficientemente atingido para forçá-lo a parar mais cedo ou a habilidade de Giskard manteve-o funcionando por mais tempo que os vândalos imaginaram. O que é uma boa coisa. Se você tivesse chegado mais perto do Instituto, eles poderiam ter apanhado todos. Seja como for, levamos meu aerocarro para onde você tinha ido. Giskard sabia onde, claro, e saímos...
- E ficaram todos molhados, Gladia?
- Nem um pouco - retrucou a moça. - Eu tinha um grande protetor contra a chuva e também um pequeno globo. Meus sapatos ficaram enlameados e meus pés ligeiramente úmidos porque não tive tempo de borrifar látex, mas não houve conseqüências... Seja como for, estávamos de volta ao seu aerocarro menos de meia hora depois de Giskard e Daneel deixá-lo e, claro, você não estava lá.
- Eu tentei... - começou Baley.
- Sim, sabemos. Pensei que eles, os outros, o tinham levado porque Giskard disse que você estava sendo seguido. Porém Giskard achou seu lenço a cerca de cinqüenta metros do aerocarro e disse que você devia ter andado nesta direção. Giskard achou que era uma coisa ilógica, mas que os seres humanos são freqüentemente ilógicos e por isso devíamos procurá-lo... Assim fizemos, eu e ele, usando o globo luminoso, porém foi ele quem o encontrou. Disse que viu o raio infravermelho do calor do seu corpo ao pé da árvore e o trouxemos de volta.
Baley perguntou, com uma ponta de aborrecimento:
- Por que minha saída foi ilógica?
- Ele não explicou, Elijah. Quer perguntar-lhe? - disse a moça, fazendo um gesto na direção de Giskard.
- E então, Giskard?
A imobilidade do robô foi interrompida imediatamente e seus olhos fixaram-se em Baley.
- Senti que o senhor se expôs desnecessariamente à tempestade - respondeu. - Se tivesse esperado, nós o teríamos trazido mais cedo.
- Os outros robôs poderiam ter me apanhado antes.
- Eles apanharam... mas o senhor os mandou embora, senhor.
- Como sabe disso?
- Havia muitas pegadas de robôs em torno das portas, senhor, porém não havia sinais de umidade no interior do aerocarro, como teriam de existir se fossem enfiados braços nele para tirá-lo de lá. Julguei que o senhor não teria saído do carro por vontade própria para se juntar a eles, senhor. E tendo-os mandado embora, o senhor não precisaria temer que voltassem muito depressa, uma vez que era atrás de Daneel que andavam, segundo sua própria análise da situação, e não do senhor. Além disso, o senhor tinha certeza de que eu voltaria depressa.
- Raciocinei exatamente dessa maneira - resmungou Baley - mas achei que confundindo a seqüência, poderia ajudar. Fiz o que achei melhor para mim e você me encontrou, mesmo assim.
- Sim, senhor.
- Mas por que me trazer aqui? - prosseguiu Baley. - Se estávamos perto da casa de Gladia, o local era tão perto ou talvez mais da casa do Dr. Fastolfe.
- Não exatamente, senhor. Esta residência ficava um pouco mais perto e julguei, pela premência de suas ordens, que cada momento era importante para a segurança de Daneel. Daneel ajudou apesar de relutar muito em deixá-lo. Uma vez aqui, achei que ô senhor também gostaria de vir e assim poder, se quisesse, responsabilizar-se pessoalmente pela segurança dele.
- Agiu bem, Giskard - disse Baley, balançando a cabeça, irritado (continuava aborrecido por causa do comentário sobre sua falta de lógica).
Gladia perguntou:
- É importante para você ver Fastolfe, Elijah? Posso mandar chamá-lo. Ou poderá falar-lhe pelo tridimensional.
Baley tornou a recostar-se na cadeira. Tivera tempo para perceber que seus processos de raciocínio estavam embotados e ele muito cansado. Não era bom enfrentar Fastolfe agora.
- Não - retrucou. - Irei vê-lo amanhã, após o desjejum. Há muito tempo. E além disso, acho que irei ver esse Kelden Amadiro, o chefe do Instituto de Robótica. E um alto funcionário, como é mesmo que o chamam?, o Presidente. Suponho que também estará lá.
- Você parece muito cansado, Elijah - falou Gladia. - Claro, nós não temos esses microrganismos, esses germes e vírus que vocês têm na Terra e você foi imunizado, de sorte que não tem nenhuma das doenças disseminadas em seu planeta, mas está evidentemente cansado.
Baley pensou: após tudo isso, não ficou resfriado? Nem pegou gripe? Nem pneumonia?... Era uma vantagem estar num mundo Espacial.
- Confesso que me sinto cansado, mas passará com um pequeno repouso - disse.
- Tem fome? É hora de jantar.
- Não estou com vontade - disse Baley, fazendo uma careta.
- Não sei se isso é aconselhável. Talvez não queira uma refeição pesada, mas que tal uma sopa quente? Vai lhe fazer bem.
Baley sentiu-se obrigado a sorrir. Ela podia ser solariana, mas em face das circunstâncias falava exatamente como uma terráquea. Desconfiou que o mesmo poderia acontecer com as auroreanas. Havia coisas que as diferenças de cultura não afetavam.
- Já tem sopa feita? - perguntou. - Não quero dar trabalho.
- Como pode dar trabalho?... Tenho uma criadagem... não tão grande como em Solaria, mas suficiente para preparar qualquer comida comum em pouco tempo... Agora fique calmo e me diga que espécie de sopa deseja. Iremos cuidar disso.
Baley não pôde recusar.
- Canja?
- Claro. - Depois, com simplicidade: - Apenas o que sugeri... com pedaços de galinha, para dar sustância.
A tigela foi posta na sua frente com surpreendente rapidez.
- Você não vai comer, Gladia? - perguntou.
- Comi enquanto você era banhado e tratado.
- Tratado?
- Apenas um ajuste bioquímico de rotina, Elijah. Você sofreu danos psíquicos de pouca monta e não queremos repercussões...
Coma!
Baley levou aos lábios uma colherada para experimentar. A canja não estava má, embora com a estranha tendência dos alimentos auroreanos de serem mais temperados do que Baley gostaria. Ou talvez tivesse sido preparada com temperos diferentes do que estava habituado.
Lembrou-se subitamente da mãe. uma recordação nítida, que a fez aparecer-lhe mais moça que ele mesmo agora. Lembrou-a ereta ao seu lado quando ele se recusava a tomar sua "ótima sopa".
Ela lhe diria: "vamos, Lije. É uma galinha verdadeira e muito cara. Mesmo os Espaciais não têm nada melhor."
Não tinham. Mentalmente, através dos anos, gritou: Não têm, mamãe!
Realmente! Se podia confiar na memória e no paladar da juventude, a canja de sua mãe, quando não era esmagada pela repetição, era infinitamente superior.
Tomou outra colherada, mais outra... e quando terminou, murmurou, meio encabulado:
- Tem um pouquinho mais?
- Quanto quiser, Elijah.
- Só um pouquinho.
Quando estava acabando, Gladia lhe disse:
- Elijah, esse encontro amanhã de manhã...
- Sim, Gladia?
- Significa que sua investigação terminou? Sabe o que aconteceu a Jander?
Baley respondeu, ponderadamente:
- Tenho uma idéia do que pode ter acontecido a Jander. Não penso que possa forçosamente persuadir alguém de que tenho razão.
- Então, por que o encontro?
- Não foi idéia minha, Gladia. Foi do Mestre Roboticista Amadiro. Ele é contra a investigação e vai tentar me mandar de volta à Terra.
- Foi o que estragou seu aerocarro e mandou seus robôs pega rem Daneel?
- Acho que foi.
- Bem, ele não corre o risco de ser julgado e condenado castigado por isso?
- Certamente - replicou Baley, calorosamente - a não ser por um problema muito especial: não tenho condições de provar.
- E ele pode fazer tudo isso sem ser incomodado... e ainda por cima impedir a investigação?
- Receio que ele tenha uma boa possibilidade de ser capaz disso. Como ele mesmo diz, quem não espera justiça, não deve ser desapontado.
- Porém ele não pode. Você não pode deixá-lo. Você precisa completar sua investigação e descobrir a verdade.
Baley suspirou.
- E se eu não descobri-la? Ou se puder descobrir... mas ninguém quiser me ouvir?
- Você pode descobrir a verdade. E pode fazer as pessoas o ouvirem.
- Você tem uma fé tocante em mim, Gladia. Contudo, se a Legislatura do Mundo Auroreano quiser me expulsar e determinar o fim da investigação, não há nada que eu possa fazer.
- Certamente, você não permitirá ser mandado embora sem nada resolvido.
- Claro que não. É pior que não fazer nada, Gladia. Voltarei com minha carreira arruinada e com o futuro da Terra destruído.
- Então não os deixe fazer isso, Elijah. E Baley respondeu:
- Jehoshaphat, Gladia, é o que estou tentando, mas não posso erguer um planeta com as mãos nuas. Não pode me pedir milagres.
Gladia balançou a cabeça e, de olhos baixos, colocou o punho fechado na boca, ficando imóvel, como se estivesse pensando. Passou algum tempo antes que Baley percebesse que a moça estava chorando silenciosamente.
Baley levantou-se rapidamente, rodeou a mesa e caminhou para ela. Notou distraidamente - e com algum aborrecimento - que suas pernas estavam tremendo e que havia um tique no músculo de sua coxa direita.
- Gladia - implorou - não chore.
- Não se perturbe, Elijah - murmurou a moça. - Já vai passar.
Baley ficou parado, sem saber o que fazer, ao lado dela, estendendo a mão, hesitante, para ela.
- Não estou lhe tocando - disse. - Não sei se seria melhor fazê-lo, mas...
- Ah, me toque. Me toque. Não gosto tanto assim do meu corpo e nada quero esconder de você. Não sou... o que era.
Então Baley estendeu a mão e tocou-a no braço, batendo leve e desajeitadamente com as pontas dos dedos.
- Amanhã farei o que puder, Gladia - disse ele. - Vou me esforçar ao máximo.
Ao ouvir isso, a moça ficou em pé, virou-se para ele e disse:
- Ah, Elijah.
Mecanicamente, mal sabendo o que estava fazendo, Baley tomou-a nos braços. E também mecanicamente, Gladia aninhou-se nos braços dele, que a abraçou, enquanto a cabeça da moça encostou-se ao peito dele.
Baley enlaçou-a o mais fortemente possível, esperando que ela percebesse estar abraçando um terráqueo (ela, indubitavelmente, já havia abraçado um robô humaniforme, porém esse robô não tinha sido terráqueo).
Ela fungou alto e falou com a boca meio obstruída pela camisa de Baley.
- Não é justo - disse. - Tudo porque sou solariana. Ninguém realmente se importa com o que aconteceu a Jander e teriam se importado se eu fosse auroreana. É tudo preconceito e política.
Baley pensou: os Espaciais são gente. Era exatamente o que Jessie diria em situação semelhante.
Se fosse Gremionis que estivesse segurando Gladia, diria exatamente
o que eu diria... se eu soubesse o que dizer.
E depois Baley falou:
- Não é bem assim. Tenho a certeza de que o Dr. Fastolfe se preocupa com o que aconteceu a Jander.
- Não. Não se preocupa, realmente. Ele apenas quer um lugar na Legislatura e Amadiro quer o lugar dele. E ambos querem negociar Jander pelo lugar.
- Prometo-lhe, Gladia, que não trocarei Jander.
- Não? E se eles lhe disserem que pode voltar para a Terra com sua carreira salva, sem castigos para o seu mundo, desde que você esqueça tudo sobre Jander, que faria?
- Não adianta especular sobre hipóteses. Não estão me dando nada em troca, para abandonar Jander. Estão apenas tentando me mandar embora sem nada, exceto a desgraça para mim e meu mundo. Mas se eles me deixarem, pegarei quem destruiu Jander e farei com que seja devidamente castigado.
- Que quer dizer com se eles o deixarem? Faça-os deixar! Baley sorriu amargamente.
- Se pensa que os auroreanos não se importam com você porque é solariana, imagine a pouca importância que teria se fosse da Terra, como eu.
Abraçou-a com mais força, esquecendo que era da Terra, mesmo ao dizer aquilo.
- Mas tentarei, Gladia. Não adianta alimentar esperanças, mas ainda não estou de mãos completamente atadas. Tentarei...
Sua voz morreu.
- Você continua dizendo que tentará... Mas como? Empurrou-o ligeiramente, para poder encará-lo. Baley replicou, confuso:
- Ora, posso...
- Descobrir o assassino?
- O que for... Gladia, por favor, preciso sentar. Estendeu o braço para a mesa, apoiando-se nela.
- O que foi, Elijah? - perguntou a moça.
- Tive um dia cansativo, evidentemente, e acho que ainda não me recuperei.
- Então é melhor ir se deitar.
- Para falar a verdade, Gladia, eu gostaria.
Ela o largou, com o rosto cheio de preocupação e sem lugar para mais lágrimas. Ergueu um braço, fez um gesto rápido e ele foi (pareceu-lhe) imediatamente rodeado por robôs.
E quando finalmente na cama, após a saída do último robô, ficou olhando para o teto, na escuridão.
Não sabia se ainda chovia no Exterior ou se alguns relâmpagos fracos continuavam a se manifestar, mas não ouvia trovões.
Respirou fundo e pensou: agora, que foi que prometi a Gladia? O que vai acontecer amanhã?
Último ato: fracasso?
E quando chegou à beira do sono, pensou naquele incrível raio de luz que surgiu antes de adormecer.
Acontecera duas vezes antes. Uma na noite anterior quando, como agora, estava adormecendo e outra naquela mesma noite, ao ficar inconsciente sob as árvores na tempestade.
Em ambas as vezes, alguma coisa tinha acontecido com ele, uma iluminação que desmistificara o problema, quando o relâmpago clareou a noite.
E aquilo permanecera dentro dele tão brevemente quanto o relâmpago.
O que era?
Voltaria?
Desta vez, procurou conscientemente agarrá-la, pegar a verdade ilusória... Ou seria a ilusão irreal? Seria o sub-reptício afastamento da razão consciente e a chegada do atraente contra-senso, que era impossível de ser analisado convenientemente, na ausência de um cérebro adequamente pensante?
A procura do que quer que fosse, contudo, sumira devagar. Não voltaria mais quando quisesse, como um unicórnio não voltaria num mundo onde não havia mais unicórnios.
Era mais fácil pensar em Gladia e como a moça tinha se sentido. Havia sido o toque direto da sua blusa sedosa, porém sob ela estavam os braços pequenos e delicados, as costas macias.
Teria tido coragem de beijá-la, se suas pernas não tivessem começado a bambear? Ou teria a coisa chegado tão longe assim?
Ouviu a própria respiração, num ronco suave, e como sempre, ficou encabulado. Forçou-se a permanecer acordado e tornou a pensar em Gladia. Antes dele partir, certamente... mas não se pudesse ganhar em retri... Seria pagamento por serviços pres...
Tornou a ouvir o ronco suave e dessa vez se importou menos.
Gladia... Nunca pensou que tornaria a vê-la... ficar só com ela e tocá-la... abraçá-la... abraçá-la... Baley não soube em que ponto passou do pensamento ao sonho.
Abraçava Gladia como antes... Mas não havia blusa... e sua pele estava quente e macia... e sua mão moveu-se por suas costas até as pontas ocultas de suas costelas...
Havia uma completa auréola de realidade em torno. Todos os seus sentidos estavam empenhados. Cheirou os cabelos dela e seus lábios sabiam ao leve sal de sua pele... e agora, sem saber como, não estavam mais em pé. Tinham se deitado ou estavam deitados desde o começo? E o que acontecera à luz?
Sentiu o colchão debaixo dele e a coberta sobre ele - trevas - e ela continuava em seus braços e seu corpo estava nu.
Acordou sobressaltado.
- Gladia?
Inflexão crescente... descrença...
- Pshh... Elijah. - Ela colocou a mão delicadamente sobre os lábios dele. - Fique calado.
Seria o mesmo que pedir-lhe deter sua corrente sangüínea.
- Que está fazendo? - perguntou Baley.
- Não sabe o que estou fazendo? - perguntou. - Estou na cama com você.
- Mas por quê?
- Porque quero.
O corpo de Gladia uniu-se ao dele.
Ela pegou a extremidade da camisola, que abriu-se de alto a baixo.
- Não se mexa, Elijah. Você está cansado e não quero que se dispa depois.
Elijah sentiu um calor percorrê-lo internamente. Resolveu não defender Gladia dela mesma.
- Não me sinto tão cansado assim, Gladia - falou.
- Não - retrucou a moça, asperamente. - Descanse! Quero que descanse. Não se mexa.
A boca de Gladia fechou a dele, como se quisesse mantê-lo calado. Baley relaxou e começou a pensar que estava recebendo ordens, que estava cansado e desejando que a iniciativa fosse dela em vez dele. E, rubro de vergonha, ocorreu-lhe que isso diminuía um pouco sua culpa (Não pude evitar, disse para si mesmo. Ela me obrigou).
Jehoshaphat, que covardia! Que humilhação insuportável!
Mas esses pensamentos também foram varridos. Sem saber como, havia música suave no ar e a temperatura subira um pouco. A coberta tinha desaparecido, bem como suas roupas de dormir. Sentiu a cabeça balançar no berço dos braços dela, apertada contra sua maciez.
Com tranqüila surpresa, percebeu, pela posição dela, que a suavidade era resultante do seu seio esquerdo e que estava centrado, em oposição com a dureza do mamilo contra seus lábios. Gladia cantava baixinho, uma alegre música de ninar, que ele não reconheceu.
Ela o embalava gentilmente para a frente e para trás, com os dedos acariciando seu queixo e nuca. Ele relaxou, satisfeito por não fazer nada, por deixá-la tomar a iniciativa e se encarregar de tudo. Quando ela moveu seus braços, Baley não resistiu e deixou-os ficar onde ela os colocou.
Baley não colaborou, e quando reagiu com grande excitação e clímax, foi só por não poder fazer outra coisa.
Gladia parecia incansável e ele não queria que a moça parasse. Ao lado da sensualidade da reação sexual, Baley tornou a sentir o que sentira antes: o prazer total da passividade infantil.
Finalmente, ele não pôde mais reagir e, ao que parecia, ela não podia fazer mais, deixando-se ficar com a cabeça apoiada entre o ombro esquerdo e o peito de Baley, e o braço esquerdo da moça ficou pousado em suas costelas, os dedos acariciando ternamente os pêlos crespos e curtos.
Baley pensou tê-la ouvido murmurar:
- Obrigada... Obrigada.
- Por quê? - pensou.
Agora Baley mal percebia a presença dela, pois aquele final totalmente suave de um dia difícil era tão soporífico quanto o sedativo da fábula e ele sentiu-se escorregar como se seus dedos estivessem largando a beira do penhasco da dura realidade para poder cair... cair... nas nuvens macias do sono que chegava, empurrando-o lentamente para um oceano de sonhos.
E quando isso aconteceu, o que não foi provocado surgiu por si mesmo. Pela terceira vez, o pano foi levantado e todos os acontecimentos desde que deixara a Terra entraram mais uma vez em foco. Novamente, estava tudo claro. Lutou para falar, para ouvir as palavras que necessitava ouvir, para fixá-las e incorporá-las ao seu processo de pensamento, mas apesar de se agarrar a elas com cada gavinha de sua mente, elas escorregavam e sumiam.
Dessa forma, a esse respeito, o segundo dia de Baley em Aurora terminou muito semelhante ao primeiro.
O Presidente
Quando Baley abriu os olhos, viu o sol penetrando pela janela e ficou contente. Para sua surpresa meio sonolenta, recebeu-o bem.
Significava que a tempestade passara e que era como se nunca tivesse acontecido. A luz do sol - se encarada apenas como uma alternativa para a iluminação controlada, suave, macia e quente das Cidades - só podia ser considerada crua e vaga. Porém se comparada com a tempestade, era promessa da própria paz. Tudo, pensou Baley, é relativo, e percebeu que jamais tornaria a pensar na luz do sol como uma coisa inteiramente má.
- Colega Elijah?
Daneel estava parado ao lado da cama. Um pouco atrás dele, Giskard.
O rosto comprido de Baley abriu-se num raro sorriso de puro prazer. Estendeu as mãos, uma para cada um.
- Jehoshaphat, homens - e naquele momento não percebeu absolutamente a aplicação imprópria da palavra - quando os vi juntos pela última vez, não tinha a menor certeza de que voltaria a ver um de vocês.
- Fique certo - replicou Daneel em voz baixa - que nenhum de nós teria sido danificado sob nenhuma circunstância.
- Com a luz do sol entrando, vejo isso - falou Baley. - Porém, na noite passada, pensei que a tempestade fosse me matar e tinha certeza de que você corria perigo mortal, Daneel. Parecia mesmo possível que Giskard também sofresse alguma espécie de dano tentando me defender de desvantagens insuperáveis. Melodramático, confesso, mas, como sabem, eu não estava muito consciente.
- Sabíamos disso, senhor - disse Giskard. - Foi por isso que tivemos dificuldade em cumprir sua ordem urgente. Confiamos em que no momento isso não seja mais uma fonte de aborrecimento para o senhor.
- De maneira alguma, Giskard.
- E também sabemos que foi muito bem tratado desde então - acrescentou Daneel.
Só aí Baley lembrou os acontecimentos da noite anterior.
Gladia!
Olhou em volta, repentinamente perplexo. Ela não estava em parte nenhuma do quarto. Teria ele imaginado...
Não, claro que não. Teria sido impossível.
Virou-se então para Daneel, de testa franzida, como que suspeitando que o comentário dele tivesse um caráter lascivo.
Mas não, também teria sido impossível. Um robô, por mais humaniforme, não era construído para ter prazeres lascivos com insinuações. Respondeu:
- Muito bem tratado. Mas o que eu preciso agora é ir ao Pessoal.
- Estamos aqui, senhor - disse Giskard - para orientá-lo e ajudá-lo no decorrer da manhã. A Srta. Gladia acha que o senhor ficaria mais à vontade conosco que com qualquer um outro dos seus criados e ela se esforçou para nada faltar ao seu conforto.
Baley ficou indeciso.
- Até onde vão as instruções dela? Estou me sentindo muito oem agora e por isso não preciso que alguém me banhe e me enxugue. Posso cuidar de mim. Espero que ela compreenda isso.
- Não precisa ficar encabulado, Colega Elijah - disse Daneel, com o esboço de sorriso que (pareceu a Baley) desponta nesses momentos num ser humano, podendo ser considerado como um sentimento de afeto surgindo. - Nossa função é proporcionar-lhe conforto. Se em algum momento sentir-se mais à vontade sozinho, ficaremos a alguma distância.
- Nesse caso, Daneel, estamos entendidos.
Baley pulou da cama. Ficou contente por ver que tinha as pernas firmes. A noite de repouso e o tratamento recebido (fosse qual fosse) fizeram maravilhas... E Gladia também.
Ainda nu e bastante molhado pelo chuveiro para sentir-se inteiramente refrescado, Baley, tendo penteado os cabelos, examinou o resultado com ar crítico. Parecia-lhe natural que fosse tomar o desjejum com Gladia e não sabia como seria recebido. Talvez fosse melhor adotar a atitude de que nada tinha acontecido e guiar-se pelo comportamento dela. E de certo modo, pensou, seria bom se ele parecesse bem: desde que no limite do possível. Fez uma careta de desagrado ao olhar-se no espelho.
- Daneel! - gritou.
- Sim, Colega Elijah.
com a boca cheia de dentifrício, Baley falou:
- Parece que você está usando roupas novas.
- Não são minhas, Colega Elijah. Pertenceram ao amigo Jander.
As sobrancelhas de Baley ergueram-se.
- Ela deixou que você as usasse?
- A Srta. Gladia não queria que eu ficasse sem roupas, enquanto esperava que as minhas, ensopadas pela tempestade, fossem lavadas e secadas. Elas já ficaram prontas, mas a Srta. Gladia disse que posso ficar com estas.
- Quando ela disse isso?
- Esta manhã, Colega Elijah.
- Então ela estava acordada?
- De fato. E o senhor pode ir tomar café com ela, quando estiver pronto.
Os lábios de Baley afinaram-se. Era estranho que naquele momento ele sentisse mais apreensão em encarar Gladia que, um pouco mais tarde, o Presidente. O assunto com o Presidente estava afinal de contas nas mãos do Destino. Ele já havia decidido sua estratégia, que iria funcionar ou não. Quanto a Gladia... simplesmente não tinha estratégia.
Bem, teria de encará-la.
E com o ar de indiferença como era capaz de ter, perguntou: - E como está a Srta. Gladia esta manhã?
- Parece bem - replicou Daneel.
- Alegre? Deprimida? Daneel hesitou.
- É difícil julgar o comportamento interior de um ser humano.
Nada há no comportamento dela que indique algum distúrbio íntimo.
Baley lançou um rápido olhar a Daneel e novamente pensou se ele queria se referir aos acontecimentos da noite anterior... E outra vez afastou a possibilidade.
Nem adiantou examinar o rosto de Daneel. Ninguém consegue deduzir alguma coisa da expressão de um robô, pois ele não tem pensamentos no sentido humano.
Entrou no quarto e olhou as roupas colocadas ali para ele, examinando-as pensativamente e imaginando se podia vesti-las sem errar e sem precisar da ajuda robótica.
A tempestade e a noite tinham passado e ele queria assumir a capa de homem adulto e independente outra vez.
- O que é isto? - perguntou.
Segurava um cinto coberto de complicados arabescos de cores variadas.
- É um cinto de pijama - replicou Daneel. - É apenas ornamental. Passa sobre o ombro esquerdo e é amarrado no lado direito da cintura. É usado tradicionalmente no desjejum, em alguns mundos Espaciais, porém não é muito popular em Aurora.
- Então, por que devo usá-lo?
- A Srta. Gladia pensa que lhe ficará bem, Colega Elijah. O método de amarrar é meio complicado e terei prazer em ajudá-lo.
Jehoshaphat, pensou Baley tristemente, ela quer que eu fique elegante. Que estará arquitetando? Não pense nisso!
- Não se incomode - retrucou Baley. - Darei um laço corrediço... Mas ouça, Daneel, após o desjejum, irei até à casa de Fastolfe, onde ele deverá estar juntamente com Amadiro e o Presidente da Legislatura. Não sei se haverá mais alguém presente.
- Sim, Colega Elijah. Fui informado disso. Acho que não haverá mais alguém.
- Ótimo, então - disse Baley, começando a vestir as roupas de baixo sem pressa para não errar e, assim, não precisar da ajuda de Daneel. - Fale-me sobre o Presidente.
Pelo que li, ele é a coisa mais parecida com um funcionário executivo aqui em Aurora, porém também li que sua posição é exclusivamente honorária. Não tem poder, parece.
- Temo, Colega Elijah... - começou Daneel. Giskard interrompeu.
- Senhor, conheço melhor a situação política de Aurora que o amigo Daneel. Estou em operação há mais tempo. Quer permitir que eu responda à pergunta?
- Ora, pois não, Giskard. Responda.
- Quando instalaram o governo de Aurora, senhor - começou Giskard de forma didática, como se uma fita de informações estivesse se desenrolando dentro dele metodicamente - havia a intenção de que o funcionário executivo exercesse apenas atividades cerimoniais. Receberia os dignitários dos outros mundos, abriria as sessões da Legislatura, presidiria as deliberações e votaria apenas para desempatar. Contudo, depois da Controvérsia do Rio...
- Sim, li a esse respeito - disse Baley. Tinha sido um episódio perfeitamente estúpido da história auroreana, no qual argumentos incompreensíveis sobre a divisão apropriada da energia hidroelétrica tinha levado o planeta à beira da guerra civil. - Não precisa entrar em detalhes.
- Certo, senhor - replicou Giskard. - Depois da Controvérsia do Rio, contudo, houve uma determinação geral de nunca mais permitir que discussões pusessem novamente em perigo a sociedade auroreana. Tornou-se um hábito, portanto, resolver todas as divergências de forma particular e pacífica, fora da legislatura. Quando os legisladores finalmente votam, é uma espécie de concordância, havendo assim, sempre uma enorme maioria de um lado ou de outro.
"A pessoa-chave na solução de disputas é o Presidente da Legislatura. Ele é mantido acima da luta, e seu poder, embora nulo teoricamente é considerável na prática, só se mantém enquanto é visto assim. Dessa forma, o Presidente conserva ciumentamente sua objetividade, e enquanto conseguir, é ele que habitualmente toma a decisão que regulariza toda controvérsia, de uma forma ou de outra.
- Você quer dizer que o Presidente me ouvirá, bem como a Fastolfe e Amadiro, para depois chegar a uma decisão? - perguntou Baley.
- Possivelmente. Por outro lado, senhor, ele pode permanecer em dúvida e exigir mais depoimentos, mais opiniões... ou ambos.
- E se o Presidente chegar a uma decisão, Amadiro se curvará a ela, mesmo que contra ele... o mesmo acontecendo a Fastolfe?
- Não é absolutamente necessário. Há quase sempre quem não aceite a decisão do Presidente. Tanto o Dr. Amadiro como o Dr. Fastolfe são obstinados... a julgar por seus comportamentos.
A maioria dos legisladores, contudo, apoiara a decisão do Presidente, qualquer que seja. Qualquer que seja o lado contra o qual o Presidente decidir, o Dr. Fastolfe ou o Dr. Amadiro, terá então a certeza de estar numa pequena maioria, quando os votos forem tomados.
- Quão certo, Giskard?
- Quase certo. O período de exercício do Presidente é ordinariamente trinta anos, com a possibilidade de recondução pela Legislatura por outros trinta. Se, no entanto, for dado um voto contra a recondução do Presidente, este será forçado a renunciar imediatamente e então haverá uma crise governamental enquanto a Legislatura estiver procurando outro Presidente sob essa condição de luta violenta. Poucos legisladores querem se arriscar a isso e a oportunidade de obter uma maioria de votos contra o Presidente, tendo isso como conseqüência, é quase nula.
- Então - disse Baley, pesaroso - tudo depende da reunião desta manhã.
- É muito provável.
- Obrigado, Giskard.
Sombrio, Baley tratou de ordenar e reordenar seus pensamentos. Tinha esperanças, porém nenhuma idéia do que Amadiro poderia dizer ou de como seria o Presidente.
Foi Amadiro quem iniciou o processo e devia estar confiante em si mesmo.
Aí Baley tornou a lembrar que quando estava adormecendo com Gladia nos braços tinha visto... ou pensou ter visto, ou imaginou ter visto... o significado de todos os acontecimentos em Aurora. Tudo tinha ficado claro... evidente... certo. E mais uma vez, pela terceira, desapareceu como se nunca tivesse existido.
E com esse pensamento, também suas esperanças desapareceram.
Daneel levou Baley à sala onde o desjejum estava sendo servido: pareceu-lhe mais aconchegante que uma sala de jantar comum. Era pequena e modesta, tendo, em matéria de mobiliário, apenas uma mesa e duas cadeiras, e quando Daneel retirou-se, não foi para um nicho. Na realidade, não havia nichos e, por um instante, Baley ficou só - completamente só - na sala.
Tinha certeza de que não estava realmente só. Haveria robôs ao alcance da voz. Todavia, era uma sala para dois - uma sala-sem robôs - uma sala para (Baley hesitou ao pensamento) amantes.
Havia na mesa uma pilha de coisas parecidas com panquecas, que não cheiravam como panquecas, mas cheiravam bem. Dois recipientes de uma coisa parecida com manteiga derretida (mas poderia não ser) estavam ao lado. Havia um bule da bebida quente (que Baley provara e não gostara muito), que substituía o café.
Gladia entrou, vestida luxuosamente, com os cabelos brilhando, como que recentemente penteados. Parou um instante, esboçando um sorriso.
- Elijah?
Baley, apanhado de surpresa pela súbita aparição, ficou em pé.
- Como vai, Gladia? - perguntou, gaguejando um pouco. Ela fingiu não perceber. Parecia alegre e descuidada. Falou:
- Se está preocupado por Daneel não estar visível, não fique. Ele se encontra completamente a salvo e vai continuar assim. Quanto a nós...
Caminhou para Baley, parando perto e colocando lentamente a mão no rosto dele, como fizera uma vez, havia muito tempo, em Solaria.
A moça riu alegremente.
- Naquela vez, Elijah, só fiz isto. Lembra? Elijah balançou a cabeça silenciosamente.
- Dormiu bem, Elijah?... Sente-se querido. Baley sentou-se.
- Muito bem... Obrigado, Gladia.
Hesitou antes de resolver não retribuir a carícia.
- Não me agradeça - disse ela. - Foi a minha melhor noite de sono em semanas e não a teria se não tivesse saído da cama após ter tido a certeza de que você estava dormindo profundamente. Se eu tivesse ficado, como eu quis, eu o teria incomodado antes que a noite terminasse e você não conseguiria descansar.
Ele sentiu a necessidade de ser cavalheiresco.
- Há coisas mais importantes que des-descansar, Gladia - retrucou, mas tão formalmente, que a moça tornou a rir.
- Pobre Elijah - disse ela. - Você está encabulado.
O fato é que ela reconhecia encabulá-lo cada vez mais. Baley tinha sido preparado para arrependimento, nojo, vergonha, pseudoindiferença, lágrimas... tudo, menos a atitude francamente erótica por ela assumida.
- Bem, não sofra tanto - prosseguiu Gladia. - Você está faminto. Mal comeu, na noite passada. Engula algumas calorias e vai sentir-se mais sensual.
Baley olhou duvidoso para o que parecia panquecas.
- Ah! Estas provavelmente nunca viu - afirmou Gladia. - São especialidades solarianas. Pachinkas! Tenho de reprogramar meu cozinheiro antes que ele as faça devidamente.
Em primeiro lugar, é preciso importar o cereal solariano. Não ficam boas as variedades auroreanas. São recheadas. Realmente, você pode usar milhares de recheios, porém este é o meu predileto e sei que também vai gostar. Não Vou lhe dizer o que é, apenas que leva um purê de castanhas e um pingo de mel, mas prove e me dê sua opinião. Pode comer com as mãos, mas tome cuidado quando morder.
Gladia pegou um, delicadamente, entre o polegar e o médio de cada mão, deu uma mordidinha com cuidado e lambeu o conteúdo dourado, semilíquido, que saiu.
Baley imitou-a. O pachinka era firme ao toque e não muito quente. Baley colocou uma ponta cautelosamente na boca e sentiu resistência à mordida. Apertou mais e o pachinka estalou, espalhando o conteúdo em suas mãos.
- A dentada foi muito grande e violenta - disse Gladia, aproximando-se dele com um guardanapo. - Agora lamba-o. Ninguém come um pachinka sem se sujar. É impossível.
Tem de chafurdar nele. O ideal seria comê-lo nu e depois tomar um banho de chuveiro.
Baley deu uma lambida experimental e sua expressão foi muito reveladora.
- Você gostou, hem? - comentou Gladia.
- É delicioso - replicou Baley, dando outra mordida devagar e suavemente.
O pachinka não era muito doce e parecia amolecer e desmanchar na boca. Quase não era preciso engoli-lo.
Baley comeu três pachinkas e só a vergonha impediu-o de pedir mais. Lambeu os dedos sem pressa e absteve-se de usar o guardanapo, pois não queria deixar nenhum resto preso num objeto inanimado.
- Mergulhe seus dedos e mãos no purificador, Elijah - disse Gladia, apontando.
A "manteiga derretida" era, evidentemente, um recipiente para lavar os dedos.
Baley fez como lhe indicara e depois enxugou as mãos. Cheirou-as e não encontrou nenhum odor.
- Você está encabulado por causa da noite passada, Elijah? - perguntou ela. - É só o que sente?
Que dizer? - pensou Baley. Finalmente, balançou a cabeça.
- Acho que sim, Gladia. Não é só o que sinto, por vinte quilômetros ou mais, porém estou encabulado. Pense nisto. Sou terráqueo e você sabe, mas com o passar do tempo você esqueceu e "terráqueo" tornou-se uma palavra sem importância para você. Na noite passada, você sentiu pena de mim, ficou preocupada por causa do meu problema com a tempestade, tendo um sentimento maternal em relação a mim, e talvez simpatizando comigo em virtude da sua vulnerabilidade diante da sua própria perda, você foi me procurar. Mas esse sentimento passará, espanta-me ainda não ter passado, e então você lembrará que sou terráqueo e se envergonhará, sentindo-se humilhada e suja. Me odiará pelo que fiz por você e não quero ser odiado... Não quero ser odiado, Gladia.
(Se parecia tão infeliz quanto se sentia, então estava infeliz mesmo.)
Ela deve ter pensado assim, pois estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
- Não quero odiá-lo, Elijah. Por que odiaria? Você nada me fez que me aborrecesse. Fiz aquilo por você e estou muito contente por tê-lo feito. Há dois anos, Elijah, você me libertou com um toque e na noite passada tornou a me libertar. Eu precisava saber, há dois anos, que podia sentir desejo... e na noite passada precisei novamente saber que podia sentir desejo, depois de Jander. Elijah... fique comigo. Seria...
Baley interrompeu-a sinceramente.
- De que jeito, Gladia? Preciso retornar ao meu mundo. Tenho deveres e objetivos lá e você não pode ir comigo. Você não poderá se adaptar à espécie de vida levada na Terra. Você morreria das enfermidades lá existentes... se as multidões e os recintos fechados não a matassem primeiro. Você compreende, claro.
- Compreendo, em relação à Terra - suspirou Gladia - mas você não precisa partir imediatamente.
- Antes que a manhã acabe, serei expulso do planeta pelo Presidente.
- Não será - reagiu Gladia com energia. - Você mesmo não deixará... E se for, poderá dirigir-se a outro mundo Espacial. Há dezenas à nossa escolha. A Terra significa tanto para você que não possa morar num mundo Espacial?
- Eu poderia ser ambíguo, Gladia - replicou Baley - e frisar que nenhum mundo Espacial permitiria que eu me estabelecesse nele permanentemente... e você sabe disso.
Mas a grande verdade é que, mesmo que algum mundo Espacial me aceitasse, a Terra significa tanto para mim, que preciso voltar... Mesmo que a condição seja deixar você.
- E nunca mais visitará Aurora? Nunca mais me verá?
- Se eu puder tornar a vê-la, virei - respondeu Baley e era sincero. - Sempre que puder, acredite-me. Mas para que ainda dizer isso? Você sabe que provavelmente não me convidarão a voltar. E que não posso retornar sem convite.
- Não quero acreditar nisso - disse Gladia em voz baixa.
- Gladia, não fique infeliz. Aconteceu entre nós uma coisa maravilhosa, mas há outras tão maravilhosas que lhe poderão acontecer... muitas, de toda espécie, porém nenhuma a mesma. Procure as outras.
Gladia permaneceu calada.
- Gladia - perguntou ele, ansioso - alguém precisa saber do que aconteceu entre nós?
Ela ergueu os olhos para Baley, com uma expressão de sofrimento no rosto.
- Ficou tão envergonhado assim?
- com o que aconteceu, certamente não. Mas apesar de não me sentir envergonhado, poderá haver conseqüências desagradáveis. O assunto será discutido. Graças àquele odioso drama da hiperonda, que incluiu uma visão distorcida da nossa relação, somos notícia. O terráqueo e a solariana. Se houver o menor motivo para suspeitar de... amor entre nós, isso chegará à terra com a velocidade hiperespacial.
Gladia ergueu as sobrancelhas, com ar altivo.
- E a Terra o considerará aviltado? Por você ter tido relações sexuais com alguém abaixo de sua posição?
- Não, claro que não - respondeu Baley, nervoso, pois sabia que essa iria ser, com certeza, a opinião de bilhões de terráqueos. - Não lhe ocorreu que minha mulher poderia vir a saber? Sou casado.
- E se ela souber? E daí? Baley respirou fundo.
- Você não compreende. Os costumes da Terra não são os dos Espaciais. Tivemos épocas em nossa história em que os costumes sexuais eram bastante livres, pelo menos em alguns lugares e para certas camadas sociais. Mas esta não é uma delas. Os terráqueos vivem amontoados e isso exige uma moral puritana, para manter estável o sistema familiar em tais condições.
- Cada um tem um só companheiro e mais ninguém? É isso?
- Não - respondeu Baley. - Honestamente, não é assim. Mas toma-se precauções para que as irregularidades sejam mantidas suficientemente sigilosas para que cada um possa... possa...
- Fingir que não sabe?
- Bem, sim, mas, neste caso...
- Será tão público que ninguém poderá fingir que não sabe... e sua mulher ficará tão furiosa que baterá em você.
- Não, não me baterá, mas ficará envergonhada, o que é pior. E também eu e meu filho ficaremos envergonhados. Minha posição social sofrerá e... Gladia, se você não compreender, paciência, porém me prometa que não falará a respeito como fazem os auroreanos.
Sabia perfeitamente que estava dando uma lamentável demonstração de si mesmo.
- Não pretendo infernizá-lo, Elijah - replicou Gladia, pensativa. - Você foi bondoso comigo e não quero ser desagradável com você, mas... - ergueu os braços, impotente - os costumes da sua Terra são muito insensatos.
- Não há dúvida. Mas tenho de conviver com eles... como você teve com os solarianos.
- É verdade. - A lembrança tornou seu rosto sombrio. - Desculpe, Elijah. Real e honestamente, desculpe-me. Quero o que não posso ter e me vali de você.
- Está bem.
- Não, não está bem. Por favor, Elijah, preciso lhe explicar uma coisa. Acho que não compreendeu o que aconteceu na noite passada. Você ficaria ainda mais encabulado se eu tivesse feito?
Baley ficou imaginando como Jessie iria sentir-se e o que faria se pudesse ouvir a conversa. Baley tinha certeza de que sua mente estaria em confronto com o Presidente, que vinha logo a seguir, e não no seu dilema marital pessoal. Ele devia estar pensando no perigo que a Terra corria e não no de sua mulher, mas, na realidade, estava pensando em Jessie.
- Eu ficaria provavelmente encabulado - retrucou - mas explicaria, seja como for.
Gladia moveu a cadeira, evitando chamar um dos seus robôs para fazê-lo por ela. Baley ficou olhando, nervoso, sem se oferecer para ajudá-la.
Ela colocou a cadeira junto à dele, frente a frente, de maneira a encará-lo quando sentasse. Depois, pousou a mão na dele e apertou-a.
- Está vendo, não temo mais o contato. Não estou mais no estágio em que só podia roçar a mão no seu rosto por um instante.
- Pode ser, mas isso não a afeta, não é, Gladia, como afetava antes?
Ela balançou a cabeça.
- Não, não me afeta dessa maneira, mas gosto, apesar disso. Acho que realmente é um progresso. Me sentir exposta apenas por um simples toque mostra como vivi anormalmente e por quanto tempo. Agora é melhor. Posso dizer-lhe quanto? Tudo o que falei até agora foi apenas o prólogo.
- Pois diga.
- Queria que estivéssemos na cama, no escuro. Eu falaria mais livremente.
- Estamos sentados e é dia, Gladia, mas estou ouvindo.
- Sim... Em Solaria, Elijah, não há sexo na conversa. Você sabe disso.
- Sim, sei.
- Nunca o senti verdadeiramente. Em algumas ocasiões - em poucas - meu marido se aproximou fora de sua obrigação. Sou incapaz de descrever como foi, mas me acreditará quando eu disser, ao lembrar, que foi pior que nada.
- Acredito.
- Porém eu tinha conhecimento do sexo. Li a respeito. Discuti-o às vezes com outras mulheres, todas fingindo ser uma obrigação odiosa que os solarianos deveriam suportar. Se já tivessem filhos no limite de suas cotas, diziam sempre estar felizes por nunca mais precisarem ter relações sexuais.
- Você acreditou nelas?
- Claro que sim. Eu nunca tinha ouvido outra coisa e os poucos relatos não-solarianos que li eram denunciados como distorções falsas. Acreditei nisso também. Meu marido descobriu alguns livros meus, chamou-os de pornografia e os destruiu. Então, sabe, vi que as pessoas podem acreditar em tudo. Acho que as mulheres solarianas acreditavam no que diziam e realmente desprezavam o sexo. Eram certamente muito sinceras, o que me fez sentir haver alguma coisa muito errada comigo porque eu era curiosa àquele respeito... com estranhas sensações que não podia compreender.
- Naquela época, você não usou robôs para se aliviar?
- Não, não me ocorreu. Nem qualquer objeto inanimado. Ouvi alguns boatos ocasionais da sua existência, mas com tal horror - ou fingido horror - que nunca sonhei em fazer alguma coisa assim. Claro, eu sonhava e às vezes, quando penso nisso, devo ter tido orgasmos incipientes, que me acordavam. Nunca os entendi, claro, ou ousei falar neles. Na realidade, sentia-me muito envergonhada. Pior, sentia-me apavorada com o prazer que me davam. E então, é claro, mudei-me para Aurora.
- Você já me contou. O sexo com os auroreanos não foi satisfatório.
- Sim, fez-me até pensar que os solarianos estavam certos. O sexo não era, afinal de contas, como em meus sonhos. Foi só com Jander que compreendi. Não é sexo que eles fazem em Aurora, é, é... coreografia. Cada passo é ditado pela moda, da maneira de se aproximar ao clímax. Nada é inesperado, espontâneo. Em Solaria, onde há pouco sexo, nada era dado ou recebido. Em Aurora o sexo é tão estilizado que no fim também nada foi dado ou recebido. compreende?
- Não sei, Gladia, pois nunca tive relações sexuais com uma auroreana, e não sou auroreano. Porém não precisa explicar. Tenho uma vaga noção do que você quer dizer.
- Você está muito encabulado, não é?
- Não ao ponto de ficar incapaz de ouvir.
- Então encontrei Jander e aprendi a usá-lo. Não era um homem auroreano. Seu único objetivo, seu único objetivo possível era me agradar. Ele deu e eu recebi pela primeira vez, experimentei o sexo como devia ser. Compreende isso? Pode imaginar como deve ser saber repentinamente que não é louca, defeituosa ou depravada, ou mesmo apenas errada... mas saber que é mulher e ter um companheiro sexual satisfatório?
- Acho que posso imaginar.
- E então, depois de pouco tempo, perder tudo isso. Pensei... pensei... que fosse o fim. Fiquei arrasada. Nunca mais, em séculos de vida, iria ter novamente uma boa relação sexual. Não ter tido, para começar - e depois nunca mais ter - já era ruim. Mas ter contra toda a expectativa e depois subitamente perder e voltar ao nada...o insuportável... Percebe agora como a noite passada foi importante?
- Mas, por que eu, Gladia? Por que não outro?
- Não, Elijah. Tinha de ser você. Viemos e o achamos, Giskard e eu, e você estava desamparado. Totalmente. Não estava inconsciente, mas não comandava seu corpo.
Teve de ser levantado, carregado e posto no carro. Eu estava presente quando você foi aquecido, tratado, banhado e enxugado, completamente indefeso. Os robôs agiram com eficiência maravilhosa cuidando de você e evitando que lhe fosse causado dano, mas totalmente sem sentimento verdadeiro. Eu, por outro lado, vi e senti.
Baley trincou os dentes e baixou a cabeça, ao pensamento de seu desamparo público. Tinha se aproveitado, quando aconteceu, mas agora só podia sentir-se infeliz por ter sido visto naquelas condições.
Gladia prosseguiu:
- Eu queria fazer tudo para você. Zanguei-me com os robôs por se reservarem o direito de serem bons com você... e dar. E quando pensei em mim fazendo aquilo, surgiu-me uma crescente excitação sexual, coisa que não sentia desde a morte de Jander... E então me ocorreu que, na minha única relação sexual de sucesso, só tinha feito receber. Jander deu o que desejei, mas nunca recebeu. Era incapaz de tomar, uma vez que seu único prazer era me satisfazer. E nunca me ocorreu dar porque fui educada entre robôs e sabia que eles não podiam tomar.
"E ao ficar observando, percebi que só conhecia a metade do sexo, querendo desesperadamente experimentar a outra metade. Mas então, mais tarde comigo na mesa de jantar, enquanto tomava a sopa quente, você me pareceu recuperado, forte. Forte bastante para me consolar e porque eu tive aquele sentimento por você, quando estava sendo tratado, não mais temi você ser da Terra e desejei que me abraçasse. Quis. Mas mesmo quando me abraçou, tive uma sensação de perda, pois eu estava novamente tirando e não dando.”
"E você me disse: "Gladia, por favor, preciso sentar". Ah, Elijah, foi a coisa mais maravilhosa que você podia ter dito.”
Baley sentiu-se corar.
- Fiquei tremendamente encabulado naquela hora. Era uma confissão de fraqueza.
- Era exatamente o que eu queria. Fiquei louca de desejo. Arrastei-o para a cama e pela primeira vez na vida dei sem receber. E a magia de Jander acabou porque descobri que também não tinha sido suficiente. As duas coisas eram possíveis: dar e tomar... Elijah, fique comigo.
Baley sacudiu a cabeça.
- Gladia, se eu partir meu coração em dois, isso não muda os fatos. Não posso permanecer em Aurora. Tenho de voltar à Terra. Você não pode morar na Terra.
- Elijah, e se eu puder?
- Por que dizer uma bobagem dessas? Mesmo que pudesse, eu envelheceria rapidamente e me tornaria inútil para você. Dentro de vinte anos, trinta no máximo, serei velho e provavelmente terei morrido, enquanto você continuará como é durante séculos.
- Mas é isso o que quero dizer, Elijah. Na Terra, pegarei suas doenças e também envelhecerei depressa.
- Você não vai querer isso. Além do mais, velhice não é infecção. Você simplesmente ficará doente muito depressa e morrerá. Gladia, precisa encontrar outro homem.
- Um auroreano? - perguntou, com desprezo.
- Você pode ensiná-lo. Agora que sabe dar e receber, ensine também a ele.
- Se eu ensinar, ele aprenderá?
- Alguém aprenderá, com certeza. Você tem muito tempo para encontrar o que deseja. Há...
(Não, pensou, não era aconselhável falar agora em Gremionis, mas talvez se ele se aproximasse... menos educadamente e com muito mais determinação...)
Gladia ficou pensativa.
- Será possível? - Então, virando para Baley seus úmidos olhos cinza-azulados, perguntou: - Ah, Elijah, você lembra de alguma coisa do que aconteceu na noite passada?
- Devo confessar - replicou Baley, um tanto triste - que uma parte está lamentavelmente embaralhada.
- Se se lembrasse, não iria querer me abandonar.
- Não quero abandoná-la só por querer, Gladia. Apenas é preciso.
- E depois - prosseguiu a moça - você ficou muito descansado e contente. Fiquei encostada em seu ombro e ouvi seu coração bater rapidamente a princípio e depois cada vez mais devagar, exceto quando você sentou-se de repente. Lembra disso?
Baley sobressaltou-se e afastou-se um pouco da moça, encarando-a, ansioso.
- Não, não lembro. Que quer dizer? Que fiz?
- Já lhe disse. Você sentou-se subitamente.
- Sim, o que mais?
Agora seu coração tinha disparado, batendo tão rápido como se estivesse seguindo o sexo na noite anterior. Três vezes, uma coisa que pareceu a verdade aflorou-lhe, mas nas duas primeiras estava inteiramente só. A terceira, contudo, na noite anterior, teve a presença de Gladia. Ele teve uma testemunha.
- Na realidade, nada mais - replicou Gladia. - Perguntei: "Que foi, Elijah?", porém você não prestou atenção, respondendo: "Consegui, consegui." Não falou com clareza e seus olhos estavam baços. Foi meio assustador.
- Foi tudo o que eu disse? Jehoshaphat, Gladia! Eu não disse mais nada?
Gladia franziu a testa.
- Não me lembro. Depois você tornou a deitar e eu disse: "Não tenha medo, Elijah. Não tenha medo. Agora você está a salvo." Acariciei-o e você adormeceu... e roncou.
Nunca tinha ouvido ninguém roncar, mas deve ter sido isso... pelas descrições.
A lembrança positivamente divertiu-a.
- Preste atenção, Gladia - pediu Baley. - Que foi que eu disse? "Consegui, consegui". Não disse o que tinha conseguido?
Ela tornou a franzir o cenho.
- Não. Não lembro... Espere, você disse uma coisa em voz muito baixa: "Ele esteve lá primeiro".
- "Ele esteve lá primeiro". Foi isso?
- Foi. Fiquei convencida de que você achava que Giskard estivera lá antes dos outros robos, que você estava tentando vencer seus temores de ser raptado, que você estava revivendo aquele momento na tempestade. Sim! Foi por isso que o acariciei e disse: "Não tenha medo, Elijah. Agora você está a salvo", até que se acalmou.
- "Ele esteve lá primeiro". "Ele esteve lá primeiro"... Agora não esquecerei. Gladia, obrigado pela noite passada. Obrigado por conversar comigo agora.
- Há uma coisa importante na sua afirmação de que Giskard o encontrou primeiro. Encontrou. Você sabe disso.
- Não pode ser isso, Gladia. Tem de ser uma coisa que eu não sei, mas que procuro descobrir apenas quando minha mente está completamente relaxada.
- Mas então que significa isso?
- Não tenho certeza, mas se for o que eu disse, deve significar alguma coisa. E tenho apenas uma hora ou duas para descobrir. - Levantou-se. - Preciso sair agora.
Tinha dado alguns passos na direção da porta quando Gladia correu para ele e abraçou-o.
- Espere, Elijah.
Baley hesitou, depois inclinou a cabeça para beijá-la. Ficaram abraçados por muito tempo.
- Vou tornar a vê-lo, Elijah?
- Não sei. Espero - respondeu Baley, triste.
E saiu à procura de Daneel e Giskard, para tomar as providências necessárias para a acareação que iria ter lugar.
A tristeza de Baley continuou durante a travessia do gramado que levava à casa de Fastolfe.
Os robôs o ladeavam. Daneel parecia à vontade, mas Giskard, fiel à sua programação e evidentemente incapaz de relaxar, manteve-se atento aos arredores.
- Como se chama o Presidente da Legislatura, Daneel? - perguntou Baley.
- Não sei, Colega Elijah. Nas vezes em que ouvi falar dele, foi só como Presidente. Ele é chamado "Sr. Presidente".
- Seu nome é Rutilan Horder, senhor - informou-o Giskard - mas nunca é mencionado oficialmente. Só o título é usado. Serve para dar a impressão de continuidade ao governo. Os ocupantes da posição têm individualmente denominações fixas, porém "o Presidente" sempre existe.
- E este Presidente especialmente... que idade tem?
- É bastante idoso, senhor. Trezentos e trinta e um anos - replicou Giskard, que tinha sempre dados à disposição.
- Boa saúde?
- Nada sei em contrário, senhor.
- Nenhuma característica notável que me possa ser útil?
A pergunta pareceu paralisar Giskard. Após uma pausa, respondeu:
- Não sei informar, senhor. Ele está no seu segundo mandato. É considerado um Presidente eficiente, que trabalha duro e obtém resultados.
- É irritável? Paciente? Dominador? Compreensivo?
- O senhor deve julgar isso pessoalmente - replicou Giskard.
- Colega Elijah - disse Daneel - o Presidente está acima dos partidos. Ele é imparcial por definição.
- Garanto que sim - murmurou Baley - mas definições são abstrações, como "o Presidente", enquanto que Presidentes individuais, com nomes, são concretos e têm mentes para competir.
Balançou a cabeça. Sua própria, poderia jurar, tinha uma grande consistência. Pensou três vezes numa coisa e perdeu todas três, restando-lhe agora o único comentário feito na época e este em nada adiantava.
"Ele esteve lá primeiro."
Quem esteve primeiro? Quando?
Baley não tinha resposta.
Baley encontrou Fastolfe esperando por ele na porta, com um robô às suas costas, que parecia de uma inquietação não robótica, como que incapaz de realizar sua função de receber uma visita e preocupado pelo fato.
Mas então alguém estava sempre vendo motivações e reações humanas em robôs. A verdade mais provável era não haver preocupação - nenhum sentimento de qualquer espécie – (mas apenas uma leve oscilação dos potenciais positrônicos, resultantes do fato de que suas ordens eram receber e inspecionar todas as visitas e ele não podia realizar a tarefa sem afastar Fastolfe para trás, coisa que também não podia fazer, na falta de uma necessidade inadiável. Por isso fez movimentos falsos seguidamente e que pareceu torná-lo inquieto.)
Baley ficou olhando distraidamente para o robô e só com muita dificuldade conseguiu fixar os olhos em Fastolfe (Estava pensando em robôs, mas não sabia por quê).
- É um prazer vê-lo novamente, Dr. Fastolfe - disse, estendendo a mão.
Depois do seu encontro com Gladia, foi-lhe um tanto difícil lembrar que os Espaciais relutavam em estabelecer contatos físicos com terráqueos.
Fastolfe hesitou um momento e depois, os modos vencendo a prudência, aceitou a mão, apertou-a leve e rapidamente, largando-a logo.
- Meu prazer é ainda maior, Sr. Baley - replicou. - Fiquei muito assustado com sua experiência na noite passada. Não foi uma tempestade especialmente violenta, mas para um terráqueo deve ter sido arrasadora.
- Sabe então o que aconteceu?
- Daneel e Giskard me puseram inteiramente a par. Eu teria me sentido melhor se eles tivessem vindo diretamente para cá e finalmente trazendo o senhor com eles, mas a decisão que tomaram baseou-se no fato de que a casa de Gladia estava mais perto do ponto em que o aerocarro pifou e que suas ordens foram muito precisas, colocando a segurança de Daneel acima da sua própria. Eles não o interpretaram mal?
- Não. Obriguei-os a me abandonar.
- Foi prudente?
Fastolfe levou-o para dentro e ofereceu uma cadeira. Baley sentou-se.
- Era o que devia ser feito. Estávamos sendo perseguidos.
- Foi o que Giskard informou. Ele também disse que... Baley interveio:
- Dr. Fastolfe, por favor, Tenho pouquíssimo tempo e preciso fazer-lhe algumas perguntas.
- Faça, por favor - retrucou Fastolfe imediatamente, com seu habitual ar de infalível polidez.
- Dizem que o senhor coloca seu trabalho sobre a função do cérebro acima de tudo, que o senhor...
- Permita-me que termine. Sr. Baley. Que nada deixo em meu caminho, que sou totalmente implacável, imune a qualquer consideração de imoralidade ou maldade, sem me deter em nada, desculpando tudo, tudo em nome da importância da minha obra.
- É verdade.
- Quem lhe disse isso, Sr. Baley? - perguntou Fastolfe.
- Tem importância?
- Talvez não. Além disso, não é difícil adivinhar. Foi minha filha Vasilia. Tenho certeza.
Talvez - replicou Baley. - O que eu quero saber é se essa apreciação do seu caráter é correta. Fastolfe sorriu tristemente.
- Espera de mim uma resposta honesta sobre meu próprio caráter? Em certo sentido, são verdadeiras. Considero o meu trabalho a coisa mais importante e tenho o impulso de sacrificar tudo a ele. Ignorarei as convenções de maldade e imoralidade, se se atravessarem no meu caminho... O caso, porém, é que não faço. Não posso me forçar.
E especialmente se fui acusado de ter morto Jander porque ele de certa forma tinha se adiantado ao meu estudo do cérebro humano, nego. Não é verdade. Não matei Jander.
- O senhor sugeriu - disse Baley - que eu me submetesse à Sonda Psíquica para obter uma informação que, de outra forma, não posso tirar do meu cérebro. Já lhe ocorreu que se o senhor se submeter à Sonda Psíquica sua inocência pode ser demonstrada?
Fastolfe balançou a cabeça, pensativo.
- Imagino que Vasilia sugeriu que meu não oferecimento é prova de minha culpa. Não é verdade. A Sonda Psíquica é perigosa e fico tão nervoso, à idéia de me submeter a uma quanto o senhor. Contudo, eu o faria, apesar dos meus temores, se não fosse o fato de que o que mais meus adversários querem é levar-me a fazê-lo. Duvidarão de qualquer prova de minha inocência e a Sonda Psíquica não é um instrumento suficientemente delicado para demonstrar irrefutável inocência. Mas o que eles vão querer com o uso dela é informações sobre a teoria e construção de robôs humaniformes. É atrás disso que andam e é isso que não estou disposto a dar-lhes.
- Muito bem. Obrigado, Dr. Fastolfe - disse Baley.
- Às suas ordens - replicou Fastolfe. - E agora, se posso retomar o que estava dizendo, Giskard me informou que o senhor, após ter sido deixado só no aerocarro, foi abordado por robôs estranhos. Pelo menos foi assim que o senhor se exprimiu, um tanto incoerentemente, depois de ter sido encontrado inconsciente e exposto à tempestade.
- Os estranhos robôs me abordaram, Dr. Fastolfe. Procurei desviá-los e mandá-los embora, mas achei acertado abandonar o aerocarro em vez de esperar pela volta deles.
Talvez eu não estivesse pensando com clareza quando tomei essa decisão. Giskard disse que eu não estava.
Fastolfe sorriu.
- Giskard tem uma visão simplista do Universo. Tem alguma idéia de que robôs eram?
Baley mexeu-se, inquieto, parecendo não conseguir se acomodar confortavelmente na cadeira. Perguntou:
- O Presidente já chegou?
- Não, porém não vai demorar. E também Amadiro. o diretor do Instituto, que, me disseram os robôs, o senhor conheceu ontem. Não sei se foi aconselhável. O senhor o irritou.
- Eu precisava vê-lo, Dr. Fastolfe, e ele não pareceu irritado.
- Isso não quer dizer nada, com relação a Amadiro. Como resultado do que ele chama suas calúnias e sua insuportável tentativa de manchar sua reputação profissional, forçou a interferência do Presidente.
- De que maneira?
- É uma das tarefas do Presidente encorajar o encontro das partes adversárias e trabalhar por um compromisso. Se Amadiro deseja me encontrar, o Presidente não pode, por definição, desencorajar e muito menos proibir. Deve manter o encontro, e se Amadiro conseguir bastantes provas contra o senhor, e é fácil consegui-las contra um terráqueo, isso porá fim à investigação.
- Talvez, Dr. Fastolfe, o senhor não devesse chamar um terráqueo para ajudar, considerando o quanto somos vulneráveis.
- Talvez não, Sr. Baley, mas não tive mais em que pensar. E ainda não tenho. Assim, me vejo forçado a deixar aos seus cuidados convencer o Presidente do nosso ponto de vista... se puder.
- A responsabilidade é minha? - perguntou Baley, carrancudo,
- Inteiramente sua - retrucou Fastolfe, em voz suave.
- Nós quatro seremos os únicos presentes? - perguntou Baley.
- Na verdade, nós três: o Presidente, Amadiro e eu - respondeu Fastolfe. - Ele e eu somos o principal e o agente comprometido, por assim dizer. O senhor estará lá como a quarta parte, Sr. Baley, apenas como tolerância. O Presidente pode mandá-lo retirarse à vontade e por isso espero que nada faça para aborrecê-lo.
- Vou me esforçar, Dr. Fastolfe.
- Por exemplo, Sr. Baley, não lhe estenda a mão... se me perdoa a indelicadeza.
Baley sentiu-se encabular retroativamente por causa do gesto que fizera antes.
- Não estenderei.
- E seja impecavelmente educado. Não faça acusações iradas. Não insista em declarações sem apoio...
- Quer dizer, não tentar obrigar alguém a se trair. Amadiro, por exemplo.
- Sim, não faça isso. Estará injuriando e poderá ser contraproducente. Portanto, seja educado! Se a polidez mascarar um ataque, não discutiremos por causa disso.
E não fale, a menos que seja convidado.
- Como é, Dr. Fastolfe, que está agora tão cheio de advertências e no entanto nunca me avisou sobre o perigo das calúnias? - perguntou Baley.
- A culpa é de fato minha - disse o Dr. Fastolfe. - Era tão óbvio para mim, que nunca me ocorreu explicar-lhe.
- Sim, foi o que pensei - resmungou Baley. Fastolfe ergueu subitamente a cabeça.
- Estou ouvindo um aerocarro. Mais ainda, posso ouvir passos de um dos meus serviçais andando para a entrada. Suponho que o Presidente e Amadiro chegaram.
- Juntos? - perguntou Baley.
- Sem dúvida. Veja, Amadiro sugeriu minha casa como o local de encontro, dando-me dessa forma a vantagem do foro. Ele poderia, assim, sem precisar demonstrar polidez, procurar o Presidente e trazê-lo aqui. Afinal de contas, ambos teriam de vir. com isso, teria alguns minutos para conversar em particular com o Presidente e expor e defender seu ponto de vista.
- Mas isso não é justo - disse Baley. - O senhor podia ter impedido?
- Eu não faria isso. Amadiro arriscou-se calculadamente. Ele poderia dizer alguma coisa que irritasse o Presidente.
- O Presidente é de natureza particularmente irritável?
- Não. Não mais que qualquer Presidente no quinto decênio de função. Contudo, a necessidade de observância estrita do protocolo, a conseqüente necessidade de nunca tomar atalhos e a realidade do poder arbitrário, tudo se combina para constituir uma certa irritabilidade inevitável. E Amadiro nem sempre é sensato. Seu sorriso jovial, seus grandes dentes alvos, sua bonomia exuberante podem ser extremamente irritantes, quando aplicados sobre alguém que não esteja de bom humor por algum motivo... Mas preciso ir recebê-los, Sr. Baley, e acrescentar o que espero seja uma quantidade substancial de charme. Por favor, fique aqui, sem sair dessa cadeira.
Baley agora nada mais podia fazer além de esperar. Pensou, de maneira irrelevante, que estava em Aurora havia pouco menos de cinqüenta horas convencionais.
Ainda o Presidente
O Presidente era baixo, surpreendentemente baixo. Amadiro era quase trinta centímetros mais alto.
Contudo, uma vez que grande parte da sua pequenez era da cintura para baixo, o Presidente, quando sentado, não era menor em altura que os outros. De fato, era corpulento, com peito e ombros fortes, parecendo bastante poderoso nessas condições.
Sua cabeça também era grande, mas o rosto era enrugado e marcado pela idade. Porém as rugas nào eram do tipo resultante do riso. Estavam impressas nas faces e testa, sentia-se, pelo exercício do poder. Tinha o cabelo branco e ralo e era calvo no alto da cabeça.
A voz combinava com ele: grave e firme. A idade lhe tinha dado um pouco do timbre, talvez, e emprestou-lhe um pouco da dureza, mas num Presidente (pensou Baley), isso ajudava em vez de piorar.
Fastolfe dedicou-se ao completo ritual de cumprimentos, com comentários sem sentido e oferecimento de alimentos e bebidas. Durante esse tempo todo, nenhuma referência ao estranho e nem repararam nele.
Só quando as preliminares terminaram e todos sentaram, Baley (um pouco mais afastado do centro que os outros) foi apresentado.
- Sr. Presidente - disse, sem estender a mão. E depois, com um gesto repentino de cabeça, acrescentou: - E, claro, já conheço o Dr. Amadiro.
O sorriso de Amadiro não se modificou ao toque de insolência na voz de Baley.
O Presidente, que retribuiu o cumprimento de Baley, colocou as mãos sobre os joelhos, com os dedos abertos, e disse:
- Vamos começar e ver se podemos ser tão breves e produtivos quanto possível.
- Quero salientar que desejo passar sobre o mau comportamento, ou possível mau comportamento, de um terráqueo e tratar imediatamente do cerne do problema. Nem, ao tratar disso, estamos falando desse assunto tão discutido do robô. Interromper a atividade de um robô é matéria para tribunais civis, pode resultar em julgamento da violação de direitos de propriedade e de aplicar uma pena em dinheiro e nada mais. Além disso, se ficar provado que o Dr. Fastolfe tornou o robô, Jander Panell, inoperante, será um robô que ele, afinal de contas, ajudou a planejar, cuja confecção supervisionou e do qual era dono na época em que a coisa aconteceu. Não há pena a aplicar, uma vez que uma pessoa pode fazer o que quiser com o que lhe pertence.
"O que está realmente em causa é a exploração e colonização da Galáxia: se nós, auroreanos, agiremos sozinhos, se em colaboração com os outros mundos Espaciais ou se deixaremos essa tarefa à Terra. O Dr. Amadiro e os Globalistas acham que Aurora deve arcar com o peso sozinho, o Dr. Fastolfe deseja deixar o encargo à Terra.”
- Se pudermos resolver este assunto, o caso do robô pode ser deixado aos cuidados dos tribunais civis, o problema do comportamento do terráqueo provavelmente se tornará discutível e simplesmente poderemos nos livrar dele.
"Portanto, Vou começar por perguntar se o Dr. Amadiro está em condições de aceitar a posição do Dr. Fastolfe, para chegarmos a uma decisão única, ou se o Dr. Fastolfe aceita a posição do Dr. Amadiro, com o mesmo objetivo.”
Calou-se e ficou esperando.
- Lamento, Sr. Presidente - disse Amadiro - mas devo insistir em que os terráqueos sejam confinados em seu planeta e que a Galáxia seja colonizada unicamente por auroreanos. Estou disposto a aceitar, porém, a extensão da permissão de colonização a outros mundos Espaciais, se isso evitar tensões desnecessárias entre nós.
- Compreendo - disse o Presidente. - Dr. Fastolfe, à vista desta declaração, deseja abandonar sua posição?
- O compromisso do Dr. Amadiro - replicou Fastolfe - carece de substância, Sr. Presidente. Estou disposto a oferecer um compromisso de importância maior. Por que os mundos da Galáxia não podem ser abertos igualmente aos Espaciais e aos terráqueos? A Galáxia é grande e tem lugar para todos. Estou disposto a concordar com esse arranjo.
- Sem dúvida, é um compromisso impossível - replicou Amadiro depressa. - A população de mais de oito bilhões da Terra é mais da metade de todos os mundos Espaciais.
Os habitantes da Terra têm vida curta e podem substituir suas perdas depressa. Não têm nossa consideração com a vida humana individual. Irão se espalhar nos novos mundos a qualquer custo, multiplicando-se como insetos, e ocuparão a Galáxia enquanto ainda estivermos mal começando. Oferecer à Terra uma oportunidade supostamente igual na Galáxia é dar-lhe a Galáxia... e isso não é igualdade. Os terráqueos devem ser confinados na Terra.
- E o que tem a dizer a isso, Dr. Fastolfe? - perguntou o Presidente.
Fastolfe suspirou.
- Meus pontos de vista estão registrados. Tenho certeza de que não preciso repeti-los. O Dr. Amadiro planeja usar robôs humaniformes para construir os mundos colonizados que os humanos auroreanos receberão já prontos, mas ainda não tem robôs humaniformes. Não pode construí-los e o projeto não funcionará, mesmo que tivesse. Não é possível um acordo, a menos que o Dr. Amadiro aceite o princípio de que os terráqueos possam pelo menos participar da tarefa de colonização dos novos mundos.
- Então nenhum acordo é possível - disse Amadiro. O Presidente ficou aborrecido.
- Acho que um dos dois deve concordar. Não pretendo que Aurora seja rachado por uma orgia emocional, num problema dessa importância.
Olhou francamente para Amadiro, sem demonstrar na expressão favor ou desfavor.
- O senhor pretende usar a inação do robô Jander como argumento contra o ponto de vista de Fastolfe, não?
- Sim - respondeu Amadiro.
- Um argumento puramente emocional. Está afirmando que Fastolfe tenta destruir seu ponto de vista fazendo falsamente robôs humaniformes parecerem menos úteis que efetivamente são.
- É exatamente isso o que ele está tentando fazer...
- É uma calúnia! - atalhou Fastolfe em voz baixa.
- Não, se eu puder provar, o que posso - retrucou Amadiro.
- O argumento pode ser emocional, mas será eficiente. Está percebendo, Sr. Presidente? Meu ponto de vista sairá certamente vencedor, porém entregue a si mesmo, ficará confuso. Sugiro que o senhor persuada o Dr. Fastolfe a aceitar a derrota inevitável e poupe Aurora da enorme tristeza do espetáculo que enfraquecerá nossa posição entre os mundos Espaciais e abalará nossa confiança em nós mesmos.
- Como pode provar que o Dr. Fastolfe tornou o robô inoperante?
- Ele mesmo confessa que é o único humano a poder fazê-lo. O senhor sabe disso.
- Sei - replicou o Presidente - mas queria ouvi-lo dizer isso, não para seu eleitorado nem para o público, mas para mim... em particular. E o senhor disse.
Virou-se para Fastolfe:
- Que tem a dizer, Dr. Fastolfe? É o único capaz de ter destruído o robô?
- Sem deixar sinais materiais? Sou, até onde posso saber. Não creio que o Dr. Amadiro tenha a capacidade em robótica para fazêlo e fico constantemente espantado pelo fato de que, após ter fundado o Instituto de Robótica, continue tão ansioso em proclamar sua própria incapacidade, mesmo com o apoio de todos os seus associados... e confessá-lo tão publicamente.
Dirigiu um sorriso a Amadiro, não inteiramente sem malícia. O Presidente suspirou.
- Não, Dr. Fastolfe, nada de truques retóricos agora. Vamos dispensar a ironia e golpes espertos. Qual é sua defesa?
- Ora, só que eu não causei dano a Jander. Não disse que alguém tenha feito. Foi uma chance: o princípio da incerteza agindo no campo da positrônica. Pode acontecer com freqüência. Que o Dr. Amadiro confesse que foi apenas chance, que ninguém pode ser acusado sem provas e poderemos então discutir as propostas de colonização por seus próprios méritos.
- Não - disse Amadiro - a possibilidade de destruição acidental é muito pequena para ser levada em conta, muito menor que a chance do Dr. Fastolfe ser responsável e ainda menor de ignorar que a culpa do Dr. Fastolfe é a de um irresponsável. Não recuarei e ganharei. Sr. Presidente, o senhor sabe que vencerei e parece-me que o único passo racional a ser dado é forçar o Dr. Fastolfe a aceitar sua derrota, no interesse da unidade do globo.
Fastolfe retrucou rapidamente:
- E isto me reporta ao assunto da investigação que pedi ao Sr. Baley da Terra, para realizar.
E Amadiro, com a mesma rapidez, interpôs:
- Uma proposta a que me opus, quando foi sugerida pela primeira vez. O terráqueo pode ser um investigador inteligente, mas não está familiarizado com Aurora e nada pode conseguir aqui. Nada, quero dizer, exceto espalhar calúnias e expor Aurora aos outros mundos Espaciais sob uma luz ridícula e indigna. Foram levados espetáculos satíricos a respeito em meia dúzia de novos programas de hiperonda Espaciais, em outros tantos mundos diferentes. Foram enviadas ao seu escritório as gravações.
- Foram submetidas à minha atenção - afirmou o Presidente.
- E houve falatório aqui em Aurora - prosseguiu Amadiro. - Seria do meu interesse pessoal que a investigação continuasse. Ela está custando a Fastolfe apoio na população e votos entre os legisladores. Quanto mais tempo continue, mais certo fico da vitória, mas está causando dano a Aurora e não desejo ter mais certeza à custa de danos ao meu mundo. Sugiro respeitosamente que o senhor ponha um fim à investigação, Sr. Presidente, e persuada o Dr. Fastolfe que se submeta voluntariamente agora ao que finalmente terá de aceitar... a um custo muito maior.
- Concordo em que ter permitido ao Dr. Fastolfe mandar fazer essa investigação pode ter sido uma imprudência - falou o Presidente. - Eu disse "pode". Confesso que fiquei tentado a terminá-la. E contudo o terráqueo... - não deu sinal de saber que Baley estava na sala - já está aqui há algum tempo...
Calou-se, como que para dar a Fastolfe a oportunidade de confirmar, o que ele fez, dizendo:
- Este é o seu terceiro dia de investigação, Sr. Presidente.
- Nesse caso - falou o Presidente - antes que eu determine o fim dessa investigação, creio que seria justo perguntar se houve alguma descoberta importante até agora.
Calou-se novamente. Fastolfe olhou rapidamente para Baley, fazendo um leve movimento de cabeça. Em voz baixa, Baley disse:
- Sr. Presidente, não desejo fazer comentários sem ser perguntado. Estou sendo perguntado?
O Presidente franziu a testa. Sem olhar para Baley, respondeu:
- Estou pedindo ao Sr. Baley da Terra para nos dizer se tem descobertas importantes.
Baley respirou fundo. Tinha chegado ao ponto.
- Sr. Presidente - começou. - Ontem de tarde, interroguei o Sr. Amadiro, que foi muito cooperativo e útil. Quando meu pessoal e eu saímos...
- Seu pessoal? - perguntou o Presidente.
- Eu estive acompanhado por dois robôs em todas as fases da minha investigação, Sr. Presidente - informou Baley.
- Robôs que pertencem ao Dr. Fastolfe? - perguntou Amadiro. - Estou perguntando para efeito de registro.
- São para efeito de registro - disse Baley. - Um é Daneel Olivaw, robô humaniforme, e o outro é Giskard Reventlov, robô mais antigo, não humaniforme.
- Obrigado - falou o Presidente. - Continue.
- Quando deixamos o terreno do Instituto, descobrimos que o nosso aerocarro tinha sido danificado.
- Danificado? - perguntou o Presidente, espantado. - Por quem?
- Não sabemos, mas foi no recinto do Instituto. Estávamos lá a convite, sendo portanto do conhecimento do pessoal do Instituto. Além disso, ninguém poderia provavelmente estar lá sem o convite e conhecimento dos membros do Instituto. Caso contrário, seria necessário concluir que o dano só poderia ter sido feito por alguém do pessoal do Instituto e isso, em qualquer circunstância, seria impossível... a menos que sob a direção do Dr. Amadiro, o que também seria impensável.
- O senhor parece pensar muito sobre o impensável - disse Amadiro. - O aerocarro foi examinado por algum técnico especializado para ver se foi de fato danificado?
Não poderia ter sido um defeito natural? - perguntou Amadiro.
- Não, senhor - respondeu Baley - mas Giskard, que está qualificado para dirigir um aerocarro e que freqüentemente dirigiu aquele, afirma que foi danificado.
- E ele é um dos robôs do Dr. Fastolfe, programado por ele e recebe diariamente ordens dele - disse Amadiro.
- Está sugerindo... - começou Fastolfe.
- Nada estou sugerindo. - Amadiro ergueu a mão, num gesto cordato. - Estou simplesmente fazendo uma declaração... para registro.
O Presidente mexeu-se.
- O Sr. Baley da Terra quer continuar, por favor? Baley disse:
- Quando o aerocarro quebrou, havia outros em perseguição.
- Outros? - perguntou o Presidente.
- Outros robôs. Chegaram e, nessa altura, meus robôs tinham se afastado.
- Um momento - disse Amadiro. - Nesse momento, em que condições o senhor estava, Sr. Baley?
- Eu não estava muito bem.
- Não muito bem? O senhor é terráqueo e desacostumado à vida fora das instalações artificiais de suas Cidades. Sente-se receoso em campo aberto. Não é, Sr. Baley?
- perguntou Amadiro.
- É, senhor.
- E ocorria uma violenta tempestade na noite passada, como tenho certeza de que o Presidente lembra. Não seria mais apropriado dizer que o senhor estava completamente enfermo? Meio inconsciente ou talvez pior?
- Eu estava completamente enfermo - confirmou Baley, relutante.
- Então por que seus robôs se afastaram? - perguntou o Presidente asperamente. - Não deviam permanecer ao seu lado nessa emergência?
- Ordenei-lhes que fossem, Sr. Presidente.
- Por quê?
- Achei melhor - disse Baley - e explicarei... se me for permitido prosseguir.
- Continue.
- Estávamos realmente sendo perseguidos, pois os robôs perseguidores chegaram logo depois que os meus se foram. Perguntaram pelos meus robôs e respondi que os mandara embora. Isso foi depois de terem perguntado se eu estava doente. Respondi que não e eles se retiraram para continuar a busca aos meus robôs.
- À procura de Daneel e Giskard? - perguntou o Presidente.
- Sim, senhor Presidente. Ficou claro para mim que cumpriam ordens estritas de encontrar os robôs.
- Claro de que maneira?
- Embora eu estivesse evidentemente doente, eles perguntaram pelos robôs, antes de se interessarem por mim. Então, a seguir, me abandonaram doente para procurar
meus robôs. Devem ter recebido ordens tremendamente intensas para encontrar os robôs, ou não lhes teria sido possível não dar atenção a um ser humano claramente
enfermo. Na verdade, previ essa procura e foi por isso que mandei meus robôs embora. Senti que era muito importante mantê-los fora de mãos não autorizadas.
Amadiro disse:
- Sr. Presidente, posso continuar a interrogar o Sr. Baley a esse respeito, para mostrar a inutilidade dessa afirmativa?
- Pode.
- Sr. Baley - perguntou Amadiro. - O senhor ficou só, depois que seus robôs se foram, não ficou?
- Sim, senhor.
- Portanto, não tem registro dos acontecimentos? O senhor não está equipado para gravá-los? Tem algum aparelho de gravar?
- Nenhum, senhor.
- E estava doente?
- Sim, senhor.
- Perturbado? Possivelmente muito enfermo para lembrar claramente?
- Não, senhor. Lembro perfeitamente.
- É o que o senhor pensa, suponho, mas poderia ter estado delirante e alucinado. Nessas condições, parece claro que o que os robôs disseram ou mesmo se os robôs apareceram é muito duvidoso.
Foi a vez do Presidente, pensativo:
- Concordo. Sr. Baley da Terra, considerando que o senhor lembra, ou afirma lembrar, é exato, qual sua interpretação dos acontecimentos que está descrevendo?
- Hesito em lhe transmitir meus pensamentos a respeito, Sr. Presidente - disse Baley - com receio de caluniar o ilustre Dr. Amadiro.
- Uma vez que o senhor fala a meu pedido e seus comentários ficarão limitados a esta sala - o Presidente olhou em volta, os nichos das paredes estavam vazios – não haverá calúnia, a menos que eu ache que o senhor está falando com maldade.
- Nesse caso, Sr. Presidente - disse Baley - pensei que o Dr. Amadiro poderia ter-me detido no seu escritório para discutir assuntos comigo por mais tempo que o necessário, para dar tempo à tarefa de estragar meu motor e depois continuar me detendo para que eu saísse após o início do temporal, para provocar minha enfermidade em trânsito. Ele estudou as condições sociais da Terra, como me disse várias vezes, podendo assim saber que reação eu teria à tempestade.
Parece-me ter sido plano dele enviar seus robôs atrás de nós, e quando chegassem ao nosso aerocarro estragado, fazê-los nos levar de volta ao Instituto, presumivelmente para que tratassem minha doença, mas na realidade para pegar os robôs do Dr. Fastolfe. Amadiro riu suavemente.
- Que motivo teria eu para tudo isso? Está vendo, Sr. Presidente, que se trata de suposição sobre suposição, que seriam consideradas calúnias em qualquer tribunal de Aurora.
O Presidente perguntou, com severidade:
- O Sr. Baley da Terra tem alguma coisa para apoiar essas hipóteses?
- Uma forma de raciocínio, Sr. Presidente.
O Presidente levantou-se, perdendo imediatamente um pouco da sua imponência, pois pareceu pouco maior que quando sentado.
- Vou dar uma volta, para refletir sobre o que ouvi até agora. Retornarei já.
Saiu na direção do Pessoal.
Fastolfe inclinou-se para Baley, que fez o mesmo na direção dele.
(Amadiro olhou, despreocupado, como se não se referisse a ele o que os dois conversavam) Fastolfe sussurrou:
- Tem alguma coisa melhor a dizer?
- Acho que sim - respondeu Baley - se tiver a oportunidade adequada, mas o Presidente não parece estar simpatizando.
- Não está. Até agora, o senhor apenas tornou as coisas piores e não ficarei surpreso se quando voltar ele suspender este interrogatório.
Baley sacudiu a cabeça e olhou para baixo.
Baley ainda estava olhando para o chão quando o Presidente voltou, tornou a sentar-se, fixou um olhar duro e um tanto mau no terráqueo, dizendo:
- Sr. Baley da Terra?
- Sim, Sr. Presidente.
- Acho que o senhor está desperdiçando meu tempo, mas isso não quer dizer que não dê a cada lado o tempo necessário, mesmo quando me parecer estar perdendo tempo.
Pode me dar um motivo que conte para o Dr. Amadiro agir da forma desvairada de que é acusado pelo senhor?
- Sr. Presidente - disse Baley, num tom próximo ao desespero - há realmente um motivo: um motivo muito bom. Baseia-se no fato de que o plano do Dr. Amadiro para colonizar a Galáxia fracassará se ele e seu Instituto não conseguirem fabricar robôs humaniformes. Até agora não desenhou nenhum nem pôde produzir nenhum. Pergunte-lhe se concorda em que uma comissão legislativa examine seu Instituto à procura de indícios de que robôs humaniformes estão sendo produzidos ou desenhados com sucesso.
Se ele concordar em afirmar que tais humaniformes estão nas linhas de montagem ou mesmo nas pranchetas de desenho, até mesmo em formulações teóricas adequadas, e se consentir em demonstrar o fato a uma comissão qualificada, nada mais direi e confessarei que minha investigação nada conseguiu.
Prendeu a respiração.
O Presidente virou-se para Amadiro, cujo sorriso murchou.
- Confesso que neste momento não temos robôs humaniformes em vista - confessou Amadiro.
- Então continuarei - disse Baley, retomando a respiração, interrompida de uma forma muito parecida com um suspiro. - O Dr. Amadiro pode, claro, achar todas as informações de que necessita para seu projeto se virar-se para o Dr. Fastolfe, que tem a informação na cabeça, mas o Dr. Fastolfe não deseja cooperar.
- Não, não desejo - murmurou Fastolfe - em nenhuma condição.
- Mas, Sr. Presidente - prosseguiu Baley - o Dr. Fastolfe não é o único possuidor do segredo do desenho e da construção de robôs humaniformes.
- Não? - perguntou o Presidente. - Quem mais sabe? O próprio Dr. Fastolfe parece espantado com sua afirmação, Sr. Baley.
(Pela primeira vez, não acrescentou "da Terra")
- Estou de fato espantado - disse Fastolfe. - Que eu saiba, certamente sou o único. Não entendo o que o Sr. Baley quer dizer.
Amadiro comentou, com um leve erguer de lábio:
- Desconfio de que o Sr. Baley também não sabe.
Baley viu-se cercado. Olhou para todos e sentiu que nenhum deles - um sequer - estava do seu lado.
- Não é verdade - perguntou - que qualquer robô humaniforme saberia? Talvez não conscientemente, não de forma a ser capaz de dar indicações a respeito... mas a informação certamente deve estar dentro dele, não? Se um robô humaniforme for devidamente interrogado, suas respostas e reações revelarão seu desenho e construção. Finalmente, com bastante tempo e perguntas adequadamente feitas, um robô humaniforme forneceria informações que tornariam possível desenhar outros robôs humaniformes... Em suma, máquina alguma pode conservar o desenho secreto, se estiver disponível para um exame suficientemente persistente.
Fastolfe pareceu abalado.
- Compreendo o que quer dizer, Sr. Baley, e tem razão. Nunca pensei nisso.
- com todo o respeito, Dr. Fastolfe - falou Baley - preciso dizer-lhe que, como todos os auroreanos, o senhor tem um orgulho peculiarmente individualista. O senhor está inteiramente satisfeito em ser o melhor roboticista, o único capaz de construir humaniformes... e por isso fica cego ao evidente.
O Presidente esboçou um sorriso de alívio.
- Ele o pegou, Dr. Fastolfe. Sempre imaginei por que o senhor era tão ansioso em sustentar ser o único com conhecimento para destruir Jander, quando isso só enfraquecia sua situação política. Agora vejo claramente que o senhor prefere perder sua posição política à sua condição de único.
Fastolfe ficou visivelmente irritado. Quanto a Amadiro, franziu a testa e disse:
- Isso tem alguma coisa a ver com o assunto em discussão?
- Sim, tem - retrucou Baley, adquirindo confiança. - O senhor não pode arranjar nenhuma informação diretamente do Dr. Fastolfe. Seus robôs não podem ser instruídos a causar-lhe dano, torturá-lo para que revele seus segredos, por exemplo. O senhor não pode fazê-lo diretamente por causa da proteção do pessoal do Dr. Fastolfe.
Contudo, o senhor pode isolar um robô e seqüestrá-lo por outros robôs no momento em que o ser humano presente estava doente demais para agir evitando. Todos os acontecimentos de ontem à tarde foram parte de um plano rapidamente improvisado para pôr as mãos em Daneel. O senhor percebeu sua oportunidade assim que eu insisti em vê-lo no Instituto. Se eu não tivesse afastado meus robôs, se eu não estivesse bastante bem para insistir em que estava bem e mandasse seus robôs em outra direção, o senhor o teria pegado. E finalmente teria obtido o segredo dos robôs humaniformes analisando longamente o comportamento e reações de Daneel.
- Protesto, Sr. Presidente - disse Amadiro. - Nunca vi uma calúnia dita com tanta maldade. Tudo isso é baseado em fantasias de um homem doente. Não sabemos, e talvez jamais saibamos, se o aerocarro foi mesmo danificado, e se foi, por quem, se os robôs realmente perseguiram o carro e falaram mesmo com o Sr. Baley ou não. Está apenas acumulando conclusões, todas baseadas em testemunhos duvidosos referentes a acontecimentos dos quais foi a única testemunha... e quando estava meio louco de medo e possivelmente sofrendo alucinações. Nada disso poderia ser sustentado um só momento num tribunal.
- Isto não é um tribunal, Dr. Amadiro - respondeu o Presidente - e é minha obrigação ouvir tudo que possa estar ligado a um caso em discussão.
- Isto não tem ligação, Sr. Presidente. É uma teia.
- Mas de certa maneira cai bem. Não peguei o Sr. Baley numa falta de lógica irrefutável. Se admitimos o que ele afirma ter experimentado, suas conclusões têm sentido.
Nega isso, Dr. Amadiro? O estrago do aerocarro, a perseguição, a intenção de apropriação de um robô humaniforme?
- Nego! Totalmente! Nada disso é verdade! - replicou Amadiro. Era esperado, visto que sorrira. - O terráqueo pode apresentar uma gravação de toda a nossa conversa e sem dúvida poderá apontar que eu o estava atrasando falando muito, convidando-o a visitar o Instituto, a jantar... mas tudo isso pode também ser interpretado como um esforço para ser cortês e hospitaleiro. Fui enganado por uma certa simpatia que tenho por terráqueos, talvez, e é só isso. Nego suas conclusões e nada do que ele disse se mantém contra minha negativa. Minha reputação não é das que uma simples especulação pode persuadir alguém de que sou a espécie de conspirador desonesto que este terráqueo diz que eu sou.
O Presidente coçou o queixo, pensativo, e disse:
- Certamente, não pretendo acusá-lo baseado no que o terráqueo
disse até agora... Sr. Baley, se é tudo o que tem, é interessante, mas insuficiente. O senhor tem mais alguma coisa substancial a dizer? Se não, aviso-o de que já gastei todo o tempo de que dispunha.
Baley disse:
- Só há mais uma coisa que eu desejo discutir, Sr. Presidente. O senhor talvez já tenha ouvido falar em Gladia Delmarre... ou Gladia Solaria. Ela chama a si própria simplesmente Gladia.
- Sim, Sr. Baley - replicou o Presidente, com uma ponta de irritação na voz. - Já ouvi. Vi o espetáculo de hiperonda onde o senhor e ela desempenham papéis notáveis.
- Ela esteve ligada ao robô Jander durante meses. Na realidade, no fim ele foi marido dela.
O olhar desagradável dirigido a Baley pelo Presidente tornou-se duro.
- Seu o quê?
- Marido, Sr. Presidente.
Fastolfe, que começara a levantar-se, tornou a sentar, evidentemente perturbado.
O Presidente disse, asperamente:
- Isso é ilegal. Pior, é ridículo. Um robô não poderia engravidá-la. Não teriam filhos. A situação de marido ou de mulher nunca é assegurada sem a declaração da vontade de ter filhos, se for permitido. Mesmo um terráqueo, creio, deve saber disso.
- Tenho conhecimento disso, Sr. Presidente - replicou Baley. - E também Gladia, tenho certeza. Ela não usou a palavra "marido" no seu sentido legal, mas no emocional.
Ela considerava Jander o equivalente a marido. Ela sentia-se em relação a ele como se fosse.
O Presidente virou-se para Fastolfe.
- O senhor sabia disso, Dr. Fastolfe? Ele pertencia à sua criadagem.
Fastolfe, evidentemente embaraçado, disse:
- Eu sabia que ela gostava dele. Desconfiava que Gladia o usava sexualmente. Eu nada sabia dessa charada ilegal, até o Sr. Baley me contar.
- Ela é solariana - interpôs Baley. - Seu conceito de "marido" não é auroreano.
- Evidentemente, não - disse o Presidente.
- Porém Gladia tinha bastante senso de realidade para manter o caso em segredo, Sr. Presidente. Ela nunca falou sobre essa charada, como o Dr. Fastolfe a chama, a qualquer auroreano. Contoume anteontem porque desejava me apressar na investigação de uma coisa que significava muito para ela. Contudo, mesmo assim, imagino que não teria usado a palavra se não soubesse que eu sou terráqueo e a tomaria no sentido dado por ela... e não no auroreano.
- Muito bem - retrucou o Presidente. - Vou conceder-lhe um mínimo de bom senso... para uma solariana. Era esse o assunto que o senhor queria expor?
- Sim, Sr. Presidente.
- Nesse caso, é totalmente irrelevante e não pode ser incluído em nossas deliberações.
- Sr. Presidente, ainda há uma pergunta que preciso fazer. Uma única. Uma dúzia de palavras e depois encerrarei.
Disse isso o mais sinceramente que pôde, pois tudo iria depender disso.
O Presidente hesitou.
- Concordo. Uma única pergunta.
- Sim, Sr. Presidente. - Baley gostaria de berrar as palavras, mas conteve-se. Nem mesmo ergueu a voz, ou apontou o dedo. Tudo dependia daquilo. Tudo levava àquilo, mas lembrou a advertência de Fastolfe e falou quase casualmente. - Como o Dr. Amadiro sabia que Jander era marido de Gladia?
- Como? - As sobrancelhas brancas e grossas do Presidente ergueram-se, surpresas. - Quem disse que ele sabia alguma coisa?
Em virtude da pergunta direta, Baley pôde continuar.
- Pergunte-lhe, Sr. Presidente.
E fez um gesto na direção de Amadiro, que tinha ficado em pé e olhava para Baley com evidente pavor.
Baley tornou a dizer, com voz muito calma, para não desviar a atenção de Amadiro:
- Pergunte-lhe, Sr. Presidente. Ele parece preocupado. O Presidente falou:
- Como é isso, Dr. Amadiro? O senhor sabia alguma coisa a respeito do robô ser supostamente marido da solariana?
Amadiro gaguejou, comprimiu os lábios durante um momento e tornou a tentar. A palidez do rosto tinha desaparecido e sido substituída por um vermelho doentio. Respondeu:
- Fui apanhado de surpresa por essa absurda acusação, Sr. Presidente. Não sei absolutamente nada a respeito.
- Posso explicar, Sr. Presidente? Concisamente? - perguntou Baley.
(Iria ser impedido?)
- É melhor que o faça - respondeu o Presidente, com ar zangado. - Se tem alguma explicação, eu certamente gostarei de ouvi-la.
- Sr. Presidente - começou Baley - tive ontem à tarde uma conversa com o Dr. Amadiro. Como ele tinha a intenção de me reter até que a tempestade se desencadeasse, falou mais extensamente do que pretendia e, claro, com menos cuidado. Ao se referir a Gladia, citou casualmente o robô Jander como marido dela. Estou curioso para saber como ele soube disso.
- É verdade, Dr. Amadiro? - perguntou o Presidente. Amadiro ainda estava em pé, quase aparentando um prisioneiro diante do juiz. Respondeu:
- Se é verdade ou não, nada tem a ver com o assunto em discussão.
- Talvez não - replicou o Presidente - mas estou espantado com sua reação à pergunta. Estou achando que há um significado nisso tudo, que o Sr. Baley e o senhor compreendem, porém eu não. Em conseqüência, também quero compreender. Tinha ou não conhecimento daquela relação impossível entre Jander e a solariana?
Amadiro respondeu, com voz sufocada:
- Não poderia possivelmente ter.
- Isso não é resposta - disse o Presidente. - Isso é um subterfúgio. O senhor está fazendo um julgamento, quando estou lhe pedindo que me informe. Fez ou não a afirmação que lhe foi atribuída?
- Antes que ele responda - interveio Baley, mais à vontade agora que o Presidente estava guiado por um insulto moral - é justo que eu lembre ao Dr. Amadiro que Giskard, o robô presente ao encontro, pode, se interrogado, repetir a conversa toda, palavra por palavra, usando a voz e entonação de ambas as partes. Em suma, a conversa foi gravada.
Amadiro explodiu numa espécie de fúria.
- Sr. Presidente, o robô Giskard foi desenhado, construído e programado pelo Dr. Fastolfe, que se diz ser o melhor roboticista existente e que se opõe violentamente a mim. Podemos confiar numa gravação feita por ele?
- Talvez o senhor queira ouvir a gravação e chegar a uma decisão, Sr. Presidente - sugeriu Baley.
- Talvez - disse o Presidente. - Não estou aqui, Dr. Amadiro, para que sejam tomadas decisões por mim. Mas deixemos isso de lado por um momento. A despeito do que a gravação diz, Dr. Amadiro, o senhor deseja declarar, para efeito de registro, que não sabia que a solariana considerava o robô como marido e que o senhor nunca se referiu a ele como seu marido? Por favor, lembre (ambos, como legisladores, devem) que, embora não haja um robô aqui, toda a conversa está sendo gravada no meu próprio aparelho. - Bateu numa pequena protuberância no bolso do peito. - Claramente, portanto, Dr. Amadiro. Sim ou não.
Amadiro replicou com uma ponta de desespero na voz:
- Sr. Presidente, honestamente não posso lembrar o que disse numa conversa casual. Se mencionei a palavra, e não admito tê-lo feito, deve ter sido o resultado de outra conversa casual em que alguém citou o fato de Gladia ter agido em relação ao robô como se ele fosse seu marido.
- E com quem o senhor teve essa outra conversa casual? - perguntou o Presidente. - Quem lhe fez essa declaração?
- No momento, não posso dizer. Baley interveio:
- Sr. Presidente, se o Dr. Amadiro quiser ter a bondade de citar os que podem ter usado a palavra em conversa com ele, poderíamos interrogá-los e descobrir quem fez o comentário.
- Espero, Sr. Presidente - disse o Dr. Amadiro - que o senhor considere as conseqüências na moral do Instituto, se isso for feito.
O Presidente retrucou:
- Também espero que o senhor considere o mesmo, Dr. Amadiro, e dê uma resposta melhor à nossa pergunta, para que não sejamos forçados a extremos.
- Um momento, Sr. Presidente - disse Baley, o mais modestamente possível - ainda resta uma pergunta.
- Ainda? Outra? - O Presidente olhou para Baley, sem simpatia. - Qual?
- Por que o Dr. Amadiro se esforça tanto para evitar confessar que sabia da relação de Jander com Gladia? Ele diz que é irrelevante. Nesse caso, por que não dizer que sabia da relação e acabar com isto? Eu digo que é importante e que o Dr. Amadiro sabe que sua confissão pode ser usada para demonstrar atividade criminosa da parte dele.
Amadiro trovejou:
- A expressão me ofende e exijo desculpas!
Fastolfe esboçou um sorriso e os lábios de Baley crisparam-se penosamente. Tinha forçado Amadiro além da conta.
O Presidente ruborizou-se de maneira quase alarmante e disse, com violência:
- O senhor exige? O senhor exige? A quem? Sou o Presidente. Ouço todas as opiniões antes de dar minha decisão sobre o melhor a fazer. Que o terráqueo diga o que pensa sobre sua maneira de agir. Se ele lhe estiver caluniando, será castigado, pode ficar certo, e eu usarei o mais amplo ponto de vista da lei de calúnia, o senhor também pode ter certeza. Mas o senhor, Amadiro, não me venha com exigências. Continue, terráqueo. Diga o que tem a dizer, mas tenha muito cuidado.
- Obrigado, Sr. Presidente - disse Baley. - Realmente há um auroreano a quem Gladia revelou o segredo de sua relação com Jander.
O Presidente interrompeu:
- Bem, quem foi? Não me venha com seus truques de hiperonda.
Baley retorquiu:
- Minha única intenção é fazer uma declaração franca, Sr. Presidente. O único auroreano é, claro, o próprio Jander. Embora robô, é nativo de Aurora e pode ser considerado auroreano. Gladia deve, certamente, em sua paixão, ter-se dirigido a ele como "meu marido". Uma vez que o Dr. Amadiro confessou que poderia possivelmente ter ouvido de alguém uma afirmação sobre a relação marital de Jander com Gladia, não é lógico supor que ouviu do próprio Jander? O Dr. Amadiro concordará agora mesmo em declarar, para efeito de registro, que nunca falou com Jander, no período em que este fez parte da criadagem de Gladia?
A boca de Amadiro abriu-se duas vezes para falar e nas duas não conseguiu emitir um som.
- Bem - perguntou o Presidente - o senhor conversou com
Jander nesse período, Dr. Amadiro? Não houve resposta. Baley acrescentou, com voz suave:
- Se conversou, é muito importante para o assunto em questão.
- Estou começando a ver que deve ser, Sr. Baley. Bem, Dr. Amadiro, mais uma vez: sim ou não.
Então Amadiro explodiu:
- Que prova este terráqueo tem contra mim neste caso? Ele tem a gravação de alguma conversa que tive com Jander? Tem testemunhas dispostas a afirmar me terem visto com Jander? Que tem além, afora meras declarações próprias?
O Presidente virou-se para Baley, que disse:
- Sr. Presidente, se nada tenho, então o Dr. Amadiro pode negar sem hesitar, para registro, qualquer contato com Jander... mas não o fará. No decorrer de minhas investigações, acontece que falei com a Dra. Vasilia Aliena, filha do Dr. Fastolfe. Falei também com um jovem auroreano chamado Santirix Gremionis. Nas gravações de ambas as entrevistas, ficou claro que a Dra. Vasilia encorajou Gremionis a fazer a corte a Gladia. O senhor pode interrogar a Dra. Vasilia sobre qual seu objetivo ao fazer isso e se tal gesto lhe foi sugerido pelo Dr. Amadiro. Também ficará claro que era hábito de Gremionis dar longos passeios com Gladia, coisa que ambos apreciavam, e nos quais não eram acompanhados pelo robô Jander. Poderá confirmar isso se quiser, senhor.
O Presidente replicou secamente:
- Talvez faça, mas se é só o que tem a dizer, que mostra isso?
- Declarei que sem o Dr. Fastolfe - disse Baley - o segredo do robô humaniforme só podia ser obtido de Daneel. Antes da morte de Jander, podia, com a mesma facilidade, ser tirado de Jander. Considerando que Daneel fazia parte da casa do Dr. Fastolfe e não podia ser facilmente apanhado, Jander pertencia à casa de Gladia, que não era tão sofisticada quanto a do Dr. Fastolfe na proteção dos seus robôs.
- Não seria possível que o Dr. Amadiro aproveitasse as ausências periódicas de Gladia, quando passeava com Gremionis, para conversar com Jander, talvez pelo aparelho tridimensional, para examinar suas reações, submetendo-o a diversos testes e depois apagar qualquer sinal de sua visita, de forma a que ele nunca pudesse informar Gladia? Pode ser que tenha chegado perto de descobrir o que queria... antes da tentativa findar quando Jander foi posto fora de ação. Sua atenção virou-se então para Daneel. Talvez tenha sentido que só precisava de uns poucos testes e observações e assim preparou a armadilha de ontem à tarde, como já disse em meu... testemunho. O Presidente falou, numa voz que era pouco mais que um sussurro:
- Agora está tudo combinando. Sou quase forçado a acreditar.
- Mais um derradeiro comentário e realmente nada mais terei a dizer - prosseguiu Baley. - Nos exames e testes que fez em Jander, é inteiramente possível que o Dr. Amadiro, acidentalmente, e sem nenhuma intenção, tenha imobilizado Jander e, assim, cometido o roboticídio.
Amadiro, enlouquecido, berrou:
- Não! Nunca! Nada do que fiz àquele robô poderia tê-lo imobilizado!
Fastolfe interveio:
- Concordo, Sr. Presidente, eu também penso que o Dr. Amadiro não imobilizou Jander. Contudo, Sr. Presidente, a declaração do Dr. Amadiro exatamente agora parece uma confissão implícita de que estava trabalhando em Jander... e assim a análise do Sr. Baley da situação é essencialmente acurada.
- Sou obrigado a concordar - disse o Presidente, balançando a cabeça. - ...Dr. Amadiro, o senhor pode insistir numa negativa formal disso tudo, o que me força a uma investigação extensa, que lhe poderá causar muito dano se tiver sucesso... e estou meio desconfiado a esta altura que possivelmente se virará contra o senhor.
Minha sugestão é que não force a situação: que não complique sua própria posição na Legislatura e, talvez, estrague a capacidade de Aurora continuar seu curso político tranqüilo.
- Como é do meu conhecimento, desde antes que o caso da imobilização de Jander viesse à tona, o Dr. Fastolfe tinha a maioria dos legisladores, não muito grande, sabe-se, do seu lado no assunto da colonização galáctica. O senhor mudou bastantes legisladores para o seu lado, forçando o assunto da suposta responsabilidade do Dr. Fastolfe na imobilização de Jander e assim obteve a maioria. Mas agora o Dr Fastolfe pode, se quiser, virar a mesa, acusando-o da imobilização e, mais ainda, de ter tentado fazer-lhe uma acusação falsa... e o senhor perderá.
"Se eu não interferir, pode ser que o senhor, Dr. Amadiro, e o senhor, Dr. Fastolfe, ajam teimosamente, ou até por vingança, reúnam suas forças e se acusem de toda a espécie de coisas. Nossas forças políticas e opinião pública, também, ficarão divididas, até mesmo esfaceladas, para nosso dano eterno.”
- Acredito que, neste caso, a vitória de Fastolfe, conquanto inevitável, será muito cara, e assim considero minha obrigação, como Presidente, mudar os votos para ele, para começar, e pressionar o senhor e seu grupo, Dr. Amadiro, para aceitar a vitória de Fastolfe da melhor maneira possível e fazê-lo imediatamente... para o bem de Aurora.
- Não estou interessado numa vitória esmagadora - afirmou Fastolfe. - Torno a propor, Sr. Presidente, um pacto no qual Aurora, ou outros mundos Espaciais e também a Terra tenham liberdade de colonização da Galáxia. Em troca, terei prazer em pertencer ao Instituto de Robótica, pondo à disposição dele meus conhecimentos sobre robôs humaniformes e, dessa maneira, facilitar o plano do Dr. Amadiro, que por sua vez se comprometerá solenemente a abandonar qualquer pensamento de vingança contra a Terra em qualquer época do futuro, constituindo isto parte de um tratado a ser assinado entre nós e a Terra.
O Presidente balançou a cabeça.
- Uma sugestão sábia, digna de um estadista. Conto com sua aceitação, Dr. Amadiro?
Amadiro então sentou-se. Seu rosto espelhava a derrota. Respondeu:
- Não quis poder pessoal nem o prazer da vitória. Quis o que achava o melhor para Aurora e estou convencido de que o plano do Dr. Fastolfe representa o fim de Aurora, mais dia, menos dia. Contudo, reconheço que estou de mãos amarradas devido ao trabalho deste terráqueo - atirou um olhar venenoso a Baley - e sou forçado a aceitar a sugestão do Dr. Fastolfe... porém Vou pedir licença para me dirigir à Legislatura a respeito e declarar, para fins de registro, meu temor das conseqüências.
- Nós permitiremos, claro - disse o Presidente. - E se seguir o meu conselho, Dr. Fastolfe, mande este terráqueo embora do nosso mundo o mais depressa possível.
Ele ganhou a batalha para o senhor, mas não ficará muito popular se os auroreanos tiverem bastante tempo para meditar a respeito, concluindo ser uma vitória da Terra contra Aurora.
- O senhor tem toda razão, Sr. Presidente, e o Sr. Baley partirá rapidamente... com meus agradecimentos e, confio, com os seus também.
- Bem - falou o Presidente, não de muito bom grado - uma vez que sua habilidade salvou-nos de uma desgastante batalha política, ele tem meus agradecimentos... Obrigado, Sr. Baley.
Novamente Baley
Baley ficou vendo a partida deles. Embora Amadiro e o Presidente tivessem chegado juntos, foram embora separadamente.
Fastolfe voltou após vê-los partir, sem procurar esconder seu enorme alívio.
- Venha, Sr. Baley - falou - almoçaremos juntos e depois, o mais cedo possível, o senhor retornará à Terra.
Sua criadagem robótica estava evidentemente em ação com essa finalidade.
Baley inclinou a cabeça e disse, ironicamente:
- O Presidente conseguiu me agradecer, mas parecia ter um espinho na garganta.
- O senhor não tem idéia de como foi homenageado - retrucou Fastolfe. - O Presidente raramente agradece a alguém, mas também ninguém jamais lhe agradece. Deixa-se sempre à história elogiar o Presidente e este vem servindo há mais de quarenta anos. Ele tornou-se irritado e mal-humorado, como os presidentes sempre ficam em seus decênios finais.
- Contudo, Sr. Baley, agradeço-lhe mais uma vez e, por meu intermédio, todo Aurora. O senhor viverá para ver terráqueos viajarem pelo espaço, mesmo em seu curto tempo de vida, e os ajudaremos com nossa tecnologia.
- Como o senhor conseguiu desatar esse nosso nó, Sr. Baley, em dois dias e meio, até menos, não posso imaginar. O senhor foi maravilhoso... Mas venha, precisamos nos lavar e descansar. Estou necessitando.
Pela primeira vez, desde a chegada do Presidente, Baley teve tempo para pensar em alguma coisa além de sua próxima frase.
Ele continuava sem saber o que lhe tinha acontecido três vezes - primeiro, no momento de dormir, depois, ao se aproximar a inconsciência, e finalmente no relaxamento pós-coito.
"Ele esteve lá primeiro!"
Continuava sendo insignificante, porém ele fez sua defesa ao Presidente e prosseguiu diante dele sem aquilo. Afinal teria então algum significado, se fizesse parte de um mecanismo que não se encaixava e não parecia necessário? Era um absurdo?
Ficou irritando um canto de sua mente e ele foi almoçar como um vitorioso sem a devida sensação de vitória. De certa forma, sentiu como se tivesse perdido o essencial.
Por uma coisa, teria o Presidente sido atacado em sua resolução? Amadiro tinha perdido a batalha, mas não parecia a espécie de pessoa que desistisse de tudo em nenhuma circunstância. Deu-lhe crédito e acreditou na sinceridade do que disse, que estava sendo guiado não por vangloria pessoal, mas por sua concepção de patriotismo auroreano.
Se fosse assim, ele não podia desistir.
Baley sentiu que era necessário instigar Fastolfe.
- Dr. Fastolfe - começou - não acho que esteja terminado. O Dr. Amadiro vai continuar sua luta para excluir a Terra.
Fastolfe balançou a cabeça, enquanto os pratos eram servidos.
- Sei que sim. Estou esperando por isso. Contudo, não temo enquanto o assunto da imobilização de Jander estiver em suspenso. Sem ele, tenho certeza de que sempre poderei dominá-lo na Legislatura. Não tema, Sr. Baley, a Terra prosseguirá. Nem precisa ter medo de ser ferido por um Amadiro vingativo. O senhor terá deixado este planeta, em sua viagem de volta para a Terra, antes do poente... e Daneel o acompanhará, claro. Mais ainda, o relatório que estamos enviando junto com o senhor lhe garantirá mais uma vez uma polpuda promoção.
- Estou ansioso para partir - retrucou Baley. - Mas espero ter tempo para me despedir. Eu gostaria de... de ver Gladia mais uma vez e também me despedir de Giskard, que possivelmente me salvou a vida ontem à noite.
- Sem dúvida, Sr. Baley. Mas, por favor, coma, sim?
Baley dedicou-se a comer, porém sem prazer. Como o debate com o Presidente e a vitória que se seguiu, os alimentos estavam estranhamente insossos.
Ele não deveria ter saído vitorioso. O Presidente deveria tê-lo eliminado. Amadiro, se necessário, teria negado francamente. Sua palavra contra a palavra, ou a argumentação, de um terráqueo.
Porém Fastolfe estava exultante.
- Temi o pior, Sr. Baley - disse. - Tive medo que o encontro com o Presidente fosse prematuro e que nada do que o senhor dissesse melhorasse a situação. Mas o senhor agiu magnificamente. Eu fiquei perdido de admiração, ouvindo-o. Esperei a cada instante que Amadiro exigisse que sua palavra fosse aceita contra a de um terráqueo que, afinal de contas, estava num permanente estado de semiloucura, por se encontrar ao ar livre num planeta estranho...
Baley retrucou, friamente:
- com todo o respeito, Dr. Fastolfe, nunca estive num constante estado de semiloucura. Ontem à noite foi a exceção, mas foi o único momento em que perdi o controle.
No resto da minha permanência em Aurora, senti-me desconfortável de vez em quando, mas sempre em perfeita consciência. - A ira que tinha reprimido por muito trabalho no debate com o Presidente começou agora a aparecer. - Só durante a tempestade, senhor, exceto, claro - lembrou se - por um instante ou dois na chegada da espaçonave...
Não percebeu a forma pela qual o pensamento - a recordação, a interpretação - apareceu nem com que rapidez. Num instante não existia, no outro ocupava toda a sua mente, como se estivesse lá o tempo todo e precisasse apenas que fosse furada como uma bola de sabão para aparecer.
- Jehoshaphat! - disse, num sussurro apavorado. Depois, com o punho batendo na mesa e fazendo tilintar os pratos: - Jehoshaphat!
- O que foi, Sr. Baley? - perguntou Fastolfe, assustado. Baley olhou-o e ouviu a pergunta atrasada.
- Nada, Dr. Fastolfe. Estava justamente pensando no rancor infernal de Amadiro, causando dano a Jander e depois tratando de lhe atribuir a culpa, dando um jeito para me deixar meio louco na tempestade de ontem à noite e depois usando isso como um meio de lançar dúvidas sobre minhas declarações. Fiquei apenas momentaneamente furioso.
Ora, não precisava ficar, Sr. Baley. E na verdade seria totalmente impossível para Amadiro ter imobilizado Jander. Continua sendo um acontecimento puramente fortuito... com certeza, é possível que a investigação de Amadiro tenha aumentado as probabilidades daquilo acontecer, mas não discutirei isso.
Baley ouviu a declaração meio distraído. O que ele tinha acabado de dizer a Fastolfe era ficção e o que Fastolfe estava dizendo não tinha importância. Era (como diria o Presidente) irrelevante. De fato, tudo o que aconteceu - tudo o que Baley tinha explicado - era irrelevante... Porém nada iria mudar por causa disso.
Exceto uma coisa... após algum tempo.
Jehoshaphat! sussurrou no silêncio de sua mente, virando-se de súbito para o almoço, que começou a comer com prazer e alegria.
Mais uma vez Baley atravessou o gramado entre as casas de Fastolfe e Gladia. Iria ver a moça pela quarta vez em três dias... e (seu coração pareceu ter dado um nó apertado no peito) agora pela última vez.
Giskard o acompanhava, a distância, mais atento que nunca aos arredores. Certamente, com o Presidente completamente ciente dos fatos, poderia haver um relaxamento em relação à segurança de Baley... se de fato houve alguma, na realidade, quando era Daneel quem estava em perigo. Presumivelmente, Giskard ainda não tinha sido reprogramado a respeito.
Só uma vez se aproximou de Baley e assim mesmo quando este perguntou-lhe:
- Giskard, onde está Daneel?
Giskard cobriu rapidamente a distância entre eles, como se relutasse em dizer alguma coisa que não fosse em voz baixa.
- Daneel está a caminho do espaçoporto, senhor, em companhia de vários outros serviçais, para acertar seu transporte para a Terra. Quando o levarem para lá, ele o encontrará e tomará a nave com o senhor, na sua viagem de volta para a Terra.
- É uma boa notícia. Prezo muito cada dia de viagem com Daneel. E você, Giskard? Não vem conosco?
- Não, senhor. Fui instruído para permanecer em Aurora. Contudo, Daneel o servirá bem, mesmo na minha ausência.
- Estou certo disso, Giskard, mas sentirei sua falta.
- Obrigado, senhor - disse o robô e afastou-se tão rapidamente como chegou.
Baley olhou-o pensativamente durante um momento... Não, pela ordem. Precisava ver Gladia.
Ela adiantou-se para cumprimentá-lo... e quanta mudança tinha acontecido em dois dias. Gladia não estava alegre, não estava esvoaçante, não estava borbulhante, continuava com a aparência grave de quem tinha sofrido um choque e uma perda: mas a auréola de perturbação tinha desaparecido. Havia agora uma espécie de serenidade, como se ela se tivesse tornado consciente de que afinal de contas a vida continuava e podia ser, na devida ocasião, doce.
Gladia esboçou um sorriso, caloroso e amigo, ao adiantar-se e estender a mão.
- Ah, pegue-a, pegue-a, Elijah - disse, quando ele hesitou. - É ridículo para você recuar e fingir que não quer me tocar depois da noite passada. Veja, ainda lembro e não lamento. Muito pelo contrário.
Baley executou a rara operação (para ele) de retribuir o sorriso.
- Eu também lembro, Gladia, e igualmente não lamento. Gostaria mesmo de tornar a fazê-lo, mas vim para me despedir.
Uma sombra passou no rosto dela.
- Então está voltando para a Terra. O relatório que recebi pelo robô de comunicação, que opera permanentemente entre a casa de Fastolfe e a minha, diz que tudo acabou bem. Você não pode ter fracassado.
- Não falhei. De fato, o Dr. Fastolfe saiu inteiramente vitorioso. Não creio que reste nenhuma sugestão de que ele afinal se tenha envolvido de qualquer maneira na morte de Jander.
- Pelo que você disse, Elijah?
- Acho que sim.
- Eu sabia. - Havia um tom de auto-satisfação no comentário. - Eu sabia que você conseguiria, quando disse a eles que o chamassem... Mas então porque está sendo mandado embora?
- Exatamente porque o caso está resolvido. Se eu demorar mais, serei um corpo estranho, evidentemente, irritando a política auroreana.
Ela o olhou, momentaneamente em dúvida, e falou:
- Não entendo direito o que você quer dizer com isso. Parece-me uma expressão da Terra. Mas não importa. Conseguiu descobrir quem matou Jander? Isso é o mais importante.
Baley observou em torno. Giskard estava num nicho e um dos robôs de Gladia no outro.
Gladia, notando o olhar apreensivo de Baley, falou:
- Ora, Elijah, você precisa deixar de se preocupar com robôs. Você não se preocupa com a presença de cadeiras nem de cortinas, não é?
Baley sacudiu a cabeça.
- Muito bem, Gladia, desculpe... lamento muitíssimo, mas fui obrigado a contar-lhes que Jander era seu marido.
Ela esbugalhou os olhos e ele apressou-se a continuar.
- Precisei. Era essencial ao caso, mas prometo que não afetará sua posição em Aurora. - com a maior brevidade possível, condensou os acontecimentos do encontro e concluiu: - Assim, como vê, ninguém matou Jander. A imobilização foi o resultado de uma possível mudança em seus campos positrônicos, embora essa probabilidade possa ter sido proporcionada pelo que estava acontecendo.
- E eu nunca percebi - lamentou-se a moça. - Nunca percebi. Fui conivente com esse plano louco de Amadiro... E ele é da mesma forma responsável, como se tivesse deliberadamente acabado com ele, com uma marreta.
- Gladia - disse Baley francamente - isso não é caridoso. Ele não teve intenção de causar mal a Jander e o que fez foi, aos seus próprios olhos, pelo bem de Aurora.
Por isso está sendo castigado. Foi derrotado, seus planos estão periclitando e o Instituto de Robótica vai cair sob o domínio do Dr. Fastolfe. Você mesma não poderia ter produzido um castigo mais adequado, fosse qual fosse.
- Pensarei nisso - replicou a moça. - Mas o que devo fazer com Santirix Gremionis, aquele simpático jovem servil, cujo trabalho era me seduzir? Não é de espantar que ele tivesse mantido a esperança, apesar das minhas repetidas recusas. Bem, ele tornará a vir aqui e eu terei o prazer de...
Baley sacudiu a cabeça com violência.
- Gladia, não. Eu o interroguei e garanto-lhe que ele não sabia o que estava acontecendo. Ele está tão decepcionado quanto você. Na verdade, você interpretou errado.
Ele não era persistente porque fosse importante seduzi-la. Foi útil a Amadiro porque era tão insistente... e essa insistência era por interesse em você. Por amor, se a palavra tem aqui o mesmo significado que na Terra.
- Em Aurora, é uma coreografia. Jander era robô e você é terráqueo. com os auroreanos é diferente.
- Então a explicação está dada. Mas, Gladia, você aprendeu com Jander a tomar, aprendeu comigo, não que eu me importe, a dar. Se beneficiou aprendendo, não é correto e justo que ensine por sua vez? Gremionis está suficientemente atraído por você para se dispor a aprender. Ele já desafia as convenções auroreanas insistindo em face da sua recusa. Ele vai desafiar mais. Você precisa ensiná-lo a dar e receber e você aprenderá ambas, alternada ou simultaneamente, na companhia dele.
Gladia mergulhou seus olhos nos dele.
- Elijah, você está querendo se livrar de mim? Calmamente, Baley balançou a cabeça.
- Estou, sim, Gladia. O que quero neste momento é a sua felicidade, mais do que tudo o que jamais quis para mim ou para a Terra. Não lhe posso dar felicidade, mas se Gremionis puder, serei tão feliz... quase tão feliz como se fosse eu que estivesse lhe dando esse presente.
"Gladia, ele poderá surpreendê-la pela ansiedade com que se entregará à coreografia, assim que você lhe mostrar como. E a notícia se espalhará de alguma forma e outros virão atirar-se aos seus pés... e Gremionis poderá descobrir ser possível ensinar a outras mulheres. Gladia, pode ser que você revolucione o sexo auroreano antes de ter terminado. Você tem três séculos para isso.”
Gladia encarou-o e depois deu uma gargalhada.
- Você está zombando de mim. Está sendo deliberadamente engraçado. Nunca pensei que você fosse capaz disso, Elijah. Você sempre pareceu tão sério e solene. Jehoshaphat!
(E na última palavra, tentou imitar seu tom de barítono.)
- Talvez esteja zombando um pouco, mas no fundo é o que eu quero dizer. Prometa-me que vai dar a Gremionis uma oportunidade.
Ela aproximou-se mais e, sem hesitar, Baley abraçou-a. Gladia colocou um dedo nos lábios dele, que fez um leve gesto de beijar. A moça falou, suavemente:
- Você não preferia me ter, Elijah?
Ele respondeu, com a mesma suavidade (e incapaz de reparar nos robôs na sala):
- Sim, preferia, Gladia. Tenho vergonha de dizer que neste momento ficaria contente se a Terra caísse em pedaços, para eu poder tê-la, Gladia... mas não posso. Dentro em pouco, terei saído de Aurora e não há como lhe ser permitido ir comigo. Nem acho que me seja permitido novamente voltar aqui, como jamais será possível que você visite a Terra.
"Nunca mais a verei, Gladia, porém jamais a esquecerei. Morrerei dentro de alguns decênios e quando isso acontecer, você será ainda tão jovem quanto hoje, assim devemos nos despedir breve, o que quer possamos imaginar que aconteça.
Ela encostou a cabeça no peito de Baley.
- Ah, Elijah, você entrou duas vezes em minha vida e em ambas por algumas horas apenas. Por duas vezes você fez muito por mim e depois se despediu. Da primeira, pude apenas tocar seu rosto, mas isso provocou uma enorme diferença. Da segunda, fiz muito mais... e novamente a diferença foi incrível. Jamais o esquecerei, Elijah, mesmo que viva mais séculos do que possa imaginar.
- Então, não permita que esta seja a espécie de lembrança que impeça a sua felicidade - replicou Baley. - Aceite Gremionis, faça-o feliz... e deixe que ele também a faça. E, lembre, não há nada que a impeça de me escrever. Existe hipercorreio entre Aurora e a Terra.
- Escreverei, Elijah. Você também me escreverá?
- Certamente, Gladia.
Ficaram calados e, com relutância, separaram-se. Ela ficou parada no centro da sala e quando Baley caminhou para a porta e virou-se, ela ainda estava no mesmo lugar, com um leve sorriso. Seus lábios formaram a palavra adeus, e como não tinha som - se tivesse ele não diria - acrescentou meu amor.
Os lábios dela também se moveram. Adeus, meu grande amor.
Baley virou-se e saiu, consciente de que nunca mais a veria fisicamente, jamais tornaria a tocá-la.
Demorou um pouco antes que Elijah conseguisse pensar na tarefa que ainda estava à sua frente. Tinha caminhado em silêncio, talvez a metade da distância, de volta à casa de Fastolfe, quando parou e ergueu um braço.
Imediatamente o atento Giskard postou-se ao seu lado.
- Falta quanto para eu seguir para o espaçoporto, Giskard? - perguntou.
- Três horas e dez minutos, senhor. Baley pensou um instante.
- Quero andar até aquela árvore, sentar-me encostado no tronco e ficar algum tempo sozinho lá. com você, é claro, mas longe de outros seres humanos.
- Ao ar livre, senhor?
A voz do robô era incapaz de exprimir surpresa ou espanto, mas de certa forma Baley teve a sensação de que, se Giskard fosse humano, aquelas palavras exprimiriam aqueles sentimentos.
- Sim -replicou Baley. - Preciso pensar, e após a noite passada, um dia calmo como este, ensolarado, sem nuvens, suave, dificilmente será perigoso. Entrarei, se a agorafobia me atacar. Prometo. Então quer vir comigo?
- Sim, senhor.
- Ótimo.
Baley começou a andar. Chegaram à árvore e Baley apalpou o tronco cautelosamente, olhando depois o dedo, que continuou perfeitamente limpo. Certo de que encostar-se nele não o sujaria, examinou o solo e depois sentou-se com muito cuidado, recostando-se na árvore.
Não era tão confortável quanto o espaldar de uma cadeira, mas dava uma sensação de paz (bastante estranha), que talvez não conseguisse no interior de uma sala.
Giskard ficou em pé e Baley disse:
- Não vai sentar-se também?
- Estou confortável em pé, senhor.
- Sei disso, Giskard, porém pensarei melhor se não precisar levantar os olhos para você.
- Não poderei defendê-lo de possíveis danos muito eficientemente, se estiver sentado, senhor.
- Também sei disso, Giskard, mas no momento não há perigo. Minha missão terminou, o caso está resolvido e a posição do Dr. Fastolfe é segura. Pode sentar sem risco e eu lhe ordeno que o faça.
Giskard sentou-se imediatamente, defronte de Baley, mas seus olhos continuaram a virar-se de um lado para outro, permanentemente alerta.
Baley olhou o céu por entre a copa da árvore, verde contra o azul, prestou atenção ao rumor dos insetos e ao súbito trinar de um pássaro, notou a agitação da relva, que podia significar a passagem de um animalzinho, e tornou a pensar como tudo estava tão estranhamente pacífico e como essa paz era diferente da agitação de City. Aquela era uma paz silenciosa, sem precipitação, remota.
Pela primeira vez, Baley captou uma leve sugestão de como poderia ser preferir o Exterior a City. Sentiu-se grato por suas experiências em Aurora, acima de tudo à tempestade - pois sabia agora que seria capaz de partir da Terra e enfrentar as condições de qualquer novo mundo onde pudesse instalar-se, ele e Ben... e talvez Jessie.
- Na noite passada - comentou - nas trevas da tempestade, fiquei imaginando se teria podido ver o satélite de Aurora, não fossem as nuvens. Há um satélite, se minha leitura foi correta.
- Dois, na verdade, senhor. O maior é Tithonus, mas realmente tão minúsculo que parece apenas uma estrela moderadamente brilhante. O menor não é visível a olho nu, simplesmente denominado Tithonus II, quando é citado.
- Obrigado... E agradecido por me ter salvo na noite passada. - Olhou para o robô. - Não sei a forma correta de lhe agradecer.
- Não é absolutamente necessário me agradecer. Eu estava apenas seguindo as determinações da Primeira Lei. Eu não tinha escolha.
- Apesar disso, provavelmente devo-lhe a vida e é importante que saiba que eu tenho consciência disso... E agora, Giskard, que devo fazer?
- Com relação a que, senhor?
Minha missão terminou. Os pontos de vista do Dr. Fastolfe estão garantidos. O futuro da Terra também. Parece que nada mais tenho a fazer, mas ainda existe o caso
Jander.
- Não compreendo, senhor.
- Bem, parece ter ficado estabelecido que ele morreu de uma falha ocasional do potencial positrônico do cérebro, mas Fastolfe afirma que essa possibilidade é pequeníssima.
Mesmo com a ação de Amadiro, a possibilidade, apesar de maior, continuou mínima. Pelo menos, é o que pensa Fastolfe. Portanto, continua a me parecer que a morte de Jander foi um deliberado roboticídio. Mas não ouso agora levantar essa questão. Não quero mexer em coisas que chegaram a uma conclusão satisfatória. Não desejo tornar a colocar Fastolfe em perigo. Não pretendo fazer Gladia infeliz. Não sei como agir. Como não posso falar com um ser humano a esse respeito, estou falando com você, Giskard.
- Sim, senhor.
- Posso sempre mandá-lo apagar e esquecer o que eu disse.
- Sim, senhor.
- Na sua opinião, que devo fazer?
- Se foi roboticídio - replicou Giskard - deve ter havido alguém capaz de cometê-lo, senhor. Só o Dr. Fastolfe poderia tê-lo feito e ele nega.
- Sim, começamos com essa situação. Acredito no Dr. Fastolfe e tenho a certeza de que ele não cometeu o crime.
- Então, senhor, como pode ter havido roboticídio?
- Suponha que alguém mais tenha tanto conhecimento da robótica quanto o Dr. Fastolfe, Giskard.
Baley encolheu as pernas e abraçou os joelhos. Não olhou para Giskard e parecia perdido em pensamentos.
- Quem poderia ser, senhor? - perguntou Giskard. Finalmente, Baley atingiu o ponto crucial.
- Você, Giskard - afirmou.
Se Giskard fosse humano, poderia ter simplesmente olhado, silencioso e espantado, ou reagido com raiva, ou se encolhido de pavor, ou teria uma dúzia de reações.
Por ser robô, não demonstrou qualquer sinal de emoção e simplesmente retrucou:
- Por que diz isso, senhor?
- Tenho certeza, Giskard - afirmou Baley - que você sabe muito bem como cheguei a esta conclusão, mas me fará um favor se me permitir, neste lugar tranqüilo, e neste pouco tempo que me resta antes de viajar, que explique o caso, em meu próprio benefício. Eu gostaria de me ouvir falando a respeito. E gostaria que me corrigisse quando errasse.
- Por favor, senhor.
- Suponho que meu engano inicial tivesse sido considerar que você é um robô menos complicado e mais primitivo que Daneel, simplesmente porque parece menos humano.
Um ser humano acreditará sempre que, quanto mais humano seja um robô, mais adiantado, complicado e inteligente será. Para exemplificar, um robô como você é mais facilmente projetado e um robô como Daneel é um grande problema para homens como Amadiro e podem ser trabalhados apenas por gênios robóticos como Fastolfe. Contudo, a dificuldade em projetar Daneel está, desconfio, na reprodução de aspectos humanos como a expressão facial, entonação vocal, gestos e movimentos, que são extraordinariamente complicados, porém nada têm a ver, na realidade, com a complexidade da mente. Estou certo?
- Inteiramente, senhor.
- Por isso subestimei-o inconscientemente, como todos, aliás. Mas você se revelou, mesmo antes de pousarmos em Aurora. Talvez você lembre que durante o pouso fui acometido de um espasmo agorafóbico e por um momento fiquei ainda mais indefeso que a noite passada na tempestade.
- Lembro, senhor.
- Naquela hora, Daneel se encontrava no camarote comigo, enquanto você tinha ficado fora. Comecei a cair numa espécie de estado catatônico, sem fazer barulho, e ele talvez não estivesse me olhando, sem reparar, portanto. Você se achava do lado de fora e mesmo assim foi quem acorreu e desligou o visor que eu segurava no momento.
Você chegou primeiro que Daneel, cujos reflexos são tão rápidos quanto os seus. Tenho certeza... como ele demonstrou quando evitou que o Dr. Fastolfe me agredisse.
- Estou certo de que o Dr. Fastolfe não queria agredi-lo.
- De fato. Queria apenas demonstrar os reflexos de Daneel... Apesar disso, como acabo de dizer, no camarote você chegou primeiro. Eu mal tinha condições de notar isso, mas fui treinado para observar e não fico inteiramente fora de ação, mesmo sob o medo agorafóbico, como provei na noite passada. Reparei que você chegou primeiro, embora tenha tendido a esquecer o fato. Só havia, portanto, uma solução lógica.
Baley fez uma pausa, como que esperando que o robô concordasse, mas Giskard nada disse.
(Nos anos seguintes, foi o que mais Baley lembrou de sua estada em Aurora. Não a tempestade. Nem mesmo Gladia. Foi, de fato, o período calmo sob a árvore, cuja copa verde projetava-se contra o céu azul, a brisa suave, o ruído agradável dos animais e Giskard defronte dele, com os olhos brilhando levemente.)
Baley prosseguiu:
- Era como se você tivesse podido de alguma forma, mesmo através da porta fechada, captar meu estado mental e saber que eu estava tendo uma espécie de perda de sentidos. Ou, para resumir e falar com simplicidade, você pode ler mentes.
- Sim, senhor - replicou Giskard tranqüilamente.
- E pode de certa forma também influenciá-las. Acredito que você notou ter eu percebido isto e procurou obscurecê-lo em minha mente, de forma a que eu não pudesse lembrar ou não perceber o significado... se eu casualmente lembrasse a situação. Mas você não foi totalmente eficiente, talvez porque seus poderes sejam limitados...
Giskard replicou:
- Senhor, a Primeira Lei sobrepõe-se a tudo. Tive de ir salvá-lo, embora percebesse que aquilo me denunciaria. E tive de embotar levemente sua mente, para não danificá-lo em nada.
Baley balançou a cabeça.
- Vejo que você teve dificuldades. Embotar levemente... de forma a que eu pudesse lembrar quando minha mente estivesse relaxada o bastante e pudesse pensar livremente.
Pouco antes de eu ter perdido a consciência na tempestade, vi que você chegou primeiro, como na nave. Deve ter-me encontrado pela radiação infravermelha, mas todo mamífero e pássaro têm a mesma radiação, o que pode confundir., porém você também capta atividade mental, mesmo que eu estivesse inconsciente, e isso o ajudou a me achar.
- Sem dúvida ajudou - confirmou Giskard.
- Quando eu lembrei, quase dormindo ou inconsciente, tornei a esquecer, quando em plena capacidade de raciocínio. Na noite passada, contudo, lembrei pela terceira vez e não estava só. Gladia estava comigo e repetiu o que eu disse: "Ele chegou primeiro." E mesmo então, não pude lembrar o significado, até a oportunidade de um comentário do Dr. Fastolfe, que veio à tona através do obscurecimento. Depois que isso nasceu em mim, lembrei de outras coisas. Assim, quando eu fiquei imaginando se estava realmente pousando em Aurora, você me garantiu que nosso destino era Aurora, antes de eu perguntar... Suponho que nunca deixou alguém saber da sua capacidade de ler mentes.
- É verdade, senhor.
- Como é?
- Minha capacidade de ler mentes me dá uma oportunidade única de obedecer a Primeira Lei, senhor, e por isso a valorizo. Posso prever danos a seres humanos, com muito mais eficiência. Parece-me contudo que nem o Dr. Fastolfe nem qualquer outro ser humano tolerariam por muito tempo um robô leitor de mentes e por isso mantive essa capacidade secreta. O Dr. Fastolfe gosta de contar a lenda do robô leitor de pensamentos destruído por Susan Calvin e eu não quereria que ele repetisse a façanha dela.
- Sim, ele me contou a lenda. Desconfio que ele sabe, subliminalmente, que você lê mentes, ou não insistiria assim na lenda. E é perigoso para ele, na medida em que você está preocupado, devo supor. Certamente, colaborou para me pôr a idéia na cabeça.
- Fiz o que pude para neutralizar o perigo, sem, injustificadamente, atingir a mente do Dr. Fastolfe. Ele invariavelmente salienta a natureza impossível e lendária do caso, quando o conta.
- Sim, também lembro disso. Porém se Fastolfe não sabe que você lê mentes, deve ser porque você não foi preparado originalmente para ter esse poder. Como então chegou a tê-lo?... Não, não me diga, Giskard. Permita-me que sugira uma coisa. A Dra. Vasilia estava especialmente fascinada por você quando, ainda mocinha, começou a se interessar por robótica. Ela me contou que experimentou programá-lo, sob a distante supervisão de Fastolfe. Seria possível que, certa vez, por acidente, tenha feito alguma coisa que lhe deu esse poder? Estou certo?
- Está sim, senhor.
- E você sabe que coisa foi essa?
- Sei sim, senhor.
- Você é o único robô leitor de mentes que existe?
- Até agora, sou, senhor. Haverá outros.
- Se eu lhe tivesse perguntado o que a Dra. Vasilia fez para lhe dar esse poder, ou se o Dr. Fastolfe o fez, você me contaria em virtude da Segunda Lei?
- Não, senhor, pois na minha opinião o conhecimento lhe causaria dano e minha recusa de contar-lhe, invocando a Primeira Lei, teria precedência. O problema não surgirá, contudo, pois eu saberia que alguém iria fazer a pergunta e dar a ordem e por isso eu removeria da mente o impulso de obedecer, antes de ser cumprido.
- Sim - disse Baley. - Na noite de anteontem, quando íamos da casa de Gladia para a de Fastolfe, perguntei a Daneel se ele tivera algum contato com Jander no tempo em que este permaneceu com Gladia e ele respondeu simplesmente que não. Virei-me então para lhe fazer a mesma pergunta e por qualquer motivo não a fiz. Acho que você anulou o meu impulso de perguntar.
- Sim, senhor.
- Porque se eu tivesse perguntado, você seria levado a dizer que o conhecia bem e não estava preparado para naquele momento me deixar saber.
- Eu não estava, senhor.
- Mas durante o período de contato com Jander, você soube que ele estava sendo examinado por Amadiro porque, suponho, pôde ler a mente de Jander ou detectar seus potenciais positrônicos...
- Sim, senhor, a mesma capacidade cobre a atividade mental, tanto robótica como humana. Os robôs são mais fáceis de compreender.
- Você desaprovou as atividades de Amadiro porque concordava com Fastolfe no assunto da colonização da Galáxia.
- Sim, senhor.
- Por que não impediu Amadiro? Por que não removeu da mente dele o impulso de examinar Jander?
- Senhor, não posso levianamente mexer indevidamente em mentes - replicou Giskard. - A determinação de Amadiro era tão profunda e complexa que para removê-la eu teria de fazer muito... e sua mente é adiantada e importante, o que me fez ficar relutante em danificá-la. Deixei a coisa prosseguir bastante tempo, tempo em que meditei sobre qual a melhor ação para preencher as necessidades da minha Primeira Lei. Finalmente, decidi-me pela forma correta de corrigir a situação. Não foi uma decisão fácil.
- Resolveu imobilizar Jander antes que Amadiro pudesse extrair-lhe a maneira de construir um verdadeiro robô humaniforme. Você sabia como fazer, uma vez que tinha, com o decorrer dos anos, obtido uma perfeita compreensão das teorias de Fastolfe, lidas em sua mente. Não foi?
- Exatamente, senhor.
- Assim, Fastolfe não era o único, afinal de contas, bastante capaz de imobilizar Jander.
- De certa forma, era, senhor. Minha própria capacidade era apenas reflexo, ou extensão, da dele.
- Mas aconteceu. Você não percebeu que essa imobilização colocaria Fastolfe em grande perigo? Que ele seria o suspeito natural? Você planejou confessar sua ação e revelar sua capacidade, se fosse necessário salvá-lo?
- Realmente vi - retrucou Giskard - que o Dr. Fastolfe poderia ficar numa situação penosa, porém não pretendi confessar minha culpa. Eu esperava utilizar a situação como um pretexto para apanhá-lo em Aurora.
- Pegar-me aqui? Que idéia foi essa? Baley estava meio espantado.
- Sim, senhor. Explicarei, com sua licença.
- Explique, por favor - disse Baley.
- Eu soube da sua existência - começou Giskard - por intermédio da Srta. Gladia e do Dr. Fastolfe, não pelo que eles disseram, mas pelo que havia em suas mentes.
Tomei conhecimento da situação na Terra. Os terráqueos, era claro, moravam atrás de paredes, das quais achavam difícil fugir, porém era também perceptível para mim que os auroreanos igualmente moravam entre paredes.
"Os auroreanos moram atrás de paredes feitas de robôs, que os protegem de todas as vicissitudes da vida e que, nos planos de Amadiro, construiriam sociedades capazes de resguardar os auroreanos colonizadores de novos mundos. Os auroreanos também moram atrás de paredes feitas de suas vidas extensas, que os forçam a supervalorizar o individualismo e os impedem de juntar seus recursos científicos. Também não caem na brutalidade das brigas, mas por intermédio do seu Presidente, exigem a eliminação de toda incerteza e que as decisões ou soluções sejam conseguidas antes dos problemas serem divulgados. Não podem ser aborrecidos com soluções realmente inúteis no lugar das melhores. O que eles querem são soluções silenciosas.”
"As paredes dos terráqueos são grosseiras e literais e por isso a existência delas é importuna e evidente... e há sempre quem anseie por fugir. As paredes auroreanas são imateriais, nem mesmo são vistas como tais e por isso ninguém concebe mesmo fugir. Parece-me portanto que devem ser os terráqueos e não os auroreanos, ou qualquer outro Espacial, a colonizar a Galáxia e instalar o que um dia se transformará num Império Galáctico.”
- Foi assim que o Dr. Fastolfe argumentou e estou de acordo com ele. O Dr. Fastolfe, no entanto, ficou satisfeito com o raciocínio, enquanto que eu, graças à minha própria capacidade, não podia ficar. Eu tinha de examinar a mente de pelo menos um terráqueo, para conferir minhas conclusões, e o senhor foi o terráqueo que pensei poder trazer a Aurora. A imobilização de Jander serviu tanto para deter Amadiro como para proporcionar sua visita. Incitei muito cuidadosamente a Srta. Gladia a sugerir ao Dr. Fastolfe a sua vinda, levei-o, por sua vez, com muita delicadeza, a falar ao Presidente, e fiz muito suavemente com que este concordasse. Assim que o senhor chegou, examinei-o e fiquei muito contente com o que descobri.
Giskard parou de falar e tornou-se de novo roboticamente impassível.
Baley franziu a testa.
- Está me ocorrendo que não obtive nenhum crédito pelo que fiz aqui. Você deve ter visto como consegui a verdade.
- Não, senhor. Pelo contrário. Coloquei barreiras no seu caminho, razoáveis, é claro. Recusei deixá-lo perceber minhas capacidades, apesar de ter sido forçado a me afastar. Consegui que o senhor sentisse abatimento e desespero em algumas ocasiões. Encorajei-o a sair para o ar livre, visando a estudar suas reações. Mas o senhor venceu todos esses obstáculos e fiquei satisfeito.
- Descobri que o senhor ansiava pelas paredes da sua City, mas que precisava aprender o que fazer sem elas. Descobri que o senhor sentiu-se mal com a visão de Aurora do espaço e com sua exposição à tempestade, mas que nem uma coisa nem outra fê-lo deixar de pensar ou afastou-o do seu problema. Descobri que o senhor concordou com suas falhas e sua vida breve... e que não evita discussões.
- Como sabe que sou o representante típico da Terra? - perguntou Baley.
- Sei que não é. Mas li em sua mente que há alguns como o senhor e iremos trabalhar com eles. Observarei, e agora que conheço claramente o caminho a seguir, prepararei outros robôs iguais a mim, e eles também observarão.
Baley perguntou subitamente:
- Está dizendo que robôs leitores de mentes irão à Terra?
- Não. E tem razão de ficar assustado. Envolver robôs diretamente significaria a construção das verdadeiras paredes que estão aniquilando Aurora e os mundos Espaciais e imobilizando-os. Os terráqueos deverão colonizar a Galáxia sem robôs de qualquer espécie. Isso significaria dificuldades, perigos e danos incalculáveis, coisas contra as quais os robôs teriam de lutar para evitar, se estivessem presentes, mas no fim os seres humanos irão sentir-se melhores por terem feito o trabalho. E talvez um dia, um dia muito no futuro, os robôs possam intervir mais uma vez. Quem sabe?
Baley perguntou, com curiosidade:
- Você vê o futuro?
- Não, senhor, mas lendo mentes como faço, posso mais ou menos dizer que há leis que governam o comportamento humano, como as Três Leis que regem o robótico, e com elas pode ser que o futuro seja orientado, depois de um tempo... um dia. As leis humanas são muito mais complicadas que as Leis da Robótica e não tenho idéia de como elas podem ser organizadas. Podem ser de natureza estatística, de forma que não possam ser proveitosamente exprimidas, exceto quando lidando com populações enormes. Podem estar muito levemente ligadas, de forma a não fazerem sentido, a menos que essas populações sejam inconscientes da existência dessas leis.
- Diga-me, Giskard, é isso que o Dr. Fastolfe chama de a futura ciência da "psico-história"?
- É, sim, senhor. Eu a inseri suavemente na mente dele, para que o seu processo inicial começasse. Ela um dia será necessária, agora que a existência dos mundos Espaciais como uma cultura robotizada de longa vida está chegando ao fim e uma nova onda de expansão humana, por seres humanos de vida curta, sem robôs, está começando.
- E agora - Giskard ficou de pé - acho, senhor, que devemos ir até à casa do Dr. Fastolfe e preparar sua partida. Tudo o que conversamos aqui não deve ser repetido, é claro.
- Ficará estritamente confidencial, garanto-lhe - disse Baley.
- De fato - confirmou Giskard, calmamente. - Mas o senhor não precisa temer a responsabilidade de ficar calado. Vou permitir-lhe lembrar, mas nunca deverá ter vontade de repetir o assunto... nem um pouquinho.
Baley ergueu as sobrancelhas, resignado, e falou:
- Só uma coisa, Giskard, antes que você tome suas providências. Quer fazer com que Gladia não seja incomodada neste planeta, que não seja tratada injustamente porque é solariana e aceitou um robô como um marido e... e que aceite as propostas de Gremionis?
- Ouvi sua última conversa com a Srta. Gladia, senhor, e compreendo. Vão ser tomadas medidas. Agora, senhor, posso me despedir do senhor, enquanto ninguém olha?
Giskard estendeu a mão da forma mais humana que Baley o viu fazer.
Baley apertou-a. Os dedos eram ásperos e frios.
- Adeus... amigo Giskard.
Giskard respondeu:
- Adeus, amigo Elijah, e lembre-se que, embora as pessoas atribuam o nome a Aurora, de agora em diante é a própria Terra o verdadeiro Mundo do Amanhecer.
Isaac Asimov
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