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Series & Trilogias Literarias
O Sol desapareceu no horizonte, com os últimos raios a desvanecerem-se como o fumo de uma vela que se apaga. A penumbra desceu sobre as falésias e as silhuetas das árvores, transformando o acidentado litoral bretão no tipo de paisagem que Simon Aristide melhor compreendia. Uma terra de noite e de sombra.
Com as mãos cobertas por luvas de pele, o caçador de bruxas agarrou as rédeas da sua montada. Tal como o seu dono, a fogosa égua negra confundia-se com a paisagem.
O longo cabelo de Aristide pendia-lhe sobre os ombros e era tão negro e selvagem como a crina da égua, ondulante na fresca brisa de sotavento. Estava também completamente trajado de negro, desde as suas robustas botas ao seu gibão de couro. O rosto enegrecido pela barba não refletia a mínima centelha de palidez que pudesse alertar os seus inimigos, com a pele endurecida por muitos dias passados sobre a sela, enfrentando a erosão dos elementos.
Simon tinha uma aparência angulosa, os traços da boca, dura e inflexível, raras vezes eram suavizados por um sorriso. O olho esquerdo era tão negro como tudo o mais que nele havia, brilhante e com uma inteligência acutilante. O olho direito, arruinado, tinha-o normalmente ocultado sob uma pala negra. Uma cicatriz profunda, consequência de um duelo, bissetava-lhe a fronte e sumia-se sob a pala para emergir depois como uma fina ruga que lhe desfigurava a face. Era uma figura intimidante, alta, com membros musculosos. Era preciso ser louco para o atacar.
Mas Simon concluíra que as criaturas que o perseguiam ou eram loucas ou então estavam imbuídas de uma maldade atroz. Numa noite como esta, sozinho, isolado de quaisquer indícios de presença humana, preferia pensar que os seus perseguidores eram simplesmente loucos. Era mais reconfortante do que a alternativa.
À medida que as sombras se acentuavam à sua volta, Simon resistiu à tentação de incitar Elk a galopar. Uma ligeira pressão dos joelhos e ambos desapareceriam como
o vento. Mas seria demasiado perigoso, o caminho da falésia era estreito e traiçoeiro, mesmo em plena luz do dia. Um galope pleno na escuridão seria puro suicídio.
Uma estrada não tão perigosa espreitava por entre as árvores que bordejavam a falésia, mas os troncos de árvore retorcidos, o matagal e os arbustos ofereciam demasiadas
possibilidades de emboscada.
Simon manteve a égua em passo tranquilo. Não ouvia nada para além do constante batimento sincopado dos cascos de Uk no solo, o murmúrio do vento através das árvores,
as ondas da maré a fustigarem as rochas ao longe, e no entanto sentia um arrepio na nuca com um pressentimento de que não estava só no meio da escuridão. Elas estavam
ali. Pelo menos uma delas. Talvez aquela que sentira estar a segui-lo na última aldeia por onde passara. Ou então talvez o extremo cansaço e algumas horas mal dormidas
estivessem a dominá-lo. Mas acreditava que não. O comportamento de Ee fazia-lhe crer que não. Mais ou menos durante os últimos duzentos metros, a égua manifestara
grande nervosismo, agitando-se, movendo a cabeça, com as orelhas espetadas.
Simon inclinou-se para lhe dar uma palmada no pescoço quando o som lhe chegou aos ouvidos. De início pareceu-lhe o choro ténue de uma criança. Não podia ser outra
coisa senão o murmúrio do vento a soprar por entre as rochas do promontório. De qualquer forma, Simon sentiu um nó no estômago provocado pela apreensão.
Perto da curva seguinte, o terreno era mais plano e os murmúrios tornaram-se mais fortes e mais queixosos. Simon fez Bile estacar, escrutinando nervosamente a distância.
Mais à frente, a cerca de um quilómetro, o luar iluminava um objeto perigosamente abandonado à beira da falésia. Qualquer outra pessoa poderia tê-lo confundido com
uma manta enrolada, esquecida por algum pastor mais descuidado. Simon já vira trouxas semelhantes, mas desta vez havia uma diferença.
Esta tinha vida, os gritos de criança chegavam-lhe claramente através do vento. A pulsação de Simon acelerou e o seu primeiro impulso foi cavalgar em frente. Mas
já estivera demasiadas vezes perto de cair numa emboscada e conteve o ímpeto.
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Deslizou pela garupa de Ee e conduziu a égua para junto de uma mancha de arvoredo, prendendo-a pela trela ao tronco, grosso mas flexível, de uma faia. Os olhos de
Ele não revelavam terror, mas a égua resfolegava e calcava fortemente os cascos. Movia os ombros e o peito, poderoso e acetinado, como se quisesse impedi-lo de sair
do bosque.
Simon deu-lhe uma palmada para a acalmar. Permaneceu à sombra das árvores perscrutando o caminho até à lomba da falésia. O descampado onde a criança fora abandonada
não apresentava qualquer possível esconderijo, nada que pudesse abrigar alguém que tentasse esconder-se; nem Simon, caso algum malfeitor estivesse emboscado mais
à frente no caminho ou mesmo entre o arvoredo, preparando-se para lhe cravar uma seta nas costas.
Mas esse não era o modo usual de o inimigo atacar e os gritos da criança sobrepuseram-se às suas cautelas. Estavam a ficar cada vez mais fracos e provavelmente sem
contar que ele chegasse tão depressa.
Depois de se libertar de Elle, Simon puxou pela espada e avançou. Já quase não conseguia ouvir a criança, apenas um último gemido e depois um silêncio terrível.
Esquecendo os cuidados e a discrição, correu, levantando uma saraivada de pedras com as botas.
Precipitou-se para a pequena trouxa à beira da falésia, caindo de joelhos ao seu lado. O vento agitava a dobra do grosseiro cobertor, mas o pequeno corpo não fazia
o mínimo movimento. Envolveu a criança nos braços com uma doçura que era tão rara como as suas orações.
Por favor. Oxalá tenha chegado a tempo. Pelo menos desta vez.
Puxou para trás a dobra do cobertor, sustendo profundamente a respiração. Os olhos de vidro da boneca fixavam-no, vazios, e a boca dentada cosida ao rosto de tela
sorria-lhe. Enganado.
Quase não teve tempo para tomar consciência do facto antes de ouvir um galho estalar do seu lado sem visão. Precipitou-se em direção ao som e apercebeu-se de que
havia uma cova no chão, sob o sítio onde se ajoelhara. Teve apenas um vislumbre antes de a mulher que lá se encontrava agachada saltar na sua direção.
Grunhindo ameaçadoramente, lançou-se sobre ele, fazendo-o cair de costas. O luar fez cintilar a arma na sua mão quando investiu sobre o pescoço de Simon, que desviou
o golpe com a boneca, voltando a erguer-se, empurrando a sua atacante. Ela caiu no chão com um guincho furioso. Quando Simon recuperou o equilíbrio, também ela conseguira
reerguer-se e ficar entre ele e a sua espada. com um sorriso desdenhoso, pontapeou-a para bem longe dele.
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Vestia umas calças largas e uma túnica camponesa, tinha o cabelo escuro e desalinhado, olhos de louca e uma boca cruel e velhaca. Simon mantinha um punhal no interior
da bota, mas não fez qualquer movimento para o empunhar.
- Afasta-te, mulher - disse. - Não quero magoar-te. Larga a tua arma e eu poupo-te se responderes às minhas perguntas.
A mulher inclinou a cabeça para trás e emitiu uma estranha imitação do choramingar de uma criança. - Qual é a tua pergunta - - troçou. - Onde está o bebé - Não há
nenhum, caçador de bruxas. Não desta vez. E esta é a única resposta que obterás de mim. Para além desta - disse, brandindo a arma e aproximando-se. - Não queres
magoar-me... Bah! - Cuspiu na direção de Simon e o escarro caiu a poucos centímetros da sua bota. - Eu sei como é que os caçadores de bruxas fazem perguntas. É com
o potro e o ferrete.
- Esse não é o meu estilo - respondeu Simon -, mas se me atacares de novo, serei forçado a matar-te.
- E isso que importa - - disse ela. - Não tenho medo de morrer. A Rosa de Prata irá ressuscitar-me.
com um guincho arrepiante, voltou a saltar sobre ele. Simon agarrou-lhe os pulsos para a deter. Nenhuma mulher normal teria tanta força. Fosse qual fosse a loucura
ou o mal que lhe corria nas veias, foi tudo o que Simon conseguiu fazer para a manter afastada. Sentia o calor do seu fôlego, ouvia o ranger dos seus dentes quando
ela se aproximou e esteve a centímetros de dilacerar-lhe o pescoço.
Estava mais preocupado com a estranha arma que ela empunhava na mão direita. Ela procurou atingi-lo e a ponta da arma rasgou-lhe o gibão. Simon torceu-lhe o pulso
até ela gritar e largar a arma. Ficou furiosa e desatou aos pontapés e aos estalos, procurando mordê-lo. Como nada resultou, desferiu-lhe uma cabeçada no queixo.
Simon cambaleou, com o maxilar a explodir de dor, e foi forçado a soltá-la, quase não conseguindo evitar a queda pela beira do precipício.
A atacante precipitou-se na sua direção num esforço para o derrubar, mas conseguiu esquivar-se à carga. Ela desequilibrou-se e sentiu o chão faltar-lhe sob os pés.
Caiu, lutando fortemente por encontrar algo a que se
1 Potro, instrumento de tortura em que os membros da vítima eram sujeitos a tensão por estiramento; ferrete, ferro em brasa usado para marcar gado, escravos, etc.
(N. do T.)
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agarrar. Simon lançou-se violentamente ao chão e agarrou-lhe o braço. As pernas e o braço livre balouçavam no vazio e tinha o rosto lívido de raiva. O peso do seu
corpo fez estirar os músculos do braço de Simon até estes lhe arderem com dores.
- Quem te enviou - - gritou-lhe. - Quem é a Rosa de Prata a quem serves -
- Vai para o inferno - bradou.
- Diz-me o que quero saber ou... - Simon arquejou quando ela cravou profundamente as unhas na sua mão, fazendo-o afrouxar a preensão.
Sentiu-a começar a escorregar e procurou agarrar-lhe o braço. Mas era tarde de mais. Ela precipitou-se na escuridão e ele apenas viu o seu rosto em regozijo por
aquele triunfo insano. Ouviu os baques do corpo enquanto este caía pela encosta da falésia e por fim o som do impacto na água. O mar parecia uma besta negra e furiosa,
espumando na enseada enquanto devorava o corpo desfeito da bruxa e com ele todas as respostas que tão desesperadamente Simon procurara obter dela.
Que demónio te possuiu, mulher - Onde vos escondeis todas vós quando não vos encontrais a espalhar o terror e a procurar matar-me - E quem é a mulher-demónio a quem
chamais Rosa de Prata - Esta feiticeira que todas vós tanto adorais ao ponto de estardes dispostas a morrer por ela, acreditando que ela detém o poder de vos fazer
regressar do mundo dos mortos.
E se ela realmente o tiver -
O pensamento fez um calafrio percorrer-lhe o corpo e nada tinha a ver com o vento que soprava do mar. com um gemido mudo, afastou-se do precipício e rolou sobre
as costas, procurando recuperar o fôlego. Sentou-se lentamente, afastando o cabelo despenteado do rosto. Retraiu-se com o latejar da mão que a bruxa tinha lacerado
com as unhas. O sabor salgado do sangue encheu-lhe a boca. Tinha-lhe mordido a face quando ela o atingiu com a cabeça.
Massajou cuidadosamente o maxilar. Doía-lhe como o diabo, mas ela não conseguira deslocar-lho nem partir-lhe nenhum dente. As suas feridas podiam ter sido bem piores,
pensou enquanto o seu olhar pousava sobre a estranha arma que tinha arrancado às mãos da bruxa. Já antes se tinha cruzado com semelhante instrumento sinistro e testemunhado
o poder mortal da lâmina das feiticeiras. Mas nunca conseguira ficar na posse de um para o estudar mais atentamente.
Pegou-lhe cuidadosamente. Ao primeiro relance, a arma não parecia mais do que um estilete muito fino com a ponta tão afiada como uma agulha. Mas
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quando o estilete perfurava a pele, o cabo podia ser puxado, libertando um líquido venenoso através da lâmina. Simon não tinha a certeza de como funcionava exatamente
a lâmina das feiticeiras, mas já observara os seus efeitos. A ferida que provocava era pequena e estava muito longe de parecer mortal, mas a morte que forjava era
lenta e agonizante.
Pousou a arma, procurando uma forma segura de a transportar. Encontrou a boneca caída e retirou-lhe a manta. Sem a sua coberta, a boneca pouco se parecia com um
bebé. Nada mais do que uma cabeça de pano e um corpo com algum contrapeso para dar a sensação de que se tratava de uma pequena criança quando embrulhada na manta.
Simon pegou-lhe e lançou-a pelo precipício. A sua ira estava agora apaziguada pelo alívio de que tudo afinal não passara de um logro. Já testemunhara mais crueldade,
morte e maldade ao longo dos seus vinte e oito anos de idade do que muitos homens com o dobro da sua idade. Mas não estava seguro sobre se suportaria a visão de
mais uma criança morta. Passara já demasiadas noites sem dormir, imaginando o sofrimento daqueles bebés indefesos que não pudera salvar por não conseguir chegar
a tempo, abandonados em algum local remoto onde os seus gritos não podiam ser ouvidos, abandonados ao lento efeito da fome e da falta de cuidados.
Que tipo de mulher podia ordenar a outras para cometerem tais horrores - A mesma mulher que podia fabricar uma arma como aquele punhal venenoso, com a estranha flor
de prata que era a sua marca ostensivamente gravada no punho. Custasse o que custasse, Simon tencionava encontrar a feiticeira e pôr fim aos seus ímpios crimes.
A não ser que a Rosa de Prata o apanhasse primeiro.
E isso era mais do que provável se ele continuasse a comportar-se tão estupidamente como naquela noite. Há cinco anos, ou mesmo há dois, jamais cairia em semelhante
armadilha. Mas a sua cruzada solitária estava a consumi-lo tanto que se surpreendia por ainda ter uma sombra.
Embrulhou o punhal no cobertor. Procurou a espada e as luvas e regressou ao local onde tinha deixado Ee, que batia fortemente com os cascos, agitando a cabeça e
puxando pelas rédeas, assustada pela luta de Simon com a bruxa. Foi preciso reconfortá-la longamente até ela acalmar. Apoiou a testa contra o seu focinho macio e
aveludado.
- Meu Deus, Elle, estou tão cansado disto; tão amaldiçoadamente cansado.
Ela relinchou, com os seus olhos negros brilhando suavemente ao luar. Acariciou-lhe o cabelo e mordeu-lhe o decote da camisa como que para confortá-lo.
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Por muito absurdo que parecesse, Simon por vezes pensava que a égua o compreendia.
Só Miri Cheney não consideraria absurdo e tê-lo-ia dito... A respiração de Simon prendeu-se-lhe na garganta enquanto a sua imagem lhe dominava a mente, tão nítida,
mesmo após tantos anos. A recordação de uma jovem de cabelo tão claro como o luar, um rosto tão etéreo como o de um anjo, uns olhos que podiam ter o matiz suave
da neblina matinal ou a cor escura da tempestade no mar. Olhos mágicos que podiam fazer um homem esquecer quem era e o que precisava de fazer. Ou pior ainda, esquecer
quem ela era. Uma Filha da Terra, uma mulher sábia. Era assim que Miri sempre se referia a si mesma. Independentemente do que ela escolhesse chamar a si própria,
uma feiticeira era sempre uma feiticeira e, no entanto, com Miri, havia algo de diferente.
Apesar do seu infeliz passado familiar de bruxaria, ela tinha sido mais mal-aconselhada do que corrompida pela maldade. A jovem possuía uma inocência, uma fé radiante
na suprema bondade do mundo, uma esperança nas melhores pessoas. Jovem - Não, seria agora uma mulher madura e aquela sua luz interior ter-se-ia provavelmente desvanecido
uma vez que a sua família fora obrigada a abandonar a sua casa na ilha Encantada, trocando-a pelo exílio. Simon era em grande parte responsável por isso.
Durante o ano anterior tinham-lhe chegado rumores de que uma das irmãs Cheney ousara regressar à ilha e lá vivia num tranquilo isolamento. Era uma mulher que possuía
uma capacidade quase sobrenatural para curar qualquer pessoa doente ou ferida que lhe aparecesse. Só podia ser uma pessoa... Miri.
Simon puxou as rédeas de Ee enquanto procurava banir a imagem da mulher do seu pensamento. A sua memória provocava-lhe lembranças demasiado dolorosas. Mas ultimamente
Miri invadia frequentemente os seus pensamentos e ele já não podia manter encerrados os portões da sua mente à presença dela. Os seus inimigos estavam a reunir forças
em escala alarmante. Ele estava só e desesperado. Cada novo dia aproximava-o mais da conclusão a que teimosamente procurava resistir. Só havia uma maneira de derrotar
a Irmandade da Rosa de Prata.
Precisava da ajuda de outra feiticeira.
A tempestade pairava à distância, as formações de nuvens eram como uma manada de garanhões cinzentos selvagens prestes a estourar através de Port Corsair e acabar
com a tranquilidade daquela tarde de verão. Enquanto Miri galopava no seu pónei rumo ao pequeno porto da cidade, endireitava-se na sela, com as narinas bem abertas
absorvendo o perfume do ar. Pelos seus cálculos, a tempestade estava a uma ou talvez duas horas de distância, no máximo. A costa rochosa da ilha Encantada normalmente
absorvia o impacto das tempestades que a assolavam do mar, mas nem mesmo o coração da pequena ilha seria imune à força desta.
O vento frio que soprava de sotavento ameaçava desfazer-lhe o cabelo, mas as suas tranças louras platinadas estavam fortemente amarradas e caíam-Ihe sobre as costas.
Um cabelo tão fortemente puxado podia deixar o rosto de outra mulher duramente exposto, mas no seu caso só realçava os traços marcantes dos seus malares. Havia algo
de misterioso na sua expressão, o reflexo de uma mulher que, a maior parte das vezes, se sentia mais confortável com os seres da floresta do que com os da sua própria
espécie.
Alta e magra, usava um manto cintado que lhe chegava aos tornozelos; o tom cinzento-claro reforçava a ilusão etérea de que era uma mulher que podia facilmente desaparecer
por entre o nevoeiro. Os seus saiotes e saias amontoavam-se desconfortavelmente à altura dos joelhos enquanto montava escanchada. A moda das selas de amazona nunca
fora adotada pelas mulheres práticas da ilha Encantada. Miri dispensaria até desde logo a própria sela e vestiria um confortável par de calças de homem, tal como
se acostumara a fazer quando criança. Mas atualmente achava que simplesmente aventurar-se na cidade já criava agitação suficiente.
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À medida que Miri reduzia o andamento do seu pónei, a familiar barreira de rostos que a fitavam por detrás das cercas das casas estimulava-a. Alguns olhavam-na simplesmente;
outros acenavam as cabeças num reconhecimento constrangido. Uma mulher de faces rosadas que mondava o jardim aventurou-se a acenar, mas quando Miri passou, a mulher
imediatamente lhe voltou costas para segredar à filha.
Miri erguia a cabeça bem alto, mas os murmúrios e os olhares transportaram-na através dos anos até a um melancólico dia de verão...
Os tambores rufavam uma marcha insistente e o seu coração parecia bater a compasso enquanto era arrastada para a praça da cidade pelos carrancudos caçadores de bruxas
nas suas vestes negras. O cabresto que lhe tinham apertado em torno do pescoço despedaçara-lhe a pele até à carne viva, mas procurava manter o queixo erguido, lembrar-se
de quem era. Afilha do bravo Chevalier ljuis Cheney e de Eady Evangeline, uma das mulheres mais sábias que a ilha Encantada já conhecera. Mas contraiu-se com todos
aqueles olhares fixos e os rostos de pessoas que ela acreditara serem amigos e vizinhos.
Era uma verdadeira Filha da Terra. Como podiam pensar que ela era uma bruxa que fizera um pacto profano com o demónio - forque quereria alguém magoá-la - Voltou
a cabeça e lançou um olhar suplicante ao mais novo dos caçadores de bruxas. Embora tenha engolido em seco, os seus olhos escuros humedeceram-se e Simon continuou
a marchar ao ritmo dos tambores...
Miri teve um calafrio e remeteu a recordação para os recantos escuros do seu passado, onde pertenciam. Já não era mais aquela criança assustada e perplexa, mas uma
mulher feita, demasiado familiarizada com a ignorância e a crueldade que se podia encontrar neste mundo. Tanta coisa mudara na sua vida desde aquele negro dia de
verão em que sobrevivera à sua prisão por bruxaria, exceto talvez uma coisa. Muitos ainda suspeitavam de que ela praticava feitiçaria.
- Pequena bruxa nojenta!
Apesar de não querer, Miri encolheu-se ao ouvir o grito estridente. Ajeitou-se na sela, olhando à sua volta à procura da origem do inflamado grito apenas para constatar
que o epíteto não lhe era destinado.
Um grupo de cerca de meia dúzia de mulheres aglomerava-se perto do poço comunitário, envolvidas numa acalorada discussão. O primeiro instinto de Miri foi o de passar
rapidamente a cavalgar por elas. Odiava altercações de qualquer tipo e Ariane avisara-a aquando do seu regresso à ilha Encantada há seis meses. Na manhã em que se
separaram, Ariane segurou a face de Miri entre as mãos, com os seus belos olhos cinzentos preocupados e solenes.
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"Sei o quanto precisas de voltar para casa, mas, oh, por favor tem cuidado, Miri.
Nunca foste condenada por traição e bruxaria como Gabrielle e eu fomos. Não lhes dês pretextos para tal. Leva uma vida sossegada na ilha Encantada. Lembra-te de
que, mesmo depois de todo este tempo, a nossa família ainda tem inimigos poderosos."
Inimigos como Catarina de Médicis, rainha consorte de França, mas bem mais conhecida como Rainha das Trevas e suspeita de feitiçaria, e o seu filho Henrique, atual
rei de França, um homem irracional e vingativo. Mas, na mente de Ariane, o maior inimigo era aquele de quem não falavam, a mera menção do seu nome era suficiente
para causar dor em Miri. O caçador de bruxas, Aristide.
Tal como Miri não era já a criança inocente de outrora, Simon também já não era o rapaz de coração bondoso, aprendiz do terrível Vachel le Vis, um fanático caçador
de bruxas. com os anos, Simon transformara-se num duro e perigoso adversário, muito mais temível que o seu mestre, há muito morto, autor da prisão de Miri.
Abraçando fortemente Ariane, Miri prometeu-lhe esforçar-se por seguir o seu conselho.
"Minha querida, não faças nada que possa atrair atenções indesejáveis sobre ti."
"Não afarei, Ariane. juro."
Recordando-se daquela promessa, Miri conduziu Willow para longe da praça, procurando apagar o som alterado e furioso das vozes. Mas pelo canto do olho viu de relance
a vítima desta cólera, uma jovem com cabelo cor de areia que aparentava ter pouco mais de catorze anos. Sob os frágeis ombros agarrava com uma das mãos as pontas
de um xaile tecido com múltiplas cores brilhantes, como a capa de muitas cores de São José, na Bíblia. A sua face sardenta irradiava rebeldia, embora protegesse
o abdómen com a outra mão. Ao aperceber-se da razão daquele gesto, Mírí, chocada, puxou pelas rédeas. A jovem estava em avançado estado de gravidez e a sua esguia
figura parecia demasiado frágil para suportar a volumosa carga sob o seu vestido.
A mulher que liderava a perseguição tinha uma aparência esquálida, com as mangas arregaçadas que revelavam braços vermelhos e ásperos de trabalho. Miri reconheceu
Josephine Alain, a mulher do oleiro local. Avançava aos gritos para a jovem. - Cabra! Avisamos-te pela última vez. Nunca mais queremos ver a tua cara na nossa cidade.
Madame Alain era apoiada por um coro irado de concórdia por parte das suas vizinhas; apenas com Madame Greves a fazer um apelo à calma. A jovem
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murmurou uma resposta furiosa, com o rosto marcado por lágrimas rebeldes.
Madame Alain aproximou-se, cuspindo mais insultos, espetando o dedo sob o nariz da jovem, que deu um passo atrás afastando a mão de Madame Alain. Para horror de
Miri, a mulher começou a agredir a jovem grávida, dando-lhe bofetadas e puxando-lhe o cabelo.
Esquecendo tudo o que prometera à irmã, Miri desmontou de Willow. Agarrando o freio do pónei, olhou fixamente para um dos seus grandes e meigos olhos.
- Espera! - ordenou e depois correu na direção do grupo de mulheres. Quando Miri chegou junto do local da agitação, a jovem tinha procurado
refúgio na base da estátua da praça. Enrolara-se numa posição protetora com o seu xaile multicolorido sobre a cabeça enquanto Madame Alain lhe espancava as costas.
As outras mulheres aglomeravam-se à sua volta, incitando-a, exceto Madame Greves, que procurava travá-la, puxando-lhe pelo avental. Miri carregou de rompante, afastando
as mulheres do seu caminho. com o braço prendeu o pescoço de Madame Alain e puxou-a para trás, afastando-a da jovem caída.
- Parai com isso - guinchou ao ouvido da mulher. - Perdestes completamente a cabeça -
Madame Alain resmungou, lutando para se libertar do braço de Miri, que fez rodar a mulher com uma força proveniente do desespero e afastou-a com um empurrão. A mulher
cambaleou e caiu violentamente sobre as nádegas. Cuspindo pragas furiosas, procurou arranjar a saia em desalinho num esforço para se levantar.
Embora o seu coração batesse forte no peito, Miri manteve-se de pé junto da jovem de cabelo cor de areia, apertando-lhe os punhos. - Afastai-vos. Todas vós. A primeira
pessoa que puser as mãos nesta criança terá de haver-se comigo.
Josephine Alain voltou a pôr-se de pé, pronta para se lançar sobre Miri, mas foi contida por duas das suas vizinhas.
- Deus do céu, Josephine. Não vês quem é - É a Miri Cheney.
O nome de Miri foi sussurrado através do enxame de mulheres, com os rostos a refletirem níveis variados de medo, cautela e espanto. Embora Madame Alain se tivesse
libertado das mãos que a retinham, acabou por recuar com um olhar fulminante.
Miri sentiu o súbito silêncio como perturbador. Ficou aliviada quando Madame Greves conseguiu arranjar coragem para se aproximar e ajudar. Pegando
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na jovem suavemente pelo cotovelo, Madame Greves ajudou-a a pôr-se de pé. Logo que a jovem recuperou o equilíbrio, afastou as mãos da mulher.
- Deixa-me sozinha, maldita. Eu estou bem.
Madame Greves, chocada, abriu os olhos inocentes e afastou-se apressadamente. A jovem parecia confundida, mas estava incólume. Miri respirou profundamente. Ao precipitar-se
no meio desta situação, não tinha a certeza do que fazer a seguir. Tinha a perfeita e dolorosa noção de não ter nem a aura de calma de Ariane nem os modos régios
de Gabrielle.
Estava muito mais inquieta pela perspetiva de ter de se dirigir a esta multidão de mulheres hostis do que estivera ao lutar abrindo caminho por entre elas. Dobrando
os braços defensivamente à sua frente, exigiu, naquilo que esperava ser um tom autoritário: - Alguém me pode explicar o que se passa aqui ?
- Não é da vossa conta, Miribelle Cheney. - Alguns fios de cabelo grisalho desprendiam-se do carrapito de Madame Alain, com o vento a agitá-los sobre um rosto que
outrora fora bonito. O ódio ensombrava-lhe a face numa expressão perversa.
- Receio bem que, quando mulheres adultas correm enlouquecidas para atacar uma jovem inocente, o assunto também passa a ser meu. Mais a mais quando ela está em estado
avançado de gravidez.
- Inocente - - berrou Madame Alain. - Carole Moreau não é mais do que uma pequena cabra, que abre as pernas a qualquer marinheiro que chega ao porto.
- Oh, estás preocupada que eu não deixe nenhum para ti - retrucou Carole.
- O quê? Minha pega. - Madame Alain precipitou-se de novo sobre ela, mas Miri bloqueou-lhe o caminho, impedindo-a com um olhar feroz.
Madame Alain gritou para a jovem sobre o ombro de Miri: - Avisámos-te várias vezes para não apareceres por aqui a pavonear esse bastardo que cresce na tua barriga,
em frente de mulheres decentes.
- Tenho tanto direito de estar aqui como todos os outros - clamou Carole, fulminante, mas com o lábio a tremer-lhe.
- Devias ficar em casa e esconder a tua vergonha.
- Eu diria que a vergonha cabe muito mais ao homem que se aproveitou de uma rapariga tão jovem - disse Miri, friamente.
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- Oh, não, menina Cheney - gritou outra mulher, loura e robusta. - Carole é mesmo uma criatura malvada. Sempre a rogar-nos pragas. Outro dia fez o meu leite coalhar.
Os seus olhos irradiam verdadeiro mal.
Várias das outras mulheres acenaram as cabeças em anuência e benzeram-se.
Miri abanou a cabeça, incrédula. - Desde quando é que as mulheres da ilha Encantada começaram a acreditar em coisas tão disparatadas como olhos malvados? Meu Deus!
Eu vi a minha dose de loucura e crueldade no resto
do mundo, mas esta ilha foi sempre um lugar de abrigo, especialmente para mulheres que se confrontaram com incompreensão e abuso noutros lugares. Fomos habituados
a tratar os outros com respeito. O que aconteceu à nossa bondade, à nossa compaixão?
Miri apelou a uma mulher de cada vez, fitando os seus olhos profundamente. Muitas baixaram a cabeça e desviaram o olhar. Só Madame Alain falou.
- Haveis estado fora muito tempo, Miri Cheney. Nada correu bem para esta ilha desde os assaltos de le Balafre e dos seus caçadores de bruxas. As pessoas do continente
têm medo de vir à ilha, o nosso comércio está praticamente arruinado. A minha própria família foi particularmente atingida, o nosso negócio de olaria faliu e o meu
marido morreu de desgosto e deixou-me seis filhos para eu defender da fome. E tudo isto é culpa das vossas irmãs por terem atraído sobre nós a ira daquele amaldiçoado
caçador de bruxas e do rei de França.
Miri sentiu o calor subir-lhe às faces, mas respondeu calmamente: - As minhas irmãs não são traidoras nem bruxas. Lamento muito os vossos problemas, madame, mas
se quiserdes culpar alguém, culpai-me a mim. Foi erro meu ter confiado tanto no homem errado e não ter detido le Balafre quando o pude fazer.
Embora Miri se desprezasse por isso, ainda agora não conseguia pensar nele como o pavoroso le Balafre, mas apenas como Simon... Simon Aristide.
- Ah, mas eu culpo-vos - disse Madame Alain. Embora as outras mulheres olhassem desconfiadamente de soslaio para Miri e Madame Greves procurasse fazer calar a sua
amiga, Madame Alain aproximou-se. Miri podia sentir a carga de animosidade da mulher como uma onda negra e quente.
- Embora aqui mais ninguém tenha a coragem de vo-lo dizer, não sois mais bem-vinda a esta ilha do que essa pequena pega que estais a proteger.
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- Lamento que penseis assim. Mas a ilha encantada é o meu lar, tal como o é da Mademoiselle Moreau. Nenhuma de nós vai para qualquer outro lado. - Miri enfrentou
o olhar ameaçador da mulher sem hesitar.
Madame Alain foi a primeira a desviar os olhos, murmurando: - Veremos isso.
Afastou-se atravessando a praça, com as outras mulheres atrás.
Só Madame Greves ficou mais um pouco. Puxando os fios da sua touca, olhou seriamente para Miri. - Não deveis deixar Josephine apoquentar-vos, madame. Ela tem vivido
tempos difíceis e muitas vezes diz coisas que não sente.
- Madame Alain só disse o que todos os outros pensam.
- Nem todos. - Madame Greves aventurou-se a tocar a manga de Miri. - Provavelmente acreditais que todos nós esquecemos o bem que outrora a vossa família trouxe à
ilha Encantada. Mas muitos de nós recordamos os velhos tempos e regozijamo-nos por ter a nossa senhora de volta entre nós.
- Oh, não, madame - clamou Miri. - Eu não sou a Senhora da Ilha Encantada. Essa é a minha irmã Ariane.
- Bem sei, minha querida. Uma senhora tão sábia e bondosa, Madame Ariane, uma verdadeira curandeira. Rezo para que um dia ela possa ser-nos restituída. Mas o vosso
dom de curar os pobres animais é tão grande como o dela a ajudar os enfermos. Todos ouvimos falar sobre como haveis conseguido ressuscitar a vaca dos Pomfrey.
- Não, não! Não estava morta, apenas muito doente. Foi... foi...
- Um milagre! - Madame Greves sorriu-lhe. - Tendes uma magia poderosa. A vossa reputação está a espalhar-se e já é conhecida no continente. - A pequena mulher suspirou
em tom conspirador. - Decidimos chamar-vos a nossa Senhora da Floresta.
O coração de Miri afundou-se em pavor. A Senhora da floresta - Oh, que maravilha. O que dizer da sua promessa a Ariane para não atrair as atenções e ainda só estava
em casa há seis meses. Antes que pudesse convencer Madame Greves de que a cura da vaca não fora mais do que a prática na criação de animais domésticos, foi interrompida
pela voz estridente de Madame Alain que se fazia ouvir pela praça.
- Laurette!
Ao reparar que a amiga tinha ficado para trás, acenou-lhe imperativamente. Madame Greves afastou-se de Miri, esboçando uma profunda vénia.
- Bem, eu só queria que soubésseis tudo isto, minha senhora.
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- Bem-haja, mas eu não sou senhora. Sou apenas...
Mas Madame Greves já se tinha afastado, apressando-se atrás das outras mulheres. Miri suspirou. Apesar da bondade de Laurette Greves, não teve pena de vê-la afastar-se;
ficara tão desconfortável com a adoração da mulher como com a hostilidade de Madame Alain.
Agora que a altercação tinha terminado, Miri experimentou o inevitável rescaldo que sempre sentia na sequência de qualquer surto de violência. Um tremor percorreu-lhe
o corpo, sentindo os nervos à flor da pele, como se fossem delicadas cordas de uma harpa que tivessem sido dedilhadas por mãos rudes, forçadas a tocar notas dissonantes.
Envolveu o corpo com os braços, dirigindo o olhar para onde Willow pacificamente pastava alguma erva. Apetecia-lhe lançar-se sobre a garupa do pónei e retirar-se
para a solidão das suas florestas até recuperar o sentido da harmonia. Quase já esquecera a presença de Carole quando ouviu a jovem resmungar ao seu lado.
- Diabos levem aquele bando de vagabundas. Quase rasgaram o meu xaile e a minha grand-mère fê-lo especialmente só para mim antes de morrer. Se eu pudesse amaldiçoar
aquele bando de desgraçadas, fazia-o num abrir e fechar de olhos e fazia-lhes crescer verrugas nos narizes e furúnculos nos rabos gordos.
O lábio de Carole estremeceu enquanto sacudia uma mancha de poeira da bainha do seu adorado xaile. Mas quando se apercebeu de que Miri se voltara a olhar para ela,
fez girar o xaile sobre os ombros e ergueu o queixo num ângulo agressivo. As sardas contrastavam fortemente com a sua pele pálida, uma nódoa negra estava a formar-se
sob um olho e as faces estavam ainda marcadas pelos traços das suas lágrimas. O seu rosto era dolorosamente jovem e a expressão nos seus olhos azuis bravios era
demasiado madura.
- Suponho que queirais que eu vos agradeça por teres vindo em minha defesa - disse a contragosto. - Mas não era preciso. Sei tomar conta de mim.
- Tenho a certeza de que sabes, mademoiselle. - Outra mulher poderia ter ficado desconcertada pela truculência da jovem, mas Miri estava demasiado acostumada a ser
repelida por grunhidos de animais feridos em liberdade, arreganhando os dentes para mascarar a dor e o medo. A longa experiência havia ensinado a Miri quando era
seguro tocar-lhes e quando era melhor esperar. Puxou o seu lenço do cinto e estendeu-lho.
Carole olhou para o pedaço de linho, desconfiada. - Para que é isso? Eu não estou a chorar. - com as costas da mão enxugou as faces húmidas.
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- Claro que não estás, mas estás a sangrar. Cortaste o lábio.
Carole espetou a língua, encolhendo-se enquanto procurava sentir o canto da boca. com relutância pegou no lenço de Miri e pressionou-o levemente no lábio.
- Também não sou uma prostituta. Diga o que disser Madame Alain.
- Nunca pensei que o fosses - disse-lhe Miri delicadamente.
- Não houve muitos marinheiros, só um. E o Raoul disse que me amava, que casaria comigo e me compraria um belo vestido azul. - A sua fina garganta movia-se como
se lhe fosse difícil engolir. - E depois ele partiu e nunca mais voltou e... o diabo que o leve. Lancei-lhe uma praga e espero que ele caia ao mar e os tubarões
o desfaçam em pedaços. - A jovem levantou a cabeça em desafio. - Aí tendes! Agora suponho que me direis como sou má e que é cruel dizer estas coisas.
- Não, é perfeitamente compreensível que te possas sentir assim. - A resposta de Miri mereceu o olhar cuidadoso da jovem. Carole inclinou a cabeça para o lado como
se não soubesse o que fazer de Miri. - Tens a certeza de que estás bem? - perguntou Miri apreensivamente. - Talvez devesses ir para casa e deixar que a tua mãe...
- A minha mãe morreu no inverno passado. Agora vivo com os meus tios, mas só porque eles nunca conseguiram ter filhos. Se eu tiver um rapaz, eles adotam-no e deixam-me
ficar.
- E se for uma menina?
- Oh, acho que eles tencionam expulsar-nos às duas. - Carole encolheu ligeiramente os ombros como se tentar adivinhar o desfecho não fosse muito importante para
ela, de qualquer maneira.
Miri teve de dissimular o seu choque e consternação, incapaz de imaginar a crueldade destas pessoas que deviam ter cuidado desta jovem, acalmado os seus medos, reconfortando-a.
A família de Miri fora sempre tão carinhosa, tão afetiva. Não conseguia imaginar nada que pudesse fazer de suficientemente mau ao ponto de a tornar indigna do seu
amor e do seu perdão.
O seu coração estava com Carole, mas para Miri sempre fora difícil comunicar com estranhos. Disse, quase com timidez: - Carole, confesso que sei mais sobre a criação
de éguas do que sobre uma jovem prestes a dar à luz uma criança. Se houver alguma coisa, seja o que for, que eu possa fazer, gostaria de te ajudar. O meu nome é
Miri Cheney.
Hesitante, Miri estendeu-lhe a mão. Uma expressão melancólica atravessou o rosto de Carole. Miri duvidou que a jovem tivesse sentido muitos gestos
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de bondade na sua vida, pelo menos ultimamente. Fitou os olhos de Miri durante um longo momento, para depois piscar os olhos e retroceder, endurecendo o seu caráter
juvenil.
- Oh, todos sabem quem sois na ilha Encantada, minha Senhora da Floresta. Obrigada pela vossa oferta, mas não tenho nenhuma vaca doente nem nenhum coelho com moléstia
que precisem de cuidados. Contaram-me tudo sobre vós, uma meia-bruxa demasiado assustada para usar os seus reais poderes e conhecimentos.
- Não sei quem andou a dizer-te tais coisas, mas de modo algum me considero uma bruxa. Sou uma Filha da Terra, nem mais nem menos.
- É exatamente isso o que quero dizer - sorriu Carole, com desdém. - Não, menina Cheney, não preciso da ajuda de ninguém como vós ou de qualquer outra pessoa nesta
ilha miserável. Eu tenho amigas, amigas muito poderosas que irão olhar por mim.
Miri desejou que assim fosse, mas temia estar apenas perante a vã fanfarronice de uma rapariga, agarrada à sua derradeira réstia de orgulho.
- Carole - começou Miri, mas a jovem lançou-lhe um olhar desdenhoso e afastou-se. Apesar de se mover desajeitadamente, caminhou rapidamente pela praça.
Miri começou a persegui-la, para se deter pouco depois, sem saber que mais poderia fazer ou dizer. Procurar tocar o coração de uma rapariga magoada era muito mais
complicado do que tratar da fratura de uma pata de raposa ou de texugo. Sem nada poder fazer, Miri viu Carole desaparecer por uma das vielas. Desejava ardentemente
que Ariane estivesse ali. A sua irmã mais velha era tão dotada a acalmar águas turbulentas ou a aplicar bálsamo em almas magoadas.
Até mesmo Gabrielle teria sabido melhor como lidar com Carole. Havia algo acerca da rapariga que recordava comoventemente Miri de como era Gabrielle enquanto jovem,
sempre tão lesta a esconder as suas feridas sob uma aparência dura, afastando quem quer que quisesse confortá-la. Mas Gabrielle estava tão longe quanto Ariane. A
família de Miri dispersou em direções opostas, a muitos quilómetros da ilha que outrora fora o seu lar.
Miri comovia-se com o inexplicável e cruel capricho da natureza que levava Carole Moreau a ter de suportar o fardo de um bebé indesejado, enquanto Ariane, que tanto
desejara um filho, permanecia estéril. Mas a sua irmã encarava o facto com coragem, alegrando-se genuinamente de cada vez que ajudava outras mulheres durante o parto,
mais especialmente quando assistira a Gabrielle.
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No seu casamento feliz com o capitão Remy, nestes últimos anos Gabrielle amadurecera e procriara três filhas até agora, gerando bebés quase tão facilmente como criava
as suas pinturas e esculturas que constituíam o seu muito próprio sinal especial de magia.
Ariane resignara-se ao seu destino sem filhos e, com o profundo conforto que retirava do amor do seu marido, Renard, era feliz.
Tentou não aprofundar os pensamentos sobre as suas irmãs. O seu coração sentia muito a falta delas. Tinha sido opção sua regressar à ilha Encantada, mas Miri começava
a sentir que fora o maior erro que já cometera - depois de confiar em Simon.
A ilha Encantada ainda se parecia muito tal como dela se recordava, o porto rochoso onde uma vez ficara ansiosamente à espera que o barco do seu pai regressasse,
as mesmas florestas escuras e profundas para onde ia procurar fadas. Port Corsair ainda era igual, com a sua velha estalagem, a fila de lojas em madeira e vielas
poeirentas onde antes caminhava timidamente atrás das irmãs mais velhas.
Mas aquelas vielas de que se recordava com tanto bulício e com as mulheres que carregavam os seus cestos para o mercado, tagarelando e rindo, estavam nesta tarde
de verão quase todas desertas e isso não se devia apenas ao tempo ameaçador. Havia tantos rostos familiares ausentes: Madame Paletot, a dotada ferreira de espadas;
a velha boticária, Madame Jehan; as irmãs Jourdaine, hábeis tecelãs. Todas elas talentosas e inteligentes, acusadas de feitiçaria, ora condenadas ora obrigadas a
fugir para salvarem as suas vidas, como sucedeu com Ariane e Gabrielle.
As mulheres que ficaram fecharam-se nas suas vidas, tratando das suas famílias e cuidando dos seus jardins. Miri desconhecia o que viria encontrar na ilha Encantada
após uma ausência de dez anos, mas não esperava certamente esta atmosfera de medo e desconfiança. Era como se uma garrafa tivesse sido desarrolhada e libertado um
miasma negro que roubara o espírito da própria ilha.
A ilha Encantada sempre fora maioritariamente povoada por mulheres, as mulheres de pescadores e marinheiros que partiam para o mar. Mas também havia viúvas e solteiras
que encontravam na ilha Encantada um refúgio, um lugar único onde podiam prosperar e exercer ofícios que noutros locais estavam proibidos ao sexo feminino. No entanto,
Miri não era suficientemente ingénua para relembrar a ilha como um local idílico. Não, as mulheres enquanto mulheres tinham partilhado a sua parcela de desavenças
e querelas.
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Mas nada como a cena horrível que Miri testemunhara naquela tarde. Era irónico que tal violência pudesse ter lugar perante a estátua que homenageava as melhores
qualidades de uma mulher, sensatez, compaixão e capacidade de cuidar dos enfermos.
Miri deteve o olhar no monumento que representava uma mulher dócil com as roupas ondulando ao vento e os braços estendidos. Faltava-lhe uma das mãos que se partira
e o rosto estava esmagado, completamente desfigurado. A respiração de Miri prendeu-se-lhe no peito. Não sabia se o vandalismo fora obra dos caçadores de bruxas,
dos soldados do rei ou até da gente da aldeia enfurecida. O pedestal que costumava estar repleto de ramos de flores estava agora coberto por ervas daninhas.
"Devia ter feito alguma coisa sobre isto há muito tempo", pensou, com sentimento de culpa. Mas tinha evitado firmemente passar por esta parte da cidade desde que
regressara, a visão da estátua desfigurada era demasiado dolorosa.
Ajoelhou-se e arrancou obstinadamente tufos de ervas daninhas até destapar a inscrição na base. "Evangeline... Nossa Senhora da Ilha Encantada."
- Mamã - suspirou Miri. com uma dor no coração, passou os seus dedos pelas letras gastas. Tinha apenas onze anos quando a mãe falecera e o povo da ilha erigira este
monumento em sua memória. O conhecimento que Evangeline tinha dos velhos costumes e a sua sabedoria na preparação de remédios salvaram toda a ilha da devastação
da peste.
Mas a estátua também homenageava as gerações de sábias mulheres anteriores a ela. Sempre houvera uma Senhora da Ilha Encantada, conselheira, protetora e curandeira
com as suas aliviadoras magias. Pelo menos até Ariane ter sido forçada ao exílio.
O marido de Ariane, outrora o conde de Renard, sempre tivera o hábito de dizer: "Há uma linha fina que separa a proclamação de uma mulher como santa ou como feiticeira."
O seu poderoso cunhado provara ter razão em mais do que uma ocasião, tal como Ariane tivera ao aconselhá-la a não regressar à ilha Encantada.
- Devia ter-te escutado, Ari - murmurou Miri.
Miri ainda estava bastante surpreendida por Ariane não se ter esforçado mais para impedir o seu regresso. Ariane sempre fora notoriamente protetora das suas irmãs
mais novas. O exílio fora duro para todas elas, mas Miri sentia-se como se fosse a única a nunca ser capaz de se adaptar às mudanças.
Era como uma dessas pequenas flores brancas silvestres que cresciam do lado mais agreste da ilha, incapazes de ganhar raiz em qualquer outro local.
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Agarravam-se à vida, com os rebentos ainda verdes, mas as pétalas não voltavam a brotar. Procurara dissimular a sua infelicidade, mas nunca houvera uma Ariane enganadora.
A Senhora da Ilha Encantada era por demais dotada na antiga arte das mulheres lerem os olhos.
Fosse o que fosse que tivesse lido nos olhos de Miri, Ariane tinha acabado por consentir no seu regresso à ilha. À medida que encaminhara Miri para o barco, procurara
sorrir-lhe por entre as lágrimas.
"Boa sorte, irmãzinha. seja o que for que procuras, espero que encontres." "Não estou à procura de nada, Ariane", protestara Miri, "só quero ir para casa." Casa...
um nó na garganta de Miri. Quando arrancou as últimas ervas daninhas do monumento da mãe, imaginou se ainda haveria um lugar assim. Não com a mãe morta e as irmãs
bem longe. Quanto ao pai, todas as esperanças quanto ao regresso de Louis Cheney tinham morrido um ano antes quando recebera notícias de que o seu barco naufragara
na costa do Brasil. O Evangeline naufragara durante uma tempestade, arrastando consigo todos a bordo.
Sem a sua família, a ilha era um sítio solitário e desolado. Mas se Miri não pertencia à ilha Encantada, então não pertencia a lado algum. Sentia-se como se nada
mais fosse senão um fantasma a vaguear por uma terra que lhe fora tão familiar, mas que agora já nada lhe dizia. A sensação poderia ter sido absolutamente insuportável
se não fosse um pequeno consolo. Ela não era a única alma assombrada na ilha Encantada.
O Convento de Santa Ana estava situado no alto da cidade, numa ligeira elevação da colina. Mas os sinos que chamavam as irmãs para a oração há muito que se tinham
silenciado; as imponentes construções estavam agora desoladas e vazias sob o céu cinzento e pesado. O convento fora fechado há muitos anos e as irmãs dispersas por
outras ordens, pelo menos aquelas que tiveram a sorte de não ser acusadas de heresia e feitiçaria.
O único sinal de vida era o fumo que saía pela chaminé da casa da vigilante, aninhada junto às paredes do convento. Era aí que o outro fantasma da ilha Encantada
vivia - Marie Claire Abingdon, a outrora formidável abadessa do convento e grande amiga de Evangeline Cheney.
A casa tinha uma aparência bastante humilde para uma mulher que detivera tanto poder, filha de uma poderosa família aristocrática, acostumada a impor as elegâncias
da vida. Mas Marie Claire conseguira tornar a casa sua, com tapetes entrançados e coloridos espalhados sobre o chão de pedra tosca
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e as prateleiras, que antes teriam suportado a louça de camponeses, agora repletas com os seus livros. Num canto da sala havia uma grande gaiola com os seus dois
grandes corvos domesticados que grasnavam e alisavam as suas sedosas penas.
Uma aconchegante lareira e um castiçal com velas contribuíam muito para dissipar a tristeza do dia. Embora o vento uivasse e fizesse estalar as ardósias do telhado,
Miri sentia-se confortável e segura, sentada junto à pequena mesa de Marie Claire perto da lareira. Tal como Ariane, Marie Claire possuía uma aura tranquilizadora,
embora Miri ainda estranhasse ver a mulher sem o seu hábito.
A ausência da larga túnica e da touca fazia com que Marie Claire parecesse algo mais pequena e vulnerável. A idade avançada começava a fazer-se notar nela, os cabelos
brancos e finos, uma postura ligeiramente dobrada, mas a sua fisionomia ainda refletia as marcas de força que tinham levado um bispo exasperado a rotulá-la de "demasiado
obstinada para uma freira".
Enquanto Marie Claire preparou uma simples refeição de pão e queijo que retirou do seu aparador, Miri relatou-lhe os tristes acontecimentos que presenciara na praça
durante a manhã. Marie Claire ouviu solenemente, mas um estranho sorriso bailou nos lábios da mulher quando Miri disse: - ... e aquelas mulheres estavam tão iradas,
tão irracionais, especialmente Madame Alain. Eu não tenho nada de modos autoritários como Ariane. Não faço a mínima ideia como hei de persuadi-las a compadecerem-se.
- Não fazes - Marie Claire lançou-lhe um olhar profundo. - São esses teus olhos misteriosos, meu anjo. Fazem brilhar uma luz forte no recanto mais escuro da alma
de uma pessoa. Fazem com que os outros se sintam envergonhados e queiram fazer melhor.
Miri abanou a cabeça perante aquilo que conseguia apenas julgar como desprovido de qualquer sentido. - Contudo, aconteceu, fiquei aliviada por salvar Carole de uma
valente sova. Embora isso fosse tudo o que consegui fazer por ela - acrescentou, com remorsos.
- Sim, ela é uma pequena criatura bastante agressiva - disse Marie Claire enquanto colocava a comida na mesa.
Miri olhou para a quantidade de pão e queijo que Marie Claire lhe colocou no prato e duvidou que fosse capaz de sequer comer metade. Nunca tinha muito apetite, mas,
para agradar a Marie Claire, deu uma dentada num pedaço de pão.
Enquanto Marie Claire enchia duas canecas de estanho com um encorpado vinho tinto, observou: - Eu própria avisei Carole muitas vezes. Fazia
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muito melhor se ficasse sossegada em casa e mantivesse calada a sua língua afiada.
- Foi para isso que as Filhas da Terra vieram para esta ilha? - perguntou Miri, tristemente. - Para viverem sossegadas, manterem-se caladas e procurarem ser invisíveis?
Surpreendeis-me, Marie. Nunca foi assim que vos haveis comportado.
- Pois não, e vê ao que me conduziu.
- Arrependeis-vos do modo como vivestes a vossa vida?
- Minha filha, uma mulher não chega à minha idade sem ter alguns arrependimentos. - Marie Claire suspirou enquanto se sentava na cadeira em frente de Miri. - Receio
ter sido sempre demasiado teimosa. Primeiro revoltando-me contra os esforços dos meus pais para me casarem com um qualquer aristocrata idiota. Depois, como abadessa,
desafiando o arcebispo, insistindo em dirigir Santa Ana de acordo com os meus termos, lendo livros que a Igreja tinha claramente proibido. Estarei eu arrependida
por não ter feito mais esforços para refrear o meu intelecto, para ser mais dócil e obediente?
A boca de Marie Claire curvou-se num sorriso irónico. - Não, não completamente, embora eu pense que podia ter aprendido a ser um pouco mais... diplomática e discreta.
Isso foi tudo o que tentei ensinar a Carole, que por vezes é melhor ter cuidado.
Lançou o seu olhar astuto sobre Miri. - O mesmo conselho que te daria, minha Senhora da Floresta.
Miri erguera o seu copo para beber um pouco, mas voltou a pousá-lo bruscamente. - Oh, meu Deus, haveis ouvido falar nisso. Deveis ter estado a falar com Madame Greves.
- com Madame Greves e com outras mais. Puseste a ilha a falar de ti quando recuperaste a vida à vaca dos Pomfrey.
- Não fiz tal coisa. Na verdade, a vaca estava inconsciente, mas reanimá-la não foi um grande feito.
- Não foi um grande feito!... Miri, eu sei que o pobre animal sofria da febre do leite, que muito bem se sabe que é uma doença incurável.
- Não seria - ripostou Miri, indignada - se o mundo não se tivesse tornado um lugar tão supersticioso e ignorante no qual as pessoas receiam consultar os antigos
textos que mulheres sábias compilaram há séculos. Mas não, aplico um simples procedimento e sou logo suspeita de ser uma bruxa.
Ergueu as mãos em apelo. - Mas que mais podia eu fazer, Marie? Os Pomfrey são gente pobre. Não iriam suportar o prejuízo de perder aquela
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vaca. Deveria eu ter recusado ajudar e deixar o pobre animal morrer? E com ela um filhote bezerro.
Marie Claire suspirou. - Não, tu não podes recusar ajuda a uma criatura doente, tal como Ariane não podia voltar as costas a uma criança em sofrimento. Simplesmente,
sê tão cuidadosa quanto puderes e lembra-te de que ainda tens inimigos poderosos.
- Se vos referis à Rainha das Trevas, os seus conflitos eram com Ariane e Gabrielle. Duvido que ela sequer se recorde da existência de uma terceira irmã Cheney.
- Crê em mim, minha querida, Catarina de Médicis tem uma memória longa. Nunca esquece ninguém ou nada que possa significar uma ameaça ao seu poder.
- Isso dificilmente corresponde ao que sou. A Rainha das Trevas teria muito mais razão para desconfiar de vós, Marie. Fostes vós quem conseguiu introduzir um espião
na sua própria corte.
- Já foi há muito tempo. Agora sou uma velha mulher sem poder ou consequência. A maior parte das pessoas julga-me morta há muito tempo.
- Perdoai-me, Marie - disse Miri, hesitantemente. - Mas duvido que o vosso disfarce tenha enganado alguém. Pelo menos não aqui, na ilha Encantada.
- Não, a maioria dos habitantes sabe perfeitamente quem sou, mas tolera a minha presença. Até o padre Benedict nada diz quando me arrasto até à sua igreja para ouvir
a missa. Mas ele é um jovem bondoso, um bom pastor que prefere persuadir um cordeiro teimoso a voltar ao curral do que vê-lo abatido por se ter transviado.
Marie Claire sorriu e engoliu um longo trago de vinho, mas havia claramente alguma coisa a pesar-lhe no pensamento, algo que deixava Miri inexplicavelmente apreensiva.
Durante alguns momentos, em silêncio, Marie Claire fez deslizar o seu dedo ao longo da beira do copo. - Miri... Hesitei muito em dizer-te isto antes de ter a certeza,
mas recebi outra mensagem de uma amiga, uma mulher sábia que vive em Saint-Malo.
Marie Claire fez uma pausa e expirou profundamente antes de dizer: - Ele voltou.
Não era preciso Miri perguntar a quem Marie Claire se referia. O estômago apertou-se-lhe tanto que lhe doeu. Apertou os braços à sua volta.
- S... Simon Aristide? - balbuciou. - Mas há anos que não se houve falar dele.
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- No entanto, foi visto a rondar na Bretanha. le Balafre é uma figura demasiado singular para poder ser confundida. Parece que viaja sozinho, sem nenhum exército
de caçadores de bruxas atrás dele, mas isso não o torna menos perigoso.
- Nem precisais de mo dizer - ripostou Miri olhando os seus pés, lutando por dissimular o nervosismo. Dirigiu-se até à gaiola e lançou alguns pedacitos do seu pão
através das barras. com um bater de asas, os corvos desceram do poleiro e bicaram avidamente as côdeas com os seus longos bicos.
Aves lobos... era outro nome para os queridos pássaros de Marie Claire. Predadores.
Tal como Simon.
Exceto que isso nem sempre fora verdade. O pensamento de Miri transportou-a até uma remota noite, no alto de um acidentado penhasco, no meio de um majestoso círculo
de gigantes de pedra à luz de tochas. Os ventos noturnos agitavam os negros cabelos encaracolados sobre a testa de Simon, um contraste desconcertante com a sua pele
cor de leite... o mais belo rapaz que ela alguma vez vira.
"Pensava que todos os caçadores de bruxas eram velhos e feios", dissera num tom aturdido e Simon exibira o seu sorriso irrepreensível.
"É estranho. Sempre pensei o mesmo sobre as bruxas."
"Mas eu não sou uma bruxa."
"Eu nunca disse que o éreis", respondera ele em tom amável.
E, de facto, Simon não o fizera... pelo menos naquela altura. Ao dar-se conta de que Marie Claire se lhe dirigia, Miri afastou as suas perturbadoras memórias.
- ... e talvez agora entendas por que me preocupa tanto a reputação que estás a ganhar como Senhora da Floresta. Receio que Simon Aristide nunca tenha desistido
de procurar a tua família desde que todos vós fugistes da ilha Encantada. Não que tenha medo de ele poder magoar-te. Ele sempre alimentou uma certa ternura por ti.
- Ternura? O homem não é capaz de ter essas emoções, embora uma vez... - A voz de Miri esmoreceu. Uma vez ela acreditara que havia muito de bom para ser descoberto
em Simon, que ele estava apenas perdido, mal-aconselhado, magoado. Se tivesse conseguido arrancá-lo à escuridão em que vivia, poderia tê-lo curado. Mas a sua experiência
com animais feridos, à solta na natureza, levara-a ao doloroso reconhecimento de que algumas
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criaturas estavam feridas muito para além da sua aptidão para ajudar, quando tinham um olhar opaco e vazio. Ela vira esse olhar no rosto de Simon. O homem já não
tinha alma.
Quando acabou de dar o resto do seu pão aos ávidos corvos, Miri percebeu o completo significado das palavras de Marie Claire. Voltou-se para olhar atentamente para
a mulher mais velha. - Se não tendes medo que Simon me magoe, então o que receais?
Marie Claire moveu-se desconfortavelmente, evitando os olhos de Miri, mas esta lia demasiado bem os seus silêncios. Sentiu o sangue subir-lhe às faces, num fluxo
quente de culpa e vergonha.
- Receais que, se os nossos caminhos se cruzarem, não serei suficientemente forte para não confiar em Simon. É perfeitamente compreensível. Eu pus a minha família,
vós, toda esta ilha em risco porque acreditei nele - engoliu em seco. - Fui até insensata ao ponto de pensar que o amava.
- Oh, minha querida. - Marie atravessou a sala e pegou meigamente nas mãos de Miri. - Isso não foi insensatez. É uma grande virtude tentar descobrir o que há de
melhor nas pessoas. Ninguém é completamente negro no coração, nem mesmo Aristide.
- Como podeis falar em sua defesa? - chorou Miri. - Depois de tudo o que ele vos custou, o fecho da abadia, a vossa posição, quase a vossa vida?
- Não foi tudo obra de Aristide. A Igreja nunca se importou com mulheres insolentes e receio que as irmãs de Santa Ana tenham sido sempre demasiado independentes
do arcebispo. Há muito que sua eminência queria dispersar a nossa ordem.
- E a caça às bruxas de Simon proporcionou-lhe um pretexto.
- Sua eminência nunca precisou realmente de um. E no que a Aristide diz respeito, em vez de pôr em perigo a minha vida, salvou-a.
- O que quereis dizer?
- Nunca imaginaste como consegui fugir de Santa Ana com o sítio cercado por caçadores de bruxas e soldados do rei? Foi apenas porque Aristide o permitiu, convocando
a guarda o tempo suficiente para eu poder fugir.
Miri pestanejou, algo surpreendida pela revelação de Marie Claire sobre este lado compassivo de Simon. Franziu as sobrancelhas, lutando por rejeitar a ideia. - Foi
apenas um erro descuidado da sua parte.
- Monsieur le Balafre não é homem dado a descuidos.
- Então... então devia estar à espera que, ao deixar-vos fugir, vós o conduzísseis até nós.
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- Então porque é que ele não fez qualquer esforço para me seguir? - contrariou Marie Claire.
- Não sei - respondeu Miri, lastimosamente, afastando-se. Já desperdiçara demasiado tempo e dores de cabeça a procurar compreender as contradições da sua convivência
com Simon Aristide, o rapaz que fora tão bondoso e gentil para com ela, que lhe parecera seu amigo. O jovem arrogante que a intimidou e ameaçou, avisando-a de que
tencionava liquidar o seu cunhado, que seria igualmente implacável com ela se porventura ousasse preveni-lo. Simon sempre odiara o conde de Renard, sob a suspeita
de que era capaz da pior das feitiçarias. Mas quando tivera a sua oportunidade de matar Renard, Simon desviara o tiro porque Miri se interpusera entre ambos.
Gabrielle sempre se queixara: "Porque não se decide o maldito homem a agir como um verdadeiro vilão e acabar com tudo?"
Miri concordava inteiramente com ela. Teria tornado muito mais fácil e bastante menos doloroso desprezá-lo.
Como que determinada em aumentar a confusão de Miri, Marie Claire prosseguiu: - Para dar ao demónio o que lhe é devido, há outra coisa pela qual estarei sempre grata.
Quando os mandados de prisão foram anunciados, ele teve muito cuidado para que o teu nome nunca aparecesse.
Miri endireitou-se. Marie Claire podia estar grata por isso, Ariane e Gabrielle também. Mas fora uma das ações de Simon que Miri sentia como mais imperdoável.
- Nunca sabereis o ressentimento que lhe tenho por isso - murmurou Miri - por as minhas irmãs, o meu bom cunhado Renard, vós e tantas outras mulheres nesta ilha
terem sido acusados de feitiçaria, enquanto apenas eu era poupada por um qualquer capricho de Simon.
Miri procurou dominar a sua revolta, a emoção que para ela era venenosa, mas fluiu por ela como uma maré negra. - Odeio-o - disse com veemente intensidade, como
se estivesse a procurar convencer-se a si mesma tanto como a Marie Claire. - Nunca odiei mais ninguém na minha vida, mas Simon forçou-me a detestá-lo. Odeio-o pelo
que fez à minha família, aos meus amigos e, acima de tudo, pelo que fez a esta ilha. Havia aqui um espírito vivo docemente bravio e Simon destruiu-o. Devia tê-lo
abatido naquela noite em Paris mas fui demasiado fraca. Porém, acreditai-me, se voltar a ter outra oportunidade, saberei como lidar com o vilão.
- Oh, calma, querida. - Marie Claire envolveu com as mãos o rosto de Miri e um olhar perturbado fez franzir a fronte da velha mulher. - Este não é o teu género de
conversa.
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- Não é - suspirou Miri, pensando o quão bem Marie Claire a conhecia e pensando também como já não se conhecia bem a si mesma. - Suponho que pareço a Carole a falar
e amaldiçoar o seu antigo amante. Foi a isto que Simon Aristide me reduziu, a estas horríveis emoções sombrias que me desfazem por dentro.
As lágrimas queimaram os olhos de Miri, que pestanejou ferozmente.
- É por isso que procuro nunca pensar nele.
- Então perdoa-me por ter mencionado o nome do homem. Fi-lo porque pensei que devias ser avisada. vou rezar muito para que os vossos caminhos nunca mais voltem a
cruzar-se. - Marie Claire limpou a única lágrima que caiu pela face de Miri. - Mas sinto realmente que devias deixar a ilha Encantada.
- Por causa do Simon?
- Não, porque nunca devias sequer ter voltado aqui.
Miri sorriu tremulamente, procurando gracejar. - O quê? Estais já tão farta da minha companhia, Marie?
Os olhos de Marie Claire enevoaram-se com um olhar pleno de tanta melancolia, tanta solidão, que tocou o coração de Miri. - Não, filha. Ter-te aqui trouxe-me o mundo
de volta. Mas esta ilha já não é lugar para ti. Só guarda memórias de um tempo que se foi para sempre.
- Para vós isso também é verdade - protestou Miri, mas Marie Claire limitou-se a abanar a cabeça com um sorriso triste.
- Sou uma mulher velha. Memórias são tudo o que me resta. Mas tu és muito jovem para viver no passado. - com um gesto terno e maternal, Marie Claire puxou para trás
uma madeixa desalinhada no cabelo de Miri.
- Podes não o ter pedido, mas eu dou-te o meu conselho. Deixa a ilha Encantada, regressa a Bearn e casa com o jovem que te adora.
Miri sentiu-se corar. - Pareceis a Gabrielle. com certeza que ela vos tem escrito a queixar-se das minhas tolices.
Ao contrário de Ariane, Gabrielle nem de longe ficara resignada ou disposta a compreender o desejo que Miri expressou de regressar à ilha Encantada. Foi aliás a
única observação capaz de fazer com que Gabrielle desviasse a sua atenção da última tela em que se encontrava a trabalhar.
"Estarás completamente louca, Miribelle Cheney-" com a agitação, Gabrielle gesticulou com o pincel, espalhando salpicos de tinta por toda a sala. "Porque havias
de querer voltar a um lugar onde vais ficar triste e só, para não dizer que possivelmente poderás ficar em perigo? Quando podias ficar aqui e casar com o homem que
foi teu devoto escravo desde
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que te encontrou - Lobo tem sido muito paciente, mas nenhum de vós está a ficar mais jovem, minha querida irmã. Ama-lo claramente, portanto, pelos céus, de que estás
à espera?"
Miri fora completamente incapaz de responder àquela pergunta. Procurou no interior da gola do seu vestido e puxou para fora um grande medalhão oval preso num fio
de prata, preenchendo o seu pensamento com a imagem do homem que lho oferecera. Um bravo maroto com cabelo cor de areia e olhos verdes penetrantes e traços fisionómicos
afiados... Martin, o Lobo, como gostava de se chamar. Miri era uma das poucas pessoas que o tratavam por Martin em vez de Lobo.
Nunca tinha aceitado uma oferta de qualquer outro homem para além do seu pai e aceitou com relutância que Martin lhe colocasse ao pescoço o caro medalhão. Martin
tinha jeito para o drama e era dado a proferir discursos flamejantes e apaixonados, mas desta vez desarmara completamente Miri com um olhar suplicante e duas simples
e suaves palavras.
"Por favor..."
Bastante timidamente, Miri mostrou o medalhão a Marie Claire. - Martin ofereceu-mo no dia em que nos separámos.
A superfície do medalhão estava gravada com a reprodução de um lobo a uivar à Lua. Miri pressionou o fecho, abrindo o medalhão para revelar um relógio em miniatura
encastrado no seu interior.
com os olhos semicerrados, Marie Claire observou as palavras gravadas na outra metade do medalhão. - Perdoa-me minha querida, mas a minha vista já não é o que era.
- Diz: "Teu até ao fim dos tempos."
- Ah! Um rapaz muito romântico, esse teu Martin.
Miri mordeu os lábios com remorsos. - Oh, sim, Martin é mesmo assim. Romântico, apaixonado e... com tanto vigor que às vezes chega a ser bastante cansativo. A vida
com ele seria sempre uma grande aventura e eu gosto muito dele.
Marie Claire olhou-a interrogativa. - E então?
Miri fechou o medalhão e voltou a colocá-lo no corpete do vestido com um profundo suspiro. - Já tive muito mais aventuras na minha vida do que queria. Eu preciso
de sossego, Marie. Por vezes acho que não fui talhada para ser a mulher de qualquer homem. - Soltou uma gargalhada irónica e indecisa. - Gabrielle sempre disse ter
medo de eu acabar como uma velha excêntrica a viver sozinha com dúzias de gatos. Sem dúvida de que tem razão.
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- Por falar em gatos! - soltou Marie Claire, endireitando-se rapidamente enquanto fitava um ponto atrás do ombro de Miri.
Quando Miri se voltou para ver o que espantara a velha mulher, viu um conhecido gato preto empoleirado no beiral exterior da janela, com o dorso arqueado em sinal
de desagrado pelo vento que lhe arrepiava o pelo.
- Necromante! - exclamou Miri. Correu para a janela e forçou a abertura do caixilho, deixando o seu gato saltar para dentro de casa. Necromante pousou graciosamente
sobre as suas quatro patas brancas como a neve, a única parte do seu corpo que não era negra como a noite. A chegada do gato pôs as aves de Marie Claire em alvoroço,
batendo as asas e grasnando tão alto que ela foi obrigada a colocar uma coberta sobre a gaiola.
Apesar da sua familiaridade com o gato de Miri, Marie Claire parecia um pouco desconcertada. - Deus me abençoe! Como chegou essa criatura até aqui, desde a tua casa
na floresta? E como é que ele conseguiu encontrar-te?
Miri fechou a janela e encolheu os ombros. Há muito que deixara de pensar sobre como Necromante conseguia fosse o que fosse. Mesmo para uma mulher como ela, que
respeitava a inteligência e as invulgares capacidades de que os animais frequentemente dão provas, Necromante era misterioso. Era velho, muito para além dos quinze
anos, na contagem humana. Já não era tão veloz como antes e o seu pelo começava a ficar fino junto às orelhas, mas ainda possuía a estranha capacidade de seguir
o rasto de Miri, onde quer que esta estivesse. Ela presumia que os supersticiosos considerariam o seu gato como família. Para Miri, ele era apenas um amigo de quem
muito precisava.
- Tu, velho tonto - ralhou-lhe ternamente, dobrando-se para o apanhar com os seus braços. - Estás a ficar muito velho para te esgueirares para tão longe.
Parou abruptamente quando Necromante escapuliu dela. com o pelo em pé, emitiu uma furiosa miadela.
- Oh, céus misericordiosos! - exclamou Marie Claire. - O que se passa com o animal?
Miri não respondeu, com a atenção concentrada em Necromante. Sentia uma estranha empatia com todas as criaturas da Terra, mas nunca tivera uma capacidade de comunicação
tão notória como com este pequeno gato. Necromante tinha-a alertado muitas vezes para a aproximação de perigo, salvando-lhe até a vida.
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Agachou-se, com o olhar fixo nos grandes olhos dourados do gato e com os pensamentos combinados com os do animal. O aviso por ele enviado fez aquietar o coração
de Miri.
Estás em grande perigo, Filha da Terra. Aquele que durante tanto tempo receaste está de volta à tua ilha. O caçador de bruxas, Arístide."
Miri procurou encher os pulmões de ar, mas viu que não conseguia. A sua mente vacilou, incrédula.
"Tu... tu tens a certeza disso, Necromante?, pensou Miri em desespero. "Viste-o?
Os olhos dourados do gato piscaram em confirmação. Miri afundou-se nas ancas, sentindo o fluxo de sangue nas suas faces. Lá se ia a esperança de Marie Claire rezar
para manter o homem afastado. Miri refletiu o quão certa estivera ao longo de todos estes anos ao evitar falar sobre Simon. Era como se simplesmente por ter pronunciado
o seu nome naquela tarde tivesse evocado o demónio.
Mas porquê? O que teria levado Simon a regressar à ilha Encantada? Ele já havia causado suficiente mal às mulheres desta ilha. Que mais poderia ele querer?
"Tu", foi a alarmante resposta de Necromante ao seu pensamento. "Desta vej o caçador de bruxas veio procurar-te."
Miri fechou os olhos, entendendo o que devia ter arrastado Simon até ela e feito com que reconsiderasse o tê-la poupado às acusações de feitiçaria. O falatório que
se estava a espalhar sobre ela, a fama que conquistara como Senhora da Floresta. E tudo porque quebrara a sua promessa para com Ariane de viver discretamente. Bem,
teria tempo para se punir mais tarde por isso. Pelo menos esperava vir a ter.
Saltou quando sentiu a mão de Marie Claire repousar-lhe no ombro. O olhar inquieto da mulher vagueou entre Miri e o gato.
- Miri - O que se passa? Há algo de errado?
Miri abriu os lábios para falar, mas logo fechou a boca, reconsiderando aquilo que esteve para dizer. Se Simon a procurava, não havia razão para alarmar Marie Claire
ou envolvê-la no assunto. A velha mulher nada mais faria do que procurar proteger Miri e colocar-se em risco de se magoar. com os pés, Miri conseguiu encurralar
Necromante e apanhá-lo nos braços. - N... Não há nada de errado. O Necromante só está apreensivo por causa... por causa do tempo. As tempestades perturbam-no sempre.
Preciso de o levar para casa, Marie.
- Mas com certeza seria melhor se ambos ficassem aqui à espera que a tempestade desapareça.
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- Acho que com esta isso não se vai passar - disse Miri, com desagrado, mas conseguiu esboçar um frágil sorriso. - Tenho outros animais lá em casa, os meus pombos,
os coelhos. Tanto que fazer. Tenho mesmo que ir. Dentro de alguns dias virei visitar-vos de novo.
Esperava que a sua balbuciada explicação fosse suficiente para iludir Marie Claire. A antiga abadessa nunca fora tão hábil a ler os olhos como Ariane. Não dando
a Marie Claire qualquer possibilidade de continuar a questioná-la, Miri beijou a velha mulher na face e abandonou a casa para um mundo em que o céu parecia ter ficado
muito mais escuro e o vento ainda mais forte.
Apertando Necromante contra ela, correu para o estábulo, atrás da casa, onde tinha deixado Willow. O vento desalinhou-lhe farripas de cabelos sobre os olhos e parou
sob o alpendre à entrada da porta para recuperar o fôlego. Uma parte dela sempre soubera que estava condenada a cruzar espadas com Simon Aristide mais uma vez algum
dia. Acreditara que quando esse dia chegasse seria capaz de encará-lo, dura e determinadamente.
Mas com a perspetiva a aproximar-se dela, o seu coração estava em turbilhão. Sentia-se como se uma cicatriz de uma velha ferida se tivesse reaberto, deixando-a nua
e vulnerável. Necromante, enrolado nos seus braços, esticou uma pata para lhe tocar desesperadamente na face.
"Não tens tempo a perder, Filha da Terra. Tens de esconder-te. Aristide pode ser um grande predador, mas não possui as aptidões necessárias para te encontrar."
Era inteiramente verdade, pensou Miri. Conhecia cada clareira, cada rocha e todas as enseadas da ilha. Havia pelo menos uma dúzia de sítios em que se podia esconder
sem nunca ser encontrada. Podia escapar-se tal como havia feito com as irmãs há tantos anos.
O pensamento deixou um gosto amargo na boca de Miri e algo dentro dela se revoltou. Não! Maldita fosse se voltasse a esconder-se como um coelho assustado. Esta era
a sua ilha, o seu lar. Não seria exilada uma segunda vez.
A mente de Miri trabalhava furiosamente, procurando calcular quanto tempo teria. Simon não poderia saber onde ela vivia agora, mas encontraria alguém que a traísse.
Era infernalmente bom nisso. O caçador de bruxas procurá-la-ia até encontrar a sua pequena casa, bem no interior da floresta.
E depois... A boca de Miri endureceu numa linha implacável. Desta vez ela estaria à espera e daria a Simon Aristide o tipo de receção que ele merecia.
O diabo tinha voltado à ilha Encantada.
Portas fechadas com violência, mães assustadas reunindo os seus filhos dentro de casa e rostos assustados a espreitarem pelas janelas das casas enquanto Simon conduzia
a galope pelas vielas de Port Corsair. Estava habituado ao medo que causava; em tempos fizera o seu melhor para inspirar tal terror, uma ferramenta útil no seu negócio.
Agora, isso deixava-o simplesmente cansado e isolado.
Obviamente que se lembravam dele na ilha Encantada, apesar de a sua aparência se ter alterado muito. Estranho, porque se sentia tão longínquo do jovem que há anos
invadira a ilha. Tão arrogante, tão infernalmente hipócrita, acreditando que sabia tudo sobre a natureza do mal, apenas para descobrir que sabia muito pouco sobre
o negrume que podia esconder-se no coração humano, e não menos no seu.
Le Balafre, chamaram-lhe por entre murmúrios o Homem da Cicatriz, e Simon regozijara-se com o temível apodo, jovem e louco como era. Assaltara a ilha Encantada à
frente de um exército, determinado a encontrar o lendário Livro das Sombras e a apresentar à justiça o feiticeiro Renard.
Justiça - Ou teria sido apenas vingança - Mesmo depois de todo este tempo, Simon não tinha a certeza. De qualquer forma, duvidava que isso fizesse muita diferença
para as mulheres da ilha Encantada. A toda a sua volta ainda podia ver as cicatrizes que deixara nesta pequena comunidade. Lojas destruídas e jamais reconstruídas;
casas a que faltavam portas e janelas. Uma pilha de escombros, esperanças perdidas e vidas destroçadas. As torres do convento abandonado no alto da colina erguiam-se
sobre ele, muito mais nuas e desoladas pelos ventos agrestes e pelo céu carregado.
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Simon observou os edifícios vazios, sentindo-se como se estivesse a passar pelo cemitério de todos os erros que já cometera; todas as mágoas que dificilmente se
atrevia a enfrentar, por temer que toda a sua vida se desemaranhasse nas suas mãos.
Guiou Elle pelo caminho que conduzia à floresta, deixando bem para trás Port Corsair e a sua silenciosa reprovação. As nuvens sobrecarregadas pareciam prontas para
libertar a fúria do granizo ou da chuva a qualquer momento. Talvez tivesse sido melhor esperar na estalagem do porto um momento mais favorável até a tempestade passar.
Mas o tempo corria contra ele. A Irmandade da Rosa de Prata ganhava poder e artimanhas a cada hora que passava. Simon acreditava que o próximo ataque das bruxas
acabaria com ele. Era odiosamente difícil engolir o seu orgulho e vir procurar a ajuda de uma mulher que outrora atraiçoara. Mas adiar as coisas não tornaria mais
fácil encarar Miri Cheney.
À medida que a floresta o ia cercando, Simon refreou Elle para um andamento a passo. Os trovões ribombavam e os relâmpagos brilhavam no caminho à sua frente, como
a artilharia de uma batalha distante. Não era o melhor sítio para se estar durante uma tempestade, embora na perspetiva de Simon estas florestas não fossem um bom
sítio para passear em momento algum.
As árvores cobertas de musgo eram como torres gigantescas, com as raízes bem enterradas bem fundo nas zonas escuras e secretas da terra. Ramos
retorcidos balouçavam ao vento, com as folhas a murmurarem sobre antigos mistérios, druidas, fadas e bruxaria. Um local perfeito para uma bruxa viver.
Simon inclinou-se para a frente para dar uma palmada no pescoço de Ele, mais para seu conforto do que dela. O aspeto assustador da floresta enervava a égua. Embora
Elle estivesse impaciente, podia jurar que seria mais pela excitação ansiosa de um cavalo que pressente o fim da viagem.
Curiosamente, enquanto a ele essa sensação o abalava, Elle parecia estar como em casa. Toda a tensão e toda a inquietação eram exclusivamente dele. Talvez fosse
porque nos últimos trezentos metros mantivera permanentemente na memória a última vez que estivera frente a frente com Miri Cheney. com os seus olhos de um azul-prateado,
tão frios como o céu de inverno, tinha apontado uma pistola diretamente ao seu coração, quando o destino interveio sob a forma de uma explosão, lançando ambos ao
chão. Teria Miri realmente puxado o gatilho? Teria aprendido a odiá-lo assim tanto?
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Em breve teria a sua resposta...
O espesso dossel das árvores e o céu que anunciava a tempestade roubavam àquela tarde muita da sua luz. À medida que o caminho estreitava, Simon perscrutava o espaço
à sua frente, comparando o que via com as descrições que lhe tinham sido feitas.
Sabendo que a antiga casa de Miri, Belle Haven, estava perdida para ela, Simon fez algumas perguntas na estalagem sobre as suas atuais paragens. A Viandante de Passagem
era o único bastião masculino nesta ilha povoada por saias. Embora os homens não o temessem tanto como as mulheres, os habituais clientes da taberna olhavam-no com
sombria desconfiança.
Simon sempre achara que, se espalhasse moedas suficientes, acabaria por soltar a língua a alguém. Aquele que por fim atraiçoaria Miri não foi um dos rudes marinheiros
ou pescadores, mas outra mulher. Entrara a arrastar-se pelo bar com um xaile lançado sobre a cabeça, uma criatura enfadonha de traços perversos e duros. Embora tremesse
de medo, atrevera-se a procurar Simon.
"Ouvi dizer que procurais a Senhora da Floresta", disse com uma voz de tal forma receosa que ele teve de dobrar-se para a ouvir.
Simon acenou afirmativamente.
"E... Pagais alguma coisa?"
Simon foi forçado a dissimular a sua surpresa. A memória que guardava das mulheres daquela ilha era a de que eram obstinadamente leais umas às outras e especialmente
à sua bem-amada Senhora da Ilha Encantada e à sua família. Enquanto colocava algumas moedas nas ávidas mãos de Madame Alain, avermelhadas pelo trabalho duro, sentiu
uma curiosa mistura de desprezo e piedade por aquela mulher. Mas isso não o impediu de obter a informação.
"Basta seguirdes o caminho através da floresta. Acabareis por ver uma bifurcação que leva ao interior da floresta. Segui esse caminho que vos conduzirá diretamente
à casa." com o dinheiro bem fechado na mão, Madame Alain abafou um soluço e fugiu, embora Simon não soubesse ao certo de quem ela fugia, se dele ou da sua própria
culpa.
À medida que se aproximava do caminho que a traidora de Miri revelara, Simon apercebeu-se de que havia um facto que a mulher se esquecera de mencionar. Não havia
um caminho, mas sim uma bifurcação de dois caminhos a partir do caminho principal, que seguiam em direções completamente opostas. Enquanto puxava as rédeas, hesitando
sobre qual o caminho a
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seguir, surpreendeu-se ao descobrir que a sua montada tinha opiniões definidas sobre o assunto.
Ele abanava a cabeça, puxando para o menos provável dos caminhos, o que estava menos pisado e mais coberto com vegetação. Simon fez tudo o que podia para a segurar
enquanto os relâmpagos voltavam a iluminar a floresta. Viu algo tão surpreendente que não pôde deixar de pensar que se fosse um cavalo se teria empinado.
Elle limitou-se a puxar pelo freio, redobrando os seus esforços para se lançar pelo caminho. Simon bradou uma ordem forte, puxando pelas rédeas de modo a mostrar-lhe
que não tolerava mais teimosias. Quando finalmente acalmou a égua, olhou para o animal que avistara, ainda sem acreditar no que os seus olhos viam.
Havia algo de quase sobrenatural naquele gato calmamente deitado na bifurcação dos dois caminhos, neste local selvagem, nesta tarde tormentosa. O seu pelo eriçado
pelo vento era tão negro como tinta, exceto nas patas, que eram brancas como a neve. Simon pestanejou, algo expectante de que o animal desaparecesse. Mas os olhos
cor de âmbar do gato pestanejaram em resposta, despertando-lhe a memória de uma noite remota no alto de uma colina varrida pelo vento no lado contrário desta mesma
ilha.
Simon carregara em frente, com o coração a bater acelerado com o medo e a ansiedade do seu primeiro assalto, esperando apanhar uma multidão de bruxas no desempenho
dos seus ritos satânicos no meio de um círculo de torres de altas pedras. O que afinal encontraria seria uma Miri cercada, lutando ferozmente contra as outras raparigas
num esforço para salvar o gato destinado ao sacrifício.
As descaradas e impertinentes jovens dispersaram aterrorizadas quando o viram, mas Miri ficou determinadamente de pé no seu terreno, libertando o pequeno gato negro
preso ao altar de pedra. Aquela foi a primeira vez que ele e Miri Cheney se encontraram. O caçador de bruxas e a bruxa.
Não, pensou Simon com remorsos. Não foi isso que foram um para o outro, não naquele tempo. Ele era apenas um rapaz com tanto ainda por aprender e ela era pouco mais
do que uma atraente criança com olhos misteriosos e um sorriso encantador.
Este animal que o fitava não podia certamente ser o mesmo gato que Miri salvara naquela noite, não depois de todos estes anos, podia? Simon ergueu a cabeça, examinando
o gato intensamente. Embora se sentisse como um perfeito idiota, chamou com hesitação: - Necromante?
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O gato miou como se percebesse o seu nome; depois, com um vivo abanar de cauda, desapareceu pelo caminho. Quando Elle puxou para o seguir, Simon não fez qualquer
esforço para a impedir. Se na verdade fosse o gato de Miri - e por que outra razão estaria semelhante criatura ali naquela floresta ?, então estava sem dúvida a
dirigir-se rapidamente para casa.
Mas o caminho que o gato os levou a seguir quase não merecia esse nome. As árvores fechavam-se rapidamente à sua volta, com os ramos e as folhas a vergastarem simultaneamente
Simon e a sua égua. O chão tornou-se demasiado traiçoeiro, com espessas raízes e buracos ocultos, para continuar a montar com segurança.
Simon desmontou e conduziu Elle, afastando os galhos para abrir caminho. De quando em quando ouvia o murmúrio das árvores, via de relance a sombra do gato. O pequeno
demónio negro ou estava a conduzi-lo para a casa de Miri ou para qualquer centro escuro da floresta onde ficaria irremediavelmente perdido.
De qualquer forma, era muito tarde para voltar atrás. O céu ribombava e Simon sentiu os primeiros salpicos de chuva fria na face. Precisava quanto antes de encontrar
abrigo para ele e para Elle.
Exatamente quando o caminho parecia ameaçar desaparecer completamente, Simon animou-se ao avistar uma clareira à distância. O fumo saía em rolos da chaminé de uma
pequena casa de pedra. Perdera de vista o gato, mas o lugar tinha de ser este. Quem mais além de Miri iria viver num ermo assim, apenas com os animais e as aves
da floresta como vizinhos?
Guiando Elle para passar sobre um grosso tronco de um carvalho, Simon avançou a passos largos, para repentinamente sentir o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Perdeu
a preensão das rédeas enquanto era varrido pelos pés, com tudo à sua volta a passar velozmente por ele numa névoa vertiginosa.
Colhido de surpresa pelo inesperado assalto, levou alguns momentos a perceber o que se tinha passado. Estava emaranhado numa espessa rede de ásperas cordas, balouçando
a alguns metros do chão, apanhado numa ratoeira como qualquer coelho desmiolado ao tropeçar numa armadilha de caçador. As cordas tensas da rede amassavam-lhe o rosto
e os braços. Simon poderia ter sentido alguma admiração ressentida pelo engenho de Miri ao preparar aquela pequena surpresa se não ficasse tão alarmado com Elle.
A égua assustara-se quando ele caíra na armadilha. Quando se voltou para a procurar, uma das suas botas rompeu o emaranhado da rede e não havia sinais de Elle. Se
fugira tomada de pânico, mergulhando às cegas atra vés
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da floresta, seria um milagre se não acabasse por partir uma perna. A espada que Simon poderia usar para se libertar estava presa à sela.
Quanto ao seu punhal, estava preso na bota que agora balançava no buraco feito na rede. Enquanto lutava para libertar o seu pé para poder alcançar a arma, o ramo
da árvore que o suportava estalou ameaçadoramente.
Praguejou violentamente, sem saber que a sua situação poderia ainda piorar. Foi quando as nuvens se abriram e começou a chover.
Miri encolheu-se à entrada da sua casa, sem se preocupar com o vento e a chuva que já fustigavam o interior. Olhou a figura escura armadilhada na rede muito acima
do chão num misto de implacável satisfação e fascínio.
com a sua cabeleira negra, o corpo enorme e a praguejar ferozmente, Simon Aristide parecia um animal mais feroz do que o homem. De onde estava não conseguia perceber
o seu rosto, mas ele com certeza que a vira a rondar na entrada da casa.
- Miri!
O seu nome chegou-lhe através do vento como o rugido furioso de um dragão. Embora o caçador de bruxas não estivesse em posição de poder constituir uma ameaça para
ela, retrocedeu involuntariamente. Sobressaltou-se quando Necromante roçou os seus tornozelos, procurando abrigo debaixo das suas saias.
- Apanhei-o - disse Miri, quase sem fôlego.
O gato olhou para cima, para ela. "Maravilhoso. Agora fecha aporta que estou a ficar encharcado."
Necromante escapou-se sob ela, recolhendo-se mais no interior da casa. Miri hesitou, apesar da chuva que lhe salpicava a cara e molhava a frente do vestido. Um recortado
relâmpago estalou e o ensurdecedor estrondo de trovão fez-se ouvir, aumentando o perigo das dificuldades de Simon. Devia limitar-se a bater com a porta e deixá-lo
nas mãos do seu destino.
Mas mordeu o lábio inferior e apalpou o cabo da faca embainhada no seu cinto; a lâmina bem afiada podia libertá-lo facilmente.
- Miri! - Simon gritou de novo o seu nome. - Sei que estás aí. Vem já aqui e liberta-me ou juro que...
Emudeceu numa fúria impotente, mas a ameaça subentendida foi suficiente para endurecer a determinação de Miri. Retrocedeu e começou a fechar a porta quando a voz
dele rugiu de novo.
- Pelo amor de deus, mulher. Pelo menos vai procurar a minha égua.
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A égua dele - Miri sentiu-se gelar, horrorizada por ter negligenciado um aspeto tão importante. Alertada por Necromante, observara a aproximação de Simon desde a
sua casa, com a atenção completamente concentrada no caçador de bruxas, esperando enquanto ele caminhava diretamente para a sua armadilha.
Nunca vira a sua montada, mas devia ter tido a astúcia de pensar que ele não tinha percorrido pelos seus pés todo o caminho até ali. Devia ter vindo apeado a conduzir
a montada e agora o pobre animal, espantado e aterrorizado pela sorte do seu cavaleiro, fugira em pânico. Miri saiu para a chuva sem tempo sequer para pegar numa
capa.
Atravessou a clareira, mantendo uma distância prudente entre ela e a figura que se agitava, bem lá no alto, na rede. Se porventura Simon reparou nela, não se atreveu
a fazer qualquer comentário para além de um resmungo enquanto lutava para libertar a bota do buraco feito na rede.
Miri correu para o caminho que conduzia à clareira. A égua assustada de Simon podia agora estar em qualquer lado. Ficou aliviada ao descobrir que ela não fugira
para longe. Não fazia a mínima ideia do que podia ter refreado o instinto natural do animal para fugir face ao perigo. A égua esperava apenas a alguns metros no
caminho, parecendo muito molhada e desolada, a tremer, sem saber o que fazer ou para onde ir.
Miri aproximou-se cautelosamente. Embora os olhos da égua estivessem negros de medo e sofrimento, não fez qualquer esforço para recuar quando Miri agarrou o freio
sob o bridão. Miri reconfortou o animal o melhor que pôde com o canto em surdina que sempre fora a sua marca mágica especial.
Teve um arrepio. Estava encharcada até aos ossos e a trança era um peso ensopado que lhe balouçava sobre as costas. Ignorando o seu próprio desconforto, sussurrava
palavras de calma à égua enquanto procurava conduzi-la de volta à clareira.
- Está tudo bem - segredou. - Estou aqui para te ajudar. Deixa-me levar-te para um sítio onde ficarás segura e seca.
Pela primeira vez, a égua ofereceu resistência, revirando os olhos para trás, com uma palavra a emergir do caos dos seus pensamentos. "Liberta... liberta."
- Claro que vais ficar livre. Já libertei muitos dos teus irmãos da crueldade dos seus desleixados donos. Não terás de servir mais aquele terrível caçador de bruxas.
A égua calcou impacientemente o casco, com o seu pensamento ansioso a comunicar com Miri mais claramente. "Liberta-o, liberta-o!"
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Miri ficou tão espantada que quase largou o bridão. A égua não temia Simon, mas temia por ele. Assustada e confusa com a armadilha, a égua não soubera como ajudar
o seu cavaleiro, mas também não quisera abandoná-lo.
Miri sacudiu a água da chuva do seu rosto, sem saber como responder ao apelo desesperado da égua. Acima do vento, os seus ouvidos escutaram um forte estalar de um
ramo e o tamborilar constante da chuva.
Miri voltou-se, com o coração a querer saltar-lhe para a garganta ao ver a enorme figura cair ruidosamente por entre os ramos na clareira. Não tinha que pensar numa
resposta ao apelo da égua para libertar Simon. De alguma maneira ele conseguira fazê-lo sozinho.
com a silhueta recortada por outro relâmpago, o caçador de bruxas era uma figura de pesadelo, com roupas negras coladas aos contornos duros do seu corpo, o cabelo
negro desalinhado em madeixas molhadas a cruzar-lhe o rosto devastado, a chuva a pingar-lhe da barba e a boca numa linha branca
e tensa.
Miri deixou cair as rédeas e sacou a faca do seu cinto. - Afasta-te ou juro que...
- O quê? Que me matas?
Era um horrível eco do passado, que projetava Miri através dos anos até àquela noite em Paris, àquele momento na Estalagem Régia quando tivera Simon na mira da sua
pistola. A resposta dele agora era a mesma que fora naquela altura. Ele continuava a aparecer.
- Queres cravar-me essa faca? Avança. Não procurarei deter-te. Olha! Não trago a minha cota de malha. - Puxou pelo gibão e pela camisa, descobrindo parte do seu
peito fortemente musculado e um escuro manto de pelos negros brilhando na pele encharcada pela chuva.
Ela recuou aos tropeções, chocando contra o tronco duro de uma árvore, um sólido ulmeiro que não a deixava retroceder mais. Ergueu a faca, segurando com força o
cabo.
- Afasta-te, Aristide! Falo a sério!
Simon encurtou a distância entre ambos num passo largo, aproximando-se tanto que a ponta da lâmina ficou sobre a região do seu coração. Ergueu a mão e Miri preparou-se,
esperando que ele lhe fosse arrancar a faca das mãos.
Para seu espanto, ele pousou-lhe a mão na face.
- Vá, faz o que tens a fazer - disse com uma voz rasgada pelo cansaço. - Mais cedo ou mais tarde alguém vai acabar comigo e é melhor que sejas tu.
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Miri engoliu em seco, lutando por manter a ira e o rancor, ao recordar tudo o que Simon lhe custara: a perda da confiança, do lar e da família, a destruição que
ele trouxera à ilha Encantada. Mas outro clarão de relâmpago possibilitou-lhe ver o rosto de Simon Aristide, o homem que já não tinha alma. Contudo, conseguia ver
a solidão, o tormento, a alma exausta, presos nas profundezas daquele seu único olho negro.
Ele não estava apenas a incitá-la como fizera daquela vez em Paris. Uma parte de Simon não se importava realmente se ia viver ou morrer. Miri pensou desanimadamente
como haviam chegado a isto, os dois inocentes jovens que uma noite se encontraram pela primeira vez na encosta de uma colina. Simon, que aprendera a dar pouco valor
à vida, incluindo a sua, e a dela não muito mais. A Filha da Terra que ameaçava matar.
Um arrepio percorreu-lhe o corpo e baixou a mão, deixando a faca escorregar-lhe pelos dedos e cair no chão. Encolhendo-se para longe dele, fechou os olhos, assaltada
por aquele forte estremecimento de emoções que Simon sempre lhe provocara, fúria e tristeza, dor e uma frustrante nostalgia pelo que poderiam ter vivido.
- Que o inferno te consuma - gritou, com as lágrimas quentes que lhe brotavam dos olhos a misturarem-se com a chuva fria.
- Tarde de mais.
- O... quê?
Ela sobressaltou-se quando ele lhe tocou a face, limpando com o polegar a mistura de lágrimas e chuva. - A tua praga, minha querida. Vem tarde de mais. Há bastante
tempo que vivo no inferno.
Miri tremia tanto que os seus joelhos poderiam ter fraquejado se Simon não a segurasse pelos ombros. Ela esticou-se, resistindo, mas ele puxou-a gentil mas inexoravelmente
para os seus braços. Por muito que se desprezasse por isso, cedeu à fraqueza de repousar a testa contra o seu ombro. A sua enorme mão envolveu-lhe a parte de trás
da cabeça, enquanto lhe afagava o cabelo, murmurando algo sobre tudo estar bem.
- Bem? Já pensaste que eu nunca peguei numa arma, nunca tentei magoar ninguém até tu apareceres?
- Eu sei. Desculpa-me.
Maldito por soar como se realmente falasse verdade, pensou Miri. Valera bem a pena gabar-se a Marie Claire de que saberia como lidar com Simon quando voltasse a
encontrá-lo.
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Como Marie Claire ficaria angustiada ao vê-la embalada nos braços do caçador de bruxas. Para não falar de como Ariane e Gabrielle reagiriam. Foi a recordação das
irmãs que lhe deu forças para recuar, afastando Simon.
Enxugando as lágrimas e a chuva da cara, lutou contra a confusão de sentimentos, concentrando-se na única coisa que para ela fazia sentido, a égua que continuava
a tremer, ali por perto.
- A tua égua tem frio e está assustada - informou-o sucintamente. - Precisamos de a abrigar da chuva.
O pequeno estábulo nas traseiras da casa estava aconchegado e seco, com o ar perfumado por aromas que há muito eram familiares e tranquilizantes para Miri, o doce
feno e o cheiro a cavalo quente. Tremendo nas suas roupas molhadas, Miri fez um sinal para a única manjedoura vazia e Simon para lá encaminhou a sua nervosa montada.
Era um estranho desfecho para o conflito entre ambos, esta colaboração em silenciosa harmonia para cuidar da égua de Simon, chamada Elle. Mas Miri suspeitava que
lhes era mais fácil lidar com as necessidades da égua do que um com o outro.
O robusto Willow esticou a cabeça sobre a porta do seu estábulo e relinchou suavemente, mais curioso do que assustado pelos intrusos no seu estábulo. Mas os pombos
empoleirados nas vigas estavam em silêncio. Miri conseguia senti-los lá em cima nas sombras, observando-os cautelosamente com os seus olhos vivos. As suas aves estavam
tão perturbadas como ela com a invasão de Simon Aristide.
Enquanto Miri procurava na sua caixa de arrumos algumas toalhas, observou Simon pelo canto do olho. Parecia um estranho em que não encaixava nenhuma das recordações
que tinha dele, nem o simpático rapaz que em tempos preenchera os seus sonhos, nem o horrível le Balafre que lhe povoara os pesadelos.
Parecia mais velho, abatido; o cabelo molhado puxado para trás realçava fortemente o seu queixo coberto com uma áspera barba e o rosto cicatrizado. A última vez
que vira Simon, estava completamente escanhoado, determinado a parecer tão implacável quanto possível, para intimidar quem quer que se atravessasse no seu caminho,
incluindo ela.
Mas nada poderia ter sido mais dócil do que o modo como Simon lidou com a sua égua, que ainda estava assustada, bufando e tremendo.
- Calma. Calma, minha bela senhora - cantarolava, acariciando o pescoço da égua com palmadas firmes e longas. - Já passou. Já está tudo bem.
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Miri observou-o com uma espécie de admiração. Nunca vira Aristide mostrar tanto afeto por alguém.
Tu sabes que isso não é verdade, segredou-lhe a voz da memória ao ouvido, recordando-lhe um momento perdido há muito numa enseada isolada, com a brisa do canal a
agitar os caracóis negros do cabelo de Simon e a sua bonita face jovem, tão macia quanto a sua.
Simon inclinou-se para a frente e o coração de Miri parou de bater quando se apercebeu do que ele pretendia fazer. Timidamente, levantou o rosto, fechando os olhos.
Simon colou a sua boca à dela muito suavemente, mas o beijo pareceu florir dentro dela, doce e quente.
O seu primeiro beijo... Simon fora tão meigo, tão meigo como estava a ser agora. Miri recuperou o fôlego e afastou o pensamento.
"Não comeces afazer isso de novo. Procurar coisas em Simon que não encontrarás", implorou a si mesma. Miri levou-lhe as toalhas, tendo o cuidado de se manter à distância
de um braço.
- Vamos, Ele. Estás salva. Não tens nada a temer. - À medida que a égua acalmava sob as suas mãos, Simon voltou-se para Miri. - Tu também não tens nada a temer.
- Isso é uma estranha garantia vinda de alguém que outrora tudo fez para me aterrorizar e a toda a minha família.
- Isso foi há muito tempo, quase dez anos. Tenho muitos remorsos sobre esse verão.
- E talvez o maior deles tenha sido o nunca me teres acusado de feitiçaria. Portanto, é por isso que estás aqui? Para finalmente remediar o teu erro?
- Não. - Simon franziu a sobrancelha enquanto aliviava as cilhas da sela de Elle. - Depois de todo este tempo, esperava que te tivesses apercebido de que nunca quis
magoar-te.
Miri olhou-o, incrédula. - Graças a ti, o rei de França desonrou toda a minha família com a acusação de feitiçaria e traição. Tivemos de fugir para o exílio enquanto
a coroa confiscava as terras de Renard no continente. Até nos tiraram Belle Haven, o lar da minha família que foi transmitido durante gerações de Filhas da Terra,
a terra que nenhum homem ousou tomar. Nem sequer posso começar a descrever o que fizeste à própria ilha Encantada, transformando-a num lugar que já não reconheço.
"Que Deus me ajudasse, Simon, se algum dia tivesses decidido que querias magoar-me.
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- Miri, eu... - Interrompeu-se repentinamente, apercebendo-se da aparente futilidade de tudo o que pudesse dizer. Mas o seu rosto foi ensombrado pela mágoa enquanto
removia a sela a Elle.
- Também me podias ter acusado de feitiçaria - persistiu ela. - Porque não o fizeste?
Simon pousou a sela de Elle num canto. - Porque acreditava que estavas inocente.
- Não mais inocente do que muitas mulheres que perseguiste, incluindo as minhas próprias irmãs. Portanto, porque é que sempre insististe em poupar-me?
- Não sei. - Os lábios de Simon curvaram-se num meio sorriso contrito. - Talvez porque sempre foste a minha única fraqueza.
Tal como Miri temia, ele fora sempre seu, mas não estava disposta a admiti-lo à sua frente. Entregou-lhe uma das toalhas. Um trovão ouviu-se no exterior, mas para
Miri não era nada, quando comparado com a tensão que estalava no estábulo. Enquanto Simon começava a esfregar os flancos de Elle, Miri procurou limpar o pescoço
da égua com uma toalha, mas o animal espantou-se e recuou alarmado, quase pisando Simon.
- Eia - ordenou, afagando a égua e tranquilizando-a. - O que se passa, EM ?
Ao fixar o olho grande e castanho da égua, Miri soube imediatamente o que se passava.
- Agora ela está com medo de mim - disse Miri em voz baixa. - Porque me viu tentar magoar-te.
Simon afagou a égua até esta se acalmar de novo. - Minha pobre Elle - murmurou. - Já devia estar habituada a que as pessoas procurem matar-me.
- Ah... acontece muitas vezes ?
- As suficientes - foi a sua irónica resposta.
A informação proporcionou a Miri um perturbador vislumbre daquilo em que Simon se tornara, objeto de ódio e isolamento. Porque viajava sozinho? Porque não andava
já rodeado por um exército de homens a protegê-lo? Miri procurou recordar-se ferozmente de que não era da sua conta. A última coisa que desejava era sentir qualquer
interesse ou simpatia pelo homem.
Quando ele voltou a enxugar Elle com a toalha, Miri aproximou-se com cuidado da égua, conquistando gradualmente a sua confiança, até conseguir secar o poderoso pescoço
do animal. Miri sabia que seria melhor não conhecer os factos, mas não conseguia evitar as perguntas. - Então como descobriste onde encontrar-me? Quem subornaste?
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- Uma mulher de cara azeda. Creio que se chamava Elan.
- Madame Alain - corrigiu Miri, mais entristecida do que revoltada. - Claro que tinha de ser Josephine. Só espero que lhe tenhas pago bem. Ela tem uma grande família
para sustentar e prosperidade é coisa que não aparece na ilha Encantada. Desde as tuas incursões que as pessoas do continente têm medo de vir aqui e o nosso comércio
ressentiu-se gravemente disso.
Simon deixou momentaneamente de enxugar a égua para olhar seriamente para Miri. - A falta de comércio não tem nada a ver com o que aconteceu há dez anos, Miri. As
pessoas têm pouco dinheiro ou poucas mercadorias para trocar. Estiveste recentemente no continente - As culturas estão perdidas devido à seca, o gado está abandonado
nos campos. Bandos de pessoas desesperadas vagueiam pelas vielas, prontas para se atacarem umas às outras por uma côdea de pão. A ilha Encantada não é o único lugar
que atravessa tempos difíceis. A ilha não é diferente do resto da França.
Miri franziu a testa enquanto se dobrava para tratar das patas dianteiras da égua. - Lamento saber de tais problemas, Simon, mas há uma coisa que tu nunca compreendeste.
A ilha Encantada é diferente do continente, ou pelo menos era. Esta ilha foi sempre um lugar especial de paz e cura, um refúgio que destruíste. As mulheres que fugiram
nunca mais regressaram e aquelas que aqui permaneceram estão intimidadas, com as almas atrofiadas como Josephine Alain.
Simon apoiou um braço na garupa de Elle e soltou um suspiro abatido.
- Sei que não vais acreditar nisto, mas sinceramente lamento muito do que aconteceu na ilha Encantada. Quando resolvi vir à tua procura, perturbou-me ver tantas
lojas ainda abandonadas, tantas casas que nunca mais foram reconstruídas.
- Eu não estou só a falar de casas destruídas e lojas vazias. Havia um espírito bom nesta ilha, uma magia que tu esmagaste sob os saltos das tuas botas. - Os lábios
de Miri estreitaram-se num sorriso amargo. - Mas tu és um caçador de bruxas. Parece que sempre me esqueço disso. Destruir a magia é a tua missão, o teu único propósito
na vida, não é?
Embora Simon se ruborizasse, o seu queixo projetou-se num ângulo obstinado. - Pareces ter esquecido por que fui obrigado a vir à ilha Encantada. Eu era o representante
nomeado pelo rei para investigar as acusações de feitiçaria. A tua família atacou-me e aos meus homens, destruiu a estalagem onde nós pernoitávamos.
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- Porque acusaste Gabrielle de feitiçaria e a mantiveste como refém para apanhar o meu cunhado. Ias enforcar Renard sem sequer o interrogares primeiro.
Simon franziu o cenho com a recordação, mas foi rápido a contrapor:
- Talvez isso fosse um erro, mas um julgamento parecia uma perda desnecessária de tempo. O conde era claramente culpado. Foi apanhado com o Livro das Sombras na
sua posse e a tua irmã também não estava propriamente inocente. Gabrielle admitiu conviver com Cassandra Lascelles, uma notória praticante de magia negra.
Miri sentiu o calor subir-lhe às faces, numa combinação de ira com a frustração de não ser capaz de defender os seus entes queridos de forma tão indignada como desejaria.
Porque Simon tinha razão, o maldito. Renard era um bom homem, mas herdara da sua perversa avó, Melusina, um infeliz fascínio pelo lado negro da magia. E mesmo Miri
ficara nervosa com a amizade de Gabrielle com Cassandra, uma feiticeira muito conhecedora da magia negra e do fabrico de amuletos com um poder espantoso.
O Livro das Sombras só tentara Renard porque queria aliviar a amargura da sua mulher e encontrar um modo seguro de Ariane poder engravidar. E Gabrielle só procurara
uma maneira de proteger o seu bem-amado capitão Remy e só descobriu o verdadeiro mal dos amuletos de Cass quando já era tarde de mais.
Mas Miri sabia que era inútil procurar explicar fosse o que fosse a Simon, especialmente sobre Renard. Há muito que Simon se havia convencido de que o conde era
um feiticeiro. Em vez disso era mais fácil recordar Simon da sua própria iniquidade.
- Disseste-me que a única coisa que querias era ver o Livro das Sombras destruído - acusou. - Disseste que, se eu persuadisse Renard a entregar aquele livro malvado,
deixarias livres ele e a Gabrielle, e eu, como uma idiota, acreditei em ti. Mas tu continuaste a perseguir a minha família muito depois daquela noite. Tinhas o Livro
das Sombras. Porque não te livraste dele e nos deixaste por nossa conta?
- Porque nunca tive oportunidade de destruir a maldita coisa. - A cor do seu rosto intensificou-se enquanto admitia com relutância: - Desapareceu.
- O quê?
- No meio do caos do fogo, alguém roubou o livro.
- Queres dizer que aquele terrível livro ainda anda por aí, com o risco de alguém o usar e decifrar todos aqueles odiosos feitiços?
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Simon acenou afirmativamente.
- Oh, isso é maravilhoso. - Miri ergueu as mãos e avançou agitada pelo meio dos estábulos, ignorando a tentativa brincalhona de Willow a mordiscar. - Muito bem feito,
Simon. Perseguiste a minha família inocente até aos confins da Terra enquanto deixavas que um dos maiores males de todos os tempos se escapasse por entre os teus
dedos. Então foi por isso que viraste esta ilha de alto a baixo. Porque pensaste que um de nós ainda tinha aquele Livro.
Simon seguiu-a para fora do estábulo e prendeu-a pelo pescoço com os braços. - Talvez um de vós ainda o tenha.
- Presumo que te referes a Renard. Posso dizer-te com toda a certeza de que não o tem.
- Tu nunca acreditaste que ele o tivesse da primeira vez - respondeu Simon friamente, mas quando Miri o interrompeu e o olhou fixamente, ele ergueu uma mão. - Tréguas!
Eu não vim aqui para esquadrinhar o passado nem para discutir contigo.
- Então gostaria que fosses direto ao assunto e me dissesses exatamente por que estás aqui.
- Eu próprio também já comecei a interrogar-me sobre isso - disse com um trejeito, mas quando olhou fixamente para ela, algo se suavizou no seu rosto. - Em parte
é talvez porque, quando soube que tinhas regressado à ilha Encantada, só pensava em voltar a ver-te, para saber como tens passado.
- Agora já me viste e sabes que estou bem - disparou Miri. - Portanto, qual é afinal a outra parte da tua razão ?
Ele aproximou-se de Elle, enfiando os dedos na crina da égua. Por fim disse, como se as palavras estivessem a ser-lhe arrancadas: - Eu... preciso da tua ajuda.
Por um momento, Miri ficou estupefacta a fitá-lo, demasiado espantada para dizer alguma coisa. Por fim deu uma gargalhada sem alegria. - Simon Aristide, és completamente
inacreditável. Por duas vezes no passado confiei em ti, considerei-te até um amigo. Mas tudo o que estavas a fazer era destruir o marido da minha irmã. É disso que
andas de novo à procura? Nem que me torturasses eu te ajudaria nisso. Desde que regressei à ilha Encantada, perdi o rasto de Ariane e Renard. Não faço ideia onde
eles estão, nem Gabrielle ou Remy.
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Miri ergueu o queixo, desafiando-o a chamar-lhe mentirosa. Simon provavelmente saberia que ela não estava a dizer a verdade, mas optou por não a desafiar.
- Não ando atrás de Renard - disse ele. - Outrora acreditei que o conde era o ser mais malévolo que já encontrara, mas enganei-me. Até há pouco tempo, não fazia
a mínima ideia do que podia ser o verdadeiro mal. Cruzei-me com um inimigo demasiado poderoso, demasiado conhecedor dos caminhos negros para que um homem o possa
derrotar.
- Então porque vieste até mim? Porque não foste ao teu senhor, o rei? Tu e ele em tempos fizeram um pacto para livrar a França da bruxaria, não fizeram?
- Infelizmente o rei perdeu interesse na nossa campanha e dedicou-se a outras perseguições. Provou ser um homem fraco e volátil que regeu a França tão mal que quase
não consegue proteger o seu trono do poder crescente dos seus nobres.
- Bem... bem, e os teus amigos caçadores de bruxas?
- Há muito que não recorro a mercenários, desde a incursão na ilha Encantada. Os meus homens fugiram completamente ao meu controlo, saqueando e queimando tudo. Nesse
tempo tive ilusões de grandeza, imaginando que podia comandar a obediência desses homens endurecidos pelos combates, quando na realidade eu era pouco mais do que
um adolescente.
- Os lábios de Simon retraíram-se numa expressão de autoirrisão. - Que jovem estúpido e arrogante eu era, tão infernalmente seguro de mim...
Miri olhou-o desconfiada. Sim, ele fora certamente arrogante, obstinado e inflexível, mas julgava-o incapaz de sequer admitir que podia estar enganado acerca de
alguma coisa.
- E afinal o que és tu agora, Simon? - perguntou.
Simon enfiou a mão pelos cabelos molhados e deu uma gargalhada sem graça. - Agora não tenho a certeza de nada. Sei apenas que estou cansado... e só.
Ele nem precisava de lhe dizer tal coisa. Ela podia ver aquela fadiga tão profunda da sua alma no seu olhar, sentir a atração da sua solidão como uma maré negra
ameaçando arrastá-la. Teve de cruzar os braços com força para resistir.
- Então o que queres de mim?
- Sei que não tenho o direito de esperar seja o que for de ti. Tudo o que peço é que escutes a minha história. Se depois optares por não acreditar naquilo que te
contar, juro que te deixo em paz e não mais voltarás a ver-me.
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Deu um passo em direção a ela. Quando a sentiu tensa, parou, não se aproximando mais e oferecendo-lhe a mão. - Não é um bom acordo?
Miri olhou fixamente aqueles dedos fortes e rudes, mais destroçada do que alguma vez se sentira na sua vida. Dada a sua história com Simon, teria de ser seis vezes
louca para aceder ao seu pedido.
Mas esse era o problema. Simon não estava a exigir, estava a pedir e muito mais humildemente do que alguma vez ela julgara possível. Tudo o que ele pedia era que
o ouvisse. Parecia muito pouco razoável recusar.
Mas quase que podia ouvir na sua cabeça a voz de Gabrielle a repreendê-la.
"Perdeste a cabeça, Miri? Depois de tudo o que este homem fez estás preocupada em ser razoável com ele. julgo que até ao próprio diabo darias uma segunda oportunidade."
E bem podia ser o demónio ali, em pé, à sua frente. Miri fitou Simon, mas o seu rosto, com um negro olhar, firme mas ilegível, não lhe deu respostas. Embora ignorasse
a sua mão estendida e lhe tocasse ao passar por ele, concordou em voz baixa: - Está bem. Vem até à minha casa assim que acabares de tratar da tua égua.
- Obrigado - disse Simon, bruscamente, mas duvidava que Miri o tivesse sequer ouvido enquanto saía pela porta do estábulo e desaparecia à chuva e na escuridão.
Mas a sua imagem permanecia com ele enquanto começava a tarefa de alimentar Elle, despejando aveia na manjedoura. Há muito tempo que a recordação de Miri ficara
congelada no seu espírito, uma jovem que desabrochava para a idade adulta, flexível e esbelta, com traços tão serenos, tão etéreos, que não parecia ter sido moldada
do mesmo barro que o resto do mundo. Era mais como se tivesse nascido do ar, da luz e do espírito.
Ela já não era aquela rapariga. Os contornos que podia ver sob o vestido molhado eram sem dúvida os de uma mulher. O seu rosto estava mais magro e pálido do que
se recordava. A inocência, a curiosidade que outrora brilhava nos olhos de Miri, ensombrara-se profundamente. Ele era responsável por isso. Se não fosse amaldiçoado
por mais nada daquilo que fizera, sê-lo-ia pela devastação lançada sobre este gentil e confiante coração.
Enquanto Elle mergulhava com satisfação o seu focinho na manjedoura, Simon esfregou os nós dos dedos entre os olhos da égua, uma carícia de que a égua gostava especialmente.
- Ah, Elle, que o diabo me leve. Já causei dor suficiente a esta mulher. Nunca devia ter vindo aqui.
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Uma vez após outra traíra a confiança de Miri, usara-a no seu esforço para livrar o mundo de bruxas. O mais odioso é que podia acabar por voltar a magoá-la. Se tivesse
algum farrapo de decência, esperaria simplesmente pelo fim da tempestade, selaria Elle e partiria, tentando descobrir outra maneira de derrotar a Rosa de Prata e
deixar Miri em paz.
Mas Simon suspirou, sabendo que não o faria. Porque, tal como Miri o julgava, ele era efetivamente um farsante desgraçado.
Simon fez-se à chuva torrencial com o alforge sobre o ombro. Quando alcançou a entrada da casa de Miri, o pouco que conseguira enxugar no estábulo estava de novo
molhado. Estava encharcado até aos ossos, com o cabelo desgrenhado a escorrer-lhe pelo rosto. Bateu à porta com o punho e sentiu a dura madeira raspar-lhe os dedos.
Surpreendeu-se quando a porta cedeu à mão, rangendo ao abrir. Apressando-se a entrar, bateu com a porta ao fechá-la.
Quando afastou o cabelo molhado do rosto, Simon viu por que razão a porta se abrira tão prontamente. A porta da casa de Miri não tinha fechadura nem tranca de madeira.
Devia estar grato por isso e, no fim de contas, não era nada com ele, mas ficou alarmado ao constatar que Miri ainda era tão confiante.
A casa era muito diferente do antigo lar de Miri, Belle Haven, com as suas belas tapeçarias e múltiplos quartos de dormir. O espaço comum consistia numa grande sala
com uma escada que conduzia ao sótão e viam-se ligeiramente os contornos de uma cama simples. O resto do mobiliário no piso térreo era igualmente simples, uma mesa
de pinho, alguns bancos e cadeiras, um aparador e uma arca de cipreste, mas apesar disso a casa transmitia uma aura de alegre desarrumação. Um xaile azul estava
dobrado sobre as costas de uma cadeira, o conteúdo de uma caixa de costura estava espalhado sobre a mesa, ervas secas e cestos pendurados ao acaso em ganchos montados
nas vigas do teto. Uma ninhada de pequenos coelhos aconchegava-se numa gaiola de arame com uma cama de palha, sem dúvida crias órfãs que Miri estava a tentar salvar.
Postigos engonçados nas janelas emudeciam o vento e o bater da chuva. O brilho suave de velas e os troncos que crepitavam na chaminé faziam a casa
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parecer um abrigo de calor e luz. Ou seria isso mais devido à mulher que secava o cabelo diante do lume?
Miri tinha tirado as roupas molhadas, e o vestido e as roupas interiores estavam pendurados numa corda que ela esticara de um gancho na chaminé até uma cavilha cravada
na parede. Envergava agora uma simples camisa e a luz da lareira recortava-lhe a sua figura feminina através do tecido. Simon pôde distinguir claramente a difusa
auréola dos seus mamilos, a curva suave das suas ancas, o delta sombreado na junção das pernas. A respiração prendeu-se-lhe na garganta.
Miri gelou ao vê-lo entrar; tinha uma travessa pendurada a meio de uma longa madeixa do cabelo. Era óbvio que não esperava que ele se tivesse despachado tão depressa
no estábulo. Simon arrastou os pés. Era enervantemente estranho. Já tinha arrombado várias portas, forçado a sua entrada em mais casas do que as que podia contar,
mas nunca se sentira tanto um intruso.
- Ah... desculpa. Eu procurei bater à porta. Queres que eu saia até que tu... tu...
Miri puxou a travessa do cabelo e segurou-a nas mãos. - Não sejas idiota. Já estás encharcado. Tira só as botas, estão cheias de lama.
Simon inclinou a cabeça, procurando não fixar o olhar nela enquanto pousava no chão o alforge. Estava de rastos, esgotado, encharcado até aos ossos e ainda assim
surpreendido por sentir o calor percorrer-lhe o corpo. Durante muito tempo julgara adormecidos outros sentimentos que não estivessem diretamente relacionados com
as suas necessidades de sobrevivência.
O seu corpo anunciava-lhe o contrário, com o latejar do desejo que ressoava através dele, tão inesperadamente como se tivesse sido atingido por um raio.
Miri contraiu-se como uma corça, repentinamente consciente do olhar esfomeado de um lobo. Deu um passo e pegou no xaile que deixara abandonado sobre a cadeira. Embrulhou-se
nas volumosas dobras de lã, dando um nó nas pontas sobre o peito. Os seus movimentos eram lentos e absolutamente nada constrangidos. Em vez de uma mulher procurando
discretamente cobrir-se, era muito mais como bater com a porta do quarto na cara de alguém.
Deixando-se cair sobre um banco tripé, Simon procurou tirar as botas. Estava numa posição difícil e o couro escorregava com a chuva e a lama. Mas o esforço deu-lhe
tempo para recuperar da pertinaz reação do seu corpo ao avistá-la. Os assuntos entre ele e Miri já estavam suficientemente tensos para suportarem a complicação adicional
de quaisquer impulsos carnais.
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Ao arrumar cuidadosamente as suas botas perto da porta, Simon enxugou as mãos limpas nas calças que estavam sujas da sua queda. Encaminhou-se, hesitante, para a
lareira, sentindo-se como um rafeiro a aproximar-se de uma convidativa fogueira de acampamento sem ter a certeza da receção que poderia ter.
Em silêncio, Miri estendeu-lhe uma toalha de linho e regressou ao canto oposto da sala para acabar de pentear o cabelo. Simon ficou sozinho como dono e senhor do
fogo deslumbrante. Bem, ele e o gato. Necromante, enrolado sobre um tapete entrançado à frente da lareira, olhava preguiçosamente Simon pelas estreitas ranhuras
dos olhos.
Simon abriu as mãos para receber a bem-vinda baforada quente. Um pequeno caldeirão fervia ao lume, libertando um aroma apetitoso. De costas voltadas para Miri, Simon
limpou o rosto com a toalha, afastando a pala que lhe cobria o olho.
A venda de couro molhara-se com a chuva, mas Simon raramente a tirava, exceto quando estava só, constrangido pela extensão da sua ferida, mesmo depois de tantos
anos. Quando acabou de secar a face, recolocou a pala, encolhendo-se ao sentir o couro húmido a adaptar-se à sua face.
Quando conseguiu desfazer os laços do seu gibão, Simon disse: - Devias ter alguma tranca ou fechadura naquela porta.
- Porquê? - Miri comprimiu os lábios enquanto lutava com um nó especialmente teimoso do cabelo. - Há uma razão para eu viver isolada no meio da floresta. Posso confiar
nos meus vizinhos, do género de quatro patas.
- Infelizmente a tua morada também é conhecida do género que caminha sobre duas pernas. Se insistes em ter a companhia de animais, pelo menos devias rodear-te com
os que te pudessem ser úteis. Uma matilha de grandes e ferozes mastins era-te muito mais útil do que um cesto de coelhos ou este velho gato magricela.
Apesar das suas ríspidas palavras, Simon achou irresistível o pelo escuro aveludado de Necromante. Acocorou-se para afagar o felino adormecido. Necromante passou
de gato adormecido a felino furioso num piscar de olhos. Ao atacar, arranhou o dedo mínimo de Simon, na mesma mão que já apresentava as marcas das garras da bruxa
que tentara matá-lo duas noites antes.
Simon recuou, praguejando, enquanto Necromante, fortemente assanhado, dava um salto com surpreendente agilidade para um gato da sua idade, subindo as escadas e desaparecendo
na escuridão do sótão.
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- Maldito! - resmungou Simon, sugando o fio de sangue do dedo ferido. - Estou contente por não ser ele que empunhava a faca.
Os lábios de Miri contraíram-se num esboço de sorriso, mas rapidamente o reprimiu. - Sim, devias estar. O velho gato magricela foi quem te atraiu direitinho para
a minha armadilha.
- Não é uma armadilha especialmente eficaz. Se vais confiar em armadilhas para tua proteção, posso mostrar-te como fazer uma melhor. Um simples laço podia ter-me
apanhado o tornozelo e deixado pendurado e muito mais indefeso. Ou então arranja uma armadilha de metal com o tipo de dentes que pode esmagar o tornozelo de um homem.
- Essas armadilhas seriam demasiado perigosas. E se por acaso eu apanhasse alguma raposa ou um inocente coelho? Acontece que eu não gosto de magoar seres inocentes.
- Acredites ou não, eu também não gosto.
Miri claramente não acreditou nele. Afastando-se, continuou a pentear o cabelo. Suprimindo um suspiro cansado, Simon tirou o gibão e pendurou-o na corda de roupa
que Miri tinha esticado. Reparou numa pintura pendurada na parede, meio escondida pelas roupas a secar.
Simon desviou um pouco o vestido de Miri para a poder ver melhor e a sua face enterneceu-se ao reconhecer a pintura. Numa moldura austera, lá estava um unicórnio
a galopar pela floresta, um magnífico estudo de contrastes entre os vivos pormenores das árvores e a aura espectral do unicórnio. Quanto mais se olhava o quadro,
menos certezas se tinham sobre onde acaba o mito e começa a realidade.
Gabrielle pintara o quadro para a sua irmã Miri. Quando Simon o vira da última vez, estava incompleto e parecia destinado a assim permanecer. Mas transformara-se
no maior tesouro de Miri, tão firme na sua convicção sobre a existência de unicórnios.
Simon sorriu, apesar da recordação agridoce. Sentiu-se ridiculamente satisfeito por Gabrielle ter afinal terminado a pintura e por Miri ainda a ter com ela. Permanecera
acordado durante demasiadas noites quando se apercebera que os seus atos tinham custado Belle Haven a Miri. Estava agora satisfeito por ela ainda ter uma pequena
parte do seu lar de criança.
Ouviu o soalho estalar e tomou consciência de que Miri se aproximava por detrás dele. - Então a Gabrielle sempre terminou o teu unicórnio?
- Sim - respondeu ela suavemente.
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- Lembro-me como tu costumavas insistir que havia um que vagueava pela ilha Encantada. Claro que eu, não sendo mais do que um rapaz humilde, nunca poderia esperar
conseguir ver a criatura.
- E recordo-me como tu puxavas pela minha trança e me espicaçavas, dizendo-me que eu já tinha idade para não acreditar em semelhantes coisas.
- E tu dizias-me, indignada: "O dia em que já não tiver idade para acreditar em unicórnios será o dia da minha morte, Simon Aristide."
Mais uma vez, ela quase lhe sorriu, mordendo o lábio para apaziguar o seu estremecimento.
- Então ainda continuas a ver o velho animal nas tuas caminhadas pela floresta ?
Miri abanou a cabeça.
- Não me digas que também pensas que fui eu que afugentei o unicórnio - gracejou Simon, disposto a provocar-lhe um sorriso sincero. - Juro que nunca toquei sequer
em um só pelo da sua crina.
- Não, provavelmente o unicórnio ainda lá está. Só deixei de o procurar. - A sua face tornou-se mais pensativa e triste, aumentando o peso do fardo que Simon sempre
carregara.
Sem dúvida que evocava que ele devia ter tido o tato e a inteligência de se recordar. Ele só voltara a ver o quadro do unicórnio porque Miri confiara nele o suficiente
para lhe permitir entrar em sua casa. Simon usara a oportunidade para recolher indícios contra o seu cunhado, para furtar o anel que seria o engodo que atrairia
o conde de Renard a Paris, onde poderia ser preso. Fora a primeira vez que Simon traíra a amizade de Miri, no seu afã para levar as bruxas à justiça. Infelizmente,
não fora a última.
Esse era o problema. Mesmo as melhores recordações que partilhavam, refletiu Simon, cheio de remorsos, estariam sempre contaminadas pelas suas muitas traições, ensombradas
pelas suas profundamente diferentes perspetivas sobre o mundo.
Miri voltou a pôr o seu vestido no mesmo sítio, escondendo a vista do unicórnio. De repente olhou Simon com o cenho franzido. - Estás a sangrar.
Simon ergueu a mão para descobrir o arranhão com mau aspeto no seu dedo que continuava a perder sangue. Impacientemente começou a limpá-lo na camisa quando Miri
interveio.
- Não faças isso.
Ficou surpreendido quando ela lhe agarrou na mão. Apanhando a toalha, deu umas pancadinhas ao de leve sobre o arranhão, provocando ardor.
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Quando Simon respirou fundo, Miri disse: - O Necromante arranhou-te bem fundo. Nunca se deve tocar em nenhum animal a não ser que para isso se seja convidado.
- vou tentar lembrar-me disso - respondeu Simon, ironicamente.
À medida que acabava de limpar o arranhão, as suas mãos iam ficando mais meigas. Há muito que ninguém lhe tocava com algo semelhante a bondade. A sua doçura era
uma sedução muito mais perigosa do que fora a visão do seu corpo. O instinto de Simon para recuar foi instantâneo. Sentia-se estranhamente incapaz de se mover e
muito mais perplexo por se ver a ser cuidado pela mulher que deveria ter querido vê-lo morto.
- Então porque é que não o fizeste, Miri? - perguntou.
- O quê?
- Matar-me quando tiveste a oportunidade. Seria o que eu teria feito no teu lugar.
Embora continuasse a tratar-lhe do arranhão, pareceu perturbada pela pergunta, com uma fina ruga a franzir-lhe a sobrancelha. - Sou uma Filha da Terra. Devo curar
e não magoar.
- E isso foi a única coisa que te impediu?
- N... não. Suponho que foi também pela perspetiva de ter de suportar demasiada dor por ti. Pensar na tua morte, com o teu sangue a esvair-se nas minhas mãos - estremeceu.
- Então não me desprezas completamente?
- Parece que não. - Olhou para ele e por fim o seu sorriso libertou-se. Um simples capricho dos seus lábios, mas Simon sentiu-o como se lhe estivesse a tirar um
enorme peso do seu coração.
Quase tinha esquecido o poder dos seus olhos mágicos. Eram como uma luz branca que o banhava como toda a força da atração lunar sobre o mar persistente, a inexplicável
atração que sempre existira entre ele e Miri. E mais ainda, ele tinha a certeza de que ela sentia o mesmo.
Ela ruboresceu e libertou-lhe a mão. - Pronto. O sangue parou. Parece que o ataque do Necromante não foi fatal, mas... - Olhou mais de perto, notando pela primeira
vez as profundas marcas acima dos nós dos dedos de Simon.
- Meu Deus, o que é que se passou aqui? - espicaçou. - Tentaste fazer uma festa a um urso?
Simon recuou envergonhado, tapando os arranhões com a outra mão.
- Não, é apenas uma lembrança de uma disputa que tive com uma bruxa há duas noites.
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- Oh - O tom de Miri vacilou. - E como se saiu a mulher sábia do encontro?
- A bruxa está morta. - Quando Miri empalideceu, Simon silenciosamente amaldiçoou a rudeza da sua própria língua. - Não pelas minhas mãos - apressou-se a acrescentar,
mas Miri já se afastava dele.
Os olhos que tão doces tinham sido há alguns momentos fulminavam-no agora com reprovação. - Uma vez gabaste-te perante mim de que, quando suspeitavas que alguma
mulher era bruxa, imediatamente a matavas.
- Isso é tudo o que era, a fanfarronice de um jovem imbecil que queria parecer tão implacável quanto possível. Nunca agi com tal arbitrariedade.
- Honestamente, Simon sentiu-se compelido a dizer: - Pelo menos espero nunca o ter feito.
"A mulher caiu numa falésia quando estava a tentar matar-me. Na verdade tentei puxá-la para cima e salvá-la, mas ela cravou-me a mão. Depois caiu para as rochas
e foi varrida pelo mar. Asseguro-te que não era uma mulher sábia. Era sem sombra de dúvida uma bruxa amaldiçoada por Deus, uma agente da Rosa de Prata.
- Rosa de Prata?
- Sim, o inimigo que te mencionei no estábulo, a feiticeira que me levou a vir de tão longe para te falar sobre ela.
Só que agora temia que ela já não quisesse ouvi-lo. Ela retrocedeu, olhando-o perturbada. Simon desejou nunca ter falado na bruxa morta, mas prometeu a si mesmo
que desta vez contaria toda a verdade a Miri.
- Miri, por favor - recordou-lhe. - Concordaste que me ouvirias. Podia ver claramente a luta interna espelhada no rosto de Miri. Por fim teve um aceno triste de
concordância e apontou para uma das cadeiras junto à mesa.
- É melhor sentares-te e contares-me tudo.
- Ainda estou bastante molhado.
- Está bem. - Pestanejou e olhou-o, nervosa, de relance. - Não tenho quaisquer roupas secas que te possa dar, por isso não vale a pena despires mais nada.
- Eu não ia fazê-lo. Sou bastante cauteloso em expor as minhas partes mais íntimas a uma feiticeira ou ao seu gato. - Tentou sorrir, mas não obteve qualquer resposta.
Enquanto Simon puxava a cadeira para mais perto do fogo e se sentava, Miri dirigiu-se para o aparador. Pegou em duas canecas de louça e tentou
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apagar a imagem do corpo de uma qualquer infeliz mulher despedaçada nas rochas. Não pelas suas mãos, insistira Simon. Como Miri queria agora desesperadamente acreditar
nele.
Mas a história de Simon mexera com ela, relembrando-lhe efetivamente quem e o que ele era - um caçador de bruxas. Talvez isso também fosse bom, considerando o quão
perigosamente perto estivera de esquecer esse facto quando tratara da sua ferida, deixando-se inebriar pelo negro aveludado do seu olhar.
Simon recostou-se na cadeira, esticando as longas pernas à frente da lareira. Quando Miri se aproximou, encolheu-as para a deixar chegar ao caldeirão. As suas calças
húmidas e a camisa de linho colavam-se à pele, realçando-lhe os poderosos contornos do corpo. Observá-lo despertou em Miri uma recordação muito diferente da que
tinha do doce, primeiro e único beijo que outrora haviam trocado. Uma recordação do tempo em que estivera a sós com Simon no seu quarto de estalagem em Paris. Ele
esgueirara-se para junto dela, encostando-a à parede e aproximando-se tanto que ela conseguira sentir o calor da sua respiração. com a dura barreira do seu peito
tocando-lhe o corpete do vestido, usara o seu punhal para reclamar uma madeixa de cabelo, com a voz ronronante e o olhar negro e predador.
A sua intenção era avisá-la para se manter afastada dele, assustá-la e intimidá-la e nisso fora certamente bem-sucedido. Mas fora também bem-sucedido em algo mais,
fazendo com que o sangue dela corresse com uma ânsia mais vigorosa e terrena do que qualquer outra coisa que já antes pudesse ter experimentado. O seu primeiro sabor
do desejo...
As faces de Miri aqueceram com algo mais do que o calor da lareira. Esforçou-se por afastar a recordação enquanto vertia o líquido quente numa das canecas.
- Toma - disse, estendendo a caneca a Simon, resoluta em não deixar que o seu olhar descesse abaixo da linha do seu forte pescoço.
- O que é isto? - perguntou Simon enquanto aceitava a caneca das mãos dela.
- Um chá de ervas que Ariane me ensinou a preparar. Muito tonificante e bom para evitar o frio.
Simon segurou a caneca junto ao nariz e cheirou o vapor com um olhar desconfiado.
- Não está envenenado, se é disso que tens medo.
Simon encolheu os ombros. - Não me preocuparia muito se estivesse.
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- Não digas uma coisa tão terrível.
Quando a olhou surpreendido, ela continuou seriamente: - Ter tão pouco apreço por ti mesmo é como cuspir na face de Deus e desdenhar de todos os bons espíritos da
Terra. A vida é uma dádiva preciosa.
- Mesmo que alguém dela faça um uso miserável?
- Nunca é tarde para mudar e seguir um caminho diferente, Simon. Simon não respondeu. Soprando o chá para o arrefecer, sorveu um pouco, cautelosamente. Mas enquanto
Miri enchia a sua própria caneca, admitiu:
- Há cerca de dois anos, tentei algo diferente. Quando ainda gozava dos favores do rei, ele ofereceu-me uma pequena parcela de terra. Procurei assentar, construir
uma casa e um estábulo. Tinha a noção de que podia tentar criar cavalos.
Surpreendida, Miri voltou-se para o olhar. - O que aconteceu?
Simon agitou a caneca entre as suas grandes mãos, olhando fixa e pensativamente para o seu chá. - Estava demasiado habituado a estar sozinho e quando se passa a
vida a combater o obscurantismo, isso acaba por se entranhar. Caminhei durante tanto tempo nas sombras que já não me lembro como se vive na luz. Parece que pura
e simplesmente não pareço encaixar ou pertencer a lado nenhum.
Miri desviou rapidamente o olhar, com as palavras dele a colocarem-lhe o dedo na ferida de forma dolorosa. Exceto no que ao obscurantismo dizia respeito, aquilo
que Simon dissera podia muito bem ser também sobre ela. Acabou de encher a sua caneca e sentou-se perto da mesa.
Simon engoliu um trago do seu chá e continuou: - Além do mais, não é certamente a altura apropriada para um caçador de bruxas se aposentar, quando há um enorme mal
lá fora e eu pareço ser o único consciente disso.
- Ergueu o olhar para Miri. - Presumo que não sabes de nada? Nem um rumor sobre esta nova assembleia de bruxas?
- Tal como tantas vezes te disse no passado, nada sei sobre bruxas respondeu Miri, aquecendo as mãos no calor da sua caneca. - A minha única convivência é com as
mulheres sábias ou Filhas da Terra.
- Estas mulheres são mais filhas da escuridão. Autointitulam-se Irmandade da Rosa de Prata. Usam a flor como o seu emblema.
- Simon, as rosas crescem de muitas cores e prata não é uma delas.
- Estas rosas não se assemelham a nada que já tenhas visto. São desprovidas de qualquer cor ou aroma, brilham como se estivessem envoltas em gelo. Se alguma vez
encontrares uma, não lhe toques. Estão impregnadas
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com uma espécie de veneno. Um rapaz de uma quinta em Dieppe cruzou-se com uma e apresentou-a à namorada. Tanto ele como a pobre rapariga foram amaldiçoados com uma
morte lenta e dolorosa.
O rosto de Miri terá deixado transparecer algum ceticismo, pois Simon franziu o sobrolho sobre o bordo da sua caneca. - O que é? Não acreditas em mim?
Miri retardou a resposta sorvendo um pouco de chá, saboreando o líquido agridoce da infusão. - Provavelmente a rosa foi devastada pela geada e o agricultor e a namorada
ficaram apenas doentes. Há muitas febres contagiosas e maleitas que podem atacar subitamente, infelizmente sem que muitos médicos ignorantes tenham conhecimentos
para as curar. Quanto a toda essa conversa da assembleia de bruxas... isso era o que tu costumavas chamar às reuniões do conselho de Ariane e não eram mais do que
encontros para promover a amizade e partilhar conhecimentos sobre as artes curandeiras.
- Posso ter estado enganado quanto à tua irmã - concedeu Simon, laconicamente -, mas não o estou acerca da Irmandade da Rosa de Prata. Estas mulheres são o puro
mal.
- Então o que fazem exatamente essas irmãs - Isto é, quando não estão a cultivar rosas venenosas e a procurar matar-te?
- Espalham o medo e a destruição. Recrutam novos membros para a sua ordem.
- Sua, de quem?
Simon acenou uma das mãos, num gesto impaciente. - Da Rosa de Prata, a feiticeira. A chefe desta irmandade. Nunca a vi nem ouvi qualquer murmúrio sobre qual possa
ser a sua verdadeira identidade.
"No início suspeitei que a Rainha das Trevas pudesse ter algo a ver com esta assembleia. Ela é certamente capaz de lidar com semelhante poder destrutivo. Mas pelo
que consegui perceber das seguidoras da Rosa de Prata, consideram Catarina de Médicis tão sua inimiga como eu as considero a elas.
- Simon franziu o cenho e acrescentou: - Pelo pouco que descobri, estas bruxas são capazes de se matar para não trair nenhum dos segredos da Rosa de Prata. Têm a
crença fixa de que ela as pode fazer voltar à vida. - Dirigiu a Miri um olhar perturbado. - Será possível tal coisa?
- Como posso saber? Não pratico magia negra. Nem eu nem ninguém na minha família - protestou Miri. Após uma pausa, acrescentou com relutância: - Ouvi dizer que os
que são bastante conhecedores de necromancia podem comunicar com os mortos, mas trazê-los de novo à vida, não; isso iria contra a vontade de Deus e as leis da natureza.
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- No entanto... outrora vi a tua irmã fazer precisamente isso. Quando o conde de Renard lançou o meu velho mestre ao lago e ele se afogou. A Senhora da Ilha Encantada
usou a sua arte mágica para devolver a respiração a Monsieur le Vis. - A voz de Simon era suave, mas o seu olhar fulminou Miri, talvez com um débil vestígio de acusação.
Miri esticou-se numa mescla de alarme e indignação. - le Vis não estava morto, apenas inconsciente. Ariane limitou-se a reanimá-lo recorrendo às suas aptidões de
curandeira. - Miri bateu com a caneca com tanta força que o líquido se espalhou sobre a mesa. - Meu bom Deus, Simon Aristide, nunca me digas que suspeitas que a
minha irmã é essa malévola Rosa de Prata, porque se foi por isso que vieste até mim...
- Não, não! Claro que não.
Miri confiaria mais se Simon tivesse sido mais convincente. Prosseguiu ferozmente: - Ariane é a súmula do que uma Filha da Terra deverá ser, sensata, capaz de curar
e cuidar. Nem de longe é louca, que é o que qualquer mulher sensata teria de ser para tentar ressuscitar alguém da sepultura. Seria completamente insano.
- Não mais insano do que algumas das outras práticas satânicas que a Rosa encoraja entre as suas seguidoras. - Os dedos de Simon apertaram a caneca e a sua boca
soou implacável. - Sacrifícios humanos. Bebés, alguns com poucas horas de vida, abandonados à morte por fome e falta de cuidados. No ano passado descobri quatro.
- Que horror, que terrível e que triste - respondeu Miri com voz baixa. - Mas não é, necessariamente, um sinal de qualquer sacrifício satânico. Se as coisas estão
tão mal como dizes no continente, muitas famílias podem ser levadas à beira do desespero pela perspetiva de outra boca para alimentar ou... - A sua mente foi dominada
pela imagem da trágica face jovem de Carole Moreau. - Ou, muitas vezes, jovens mulheres que concebem fora do casamento são expulsas pelas suas famílias, deixadas
sem ninguém para quem se possam voltar, e assim abandonam os seus filhos nas entradas das abadias e igrejas...
- Estas crianças não foram deixadas em nenhuma igreja - grunhiu Simon. - Estavam abandonadas em lugares onde nunca seriam encontradas até já ser tarde de mais, em
precipícios ou encostas remotas, colocadas sobre rochas como uma oferenda pagã. Não foram atos de desespero, mas assassínios a sangue-frio de bebés indefesos e todos
eles rapazes. Filhos abandonados pelas mães pelas ordens dessa infame Rosa de Prata.
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- Não posso acreditar que qualquer mãe o faça voluntariamente...
- Claro que não podes. - Simon expirou exasperado e levantou-se. - Nunca estiveste disposta a reconhecer que as mulheres sábias, como persistes em chamar-lhes, podiam
fazer algo de errado, nunca foste capaz de ver o mal que te rodeia.
- E o mal é tudo o que tu de facto vês - retorquiu Miri. - Foste caçador de bruxas durante demasiado tempo. O que pensas, Simon? Que essa Rosa de Prata está a procurar
soltar uma qualquer praga bíblica contra filhos recém-nascidos? Ou talvez ela só queira acabar com todos os homens no mundo.
- Não sei, caramba! - Simon bateu com as mãos na cornija da lareira e cruzou os braços, abanando a cabeça. - Não sei - repetiu com voz cansada. - Tenho demasiadas
perguntas e nenhuma resposta. - Voltou a cabeça o suficiente para olhar de relance para Miri. - Não dás crédito a nada do que te digo - Ou simplesmente pensas que
por caçar muitas bruxas fiquei com o cérebro confuso?
- Não, talvez tenha sobre-estimulado a tua imaginação, fazendo com que transformes as ações de algumas mulheres dementes ou más numa espécie de inacreditável conspiração.
- Então está bem. Diz-me se imaginei isto. - Simon afastou-se da cornija da lareira e deu um par de passos para onde tinha deixado o seu alforge. Puxou-o e abriu-o,
procurou no interior e tirou um objeto embrulhado num pano de linho. Dirigiu-se a Miri e colocou-o sobre a mesa em frente dela. Enquanto ele cuidadosamente desfazia
o pequeno embrulho, ela inclinou-se para a frente, para ver, num misto de curiosidade e apreensão.
Removido o pano, revelou-se o que à primeira vista parecia uma fina faca, o punhal-estilete encaixado num punho gravado com a imagem de uma rosa.
- Esta é a arma diabólica que a Rosa de Prata inventou. Repara no seu símbolo aqui gravado. - Simon passou um dedo sobre a flor. - Parte do punho é oco e tem um
depósito com veneno. Quando se faz pressão...
- Simon ergueu a arma para demonstrar -, atua como um êmbolo, fazendo o veneno escorrer pela própria lâmina, que também é oca.
Mas Miri quase não reparou na explicação, com os seus olhos abertos de espanto ao reconhecer na lâmina de feiticeira de Simon aquilo que a arma era verdadeiramente.
- Deus do céu - exclamou. - É uma seringa.
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- Uma quê?
- Uma seringa - repetiu. - Existem desde os tempos de Galen.
- Quem era? Alguma feiticeira?
- Não, era um antigo físico grego, um homem muito sábio e instruído. Quando Miri procurou pegar na seringa, Simon contraiu-se e avisou-a:
- Tem cuidado. Retirei todo o veneno e limpei-a, mas a lâmina de bruxa ainda é perigosa, a ponta é muito afiada.
Miri recebeu-a cuidadosamente, experimentou o êmbolo e estudou a fina agulha com fascínio e curiosidade. A seringa que Galen inventara e que as mulheres sábias ainda
usavam era dificilmente comparável. Tinham apenas em comum um depósito e um êmbolo com uma ponta romba. Uma tivera sempre que dispor de uma lâmina que proporcionasse
uma incisão fácil através da pele.
- Onde terá a Rosa de Prata aprendido a fazer isto? - murmurou Miri. - Para imaginar uma agulha oca e acoplá-la a uma seringa normal... é tão inteligente e torna
tão fácil...
- Matar pessoas? - interrompeu Simon friamente.
- Não, administrar remédios a um pobre animal que estivesse demasiado fraco para poder engoli-los. Ou até a uma pessoa. Como seria rápido e eficiente podermos introduzir
uma poção curativa no sangue...
- Não é para isso que essa maldita coisa está a ser utilizada - disparou Simon, retirando-lhe a seringa das mãos.
- Sim, mas... - Miri deteve-se quando viu o olhar sombrio de Simon. Teve de morder o seu lábio para reprimir a frustração, enquanto ele retirava o fascinante instrumento
da sua vista. Gostaria de ter oportunidade de o estudar melhor. Mas percebia que o seu interesse só estava a irritar Simon e a deixá-lo inquieto. Conteve um suspiro
profundo enquanto ele embrulhava e voltava a arrumar a seringa no seu alforge.
- Está bem - disse ela. - Aceito que essa tua misteriosa Rosa de Prata existe e que está a dar aos seus conhecimentos um uso terrível. Mas não sei o que posso fazer
para te ajudar a desmascará-la. Como podes ver, vivo aqui, muito fora de tudo. Mesmo que prestasse mais atenção ao que se passa no mundo, não possuo poder nem influência
suficientes entre as outras Filhas da Terra para te ajudar a descobrir essa mulher.
Simon fechou a fivela do alforge. Evitou olhar para Miri enquanto lhe respondia: - Não, mas a Senhora da Ilha Encantada tem. Um calafrio de apreensão percorreu Miri.
- O quê?
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- A tua irmã, Ariane - Simon procurou parecer despreocupado, mas a tensão no seu rosto revelou a Miri que ele compreendia perfeitamente a incrível dimensão do que
estava prestes a pedir-lhe. - Se ao menos pudesses enviar-lhe uma mensagem...
Mas Miri já estava de pé, demasiado assustada e ofendida para sequer falar. Tudo o que conseguia fazer era abanar veementemente a cabeça.
- Miri, tenho a certeza de que sabes onde ela está. Tu e as tuas irmãs eram tão amigas. Nunca ficarias sem as contactar por muito tempo. E mais, também sei como
comunicam entre vós. com essas aves que haveis enfeitiçado para transportar mensagens em longas distâncias.
Miri encontrou força suficiente na voz para retorquir: - Treinado, maldito sejas. Os meus pombos estão treinados para entregar mensagens.
- Está bem, está bem. - Simon levantou as mãos num gesto de pacificação. - Por favor, podes informar a Ariane com um desses teus animais treinados - Não farei qualquer
esforço para perseguir a ave, se é disso que tens medo. Dificilmente o poderia fazer mesmo que o tentasse.
"Nem sequer quero saber onde está Ariane, apenas avisá-la sobre o que está a acontecer. Não deverá a Senhora da Ilha Encantada ser uma guardiã, assegurando que as
outras mulheres sábias não pratiquem o mal, ao mesmo tempo que as protege?
- Ariane sempre procurou fazer exatamente isso. Mas ela já não é a Senhora, graças a ti. Talvez se não tivesses levado Ariane a afastar-se da ilha Encantada, ela
tivesse há muito descoberto e travado essa Rosa de Prata. Alguma vez pensaste sobre isso, Simon?
- Sim, pensei. Não fazes ideia de quantas vezes o lamentei... - Interrompeu-se, passando lentamente uma das mãos pelos cabelos. - Mas, Miri, não posso desfazer o
passado. O que posso fazer é tentar não repeti-lo.
- Aproximando-se, agarrou-lhe o pulso, com os dedos a tocarem a pele delicada de Miri. - Preciso da ajuda de Ariane, da sua ligação com a comunidade de feiticeiras...
quero dizer, de mulheres sábias. Não importa onde está, ainda é a Senhora da Ilha Encantada. Não achas que ela quereria saber desta ameaça crescente?
- Tenho a certeza de que quereria e é exatamente por isso que não tenho qualquer intenção de lho contar. - Miri libertou-se da prisão de Simon e recuou, sem a certeza
do que considerava perigosamente mais sedutor, o seu toque suave ou o seu olhar suplicante. - Se Ariane soubesse deste problema, iria desde logo pensar que era seu
dever voltar à ilha Encantada, independentemente dos riscos que pudesse correr. E aonde for Ariane, Renard
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irá com ela. Ambos atraídos para qualquer armadilha que pudesses estar a preparar-lhes. Tu já pareces estar meio desconfiado de que Ariane pode ser a tua Rosa de
Prata.
- Já te disse que não estou. A tua irmã é fundamentalmente uma pessoa boa, embora eu confesse que considero alguma da sua sabedoria um pouco... desconcertante. Aquilo
por que mais a culpo é pela escolha de maridos. Mas se Ariane regressar, juro que estará a salvo de mim. E Monsieur le Comte também - acrescentou Simon depois.
- Terás de me perdoar por não acreditar em ti. A última vez que me levaste a confiar em ti, estiveste perto de conseguir destruir todos e tudo o que eu amava.
Simon abriu a boca para retorquir, para a fechar logo de seguida, com uma miríade de emoções a cruzar-lhe o rosto: tristeza, vergonha, remorso.
- Tens toda a razão. Não te dei nenhuma razão para voltares a confiar em mim e, pelo contrário, dei-te todas para continuares a odiar-me.
- E esse é exatamente o problema. Não quero odiar-te, Simon. Dói demais. Receio tanto que me traias de novo, que da próxima vez posso muito bem usar aquela faca.
- Miri afastou-se dele, esfregando os braços para se aconchegar. - Se o perigo fosse só para mim, poderia estar disposta a arriscar confiar em ti novamente. Mas
pôr Ariane e Renard em risco... não posso fazê-lo. E não vou fazê-lo. A minha resposta ao teu pedido tem de ser não. Portanto, a não ser que pretendas forçar-me
a dizer-te onde está Ariane ou...
- Nunca faria uma coisa dessas.
Ela olhou-o sobre o ombro, na expectativa de o encontrar furioso ou com a sua típica expressão endurecida. Teria sido assim que ele reagiria no passado à sua recusa
em colaborar. Mas Simon parecia simplesmente derrotado, com os ombros descaídos, como um homem que tivesse visto queimar e reduzir a cinzas a sua última esperança.
- Peço-te desculpa - disse Miri num tom mais suave.
- Não o faças. - A boca de Simon esboçou algo semelhante a um sorriso triste. - Se há alguém que tem de pedir desculpa sou eu. Face à nossa história passada, era
irrazoável da minha parte esperar qualquer resposta diferente.
Apanhou o gibão da corda da roupa e voltou a vesti-lo. Encaminhou-se depois para a porta, afundou-se num banco e procurou as botas.
- O que... que estás a fazer? - vacilou Miri.
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- Mantiveste a tua parte do acordo. Ouviste o que eu tinha para dizer. É a minha vez de manter a minha. - Simon voltou a calçar o pé no couro húmido, salpicado de
lama. - Prometi que te deixaria em paz.
Seria sem dúvida o melhor. Para ambos. Mas então por que estaria ela atormentada com o afiado punhal? Aproximou-se enquanto ele procurava calçar a segunda bota,
procurando contrariar a forte vontade de o impedir de o fazer.
- Ainda está a chover torrencialmente e provavelmente vai continuar durante horas e tu pareces exausto. Não tenho cama para te oferecer, mas se quiseres esticar-te
na minha lareira e...
- Não acho que isso fosse boa ideia. É melhor que eu regresse para a senhora que está acostumada a partilhar as minhas noites.
- Oh - - Miri sentiu a pressão para dissimular o seu desalento. Simon parecia tão só que nunca lhe ocorrera que pudesse ter uma mulher algures à sua espera.
Simon pôs-se de pé com um sorriso, como se tivesse adivinhado exatamente o que ela estava a pensar. - Quero dizer a Elle. Ela é a única senhora na minha vida. Estou
habituado a deitar-me no estábulo com ela.
- Ah! - Miri enervou-se ao sentir-se ruborescer. Não era certamente da sua conta que Simon tivesse uma mulher ou não. - Isso... isso é bom. Não o facto de não teres
outra mulher, mas... mas a Ele... ela cuidará de ti e avisar-te-á se o perigo se aproximar.
- Assim o tem feito, mais vezes do que as que posso contar.
Miri concordou num aceno. Ela e Simon estavam apenas a um passo um do outro, mas a distância parecia agora muito maior. Fez-se sentir um longo e embaraçoso silêncio.
Todos os sons da tempestade se tinham calado, apenas a chuva continuava a bater nas janelas e no telhado da casa.
Estranho. Miri sempre achara reconfortante o som da chuva, mas desta vez sentia-o como assombrado e melancólico. Talvez porque estava tão plenamente consciente de
que esta podia ser a última vez que ela e Simon se encontravam. Como se podia então dizer adeus a um homem que outrora fora simultaneamente um amigo estimado e um
odiado inimigo, o primeiro amor e o desgosto persistente?
Miri entrelaçou nervosamente os dedos. Pensava se devia oferecer-lhe a mão ou fazer uma mera vénia, quando Simon lhe resolveu o dilema fazendo a última coisa que
ela podia esperar.
Agarrou-a pela cintura e puxou-a com tanta força para ele que Miri emitiu um ligeiro gemido. Espantada, olhou a mancha escura do seu rosto.
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Antes que pudesse protestar, a boca dele desceu sobre a dela, num beijo que lhe tirou o resto do fôlego.
Não era nada como o suave calor do primeiro beijo que haviam trocado. A barba dele raspava-lhe a pele enquanto a devorava com os seus lábios, num abraço tão feroz
que era como se estivesse a tentar recolher uma parte da alma dela para levar consigo.
Miri sentira-se indefesa antes da arremetida, com as mãos presas no meio de ambos, abraçada contra a inexorável parede do peito de Simon. Podia sentir o calor da
sua pele através do tecido húmido da camisa e o trovão selvagem do seu coração. Dentro dela ecoou o seu próprio coração acelerado, enquanto Simon assaltava a sua
boca e agitava o seu sangue com um beijo nascido do calor e do desespero, do desejo e da solidão.
As emoções de Simon ameaçavam submergi-la como uma maré negra. O pensamento de Miri vacilou, incerto sobre se queria lutar ou simplesmente render-se, mas uma vez
mais Simon tirou-lhe a decisão das mãos.
Afastou-a, pondo fim ao beijo, tão abruptamente como o iniciara. O seu peito arquejava e Simon olhava para ela como se quisesse gravar a sua imagem na memória. Depois,
sem uma palavra, afastou-se e abriu a porta, desaparecendo por entre a cortina do dilúvio.
A escada subia em caracol até às nuvens, com os degraus retorcidos em voltas com ângulos loucos. Miri lutava degrau após degrau, procurando evitar atropelar os lagartos
que corriam aos seus pés. Macias, escorregadias e frias, as salamandras roçavam-lhe os tornozelos. Quando já desesperava conseguir chegar ao cimo das escadas, emergiu
numa sala com o chão semelhante a um gigantesco tabuleiro de xadrez com as casas pretas e brancas alinhadas, com enormes peças de xadrez esculpidas em pedra.
Miri sentiu um calafrio quando a rainha negra ergueu o cetro e vociferou uma ordem gutural que pôs em sentido os peões. Miri escondeu-se atrás de uma torre branca
até se aperceber de que eles não carregavam sobre ela, mas sim sobre o cavaleiro branco montado no seu corcel branco.
Procurou gritar um aviso, mas o seu grito perdeu-se no meio do alarido do ataque dos peões. com as clavas erguidas, desferiam golpe sobre golpe no cavaleiro, destruindo
a sua montada e reduzindo-o a um monte de destroços de membros e armadura.
Miri correu para o cavaleiro, horrorizada ao tomar consciência de que afinal não era uma peça de xadrez mas um homem caído, ferido e a sangrar. O seu cabelo negro
cobria-lhe a face, escurecendo todo o rosto...
Os olhos de Miri abriram-se num ápice. Arquejando, ergueu-se repentinamente da almofada, desalojando Necromante, que estava enrolado junto ao seu peito. Ignorando
o miar ofendido do gato, afastou a coberta com os pés e saiu da cama, endireitando-se tão subitamente que quase bateu com a cabeça no teto baixo do sótão.
Cambaleou com um pensamento urgente. Simon. Precisava de encontrá-lo e avisá-lo imediatamente. com o coração a bater fortemente, precipitou-se escada abaixo antes
de se lembrar.
Simon partira há muito. Há quantas noites teria sido, duas - Ou três desde que ele desaparecera sob a chuva, deixando-a atormentada com pesadelos
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de bebés abandonados e mulheres sinistras que cultivavam rosas mortíferas - Mas de todos os seus pesadelos, este último, o ataque ao homem, fora de longe o pior,
muito como os velhos sonhos que tinham atormentado a sua juventude, presságios estranhos e inexplicáveis de coisas que estavam para vir.
Acabou de descer as escadas a tremer. Julgava que a idade dos terrores noturnos já tinha passado há muito, uma coisa que agradecera a Deus ter finalmente ultrapassado.
Há muitos anos que não tinha um sonho assim, tão forte e urgente; continuava a querer encontrar Simon e contar-lhe.
Mas contar-lhe o quê, exatamente? Cuidado com as salamandras - Evita os tabuleiros de xadrez - A tua vida está em perigo - Há alguém que te quer destruir - Praticamente
nada que Simon já não soubesse.
Afastando o cabelo dos olhos, Miri saiu de casa aos tropeções, procurando o barril que sempre deixava lá fora para recolher a água da chuva. Mergulhando as mãos
na água fria, espalhou-a pelo rosto, reconfortando-se com o choque gelado e esperando afastar os últimos vestígios do seu sono agitado. Inclinou a cabeça para trás
e encheu os pulmões de ar, procurando respirar na acalmia que naquela manhã cobria a floresta.
Madrugada... a sua parte do dia preferida, quando o mundo estava lavado de fresco com orvalho, e os verdes vivos da floresta, macios e vítreos, à primeira luz da
manhã. Numa manhã tal como esta, a violenta tempestade que tinha arremessado Simon de novo para a sua vida parecia nunca ter acontecido.
Todos os vestígios do homem tinham desaparecido; removera a rede que usara para armadilhá-lo e não havia nem uma só pegada de Elle. Quase que podia imaginar que
a visita de Simon não fora mais do que outro sonho, exceto...
Pesarosa, Miri passou o dedo pelo seu lábio inferior. Exceto por aquele beijo que Simon deixara marcado na sua boca, tão quente, tão implacável; mas os seus lábios
ficaram de novo macios, depois de ele partir. A sua boca recuperara mas o seu coração ainda se sentia magoado pela recordação do feroz abraço de Simon.
Maldito homem. Porque não se limitou a estender-lhe a mão? Porque tivera de a agarrar e beijá-la assim... como se o céu estivesse prestes a cair e o mundo inteiro
a acabar? O seu abraço não fora apenas a partida de um homem que pensava ser improvável os seus caminhos voltarem a cruzar-se. Não, fora mais como uma espécie de
adeus desesperado de um soldado à sua bem-amada, na véspera de uma batalha à qual não esperava sobreviver.
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Simon não esperava viver o suficiente para voltar a vê-la e podia muito bem ter razão.
Miri arrepiou-se com as imagens do seu sonho a voltarem-lhe à mente, os golpes das clavas, a escura maré de sangue. Apertou os braços contra o corpo e abanou a cabeça
em rejeição. Não havia razão para supor que o homem no seu sonho fosse Simon. Nem sequer pudera ver-lhe o rosto.
Não havia dúvida de que Simon tinha muitos inimigos. Tinha feito o seu melhor para se tornar um homem temido e odiado, mas conseguira sobreviver até agora, não tinha?
Se ao menos não parecesse tão exausto e só...
Mas isso não era o que mais preocupava Miri. Era a sombra que sentia pairar sobre o espírito dele, fazendo com que não se importasse em estar vivo ou morto. A sua
recusa em ajudá-lo bem podia ter sido o golpe final, mas que mais podia fazer? Não podia pôr a sua família em risco voltando a confiar nele, especialmente quando
não tinha a certeza da verdade das suas histórias sobre a Irmandade da Rosa de Prata. Ele não lhe apresentara outras provas concretas para além da extraordinária
seringa a que chamara lâmina de bruxa, mas Miri só pôde pensar melancolicamente na bênção que seria os curandeiros de todo o mundo poderem dispor de tal instrumento.
Fora muito mais fácil acreditar nas histórias sinistras de Simon numa noite escura com o vento e a chuva a bater nas suas janelas. Mas, à luz do dia, a noção de
uma assembleia de bruxas a congeminar uma conspiração contra a humanidade parecia absolutamente fantástica. A amarga verdade era que Simon lhe mentira e a iludira
demasiadas vezes.
Miri sobressaltou-se quando algo sedoso roçou nos seus calcanhares. Olhando para baixo, viu que Necromante a tinha seguido desde casa e esgueirava-se agora entre
as suas pernas, roçando o focinho. com o seu invulgar instinto para descobrir quando ela estava preocupada e qual a razão das suas preocupações, o gato pestanejou-lhe.
"Esquece-o."
"Estou a tentar." Miri suspirou.
"Tens de tentar mais."
- Grande conselho, vindo de um felino cuja memória não vai além da sua última sesta, monsieur - retorquiu Miri, dando ao gato um empurrão brincalhão com os dedos
dos pés descalços. Mas enquanto regressava para casa para se vestir e tratar das suas tarefas matinais, fez um esforço concentrado para afastar Simon para a câmara
selada da sua mente onde o mantivera durante tanto tempo.
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Outrora, tais tarefas diárias, como ordenhar as cabras, alimentar os pombos e tratar do seu pónei, tê-la-iam enchido de simples satisfação. Mas Miri completou as
suas tarefas numa névoa de distração, pela qual não podia culpar inteiramente Simon. Já antes da sua visita que vinha a sentir-se indefesa e agitada.
Pendurando um cesto no braço, internou-se na floresta para se reabastecer de raízes e bagas silvestres que usava para preparar alguns dos seus elixires. Necromante
seguia à sua frente, entrando e saindo no mato para satisfazer a sua curiosidade quanto a algum inseto isolado que vislumbrava.
Miri seguia Necromante, com as plantas dos pés acostumadas a pisar os fetos. Afastando cuidadosamente os ramos que lhe bloqueavam o caminho, passou as pontas dos
seus dedos sobre o tronco duro de um majestoso ulmeiro. Outrora fora capaz de sentir o pulsar de vida que corria das raízes, profundamente mergulhadas na terra;
a pulsação da própria ilha. Teria realmente desaparecido a antiga magia - Ou teriam os seus dedos ficado desajeitados demais para a sentir?
Ainda possuía a capacidade de caminhar como um murmúrio pela floresta, procurando não perturbar a paz da vida selvagem; um pequeno esquilo castanho que a olhava,
desconfiado, do seu poleiro; o chilrear alegre dos pássaros indiferentes à sua presença. Muitas vezes Miri achava estranho pensar que aprendera a movimentar-se em
silêncio, não com a sua mãe, Filha da Terra, mas com o seu muito mais extravagante pai. Louis Cheney era um cavaleiro tão conhecido pelo seu engenho e ruidosa gargalhada
como pela sua coragem, uma figura querida nos círculos da corte. Mas Miri tinha conhecido pouco do audacioso cavalheiro que tal impressão causara em Paris. As suas
memórias de infância foram forjadas com o homem alto e bem-parecido que fora o centro do seu pequeno mundo, o seu chefe co-conspirador e companheiro de brincadeiras.
Durante aqueles preciosos verões em que o papá regressara da corte para visitar a ilha que era a sua casa, quantas vezes haviam corrido através da floresta à caça
de fadas ou escondido no mato, sem respirar, à espera de um vislumbre do unicórnio.
"Minha pequenina, tens de ficar muito quieta", sussurrava-lhe aos ouvidos, com a cabeça escura dobrada sobre ela. "Até mesmo estes seres mágicos ficam com uma sede
tremenda por andarem a vaguear pela Ubá. Mantém os teus olhos atentos no rio e verás que vais vê-lo sair das árvores para vir beber."
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Embora Miri estremecesse de excitação, não fora capaz de deixar de expressar as suas dúvidas. "Mas, papá, aAriane e a Gabrielle nunca viram o unicórnio. Por isso,
como é que eu serei capaz de o ver? Eu sou tão mais nova e mais pequena."
"Ah, mas de todas as filhas da Terra nesta ilha, és a que foi abençoada com o dom de ver aquilo que nós, pobres mortais, não conseguimos. Tu mesma és um bocadinho
de criança e de fada, minha querida Miri."
Miri pensava agora se o seu pai teria alguma ideia do impacto que as suas palavras tiveram sobre ela. Nascida prematuramente, fora um bebé frágil, uma criança delicada,
durante algum tempo pequena para a sua idade. Sempre se sentira muito mais fraca e menos capaz do que as suas irmãs, fortes e espertas. O seu pequeno coração enchia-se
de orgulho quando pensava que possuía pelo menos um dom, uma coisa que podia fazer e que Ariane e Gabrielle não podiam.
Ela podia ver o unicórnio. Ou ficara apenas encantada pelo dom do seu pai para contar histórias e a sua capacidade de erguer castelos no ar com o simples poder das
suas palavras?
Embora a mamã sorrisse sempre às descrições entusiasmadas de Miri sobre as suas aventuras na floresta, sabia que elas também deixavam preocupada a sua pragmática
mãe. Uma vez, quando julgara que Miri estava longe para poder ouvir, admoestou delicadamente o papá.
Louis, pensais mesmo que é sensato encher a cabeça de Miri com tanta fantasia? Entre os seus amados animais e a sua imaginação, a criança vive demasiado no seu próprio
reino. Receio que isso não a prepare devidamente para lidar com o mundo real."
O papá limitara-se a rir e a responder. "Um pouco de fantasia nunca fez mal a ninguém, minha mui séria demais Senhora da Ilha Encantada. O mundo real, como lhe chamais,
pode ser um sitio muito desagradável. A criança aprenderá tudo isso demasiado cedo."
E assim fora, pensou Miri tristemente. Tinha apenas nove anos quando o pai partiu de barco na sua viagem para o novo mundo, com a promessa de ir buscar para ela
todo o tipo de presentes extravagantes das misteriosas terras distantes.
"Não te esqueças de ficar à espera de ver o meu barco regressar, petite. Volto antes de dares por isso. Espera por mim..."
E ela esperou, até muito depois de as suas irmãs terem perdido a esperança. Uma parte dela ainda ansiou longamente por um tempo e um lugar que não mais poderiam
voltar. Um mundo encantado em que os pais não pereciam no mar e as mães não morriam jovens. Em que as irmãs não eram
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separadas e um rapaz bonito, amado e merecedor de confiança não se revelava um perigoso adversário.
As suas florestas sempre haviam sido assombradas, mas naquela manhã pareciam-no ainda mais do que era habitual, enevoadas por memórias agridoces. Marie Claire avisara
Miri quanto a revisitar muito o passado.
"Esta ilha já não é lugar para ti. Nada mais tem do que memórias de um tempo que desapareceu há muito... Deixa a ilha Encantada, regressa a Bearn e casa com o jovem
que te adora."
Esquecida a sua busca de raízes silvestres, Miri pousou o cesto. Encostando-se a um grosso tronco de árvore, puxou pelo medalhão aconchegado no interior do corpete
do seu vestido, procurando a gravura do lobo a olhar longamente para a Lua. Os seus lábios romperam num sorriso que era meio terno, meio triste, enquanto pensava
no seu próprio lobo, Martin, o Lobo, com os seus olhos travessos, a barba aparada e o seu cabelo cor de areia. A última vez que o vira, tinham passeado pelos jardins
do palácio de Navarra; Martin, esplêndido no seu gibão bordado, uma capa curta dobrada sobre o ombro largo, como um pavão ostentando as suas penas perante a sua
muito mais sóbria pavoa. Ultrapassando a sua relutância em aceitar o medalhão, apertara-lho ao pescoço.
"Não é como um anel de noivado, Miri. Apenas um símbolo de... amiúde, uma pequena jóia."
"Uma jóia muito cara", murmurara Miri, tocando nervosamente com os dedos no fio entrelaçado, preocupada com quantas moedas arduamente ganhas teria Martin gasto.
É prata pura."
"Ah, mas não como a prata dos vossos olhos ao luar. Isso sim, é um verdadeiro tesouro."
Miri olhou-o ironicamente. O seu querido amigo podia ser notoriamente namorador, extravagante e sedutor com os seus elogios. As mãos de Martin demoraram-se no pescoço
de Miri, mas, perante o seu olhar, suspirou e retrocedeu.
Miri atrapalhou-se apegar no medalhão. Quando abriu o fecho e viu a inscrição e o relógio no interior, ficou ainda mais estupefacta.
"Martin, este... este relógio foi uma oferta para vós do próprio rei." U ma prova da estima e gratidão de Henrique de Navarra pela perigosa missão que Martin desempenhara,
espiando as poderosas forças da igreja Católica, que ameaçava as fronteiras do pequeno reino huguenote.
"Não posso aceitar, de modo algum. Se sua majestade descobrisse que usastes a vossa oferta para a transformar num medalhão para mim, certamente ficaria ofendido."
Mas quando Miri tentou tirar o medalhão, Martin fechou as suas mãos sobre as dela.
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"Navarra compreenderia. Ele próprio é um grande romântico quando se trata de cortejar as damas. Só há uma diferença entre nós. Ele foi devotado a muitas mulheres,
eu sempre só a uma. Além disso, por que razão um cavaleiro errante procura obter ofertas destas do seu rei? Apenas para as depositar aos pés da sua querida dama,
para provar ser digno dela."
"Não tendes que me provar nada."
"Oh, tenho sim. O vosso cavaleiro tem muitos mais dragões para matar, muitas mais missões para cumprir antes de conquistar o vosso coração, minha querida Senhora
da Lua."
Miri sorriu pesarosamente. "Por vezes penso que o cavaleiro desfruta tanto das suas missões como da perspetiva de poder pedir a mão da sua dama. Já haveis pensado
que, no dia em que a conquistardes, as vossas aventuras terminarão?"
"Não, esse seria o dia mais feliz da minha vida", insistiu Martin, apertando-lhe as mãos. "Mas, entretanto, espero que pelo menos a minha humilde oferta assegure
que não vos esquecereis de mim."
"Como se alguma vez pudesse fazê-lo."
"Sinceramente?", perguntou ansiosamente. "Por vezes interrogo-me."
Miri libertou uma das mãos para lhe afagar a face. "E por vezes eu penso que estaríeis muito melhor se me esquecêsseis."
Martin abanou a cabeça, ensombrando os olhos com uma expressão invulgar, terna e séria. "Seria preciso um feitiço poderoso para me obrigar afazer isso, senhora minha.
Adoro-vos desde o primeiro momento em que pela primeira vez vos vi. Eu... eu sei que haveis sofrido muitos desgostos, que ainda não vos sentis pronta para ser a
noiva de um homem..."
"E posso nunca o vir a estar", Miri procurou avisá-lo, como já tantas vezes antes fizera.
"Não importa." Martin beijou-lhe as costas da mão. "Esperarei por vós para sempre..."
Para sempre. Miri voltou a colocar o medalhão no interior do vestido, sentindo que Martin já esperara suficientemente que ela saísse do seu mundo assombrado de desgostos
e memórias. Apesar das suas expressões excessivamente dramáticas, Miri jamais duvidara da sua devoção por ela; era o amigo mais verdadeiro que já tivera. Ele amava-a
e, sim, ela acreditava que também o amava. Talvez Marie Claire estivesse certa. Era tempo de Miri deixar o passado para trás, regressar a Bearn e por um fim à espera
de Martin. E à dela mesma.
"Miau!"
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O miar ansioso do gato despertou Miri dos seus pensamentos. Endireitou-se e afastou-se da árvore, apercebendo-se de que, enquanto estivera perdida nos seus pensamentos
e recordações, perdera também o rasto de Necromante. O seu velho gato, acostumado a considerar-se um poderoso caçador, esquecia frequentemente o facto de que, naquelas
florestas, ele próprio podia acabar como presa.
Olhou ansiosamente à sua volta, procurando determinar a direção dos mios. Miri chamou: - Necromante!
Para seu alívio, o gato irrompeu do mato, aparentemente ileso e sem nenhum animal a persegui-lo. Correu para Miri e arranhou-lhe as saias, com os seus pensamentos
a deixá-la numa frenética e caótica confusão.
"Filha da Terra... tens de vir. Precisa de ajuda. Um órfão."
Miri franziu a testa. "Seja qual for o problema, espero que nada tenhas a ver com a causa da orfandade. Se andaste de novo atrás de algum pobre chapim..."
Os olhos ambarinos de Necromante brilharam, repreensivamente. "Desta vez não é nenhum rato tonto nem coelho miserável. É um da tua espécie. Um bebé humano."
Um bebé? Miri arregalou os olhos para o gato, num misto de consternação e incredulidade. O que estaria a fazer um bebé sozinho na floresta? Antes que Miri pudesse
fazer-lhe mais perguntas, Necromante voltou a interrompê-la, instando-a a segui-lo rapidamente.
"Depressa."
Miri correu atrás dele o melhor que podia. Moveu-se sem a usual reverência pela floresta, afastando impacientemente os ramos das árvores do seu caminho. Pelo menos
havia uma espécie de caminho, pois Necromante guiava-a por um trilho que conduzia ao rio que corria em grande parte da superfície da ilha Encantada. Miri já ali
estivera para encher os seus baldes ou lavar roupa, às vezes apenas para ficar a admirar, absorta, as águas cristalinas, e recordar, chorar e sonhar.
Necromante levava-lhe já um grande avanço quando saiu da floresta e desembocou na margem do rio. Espreitou o gato à sua espera perto da rocha plana onde costumava
apanhar sol ou estender a roupa a secar.
Havia algo mais a ocupar a rocha esta manhã, alguma coisa embrulhada num xaile brilhante de muitas cores. Miri deteve-se abruptamente, com o coração a querer saltar-lhe
do peito e com as palavras de Simon a assombrá-la de novo.
"Sacrifícios humanos. Bebés, alguns com poucas horas de vida, abandonados à morte pela fome e por falta de cuidados. Tão pequenos, tão tranquilos e tão frios."
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Não. Miri não podia acreditar que algo tão terrível acontecesse. Pelo menos não ali, na ilha Encantada. Apesar de não querer acreditar, o seu coração explodia de
apreensão à medida que lentamente se aproximava. Necromante espreitava nervosamente por entre as suas saias enquanto subia à rocha, mas Miri mal o notava, com o
olhar fixo na pequena trouxa. Tão silencioso e sem movimento.
A boca de Miri secou. Receando o que podia estar prestes a encontrar, os dedos tremiam-lhe quando se baixou para desdobrar as pontas do xaile. Sufocou um grito de
angústia ao ver o pequeno rosto. O bebé parecia ter poucas horas, com algum do fluido que o abrigara na barriga da mãe a formar uma crosta no alto da cabeça.
Miri apoiou um dedo no peito pequeno. Não estava rígido nem frio como temera, mas quente. A criança ainda estava viva. Agitou-se com o toque de Miri e emitiu um
lamento agudo.
Soluçando de alívio, Miri dobrou-se para segurar o bebé nos braços. O xaile desdobrou-se o suficiente para revelar que o bebé era um menino. Embrulhando e aconchegando
a roupa ao pequeno bebé, Miri embalou-o no seu colo, confortando-o num meigo sussurrar.
- Vamos lá, mon petit. Agora estás a salvo, mas quem poderá ter cometido semelhante crueldade, deixando-te aqui abandonado?
Mas Miri já sabia qual era a resposta a esta pergunta, pois reconhecera o xaile de cores brilhantes que vira antes a embelezar os ombros de uma jovem rebelde à espera
de bebé.
- Oh, Carole, o que fizeste? - murmurou Miri. Ou mais exatamente: o que teria persuadido a jovem a fazê-lo?
Miri sentiu-se gelar, com a respiração presa na garganta enquanto arregalava os olhos para o objeto que estivera oculto debaixo do bebé, mas que agora brilhava ao
sol, em cima da rocha. Uma flor cujas pétalas deveriam ter uma aparência vibrante, aveludada e quente, mas que, pelo contrário, pareciam encastoadas em gelo, brilhantes,
mortíferas e frias.
Uma rosa de prata.
Miri afastou-se a toda a pressa da casa vazia de Marie Claire, olhando fixamente a viela poeirenta. Toda a cidade de Port Corsair parecia assustadoramente deserta
naquela manhã. Equilibrava o bebé numa alça improvisada enlaçada ao pescoço, procurando combater uma sensação semelhante a pânico. Desde que tropeçara na mortífera
rosa de prata e reconhecera que Simon lhe havia contado a verdade, que andava a fazer os possíveis por reprimir os seus medos e impedir a imaginação de se descontrolar.
O mal que Simon descrevera era real demais e tinha descoberto o caminho para as praias da sua ilha.
Enquanto ela desprezara o seu aviso, as seguidoras da Rosa de Prata já se tinham esgueirado até à ilha Encantada, desencaminhando a jovem Carole Moreau. Miri encolhia-se
agora ao recordar a fanfarronice da jovem, uma observação a que naquela altura prestara pouca atenção.
"Eu tenho amigas, amigas muito poderosas que irão olhar por mim."
Não, não são amigas, refletiu Miri furiosamente. Bruxas. Nunca na sua vida aplicara termo tão vil a qualquer mulher, mas não conseguia pensar que outra coisa podia
chamar a criaturas tão depravadas que predavam na miséria e no desespero de uma jovem confusa, persuadindo-a a fazer algo tão horrível como sacrificar o seu próprio
filho.
Onde estaria Carole agora? E Simon - Quando deixou a ilha Encantada, teria ele qualquer suspeita de as suas inimigas estarem por perto? Ou teria sido possível ser
apanhado desprevenido e... -
O peito de Miri apertou-se e ela remeteu os seus medos para o fundo da sua mente. Não havia nada que pudesse fazer por Carole ou Simon naquele momento. A sua preocupação
imediata era o bebé aconchegado nos seus braços. Tanto quanto podia dizer, o pequeno menino não sofrera efeitos no civos
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da sua provação, mas precisava de cuidados que Miri não podia proporcionar-lhe.
Tinha de encontrar-lhe uma ama de leite e rapidamente. E tinha de localizar os parentes da criança, os tios de Carole Moreau. Para tal, Miri precisava da ajuda de
Marie Claire. Mas, para desalento de Miri, a velha mulher não estava em casa. Obrigou-se a manter-se calma, a pensar qual seria o local mais provável para onde poderia
ter ido Marie Claire.
Tal como enquanto antiga madre superiora se impacientara muitas vezes com as restrições da vida conventual, ela sentia agora a falta da velha rotina dos seus dias,
o ciclo ordenado das suas devoções. Miri sabia que Marie Claire frequentemente se escapava até à igreja para rezar o terço e as suas orações. Ordenando a Willow
para ficar, deixou o pónei a pastar junto ao portão de Marie Claire e precipitou-se viela abaixo.
À medida que Miri se aproximava da pequena estrutura de pedra cruciforme que era Santa Ana, rezou uma oração silenciosa para que Marie Claire lá estivesse. Imobilizou-se
um pouco junto à porta pesada de carvalho para ajustar o bebé, pois o nó da alça começava a desfazer-se nas costas do seu pescoço.
Miraculosamente, a criança adormecera. Miri só esperava que fosse um sono natural. Já salvara as crias de muitos seres na natureza, mas um recém-nascido humano parecia
perturbadoramente mais frágil, muito mais carente de qualquer instinto de sobrevivência. Embalando o bebé contra ela, Miri empurrou a porta da igreja com o ombro.
O interior de Santa Ana era escuro e frio em contraste com o calor e a luz brilhante do dia de verão. com o olhar semicerrado, Miri perscrutou o espaço vazio da
nave. O altar-mor parecia solene e deserto.
Mas uma vela fora acesa no nicho onde presidia a imagem de Santa Ana com os seus bondosos braços abertos. Alguém se prostrara perante a mão da abençoada virgem.
Quando Miri se aproximou, o seu coração desanimou-se ao aperceber-se de que não se tratava de Marie Claire, mas de uma mulher muito mais magra, de cabelo castanho
com madeixas grisalhas.
Tinha os braços magros esticados rigidamente à sua frente, as mãos erguidas numa postura de súplica. Miri não teve dificuldade em reconhecer a figura ossuda de Josephine
Alain, apesar de estar com a cabeça baixa. Miri começou a retroceder rapidamente, mas o ruído alertou Madame Alain da sua presença.
A cabeça de Madame Alain ergueu-se. Enquanto se punha de pé, Miri contraiu-se, apertando instintivamente os braços em redor do bebé, sem
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saber exatamente o que esperar de uma mulher que a odiava o bastante para a denunciar a um caçador de bruxas.
Madame Alain ficou pálida ao ver Miri. - Meu Deus - murmurou.
- Pensei que poderíeis estar...
- Capturada por aquele caçador de bruxas que haveis enviado atrás de mim? - interrompeu Miri, bruscamente. - Não, lamento desapontar-vos, madame, mas Simon Aristide
não tinha qualquer interesse em prender-me. Ele há muito que partiu e eu ainda aqui estou.
- Oh! - A mão de Madame Alain voou até à sua boca. Voltou a cair de joelhos, chorando. - Oh, graças a Deus, graças a Deus.
Miri pestanejou. Esta não era certamente a reação que esperava de uma mulher tão tormentosa e vingativa. Aproximou-se. As lágrimas caíam pelo rosto de Josephine
enquanto torcia as mãos. Tinha o olhar macilento de uma mulher que não dormia há dias, com olheiras negras bem marcadas. Encolheu-se quando Miri se aproximou, desviando
a cabeça como se não pudesse suportar o seu olhar.
- Pensei que pudésseis t... ter sido levada pelo homem ou até que p... pudésseis estar morta - disse Josephine por entre lágrimas. - E eu não c... consegui achar
coragem para dizer a ninguém o que tinha feito até esta manhã. - A voz desvaneceu-se-lhe até um rouco murmúrio. - Estou envergonhada. V... vender outra mulher a
um ca... caçador de bruxas. Deus do céu, em que espécie de pessoa horrível me transformei? Tenho rezado a Deus para não vir a arder nas brasas do Inferno pelo que
fiz. - Os ombros agitaram-se num soluço abafado. - Nenhuma mulher nesta ilha jamais me perdoará ou voltará a fa... falar-me.
Apesar de tudo o que Josephine fizera, Miri comoveu-se pelo estado infeliz em que a mulher se encontrava. Pousou suavemente a mão no ombro de Josephine. - Claro
que todos vos perdoarão. Eu perdoo.
Josephine arriscou olhar de soslaio para cima, dividida entre a admiração e a incredulidade. - Perdoais? Não consigo imaginar porque o fazeis. Não há nada que eu
possa fazer para reparar o que vos fiz.
- Não há nada a reparar, só quero a vossa amizade. E a vossa ajuda. - Miri abaixou-se ao lado de Josephine e puxou para trás a dobra do cobertor que caíra sobre
o rosto do bebé.
Josephine fungou e enxugou as lágrimas dos olhos. - Mas... mas é um bebé.
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- E muito esfomeado, receio eu - disse Miri. Mesmo durante o sono, o pequeno bebé chupara ansiosamente o punho, de uma maneira que comovera Miri. - Tentei dar-lhe
um pouco de leite de cabra.
- Leite de cabra! - exclamou Josephine horrorizada. - Isso é muito áspero para um bebé da idade dele. com certeza não terá mais do que... do que...
- Um dia, penso eu.
- E onde na Terra está a mãe?
- Não sei. Encontrei-o abandonado na floresta. - Miri hesitou antes de acrescentar: - Ele... ele é muito provavelmente o filho de Carole Moreau. Estou terrivelmente
preocupada com ela, madame. Acredito que possa ter caído sob uma influência malévola e também não consigo encontrar Marie Claire...
- Então não haveis ouvido falar? - interrompeu Josephine.
O olhar grave da mulher aprofundou em Miri a sensação de pavor.
- Ouvido o quê? Aconteceu alguma coisa a Marie? - perguntou prontamente.
- Não, é essa desgraçada rapariga. Carole desapareceu e a tia está quase desvairada. Foi para casa dela que a Marie Claire se dirigiu e também grande parte da cidade,
para ajudar a procurá-la. Também são capazes de estar à vossa procura, já que... acabei por confessar o que fiz. -Josephine corou, culpada. - Não haveis encontrado
ninguém no caminho quando viestes para a cidade?
- Não vim pelo caminho mais direto. Tomei um caminho maior mas mais fácil em redor da floresta por causa do bebé. - Miri hesitou, imaginando o sobressalto que Marie
Claire deve ter sofrido ao ouvir alguém falar da visita de Simon à casa de Miri, como a sua amiga devia estar preocupada.
- Tenho de encontrar Marie quanto antes - disse. - Então e Carole? Ninguém tem a mínima ideia para onde possa ter ido?
- A única notícia veio de Sébastien, um pescador que vive numa cabana no outro lado da enseada Luna. Mas o homem passa mais tempo a beber do que com as suas redes,
por isso nem sempre a sua palavra é de fiar.
- O que disse ele? - perguntou Miri, ansiosamente.
- Conta uma história louca de ter visto Carole com duas mulheres estranhas, que não são da ilha. Uma era como um elfo e a outra uma verdadeira giganta. -Josephine
fez uma pausa para revirar os olhos. - Carole pareceria estar aterrorizada e chorava, pelo menos é o que diz Sébastien. Mas, tal como eu disse, a maior parte do
tempo o homem está bêbado e meio cego.
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Josephine tocou no peito do bebé, com a sua mão rude de trabalho surpreendentemente meiga. - E pensais que este é o filho de Carole? Ninguém sequer sabia que ela
já tinha dado à luz. Os tios dela queriam adotar a criança se fosse um menino e também dar-lhe um lar permanente. Este menino seria a sua salvação. O que levaria
Carole a abandoná-lo?
Miri ainda não decidira o que revelar sobre a existência da Rosa de Prata. Não tinha qualquer desejo de aumentar o medo entre as mulheres da ilha Encantada, pelo
menos não sem antes consultar Marie Claire.
- Não sei exatamente como Carole foi capaz de abandonar o seu filho ou até de fugir com essas estranhas - esquivou-se. - Talvez estivesse desesperada, à procura
da bondade e compaixão que não conseguiu encontrar na ilha Encantada.
- Suponho que essa reprimenda é para mim.
- Também é para mim. Poucos mais esforços fiz para procurar comunicar com Carole do que todos os outros na ilha Encantada. Mas agora temos de decidir o que se vai
fazer com o seu pequenino filho.
Enquanto Miri embalava o bebé nos seus braços, ele agitou-se e começou a chorar. Josephine estendeu as mãos timidamente. - Posso ?
Miri retirou o bebé da alça e passou-lho um pouco desajeitadamente. Josephine puxou o bebé para si, sussurrando e embalando-o com uma ternura de que Miri nunca a
havia julgado capaz. Invejou a segurança com que Josephine lidava com o frágil recém-nascido, com a experiência de uma mulher que tivera seis filhos.
Segurando o bebé contra o seu ombro, Josephine pôs-se de pé, acenando para consigo e dizendo: - Hélène Crecy.
Miri seguiu-lhe o exemplo, levantando-se. - Perdão. O que haveis dito?
- A Hélène também teve um bebé há seis meses. Ela irá ajudar com este pequenino. A mulher tem peitos do tamanho de melões e leite suficiente para alimentar um exército
de bebés. - Os lábios de Josephine curvaram-se. O seu rosto magro ainda guardava os traços da sua antiga beleza sempre que se dava ao luxo de sorrir. Encaminhou-se
a passos largos através da nave, cantarolando para consolar o bebé choramingão. Miri apressou-se atrás dela. A mulher deteve-se um pouco à porta da igreja, o suficiente
para olhar para Miri.
"Não fiquei com o dinheiro que aquele homem medonho me deu; doei-o à igreja e, bem... queria que soubesse isso.
- Obrigada - começou Miri, mas Josephine já tinha desaparecido pela porta.
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Miri avançou pela casa de Marie Claire enquanto a velha mulher cuidadosamente puxava as pontas da toalha de linho em que Miri enrolara a rosa venenosa. As pétalas
geladas brilhavam sobre o pano branco como a neve enquanto Marie Claire estudava a estranha flor através das lentes dos seus óculos com armação de cobre. Parecia
exausta pelo pavor que sentira quanto à segurança de Miri e por ter ajudado na infrutífera busca de Carole Moreau. Não se conseguia encontrar a rapariga. Ela e as
suas misteriosas companheiras, fossem elas quem fossem, tinham-se evaporado da ilha, juntamente com o velho bote decrépito de Sébastien.
Carole parecia aterrorizada e chorava... assim falara Sébastien. Não obstante aquilo que Carole sentisse por estas suas novas amigas, Miri não acreditava que Carole
tivesse partido com elas de livre vontade.
Apesar do calor do dia, um arrepio de frio percorreu Miri. Apertou os braços contra o corpo, braços que se sentiam estranhamente vazios desde que entregara o filho
de Carole aos cuidados de Josephine Alain. Miri sentiu-se um pouco culpada por isso, como se, pelo facto de o bebé ter sido abandonado na floresta, ele lhe tivesse
sido confiado. Mas não podia ter feito melhor pelo bebé do que entregá-lo a mãos mais capazes.
Quando a outra mulher conseguiu chegar a casa depois da busca por Carole, completamente exausta, toda a tensão e aversão se diluiriam ao olhar o bebé indefeso. Madame
Crecy (dos enormes peitos) amamentou-o de imediato, enquanto as suas vizinhas se juntavam a tagarelar, oferecendo todo o tipo de conselhos. Muitas delas eram as
mesmas que se tinham juntado a Josephine na perseguição a Carole há apenas alguns dias.
Talvez como Josephine, sentiam-se cheias de remorsos. Talvez fosse a inocência do bebé a amaciá-las. Ou talvez fosse possível que o espírito mais dócil e bondoso
que outrora povoava a ilha Encantada não estivesse tão morto como Miri pensava. Embora reconhecida por tê-lo testemunhado, Miri sentira-se fora daquele círculo mágico
que rodeava o bebé. Mas fora a sua própria mente que a distanciara, transportando-a para longe da ilha, para o homem que banira da porta de sua casa.
Bastava-lhe fechar os olhos para ver a face cicatrizada de Simon enquanto desaparecia na tempestade. E ela limitara-se a deixá-lo partir, determinada em ser deliberadamente
cega à ameaça que ele descrevera. Se tivesse dado mais atenção ao que ele lhe dissera, dado mais atenção a qualquer outra coisa no mundo para além da sua própria
aconchegada casa, poderia ter percebido o mal que invadira as costas da ilha e salvado Carole das suas garras.
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Desde há meses que Simon vinha a combater sozinho as forças desta Rosa de Prata. As bruxas já tinham tentado matá-lo várias vezes. Tanto quanto Miri sabia, podiam
já ter sido até bem-sucedidas nesse seu intento. Estava atormentada pelas recordações perturbadoras do seu sonho recente, pela sua visão do cavaleiro quebrado. O
pesadelo fora desarticulado e vago, com o rosto do homem desconhecido. Apenas quando os símbolos do seu sonho profético se tornaram claros como cristal é que começaram
a correr o risco de se tornar verdadeiros. Miri procurou retirar algum conforto deste pensamento.
Uma exclamação balbuciada por Marie Claire atraiu de novo a atenção de Miri.
- Eu seja enforcada se alguma vez vi algo semelhante a esta amaldiçoada coisa - disse Marie Claire, afastando-se da mesa. Embora tivesse tomado grandes cuidados
para não tocar na flor, dirigiu-se ao jarro e à bacia e lavou vigorosamente as mãos.
Miri olhou de relance para a rosa cintilante, que não mostrava sinais de murchar. - É tão artificial - concordou. - Esta rosa teria de ter sido cortada há muito
tempo e transportada desde muito longe. Porém, as pétalas não estão secas ou envelhecidas. Será possível que alguém consiga cultivar flores que nunca murcham ou
morrem?
Marie Claire secou as mãos na toalha. - Não, penso que isto não era mais do que uma comum rosa branca. É o efeito do pó deste veneno que funciona como uma espécie
de conservante.
- Um veneno verdadeiramente forte e mortífero se for absorvido através da pele.
- Não é como os preparados que sabemos que a nossa querida Catarina usa quando faz ofertas encantadoras, como luvas envenenadas.
Miri quase sentia alívio ao pensar que Catarina de Médicis podia estar por detrás de tudo isto. Pelo menos era uma inimiga conhecida, mas teve de negar: - Não, Simon
disse que a Rainha das Trevas não está envolvida.
Marie Claire espreitou sobre as armações dos seus óculos, franzindo a testa a Miri, que ruboresceu um pouco, apercebendo-se do tom intimista com que pronunciara
o nome de Simon.
- Quero dizer Monsieur Aristide - emendou. - le Balafre.
Retrocedeu até à janela aberta, na esperança de que a brisa fresca que soprava do jardim ajudasse a arrefecer o revelador fogo das suas faces. Tinha relatado a Marie
Claire os pormenores da visita de Simon, pelo menos grande parte deles. Omitira o ardente beijo que ele lhe dera antes de partir.
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Marie Claire foi juntar-se-lhe à janela. - Ouvi rumores sobre a breve visita de Aristide à ilha Encantada. És tão habilidosa a esconderes-te nas tuas florestas que
imprudentemente acreditei que ele tinha vindo e partido sem se cruzar no teu caminho. Nunca me ocorreu que procurarias confrontar sozinha aquele homem perigoso.
Eu devia ter calculado. - Suspirou. - Não vou fingir que não fiquei magoada pela maneira como me mentiste, optando por me manter na sombra.
- Peço desculpa - começou Miri, mas Marie Claire impediu-a com um aceno da mão.
- Compreendo que estavas apenas a tentar proteger-me, mas eras tu quem mais precisava de proteção.
- Já vos disse, Simon não fez o mínimo gesto para me magoar. Na verdade, foi mesmo o contrário e devíamos ambas estar gratas por ele ter vindo. Se não tivesse vindo,
não teríamos a mínima ideia do que poderia ter acontecido a Carole nem saberíamos nada sobre a ameaça da Rosa de Prata.
- É bem verdade - concedeu Marie Claire. - Embora tenha vergonha de admitir que estava mais feliz na minha ignorância. - Tirou os óculos, esfregando a cana do nariz.
- Esperava nunca mais ter de lidar com algo como isto em toda a minha vida. Já era suficientemente mau quando tínhamos Melusina à solta como um demónio. És jovem
demais para te lembrares. Aliás, ainda nem eras nascida.
- Ouvi as histórias - replicou Miri. - Não tanto pelo Renard. O meu cunhado sempre foi renitente em falar sobre a sua infame avó. Mas a velha boticária, Madame Jehan,
tinha um prazer perverso em atormentar todas as crianças da ilha com os relatos dos feitos de Melusina, sobre como ela envenenava as colheitas e amaldiçoava o gado.
Eu costumava ter pesadelos com pequenos cordeiros e poldros a espumarem pela boca e a caírem mortos nas pastagens.
Marie Claire fez uma careta. - A Adelaide Jehan era uma boa alma, mas era incorrigível quando se tratava de contar as suas terríveis histórias, e Melusina proporcionou-lhe
certamente muitos temas. A avó de Renard fomentou a revolta entre os camponeses da Bretanha, ajudando-os com o seu conhecimento das artes negras. Ela acreditava
que estava a lutar por justiça, libertando os tiranizados da opressão dos seus senhores. Mas tudo o que fez foi conduzir grande quantidade de inocentes à morte e
ensombrar a reputação das mulheres sábias em toda a parte.
Os olhos de Marie Claire encheram-se de tristeza. - Somos já uma raça em vias de extinção, as Filhas da Terra. Já restamos muito poucas para estudar
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a antiga sabedoria e mantê-la viva para a próxima geração. Em breve, as únicas que restam com coragem para a praticar serão aquelas que a distorcem para o mal, como
a Rosa de Prata. Se Monsieur Aristide tiver razão e esta louca mulher estiver realmente a tentar levantar um exército de bruxas, que Deus nos ajude.
Os ombros caíram-lhe como se suportassem todo o peso da idade, mas reanimou-se, dizendo: - Bem, a criatura tem de ser encontrada e detida. Só posso pensar numa coisa
a fazer.
- Qual é, Marie? - perguntou Miri.
Mas Marie Claire parecia estar a falar consigo mesma, tanto como Miri. Quando se dirigiu decididamente para o seu aparador, Miri seguiu-a. Ali, entre as louças e
os livros da velha mulher, repousava um cofre de madeira. Quando Marie Claire retirou o cofre do aparador, os seus corvos desataram a grasnar, excitados, esvoaçando
pela gaiola como se tivessem antecipado o que a velha mulher estava prestes a fazer.
Marie Claire abriu a tampa, revelando diversos materiais de escrita: plumas, tinta e pergaminho. Enquanto pegava numa das plumas, disse: - Precisamos de avisar imediatamente
a Senhora da Ilha Encantada, informar Ariane destes acontecimentos.
- Não! - gritou Miri.
- Não me agrada mais do que a ti, minha querida, mas...
- Não, Marie - disse Miri ainda mais vigorosamente. - Sabeis tão bem como eu que Ariane e Renard regressariam de imediato a França, colocando ambos as suas vidas
em perigo.
- Ah! - Marie arqueou a fina sobrancelha. - Então, apesar do facto de teres arriscado encontrar-te a sós com Monsieur Aristide, não confias nesse teu caçador de
bruxas.
Miri corou fortemente. - Ele não é o meu caçador de bruxas. E... e não, não confio inteiramente em Simon, pelo menos não quando Renard está envolvido. Mas recordai-vos,
a minha irmã e o seu marido têm outros inimigos, a Rainha das Trevas e o rei de França.
Marie Claire passou as arestas da pluma pelos seus dedos, com o cenho carregado. - Então e Gabrielle? Ela é tremendamente experiente com conspirações e conseguiu
manter-se na corte da Rainha das Trevas durante mais de dois anos...
Mas uma vez mais Miri abanou a cabeça. - Gabrielle tem um marido e três filhas pequenas para proteger. Embora a quinta deles, perto de Pau,
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tenha permanecido segura até agora, sempre têm corrido o risco de serem invadidos pelo exército da Liga Católica. Navarra sofreu o impacto destas infindáveis guerras
civis que flagelam a França. Gabrielle já tem mais do que o suficiente com que se preocupar.
- Mas alguém vai ter que lidar com esta Rosa de Prata - protestou Marie Claire - e, infelizmente, eu já não tenho nem o poder nem o vigor da juventude. Portanto,
em nome dos céus, para quem é que achas que nos devemos virar?
Miri tirou a pluma da mão de Marie Claire e voltou a colocá-la no cofre.
- Receio que só haja eu - disse calmamente.
- Tu? - A exclamação sobressaltada e cética de Marie Claire estava longe de ser lisonjeira, mas, apesar das dúvidas, Miri confiava em si mesma.
Sorriu com alguma tristeza. - Reconheço que sou apenas um pálido reflexo das minhas irmãs.
- Eu... eu nunca disse isso - balbuciou Marie Claire. - Mas... mas...
- Eu sou a última das mulheres sábias que enviaríeis para enfrentar a horrível feiticeira - concluiu Miri, ironicamente. - A tonta sonhadora, sempre escondida nas
suas florestas. A mamã preocupava-se muito por eu viver muito junto dos meus animais e nos reinos da minha imaginação, sem nunca enfrentar as adversidades e problemas
que afligiam o resto do mundo. Ela tinha razão. - Mordeu o lábio inferior para acalmar o seu arrepio.
- A mamã esperava muito mais de mim. Não tenho a sabedoria da Senhora da Ilha Encantada, nem nada que se pareça com a forte coragem de Gabrielle. Mas também sou
filha de Evangeline Cheney. É tempo de eu recordar isso e me comportar de modo a que ela tivesse orgulho em mim.
Marie Claire segurou o rosto de Miri entre as mãos. - Oh, minha querida, a tua mãe estaria muito orgulhosa de ti. Tu és em tudo tão sábia e corajosa como as tuas
irmãs. Mas eu conheci bem Evangeline. A tua mãe era a minha melhor amiga e posso dizer-te com toda a certeza que ela nunca esperaria que tu corresses o risco de
enfrentar sozinha qualquer feiticeira demente.
- Eu não estarei só. - Miri respirou fundo antes de confessar. - Tenciono encontrar Simon Aristide, procurar a sua ajuda.
Marie Claire soltou as mãos do rosto de Miri, com a boca aberta de estupefação. - Miribelle Cheney, perdeste completamente a cabeça? Pensar sequer em aproximar-te
desse homem perigoso...
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- Outro dia haveis dito que não pensáveis que Simon me quisesse magoar.
- Intencionalmente não. Embora reconheça que Aristide tem algo de bom em si, também tem mais sombras a esconderem-se no seu coração do que um cemitério à meia-noite.
- Isso pode ser verdade, porém, Simon parece agora muito diferente do homem que invadiu a nossa ilha naquele verão. - Quando Marie Claire torceu os lábios com ceticismo,
Miri prosseguiu. -Já não é tão arrogante e inflexível como era hábito. Não o haveis visto na noite em que ele apareceu à minha porta abrigando-se da tempestade,
tão abatido e derrotado. É bastante irónico, não é? - Miri riu-se sem alegria. - Quando finalmente consegui ganhar forças para lhe resistir, afinal ele estava a
dizer a verdade e precisava realmente de ajuda. E eu limitei-me a mandá-lo embora, possivelmente pa ra... a morte.
- O destino desse homem não é da tua responsabilidade - asseverou Marie Claire. - Depois de tudo o que fez, não lhe deves nada.
- Eu sei, mas Simon pode muito bem ser a nossa única esperança para vencer a Rosa de Prata e salvar Carole das suas garras.
- O que te faz pensar que a rapariga quer ser salva?
- Não acredito que Carole quisesse verdadeiramente magoar o seu filho. O bebé estava envolto no seu xaile preferido, o seu bem mais precioso, e deixou-o onde eu
com certeza iria encontrá-lo. Nunca senti nenhum mal nela, apenas dor profunda e confusão. Embora se tenha envolvido com esta assembleia, não penso que ela soubesse
no que se estava a meter até ser tarde de mais.
- Poderás ter toda a razão. No entanto, por muita pena que possa ter de Carole, não vejo por que hás de correr riscos para a salvar.
- Porque devia ter-me esforçado mais em comunicar com ela quando tive oportunidade.
- Também eu e todas as mulheres nesta ilha - ripostou impacientemente Marie Claire. - Mas até tu tens de admitir que Carole não era uma rapariga com quem fosse fácil
fazer amizade.
- Não, não era. - Miri sorriu pesarosa ao recordar a indignada rebeldia da jovem, com mais espinhos do que as rosas que floriam nos canteiros que se viam pela janela
de Marie Claire. Mas tal como para estas rosas perfumadas, os espinhos de Carole eram uma fraca proteção para a sua vulnerabilidade.
O sorriso de Miri desvaneceu-se. - Se Carole fosse uma raposa ferida ou um texugo e tentasse morder-me, eu nunca teria recuado. Mas deixei-a
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e regressei para a minha pequena casa e esqueci-a. Tenho de encontrar uma maneira de a salvar e vou precisar da ajuda de Simon.
- Mas uma respeitável Filha da Terra não deve meter-se na cama com um caçador de bruxas. Não é coisa que se faça, minha querida.
- Deus do céu, Marie! Eu... só estou a falar de uma aliança temporária. Nunca pensei em nada semelhante a... - Ir para a cama com Simon... As faces de Miri escaldaram
com as imagens que lhe perpassaram pela mente.
- Eu estava a falar metaforicamente. No entanto, se chegar a isso...
- Não chegará. Asseguro-vos de que quaisquer sentimentos afetivos que possa ter tido por Simon há muito que desapareceram.
Quando Marie Claire lhe lançou um olhar penetrante, Miri ocupou-se a dobrar cuidadosamente o pano de linho sobre a rosa venenosa. - As minhas irmãs estão no exílio.
O conselho das mulheres sábias há muito que foi disperso. Que outra escolha me resta senão recorrer a Monsieur Aristide?
- Tem cuidado não vás tu acabar por ser usada por ele, minha pequena - avisou Marie Claire, preocupada. - Então e Martin, o Lobo? Pelo que me disseste, ele é-te
completamente devotado, é intrépido, inventivo e além disso apto para a intriga. Porque não procurá-lo?
- Porque não há tempo, Marie, e de qualquer forma eu não teria a mínima ideia de como contactá-lo. Ele... ele está provavelmente envolvido em alguma aventura imprudente,
ao serviço do rei de Navarra.
com a mão, Miri procurou o medalhão escondido sob o vestido e sentiu uma pontada de culpa. Verdade seja dita, nem um só pensamento tinha dedicado a Martin desde
que esta manhã tinha decidido deixar a ilha Encantada e casar com ele. Mas esta manhã parecia ter sido há uma vida e sentia Martin muito longe. Miri sentia-se envergonhada
por estar feliz com esse facto.
Martin podia ser frívolo... volátil e impulsivo. Profundamente apaixonado por Miri, sempre antipatizara com Simon com igual medida de aversão e ciúmes. A última
coisa que Miri precisava ou queria era ter os dois homens a cruzar espadas.
- Martin odiaria o que estou prestes a fazer - admitiu Miri com relutância. - Por vezes, penso que, se ele pudesse, me manteria numa sala forrada a veludo, segura
e protegida, enquanto ele travava todas as batalhas por mim. Tenho esperança de que, com o tempo, possa mostrar a Martin como Renard se tornou sensato ao ponto de
compreender que uma mulher sábia como Ariane não pode permanecer sempre docilmente junto à sua lareira, por muito que o deseje fazer.
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E Deus a ajudasse, Miri desejava-o muito. Regressou para junto da janela para que Marie Claire não visse, apesar de todas as suas corajosas palavras, o quão distante
de calma e determinada se sentia. Fixou longa e melancolicamente o jardim, absorvendo a forte mistura de texturas e cores, couves e malmequeres, erva-doce, alfazema
e ásteres. Mas, mais do que tudo, as exuberantes rosas vermelhas, belíssimas nas suas imperfeições de pétalas caídas e estames sobrecarregados. Tão diferentes daquela
rosa envolta no pano de linho.
Para lá do jardim estendia-se a viela poeirenta que conduzia às profundas e reconfortantes sombras da sua floresta. Ou então ao porto, o caminho rochoso que se estendia
até ao continente e ao futuro incerto mais além.
Miri suspirou, pensando a quem estava a tentar iludir, Marie Claire ou ela mesma. A mera perspetiva de dirigir palavras duras a alguém já era suficiente para lhe
provocar nós no estômago. Como poderia pois ter imaginado que seria capaz de destruir uma feiticeira desconhecida? E podia muito bem chegar a esse desfecho, a não
ser que a Rosa de Prata a destruísse primeiro.
Receava combater a Rosa de Prata, mas receava ainda mais as consequências caso saísse derrotada. E depois havia Simon Aristide. Miri não sabia se tinha mais medo
de não o encontrar ou de o encontrar. Por muito que veementemente insistisse que os seus sentimentos por ele estavam mortos, sabia que arriscava despertar a obscura
atração que pulsava entre ambos, desejos que seriam uma traição a Martin, a toda a sua família, a tudo aquilo que defendera e era... uma Filha da Terra.
Quando Marie Claire se veio colocar a seu lado, Miri ficou tensa, antecipando que a mulher quereria atacá-la com tais argumentos. Mas Marie Claire dobrou as mãos,
parecendo abatida e resignada.
- Muito bem, se estás determinada em seguir esse rumo, eu vou contigo.
Miri ficou profundamente comovida com a oferta, mas abanou suavemente a cabeça. - Não, Marie.
Marie Claire interrompeu. - O quê? Queres consultar um caçador de bruxas, mas desprezas a minha ajuda? Achas-me velha demais e inútil?
- O que penso é que nunca haveis sido uma boa cavaleira e eu vou ter que cavalgar muito e depressa, percorrer rapidamente muito terreno, para ter alguma esperança
de poder apanhar Simon.
Marie Claire cruzou teimosamente os braços, mas aparentemente reconheceu a validade dos argumentos de Miri porque fez um trejeito.
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- Além disso - prosseguiu Miri -, fazeis falta aqui a vigiar a ilha Encantada, para que nenhuma das seguidoras da Rosa de Prata volte a aparecer. Também podeis ajudar-me
de outras formas. Sei que ainda tendes alguns contactos no continente. Nunca poderei fazer esta viagem com o Willou. Preciso de encontrar um cavalo veloz com uma
grande capacidade de resistência e vós tendes de dizer-me onde posso encontrar outra mulher sábia em quem possa confiar para me ajudar na minha jornada e oferecer-me
abrigo por uma noite. Também preciso de ter alguém que tome conta da minha casa enquanto eu estiver ausente e há ainda outra tarefa que só uma mulher sábia como
vós pode desempenhar.
Marie Claire olhou Miri, circunspecta, como se suspeitasse que Miri estava a tentar iludi-la. - Hum! E qual é, afinal?
- Necromante - sorriu Miri, contristada. - Tendes de impedir que o meu gato, matreiro mas velho, procure seguir-me.
Três dias mais tarde, a ilha estava ainda transtornada pelo desaparecimento de Carole Moreau e pela igualmente misteriosa partida da Senhora da Floresta. Havia mais
visitas entre as casas e circulação entre as lojas que há muitos anos se não via. As mulheres descuravam as suas tarefas domésticas
diárias, juntando-se em pequenos grupos ao longo das vielas, para bisbilhotarem, discutirem e especularem. A única que podia saber toda a verdade por trás dos últimos
acontecimentos era Marie Claire. Mas a antiga madre superiora andava mais reservada do que era habitual, passando cada vez mais tempo em Santa Ana, rezando para
que Miri regressasse sã e salva.
No terceiro dia após a partida de Miri, Marie Claire ajoelhou-se para cumprir uma tarefa mais prosaica. Devido à rigidez das suas articulações e ao estado do seu
jardim, ajeitou-se lentamente sobre os joelhos para mondar as ervas daninhas que ameaçavam cobrir os seus canteiros de ervas.
Estava uma manhã amena; uma brisa ligeira agitava alguns fios de cabelo que lhe escapavam sob a sua touca de linho. Os pardais chilreavam por entre os ramos da sua
macieira, cujas folhas produziam um agradável murmúrio. Marie Claire poderia ter encontrado um bálsamo momentâneo para as suas preocupações, não fosse a paz do dia
interrompida pelos ruídos que provinham da sua casa. Mesmo de onde estava, conseguia ouvir o miar queixoso do gato, fechado na sua cozinha.
- Eu ouço-te, meu amigo - murmurou Marie Claire, cansada. - Mas não posso deixar-te sair. Eu prometi-lhe.
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Fez uma careta, apercebendo-se de que ao longo dos últimos dias tinha começado a falar com aquele gato, tanto como Miri, embora não fosse capaz de compreender Necromante
tão bem. E isso, decidira Marie Claire, era uma coisa muito boa, porque estava convencida de que às vezes aquele pequeno demónio negro estava com efeito a rogar-lhe
pragas, berrando-lhe azedas repreensões por ter deixado Miri partir.
Marie Claire interrompeu a sua monda para afastar alguns cabelos dos olhos com a palma da mão. Não que não se tivesse já enchido com as mesmas reprimendas, mas incapaz
de tentar prender Miri em vez do gato, Marie Claire não vira maneira de a impedir. Nenhuma das filhas de Evangeline fora dócil. As irmãs Cheney tinham herdado inteiramente
a força teimosa da sua mãe.
Apesar de toda a sua doçura, Miri tinha um núcleo interior inflexível e não era esta a primeira vez que Marie Claire tivera de se haver com isso. Anos atrás, Miri
fizera algo muito semelhante, partira sozinha para Paris, impelida pela preocupação com a sua irmã Gabrielle. Essa jornada fora bastante delicada, mas não tivera
nem a décima parte do perigo desta outra.
Antes de partir, Miri obrigara de novo Marie Claire a prometer-lhe que não escreveria a Ariane a contar-lhe sobre as suas atividades. Nunca estivera tão tentada
a quebrar uma promessa. Não só estava aterrorizada pelos perigos que Miri enfrentaria ao confrontar-se com a desconhecida Rosa de Prata, como também perturbada pela
ideia de Miri estar sozinha com Simon Aristide.
"Ele mudou, Marie.."
Teria Miri alguma noção do quanto os seus olhos se amansaram quando disse aquilo, até quando pronunciou o nome do caçador de bruxas? Como até corou quando insistiu
que não nutria qualquer afeto por Aristide? Quem é que Miri tinha tanta ânsia de salvar da Rosa de Prata, Carole Moreau ou Simon Aristide? Marie Claire duvidava
até que Miri soubesse responder a estas perguntas e isso era o que verdadeiramente a preocupava. Por muito bons sentimentos que Aristide pudesse ter por Miri, estava
excessivamente em guerra com o lado escuro da sua própria alma para se poder confiar nele.
Pelo menos uma dúzia de vezes por dia, todos os dias, Marie Claire tinha pegado na sua pluma, determinada a escrever a Ariane. Se Marie Claire mantivesse o seu silêncio
e Deus o impedisse, alguma coisa acontecesse a Miri, como poderia Marie Claire voltar a encarar Ariane? E ainda... como podia expor uma amiga ao perigo para assegurar
a vida de outra?
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Além disso, levaria tempo até a sua mensagem chegar a Ariane; ainda mais tempo precioso para a Senhora da Ilha Encantada e o seu marido regressarem a França. Quando
Ariane e Renard estivessem prontos para partir em ajuda de Miri, já poderia ser bem tarde de mais.
Marie Claire soltou um suspiro trémulo. Nunca se sentira tão infernalmente velha e inútil. Olhando de relance para as suas mãos, viu que na sua abstração tinha arrancado
ramos de rosmaninho juntamente com as ervas daninhas. Voltou à sua monda, procurando concentrar-se na sua tarefa, quando foi surpreendida por um grito distante.
Olhou e viu uma pequena figura que se precipitava viela abaixo. Protegendo os seus olhos semicerrados do sol, Marie Claire reconheceu Violette, a filha de seis anos
de Hélène Crecy. com as saias a esvoaçarem-lhe pelos tornozelos nus, a jovem corria, gritando pela mãe a plenos pulmões.
- Meu Deus do céu, o que foi agora? - resmungou Marie Claire, com um aperto no peito pela apreensão. Pressionando a sua mão contra a zona lombar, conseguiu pôr-se
de pé exatamente quando Madame Crecy saía da sua casa com o bebé Moreau aconchegado nos braços.
Ao apressar-se pela viela ao encontro da filha, foi seguida por Madame Alain e pelo seu próprio rancho de filhos. A face de Josephine transparecia alarme.
- Mamã! Mamã!
Quando Violette escorregou ao parar em frente das mulheres, Hélène encostou o bebé ao ombro e abaixou-se para a pequena. Marie Claire não podia ouvir as perguntas
ansiosas de Hélène, mas a resposta estridente de Violette chegou-lhe claramente.
- O príncipe veio à ilha Encantada. - A criança guinchava e dançava excitadamente. - Como nas histórias que me contas, mamã. Tu sabes, o belo príncipe que beija
a pobre menina e a salva da maldição da bruxa e depois vivem felizes para sempre. Pois o príncipe está cá e talvez ele te beije. Só tenho medo que o papá não goste
disso.
Hélène endireitou-se, soltando uma gargalhada de alívio. Marie Claire pressionou a mão contra o peito, ela própria dominada pelo alívio, incerta sobre se o seu coração
teria suportado mais más notícias ou problemas. Até Josephine deu uma gargalhada seca, embora não resistisse a admoestar Hélène. Marie Claire captou fragmentos de
algo sobre "insensatez encher a cabeça da garota com tais disparates".
- Não é disparate - gritou Violette, batendo o seu pequeno pé com indignação. - Olha, ele aí vem.
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Apontou um dedo gorducho para um cavaleiro que se aproximava. À medida que o homem se acercava, Marie Claire conseguiu discernir a sua figura mais claramente e pensou
que a criança bem podia ser perdoada por confundi-lo com um príncipe de contos de fadas. Raramente a ilha Encantada terá observado tão elegante cavalheiro. Mesmo
àquela distância, dava a impressão de ser um homem bem-parecido, com cabelo castanho-escuro, puxado para trás sob um chapéu de veludo negro com uma pluma branca.
Uma capa curta verde com forro de seda cor-de-rosa pendia-lhe do ombro largo, o gibão aparentava tão grande qualidade como as suas botas de montar de couro castanho.
Ao longo de toda a viela, as mulheres espreitavam pelas janelas ou pelas cercas dos jardins, embasbacadas ao ver o estranho passar com o seu garanhão tordilho acetinado,
a trote, numa passada elegante, enquanto o seu dono sorria e saudava todos num gesto de cabeça. Era como se o cavalo estivesse tão consciente quanto o homem da tremenda
impressão que estavam a causar através da cidade e ambos estivessem a apreciá-la fortemente.
Marie Claire limpou as mãos no avental, apercebendo-se de que estava tão embasbacada como todas as outras, mas não conseguia evitar. Aproximou-se do portão do jardim
enquanto o estranho puxou as rédeas para parar não longe da boquiaberta Hélène Crecy.
Quando se inclinou para a frente na sela, murmurando uma saudação, Hélène quase foi derrubada pela filha mais velha de Josephine, Lysette, uma jovem roliça de catorze
anos. Ruborescida e com pequenas risadas, a rapariga deslizou até ao cavaleiro, mas antes que tivessem oportunidade de trocar algumas palavras, Josephine saltou
como uma mãe tigre.
Puxando rudemente a filha para trás, Josephine avançou. Teve lugar uma pequena e discreta conversa entre ela e o estranho. Por muito que se esticasse, Marie Claire
não conseguiu captar uma só palavra da conversa.
O estranho endireitou-se na sela, parecendo consideravelmente desconcertado. Enquanto Josephine prosseguia com a sua arenga, lançou um olhar enfadado à viela. Todo
o seu rosto pareceu iluminar-se. Ignorando Josephine, sorriu, saudou as outras mulheres e depois esporeou o cavalo.
Marie Claire quase não teve tempo para se aperceber de que ele se dirigia para a sua casa até ele estar junto ao portão. Desmontando do cavalo num movimento fluido
e grácil, prendeu as rédeas num poste da vedação. Marie Claire viu que a primeira impressão que tivera dele estava correta. Era bem-parecido, com os traços angulosos
do rosto algo amansados por um bigode
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e uma barba cuidadosamente recortados. Mas esse era o único tom amansa do que apresentava.
Tinha uns olhos e um sorriso travessos, do género que levaria a maioria das mães a fechar as filhas em casa, mas que depois seriam elas próprias incapazes de resistir
ao seu encanto. Até Marie Claire estava embaraçada pela forma como o seu cabelo flutuava quando ele passou o portão.
Mais embaraçada ficou quando ele se inclinou sobre um joelho à sua frente e, segurando numa das suas mãos, a levou reverentemente aos lábios.
- Reverenda madre - murmurou.
- Peço perdão, monsieur, mas não sou. Ou seja, já não sou... - bom Deus, pensou Marie Claire, incomodada. Estaria realmente a ruborescer e a gaguejar?
- Para mim será sempre a madre abadessa. - Olhou-a através das suas espessas pestanas, iluminando-a com o seu devastador sorriso. - Dificilmente teria o atrevimento
de vos tratar por Marie Claire.
- Acredito que teríeis atrevimento para tudo, meu filho - disse finalmente Marie Claire, recuperando a razão. Afastou a mão, dizendo severamente: - Não importa o
meu nome. Acho que faria melhor em dizer-me o seu e bem depressa.
Ele ficou surpreendido por um momento, depois pôs-se de pé num salto, gritando: - O quê? Nunca me digais que não me conheceis.
Quando Marie Claire o olhou, confusa, ele pressionou os dedos sobre o peito. - Madame, certamente não podeis haver esquecido. Sou eu, Martin, o Lobo. Amigo do capitão
Nicholas Remy, devoto escravo da menina Miri e vosso humilde servo.
Tirou o chapéu, com a capa a esvoaçar enquanto fazia uma elegante vénia. Sorriu-lhe, esperançoso, enquanto Marie Claire pestanejava, sentindo-se completamente estupefacta.
Martin, o Lobo? Não podia ser. Fitou-o, procurando alinhar os rasgos daquele homem, alto e robusto, à procura de algum sinal do jovem esguio que tinha seguido Miri
tão veneradamente num verão já muito longínquo, durante os últimos dias de paz na ilha Encantada, antes de Aristide e os seus caçadores de bruxas terem desembarcado.
Marie achou que quase não podia ser culpada por não reconhecer Martin. Ele crescera, mudara como um patinho feio que se transforma num cisne de asas poderosas. Mas,
à medida que o estudava, captou uma centelha nos seus encovados olhos verdes e um vestígio de travessura nos lábios que lhe trouxeram à memória o rapaz que outrora
conhecera.
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- Meu Deus! Lobo. És... és tu - - exclamou, pressionando a mão contra a boca. Depois caiu sobre ele com um grito de alegria.
Martin retribuiu o abraço com um entusiasmo de fazer partir as costelas, levantando-a do chão com uma exuberância que a deixou atordoada. Ela bateu-lhe nas costas
dizendo: -Já chega, maroto. Já chega. Põe-me já no chão.
"Que maneira desrespeitosa de tratar uma velha mulher - reclamou, mas rindo enquanto Martin lhe sorria e a pousava de novo no chão. A sua touca ficara torta. Enquanto
a endireitava, reparou nas suas vizinhas que a observavam com os olhos arregalados. Se Josephine esticasse mais o pescoço ia acabar por cair, redonda, no chão.
Marie Claire riu de novo e apercebeu-se de que há dias que o não fazia. Depois de toda a apreensão e tensão, sabia-lhe poderosamente bem. Sorriu radiante para Martin.
- Oh, meu querido Lobo. Nem consigo dizer o quão feliz estou por te ver.
- E eu a vós, reverenda madre. A ilha Encantada não é um lugar grande, nada como Paris. Um homem quase que pode enfiar a ilha inteira na sua bolsa, mas no entanto
já começava a desesperar de alguma vez vos encontrar ou a Miri. As pessoas aqui foram sempre um pouco ríspidas para com os estranhos, mas juro que estão pior do
que nunca. Sabeis o que a mulher acolá me respondeu quando educadamente a interroguei? - Martin gesticulou na direção de Josephine. - Disse que mais valia poupar
o meu fôlego, porque nenhuma mulher decente na ilha diria fosse o que fosse a um escudeiro com um olhar tão manhoso. Mon Dieu! - Ergueu as mãos. - Já fui acusado
de ser muitas coisas pelas damas: um descarado namoradeiro, um velhaco lisonjeador, muito e diabolicamente bem-parecido para mal dos meus pecados. Mas pergunto-vos:
olhar manhoso?
A sua indignação poderia ter divertido Marie Claire noutras circunstâncias, mas a menção a Miri deixara-a circunspecta, sabendo e temendo o que teria de dizer a
Martin.
- Lobo, quanto a Miri... - começou.
- E onde é que posso encontrar a minha encantadora Senhora da Lua ? - Martin espreitou ansiosamente para trás dela como se estivesse à espera que Miri saísse da
casa a qualquer momento. - Se porventura sei algo sobre ela, suponho que está a viver num casebre algures, entre esquilos, coelhos
e ursos.
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- Na ilha Encantada não temos ursos, mas sim, ela tem uma casa bem no meio da floresta...
- Ah, bem o receava. - Soltou um longo e sofrido suspiro. - Bem, espero pôr fim a isso.
- Lobo... - Marie Claire tentou de novo, mas ele voltou a interrompê-la, sorrindo e pressionando-lhe o ombro.
- Esperai até Miri ver o que tenho para ela. O mais belo retalho de lã azul que comprei quando estive recentemente em Inglaterra. Se dependesse de mim, a minha senhora
só vestiria as melhores sedas e brocados. Mas pensei que isto era mais o género de Miri. O que pensais?
- Tenho a certeza de que gostará, mas...
- Oh, admito que, no que diz respeito à cozinha, os ingleses deixam muito a desejar. E quanto à mistela a que chamam cerveja... bah! - Martin revirou os olhos. -
Mas se há coisa que sabem fazer, é tecer boa lã. Este tecido é tão fino, tão macio, que uma mulher pode até ser tentada a usá-lo para
o seu casamento...
- Martin! - exclamou Marie Claire erguendo a voz. A nitidez do seu tom pareceu finalmente despertá-lo.
Parecendo consideravelmente envergonhado, disse: - Posso adivinhar o que estais a pensar. Que não tenho nada que falar de casamentos no que diz respeito a Miri e
tendes razão. Eu não a mereço e sou um louco por sequer esperar...
- Não, Martin. - Marie Claire acabou por pressionar a mão sobre a boca dele para o silenciar. Olhou-o com tristeza, e com os olhos inesperadamente repletos de lágrimas.
- Não és louco, mas aquilo que bem podes ser é a resposta às orações de uma velha mulher.
Ele fitou-a longamente e, com uma ruga a franzir-lhe a sobrancelha, pegou-lhe na mão, apertando-a.
- O que se passa, reverenda madre? Há algo de errado? - perguntou delicadamente e depois num tom mais agudo: - É algo com Miri? Aconteceu-lhe alguma coisa?
Marie Claire lançou uma espreitadela furtiva à viela, apercebendo-se de que ainda tinham um público interessado e que estava a aumentar. Puxando Martin para a casa,
disse: - Tenho algo de natureza muito grave para te dizer. Mas acho que é melhor irmos para dentro.
Quando acabou de contar os acontecimentos recentes que tinham abalado a ilha Encantada, Marie Claire empurrou a sua cadeira para trás, manten do-se
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bem afastada do caminho do homem que caminhava pela sua casa, murmurando ferozes diatribes. Até Necromante se agachou sob a mesa enquanto Martin passeava pela casa
e arengava, dando vazão à sua fúria, ao seu medo e à sua frustração.
- Maldição, como pôde Miri... - Como pôde deixá-la... - Começou a recriminar Marie Claire, para logo de seguida se interromper. - Não, perdão, reverenda madre. Só
há uma pessoa a culpar por toda esta situação... Aquele amaldiçoado Aristide.
Martin enfiou o chapéu e deu um pontapé num pequeno banco que estava no seu caminho. Quando este bateu contra a perna da mesa, Necromante fugiu, procurando abrigo
atrás de um cesto na lareira.
- Como se atreve ele! - Martin estava fora de si. - Depois de tudo o que esse bastardo fez, como se atreve a vir procurar a ajuda de Miri? Autointitula-se um caçador
de bruxas, mas juro que ele é que é o verdadeiro bruxo, enfeitiçando a minha senhora, atraindo-a para o seguir rumo ao perigo.
- Para ser inteiramente justa, não acredito que Monsieur Aristide a tenha atraído a lado nenhum. Foi a própria escolha de Miri.
- Então porque não me escolheu a mim? Pelo sangue de Deus, ela já devia saber que eu faria tudo por ela, lutaria com mil bruxas se ela mo pedisse. Mas não! Partiu
à procura dele. - Martin arrastou ambas as mãos pelo cabelo. - Quantas vezes deixará ela que aquele vilão a traia e destroce o seu coração, antes de deixar de estar
disposta a confiar nele? Pensei que ela já tinha ultrapassado tudo isso... deixado de pensar nele.
Esgotada a emoção, Martin parou finalmente de andar de um lado para o outro e sentou-se no banco, balançando as mãos desanimadamente entre os joelhos. O coração
de Marie Claire sofria por ele. Naquele momento, aparentava ser mais pequeno, mais parecido com o rapaz que naquele remoto verão viera atrás de Miri, fazendo toda
e qualquer palhaçada em que pudesse pensar para que ela reparasse nele, para a convencer a sorrir, a rir, a esquecer Simon Aristide.
Marie Claire aproximou-se e pousou-lhe suavemente a mão no ombro.
- A Miri só foi procurar Aristide porque acreditava que não tinha mais ninguém que a pudesse ajudar a derrotar a Rosa de Prata. Se Miri tivesse a mínima ideia onde
estavas, ter-te-ia pedido para vires.
Martin lançou-lhe um olhar duvidoso. - Teria?
- Tenho a certeza disso - disse Marie Claire, pedindo perdão silenciosamente a Deus por mentir, pois não tinha a certeza de tal coisa.
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Martin estendeu a mão para apertar a de Marie. Depois deu uma palmada na perna e levantou-se rapidamente, dizendo: - Bem, agora estou aqui. Perdão por ter gritado
em vossa casa e comportar-me como um javali ferido. A única coisa realmente importante é a segurança de Miri. Há quanto tempo ela partiu?
- Partiu há três dias.
- Três dias! Mon Dieu - exclamou Martin, desconcertado. - Isso dá-lhe um avanço considerável. Sabe-se lá onde poderá estar nesta altura.
- Bem, a noite passada recebi notícias de uma amiga minha. Uma mulher sábia de Saint-Malo. Miri chegou até lá em segurança e Hortense mandou três dos seus criados
acompanhar Miri até ela encontrar Aristide.
- bom, graças a Deus por isso. - Inclinando-se para apanhar o seu chapéu, sacudiu uma ponta de pó da copa. - Pelo menos isso dá-me um sítio para começar a procurar
a minha senhora. com um pouco de sorte, talvez consiga apanhar Miri antes que ela se junte àquele vilão e trazê-la de volta para casa.
- Não acredito que Miri te deixe fazer isso. Ela está determinada a salvar a jovem Moreau e pôr fim às maléficas práticas da Rosa de Prata.
Martin encolheu os ombros, alisando a pluma do chapéu. - Oh, eu trato disso!
Marie Claire poderia ter sido tentada a rir-se do seu ar confiante. Mas para além da sua vaidade e vestes elegantes, ela também notara outros aspetos em Martin.
Não tinha mãos de cortesão, mas sim mãos calejadas e duras de um homem habituado a manejar o florete e a segurar as rédeas de um fogoso garanhão. A arma que lhe
pendia à cintura não era uma lâmina para mera ostentação, mas um bom pedaço de aço resistente.
Por aquilo que Miri lhe dissera, Martin, o Lobo, não era um homem desconhecedor do perigo e desempenhara muitas missões secretas e perigosas ao serviço do rei de
Navarra. Mas, ainda assim, Marie Claire sentiu necessidade de o avisar.
- Martin, tens com certeza consciência de que enfrentar esta Rosa de Prata não será tão simples como combater um exército de tropas inimigas ou mesmo uma quadrilha
de bandidos implacáveis. Esta mulher é uma... uma verdadeira bruxa.
- Eu percebo isso. - Apertou a boca, com uma estranha sombra a parecer cruzar as suas feições. Murmurou: - Mas eu já tive que lidar com uma bruxa antes. Sim, por
Deus, é verdade.
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- É verdade. Já me tinha esquecido. Tu estiveste com o capitão Remy quando tentámos libertar o rei de Navarra das garras da Rainha das Trevas.
Martin pareceu recuperar as recordações do passado que o assombravam, por muito negras que fossem. - S... sim, a Rainha das Trevas.
Marie Claire abanou a cabeça, arrependida. - Receio não ter dado muito crédito à opinião de Aristide de que a Rainha das Trevas nada tinha a ver com este assunto.
Pela minha experiência, se alguma maldade estiver a ser preparada, Catarina tem de estar de alguma forma envolvida. Tenho andado tão preocupada...
- Bem, não estejais. - Martin dirigiu-se para ela e agarrou-lhe ambas as mãos. - Se ela estiver, também tratarei disso.
A confiança de Martin era tão contagiosa como o seu sorriso. Apesar de todos os medos que lhe assaltavam o coração, Marie Claire deu por si a retribuir-lhe o sorriso.
- Prometo-vos, reverenda madre, pela minha vida. Impedirei que Miri seja magoada, defendê-la-ei da Rainha das Trevas e dominarei a Rosa de Prata. Depois farei algo
que já devia ter feito há anos.
- E o que será isso, meu querido?
Os dentes de Martin brilharam num sorriso que era tão faminto como o esplendor dos seus olhos. - Tenciono matar aquele bastardo do caçador de bruxas.
Marie Claire sorriu, destroçada pelo pavor - Oh, não, Martin. Não penso que Miri...
Mas o seu protesto perdeu-se enquanto Martin lhe beijava a face e se encaminhava para a porta completamente aberta. Necromante rastejou atrás dele. Marie Claire
deu um salto em frente, quase não conseguindo evitar que o gato fugisse. Aconchegou-o nos seus braços. Necromante nunca tivera intenção de a arranhar, mas Marie
Claire sentiu a leve picada das suas garras através do tecido do seu vestido.
Enquanto lutava com o gato, tentou gritar a Martin, mas este já estava montado no seu cavalo. Necromante fitou-a e, por uma vez, Marie Claire conseguiu ler os seus
pensamentos com uma clareza surpreendente.
"O que é que tu foste arranjar agora, velha mulher tonta?"
- Deus me abençoe, não sei - murmurou Marie Claire. Puxando Necromante para mais junto de si, inclinou-se para o batente da porta, enquanto via Martin, o Lobo, desaparecer
pela viela.
A Rainha-Mãe reprimiu um calafrio enquanto descia às entranhas da Bastilha, escoltada por um contingente de guardas e pelo governador da prisão. As paredes eram
escuras e frias, como se as próprias pedras tivessem sido torturadas até sangrarem. A aparência era mais triste vista através da rede negra do seu véu, a masmorra
mais espessa, numa escuridão que as tochas ardentes não conseguiam dissipar, e o ar manchado pelo fedor do medo e da dor.
Mas Catarina de Médicis pensava que podia ter ensinado aos infelizes aprisionados neste lugar algo sobre a resistência à dor. Cada passo que dava era um tormento,
com os músculos e as articulações a latejarem com mais um acesso de ciática nas mãos e tornozelos inchados.
Nesta manhã sentia cada um dos seus sessenta e seis anos, mas aprendera há muito tempo que uma rainha não podia dar-se ao luxo de revelar qualquer enfermidade. Havia
muitos rivais na luta pelo poder, prontos para atacar como um bando de chacais ao primeiro sinal de fraqueza. Demasiados inimigos, e parecia ter adquirido mais um.
Pensou nos restos da flor fechada na escrivaninha do seu quarto no Louvre. O estranho brilho prateado da rosa tinha finalmente começado a desvanecer-se, com as suas
pétalas aveludadas agora pálidas. Mas a flor cumprira já a sua mortífera tarefa.
Ontem, Catarina tinha descido da sua carruagem para assistir à missa do casamento de um dos seus cortesãos em Notre-Dame. A área em redor da grande catedral estava
apinhada de curiosos que esperavam ter um vislumbre da noiva e do noivo. Uma jovem mulher destacara-se da multidão, procurando forçar a sua passagem através dos
guardas suíços para oferecer uma flor a Catarina.
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Só isso seria por si invulgar para chamar a atenção de Catarina. Por aqueles dias, o ambiente na cidade andava tão tenso, tão negro de descontentamento, que os parisienses
estavam muito mais dispostos a arremessar-lhe vegetais podres ou bolas de lama do que rosas. E fora uma rosa de aparência tão extraordinária, tão glacialmente branca,
que parecia de prata. Também havia algo de estranho na jovem, demasiado fresca e limpa, bonita, para uma vendedeira ambulante, com as suas mãos esguias enfiadas
em luvas.
Embora o jovem guarda tenha cumprido o seu dever e afastado a jovem, fora conquistado pelo sorriso suplicante da pequena jovem loura. Aceitando a oferta da rapariga
com uma vénia elegante, o guarda rompera as fileiras para entregar a flor à rainha. Um qualquer inexplicável instinto impedira Catarina de tocar na invulgar rosa;
em vez disso decidira embrulhá-la no seu lenço. Quando a vendedeira de flores se preparava para desaparecer, Catarina sentira uma picada na parte de trás do pescoço
e começou uma progressiva sensação de mal-estar. Imediatamente ordenou ao guarda para perseguir a rapariga e... não precisamente prendê-la, mas detê-la para a interrogar
sobre como se conseguira cultivar aquela extraordinária rosa.
E muito bem terá feito porque aquele mesmo guarda estava agora a morrer em agonia. Catarina poderia ser capaz de salvar o jovem guarda se o tentasse, mas não sem
revelar o muito que sabia sobre venenos e os seus antídotos.
Muitos suspeitavam já que ela praticava feitiçaria, mas nunca ninguém ousou acusá-la abertamente. Não estava disposta a arriscar expor as suas capacidades invulgares
apenas para salvar a vida de um jovem soldado que estupidamente se deixara encantar por um rosto bonito.
A escolta da rainha deteve-se junto à espessa porta de madeira de uma das células. Enquanto o carcereiro se aproximava com a chave, o governador voltou-se para Catarina
para lhe dirigir um último apelo. Monsieur de Varney ficara desde logo alarmado com a ideia de ter de conduzir a rainha aos piores subterrâneos da fortaleza. A enorme
gola branca de renda do homem, magro e nervoso, dava a sensação de que a sua cabeça, com a sua barba cinzenta, estava a ser apresentada a Catarina numa bandeja.
- Vossa majestade, peço-vos que reconsidereis. Não há necessidade de vos afligirdes mais com este assunto.
Não havia necessidade de se afligir? Catarina deixou transparecer o seu desagrado. Oh, não, tão-somente o facto de haver alguém emboscado lá fora que a queria morta
e cujos conhecimentos sobre venenos rivalizavam com os seus.
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- Esta criatura confessou ter participado nesta infame conspiração de assassínio - continuou o governador. - Será apenas uma questão de tempo até ela nos dar os
nomes dos seus cúmplices e...
- Abri a porta, Varney - interrompeu-o Catarina delicadamente -, e deixai-me vê-la. A rapariga já se identificou?
- Diz que se chama Lucie Paillard. Afirma ser filha de um estalajadeiro numa aldeia do vale do Loire.
- Esta filha de estalajadeiro está muito longe de casa.
- - Pode estar a mentir. Em breve lhe extrairemos a verdade. Estas celas são nojentas, fustigadas por parasitas e doenças. Não são lugar para uma senhora, muito
menos para uma rainha. Se vossa majestade se dispusesse a regressar aos meus aposentos e...
- A porta, Varney - ordenou Catarina. - Já.
O governador soltou um suspiro resignado. Fez um gesto ao carcereiro para abrir a porta. Rangeu ao abrir, revelando uma cela pequena e estreita, ainda mais fétida
do que o átrio exterior.
Enquanto o carcereiro iluminava o interior para Catarina entrar, a rainha pressionou um lenço perfumado sobre o nariz, sob o seu véu.
Varney, hesitante, seguia Catarina, que olhou para a prisioneira e compreendeu por que estava o governador tão nervoso. Acorrentada à parede, Lucie Paillard estava
inconsciente, suspensa nas suas correntes e sem a frescura, o esmero e a beleza anterior. Coberta apenas pela sua camisa, apresentava equimoses e inchaços nos braços
em resultado da tortura a que fora submetida, as pernas com queimaduras em carne viva por ter sido escaldada com azeite a ferver e as bolhas na pele começavam a
ficar em chaga.
- Maldito louco - silvou Catarina para Varney. - Matastes a rapariga.
- N... não, vossa majestade - apressou-se a exclamar o governador.
- Torquet - gritou para o guarda. - Desperta-a!
O guarda obedeceu, lançando um balde de água salobra no rosto da jovem. Mal Lucie moveu a cabeça e gemeu, enfiou-lhe um frasco entre os lábios e empurrou-lhe pela
garganta um trago de qualquer zurrapa barata.
Enquanto a jovem quase sufocava e vomitava, Catarina recuou incomodada, lamentando este tipo de medidas cruéis. Nenhuma destas barbaridades teria sido necessária
se os seus olhos ainda fossem o que eram outrora. com um olhar penetrante, Catarina poderia ter obtido da rapariga toda a informação que queria. Tinha aprendido
a dominar a arte de ler os olhos das mulheres sábias com uma perícia que poucos alguma vez teriam igualado. Mas tal
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como grande parte do resto do seu corpo, a sua visão também começara a falhar.
Quando Lucie finalmente despertou, com os olhos abertos, trementes e agitados, Catarina ordenou laconicamente ao guarda para se afastar. Enquanto se aproximava da
prisioneira, a cabeça desta pendeu para o lado. Estudou Catarina com os olhos vidrados pela dor enquanto a rainha afastava o véu.
- Bem, conheceis-me, menina Paillard?
Uma centelha de identificação brilhou nos seus olhos opacos. Os lábios secos e gretados de Lucie estenderam-se num simulacro de sorriso.
- Médicis - rouquejou. - A filha do mercador de Florença.
Catarina ouviu o governador conter bruscamente a respiração, mas permaneceu imperturbável. Tratava-se de um epíteto que lhe era lançado desde a primeira vez que
pisara aquele país, os arrogantes franceses nunca consideraram uma mulher descendente de príncipes mercadores italianos digna do seu jovem rei, apesar do impressionante
dote que trouxera consigo.
Há muito acostumada ao insulto, Catarina não manifestou qualquer reação até a jovem acrescentar roucamente: - Feiticeira... Rainha das Trevas... Minha inimiga.
Catarina ficou tensa. Ordenou a Varney e ao guarda para se retirarem da cela. O governador fez um vago esforço para protestar, mas foi silenciado por um olhar glacial
de Catarina. Pelo menos aquele poder os seus olhos ainda tinham, pensou satisfeita.
Assim que os homens se retiraram, Catarina segurou o queixo da jovem. Forçando-a a levantar a cabeça, perscrutou-lhe os olhos, concentrando-se com toda a sua energia.
Mas era como tentar penetrar a superfície de um qualquer rio turvo. Semicerrou os olhos até senti-los lacrimejar e foi obrigada a desistir, frustrada, da sua tentativa.
Obrigando-se a falar delicadamente para a rapariga, Catarina disse:
- Como posso ser tua inimiga, jovem? Mais facilmente posso ser tua amiga. Fizeste uma coisa disparatada ao participares nesta conspiração contra a minha vida, mas
posso ser misericordiosa se me disseres aquilo que quero saber. Só eu tenho o poder de te salvar...
Catarina calou-se estupefacta. Apesar de fraca como estava, Lucie conseguiu soltar-se da mão da rainha e abanar a cabeça.
- Não. Não tendes... poder. Não como a minha senhora, a minha Rosa de Prata.
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- E afinal quem é ela?
- Aquela que... vos destruirá. - Lucie humedeceu os lábios, mal conseguindo suspirar. Catarina teve de se inclinar para ela para a poder escutar.
- A revolução está a chegar... Um dia, a Rosa de Prata... terá o vosso reino.
- Sem dúvida - respondeu Catarina com ironia. - E como é que ela se propõe fazer isso? Conquistar França barrando os meus exércitos com flores envenenadas?
- Ela tem mais do que... as rosas. Ela tem o... o Livro.
- Livro? Que livro? - perguntou Catarina rispidamente.
A respiração da jovem acelerou e os seus olhos ficaram completamente enevoados. Catarina deu-lhe um forte abanão.
- Qual livro? - questionou mais ferozmente.
A boca de Lucie mexeu-se silenciosamente. Antes de a cabeça lhe tombar para a frente, conseguiu murmurar:
- Livro... das Sombras.
Catarina afundou-se nos coxins da sua carruagem, procurando uma posição mais confortável para as suas doridas articulações enquanto era conduzida de volta ao Louvre.
Apesar do calor abafado que se fazia sentir, correra as cortinas nas janelas pois o brilho do sol era-lhe insuportável e agravava as lancinantes dores de cabeça
que sentia atrás dos olhos. Mais uma das suas amaldiçoadas dores de cabeça causadas por mais contrariedades.
E Deus sabe bem como ela tem tido muitas, até demais. Enquanto a sua carruagem troava pelas ruas, Catarina tinha a perfeita noção de que as finas paredes do coche
e a escolta de guardas suíços eram tudo o que a separava do descontentamento da populaça. Tal como em grande parte do resto do país, a miséria e a agitação eram
abundantes em Paris.
A primavera tinha sido desastrosa, cheias seguidas por secas arruinaram as colheitas e dizimaram o gado. A comida escasseava e os preços estavam altos, as barrigas
vazias e a calma era pouca. A guerra civil entre huguenotes e católicos que há duas décadas assolava o país não dava sinais de tréguas e era um constante sorvedouro
dos cofres reais.
Evidentemente, ela era responsabilizada por tudo, refletia Catarina amargamente, massajando a ponta do nariz. O que lhe chamava a última série de insultuosos panfletos
postos a circular por Paris - "Uma serpente nascida de pais moralmente corruptos no jazigo da Itália... A mais infame megera a deter o poder real."
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Os loucos pareciam não entender que a estabilidade que a França conhecera nos últimos anos se devia inteiramente aos seus esforços. Certamente não ao seu filho,
a sua mui real majestade, Henrique III, por graças de Deus, rei de França.
Quando Henrique não estava a divertir-se em pândegas desregradas com outros peralvilhos, satisfazia-se com os apropriados acessos de zelo religioso que envolviam
longos retiros de flagelação. Enquanto ele perdia tempo, prostrado sobre os seus joelhos diante de uma qualquer estátua de mármore, o seu reino estava à beira do
desastre, a sua coroa ameaçada pelo poder crescente dos nobres, especialmente de um em particular, o duque de Guise.
Bastava o duque aparecer nos portões de Paris para os miseráveis parisienses começarem a correr atrás do seu cavalo aos gritos: "À Guise, à Guise." Como se ele fosse
a segunda vinda de Cristo, o seu grande herói católico, pensava Catarina desdenhosamente. Bem-parecido, forte e arrogante, o duque usava a piedade como máscara fina
para as suas ambições, que iam até ao próprio trono.
Como se tudo isto não fosse suficiente para a devastar, tinha mais este novo problema para se preocupar, esta... Rosa de Prata, fosse ela o diabo que fosse. Mas
Catarina não obteria mais informações da jovem Paillard.
A rapariga morreu, graças a Varney e aos seus estúpidos carcereiros. O governador desfizera-se em desculpas balbuciadas. "Lúcie Paillard não era tão forte como parecia.
Talvez a rapariga tivesse um coração fraco ou... ou..."
Catarina silenciou Varney com um olhar frio. A pura verdade era que faltava a Varney e aos seus esbirros a subtileza nas artes da tortura. E agora a jovem Paillard
caíra nos braços sombrios da morte, levando com ela o resto dos seus segredos.
Não surpreende que Catarina sentisse a cabeça prestes a partir-se em duas. Não tivera sequer força para repreender apropriadamente Varney por ser tão inepto. Coxeando
para fora das masmorras, o seu único pensamento fora desaparecer da frente do governador e dos seus esbirros, para não se aperceberem de como estava perturbada.
Aquelas eram palavras que até no coração da Rainha das Trevas podiam despertar o medo.
"A minha Rosa de Prata irá destruir-vos. Ela tem o Livro das Sombras."
Teria a miserável rapariga noção do que estava a dizer ou seriam apenas delírios de alguém martirizado à beira da loucura? O Livro das Sombras era a essência das
lendas das Filhas da Terra. Referido em rumores como um compêndio do antigo conhecimento, há muito perdido para o mundo,
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continha a maioria das mais perigosas e extraordinárias magias. Descrições de como fabricar armamento que podia dizimar populações ou destruir cidades inteiras,
poções e métodos para permanecer jovem ou preservar a vida de alguém até ficar imortal.
Muitos chamavam-lhe um livro de fábulas, mas Catarina sabia que era mais do que isso. Estivera perto de o obter, uma vez, ou pelo menos assim acreditava. Fechou
os olhos, com a mente a vaguear até àquele verão, dez anos antes, quando aguardava o regresso do seu espião da Estalagem Régia, onde o caçador de bruxas le Balafre
e os seus homens estavam hospedados em Paris.
Supostamente iria ocorrer uma troca entre o conde de Renard e Simon Aristide, um acordo feito para salvar a vida de Gabrielle Cheney. Catarina não duvidara de que
seria com certeza uma armadilha. Sabia como o jovem farsante Aristide era arrogante e implacável e admirava-o discretamente por isso. Lidar com a perfídia de le
Balafre era um problema para a Senhora da Ilha Encantada e a sua família. Catarina só estava interessada no objeto da troca, o misterioso livro que o conde tinha
arranjado maneira de conseguir.
Enquanto Catarina passeava pelos seus aposentos, chegaram-lhe notícias alarmantes de que algo terrivelmente errado sucedera na Estalagem Régia. Tinha havido uma
pequena batalha ou uma espécie de explosão. Ninguém parecia capaz de lhe dizer exatamente o quê, apenas que teria havido um fogo que destruíra a estalagem. Por enquanto,
não havia notícias de quaisquer mortes, mas os prisioneiros do caçador de bruxas tinham conseguido fugir e Monsieur le Balafre ainda estava com toda a certeza vivo.
Catarina prestou pouca atenção aos pormenores. Só queria saber uma coisa... Onde diabo estava Bartolomy Verducci? Só rezava para que aquele velho tonto não tivesse
explodido em pedaços na mais importante missão que já lhe havia confiado - tomar posse do livro das Sombras.
Começara já a considerar a imprudente ação de se aventurar ela mesma a fazer algumas investigações quando uma das suas damas de companhia lhe trouxe a aguardada
notícia do regresso do senhor. Quando Verducci vacilou pela antecâmara, as suas calças e o seu gibão estavam cinzentos da fuligem. As suas sobrancelhas estavam chamuscadas,
tal como a barba. Tinha a cabeça envolta numa ligadura manchada de sangue que o impedia de usar chapéu.
Em qualquer outra ocasião, Catarina tê-lo-ia repreendido por comparecer na sua presença em semelhante estado, mas não perdeu tempo com preliminares desnecessários,
nem sequer para lhe perguntar onde estivera todo aquele tempo.
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"Então, senhor, haveis tido sucesso na vossa missão? Conseguistes obtê-lo?, perguntou ansiosamente.
Verducci segurava uma bolsa que procurou apresentar-lhe, mas o definhado pequeno homem desmaiou aos seus pés. Catarina conseguiu pegar na bolsa, quase não conseguindo
suster o seu grito de triunfo enquanto retirava da bolsa o livro com a velha capa de couro desgastada. A sua euforia não durou mais do que o fugaz segundo de que
precisou para abrir o livro. O que segurava tão fortemente nas mãos não era o "Livro das Sombras. Apenas uma Bíblia huguenote.
Catarina procurava segurar-se dos balanços da carruagem, relembrando a extensão da sua ira e do seu desapontamento. Ficara louca de raiva, quase esquecendo o porte
real que lhe fora incutido desde criança. Quisera estrangular Verducci com as suas próprias mãos e apenas uma coisa a impedira. O homem estava já às portas da morte
e possuía a única pista sobre o que correra mal.
Quando finalmente conseguira reanimá-lo, Verducci ficara devastado ao aperceber-se do seu erro e chorara como uma criança.
"Perdoai-me, vossa majestade. Mas eu de facto obtive o Livro. juro. No caos que se sucedeu à explosão, consegui apossar-me de tudo, o Livro, os medalhões gémeos,
o anel que haveis oferecido a Mademoiselle Cheney. T... tudo..."
O anel pouco importava a Catarina, que também não fazia a mínima ideia de que medalhões Verducci falava. A única coisa que queria saber era o que sucedera ao Livro
das Sombras.
Os seus poderes ainda eram muito fortes naquela altura e procurou forçar Verducci a acalmar-se enquanto perscrutava o seu olhar, tentando sondar a sua memória. Mas
era como andar aos tropeções através das cinzas e destroços de uma casa arrasada por balas de canhão. A inteligência do homem fora permanentemente destruída pelos
ferimentos que sofrera na cabeça.
O melhor que Catarina conseguira recuperar fora uma recordação esbatida de Verducci afastando-se a cambalear da estalagem em chamas, com a bolsa que continha o precioso
livro apertada junto ao peito. O sangue escorria-lhe da sobrancelha, os olhos ardiam-lhe com as picadas acres do fumo e tinha a garganta seca e dorida. E depois
havia alguém, uma mulher, pensou Catarina, mas o rosto e as formas da pessoa perdiam-se na bruma da danificada memória de Verducci.
Registara apenas mãos a ligar-lhe a cabeça e uma voz delicada que o encorajava a beber de um frasco. E depois mais nada até conseguir arrastar-se para a sua sela
para empreender a longa viagem até Blois.
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Mas não fora preciso um grande esforço mental da parte de Catarina para preencher os espaços vazios na memória de Verducci. O velho tonto deixara-se drogar e roubar.
Na altura, Catarina acreditou que tal fora perpetrado por uma das irmãs Cheney, mais provavelmente Gabrielle.
Aquela jovem mulher sempre fora esperta demais e seria bem típico de Gabrielle ter a impertinência de troçar de Catarina, trocando o livro das Sombras pela Bíblia.
Ou talvez nunca tivesse havido qualquer Livro das Sombras. Talvez tudo tivesse sido um ardil congeminado pelo conde de Renard para salvar a sua cunhada. Talvez,
tal como tantas outras idiotas Filhas da Terra antes dela, Catarina estivesse apenas a perseguir um mito.
Não voltara a ouvir falar do livro durante todos estes anos. Pelo menos até àquela manhã, quando Lucie Paillard lhe murmurara ao ouvido as suas últimas palavras.
Catarina esfregou as suas têmporas latejantes. Seria possível que tivesse estado enganada sobre as Cheney, que naquela longa noite remota tivesse havido mais alguém
à espreita e à espera nas sombras, uma feiticeira que as tivesse ludibriado a todas e fugido com o prémio?
Apesar do calor, Catarina teve um arrepio, o sangue gelou-lhe nas veias com o mero pensamento daquele poderoso livro nas mãos de uma qualquer feiticeira tão dotada
e impiedosa como ela. Isso transformaria a conversa de Lucie Paillard acerca de uma revolução iminente em algo mais do que delírios de uma jovem febril. Esta Rosa
de Prata bem poderia configurar-se como um perigo maior para o poder de Catarina do que as fomes, cheias, guerra civil e nobres ambiciosos no seu conjunto. Mas se
a feiticeira desconhecida tivesse possuído o Livro das Sombras durante todos estes anos, porque teria esperado até agora para fazer uso dele? Dizia-se que o livro
era complexo, escrito numa língua antiga e dificilmente decifrável.
Talvez até então a feiticeira só tivesse aprendido a cultivar rosas envenenadas. Ou talvez essa mulher nem sequer tivesse o livro. Só uma coisa era certa, toda esta
inútil especulação mais não fazia do que exacerbar a dor de cabeça de Catarina.
Tinha de chegar ao âmago desta nova ameaça e fazê-lo depressa. Esta Rosa de Prata precisava de ser desmascarada e destruída. Mas como? Qualquer prova que pudesse
levar à identificação da mulher perdera-se com a desgraçada rapariga. Catarina poderia ter desesperado, exceto por um motivo.
Esta não era a primeira vez que ouvia falar da Rosa de Prata.
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Catarina ansiava deitar-se em cima da sua cama, ordenar às suas damas de companhia para lhe prepararem poções e esfriarem parches para a cabeça. Mas não tinha tempo
a perder com tal indulgência. Dispensando todas as aias, coxeou até à escrivaninha italiana, magnificamente marchetada, que mantinha no seu estúdio. A pequena chave
que a abria balouçava na corrente presa ao seu cinto.
Catarina tinha os dedos tão inchados com os nós tão rígidos que tinha dificuldade em dar a volta à chave na fechadura. Amaldiçoando suavemente a sua incapacidade
para desempenhar uma tão simples tarefa, rangeu os dentes até a fechadura por fim ceder e as portas começarem a abrir-se. Na prateleira mais baixa encontrava-se
um pequeno cofre no qual Catarina mantinha um maço de correspondência pessoal.
Passando os dedos desajeitadamente pelo maço, procurou até encontrar o que procurava, uma estreita pilha de cartas enviadas por Simon Aristide, que envolvera com
uma fita negra.
As cartas não tinham sido enviadas para Catarina, mas sim para o seu filho. Há anos Henrique contratara Simon Aristide e a sua tropa mercenária de caçadores de bruxas
para lançar uma cruzada, que se seguiu ao anúncio do seu piedoso intento de livrar a França de todo o tipo de feitiçaria. Claro que Catarina percebera o que Henrique
estava realmente a fazer: usar le Balafre numa tentativa de a intimidar, de a avisar para não se imiscuir nos assuntos de Estado. Apenas mais um dos aspetos do jogo
travado entre ela e o filho, numa luta privada pelo poder.
Um jogo de que o rei acabara por se fartar, como sucedia com muitas outras coisas. A tropa de caçadores de bruxas debandara e o famoso le Balafre perdera os favores
reais, para alívio de Catarina.
Simon Aristide era inteligente, implacável e incorruptível, uma combinação perigosa em qualquer homem, muito mais num caçador de bruxas. Catarina ficara satisfeita
quando Aristide desaparecera nas sombras. Pouco tinha ouvido falar do homem até aquelas cartas terem começado a chegar, há cerca de um ano. Eram relatórios que Henrique
ignorara e nem sequer se dera ao trabalho de lhes quebrar o selo.
Catarina lera-os e guardara-os mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo. Era sempre bom saber o que um inimigo andava a fazer... Mas agora fez deslizar
a fita negra e leu atentamente as cartas com renovado interesse.
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A dor de cabeça turvava-lhe a visão. Tinha de pressionar as pontas dos dedos sobre os olhos, segurando o pergaminho quase a um braço de distância para conseguir
decifrá-lo. Felizmente, o caçador de bruxas escrevia numa letra grande, forte e nítida. O primeiro relatório nada continha de especialmente alarmante, apenas a apreensão
crescente de Aristide sobre uma nova assembleia de bruxas.
"A iniciação para esta assembleia parece envolver um rito hediondo, o sacrifício de recém-nascidos, bebés masculinos saudáveis..."
Quando Catarina leu pela primeira vez este relatório, interpretara-o como o resultado das ações de algumas mulheres dementes, embora fosse forçada a admitir que
lhe tinham provocado uma forte pontada. Um tão estúpido e insensato desperdício, matar um bebé saudável. Comprimiu os lábios ao pensar no que poderia significar
tal criança.
Se o seu filho alguma vez fosse capaz de gerar um herdeiro, isso contribuiria muito para acalmar o falatório contra ele e assegurar o futuro do seu trono. Mas quando
Henrique se deitava com uma mulher, raras vezes o fazia com a sua própria esposa, e o ato da cópula deixava o rei de tal maneira exausto que era depois obrigado
a ficar de cama durante vários dias.
"Que raio de francês é este-", era o que se ouvia frequentemente sobre ele a muitos dos seus desdenhosos súbditos. "Não tem nada de genuinamente francês, é muito
mais um desleal italiano como a sua mãe."
Não era portanto surpresa que cada vez mais católicos voltassem as suas esperanças para o viril duque de Guise, enquanto os huguenotes ofereciam o seu apoio ao mais
devasso Henrique, o rei de Navarra.
Catarina suspirou, interrogando-se sobre o que fizera para ser amaldiçoada com tais filhos. Não deveria ter motivos com que se preocupar. Dera à luz quatro rapazes
que sobreviveram até à idade adulta, mas já sobrevivera a três deles.
Se Henrique também morresse jovem, sem deixar um herdeiro, o que seria dela? Mais uma incómoda preocupação que Catarina afastou da mente enquanto examinava mais
alguns relatórios. Em cada nova carta para o rei, os relatórios de Aristide ganhavam maior grau de urgência.
"... e imploro a vossa majestade para tomar algumas ações sobre o assunto e me ajudar nas minhas investigações. As fileiras desta assembleia estão a engrossar e
o seu poder a crescer, estas bruxas percorrem os campos, espalhando a morte e a devastação à sua passagem, seja qual for o seu destino. Desconheço qual é o seu derradeiro
objetivo, mas tenho finalmente um nome para a chefe e mentora. Autointitula-se Rosa de Prata e aumenta progressivamente o seu atrevimento quanto ao anúncio da sua
presença."
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Catarina leu na diagonal o resto das linhas da página, mas pouco mais continham do que outro apelo para o rei dar atenção ao problema. Era o último relatório enviado
por Aristide e datava de há seis meses.
Teria Aristide acabado por desesperar à espera do apoio do rei ou teria o caçador de bruxas simplesmente desistido da perseguição? Não era provável, pensou Catarina
enquanto voltava a juntar as cartas, hesitando a cada pontada de dor nas suas mãos. Aristide era um verdadeiro caçador, astuto e implacável.
Catarina reconhecera aquela qualidade em le Balafre quando ele era ainda rapaz, aprendiz do caçador de bruxas Vachel le Vis. Ao contrário do seu mestre, Simon não
era facilmente ludibriável. Catarina servira-se de le Vis nas suas batalhas com as mulheres sábias da ilha Encantada. le Vis jamais suspeitara que a rainha também
pudesse ser uma feiticeira até já ser tarde de mais, ao contrário de Simon. Mais do que suspeitar, o rapaz sabia-o. E o esperto e perspicaz jovem crescera para se
transformar num homem formidável. Conseguira já fazer algo que Catarina tinha começado a pensar que não estava ao alcance de nenhum homem, dominar as mulheres sábias
da ilha Encantada, forçando a sua própria Senhora ao exílio.
Sim, um homem verdadeiramente perigoso que Catarina em breve iria manter a uma distância saudável. Mas o advento da Rosa de Prata não deixa va à rainha muita escolha.
Dirigindo-se à porta do seu estúdio, enviou um dos pajens para convocar Ambroise Gautier, o mais fidedigno membro da sua guarda privada.
- Procurai Simon Aristide e trazei-me esse maldito caçador de bruxas - ordenou. Para que não houvesse mal-entendidos quanto ao que realmente desejava, acrescentou
delicadamente: - Vivo.
Simon agachou-se, arrancando as ervas da pedra que deixara para marcar a sepultura. Fez uma pausa para limpar uma gota de suor que ameaçava esvair-se sob a pala
do olho. O Sol descia lentamente no horizonte como se estivesse renitente em derramar o seu poder sobre a terra seca. O ar estava pesado e não havia vento, mesmo
aqui no cume deste monte no vale do Loire. O campo que se estendia aos seus pés já fora luxuriante e verde, mas apresentava as cicatrizes da seca, as pastagens da
planície secas como palha, as folhas murchas nas videiras.
Mas mais do que o calor do dia, era o seu brilho que incomodava Simon. O sol brilhara sem piedade, ou talvez apenas lhe parecesse assim porque não estava habituado.
Temia ter-se transformado num ser das sombras, tanto como as mulheres que caçava.
Percorrera muitos e cansativos quilómetros durante as duas últimas semanas desde que visitara a ilha Encantada para encontrar Miri Cheney. Uma jornada completamente
inútil, mas não culpava Miri por isso, por ter recusado ajudá-lo. Dificilmente poderia ter esperado uma resposta diferente, dada a história de ambos, porém a profundidade
do seu desapontamento surpreendera-o.
Ainda assim, mantivera a sua promessa, partindo e deixando-a em paz. Sem dúvida que ela ficara satisfeita por vê-lo pelas costas, especialmente depois da implacável
maneira como ele a arrastara para os seus braços e a beijara. Que demónio o havia possuído? Há dias que se atormentava com esta pergunta e ainda não tinha conseguido
uma resposta satisfatória.
Talvez fosse simplesmente porque há muito tempo que não estava com uma mulher ou porque se sentia cansado, só e frustrado. Ou porque o caminho para além da casa
de Miri fora sombrio e tormentoso, e ela era tudo
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o que havia de reconfortante, tudo o que havia de luminoso e doce. Fosse qual fosse a loucura que se tivesse apossado dele, tinha acabado e pertencia ao passado.
Não voltaria a ver Miri. O pensamento provocou-lhe um peso no coração que era absurdo. Tinham estado separados durante anos. Mas pelo menos houvera sempre a possibilidade
de...
Não. Era um maldito idiota. Nunca houve quaisquer possibilidades entre ele e Miri. Um caçador de bruxas e uma mulher educada entre feiticeiras. Precisava de esquecê-la
e pensar nas próximas fogueiras que ia atear.
Mas enquanto arrancava obstinadamente as ervas da sepultura, nunca sentira a sua mente tão pesada e nublada. Parecia não conseguir consolidar nenhum tipo de pensamento
coerente, muito menos um plano de ação. Desde a sua viagem à ilha Encantada, perdera o rasto da Rosa de Prata e das suas agentes do obscurantismo.
Evidentemente, tudo o que tinha a fazer era esperar e sem dúvida que as bruxas o encontrariam. Estava até surpreendido por ainda não o terem feito. Talvez a Rosa
de Prata ainda não soubesse que a sua última assassina tinha fracassado. Assim que o descobrisse, seria apenas uma questão de tempo até enviar alguém para o matar.
Mas não conseguia reunir a energia suficiente para tratar de vigiar a sua retaguarda ou continuar a procurar esta mulher demoníaca.
Todos os relatórios urgentes que enviara ao rei sobre a Rosa de Prata e a sua assembleia de bruxas não tinham obtido resposta. Miri não acreditara completamente
nele. Simon interrogava-se por que persistia em arrastar-se para os destroços procurando combater sozinho, quando mais ninguém parecia reparar ou apoquentar-se com
isso.
A resposta estava na ponta dos seus dedos. Simon escovou a poeira que se acumulara na lápide da sepultura e apareceu a única palavra que gravara na pedra, com letras
um pouco tortas e toscas.
Lucas.
Simon comprimiu os lábios ao recordar o bebé que fora a primeira das vítimas da Rosa de Prata. Ou pelo menos a primeira de que tomara conhecimento. Encontrara o
corpo não longe daquele local numa gélida noite de inverno há mais de um ano. Num momento em que o resto do mundo estava a celebrar a memória de outro menino que
nascera numa manjedoura.
Lucas nem sequer chegara a conhecer o conforto quente do toque maternal. A sua mãe abandonara-o exposto destapado numa encosta árida para gelar até à morte. Simon
ouvira dizer que a congelação não era das mais ter ríveis
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maneiras de morrer, pois entra-se num estado de falsa sensação de aquecimento à medida que os membros ficam dormentes. Interrogava-se sobre se teria sido assim com
Lucas.
Para embaraço e irritação de Simon, formou-se-lhe um grande nó na garganta. Ele já vira morte e crueldade semelhantes, o brutal homicídio de outros inocentes tão
indefesos como este, que se julgara completamente endurecido, imune a quaisquer sentimentos de compaixão.
Não fazia a mínima ideia porque ficara tão impressionado com a morte de Lucas ou a dos bebés abandonados que encontrara. Mas chorara por cada um deles como se fossem
os seus próprios filhos, os filhos que podia ter tido.
Os filhos que deveria ter tido se a sua vida tivesse decorrido como a do seu avô e da sua avó antes dele. Uma existência boa e simples passada numa pequena aldeia,
numa casa arrumada, uma honesta jornada de trabalho no campo, uma mulher carinhosa para o confortar na velhice.
Simon sentia-se confuso por estar a ficar tão sentimental. Era o sinal dos anos a passar, supunha, e a tendência de olhar para trás, não em frente. Mas não era como
se ele ainda tivesse mais alguma coisa por que olhar no futuro, apenas a frieza escura de uma sepultura, uma que nem sequer tinha uma lápide como a de Lucas.
Simon observou pensativamente a lápide que tinha gravado, relembrando o que o seu velho mestre le Vis lhe ensinara sobre o destino dos bebés sem batismo como Lucas.
Condenados a viverem num limbo, onde lhes eram negadas para sempre as alegrias do céu.
Simon já não tinha a certeza de quanto acreditava nisso. Há muito tempo que não punha os pés numa igreja e ainda mais tempo desde que verdadeiramente rezara. Sentiu-se
amaldiçoadamente desastrado, com os seus dedos endurecidos, enquanto fazia o sinal da cruz. Enquanto entrelaçava as mãos, nem sequer tinha a certeza por que alma
estava a rezar, se pela do bebé ou se pela sua. Procurou palavras que não surgiram, com os pensamentos tão pesados e prosaicos como a pedra que marcava a sepultura
de Lucas.
A erva seca murmurava atrás dele. Quando se ajoelhou, a cabeça curvou-se, e sentiu uma mão tocar no seu ombro.
- Simon... - A voz era tão suave como o toque, mas o coração de Simon martelava contra as costelas.
Ergueu-se e voltou-se, prendendo o pulso da pessoa que se aproximara pelo seu lado cego. Tinha o punhal já desembainhado e começou a erguê-lo quando a voz da sua
cativa gritou.
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- Não, Simon. Não!
Simon congelou todos os movimentos, até a respiração lhe parou enquanto olhava incrédulo.
- Sou... sou eu, Miri - balbuciou, procurando afastar-se da lâmina que ele segurava no alto.
Simon expirou profunda e longamente, baixando lentamente a arma à medida que registava as palavras. Não era necessário tranquilizá-la uma vez que já conseguira descortinar
a sua forma, observando-a, com os olhos semicerrados, em frente do último raio brilhante do Sol no seu ocaso.
Teria reconhecido Miri em qualquer lado apesar do facto de ela vestir largas calças de camponês e túnica. Os seus longos cabelos louros platinados estavam fortemente
amarrados em trança à volta da cabeça. Tinha-a enfiado sob um chapéu de abas largas que caíra ao chão quando ele a agarrou. Ou talvez ela tivesse o chapéu na mão
quando apareceu furtivamente atrás dele, silenciosamente. Ele bem podia ter acreditado que ela era na verdade uma espécie de fada, a Senhora da Floresta que se podia
materializar como queria, um espírito nascido dos ventos da sua imaginação. Só que a vibração do pulso dela sob os seus dedos era quente e humana, e a sua pele macia
era sem dúvida a de uma mulher, de carne delicada, sangue e ossos. Uma mulher que ele já não esperava voltar a ver.
Não se apercebeu da força com que estava a agarrá-la até ela murmurar:
- Simon, por favor, estás a magoar-me.
Libertou-a e embainhou o punhal. Recuperando finalmente a voz, perguntou roucamente: - Miri, que... que diabo estás a fazer aqui?
Ela esfregou o pulso vermelho da pressão, aparentando uma calma e uma dignidade assinaláveis para uma mulher que acabara de ser ameaçada com um punhal de caça com
uma lâmina de vinte centímetros. Em vez de responder à pergunta de Simon, passou por ele para observar longamente a lápide da sepultura.
- Quem é Lucas?
- É o nome de um apóstolo.
Miri inclinou a cabeça, dirigindo-lhe um daqueles olhares claros e penetrantes. - Não creio que esteja algum apóstolo sepultado neste túmulo, Simon.
Simon sentiu-se desconfortável por se sentir corar, embaraçado por Miri o ter encontrado naquele local, apanhando-o num momento tão vulnerável.
- É... é apenas a sepultura de um desses bebés abandonados de que te falei - murmurou.
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- Porque foi sepultado aqui sozinho? Tão longe da aldeia?
A boca de Simon retorceu-se. - Porque o malvado padre não deixou que Lucas fosse sepultado no seu descanso em solo sagrado. Um bastardo, nunca batizado, e filho
de uma rapariga que, para além do mais, se acredita ter-se associado ao Diabo. Não tive alternativa senão trazer o seu corpo, enterrá-lo aqui e...
- Tu sepultaste-o? - interrompeu Miri com os olhos arregalados.
Simon sentiu-se ruborizar ainda mais. - Mais ninguém o faria. Até mesmo os avós receavam tocar-lhe. Portanto, o que é que se podia esperar que eu fizesse? Deixar
o seu cadáver abandonado para que os animais o arrastassem e o devorassem?
- Não, claro que não. - Miri pousou a mão na manga da sua camisa. - Fizeste o que estava certo, Simon. A terra é a sua mãe. Não importa quão frio e cruel é o mundo
cá em cima, ela acolheu Lucas no seu meigo abraço.
Simon sempre se inquietara com algumas das noções mais pagãs de Miri e ela pareceu pressentir isso porque lhe disse: - Desculpa. Ofendi a tua sensibilidade católica?
- Não. - Na verdade, a imagem que Miri descrevera era estranhamente reconfortante. A ideia de que, em vez de o ter lançado ao chão frio e insensível, o tinha feito
regressar aos braços da mãe. A terra seria certamente uma mãe melhor do que a que Lucas tivera.
Simon surpreendeu-se ao confessar: - Já não sou um católico. Há anos que não assisto a uma missa.
- E no entanto decidiste dar a esta criança o nome de um apóstolo.
- Pensei que podia ajudar se lhe desse o nome de um santo. Talvez lhe proporcionasse algum tipo de concessão ou perdão, se as leis do céu forem deveras tão duras.
- Simon raspou com as botas, sentindo-se incrivelmente ridículo por explicar tudo isto. - Como podes provavelmente depreender do que chamo à minha égua, não sou
muito bom a escolher nomes.
- Escolheste muito bem. - Sorriu-lhe, embora continuasse a pesquisar-lhe a face com aquele seu olhar que ele achava sempre tão desconfortável. Como se estivesse
à procura de alguma coisa nele, a qual ele sabia com toda a certeza não existir. Achou mais fácil dirigir o seu olhar para a mão que ainda repousava no seu braço.
Ficou estupefacto por ver que a mancha vermelha deixada pelos seus dedos ainda não se desvanecera. Cobrindo com a sua mão a mão dela, massajou-lhe o pulso, sentindo
uma ânsia louca para a levar aos seus lábios e com um beijo eliminar a mancha. E uma ânsia mais insana de
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a arrastar para os seus braços, agarrá-la junto a si, saborear-lhe a boca para ter a certeza de que ela era real e não um qualquer sonho resultante do calor e do
cansaço.
Soltou-lhe a mão, dando um cauteloso passo atrás.
- Ainda não respondeste à minha pergunta - disse. - O que fazes aqui?
- Vim à tua procura. - Miri baixou-se para apanhar o chapéu caído. - Foste à ilha Encantada à procura de ajuda, não foste? Agora sou eu que preciso da tua. - Baixou
o olhar, passando os dedos pela orla do chapéu, com um ligeiro tremor na voz ao acrescentar: - Sabes? Eu também encontrei o meu próprio Lucas.
Simon inspirou fortemente. Recordava vividamente o seu choque quando deparara com as cenas do sacrifício do bebé, puxara as dobras da manta para olhar para aquelas
faces pequeninas e mirradas. Mas pensar que tal horror pudesse ter atormentado o bondoso espírito de Miri... Ela era o tipo de mulher capaz de absorver a dor dos
outros apenas com um olhar e transportar essa ferida daí em diante.
Esquecendo a sensatez de manter a sua distância, Simon encurtou o espaço entre ambos agarrando os antebraços de Miri. - Miri...
- Está bem - disse ela rapidamente, olhando-o e procurando sorrir. - Quero dizer, ele vai ficar bem... espero. O bebé que encontrei teve mais sorte do que Lucas.
Este ainda estava vivo. Levei-o para Port Corsair para... para uma bondosa mulher que pôde cuidar dele.
"Ao contrário de ti, não pensei dar um nome ao pequeno menino. Fiquei tão assombrada com tudo. - Franziu fortemente a boca por um momento antes de continuar. - Lamento
não ter acreditado inteiramente em todas as
coisas que me disseste naquela noite. Não sou tão ingénua que não saiba que tal ignorância existe, que existe gente suficientemente cruel para sacrificar um pequeno
e indefeso bebé. Só que nunca esperei encontrar tal maldade na minha ilha. Não na minha ilha Encantada.
Simon apertou-lhe delicadamente os braços, resistindo à tentação de a aproximar de si e embalá-la contra o seu corpo. Quantas vezes no passado se exasperara com
Miri, frustrado pela sua teimosa recusa em reconhecer a existência do mal, especialmente entre aquelas que eram conhecidas como mulheres sábias - Observando o seu
rosto pálido, o seu olhar magoado, desejou poder poupar-lhe esta dor, incitá-la a esquecer. Mas o caçador de bruxas que havia nele precisava que ela se recordasse,
para lhe dar todas as informações que pudesse.
- Conta-me o que aconteceu - pediu. - Conta-me tudo.
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Miri desceu a encosta ao lado de Simon, percorrendo o sinuoso caminho através das filas de videiras de uma pequena vinha. Nesta altura do ano devia haver trabalhadores
ocupados a podar e a limpar as videiras. Mas talvez o proprietário daquele campo já tivesse desistido da colheita do ano, porque a encosta estava deserta. A pequena
casa da quinta parecia igualmente sombria e silenciosa sob o calor. Um mastim que dormitava no quintal levantou a cabeça quando Simon e Miri passaram, mas só conseguiu
reunir energia para emitir um frouxo latido.
A voz de Miri era tão baixa que Simon teve de se inclinar para a escutar enquanto ela revivia o terrível momento em que encontrara o recém-nascido abandonado e o
julgara morto. Miri hesitou apenas quando lhe revelou de quem era o bebé, a identidade da orgulhosa e truculenta jovem que deixara a ilha Encantada, aliciada ou
forçada a juntar-se à assembleia da Rosa de Prata.
Talvez Miri devesse ter questionado a sensatez de falar tão livremente, dando o nome de Carole Moreau a um caçador de bruxas. Prometera, tanto a Marie Claire como
a si mesma, que teria cautela com Simon. Aliar-se a ele para derrotar a Rosa de Prata, sim, mas mantê-lo tão distanciado quanto possível.
Infelizmente, a sua determinação enfraquecera desde o momento em que o encontrara ajoelhado junto à sepultura de uma criança, de que só ele cuidara em dar-lhe um
nome ou uma sepultura. com uma aparência tão vulnerável quando a chorava em silêncio, esforçando-se por se recordar das suas orações.
Relegara em tom áspero o que fizera por aquela criança desconhecida, procurando comportar-se como se não tivesse sido nada. E no entanto ela suspeitava que ele teria
cumprido este mesmo doloroso rito com todos os outros bebés que encontrara, embora tivesse a certeza de que ele o negaria com veemência. Deus livre alguém de descobrir
que o terrível le Balafre pode ainda possuir um coração...
- ... e assim que tive a certeza de que a minha casa e os meus animais seriam bem cuidados, deixei a ilha Encantada para vir à tua procura - concluiu Miri.
Simon escutara seriamente o seu relato, com as mãos cruzadas atrás das costas. Sem fazer interrupções ou perguntas, deixou-a contar a sua história à sua maneira.
Mas, quase ao chegar ao fim, torceu a boca numa linha dura.
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- Maldição - disse. - Nunca devia ter ido à ilha Encantada. As malditas bruxas da Rosa de Prata devem ter-me seguido. Guiei-as exatamente até à tua porta. - Criticou-se,
arrancando folhas murchas de videira enquanto descia o monte.
- Simon, se parares um momento para pensar, sabes que isso não pode ser verdade. Muito antes de chegares, Carole já se gabava dessas suas novas amigas. A mulher
já devia andar pela ilha Encantada há algum tempo a aliciar Carole para se lhes juntar. - Sentindo que as pobres e assediadas videiras já tinham sofrido danos suficientes,
Miri agarrou no braço de Simon para o deter. - O teu aviso foi a única coisa que me impediu de tocar na rosa envenenada. Na verdade salvaste-me.
- Então fico contente por isso. Podes ter a certeza de que farei o meu melhor para prender essas malvadas mulheres e fazer com que a jovem Moreau seja punida juntamente
com todas as outras.
Desanimada, Miri retirou a mão. - Não, isso é a última coisa que quero. Carole não é como essas outras mulheres. Ela está apenas assustada e confusa.
- Meu bom Jesus, Miri - começou Simon, mas Miri interrompeu-o, insistindo: - Ela nunca quis magoar o seu bebé. Tenho a certeza disso.
- Então a rapariga tem algumas malditas noções bem peculiares sobre o que é ser mãe.
- Não vês? Há muitos lugares remotos e inacessíveis na ilha Encantada e Carole deveria saber da sua existência. Mas embrulhou ternamente o seu bebé no seu melhor
xaile e deixou-o perto do rio, não longe da minha casa. Deve ter adivinhado que era ali que eu ia buscar água. Colocou o filho num sítio onde estava certa de que
eu iria descobri-lo.
- E encontrar aquela maldita rosa. Em vez de esperar que salvasses o bebé, ela pode é ter tentado matar-te. Já pensaste nisso? - inquiriu.
Miri inspirou, momentaneamente desalentada. Nunca lhe ocorrera semelhante e horrível pensamento. Foi rápida a rejeitá-lo. - Carole não possui esse tipo de maldade.
Seja o que for que tenha acontecido, as suas companheiras são as culpadas. Se foi ela que deixou a rosa, obrigaram-na a isso ou enganaram-na. Estou convencida disso.
A dificuldade era convencer Simon. O seu rosto endureceu com aquela expressão que ela tanto temia. Aquele seu olhar de caçador de bruxas, como sempre lhe chamara.
- Simon, por favor, tens de acreditar em mim e por uma vez confiar nos meus instintos em vez de nos teus.
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Os lábios dele estreitaram-se numa linha fina, mas o olhar repousou sobre Miri e algo no seu semblante se suavizou. - Muito bem, quando eu apanhar estas harpias,
darei o meu melhor para assegurar que a rapariga tenha um julgamento justo. Tu já correste um risco tremendo, correndo atrás de mim, completamente sozinha. Para
não falar do sobressalto que me provocaste ao aparecer assim do nada. Como diabo conseguiste chegar aqui, afinal?
- Vim a voar na minha vassoura.
Quando Simon lhe lançou um olhar exasperado, ela disse-lhe ironicamente: - Viajei da maneira usual, como todos os outros. A cavalo. - Miri apontou para a sua montada,
que pastava perto do local onde Simon prendera Ele com uma corda, na única sombra disponível, um conjunto de choupos na base da encosta. Em contraste com os contornos
suaves e a pelagem negra sedosa de Elle, o cavalo castrado de Miri parecia lento e pesado. Da cor do barro com uma mancha branca no focinho, Samson não era o mais
belo ou mais veloz dos cavalos, mas tinha um pescoço e uma garupa poderosos. Forte e musculoso, possuía um grau notável de energia.
Protegendo os olhos do sol com a mão, Simon semicerrou-os e olhou na direção de Samson. - Não me recordo de ver aquele animal no teu estábulo.
- Não viste. Eu pedi-o emprestado.
Simon olhou-a apreensivamente. - Pediste emprestado ou, hum... libertaste-o do seu dono?
Miri sorriu levemente, surpreendida por Simon ainda se lembrar da sua determinação enquanto jovem para libertar animais vítimas da violência e da crueldade dos seus
negligentes donos.
- Não roubei o Samson, se é isso que te atormenta. Acabei por aprender a aceitar que as perspetivas dos outros sobre os animais enquanto propriedade são bastante
diferentes das minhas e felizmente Samson não precisava de ser salvo. Foi-me emprestado por uma boa mulher, casada com um comerciante de Saint-Malo. Também enviou
três dos seus criados para me escoltarem até eu te encontrar.
- Qual escolta? Não vejo ninguém nas redondezas.
- Regressaram assim que te apanhei. Os meus novos conhecidos não se sentem... à vontade perto de caçadores de bruxas.
- E no entanto abandonaram-te junto de um.
- Porque eu lhes ordenei para partirem. - Miri ergueu orgulhosamente o queixo. - Sou filha de Evangeline Cheney e, ao contrário de muitas mu lheres,
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fui ensinada a tomar as minhas próprias decisões. A decisão de te procurar foi minha.
- E que raio de mísera decisão tomaste - resmungou Simon. - Para além de ajudar essa tal rapariga Moreau que mergulhou nas trevas, o que esperas conseguir?
Salvar Carol... e de alguma forma salvar-te também. Miri baixou os olhos, perguntando-se de onde lhe viera aquele pensamento. Se fosse honesta, tinha de admitir
que desde sempre estivera alojado no seu inconsciente. Mas não tinha que admiti-lo perante Simon.
- Pensei que o meu propósito de vir fosse claro para ti - respondeu. - Vim para te ajudar a desmascarar a Rosa de Prata e pôr fim aos seus es quemas perversos.
Momentaneamente, Simon pareceu ter sido atingido por um relâmpago, depois cruzou os braços sobre a larga barreira do seu peito.
- Não.
Miri pestanejou, receosa devido ao olhar desaprovador que se instalara no semblante de Simon. Até agora, acreditara que ele ficara de facto satisfeito por vê-la.
Mais do que satisfeito. Agora olhava-a como se desejasse que ela estivesse nos confins da Terra.
- Estás a recusar a minha oferta? - balbuciou.
- Podes ter a certeza de que estou. O que te levou a pensar que eu aceitaria?
- O teres ido à ilha Encantada não foi para isso? Para procurares ajuda?
- Não a tua - disse bruscamente.
Quando ela hesitou, perplexa, ele prosseguiu num tom mais suave:
- Miri, não é por não apreciar a tua oferta, mas eu nunca quis...
- Eu sei o que querias - interrompeu Miri tristemente. - A Senhora da Ilha Encantada. Lamentavelmente, terás de te conformar comigo. Se não for por mais nada, pelo
menos sou mais um par de olhos para ajudar a vigiar
as tuas costas.
- Ou distrair-me para que eu acabe com uma lâmina de bruxa espetada no coração.
- Alegro-me por saber que isso te preocupa. Receava que para ti já fosse indiferente viver ou morrer.
- E é - disparou. - Mas usa a cabeça, mulher. Se eu cair, o que raio pensas que te iria acontecer? Nesta altura já devias saber o quão mortíferas são estas feiticeiras
e as suas seguidoras. Não podes envolver-te nesta perigosa perseguição.
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- Mas já estou envolvida, quer gostes, quer não - ripostou. - Posso não ter o poder e a influência que Ariane detinha entre as mulheres sábias, mas posso ajudar-te,
Simon. Possuo certas... ligações e capacidades próprias. Consegui dar contigo, não consegui?
- Não quero diminuir o teu feito, minha querida, mas não tenho vindo a fazer qualquer esforço para ocultar o meu paradeiro.
- Isso foi incrivelmente descuidado da tua parte. As agentes da Rosa de Prata podiam ter... - Miri estremeceu ao aperceber-se. - Tu querias que elas te encontrassem!
Simon encolheu os ombros. - Perdi todo e qualquer vestígio da Rosa de Prata depois de regressar da ilha Encantada. Um novo ataque é a minha única esperança de voltar
a farejá-las.
- Não, não é. Já pensaste que as duas que trouxeram a Carole da ilha Encantada têm vindo a viajar na mesma direção? Eu fui capaz de as seguir, tal como tu.
Simon empalideceu sob a camada de barba. - Estás completamente louca, Miribelle Cheney? Já pensaste no que te podia ter acontecido se tivesses surpreendido sozinha
essas bruxas?
- Eu tive os meus cuidados, muito mais do que tu. - Miri ultrapassou-o ligeiramente, franzindo a testa. - Talvez cuidados demais. Perdi-lhes completamente o rasto
perto de Tours. Acredito que decidiram viajar pelo rio e tenho a certeza de que não teremos dificuldade... - Susteve a respiração quando Simon a agarrou pelos ombros
e a fez voltar-se para o encarar.
- Não. Vamos esclarecer bem uma coisa, aqui e agora. Não há nós. Regressa à ilha Encantada. Esta não é a tua batalha.
- É sim. - Inclinou a cabeça para trás para o olhar sob a aba do seu chapéu. - Oh, Simon, como te posso fazer compreender? Eu sou uma autêntica Filha da Terra e
o mal que esta mulher está a fazer... Não só ameaça a vida de inocentes, como atenta contra toda a bondade e toda a harmonia em que acredito, todos os princípios
que me são queridos. Detê-la é tanto meu dever como teu.
- E como posso eu fazer-te entender? Se fosses morta ou mesmo ferida... Raios, Miri, já tenho demasiados remorsos no que a ti diz respeito. Não me tentes a fazer
de novo uso de ti.
Simon afastou-a, dando-lhe um pequeno empurrão, encosta abaixo, na direção da sua montada. - Sela o cavalo e vai à procura dos loucos que te escoltaram até aqui.
Vai para casa, Miri, antes que seja tarde de mais.
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Miri cambaleou um pouco até recuperar o equilíbrio, depois teimou:
- Desculpa, Simon, mas não posso fazer isso.
- Preferirás que eu mesmo te amarre e arraste de volta até à ilha Encantada? - A voz de Simon era baixa, quase sedosa, mas ela podia adivinhar pelo brilho negro
do seu único olho que a ameaça era bem real.
- Podias fazer isso - ripostou, erguendo teimosamente o queixo. - És muito mais forte do que eu. Mas seria uma enorme perda de tempo para nós os dois. Podes ser
capaz de me fazer regressar a casa, mas nunca serás capaz de me manter nela. Assim que virares costas, partirei de novo.
Simon afastou-se dela, proferindo juras quase em silêncio, tal como Miri tantas vezes ouvira a Renard quando ficava frustrado por aquilo a que chamava a obstinação
de Ariane. Simon e o cunhado de Miri tinham sido inimigos tremendamente hostis. Como ambos se surpreenderiam se descobrissem que tinham alguma coisa em comum. Em
circunstâncias normais, o pensamento teria provocado um sorriso a Miri, mas limitou-se a esfregar os braços, sem saber o que fazer.
Devia ter-lhe ocorrido que Simon poderia recusar a sua ajuda, mas a rejeição magoava na mesma. Sempre fora tida como a mais jovem, a mais fraca das irmãs Cheney,
a irmã mais nova que precisava de ser abrigada e protegida, salva no seu mundo de sonhos. E, até agora, tinha vergonha de o admitir, mas preferia que tivesse sido
assim. Talvez ainda o preferisse.
Correu atrás de Simon até onde ele estava, à beira da vinha, olhando soturnamente para o vale que se estendia em baixo. Uma pequena aldeia de pequenas casas de pedra
branca pontuava as margens do rio Cher como pérolas caídas de um colar. Os raios do Sol no ocaso faziam com que os telhados de colmo parecessem banhados a ouro.
Apesar dos seus medos, cansaços e apreensões, Miri comoveu-se com a paz e a beleza simples da cena.
Interrogou-se se Simon sentiria o mesmo, mas duvidava. A julgar pela sua expressão de lábios fortemente comprimidos, suspeitava que tudo o que ele via eram as sombras
que se alongavam, os perigos de mais uma noite que se aproximava.
No bosque de choupos próximo, Elle relinchou suavemente. Voltou a cabeça para acariciar Samson quando ele por brincadeira lhe mordiscou a orelha. O par comportava-se
como se durante todas as suas vidas tivessem pastado juntos.
Miri sorriu, pesarosa. - Os nossos cavalos parecem entender-se muito melhor do que nós os dois.
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De relance, Simon lançou um olhar curioso aos cavalos. - Isso é porque eles não têm nada em jogo, nada como a nossa história passada.
- Não, penso que é porque os animais são mais sensíveis do que os seres humanos. Olham o mundo em termos muito mais simples e menos complicados. Invejo-os tantas
vezes. - Aproximando-se de Simon, Miri disse tranquilamente: - Lamento que duvides da minha força e da minha coragem para esta missão.
- Maldição, Miri, eu nunca disse...
- E eu não te censuro - apressou-se, não lhe dando oportunidade de falar. - Mas devias saber. Se não me deixares ir contigo, serei obrigada a continuar sozinha.
Simon lançou-lhe um olhar furtivo cheio de melancólica impaciência.
- Tu serás bem capaz disso, não é? E se encontrares sozinha a Rosa de Prata, o que diabo pensas fazer com ela? Chamá-la à razão, dizer-lhe que não é bonito as mulheres
sábias portarem-se assim? Porque ambos sabemos muitíssimo bem que nunca serás capaz de disparar sobre ela ou espetar-lhe um punhal no seu coração negro.
Embora o seu sarcasmo a tivesse feito hesitar, Miri respondeu com dignidade: - Espero poder encontrar as forças necessárias para fazer o que deve ser feito, mas
é por isso que seria melhor se uníssemos forças. Acredito que posso ajudar-te a encontrar a Rosa de Prata, mas tu és muito melhor a...
- A ser um bastardo cruel e sem coração -
Miri franziu-lhe o cenho. - A combater o mal, era o que eu ia dizer.
- Ah, então finalmente reconheces a necessidade da inflexibilidade do caçador de bruxas.
- - Tal como o caçador de bruxas precisa do conhecimento das mulheres sábias - replicou. - Também nunca serás capaz de derrotar esta mulher sozinho.
- Cá me arranjarei.
- - Até agora não foste bem-sucedido - relembrou-lhe Miri. - Uma aliança entre nós parece ser a coisa mais sensata, mas a escolha é tua. Podemos arriscar as nossas
vidas juntos ou sozinhos.
Simon soltou um suspiro cansado e mergulhou em silêncio na agitação dos seus pensamentos, só traída pelo modo como dobrava e desdobrava a mão. Miri mantinha uma
aura de tranquila indiferença, embora o seu coração batesse mais acelerado, pensando sobre o que faria se Simon recusasse a sua oferta, sem saber se teria realmente
coragem para prosseguir a sós.
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O olho negro de Simon perscrutou os dela, como se estivesse a medir a sua resolução. Ela obrigou-se a enfrentar firmemente o seu olhar.
Por fim, Simon disse: - Se eu fosse suficientemente louco para concordar com esta aliança, como tu lhe chamas, teria que haver certas condições.
- Tais como?
- Serei eu a comandar a nossa caça e terei sempre a palavra final sobre como deveremos proceder. Se alguma vez te ordenar para ficares para trás, tu fá-lo-ás, sem
discutir. Se corrermos perigo e eu te disser para fugires, tu fugirás, sem hesitações, mesmo que isso signifique deixar-me para trás.
Mirí franziu a testa, não gostando em absoluto daquelas condições, mas reconhecendo pela expressão grave de Simon que não tinha outra escolha senão aceitá-las. Acenou
afirmativamente. - Mas eu também tenho condições.
Quando Simon ergueu interrogativamente a sobrancelha, ela prosseguiu:
- Podes achar os meus métodos de perseguição algo... hum... desconcertan tes e pouco ortodoxos. Tens de me prometer não fazer perguntas sobre os meus processos ou
sobre quaisquer pessoas que eu possa contactar durante a nossa jornada.
- E se essas pessoas estiverem ligadas à Rosa de Prata?
- Não estarão. Terás de confiar no meu julgamento para isso.
Simon não parecia mais satisfeito com as condições propostas do que ela ficara com as dele. Finalmente concordou. - De acordo, que se dane.
Miri susteve a respiração, quase sem poder acreditar que vencera. - Então... então estamos de acordo? Continuamos juntos? - Insegura, ergueu a mão. Simon olhou para
ela longamente antes de entrelaçar os seus dedos fortes nos dedos de Miri.
- Juntos - acrescentou com gravidade - e que Deus nos ajude, a ambos.
A Cheval de Bronze era como muitas outras estalagens situadas ao longo do Cher, uma modesta hospedaria que vivia sobretudo do tráfego fluvial, mercadores e barqueiros
que transportavam mercadorias ao longo do rio. Mas os medonhos acontecimentos que tinham resultado na morte do bebé Lucas haviam baixado uma cortina permanente sobre
o estabelecimento dos Paillard, os estalajadeiros que se encontravam entre as primeiras famílias devastadas pelos sinistros desígnios da Rosa de Prata.
Outrora um homem jovial e irrequieto, Gaspard Paillard tinha agora movimentos letárgicos enquanto limpava as canecas e as repunha nas prateleiras do aparador. Quando
Simon entrou no salão com Miri atrás de si, nenhum sinal de boas-vindas se vislumbrou nos olhos mortiços do estalajadeiro.
Paillard ficara mesquinhamente grato a Simon por ter feito aquilo que ele próprio não tivera a coragem de fazer: desafiar o sacerdote local e procurar fazer com
que o seu neto tivesse um último local de repouso digno em vez de ser sepultado como uma mera procriação de uma bruxa. Mas Simon era uma amarga recordação da sua
cobardia e Paillard ficaria aliviado se não voltasse a pôr os olhos de novo no caçador de bruxas.
Simon até teria parado em qualquer outro lugar, mas com a noite a cair só tinha um objetivo - colocar Miri em segurança entre quatro paredes.
- Monsieur Paillard... - Seria um insulto perguntar ao homem como passava. Simon contentou-se com um ligeiro aceno de cabeça.
- Mestre Caçador de Bruxas - respondeu o estalajadeiro com azedume. - Que maus ventos vos trazem de novo à minha porta desta vez?
- Apenas a necessidade de uma refeição ligeira e alojamento por umanoite para mim e para... - Simon hesitou, procurando decidir como apresentar Miri.
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- Sou Louis, seu primo - antecipou-se Miri com uma voz rouca que talvez não enganasse ninguém; pelo menos assim pensou Simon.
- Ah... sim, Louis. - Simon lançou a Miri uma careta de aviso. Tinha-lhe ordenado para permanecer em silêncio e deixá-lo falar, só a ele.
Ajustou a aba do chapéu para baixo, sobre o rosto, mas não teria sido preciso. Para alívio de Simon, Paillard limitou-se a lançar-lhe um olhar inquisitivo de relance.
Parecia ter perdido o interesse em tudo o que estivesse para além da sua tristeza desde o inverno em que a sua filha Lucie vendera a alma ao Diabo e abandonara aquele
que era o seu neto, condenando-o a gelar até à morte.
- vou ver o que há na cozinha para cear - disse Paillard. - Quanto ao quarto, pode escolher. Temos tido muito poucos clientes desde... desde...
- Fez uma pausa, com a garganta a revelar uma estranha forma de emoção.
- O primeiro quarto no cimo das escadas está pronto e limpo - concluiu rispidamente.
Enquanto Simon agradecia ao homem, apercebeu-se que Miri os olhava a ambos, sem dúvida procurando sentir fluxos ocultos. Depois passou o olhar pela própria estalagem;
as paredes repletas de melancolia, as mesas e as cadeiras que continuariam a parecer exatamente tão nuas e vazias mesmo depois das velas acesas.
Simon recolheu rapidamente os alforges e empurrou Miri para as escadas. Uma camareira carregando um jarro de água quente apareceu para os guiar até ao andar de cima.
A jovem de cabelo louro-arruivado não era ninguém de que Simon se recordasse das suas anteriores visitas. Sem dúvida teria sido contratada para substituir o par
de braços perdidos quando Lucie Paillard desaparecera. A presença da nova camareira sugeria que os Paillard tinham finalmente aceitado o facto de que a sua filha
não mais voltaria a casa.
Enquanto a jovem criada de quarto acompanhava Miri pelas escadas, Simon preparava-se para as seguir, mas sentiu que alguém lhe puxava a manga.
- Monsieur Aristide?
Simon sentiu um nó no estômago quando se voltou e enfrentou uma mulher de aparência quase espectral que emergira das sombras. Outrora tão bela e jovem como a sua
filha, Colette Paillard parecia-se com um lindo vestido demasiado gasto, descorado de tantas lavagens e de branquear ao sol. Tanto como o marido detestava ver Simon,
este receava encontrar esta mulher com a sua boca trémula e a tragédia nos olhos.
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Inclinou a cabeça numa curta vénia. - Madame Paillard.
- Perdoe-me, mas estava a pensar se algures nas suas viagens teria ouvido algo sobre... sobre... - Olhou furtivamente para o salão, onde o marido se encontrava a
servir vinho a barqueiros. Gaspard Paillard proibira que o nome da filha voltasse a ser pronunciado sob o seu telhado.
Colette sussurrou: - Lucie.
- Não, madame, lamento. Não ouvi.
Miri e a camareira tinham já desaparecido das escadas. Simon procurou de novo segui-las, mas mais uma vez Madame Paillard deteve-o.
- Mas se ouvir alguma coisa... se alguma vez encontrar a minha menina...
Simon acomodou o peso dos alforges sobre o ombro, apertando os lábios. Não entenderia esta patética criatura o que sucederia à sua menina caso ele encontrasse Lucie?
Que seria obrigado a levá-la a tribunal para ser julgada e enforcada por feitiçaria e infanticídio?
- É... é este nunca saber nada que é o pior - disse com voz trémula. - Sempre a pensar no que terá sido feito dela... que me deixa sem dormir noite após noite. Por
isso, se souber, se me prometesse ter a bondade de vir e dizer-me...
Simon pensou que mais cedo teria pregos quentes espetados sob as unhas do que seria capaz de informar a mãe da rapariga sobre o destino que aguardava a sua filha
única. Mas quando os olhos de Colette o fitaram, ele respondeu bondosamente: - Prometo.
Colette reteve as lágrimas e fez uma patética tentativa para sorrir antes de desaparecer no salão. Simon subiu as escadas amaldiçoando mais uma vez a sua profissão
e bruxas como Lucie Paillard e a sua odiosa Rosa de Prata, que tornavam necessário o seu trabalho. Quando chegou ao andar de cima não havia sinal de Miri, mas a
camareira apareceu na primeira porta à sua direita.
- Por aqui, senhor - disse, acenando a cabeça numa reverência nervosa, com tão óbvio esforço para não olhar para a venda de Simon que ele esteve quase a ordenar-lhe
para ela a observar bem e longamente. Mas conteve-se. Estava habituado aos olhares que o seu rosto cicatrizado atraía e não era esta rapariga que o perturbava, mas
sim o ter regressado àquele maldito lugar. Devia ter-se esforçado mais por encontrar outro sítio para passarem a noite em segurança. Devia estar louco para trazer
Miri para esta estalagem, assombrada com o seu peso de amargas memórias e desespero. Não, decidiu. Foi quando estavam junto à vinha que verdadeiramente perdeu a
razão, ao concordar que Miri o acompanhasse sequer.
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Assim que a camareira conduziu Simon ao interior do quarto, apressou-se a desaparecer rapidamente. A Cheval de Bronze já não tinha o burburinho de outrora. Ainda
assim, para Simon, o silêncio pareceu-lhe ensurdecedor quando fechou a porta, encerrando-o a sós com Miri. Deixou cair os alforges no chão com um forte baque.
Alguém, a camareira ou Miri, tinha já acendido as velas, evitando as sombras do crepúsculo. Muito provavelmente fora a camareira porque Miri estava de pé no meio
do quarto, como uma mulher que ainda não se decidira a ficar. com o seu rosto ainda semiobscurecido pela aba descaída do seu velho chapéu, parecia estar a fazer
o inventário do meio que os cercava.
Não que houvesse muito para ver para além de um par de bancos de madeira, uma pequena mesa redonda, o lavatório e... a cama, um espesso colchão de penas coberto
por uma colcha gasta, não muito larga, com duas almofadas colocadas juntas, lado a lado, tão íntimas como quaisquer duas pessoas que encheriam a cama ao deitar-se.
Após um protesto inicial quanto à sua decisão de parar durante a noite, Miri pouco falara desde que cruzara a entrada da albergaria. Mas agora voltou-se para ele
com uma carranca. - Estarás à espera que partilhemos este quarto?
- bom, pareceria extremamente estranho se eu dissesse ao estalajadeiro que nós, os rapazes, queríamos quartos separados, não é verdade, Louis - respondeu causticamente.
- A não ser que estejas à espera de algum tipo de tratamento real por teres adotado o nome de reis?
- Não, não estou e não escolhi o nome por causa de qualquer rei. - Retraiu-se ainda mais sob a aba do seu chapéu, dizendo numa voz tranquila: - Louis era o nome
do meu pai.
Simon encolheu-se, sentindo-se como um completo cretino. Estava tão sensível como ela quanto a esta situação, mas isso não era desculpa. Devia ter-se lembrado. Miri
falara do seu pai sobejas vezes naquele verão em que pela primeira vez se encontraram, sempre tão orgulhosa por ser filha do bravo Chevalier Louis Cheney. Quando
passeavam pelas praias da enseada isolada, quantas e quantas vezes o olhar dela se estendeu esperançosamente, como se estivesse à espera de, a qualquer momento,
ver as velas enfunadas que trariam o seu pai de volta para casa.
- Desculpa - murmurou Simon, inclinando-se sobre a porta fechada. - Mas isto é uma consequência do nosso pequeno pacto e nenhum de nós
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parou para considerar que iríamos ser confrontados com a necessidade de estarmos juntos na intimidade durante esta jornada, tanto de dia como de noite.
- De alguma maneira nos havemos de arranjar.
Simon desejou estar igualmente seguro disso. Depois de outro momento de hesitação, Miri tirou o chapéu e lançou-o sobre a cama. Enquanto se baixava para apanhar
o seu alforge, a sua túnica subiu, revelando o tecido das suas cuecas bem justas às curvas das suas ancas. Simon olhou freneticamente em volta do quarto à procura
de algo para fazer que não envolvesse ficar especado a olhar para as nádegas torneadas de Miri.
Dirigiu-se para a janela e espreitou para o quintal, descortinando os contornos do poço e dos estábulos onde Elle e Samson estavam recolhidos. Tudo parecia calmo
e deserto, mas ele teria de ficar sentado toda a noite em vigília, com uma pistola carregada pronta a disparar...
Simon conteve-se com uma forte carranca, reconhecendo como estava a ser ridículo. Nenhuma das agentes da Rosa de Prata fora vista aqui desde a noite em que Lucie
Paillard desaparecera. Era improvável que decidissem aparecer logo naquela noite. Nunca anteriormente as bruxas tinham sido capazes de o atacar enquanto estava numa
estalagem ou com outras pessoas à sua volta.
Não estava a pensar inteligentemente e sabia porquê. Miri. A sua simples presença inquietava-o de muitas mais maneiras do que as que conseguia contar. Estava demasiado
consciente do movimento dela pelo quarto, nas suas costas, o chapinhar da água no lavatório enquanto ela se lavava, limpando a poeira do dia.
Quando Simon respirava era como se o perfume dela flutuasse no quarto, algo quente, atraentemente feminino. Um aroma demasiado sedutor. Inclinou-se para fora da
janela para limpar as narinas. Uma brisa suave vinda do rio fez-lhe vibrar a barba. com o início do crepúsculo, o ar arrefecera, mas, quanto a Simon, não suficientemente.
Devia ter procurado mais esforçadamente dissuadir Miri de o acompanhar. Mas sabia que a teimosia de Miri resolvia tudo demasiado bem. Ela expressara-o bem quando
ameaçou ir sozinha em perseguição da Rosa de Prata.
Mas não fora isso que realmente o influenciara. Fora o modo grave como o olhara quando lhe dissera: "Eu sou uma autêntica Filha da Terra e esta malévola mulher atenta
contra toda a bondade e toda a harmonia em que acredito, todos os princípios que me são queridos. Detê-la é tanto meu dever como teu. Como posso eu fazer-te entender?"
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Não podia. Simon nunca fora capaz de entender perfeitamente a distinção que Miri fazia entre mulheres sábias e feiticeiras. Qualquer envolvimento com a magia e o
antigo conhecimento lhe parecia demasiado perigoso e proibido. E, no entanto, Miri era tão apaixonada pelo que declarava ser a verdadeira via das Filhas da Terra
que estava disposta a arriscar a sua vida em defesa disso. Ele podia não gostar, podia não entender, mas, por Deus, respeitava-a por isso.
E ela tinha razão quando dissera que ele precisava da sua ajuda. Não fora bem-sucedido a combater sozinho a Rosa de Prata e Miri tinha mais aptidões e contactos
entre a comunidade de mulheres sábias do que ele jamais suspeitara. Ele precisava de todo e qualquer conhecimento e aptidão que ela possuísse, precisava de tê-la
consigo, por muito que demorasse a caçada à sua feiticeira.
Mas os próximos dias e noites iriam ser extremamente difíceis se ele não conseguisse dominar as rédeas de outras emoções e desejos que Miri despertava nele. Percorreu
um último olhar pelo pátio do estábulo antes de fechar as janelas e trancar os fechos. Quando se voltou, desejou ter mantido o seu olhar preso no exterior durante
mais tempo.
Miri retirara os ganchos do cabelo e soltara as sedosas tranças que lhe caíam como cascatas sobre os ombros. Simon vislumbrou um pouco da pele cremosa e branca enquanto
ela se tateava sob a túnica, procurando desapertar a espessa faixa de linho que usava para envolver os seios. Quando o conseguiu, puxou a faixa sob a túnica com
um leve suspiro de alívio que sussurrou até ele, tão atraente como uma carícia.
com o colarinho da túnica aberto, as dobras caíam o suficiente para revelar um fascinante vislumbre do vale dos seus seios e o desejo que atormentava Simon era tão
veloz e vivo como a ponta de uma flecha. Sabia que tinha de desviar o olhar, mas continuou a observá-la como se estivesse hipnotizado.
Completamente alheada do efeito que estava a produzir nele, Miri molhou uma esponja no lavatório e espalhou a água fresca e limpa pelo pescoço, com os olhos fechados
numa expressão de prazer sensual. Algumas gotas pingaram sobre a sua delicada clavícula, passaram a corrente de prata que usava, para desaparecerem na suave ondulação
do seu decote.
Difícil - Simon rilhou os dentes, sentindo uma ereção. Estes próximos dias e noites iam ser o puro inferno. Ao secar-se com a toalha, Miri pareceu
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finalmente recordar-se de que não estava só no quarto. À medida que se aproximava para o encarar, ajustou o colarinho para uma posição mais recatada.
- Não devíamos ter vindo para aqui, Simon - disse com gravidade. - - Esta hospedaria tem uma aura de infelicidade.
Ele olhou-a incrédulo. Estavam a envolver-se numa caçada que punha em perigo as vidas de ambos, comprimidos num quarto de dormir que a cada minuto lhe parecia ficar
mais pequeno, e ela preocupava-se com o raio da aura da estalagem?
Miri sentiu um arrepio. - É como se uma grande mágoa pesasse sobre as próprias vigas da casa.
Simon surpreendeu-se que ela tivesse tal sensação, mas logo pensou que não tinha razão para tal. Miri sempre possuíra uma intensa sensibilidade, uma misteriosa empatia
com aquilo que a rodeava. Simon nada lhe referira sobre os Paillard e a sua história trágica. Não tinha disposição para mais uma discussão e receava que Miri procurasse
convencê-lo de que, tal como a jovem Moreau, também Lucie Paillard tivesse sido simplesmente mal orientada. Simon bem o sabia. Mas pelo menos uma discussão sobre
os defeitos da Cheval de Bronze bem poderia servir para suavizar o calor que lhe estalava nas entranhas.
- Admito que não é o mais alegre dos lugares - disse. - Mas é limpo, confortável e, o mais importante, seguro. E é apenas por uma noite.
- Ainda continuo sem entender porque sequer insististe em pararmos. Samson estava suficientemente fresco para continuar, tal como Elle. - Voltou a colocar a toalha
no lavatório. -Julgava que normalmente viajavas a coberto da noite.
- Não contigo, isso não. Olha, parece-me que concordámos que seria eu a comandar esta perseguição. Esta aliança não pode funcionar quando tu já estás a questionar
as minhas decisões.
- Também não funcionará se insistires em olhar-me como uma qualquer... qualquer mulher indefesa que precisa da tua proteção - insistiu.
Simon olhou de relance para o brilho sedoso do seu cabelo, a suave ondulação das suas tranças soltas que agora brotavam sobre o tecido da sua túnica. Soprou um tempestuoso
fôlego.
- Tu és uma mulher. Como esperas que eu olhe para ti?
- Como um companheiro de armas.
Simon resfolegou. - Receio ser necessária mais imaginação do que aquela que possuo, apesar dos teus esforços para te pareceres com um homem.
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- Passou os olhos reprovavelmente pelo traje dela. - Pensas mesmo que este teu desapropriado disfarce engana alguém?
- Frequentemente engana. As pessoas raras vezes se dão ao incómodo de olhar com tanta atenção. Simplesmente puxo o meu chapéu para baixo, engrosso a voz e alongo
a passada. - Miri deu alguns passos numa notável imitação de um jovem presunçoso e fanfarrão. - Funciona, Simon.
- Até te dobrares - murmurou ele.
- O quê?
Simon contorceu-se, sentindo que seria melhor manter a observação para si próprio, mas ela precisava de ser avisada, caramba!
- Quando te dobras, os fundilhos das tuas cuecas... bem, colam-se ao teu... - Simon gesticulou atrapalhadamente na direção das suas ancas.
- O tecido aperta-se e todos podem ver a curva do teu traseiro. - Interrompeu-se, incomodado por se sentir ruborescer.
Os olhos de Miri escancararam-se. Esticou o pescoço, espreitando por sobre o ombro como se estivesse a tentar observar ela própria o fenómeno. Ele esperava que ela
se sentisse embaraçada, escandalizada, até ofendida. Não estava preparado para que ela rebentasse num riso franco e divertido.
- Achas divertido? - perguntou ele, rigidamente.
- Não, apenas reconfortante. Durante grande parte da minha juventude eu era tão desenxabida que perdi a esperança de alguma vez vir a ganhar quaisquer curvas femininas
que merecessem atenção. Mas lamento se a visão do meu, hum, traseiro te perturbou. Terei mais cuidado em manter-me de pé na tua presença. Esquecera-me de quão puritanos
são os caçadores de bruxas.
- Eu não sou puritano, caramba!
- És sim - disse Miri, com os olhos a dançarem. - Sempre foste. Mesmo quando rapaz, franzias os lábios quando me vias passear pela ilha Encantada com as minhas calças
folgadas.
- Isso era porque não era decente ou respeitável uma rapariga vestir-se assim.
- Eu venho de uma família de mulheres acusadas de serem bruxas e a minha irmã Gabrielle foi outrora uma das mais conhecidas cortesãs em Paris. Penso que a respeitabilidade
e eu há muito que nos separámos. Além disso, devias tentar viajar uma longa distância amarrado por um corpete, agarrando-te à vida numa sela de amazona, ou escarranchado
com os saiotes enrolados nos joelhos. Desisti do meu confortável traje masculino uma vez para te agradar, Simon Aristide. Não vou fazê-lo de novo.
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- Não me lembro de alguma vez teres feito semelhante coisa.
Miri espalmou as mãos sobre as coxas, com falsa indignação, enquanto acusava: - Suportei o tormento de saias e saiotes e tu nem sequer notaste.
Mas enquanto procurava avivar a memória, repentinamente a recordação tornou-se muito clara. Tinham sido tempos tensos e difíceis para ele, durante aquele primeiro
verão na ilha Encantada, divididos entre a sua afeição por Miri e a lealdade para com o seu mestre, Vachel le Vis.
O conde de Renard fora bem-sucedido ao destruir grande parte da irmandade de caçadores de bruxas. O implacável feiticeiro tinha justamente retalhado a ilha no seu
esforço para acabar com os poucos que restavam. Miri ajudara Simon a esconder-se numa gruta perto da enseada e levara-lhe comida e vinho, dia após dia. Emprestara-lhe
a sua roupa masculina para substituir o manto escuro e o capuz que o mestre le Vis obrigava os seus seguido res a usar.
Miri não só abandonara os seus esforços para parecer um rapaz, como aparecera todos os dias envergando um vestido, com o cabelo preso atrás com fitas. Como jovem
franganote e arrogante que era, tinha consciência de que ela estava completamente apaixonada por ele. Também lhe ganhara afeição, mas na altiva experiência dos seus
quinze anos considerara-a, com os seus escassos doze, pouco mais do que uma criança.
Simon fez um trejeito. A sua vida seria nos próximos dias tremendamente mais fácil se ainda pudesse ver Miri daquela forma e não tivesse uma tão dolorosa consciência
da desejável mulher em que ela se transformara.
Os seus lábios tremiam e os seus olhos travessos brilhavam enquanto continuava a espicaçá-lo. - Suponho que, se te incomoda assim tanto, posso poupar os teus rubores
e procurar comprar um vestido a uma das mulheres desta aldeia. Se realmente assim o desejares.
Embora tivesse provocado um sorriso a Simon, este disse-lhe: - O que desejo, minha querida, é que tu fiques fora deste negócio perigoso. De volta à tua ilha, completamente
segura.
O brilho da alegria nos seus olhos diminuiu. - Completamente segura - repetiu melancolicamente. - Toda a minha vida tenho andado à procura desse lugar. Não acredito
que exista. E tu -
- Não, mas tu estarias muito mais segura na ilha Encantada do que estás aqui comigo.
Ela pareceu aperceber-se de que ele falava de muito mais do que sobre os perigos que a Rosa de Prata apresentava. Inclinou a cabeça para o lado, olhando-o daquela
curiosa maneira inquisitiva que lhe era única.
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- Não estou segura na tua companhia, Simon? - perguntou. - Há uma coisa que te queria perguntar. Sobre a... a maneira como nos separámos na ilha Encantada. Aquele
beijo...
Oh, Deus. Ele bem conjeturara sobre quando poderia ela vir a censurá-lo por aquilo, sempre o receara.
- Isso foi um erro. Quero dizer, eu... eu não sei que diabo me deu - desabafou. - Peço desculpa, nunca quis ofender-te.
- Não ofendeste. Só me surpreendeste. - Pestanejou enquanto confessava quase timidamente: - Não acredito que alguma vez tenha sido beijada tão... tão vigorosamente.
Receio ter gostado mais do que devia.
A respiração de Simon bloqueou-se na garganta. Porque tinha ela que ser sempre tão infernalmente honesta? Não perceberia como era perigoso aquele reconhecimento,
feito a sós, fechada num quarto com um homem? Especialmente quando lançava mais combustível para a fogueira, humedecendo inconscientemente os lábios, tornando a
sua boca muito mais vermelha, exuberante e tentadora.
- Não te preocupes com esse beijo. Nada semelhante voltará a acontecer - disse roucamente, embora sem a certeza sobre quem é que estava mais desesperadamente a tentar
convencer, ela ou ele próprio. - Naquela noite, não estava em mim e tinha a certeza de que seria a última vez que nos encontrávamos. Esperava absolutamente estar
morto em breve.
Ela olhou-o com um riso intrigante. - Receavas estar prestes a morrer e não podias pensar em nada melhor do que beijar-me?
- Parece que não.
Mesmo sabendo que seria muito mais sensato manter a distância, não podia deixar de se aproximar, de fazer deslizar os seus dedos pela curva suave das faces dela,
daquela mulher cuja vida estivera tão estranhamente, tão inexplicavelmente ligada à sua. Uma donzela mortal com olhos de fada. Olhos prateados, nos quais ele podia
ver os reflexos da criança que o encantara, a rapariga cuja beleza desabrochava e lhe tinha arrebatado o coração, a mulher que agitava os seus sentidos, apesar dos
frios muros de ferro que ele procurava erguer entre ambos.
Perdera a esperança de voltar a ver Miri naquele fim de tarde cor de pérola em que deixara a ilha Encantada e no entanto ali estava ela a fitá-lo, algo tímida, algo
desconfiada, mas com muito mais confiança do que ele alguma vez teria direito a esperar. Quando Simon lhe afagou o rosto, ela inclinou-o na sua mão, acolhendo inconscientemente
a carícia.
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Repentinamente tomou consciência, como se tivesse sido atingido pela força de uma clava no cérebro, da verdadeira razão pela qual não procurara esforçar-se mais
em dissuadi-la de o acompanhar. Não porque temesse o que ela pudesse fazer sozinha ou porque quisesse recorrer aos seus conhecimentos e aptidões. Não, o que ele
queria de facto... era ela mesma. Quando Simon se obrigou a retirar-lhe a mão da face, Miri pestanejou como uma mulher bruscamente despertada de um sonho.
- Sempre foste a minha única fraqueza, Miri Cheney - murmurou. Este seu reconhecimento pareceu perturbá-la tanto como a ele. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa,
ele prosseguiu: - Penso que é melhor eu passar o resto da noite em vigília. Do outro lado daquela porta.
- Mas... mas tu também precisas de dormir - disse ela. - Claro que está fora de questão partilharmos a cama, mas com certeza podias fazer uma cama no chão e...
- Acho que ambos sabemos que seria uma má ideia - interrompeu ele. Ela corou, esfregando a corrente pendurada ao seu pescoço. - Sim, talvez tenhas razão.
- Não te preocupes. Não vou estar longe - disse. - Não há razão para teres medo.
- Não tenho, mas... - calou-se, franzindo as sobrancelhas.
- Claro que não tens. - A boca de Simon retorceu-se num meio sorriso. - Isso é uma das coisas mais surpreendentes em ti, a tua falta de medo. Antes, chegaste a acusar-me
de duvidar da tua força e coragem, mas há muito que eu te achava a mulher mais corajosa que já conheci. Nunca poderei esquecer a noite em que nos encontrámos pela
primeira vez, quando estavas a tentar combater sozinha um grupo de bruxas para salvares o gato de ser sacrificado.
Embora Miri esboçasse um ligeiro sorriso com a recordação, protestou:
- Não eram bruxas. Apenas um bando de raparigas estúpidas e ignorantes.
- Então e aquela vez em Paris quando me comportei como um cretino implacável? Cruzaste-te com um exército inteiro de mercenários caçadores de bruxas para me veres.
Continuo sem entender porque correste tal risco.
- Porque acreditava em ti, Simon. - Olhou-o, acrescentando suavemente: - Ainda desejo acreditar.
- Não o faças. Só poderei desapontar-te. - Depositou-lhe um beijo brusco na testa. - Boa noite, minha querida. Tranca a porta quando eu sair.
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Simon recostou-se na cadeira, embalando um copo de vinho. Era estranho. Há muito que via a noite como o seu tempo, confortável, com os longos períodos de escuridão
e silêncio que o isolavam do resto do mundo. Apenas ele, Elle e uma baça faixa de estrada deserta.
Mas as trevas e a solidão desta noite pareciam cercá-lo por todos os lados. Talvez fossem todas as outras cadeiras e mesas vazias no salão deserto. Os Paillard tinham-se
retirado para as limpezas nas cozinhas, deixando Simon sozinho com as sobras da sua ceia e algumas velas.
Normalmente, Simon sentava-se com as costas voltadas para a parede, mas posicionara a cadeira de modo a poder manter o olho apontado para o cimo das escadas. Um
pouco antes levara o tabuleiro com a ceia de Miri até à porta do quarto, passando-lho sem entrar. Assumiu que Miri estaria já a bom dormir e procurou não pensar
no seu corpo macio enrolado na cama, com o seu cabelo sedoso espalhado sobre a almofada.
Em algum momento ele próprio teria que descansar um pouco para se preparar para o dia de amanhã, quando a perigosa busca começaria realmente. Decidiu que se esticaria
em frente do quarto de Miri, independentemente do que os Paillard pudessem pensar do seu estranho comportamento. De algum modo duvidava que algum deles pudesse notar
ou preocupar-se com o que fazia.
Soltou a sua bolsa do cinto, desapertou-lhe os cordões e contou as moedas suficientes para pagar a ceia e o quarto. Queria fazer já as contas com os Paillard, para
que ele e Miri pudessem partir, despercebidos, quando o dia raiasse.
Mas à medida que punha as moedas sobre a mesa, reparou no outro objeto pesado no fundo da bolsa. Algo que ele raramente se permitia examinar, exceto em noites que
pareciam mais longas do que as outras; uma noite como esta.
Procurando no fundo da bolsa, tirou uma caixa octogonal que comprara para guardar algo que roubara há anos. Pressionou o fecho com o polegar e viu a tampa abrir-se,
revelando um anel de cabelo enrolado aconchegado nas pregas de veludo. Simon hesitou quando se recordou de como o retirara impiedosamente de Miri, encostando-a contra
a parede da estalagem, cortando o caracol de cabelo com a sua faca. Fizera-o apenas para a assustar e intimidar a ficar longe dele. Bem longe, onde não o despertasse
com os seus lábios macios e olhos penetrantes, procurando dissuadi-lo daquilo que, na sua arrogante juventude, ele entendia ser o seu manifesto destino: vencer o
mal e livrar a França da bruxaria.
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Isso não explicava porque mantivera o caracol de Miri todos estes anos. Talvez uma penitência, uma lembrança constante e uma censura por todo o mal que lhe causara,
pelo modo como a traíra, uma vez após outra. Deus, ela ainda devia odiá-lo. Porque não o faria? Nunca conhecera ninguém como ela, com semelhante capacidade para
perdoar, com uma determinação de procurar o melhor, mesmo num degenerado implacável como ele. Surpreendia-o, humilhava-o, envergonhava-o.
"Acreditava em ti, Simon, ainda desejo acreditar."
Oh, maldita tentação de a tomar nos braços e persuadi-la a fazê-lo. Já vislumbrara suficiente desejo no seu rosto para ter consciência de que seria possível seduzi-la.
Saciar a sua alma negra e ressequida bebendo um pouco da sua luz e encontrando alívio para o seu vazio, bem fundo no seu quente acolhimento.
Afinal Miri era uma mulher dos seus vinte e seis anos e, achava ele, ainda virgem, e saberia muito pouco sobre como se pode ser consumido pelos fogos da paixão.
Ele já pecara demais com Miri Cheney sem lho ter ensinado, pelo que, mesmo que não pudesse compreender mais nada sobre ela, isto compreendia perfeitamente. Miri
não era capaz de se entregar a nada que não envolvesse inteiramente o seu coração e alma. E tão-pouco estaria salva nas suas rudes mãos.
Simon voltou a fechar a pequena caixa e a guardá-la de novo na sua bolsa, decidido a pôr fim à insensata aliança entre ambos, tão rapidamente quanto possível. Descobrir
o rasto das bruxas que tinham estado na ilha Encantada, forçar uma delas a revelar-lhes a identidade da Rosa de Prata e, então, se ele desistisse de levar a desgraçada
jovem Moreau a tribunal e a entregasse ao cuidado de Miri, talvez conseguisse persuadi-la a regressar à ilha Encantada, deixando-o a ele tratar da Rosa de...
Os pensamentos de Simon foram interrompidos pelos passos pesados de botas. Olhou de relance e irritou-se por perceber que as suas reflexões o tinham tornado descuidado.
Não tinha notado a chegada de outro viajante - um cavalheiro, pelo seu aspeto, apesar da sua capa manchada da viagem, gibão e calças de montar.
Simon estudou atentamente o recém-chegado, mas nada viu nele que pudesse causar apreensão. O forasteiro espreitou para o salão como se procurasse o estalajadeiro.
Quando reparou em Simon, concedeu-lhe uma profunda vénia.
- Boa noite, monsieur.
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Simon correspondeu inclinando a cabeça com semblante carregado, procurando desencorajar mais trocas de cortesias. Resolutamente, o estranho aproximou-se da sua mesa.
- Tenho o prazer de estar a dirigir-me ao grande le Balafre, mestre caçador de bruxas? - A voz do homem era cortês, tão macia como as pontas encaracoladas da sua
barba cor de areia. Mas os seus olhos cor de avelã eram astutos e vigilantes.
Simon ficou tenso à pergunta do estranho, embora não ficasse especialmente surpreendido com ela. Não era um desconhecido nesta parte do país e era frequentemente
consultado por sacerdotes, magistrados e latifundiários do distrito sobre assuntos relacionados com feitiçaria. Normalmente acabava quase sempre por se tratar de
ninharias, uma perda do seu tempo, que resultava apenas da histeria da mulher de alguém ou dos medos supersticiosos dos camponeses locais. Mas por vezes, especialmente
tendo em conta as recentes atividades da Rosa de Prata, o medo tinha razão de ser.
Mais cauteloso, Simon esquivou-se à pergunta. - Se vos dirigis ou não a le Balafre, depende.
- De quê, monsieur?
- De quem é que pergunta por ele e porquê.
O homem voltou a fazer uma vénia. - Capitão Ambroise Gautier, oficial da guarda real de sua graciosa majestade a rainha Catarina, ao vosso serviço, Monsieur Aristide.
Um ligeiro pestanejar foi o único sinal de alarme em Simon, que moveu a mão sob a mesa até agarrar o cabo do seu punhal.
Guarda real, uma ova, pensou Simon, percorrendo o seu olhar pelo traje comum de Gautier. Este era um dos lacaios da Rainha das Trevas, um dos emissários privados
enviados em missões que normalmente escapavam ao escrutínio público, quer contemplassem a entrega de correspondência clandestina, um pouco de espionagem ou a liquidação
discreta de algum inimigo.
Forçando um furtuito encolher de ombros, Simon beberricou um pouco de vinho. - De certeza, monsieur? E o que poderia um membro da guarda real de sua majestade -
Simon deu uma ênfase sarcástica às palavras querer de mim?
- Trago-vos uma mensagem de sua majestade - disse Gautier com um sorriso amigável. - Ela deseja a vossa presença o mais cedo possível.
- É uma terrivelmente longa distância até Paris.
- Ah, mas felizmente a rainha está por perto, a menos de dez léguas daqui, instalada em Chenonceau. Se partirmos agora, prometo-vos que regressareis
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a esta estalagem a tempo de usufruirdes de umas horas de sono antes de o Sol nascer.
- Há anos que não tenho contacto com sua majestade e ela deseja ver-me esta noite? O que poderá ser assim tão urgente?
- Não sou confidente de sua majestade, mas... - Gautier inclinou-se para se aproximar, baixando a voz. - Acredito que tem a ver com certos relatórios que haveis
enviado para Paris.
Simon ocultou a sua surpresa, movendo-se com dificuldade na cadeira. Gautier tinha de estar a referir-se aos seus relatórios sobre a Rosa de Prata
que enviara para o rei. Pela atenção que sua majestade lhes prestara, mais valia que Simon os tivesse despachado para o fundo do Sena. Talvez Henrique nunca os tivesse
sequer visto. Talvez tivessem caído em outras mãos as da Rainha das Trevas. Por muito que Simon quisesse que alguém lesse os seus relatórios, não quereria certamente
que fosse ela. Mesmo ele não seria suficientemente louco para pensar consultar uma perigosa feiticeira para combater outra.
Simon fechou os seus dedos sobre o cabo do punhal, lamentando fortemente ter-se descuidado ao ponto de ser apanhado desprevenido desta maneira e não ter mais tempo
para pensar melhor nesta situação.
- Tive um dia longo e difícil sobre a sela - começou lentamente. - Dizei a sua majestade que a visitarei dentro de um dia ou dois...
- Não se faz esperar uma rainha, Monsieur Aristide. Especialmente a nossa rainha. As instruções que recebi foram muito explícitas. Devo levar-vos até junto de sua
majestade assim que vos encontrar, seja dia ou noite.
- E se eu não estiver disposto a ir esta noite?
O sorriso de Gautier nunca se desvaneceu, mas os seus olhos semicerraram-se. - Ai de mim, tenho de levar-vos de uma maneira ou de outra, sobre os vossos pés ou lançado
inconsciente sobre a garupa de um cavalo. Eu não transformaria isto em algo desagradável, mas a escolha é vossa.
Gautier ergueu a mão enluvada num gesto e Simon ouviu passos de botas atrás de si. Apercebeu-se que os homens de Gautier tinham seguido o seu capitão até ao salão,
onde não esperavam mais do que as suas ordens. Quantos eram, Simon não conseguia dizer. Vislumbrou dois pelo menos pelo canto do olho e teve a sensação de que poderia
estar outro do seu lado cego.
Simon apertou o cabo do punhal e ponderou as suas opções. Se decidisse resistir, estava em grande desvantagem numérica e as suas possibilidades de
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vencer reduziam-se a nenhuma. A desordem subsequente só serviria para atrair os Paillard da cozinha, possivelmente colocando-os em risco. Pior ainda, poderia envolver
Miri, se esta acordasse e se precipitasse em seu auxílio...
Simon lançou um rápido relance ao seu quarto no andar de cima. A Rainha das Trevas sempre fora uma ameaça tão grande para Miri e a sua família como podia ser a Rosa
de Prata. Mas não havia razão para este capitão Gautier suspeitar que Simon não viajava sozinho, como habitualmente. Não, se Simon mantivesse o bom senso.
Erguendo as mãos para mostrar que não empunhava qualquer arma, pôs-se lentamente de pé, confrontando o sorriso de Gautier com o seu próprio e irónico sorriso. -
Estou como sempre ao dispor de sua majestade.
Simon só esperava que isto não tivesse que ser verdade.
O luar perfurava as nuvens e vertia a sua luz de prata sobre o castelo, fazendo brilhar as paredes de pedra branca como uma pérola lustrosa colocada entre as colinas
do vale do Loire. Nada havia de deprimente neste castelo, mas antes uma aura de palácio de conto de fadas, com as suas torres e torretas, as suas filas de janelas
cheias de luz. O castelo fazia ponte sobre o rio Cher e as suas águas escuras fluíam sob os seus diversos e graciosos arcos.
Chenonceau não era grande, quando comparado com outros castelos, mas era certamente considerado como um dos mais belos de França. Contudo, enquanto Simon atravessava
o terreiro, recordava a sua já vasta experiência sobre como o mal podia esconder-se sob uma bela fachada. Fosse um castelo ou uma rosa de prata.
O Château de Chenonceau devia a sua traça elegante, não a um arquiteto, mas à inteligência das três mulheres que tinham partilhado a sua propriedade desde há mais
de três décadas: a mulher de um ministro das finanças, uma amante real e... uma Rainha das Trevas.
Tal como muitos outros dos seus súbditos, Simon há muito que suspeitava que Catarina de Médicis era uma feiticeira especialmente dotada na magia negra, especialmente
no que dizia respeito a venenos. O seu sorriso frio desafiara frequentemente Simon a provar isso mesmo, algo que ele já perdera toda e qualquer esperança de fazer.
A rainha era muito simplesmente demasiado cuidadosa, demasiado astuta, e era a Rainha-Mãe de França. Noutros tempos, Catarina terá encarado Simon como um adversário
problemático, mas depois de ele ter perdido os favores da corte, parecia tê-lo feito desaparecer dos seus pensamentos. Ou ele assim pensava, até esta noite...
Simon encaminhou-se na direção da entrada iluminada por tochas, cercado de perto pela sua escolta. Embora Simon tivesse entregado as suas armas
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e tivesse vindo pacificamente, o capitão Gautier estava alerta e não corria riscos. Retirara Simon da Cheval de Bronze diretamente para montar um cavalo que o esperava.
Apesar de todas as garantias de Gautier de que a rainha desejava apenas uma breve audiência, Simon sentiu a tensão quando passou sob a sombra do castelo. Quando
a porta bateu atrás de si, não pôde deixar de pensar em como facilmente um homem podia ser aprisionado dentro daquelas paredes de pedra por tempo indeterminado ou
até desaparecer para nunca mais se ouvir falar dele. Um arrepio frio percorreu-lhe a espinha e levou algum tempo a identificar essa sensação tão estranha para ele.
Medo. Não por ele mesmo, mas pela mulher que deixara para trás, pensando no que faria Miri se ele não regressasse. Ao acordar abandonada numa estalagem desconhecida,
sem a mínima ideia do que lhe acontecera a ele. Partiria à sua procura com o risco de cair nas mãos da própria Rainha das Trevas? Continuaria sozinha na sua odisseia
para derrotar a Rosa de Prata?
Ela tinha uma arma. Simon deixara-lhe a sua espada no quarto, não que conseguisse imaginar Miri a usá-la alguma vez contra alguém, nem mesmo para salvar a sua própria
vida. Era-lhe quase mais fácil imaginar a arma a ser-lhe arrebatada, voltada contra ela... a sua própria lâmina a devassá-la...
Simon rangeu os dentes. Não era do género de perder o controlo dos nervos, imaginando coisas terríveis, e agora não era certamente altura para começar a sê-lo. Não
quando precisava de se manter calmo e pensar racionalmente. Se Catarina tivesse decidido desfazer-se dele após todos estes anos, certamente já estaria morto. Gautier
era o género de farsante risonho que não teria quaisquer escrúpulos em degolar um homem, pedindo-lhe desculpa enquanto o fazia. Simon não tinha qualquer razão para
supor que a situação era diferente da que Gautier descrevera. A rainha lera os seus relatórios e estaria perturbada por eles, mas tinham decorrido meses desde que
Simon os enviara. Por que razão, repentinamente, quereria Catarina interrogá-lo tão urgentemente?
Simon tinha de admitir que estava curioso e que qualquer coisa em que estivesse envolvida a Rainha das Trevas poderia ser perigosa. Quanto mais depressa pudesse
terminar este encontro e regressar para Miri, melhor se sentiria.
Assim que conseguiu ter Simon a salvo no interior das torres do castelo, Gautier descontraiu-se. O capitão mandou dispersar os outros guardas e acompanhou Simon
até à escada principal, uma ampla série de degraus que
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se estendiam até ao andar superior, sob um teto onde se viam gravados dois "C", de Catarina de Médicis. Como se houvesse o perigo de alguém esquecer que quem ali
vivia era a sua senhora, pensou Simon.
A vista do átrio despertou em Simon a desagradável memória de quando estivera pela última vez em Chenonceau, para relatar ao rei francês o malogro do seu assalto
à ilha Encantada. Na altura estava exausto pelo peso do seu fracasso na recuperação do Livro das Sombras, pela prisão do feiticeiro Renard, pelo controlo dos seus
homens, procurando impedi-los de saquearem e incendiarem as casas. Roído pela culpa e pela dor que soubera ter infligido a Miri.
O soturno estado de espírito de Simon deixara-o com pouca disposição para enfrentar a louca alegria de uma festa da corte. Uma festa - Não, muito mais uma orgia,
com cortesãs escandalosamente mascaradas e sem mais nada vestido, ao longo das escadarias do castelo. Arrulhando, saudando lascivamente Simon e exibindo-lhe os seus
seios desnudados.
Simon retrocedera, voltando-se para a única mulher presente que envergava um respeitável vestido de seda e crinolina, que lhe tinha esboçado uma recatada reverência,
abanando o seu leque diante do rosto. Mas quando baixou o leque, Simon gelou com o choque. Sob a ridícula peruca de cor púrpura e camadas de rouge, o rei de França
fazia um esgar a Simon. E era este o homem a quem Simon estava ligado - Ele acreditara que Henrique Valois era um jovem rei de espírito sério, reto e sincero, apaixonadamente
empenhado em governar uma França livre de todo o mal e de toda a corrupção.
Simon sentira-se agoniado quando o rei lhe deu um beijo em cheio na boca, fingindo depois recuar horrorizado com as cicatrizes de Simon. com as faces a arder, Simon
quase ficara sem saber o que fazer ou para onde olhar enquanto a corte inteira se desfazia em gargalhadas. E algures nas sombras mais acima, ela tinha observado,
a Rainha das Trevas, com os lábios a conter um sorriso pelo seu embaraço.
Simon abanou a cabeça para se libertar daquela memória perturbadora. Talvez Miri tivesse razão. Era um pouco pudico; fora-o mais ainda na sua juventude. Já testemunhara
suficiente deboche na corte de Henrique Valois para estar agora mais do que farto. Apesar disso, ficou aliviado por descobrir que naquela noite o castelo fervilhava
de atividades bem mais comuns.
Era óbvio que a rainha ali se instalara há pouco tempo. Criados de aparência exausta carregavam arcas e baús ainda por abrir. Um mensageiro, com as roupas tão sujas
da viagem como as de Simon, passou apressado, segurando missivas para entregar.
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A escadaria conduzia a um grande átrio coberto com arcos ogivais, os candelabros de parede projetavam sombras nas paredes cobertas por valiosas tapeçarias flamengas
e com muitas portas. Quando Simon e o seu acompanhante chegaram ao piso superior, uma pequena mulher loura avançou na direção de ambos para os receber e o seu frio
sotaque soou perturbadoramente familiar a Simon.
- Obrigada, capitão Gautier. Eu acompanho Monsieur Aristide a partir daqui.
Gautier hesitou por um momento, depois fez uma vénia respeitosa e afastou-se, deixando Simon a sós com Gillian Harcourt, uma das damas de companhia de Catarina.
Damas? Havia termos muito menos gentis e alguns deles bem se podiam aplicar às belas e inteligentes mulheres que serviam a Rainha das Trevas. Conhecidas como Esquadrão
Volante, eram recrutadas por Catarina para seduzirem os seus inimigos e descobrirem os seus segredos, para manter os seus poderosos nobres sob controlo.
Durante o período em que serviu o filho de Catarina, Henrique, Simon manteve uma razoável distância destas sedutoras... exceto de Gillian. Sempre gostara do seu
humor e da sua sagacidade. Na verdade, houve até um período de poucas semanas em que fez muito mais do que meramente gostar dela.
Simon e a sua antiga amante olharam-se em silêncio durante um longo momento. Os anos não tinham sido meigos para a cortesã. A sua beleza estava a desvanecer-se e
o vestido malva decotado revelava excessivamente uns seios que já não eram firmes. A sua boca era agora acentuada por duas rugas, o seu rosto apresentava o desgaste
de muitas folias, de muitas noites tardias, e nem todo o rouge que aplicava nas faces o podia disfarçar.
Como muitas das damas da rainha, os seus olhos tinham uma expressão dura e calculista, mas algo neles se suavizou ao verem Simon.
- Simon Aristide, há quanto tempo - murmurou.
- Mademoiselle Harcourt. - Simon concedeu-lhe uma vénia irónica. Gillian aproximou-se numa nuvem de perfume forte. Simon sempre o achara excessivamente doce. A mulher
afastou uma madeixa de cabelo da sobrancelha. - Então haveis decidido finalmente deixar crescer o cabelo para trás. Houve algumas manhãs em que os reflexos do sol
na vossa cabeça calva quase cegavam, Monsieur le Balafre. Eu diria que a vossa aparência melhorou, mas... - Gillian torceu o nariz. - com roupas limpas seria bem
melhor.
- Perdoai-me, senhora - respondeu Simon, ironicamente. - Mas a minha escolta não me deu oportunidade de me refrescar. Além disso, já lá
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vai muito tempo desde que eu era recebido na corte. Acabei por perder o hábito de estar ao serviço da realeza.
Gillian lançou um olhar furtivo pelo corredor. Duas aias corriam irritadas, com os braços cheios de cobertores e lençóis lavados, para um dos quartos. Gillian esperou
que elas passassem até se aproximar de Simon e lhe sussurrar: - Devo admitir que estou surpreendida por vos ver. Pensei que tivésseis sensatez suficiente para vos
manterdes afastado da Rainha das Trevas.
- Não tive muito por onde escolher. Gautier apanhou-me de surpresa.
- Vós - O grande le Balafre? - troçou Gillian. - Que eu saiba, nunca fostes apanhado desprevenido.
Simon fez um esgar, ao lembrar-se da maneira como se distraíra a contemplar o caracol de Miri. - Estava um pouco... distraído.
- Agora sim, surpreendeis-me completamente. Até a rainha diz que nunca conheceu um homem mais tenaz ou obsessivo. Em tempos, ela colocou a vossa cabeça a prémio,
sabíeis disso?
- Tenho muitos inimigos que ficariam felizes se vissem a minha cabeça separada dos meus ombros.
- Não essa cabeça, tonto. - Gillian puxou-lhe a ponta da barba e deu uma gargalhada rouca. - Esta outra! - Provocantemente, aproximou os seus dedos do entrepernas
de Simon. - Sua majestade ofereceu um resgate em jóias a quem conseguisse seduzir-vos para vos afastar da vossa missão de caçar bruxas.
À medida que os dedos de Gillian deslizavam pouco a pouco para baixo, Simon susteve a respiração e afastou a mão dela firmemente. - Então assumo que vos haveis tornado
uma mulher abastada.
- Eu? - riu-se Gillian. - Captei o vosso interesse por menos de um mês. Isso nem a um colar de pérolas me deu direito. Especialmente quando a rainha suspeitou que
estáveis apenas à procura de uma maneira para provar que ela era uma feiticeira. Claro, quando vos apercebestes de que eu não era útil, tudo acabou entre nós.
- Gillian, lamento... - começou Simon, mas ela interrompeu-o, abanando a cabeça.
- Não o façais. Estou acostumada a ser usada e vós havei-lo feito de um modo muito mais gentil do que a maioria. - Um olhar de inesperada tristeza atravessou-lhe
o olhar, mas rapidamente se restabeleceu, oferecendo-lhe um sorriso extremamente luminoso. - Apesar de nenhum de nós ter conseguido o que queria, partilhámos um
interlúdio agradável, não é verdade?
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- Sim, passámos - concordou Simon. Gillian fora uma amante experiente e generosa e, durante algum tempo, confortara-lhe as suas noites vazias. Sentiu uma estranha
vontade de lhe fazer descer o vestido pelos ombros e obrigá-la a lavar a pintura do rosto. - Certamente haveis acumulado suficientes recompensas ao serviço da rainha.
Porque não deixais esta vida?
A boca de Gillian alongou-se com uma pressão sobre os lábios. - Ninguém se afasta assim, simplesmente, da Rainha das Trevas. Recordai-o se porventura alguma vez
vos sentirdes tentado a vender-lhe a alma.
- Duvido que a minha alma seja do interesse de sua majestade. Mas mesmo que fosse, não tenho qualquer intenção de fazer negócios com o diabo.
- Isso é o que todos dizemos, meu querido Simon. Vinde, não é inteligente fazer a rainha esperar.
Gillian conduziu-o agilmente para uma porta até ao fim do átrio, espalhando o seu perfume atrás de si como uma recordação perturbadora. Simon esforçou-se por manter
as ideias claras, sabendo que ia precisar da sua astúcia atenta. Estivera pela primeira vez com a Rainha das Trevas quando ainda era apenas um rapaz, aprendiz do
caçador de bruxas Vachel le Vis. O mestre le Vis fora iludido pela conduta solene da rainha, mas Simon sentira-se gelar quando viu aqueles olhos negros da Médicis.
Olhos que podiam hipnotizar, despir a alma de um homem, plantar pensamentos na sua cabeça que ele jamais deveria ter em consideração, tal como fizera com le Vis.
Simon jurara que nunca seguiria o caminho do seu pobre mestre e resistiria aos esforços da rainha para conseguir qualquer tipo de controlo sobre ele.
Talvez tenha sido tão bem-sucedido por não ter ambições pessoais que a levassem a predá-lo, ninguém de quem gostasse para poder ser ameaçado, nenhum ponto vulnerável.
Só que isso já não era verdade. Tinha de facto um ponto fraco e estava agora a dormir profundamente na Cheval de Bronze. Simon afastou decididamente do espírito
todos os pensamentos sobre Miri. Se desse à Rainha das Trevas qualquer indício de vulnerabilidade ou medo, ela usá-lo-ia como arma contra ele.
Gillian conduziu-o a um grande estúdio com um teto de molduras de carvalho e as paredes decoradas por muitos quadros com pesadas molduras douradas, retratos e cenas
bucólicas da vida campestre. Uma das damas da rainha, uma mulher mais velha, encontrava-se sentada a bordar perto da lareira.
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Várias outras aguardavam de pé, silenciosas. Olharam nervosamente de relance quando Simon e Gillian entraram, mas para além disso pareciam não notar a sua presença.
Próximo do centro da sala havia uma secretária atravancada com pergaminhos, tinta, plumas e lacre. O elaborado cadeirão fora arrastado para trás como se recentemente
abandonado por quem nele se sentava, a mulher que se retirara para as janelas no extremo da sala.
Encontrava-se de costas voltadas para ele, mas Simon não teve dificuldade em reconhecer a figura pequena e pesada da Rainha das Trevas, invariavelmente vestida de
preto, com o seu fino cabelo cor de prata penteado para trás e preso sob uma touca bon-grace. Apoiava uma roliça mão branca na moldura da janela, olhando para fora.
Ou talvez quisesse apenas escapar ao trio de homens que rastejavam atrás das suas largas saias como uma matilha de cães uivantes.
Os seus gibões e alforges eram de boa qualidade, mas sóbrios, nem por sombras elegantes para cortesãos. O óbvio chefe do grupo, um homem robusto com uma compleição
corada, gesticulava ferozmente. - ... e algo tem de ser feito, vossa majestade. Um regimento da Liga Católica invadiu as minhas terras na semana passada, fugindo
com o gado e alguns dos meus melhores cavalos.
- E como se isso não fosse suficiente, um bando desses rufiões interrompeu o nosso serviço religioso - explicou um dos seus magros companheiros. - Foi um milagre
podermos escapar com vida.
- O último tratado assinado por vossa majestade garantia certos direitos à religião reformada - acrescentou o homem robusto. - Que podíamos praticar o culto como
escolhêssemos, desde que isso fosse feito ordeiramente e que certas vilas e cidades fossem refúgios...
- Sei muito bem o que está no tratado, le Marle - interrompeu friamente a rainha.
Ao ouvir a troca de palavras, Simon premiu os lábios com surpresa. Religião reformada - Estes homens eram huguenotes e estavam a apelar à Rainha das Trevas por justiça
- Era seguramente tão absurdo como condenados a pedirem misericórdia ao seu carrasco. Mesmo os protestantes que não haviam estado perto de Paris naquele sangrento
dia de São Bartolomeu em 1572 tinham de ter perfeita consciência de que a rainha fora considerada responsável pelo massacre de milhares dos seus irmãos.
Le Marle continuou a apelar: - Se vossa majestade se dispusesse simplesmente a apresentar as nossas queixas ao rei. Apesar de tudo o que suce deu
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no passado, nós, os que partilhamos a fé huguenote, queremos permanecer leais a sua majestade. O nosso senhor, Henrique de Navarra, só tem boa vontade para com o
seu real primo, enquanto o duque de Guise...
"Tenho de o dizer sem cerimónia, vossa majestade. O duque de Guise quer para ele a coroa de vosso filho e está a usar a Liga Católica como arma. Ao atacar os huguenotes,
ele mina o pouco apoio que o rei de França ainda tem entre os seus súbditos. Se a devastação do duque sobre os protestantes prosseguir sem controlo, ireis ter um
banho de sangue que irá fazer com que todas as batalhas passadas não pareçam mais do que simples escaramuças.
- Estais a ameaçar-me, le Marle? - questionou a rainha.
- Não, majestade, apenas a tentar avisar-vos. Mesmo que o rei ceda ao poder crescente do duque de Guise, nós, os huguenotes, não o faremos. Haverá uma guerra civil
em tal escala como a França nunca...
- Basta! - Catarina estendeu a mão num gesto abatido. - Sou solidária com as vossas apreensões, senhores, mas presentemente estou muito cansada. Continuaremos esta
discussão... amanhã.
- Mas, vossa majestade...
- Amanhã!
A nitidez da sua ordem levou le Marle e os seus companheiros a empreender uma apressada retirada. Mas a sua frustração era evidente enquanto saíam da sala.
Quando a porta se fechou, os ombros de Catarina afundaram-se e a rainha libertou um profundo suspiro. Simon apostou que não seria assim tão frequente a Rainha das
Trevas demonstrar tais sinais de fraqueza. Gillian tossiu para aclarar a voz e avançou.
- Perdão, vossa majestade, mas Monsieur Aristide chegou, como haveis ordenado.
Sem olhar à volta, a rainha ordenou a Gillian e ao resto das mulheres para saírem. Uma por uma, as damas fizeram uma vénia e afastaram-se, com Gillian a fechar o
grupo. Fez uma pausa suficientemente longa para arquear as sobrancelhas como que para dar a Simon um último aviso antes de fechar a porta, deixando-o a sós com a
Rainha das Trevas.
Enquanto Catarina se afastava lentamente das janelas, Simon avançou para fazer a sua vénia. Ficou congelado pelo choque quando viu de perto a sua formidável adversária.
A Rainha das Trevas estava a envelhecer, mas continuava a parecer indomável, assustadoramente imortal. Catarina começava finalmente a mostrar a idade que tinha.
Parecia extenuada e cadavérica, com
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rugas profundas a marcarem-lhe a boca e a testa. A alteração mais surpreendente era nos seus olhos penetrantes; pareciam baços, sem o brilho de outrora.
Contudo, a sua voz mantinha o usual tom trocista. - Serei eu uma visão tão horrível que vos faça ficar de boca aberta, Monsieur le Balafre?
Simon conseguiu impedir-se de continuar a olhar arregalado e completou a vénia. -Já não me revejo nesse titulo, vossa majestade.
- Muito bem, então Monsieur Aristide. Já haveis recuperado do vosso choque por me haverdes encontrado tão diferente?
- Perdoai-me, vossa majestade, fiquei apenas surpreendido. Aparentais cansaço, é tudo.
- Galanteria de um caçador de bruxas? Que inesperado. Mas comigo não precisais de amaciar as palavras. Pareço uma verdadeira bruxa. Envelhecer é o inferno.
- Mas a alternativa é ainda pior.
Catarina riu-se roucamente. - Galanteria e sentido de humor? Aparentemente, não sou a única que mudou, embora ainda sejais tão esquivo como sempre. Mandei os meus
agentes vasculharem os campos à vossa procura.
- Não sabia que vossa majestade me procurava.
- Ou ter-vos-íeis escondido ainda mais, hum? - Estendeu-lhe a mão e ordenou: - A minha visão já não é o que era. Aproximai-vos. Não precisais de ter medo de mim.
- Não tenho. - Simon tomou-lhe a mão e saudou-a protocolarmente.
- O quê? Nem um arrepio de apreensão quando haveis cruzado o portão do meu castelo? - troçou. - Nunca vos ocorreu o pensamento de como seria fácil fazer-vos desaparecer
entre estes muros?
Simon mal conseguia ocultar o seu espanto. Talvez aqueles seus olhos não tivessem perdido tanto brilho como pensara. Precisava de permanecer na defensiva.
- Ocorreu-me. Simplesmente não me preocupou em demasia - mentiu Simon. Teve um pensamento fugaz de Miri, mas afastou-o. - A minha morte não teria consequências significativas
para ninguém.
- Estais a subestimar-vos. Há bruxas por toda a França que regozijariam se soubessem do vosso desaparecimento. Quanto a mim, quando morrer, espero que os festejos
em Paris durem pelo menos uma semana. - A boca da rainha contorceu-se ironicamente. - Bem, todos terão forçosamente que adiar as celebrações por mais algum tempo.
Não tenho intenção
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de lhes fazer esse favor tão depressa. Nem vós devereis tê-la tão-pouco. As nossas relações não foram exatamente... cordiais no passado, mas espero que isso mude,
agora que temos algo em comum.
- Como, por exemplo?
- A mesma inimiga. Essa Rosa de Prata está a tornar-se uma verdadeira contrariedade, não é verdade?
- Então, majestade, sabeis algo sobre essa criatura? - testou Simon cautelosamente.
- Há algum tempo que sei dela, graças a todos estes graves e longos relatórios que tendes vindo a enviar para o meu filho.
Catarina passou coxeando por ele. Os seus movimentos pareciam difíceis e dolorosos. Hesitou enquanto se dobrava para pegar num dos bilhetes espalhados pelo tampo
da secretária. Simon reconheceu neles a sua caligrafia.
- Sua majestade o rei anda presentemente demasiado ocupado para ter tempo para dedicar a todos os assuntos, até ao estado do seu próprio reino...
- Catarina controlou-se. Simon sabia que a rainha ficava frequentemente encolerizada com o comportamento errático do seu filho, mas raramente deixava transparecer
o seu vexame, muito menos em público. Franzindo os lábios por um momento, prosseguiu: - Eu, contudo, li os vossos relatórios com considerável preocupação.
- Uma preocupação que levou bastante tempo a manifestar-se, se me perdoais por falar nisso - salientou Simon. - Há mais de um ano que comecei a enviar esses relatórios.
- Inicialmente não me despertaram muito interesse, apenas algumas histórias cruéis sobre uma assembleia de bruxas. Francamente, Monsieur Aristide, pensei que teríeis
acabado por ficar tão louco como o vosso falecido mestre, le Vis.
- E o que sucedeu para vos fazer mudar de ideias?
- Isto. - A rainha alcançou um pequeno cofre no canto da secretária. Simon assumiu que conteria materiais de escrita, plumas e tinta. Mas quando Catarina, com um
estalido, abriu a tampa e cuidadosamente puxou para trás uma dobra de tecido de linho, revelou os restos mirrados de uma flor. Embora as pétalas já não brilhassem,
não havia dúvidas quanto ao matiz cinzento da flor.
- Uma rosa de prata - murmurou Simon.
- Pensei que esta maldita coisa nunca murcharia e morreria. Irónico, não é? Que o veneno que prolongou a vida desta flor e lhe conferiu tão excecional beleza pudesse
ser tão fatal para quem quer que lhe tocasse?
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- Como chegou a flor a vossa majestade?
- Foi-me oferecida por uma das seguidoras da assembleia da Rosa de Prata, aparentemente como um pequeno símbolo da estima da feiticeira. Felizmente, a rosa chegou
às mãos de um guarda em vez de às minhas. Bem, felizmente para mim, não para ele.
Desviando os olhos da caixa, Simon dirigiu um olhar surpreendido à Rainha das Trevas. - Dizeis-me que esta bruxa na verdade... na verdade...
- Teve a impertinência de tentar assassinar-me? Sim. - Apesar do seu tom seco, Simon percebeu que a rainha fora seriamente abalada pelo atentado contra a sua vida.
Ele próprio estava um pouco abalado com isso. Considerava a Rosa de Prata como uma ameaça, mas mesmo ele não avaliara completamente o quão perigosa ela era até agora.
- Meu Deus - murmurou. - Se esta criatura se atreveu a atacar vossa majestade, então...
- Então atrever-se-á a atacar seja quem for - completou Catarina o pensamento de Simon enquanto fechava a tampa do cofre. - Haveis deixado de enviar os vossos relatórios
há algum tempo.
- Ninguém lhes estava a prestar atenção.
- Bem, agora eu estou. Portanto, dizei-me, estais mais perto de descobrir quem é esta bruxa, o que ela quer?
- A identidade da Rosa de Prata ainda me escapa. Quanto ao que ela quer... - Simon encolheu os ombros. - Por vezes parece que o seu único objetivo é espalhar tanto
mal, medo e mistério quanto possível.
- Agora estais a falar como um caçador de bruxas - troçou Catarina. - Raramente se encontra alguém que faça apenas o mal pelo mal. Até os loucos têm uma razão para
fazerem o que fazem, pelo menos na sua mente. Preciso que descubrais quais são os verdadeiros objetivos desta Rosa de Prata, ponhais fim aos seus esquemas e acabeis
também com ela. A partir de agora, passareis a enviar os vossos relatórios diretamente para mim.
Simon ficou desconcertado pela sua fria exigência. Esfregou as pontas da barba, procurando encontrar uma maneira diplomática de recusar. Infelizmente não se recordou
de nenhuma.
- Perdoai-me, vossa majestade - disse abruptamente. - Mas não sabia que trabalhava para vós.
- Perdoai-me, meu caro le Balafre - ripostou melifluamente. - Mas eu não sabia que estáveis a ser bem-sucedido por vossa conta.
- É certo e, à luz disso, surpreende-me que vossa majestade possa desejar os meus serviços.
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- Porque sois o único que foi capaz de detetar a existência desta feiticeira. Sois um homem inteligente, perspicaz, e juntos poderemos vencer esta Rosa de Prata.
Posso proporcionar-vos fundos, homens, armas, tudo o que necessitardes.
- Não - disparou Simon. Quando uma fina ruga apareceu nas sobrancelhas da rainha, procurou melhorar o seu tom. - Sensibiliza-me a oferta de vossa majestade, mas...
- Mais depressa aceitaríeis a ajuda do Diabo - interrompeu-o com uma seca gargalhada. Aproximando-se, tocou-lhe levemente na mão e segredou: - Acreditai-me, eu compreendo.
Sei que no passado haveis alimentado certas... suspeitas sobre mim, imaginando que eu própria poderia ser uma bruxa.
"Uma noção absurda que receio possa ter sido encorajada pelo meu próprio filho, quando Henrique vos contratou para livrar a França de toda a feitiçaria. Mas nesse
tempo as relações entre mim e o rei estavam... um pouco tensas, embora por nada de grave. Apenas um rapaz procurando rebelar-se contra a influência da sua mãe. Mas
Henrique há muito que se apercebeu do quanto precisa de mim, tal como vós, Monsieur Aristide.
- Apesar disso, majestade, prefiro continuar a trabalhar sozinho. - Simon procurou afastar-se um pouco dela, mas a mão dela apertou-lhe o pulso.
Catarina fitava-o insistentemente, procurando prendê-lo com o seu olhar, mas os seus olhos lacrimejaram e foi obrigada a desistir da tentativa. Afastou-se dele,
murmurando sob a respiração enquanto passava o lenço pelos olhos.
Quando se voltou para o encarar de novo, tinha já recuperado a sua compostura férrea. - O problema de trabalhardes sozinho é que não tendes estatuto oficial. Haveis
assumido esta investigação inteiramente por vossa conta, sem a autorização do rei ou do parlamento, agindo como promotor de justiça, juiz e carrasco quando encontrais
uma dessas bruxas.
- Só matei quando fui forçado a isso - argumentou Simon. - Em legítima defesa.
- Oh, tenho a certeza disso. - A rainha lançou-lhe um sorriso. - Porém, é o tipo de comportamento questionável que pode até levar um caçador de bruxas a ser detido
algures... Por exemplo, nas masmorras de um castelo, até o assunto ser esclarecido.
- Estará vossa majestade a ameaçar prender-me? - perguntou Simon.
- Não, apenas a salientar-vos o quão embaraçosa é a vossa situação. Agora, vós estaríeis completamente livre de qualquer perseguição se eu vos
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concedesse a minha autorização real para prosseguirdes as vossas investigações sem qualquer impedimento. Uma oferta que seria extremamente insensato da vossa parte
recusar.
Uma oferta? Era mais como uma pistola apontada à cabeça. Simon dirigiu-se até às janelas, procurando ganhar tempo para pensar. Era inacreditável que numa só simples
manhã se tivesse sentido tão isolado e só na sua missão de derrotar a Rosa de Prata e agora estivesse inundado com mais ajudas do que podia ter imaginado e nenhuma
delas do género que desejava. Por um lado, havia Miri, dócil, sincera e com a capacidade de perdoar de um anjo, alimentando alguma noção de que as mulheres desta
assembleia ainda poderiam ser salvas, devolvidas à luz. E no outro lado Catarina, um verdadeiro demónio na intriga e em negócios escuros, que não teria qualquer
problema em abater qualquer pessoa que sentisse como ameaça.
Era como estar preso entre o céu e o inferno. Cada uma das mulheres decidida a usá-lo à sua própria maneira, cada uma delas fazendo um ótimo trabalho para o forçar
a uma aliança. Quem disse que as mulheres são o sexo fraco-, pensou trocistamente Simon.
Mas, com Catarina, Simon não tinha escolha; não, se alimentasse qualquer esperança de sair daquele castelo naquela noite. E embora estivesse relutante em admiti-lo,
um documento que lhe garantisse autoridade oficial poderia, ser-lhe muito útil quando chegasse a hora de deter a Rosa de Prata e a sua assembleia.
- Muito bem. Aceito - disse, acrescentando depois, a contragosto: - Agradeço-vos.
A rainha sorriu como se soubesse como aquelas palavras tinham sido difíceis de arrancar. Descontraiu a sua rigidez atrás da secretária e procurou uma peça de pergaminho
em branco. Enquanto mergulhava a pluma no tinteiro, disse: - Agora quanto às tropas que proponho atribuir-lhe...
- Não quero homens - interrompeu Simon.
com a pluma suspensa sobre o pergaminho, a rainha franziu-lhe a testa.
- Se esta assembleia está a crescer tanto como receais, ireis ficar em grande desvantagem numérica. O que pensais fazer quando encurralardes esta bruxa? Ordenar-lhe
simplesmente que se renda?
- Não, sempre tencionei procurar a ajuda da Igreja ou pedir a um dos senhores locais que me cedesse alguns homens das suas terras.
- Este assunto é demasiado importante para ser deixado nas mãos de sacerdotes ou de um grupo de camponeses. vou destinar-vos o capitão Gautier e a sua guarda...
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- Não! - afirmou Simon mais resolutamente. - Aprendi há anos e à minha custa como é difícil controlar mercenários como Gautier. Os soldados estão mais preocupados
em encher as suas bolsas, matar, saquear, queimar, esmagando os inocentes juntamente com os culpados, do que em aplicar justiça.
Catarina franziu os lábios. - Muito bem. Deixamos este assunto dos soldados de parte, para já, até que encontreis a feiticeira.
Inclinando-se sobre o pergaminho, semicerrou os olhos para escrever o documento. Simon observou, descontente, em silêncio, enquanto a pluma riscava a página. A rainha
terminou com surpreendente rapidez, apesar do número de vezes que teve de parar para fletir dolorosamente os seus dedos. Enquanto secava a tinta com areia, disse:
- Recomendaria que começásseis as vossas investigações na Estalagem Cheval de Bronze. Presumo que é por isso que lá vos encontrais, por Lucie Paillard. Haveis feito
referência à rapariga num dos vossos relatórios.
- Sim, mas isso foi há mais de um ano e os pais dela não sabem nada - acrescentou prontamente Simon, antes que a Rainha das Trevas fosse tentada a ordenar a prisão
da jovem. O infeliz casal já sofrera o suficiente com a filha. - Eu mesmo investiguei cuidadosamente o estalajadeiro e a mulher. Desconhecem completamente o paradeiro
da filha e há mais de um ano que não ouvem falar dela.
- Infelizmente eu ouvi.
- O quê? - interrogou Simon prontamente.
A Rainha das Trevas aqueceu o lacre e deixou cair algumas gotas na base do documento, junto à assinatura. Quase sem conseguir dominar a impaciência, Simon esperou
que ela continuasse, mas tinha uma sensação fria no meio do estômago, uma premonição do que Catarina ia dizer.
- Lucie Paillard foi a enviada para me envenenar com a rosa. Apareceu no meio da multidão no exterior de Notre-Dame, disfarçada de vendedeira ambulante. Teria conseguido
escapar se eu não tivesse a presença de espírito para a mandar deter.
- E onde está ela agora?
- Foi minha convidada na Bastilha por algum tempo, mas os cuidados do carcereiro com ela foram excessivamente rigorosos. A rapariga morreu enquanto era interrogada
pelos homens de Varney.
Ninguém morria só por ser interrogado, Simon sentiu-se tentado a retorquir. Embora nunca tivesse recorrido a esses métodos, podia imaginar perfeitamente
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o que as perguntas do carcereiro teriam envolvido, o banco da tortura, a bota malaia, chicotes, anjinhos1. Simon desprezara Lucie Paillard pela maneira insensível
como abandonara o seu bebé, permitindo que Lucas morresse gelado na encosta descampada. Mas ser lenta e brutalmente torturada até à morte... Mereceria alguém esse
destino?
Outrora Simon poderia ter acreditado que sim ou ter-se convencido disso. Agora só conseguia pensar em Colette Paillard com a sua boca trémula e olhos tristes. Interrogou-se
onde iria arranjar coragem para dizer à frágil mulher o que sucedera à sua única filha.
- Então e Varney conseguiu obter alguma informação com esse... esse interrogatório? - perguntou Simon causticamente.
Catarina apôs o selo real na base do documento e hesitou antes de responder. - Na verdade, a rapariga deu uma pista. Exatamente antes de morrer, disse que a Rosa
de Prata estava na posse do... do Livro das Sombras.
A respiração de Simon deixou de se ouvir. - O Livro das Sombras? Como é isso possível?
- Dizei-me vós. Fostes vós que haveis deixado desaparecer o livro na noite do fogo na estalagem - disse Catarina, baixando as pálpebras. - Foi o que ouvi dizer.
Depois haveis passado a ilha Encantada a pente fino para tentar encontrá-lo.
- Isso foi porque pensei que o conde de Renard o tinha levado.
- Obviamente estáveis enganado. Sugiro fortemente que pesquiseis tanto na vossa memória como em quaisquer registos que possais ter feito daquele dia. Descortinar
quem mais estava na estalagem e possa ter tido a oportunidade de roubar o livro, e talvez assim consigais desmascarar a nossa astuta Rosa de Prata. - Catarina enrolou
lentamente o pergaminho.
- Diz-se que o Livro das Sombras é um tratado repleto dos mais mortíferos feitiços alguma vez concebidos, mas escrito numa linguagem antiga, difícil de decifrar.
Esta feiticeira já aprendeu a preparar um poderoso veneno. Se for capaz de decifrar mais segredos do livro, escuso de vos dizer o tipo de perigo que todos iremos
enfrentar.
- Certamente, majestade - murmurou Simon. Já estava alarmado com o pensamento de o Livro das Sombras poder estar na posse da Rosa de Prata, mas outros pensamentos
igualmente perturbadores passaram-lhe pela mente. Para uma mulher que insistia não ser feiticeira, a rainha sabia demais, tanto
1. Diversos instrumentos de tortura. (N. do T.)
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sobre o Livro das Sombras como sobre o que sucedera naquela noite na Estalagem Régia.
Simon sempre receara que a Rainha das Trevas pudesse ler os seus pensamentos. Nunca esperara encontrar-se em posição de poder ler os dela.
"Maldição", pensou, "ela quer o livro para si."
Assim, não só tinha que vencer a Rosa de Prata, como tinha também que frustrar os intentos da Rainha das Trevas. Para um homem que já estava em terrenos instáveis,
Simon sentiu-se como se de repente estivesse afundado até à cintura em areias movediças.
Enquanto Catarina lhe estendia o documento com cuidado, atado numa fina fita negra, disse-lhe: - Assim que descobrirdes quem é a Rosa de Prata e onde se esconde,
informai-me. Nada façais até receberdes instruções minhas. Esta prisão tem de ser apropriadamente tratada. Quero que ambos, a feiticeira e o livro, me sejam diretamente
trazidos. Não descansarei até ver aquele perigoso texto destruído pelas minhas mãos.
- com certeza, majestade - disse Simon, pensando que mais facilmente o depositaria no Inferno do que alguma vez o entregaria à Rainha das Trevas, nem que tivesse
de ser ele a fazê-lo.
Catarina estendeu-lhe o rolo com a autorização. - Mantende-vos em contacto próximo, Monsieur Aristide. Não gostaria de ter de enviar o capitão Gautier de novo à
vossa procura. Tenho demasiadas preocupações e dificuldades que me pesam sobre os ombros. Se fordes bem-sucedido em aliviar-me desta, ficar-vos-ei eternamente grata.
Podeis escolher a vossa recompensa, pedir qualquer favor que queirais.
Simon limitou-se a arquear a sobrancelha face à oferta. Quando aceitou o documento da mão da rainha, não conseguiu impedir-se de lhe recordar:
- Outrora haveis feito uma promessa semelhante ao meu falecido mestre. O frio negro da sepultura foi a sua única recompensa por vos ter servido.
- Isso não foi obra minha, mas do conde de Renard. Lamentavelmente, receio bem que conseguir inimigos tão mortíferos seja a sorte da profissão dos caçadores de bruxas.
- A rainha sorriu-lhe friamente. - Confio que sejais melhor a vigiar as vossas costas.
- Oh, serei sim, vossa majestade - disse Simon, mostrando os dentes num sorriso muito seu. - Prometo-vos.
Era perto da meia-noite quando as damas da rainha a ajudaram a deitar-se na cama. Pressentindo o mau humor de Catarina, as mulheres sussurra vam
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em vez de tagarelarem como era usual. Catarina quase não dava por elas, com a sua energia concentrada em dominar a fraqueza do seu corpo enquanto vestia dolorosamente
a sua camisa de dormir.
Todas as articulações latejavam e lhe doíam; a viagem até Chenonceau tinha-a levado aos limites da sua resistência. Na sua juventude fora uma dotada e intrépida
cavaleira. Mas esses dias há muito que iam longe. Limitada pelo seu peso e pela sua idade, tinha agora que sofrer os balanços do seu transporte numa liteira até
ao fim dos seus dias.
Como se a jornada não tivesse sido suficientemente arrasadora, ainda ficara mais debilitada pelo encontro com le Marle e os seus amigos. Huguenotes, pensou Catarina
com um trejeito. Um espinho maçador, perigoso e persistente no seu flanco.
O massacre do dia de São Bartolomeu fora um desfecho de pesadelo, que se desenvolvera até muito para além do que pretendia. Inflamados por ela, os católicos de Paris
enveredaram por um crescendo de desordem e assassínio que se prolongara durante dias e deixaria as mãos de Catarina sujas por muito sangue e pilhas de cadáveres
empilhados ao longo das margens do Sena.
A sua reputação, tal como a da França, ensombrara-se ainda mais, mas pelo menos Catarina podia congratular-se por ter travado o poder crescente dos protestantes.
Mas a religião reformada continuou a espalhar-se como a peste. Fora contida no Sudoeste da França, principalmente dentro das fronteiras de Navarra, mas agora parecia
haver enclaves de huguenotes por toda a parte.
Quanto a Catarina, os homens podiam praticar o culto que desejassem desde que o fizessem ordeiramente e não arranjassem problemas com ela. Mas, lamentavelmente,
os protestantes proporcionaram aos seus inimigos a desculpa perfeita para estes interferirem no seu domínio sob o pretexto de zelo religioso. O papa, o rei de Espanha
e, o pior de todos, o duque de Guise.
O duque exigia que o rei se encontrasse com ele para ceder todo o controlo dos militares à Liga Católica e banir completamente a religião reformada. Quem dera que
Deus fizesse apodrecer o arrogante e ambicioso homem, pensou amargamente Catarina. Tantas vezes fora tentada a tratar do duque de Guise à sua maneira... uma pequena
porção de algo acidentalmente derramado no seu copo de vinho ou a ponta de uma flecha envenenada cravada nas suas costas. Foi impedida apenas pela noção de que,
se o duque morresse de alguma forma misteriosa ou violenta, isso reverteria contra ela. O duque
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era tão amado em Paris que toda a cidade se ergueria em revolução e tanto ela como o filho teriam de fugir para sobreviver.
Não, Catarina refletiu com azedume, a reunião teria que realizar-se. Muito provavelmente o seu filho, fraco de vontade, retirar-se-ia para o seu eremitério e deixaria
ao seu cuidado negociar com o duque e ela não tinha nada para poder regatear, não tinha armas, a não ser que...
A não ser que pudesse ganhar a posse do Livro das Sombras. Era uma escassa e derradeira esperança, mas a única que lhe restava. Catarina estava convencida de que
podia decifrar os obscuros segredos do antigo livro, se conseguisse deitar-lhe as mãos. Então um poder ilimitado poderia ser seu; liberta do medo, das ameaças do
duque de Guise, até da erosão do tempo no seu próprio corpo.
Desde o incidente em Paris que os seus agentes procediam a buscas, mas a sua melhor esperança para descobrir a Rosa de Prata e recuperar o Livro residia naquele
inteligente caçador de bruxas. Mas não confiava em Aristide mais do que ele nela. Receava que ele destruísse o livro no momento em que o encontrasse. Por isso tinha
ordenado ao capitão Gautier para seguir o caçador de bruxas como uma sombra, manter-se próximo e espiar Aristide sem que ele se apercebesse da sua presença.
- Vossa majestade?
Uma voz suave retirou Catarina dos seus atribulados pensamentos. Ao seu lado estava Gillian Harcourt. Os olhos de Catarina estavam a ver tão mal
naquela noite; o rosto de Gillian pouco mais era do que uma névoa enquanto lhe apresentava um tabuleiro com a poção da noite.
Fora a própria Catarina a conceber a mistura da bebida, pensada para lhe aliviar as dores e permitir-lhe dormir um pouco. A maior parte das vezes não fazia nem uma
coisa nem outra. Enquanto beberricava um pouco do cálice de prata, encolhendo-se ao sabor da bebida, pensou que sempre fora melhor a preparar venenos do que nas
artes curandeiras.
Ao contrário da Senhora da Ilha Encantada. Catarina surpreendeu-se por sentir uma pontada ao pensar em Ariane. Haviam sido inimigas, mas pelo menos Catarina sempre
fora capaz de confiar em Ariane por ser franca e honesta e os seus motivos serem puros. E isso era uma rara qualidade em qualquer pessoa.
Por vezes, Catarina temia ter desequilibrado completamente todo o mundo ao permitir que a Senhora da Ilha Encantada fosse conduzida ao exílio. Um grande pecado para
qualquer mulher sábia; uma mulher que deixara Catarina amaldiçoada e era por isso que desde então nada lhe corria bem.
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Bebendo o resto da poção, arrepiou-se e deu um abanão. Senhor, como estava a tornar-se uma idiota supersticiosa com a idade. Ao repor o cálice no tabuleiro, Catarina
sentiu-se perturbada quando a mão lhe tremeu.
Gillian estendeu a mão para segurar o cálice antes que este caísse no tapete. - Vossa majestade está muito fatigada esta noite - murmurou solícita. - O vosso encontro
com o caçador de bruxas deve ter sido muito cansativo.
Catarina limitou-se a resmungar.
- Não sei qual o serviço de que vossa majestade necessitou, mas Simon Aristide pode ser um homem muito difícil. Eu ficaria feliz se... se pudesse ajudar-vos com
ele.
- Como? Seduzindo-o? - Catarina soltou um riso trocista. - Minha querida Gillian, não fostes capaz de manter o homem na vossa cama quando a vossa aparência estava
no auge. Considerando o alcance dos vossos encantos nos dias de hoje, teríeis muita sorte se conseguísseis captar-lhe a atenção por cinco minutos contra a parede
do estábulo.
A rainha voltou-se, arrastando-se cansada para a cama, caso contrário não teria deixado de reparar no olhar cáustico de ódio e ressentimento da cortesã.
Gillian tateou o seu caminho pelos jardins do palácio, espreitando nervosamente sobre o ombro. Tanto quanto podia dizer, a sua furtiva caminhada pelos jardins tinha
passado despercebida. A sua capa escura ajudara-a a confundir-se com a noite, com o capuz bem puxado para a frente para ocultar o seu cabelo louro e a palidez do
seu rosto oval.
Mas não sabia por que estava tão ansiosa, refletiu amargamente Gillian. Por vezes pensava que podia sair displicentemente pela porta principal em vez de se escapar
pela porta da cozinha e nenhum dos guardas repararia nisso. Era estranho como, à medida que uma mulher envelhecia e a sua beleza se desvanecia, se tornava praticamente
invisível.
Além disso, não eram os guardas que a preocupavam. Podia ludibriá-los com uma qualquer história de encontro secreto, que a levava a escapar-se para se encontrar
com um amante. Mas pobre de si se a rainha alguma vez ficasse a saber destes seus passeios noturnos...
Gillian abafou um guincho de terror quando tropeçou em algo sólido e se deparou com a própria Rainha das Trevas. Pressionando a mão contra o coração aos saltos,
olhou de relance para a estátua banhada pelo luar. Uma
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arrepiante e invulgar reprodução da rainha, apresentada com serpentes enredadas nas suas saias e nos seus braços.
Gillian arrepiou-se. Sua majestade possuíra sempre um estranho sentido de humor. Quem mais para além da Rainha das Trevas se faria imortalizar de modo tão macabro
como... como uma medusa amaldiçoada por Deus? Os olhos da estátua petrificados e vazios pareciam observá-la. Um pouco enevoados tal como os olhos da própria rainha
eram agora.
Mas ao contrário de algumas das outras damas da rainha, Gillian não era propensa a ignorar as faculdades da sua senhora. Já vivia sob o poder do olhar dos Médicis
há muitos anos. Quando era jovem, fora hipnotizada por aqueles olhos escuros e perfurantes, atraída para o serviço da rainha com a promessa de mais excitação e riqueza
do que alguma vez poderia conhecer como esposa de um homem qualquer.
Gillian tivera o seu quinhão de ambas, mas quaisquer pecúlios ou jóias que pudesse ter acumulado ao longo dos anos esvaíram-se por entre os seus pródigos dedos.
Nunca pareceu haver qualquer razão para ser poupada, não quando a sua vida na corte era um constante turbilhão de diversão, intriga e adulação por homens elegantes.
Mas a cada manhã, quando se olhava ao espelho, desesperava quando encontrava mais uma ruga, apesar de todos os cremes e unguentos que aplicava. As gentilezas e os
admiradores cada vez eram menos, tal como o valor que a rainha atribuía aos seus serviços. Outrora dependera de Gillian para seduzir alguns dos homens mais poderosos
de França. Mas o último amante que a rainha lhe ordenara para seduzir fora um mero escrivão, um lacaio na casa do duque de Guise. Gillian suportara os apalpões dos
dedos gordos do homem e o seu hálito a alho para nada. O escrivão transmitira-lhe pouca informação valiosa sobre as atividades do duque e a rainha culpara injustamente
Gillian por isso.
Mas, ainda assim, Gillian sabia que a rainha nunca a deixaria partir; não até ter usado tudo o que restava da sua beleza e juventude; não até ela se transformar
numa velha ameixa seca sem qualquer utilidade a não ser sentar-se e costurar belos vestidos para as damas da rainha mais novas e mais vibrantes. Não, nunca ficaria
livre da Rainha das Trevas até que aqueles olhos glaciais se fechassem para sempre...
- Pssst. Gillian!
Uma voz sussurrou nas sombras, assustando-a. Gillian captou um raio de luz num bosque de árvores próximo da caverna oculta. Apressou-se naquela
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direção para encontrar uma figura esbelta trajada com gibão e calças largas. Ao longe, a pessoa poderia ter sido confundida com um jovem pajem, mas ao perto e à
luz da lanterna era como uma sílfide, tão magra que ao voltar-se de lado era como se já tivesse desaparecido completamente.
Caracóis castanhos caídos sobre o rosto longo e delgado, a face direita, parte do pescoço, e com as mãos desfiguradas por cicatrizes. Nanette Scoville, anteriormente
a servir nas cozinhas do castelo, fora gravemente queimada quando uma panela de água a ferver se entornou sobre ela.
Enquanto Gillian se aproximava, Nanette segurava a lanterna para a guiar.
- Abaixa essa luz - sussurrou rudemente Gillian. - Queres que te vejam?
A jovem obedeceu prontamente. - Estais atrasada - queixou-se.
- Não é fácil para mim escapar-me. Pensei que a rainha nunca mais se ia deitar.
Nanette passou um braço em volta do pescoço de Gillian para a abraçar calorosamente. Enquanto o fazia, a jovem fungou profundamente. Gillian esticou-se e recuou,
olhando-a cautelosamente.
- Estás doente?
- Não é nada. É por estar há muito tempo em pé a apanhar o ar da noite. - A jovem limpou o nariz à manga do vestido. - Mas não vos preocupeis comigo. Que notícias
tendes para a Rosa de Prata?
Gillian sentiu uma picada de desconforto na parte de trás do pescoço. Embora estivessem sozinhas no jardim, longe de quaisquer olhos e ouvidos alheios, gostaria
que Nanette fosse mais discreta e não pronunciasse em voz alta aquele nome.
Falando tão baixo quanto podia, disse: - Tenho boas notícias, espero. A hora e o local para o encontro com o duque de Guise já foram definidos. No próximo mês em
Paris, no Louvre.
- E eles vão estar todos lá, o duque, a Rainha das Trevas e o rei de França? - perguntou ansiosamente Nanette.
- Todos eles.
- Oh, oh! - riu-se Nanette. - A nossa senhora vai ficar satisfeita.
- Receio que ela não ficará satisfeita com as minhas outras notícias - hesitou Gillian, antes de confessar. - Simon Aristide foi convocado para se encontrar com
a rainha esta noite.
- O quê? - gritou Nanette.
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Gillian tapou a boca da jovem com a mão, perscrutando à sua volta. Mas à exceção de uma suave brisa que soprava por entre os arbustos e as árvores e do longínquo
canto de um noitibó, o jardim estava silencioso. Nanette afastou-lhe os dedos. Embora parecesse bastante assustada, conseguiu falar num tom mais discreto. - Esse
caçador de bruxas devia, supostamente, estar morto. Agatha Ferrers foi especialmente encarregada dessa missão. Partiu à procura dele há semanas.
- Obviamente, Agatha falhou. Asseguro-te que Aristide está vivo. Quanto a Agatha, decide tu sobre o que lhe terá acontecido.
Nanette teve um arrepio e benzeu-se. - Pobre alma. - Mas a jovem imediatamente se alegrou. - Mas não nos devemos afligir com ela. A Rosa de Prata ressuscitá-la-á
quando chegar o momento.
- S... sim. - Gillian apertou-a nos seus braços, com as pernas pouco firmes. Nunca se sentia à vontade quando Nanette falava assim, com os olhos reluzentes num entusiasmo
quase fanático.
A jovem inclinou a cabeça para o lado como um pardal desconfiado.
- Oh, Gillian - disse tristemente. - Vós não acreditais?
- Não tenho a certeza - esquivou-se Gillian. - Eu quero, mas as promessas que tu dizes que essa feiticeira faz parecem-me incríveis. Feitiços que restauram a juventude
e a beleza, fazem reviver os mortos. Nem a Rainha das Trevas é capaz de fazer isso.
- A Rosa de Prata não tem comparação com a rainha, pode fazer milagres. Eu mesma já a vi fazê-los. Outro dia, a filha de uma das mulheres do nosso acampamento, uma
pequena com menos de dois anos, caiu na lagoa e afogou-se. A Rosa de Prata beijou-a e reanimou-a. Eu mesma vi.
- A sério? - vacilou Gillian.
Nanette confirmou vigorosamente, acenando a cabeça. - É por isso que tendes de continuar a ter fé.
- Seria mais fácil se alguma vez me fosse permitido encontrá-la, pelo menos para saber quem é.
- Isso virá com o tempo - consolou-a Nanette. - A senhora é muito cautelosa sobre as pessoas em quem confia. Tenho vindo a contar-lhe tudo sobre vós, como sois inteligente,
como fostes a única pessoa bondosa comigo quando tive o meu filho e fui afastada em desonra deste castelo. - Ergueu a cabeça, compondo-se um pouco. - Claro que fui
imediatamente admitida na assembleia porque ofereci a prova derradeira da minha lealdade, o sacrifício do meu bebé.
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- Dificilmente poderei oferecer tal prova - observou Gillian amargamente. Ao longo dos anos, as poções da Rainha das Trevas tinham-na ajudado a livrar-se de uma
série de bebés indesejados. O seu último aborto, há mais de dois anos, fora especialmente sangrento e doloroso. Gillian chegou a pensar que ia morrer. A parteira
que a assistiu informou-a da sua sorte. O seu útero fora irremediavelmente danificado e jamais poderia conceber de novo.
Gillian supunha que devia estar agradecida. No entanto, nas noites em que se sentava sozinha, desamparada e esquecida, enquanto as outras damas participavam numa
qualquer festa da corte, Gillian dava por si a pensar em todas aquelas pequenas vidas que tinha perdido, imaginando o que este ou aquele filho poderia ser, se ela
o tivesse deixado viver.
- Nanette, não foi duro para ti? - perguntou delicadamente. - Deixares morrer o teu filho?
- Para mim não era um filho. Não era um bebé. Não era mais do que um demónio, uma maldição semeada no meu útero quando fui violada por aquele guarda bêbado. - O
rosto de Nanette contorceu-se como se estivesse prestes a chorar. O nariz voltou a pingar-lhe e ela esfregou-o violentamente. - Esquecei tudo isso - fungou. - Dizei-me
só por que esteve aqui esta noite aquele caçador de bruxas. O que queria a Rainha das Trevas de uma pessoa como ele?
- Não tenho a certeza absoluta. Tive de escutar atrás da porta e foi difícil ouvir tudo. Mas acredito que ela quer ajudá-lo na sua caça à Rosa de Prata.
- Scélérat! - exclamou Nanette e cuspiu.
Gillian deu um salto para trás. - Nanette! Isso é nojento.
- Não, nojento é uma rainha recorrer aos serviços de um caçador de bruxas.
- Não é a primeira vez que a rainha o faz. Ela recorre a qualquer pessoa que possa servir os seus fins. - Gillian soltou um suspiro de frustração.
- A rainha está tão atormentada a tentar frustrar as ambições do duque de Guise que nem sequer repararia na Rosa de Prata se aquela rapariga Paillard não tivesse
tentado assassiná-la. Foi um ato muito estúpido.
- A nossa senhora lamentou tanto a ação de Lucie como vós. Simplesmente, a rapariga ficou excessivamente zelosa e atuou por sua conta. - Nanette encolheu os ombros.
- Pagou o preço da sua loucura.
1. Em francês no original: "Canalha!" (N. do T.)
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- Tal como todos nós podemos pagar - disse Gillian atormentada. - Provocar assim a Rainha das Trevas é como... como incitar um tigre adormecido. E então associada
a Simon Aristide...
- Preocupai-vos demais. Assim que eu relatar as vossas informações à senhora, asseguro-vos que o caçador de bruxas será eliminado. Tendes alguma ideia onde ele se
encontra neste momento?
Gillian hesitou, assaltada por uma súbita memória. Durante a sua breve ligação, tivera dificuldade em persuadir Simon a passar a noite inteira com ela. Mas recordava-se
de como era agradável acordar sob os seus braços fortes. Para um homem tão implacável, podia ser surpreendentemente meigo.
Suspirou, afastando a recordação. Se as suas posições fossem inversas e Simon a visse como uma ameaça, duvidaria que ele tivesse alguma hesitação em vê-la abatida.
Nada havia de pessoal nisto. Cada um fazia o que devia. Simon também o entenderia da mesma maneira.
- Aristide está... está hospedado na Estalagem Cheval de Bronze.
- A antiga casa de Lucie - - riu Nanette. - Isso é perfeito. Se o caçador de bruxas lá for destruído, será um tributo adequado em memória de Lucie.
- Conhecendo Simon, duvido que ele fique no mesmo lugar durante muito tempo.
- Descobri-lo-emos e acabaremos com ele, esteja onde estiver. Desta vez não haverá erros, prometo-vos. Portanto, deixai de preocupar-vos. - Nanette apertou fortemente
o braço de Gillian e sorriu-lhe com aquele seu olhar atento no rosto. - O nosso dia está para chegar em breve, Gillian. Quando nenhuma de nós precisará de recear
qualquer homem e nada mais haverá para além do poder e da glória para a Rosa de Prata e todas as suas devotas.
- Sim. - Gillian procurou sorrir e afogar o sentimento de que podia estar simplesmente a trocar a escravidão de uma bruxa por outra. Mas não interessava se ela o
era. Já fora demasiado longe para agora poder voltar atrás.
O sol matinal penetrava pelas persianas, pintando traços de calor pela cama. Miri espreguiçou-se e voltou-se para o outro lado, meio esperançada que Necromante lhe
trepasse para o peito e lhe lambesse a face com a língua áspera. Mas quando se forçou a abrir os olhos e focar as paredes nuas do quarto, gemeu, recordando-se de
onde estava.
Sentiu a falta do conforto que lhe dava a presença ronronante do seu gato. Desde que entrara na Estalagem Cheval de Bronze, logo a achou um lugar frio e ficaria
satisfeita por sair dali, fossem quais fossem os perigos que a estrada lhe reservasse.
Afastando os cobertores, procurou sentar-se e esticar-se, sentindo-se um pouco rígida. A cama era razoavelmente confortável, mas tivera uma noite agitada. Felizmente
não fora atormentada por nenhum dos seus sonhos estranhos, nem por pesadelos sobre palácios a transbordar de salamandras e peças de xadrez monstruosas, como cavaleiro
branco despedaçado e a esvair-se em sangue.
Mas tivera dificuldade em adormecer, demasiado consciente sobre a presença do homem do outro lado da porta. Pensou como Simon teria passado a noite, estendido no
chão, em frente à entrada do quarto. Sentiu-se culpada por ele ser obrigado a fazer isso e decidiu não voltar a permitir que tal acontecesse de novo. Afinal, fora
ela a insistir em acompanhá-lo, opondo-se a todas as suas objeções. Tinha que suportar a sua parte das dificuldades e incómodos da situação. Ainda assim, talvez
Simon tivesse sido sensato em colocar a porta como barreira entre ambos, muito mais sensato do que ela.
Ela percebera o desejo no olhar dele, com perfeita noção do perigo que isso representava, tanto mais porque sentira a sua própria pulsação acelerar
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em resposta. Aquele beijo terno que na noite passada ele lhe depositara na testa tinha-a afetado tão profundamente quanto o feroz abraço que ele lhe dera em sua
casa, embora de uma maneira completamente diferente.
Crescera numa atmosfera de amor que facilmente encontrava expressão em demonstrações físicas de afeto, ternos abraços, beijos nas faces. Apesar da afinidade que
sentia com Necromante e os outros seres da sua floresta, não se apercebera de como estava faminta de contacto humano até Simon voltar a irromper pela sua vida.
Mas o seu desejo de afeto tornava-se ainda mais profundo com ele, transformando-se em algo mais primitivo. O olhar faminto de Simon e o mero contacto dos seus dedos
a deslizarem-lhe pela face tinham sido suficientes para despertar estímulos femininos que há tanto tempo estavam adormecidos dentro de si. O anseio pelo toque de
um homem, o calor da sua boca na dela, o toque duro e quente das suas mãos nos seus lugares mais íntimos enquanto a deitava na cama.
Embora o rosto de Miri tivesse ruborizado com o pensamento, não se envergonhava disso. Simon era um homem forte e saudável. Ela era uma mulher ainda na alvorada
da sua idade adulta. Isolem-se e juntem-se duas pessoas assim e o desejo de acasalar é natural. Como verdadeira Filha da Terra, ela sabia-o.
Mas quando o seu olhar recaiu sobre o medalhão que deixara pousado sobre as suas cuecas dobradas, Miri interrogou-se por que nunca teria sentido semelhantes desejos
naturais por Martin. Uma pergunta perturbadora que não se sentia disposta a examinar em profundidade. Pelo menos não tão cedo naquele dia.
Saltou da cama e preparou-se para tratar da sua higiene matinal e vestir-se. Tinha dormido apenas com a camisa e sentia o ar fresco da madrugada nas suas pernas
nuas. Ainda havia alguma água limpa no lavatório e espalhou-a pelo rosto, lavando o sono dos seus olhos. Depois de aconchegar o medalhão no interior da sua camisa,
Miri vestiu o resto das suas roupas e começou a entrançar o seu cabelo, quando alguém bateu à porta.
Em bicos de pés, Miri encaminhou-se para a porta. Antes de ter tempo de perguntar quem era, a voz de Simon ecoou através da madeira: - Miri, abre. Sou eu.
Apressou-se a destrancar a porta e a abri-la, sustendo a respiração ao vê-lo. Estava esquálido, como se não tivesse dormido toda a noite, com o rosto pálido sob
a barba. Mas havia algo mais no seu semblante, a tristeza
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espelhada na boca, as nuvens negras no seu olhar encheram-na de pressentimentos.
- Simon, o que aconteceu? - perguntou ansiosamente enquanto ele entrava no quarto e fechava a porta. - Há algo errado?
Miri sentou-se à beira da cama enquanto Simon acabava de lhe relatar os acontecimentos da noite anterior, os pormenores do seu encontro com a mulher que fora uma
figura de pesadelo para Miri desde a sua infância.
Catarina de Médicis, a Rainha das Trevas. Miri teve um arrepio e esfregou os braços. Embora Catarina fosse adversária da sua família há muito, só uma vez contactara
com ela de perto, naquele fatídico agosto em que Miri fora para Paris para ficar com Gabrielle.
Acompanhara a sua irmã a um torneio que se realizava nos relvados do Louvre, uma exibição elegante de armas e nada mais do que uma elaborada montagem, que mascarava
a conspiração de Catarina para se livrar do capitão Nicolas Remy, o homem que acabaria por ser o marido de Gabrielle.
O atentado de Catarina à vida de Remy era apenas mais um episódio da devastação que Catarina causara na família de Miri ao longo dos anos. Embora outrora tivesse
afirmado a sua amizade para com Evangeline Cheney, a rainha utilizara uma das suas cortesãs para seduzir Louis Cheney e destroçar o coração da sua mulher. E fora
Catarina quem lançara pela primeira vez os caçadores de bruxas sobre a ilha Encantada, procurando com isso recuperar o incriminatório par de luvas que usara para
assassinar a rainha huguenote, Joana de Navarra. Belos mas mortíferos acessórios de vestuário que quase provocariam também a morte de Gabrielle. Mas o pior que Catarina
fizera fora algo que Miri só testemunhara nos seus sonhos. Fora atormentada pelos pesadelos do dia de São Bartolomeu muito antes de o massacre ter sequer acontecido,
por visões da Rainha das Trevas a espalhar o seu miasma, recorrendo à sua magia negra para incitar toda a cidade ao ódio e ao desejo de sangue.
Três anos mais tarde, quando Miri finalmente viu Catarina em carne e osso, esperava ver alguém muito mais sinistro, não uma mulher atarracada de aparência matronal.
Não se podia negar que a rainha tinha uma aura negra, olhos demasiado glaciais, mas Miri descobrira também algo patético em Catarina. A rainha era dotada de força,
inteligência e extraordinária perceção, dons que podiam ter tido melhor uso do que numa vida desperdiçada em azedume e ânsia pelo poder.
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Mas a compaixão de Miri pela rainha não a impediu de ver quão perigosa ela podia ser. Ergueu os olhos perturbados para Simon.
- Meu Deus. Porque... porque não me acordaste quando esses homens vieram buscar-te?
Simon procurou infrutiferamente usar o resto da água no lavatório num esforço para lavar a poeira e a fadiga do rosto. - O quê? E foste arrastado para enfrentar
também a Rainha das Trevas? Especialmente quando não fazias a mínima ideia do que aquela mulher demoníaca queria. - Miri esticou os pés, dizendo com um fio de impaciência:
- Pensei que tínhamos acordado este assunto da nossa aliança ontem à noite. Tens de deixar de proteger-me!
Enquanto Simon procurava alcançar a espada que deixara apoiada no canto, Miri perguntou: - Foi isso que estiveste a fazer, não foi? Foi essa a razão por que foste
sozinho ao encontro com Catarina.
Simon parou por momentos de cingir a sua espada para a olhar de cenho franzido. - Sim, por que mais podia ser?
- N... não sei. - Miri perscrutou-lhe o semblante, procurou afastar a sombria suspeita que a afligia, mas que se recusava a ser sufocada.
- É que anteriormente tu já trabalhaste para a Rainha das Trevas.
- Isso foi opção do mestre le Vis, nunca foi minha. - Simon apertou o cinto com um puxão forte. - Acredita que, tanto como tu, queria ver-me livre de Madame Catarina
tão breve quanto possível.
- Gostava de acreditar nisso, Simon. Mas não foste propriamente aberto comigo. Assim que entrámos nesta estalagem senti que havia algo de errado e no entanto optaste
por não me contar nada sobre a trágica história de Lucie Paillard.
- Não me pareceu haver necessidade - começou Simon, impacientemente, apenas para se controlar com um suspiro pesado. - Desculpa-me. Tens razão. Devia ter-te contado,
não sei porque não o fiz. Acho que estou excessivamente acostumado a estar só, a reservar para mim as minhas opiniões. - Encaminhou-se para ela, agarrando-a pelos
ombros. - Miri, juro-te que não estou envolvido em qualquer conspiração com a Rainha das Trevas. Se fosse esse o caso, não te teria dito nada sobre o meu encontro
com ela. Teria?
- Não. Não terias - concedeu Miri.
- Deploro completamente ter algo a ver com Catarina de Médicis, mas não tinha outra escolha senão concordar com o seu envolvimento.
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E ela pode vir a ser de alguma utilidade. A Rosa de Prata também é sua inimiga. Ela quer pôr um fim nas horríveis atividades da mulher, tanto como nós.
- Não, receio que aquilo que a rainha mais queira seja conquistar a posse do Livro das Sombras.
- E eu tenciono fazer o meu melhor para assegurar que isso não aconteça. - Simon sacudiu-lhe suavemente os ombros. - Miri, compreendo como foi difícil para ti voltar
a ter alguma confiança em mim, mas juro-te que vou encontrar maneira de frustrar estas duas bruxas, a Rainha das Trevas e a Rosa de Prata.
Miri acenou em concordância e até conseguiu esboçar um ligeiro sorriso, mas insistiu: - Nós encontraremos maneira. Tudo o que peço é que, da próxima vez que fores
convocado para qualquer encontro misterioso, te recordes de que também me arrisco nisto. Desde que me contaste o que aconteceu a Lucie, receio mais por Carole do
que nunca. Não posso falar por Lucie, mas posso afiançar-te que Carole é apenas uma jovem infeliz e desesperada. Como pode esta feiticeira ser capaz de fazer isto:
desencaminhar jovens tão normais, afastando-as das suas casas e enfeitiçando-as para cometer atos tão horrorosos?
- Não sei - respondeu Simon. - O caso de Lucie era um pouco diferente daquilo que me contaste sobre a jovem Moreau. Lucie era muito amada pelos pais, mesmo depois
de ter ficado à espera do filho de um qualquer rapaz que se recusou denunciar. Gaspard Paillard ofereceu um dote considerável para lhe arranjar um marido, um homem
mais velho, um moleiro sério e respeitável que queria casar com ela apesar de tudo, mas Lucie recusou. Foi então que o pai perdeu a paciência e ameaçou fechá-la
no quarto até ela recuperar o juízo. Mas a mãe, Colette...
Simon calou-se ao mencionar o nome da mulher, apertando os lábios como se tivesse invocado uma triste memória.
- O que é, Simon? - perguntou Miri.
- Nada. Acabei de me lembrar de uma coisa que tenho de fazer antes de partirmos. Acaba de te preparar, enquanto eu... - Simon acentuou a expressão triste. - Enquanto
eu cumpro uma promessa que nunca devia ter feito.
Miri acabou de arranjar o cabelo, acomodando as tranças sob o chapéu. Simon dissera-lhe para esperar por ele no quarto enquanto desempenhava
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a difícil tarefa de informar os Paillard de que a sua única filha estava morta. Mas Miri não foi capaz de o fazer.
Assim que saiu para o átrio, ouviu o pranto de uma mulher, com a voz tão repleta de estridente angústia que Miri sentiu uma dor no coração. Apressou-se, escada abaixo,
para depois se imobilizar na entrada do salão.
Madame Paillard estava dobrada para a frente, agarrada ao estômago como se tivesse sofrido um golpe mortal, com os olhos lavados em lágrimas. O seu marido não fez
qualquer movimento para ir ajudá-la. Enfiado numa das cadeiras, Monsieur Paillard limitou-se a ficar sentado e a olhar o infinito, com uma expressão vazia no rosto.
Foi Simon quem, numa tentativa de reconfortá-la, colocou a mão sobre o ombro da mulher.
Madame Paillard voltou-se para ele com um grito feroz. Desferiu-lhe tamanha bofetada que fez Miri recuar. A mulher caiu sobre ele, batendo-lhe com os pulsos, numa
sucessão de golpes e maldições.
- Maldito! Que o fogo do Inferno vos abrase.
Miri pressionou a mão sobre a boca da mulher, esperando que Simon lhe prendesse os braços e a afastasse dele. Ele era tão mais forte que facilmente o poderia ter
feito. Pelo contrário, aceitou estoicamente a violência enquanto Madame Paillard soluçava e o vilipendiava. - Porque não fizestes algo? Vós... vós sois um caçador
de bruxas. Devíeis proteger-nos do mal. Se tivésseis impedido aquelas mulheres terríveis de aqui terem chegado e enfeitiçado a minha filha, ela nunca... ela nunca...
Lucie! Lucie!
Os seus braços começaram a ficar inertes e a sua ira desvaneceu-se em soluços mudos. Quando desmaiou sobre Simon, ele amparou-a nos braços, primeiro atrapalhadamente,
depois mais ternamente. Apoiou-lhe a cabeça sobre os seus ombros, murmurando algo sem nexo, com a dor da mulher espelhada no seu rosto sombrio.
Miri hesitou, embaraçada e despercebida na entrada. Queria ajudar, mas temia que qualquer interferência desajeitada da sua parte pudesse tornar a situação ainda
pior. Antes que pudesse decidir, Monsieur Paillard levantou-se. Gritou pela camareira, que se aproximou timidamente, vinda da cozinha.
com um puxão, afastou a mulher de Simon e empurrou-a na direção da rapariga, ordenando-lhe para cuidar da patroa. Enquanto a camareira ajudava a mulher a encaminhar-se
para a cozinha, fez-se um silêncio terrível.
- Monsieur Paillard - começou Simon, roucamente. - Lamento muito. Quem me dera ter conseguido...
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Mas o estalajadeiro interrompeu Simon com um gesto desanimado.
- Já haveis feito tudo o que era possível, Mestre Caçador de Bruxas. Parti, simplesmente, peço-vos. E não volteis, nunca mais.
Enquanto Monsieur Paillard desaparecia na cozinha, Simon ficou imóvel com a cabeça caída. Miri sentiu-se estranhamente como uma intrusa, uma estranha nestes trágicos
acontecimentos em que não tinha desempenhado qualquer papel.
Hesitante, aproximou-se de Simon. Parecia que o chão se tinha rachado sob as suas botas, com uma expressão tão desolada que Miri sentiu dor por ele. A marca da mão
de Madame Paillard desaparecera, mas de algum modo Miri sabia que Simon iria continuar a sentir o impacto daquela bofetada durante muito tempo.
Miri tocou-lhe delicadamente na face, onde a mulher lhe batera.
- Simon...
Mas ele agarrou-lhe a mão, afastando-a, com algo vago no olhar.
- Vamos. Vamos agarrar nas nossas coisas e fazer-nos à estrada disse. - Vai ser outro dia de calor infernal.
Miri conduziu o seu cavalo pelo caminho irregular que serpenteava ao longo das margens do rio, com o sol da manhã a cintilar nas águas que corriam, preguiçosamente.
Como Miri acreditava que as três mulheres que perseguiam teriam decidido viajar por barco, Simon decidira que era melhor começarem as suas investigações ao longo
do Cher.
O curso de água mostrava sinais de atividade, um par de anciãos grisalhos pescava na margem oposta, uma jangada carregada com as mercadorias de algum mercador subia
o rio impulsionada por uma longa vara. Parecia avançar com dificuldade devido ao baixo nível das águas, e os homens a bordo rogaram pragas quando a jangada encalhou
num banco de areia. O Cher, ali como em todo o vale, sofria os efeitos da seca. Ajeitando a aba do seu chapéu, Miri podia ver como a linha da água descera ao longo
das margens lamacentas, desnudando pálidas raízes e juncos entrelaçados que normalmente estariam submersos.
Era como se o rio tivesse sido ferido pelo sol, com todas as suas partes mais secretas e sensíveis impiedosamente expostas, não muito diferente do homem que montava
ao lado de Miri. Simon pouco falara desde que tinham deixado a Estalagem Cheval de Bronze, com uma expressão que impedia qualquer discussão sobre a desagradável
cena vivida no salão.
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Miri podia muito bem adivinhar os pensamentos sombrios que o consumiam e, por fim, não conseguiu mais manter o silêncio. Conduzindo Samson para mais perto de Elle,
disse: - Simon, Madame Paillard estava transtornada pela dor. Caso contrário, tenho a certeza de que jamais te culparia...
- Porque não? - interrompeu Simon bruscamente. - Eu devo ser culpado. Espera-se que eu proteja da feitiçaria famílias como a dos Paillard. E a única boa razão que
sempre tive para ser um caçador de bruxas.
- Mas tens dado o teu melhor para deter a Rosa de Prata. És apenas um homem e tens estado a agir sozinho. Não podes com certeza acreditar que és responsável pela
proteção de toda a França contra o mal.
Mas Miri ficou desanimada ao aperceber-se de que ele acreditava. A boca de Simon crispou-se numa amarga linha de culpa, com o rosto atormentado por remorsos. Simon
lançou um olhar ensombrado sobre o ombro como se ainda agora desejasse poder voltar à Estalagem Cheval de Bronze e de alguma forma endireitar as coisas para os Paillard;
voltar atrás no tempo.
- Jesus Cristo, nunca devia ter dito nada a Colette Paillard, independentemente da minha promessa - murmurou. - Procurei suavizar o relato sobre a morte de Lucie
o melhor que pude, mas era bem melhor para a mãe nunca ter sabido o que aconteceu com a filha.
- Não, não era - disse Miri tristemente. - O meu pai esteve desaparecido durante anos. Não podes imaginar a dor que é ter alguém que amamos desaparecido; o tormento,
a incerteza. Só soube da sua morte no último outono. Sofri profundamente por ele não poder voltar a casa, mas também foi um alívio conhecer finalmente a verdade.
- Lamento sobre o teu pai, Miri. Muito provavelmente tens razão. Será melhor saber, mas no entanto a sepultura é uma derradeira morada, abominável e fria. Tomei
consciência disso no dia em que tive de sepultar o meu pai, a minha mãe e a minha irmã mais nova.
Simon soava frio e duro. Se não se tivesse acostumado tanto à cadência da sua voz, Miri não teria percebido o fio de dor que nela fluía. Recordava-se de, há muito
tempo, Simon lhe ter contado sobre a sua família, que perecera durante uma peste, juntamente com o resto da aldeia; uma peste que ele acreditava ter sido causada
por uma bruxa.
Esticou-se para alcançar o braço de Simon. - Pareces tão senhor de ti, tão independente, que por vezes esqueço que tiveste um lar, uma família. Nunca me falaste
muito sobre eles.
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- Isso é porque fiz o possível por esquecer.
- Recordar pode magoar, mas as memórias também podem ser um grande conforto, às vezes o único que nos resta - acrescentou ternamente.
- Se nos permitirmos esquecer as pessoas que amámos, elas ficarão verdadeiramente perdidas para nós.
Simon encolheu-se ao seu toque. - Miri, eu compreendo que estás a tentar ser bondosa - disse bruscamente. - Mas há alguns aspetos da minha vida em que eu preferia
que não tocasses. Vamos simplesmente prosseguir com esta busca, de acordo ?
Esporeou Elle para um passo mais acelerado, obrigando Miri a fazer o mesmo para o acompanhar. Não pareceu magoada pela rejeição do seu consolo, apenas triste. Ele
sabia que agira como um bruto mal-humorado desde que tinham deixado a estalagem, mas ela continuava a sondar lugares no seu âmago que eram demasiado sombrios, mesmo
ao seu toque suave.
A falta de descanso e uma pesada dose de culpa também não ajudavam muito o seu estado de espírito, uma culpa que ia muito mais além da forma como falhara com os
Paillard.
Enquanto Miri galopava ao seu lado, Simon evitava olhá-la, mas isso não impediu a sua consciência de continuar a martirizá-lo.
Queria ter sido completamente honesto sobre o seu encontro com a Rainha das Trevas, mas acabara por ocultar um facto significativo, qualquer menção ao documento
que Catarina lhe entregara, autorizando-o a tomar as medidas necessárias para caçar e destruir a assembleia da Rosa de Prata.
Não sabia por que não tinha mostrado o decreto a Miri. Talvez porque ela já ficara abalada pelo seu encontro com a rainha e desconfiada com o envolvimento de Catarina.
Receava que Miri lhe exigisse que rasgasse o documento e Simon sabia que nunca seria capaz de o fazer. Não quando tal autorização real podia vir a demonstrar-se
útil.
Era isso que realmente receavas? Troçou uma voz dentro dele. Que ela pudesse querer que destruísses o documento! Ou será que temias mais a reação dela ao saber que
o tinhas e que pensavas usá-lo! Que ela se afastaria de ti, mais uma vez com os olhos cheios de desconfiança e dúvida!
Deus, que louco amaldiçoado era, pensou Simon envergonhado. Ele próprio avisara Miri sobre os perigos de acreditar nele e, ainda assim, gostava daquela maneira branda
e confiada como ela frequentemente o olhava. Mais do que gostar, começara a precisar daquele seu olhar que esconjurava o inferno do seu espírito. Tinha de encontrar
alguma maneira de pôr fim ao
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papel dela nesta perigosa aventura, enviá-la de regresso para a ilha Encantada e afastá-la da sua vida, antes que ela conseguisse quebrar mais a couraça com que
ele blindara o seu coração todos estes anos. E antes que ele próprio pudesse fazer alguma coisa que a magoasse de novo...
Enquanto a manhã avançava, ia parando para fazer perguntas a quem passava, a quem vivia perto do rio ou viajava por ele, barqueiros, mercadores e pescadores. Mas
era difícil recolher qualquer informação. Simon há muito que descobrira que os homens podem ser tão reservados como as mulheres quando são confrontados com perguntas
de um caçador de bruxas.
Mesmo aqueles que podiam estar inclinados para ajudar encolhiam os ombros, em lamento. Os tempos eram duros. Havia tanta gente desesperada à procura de trabalho,
a pedir pão. Como se podia esperar que alguém tivesse reparado em outros três vagabundos idênticos, por muito empenhadamente que Miri procurasse fornecer uma descrição
da jovem Moreau?
Por volta do meio-dia estavam ambos cheios de calor e desencorajados quando galopavam pela vila de Longpre. Aqui, Miri insistia que devia ser ela a fazer as perguntas.
Hesitou antes de admitir que conhecia alguém que podia ser útil, a mulher de um comerciante. Mas tal como a amiga de Miri em Saint-Malo, esta mulher suspeitava muito
dos caçadores de bruxas, portanto seria melhor que Miri a fosse consultar sozinha.
Simon não teve dificuldade em interpretar o significado disto. A mulher do comerciante era uma dessas a quem Miri chamava mulheres sábias, versada nas artes e práticas
que Simon aprendera a considerar proibidas. Não gostava muito da ideia de deixar Miri longe da sua vista, mas prometera dar-lhe a liberdade de consultar os seus
contactos sem a sua interferência. O caçador de bruxas que havia nele achava difícil cumprir esta promessa e a ânsia de ser ele mesmo a aceder a esta feiticeira
era muito forte. Mas considerando que já quebrara uma vez o seu voto de ser completamente honesto com Miri, achou conveniente manter a sua parte do acordo.
Enquanto Miri se sumia pela loja, Simon posicionou-se num ponto elevado fora da vila, de onde podia observar perfeitamente a loja do comerciante e a viela que a
ela conduzia. Aliviou as cilhas das selas dos cavalos, permitindo que Elle e Samson procurassem rebentos tenros de erva na ressequida encosta da colina. Mais tarde,
quando Miri regressasse e os cavalos tivessem arrefecido o suficiente, levá-los-ia ao rio para beberem.
Enquanto os cavalos pastavam por perto, Simon encostou-se a um ulmeiro frondoso, lutando contra a exaustão que ameaçava dominá-lo. A vila
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de Longpre estendia-se aos seus pés e, tal como tantas outras aldeias ao longo do Cher, estava situada entre o rio e extensas quintas e vinhas.
Enquanto o sino da torre da igreja tocava para o ângelus, Simon podia ver os trabalhadores fazerem uma pausa nos seus trabalhos no campo para a refeição do meio-dia.
Estas eram terras comunitárias que eles lavravam para a sua própria subsistência e para pagar os seus dízimos ao senhor local, tal como fizera o seu próprio pai.
O seu pai... Simon sentiu o ferrão familiar da dor e procurou afastar qualquer pensamento sobre o pai. Mas as palavras de Miri assombravam-no.
"Se nos permitirmos esquecer as pessoas que amámos, elas ficarão verdadeiramente perdidas para nós."
Simon passou a mão pela face, deixando que, pela primeira vez em muitos anos, as imagens lhe inundassem a memória. Tal como soprar o pó de um livro que permanecera
longamente fechado, de início as páginas pareciam envelhecidas e quebradiças, depois tornaram-se dolorosamente mais fortes e claras. No seu imaginário podia ver
a casa caiada onde nascera, pequena mas meticulosamente cuidada pelos seus pais, desde a horta às telhas que a cobriam. A porta da frente sempre fora um pouco baixa
e o seu pai muitas vezes batia com a cabeça ao entrar em casa, murmurando alguma exclamação mais veemente, mas nunca praguejando.
Javier Aristide nunca blasfemara diante da sua mulher ou dos seus filhos. De facto, Simon dificilmente se podia lembrar de alguma vez o ter ouvido proferir uma palavra
mais irada. Fora um homem bondoso, com bom coração e com o rosto permanentemente curtido pelas lides dos campos, as unhas partidas e as mãos calejadas por uma vida
de trabalho. Ao contrário de muitos homens da vila onde viviam, fora contido nos seus hábitos, tanto no que respeitava à bebida como ao gasto do dinheiro arduamente
ganho. Exceto naquele mês de setembro em que Simon completara onze anos e Javier percorrera toda a vila a beber vinho.
"Um brinde pelo meu filho, Simon", gritava. "Hoje ele passa a ser um homem com um grande futuro à sua frente. O meu rapa não vai vergar as costas nos campos. Amanhã
ele parte para assumir o seu lugar na casa do Seigneur de Lacey."
"Papá", murmurava Simon, dividido entre o apreciar o orgulho do seu pai e o embaraço. "Só vou ser um ajudante nos estábulos, limpar as camas dos cavalos, espalhar
a palha."
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"Ah, apenas um ajudante nos estábulos hoje. Mas pela tua maneira com os cavalos, não vai tardar muito até seres um moço de estrebaria. E depois quem sabe? Talvez
um dia o mestre de equitação do seigneur."
E antes que Simon conseguisse impedi-lo, o seu pai, normalmente o mais tímido e recatado dos homens, saltara para uma das mesas, pedindo a todos que bebessem à saúde
do seu filho."
Simon repousou a sua cabeça contra o tronco da árvore, surpreendido por afinal poder sorrir com aquela recordação. Era mais difícil pensar na sua mãe durante aquele
dia, os olhos de Belda Aristide raiados de vermelho pelo esforço de tentar não chorar enquanto amassava o pão com invulgar energia.
"Mamã", protestara Simon, olhando para o monte de provisões que ela juntara para encafuar no seu fardo. "A cozinha no château é enorme. Há lá imensa comida, não
vou passar fome."
A mãe fungou. "Não me fales sobre as cozinhas de sua senhoria, Simon Aristide. Conheço a mulher encarregada de fazer o pão; uma desastrada e descuidada. O pão dela
nunca será tão leve e estaladiço como o meu."
"Claro que não, mamã", confortara Simon. "Mas embora eu vá viver por cima dos estábulos, vou poder visitar-vos de vez em quando. O château só está a uns escassos
cinco quilómetros daqui, um passeio fácil pelos campos."
Belda tentou sorrir, limpando uma mancha de farinha do rosto enquanto enxugava os olhos. A irmãzinha mais nova de Simon, que ouvira ansiosamente a conversa, aproximou-se
e puxou-lhe pela manga.
"Simon?"
Ele agachou-se até ela. "O que é, minha petite poule1?"
Ela fez beicinho ao ouvir a terna expressão que para ela era irónica, resmungando como sempre fazia. "Não sou uma franguinha. Só queria saber se alguma vez vais
poder levar-me para o château. Quero ver os estábulos do meu senhor e todos os grandes cavalos de que vais cuidar."
Simon pôs-se de joelhos, fingindo olhá-la de modo suspeito. "Não sei. São cavalos muito poderosos e grandes, com dentes muito grandes. Podem comer uma galinha pequenina
como tu."
Ela bateu-lhe no ombro com o seu pequeno punho. "Os cavalos não comem galinhas, grande tonto. E mesmo que os cavalos do meu senhor fossem muito bravos, eu não ia
ter medo. Não contigo lá." Lançou-lhe um sorriso desdentado. "Sei que me ias proteger sempre, meu irmão."
Em francês no original: franguinha. (N. do T.)
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Só que afinal ele não a protegera, pensou amargamente Simon. Nem sequer a sua mãe e o seu pai. Tomado pelo entusiasmo de viver por cima dos estábulos do château,
a cuidar dos acetinados cavalos de caça, tão diferentes do pobre cavalo de arado de Javier, Simon raras vezes dispensava um pensamento ao seu lar. Quando decidira
fazer uma visita, já era tarde de mais...
Engoliu em seco, afastando as recordações, quando viu Miri a subir o monte. Havia uma agilidade nos seus passos que dava a entender que a sua missão fora bem-sucedida,
que finalmente tinham conseguido alguma informação útil.
Estava quase sem fôlego quando o alcançou. Tirando o chapéu, pousou-o e removeu uma gota de suor da testa. Os ganchos que lhe caíam da trança pareciam húmidos do
calor, mas ela olhou para Simon, mostrando-lhe um pequeno cesto. - Uma oferta de Madame Brisac - disse, removendo a cobertura para revelar alguns cachos de uvas,
um estaladiço naco de pão, um pedaço de brie amanteigado.
Simon pouco interesse tinha na comida, embora mal tivesse comido desde o dia anterior. Destroçar a última das esperanças de Madame Paillard deixara-o sem apetite.
Mas enquanto Miri se acomodava sob a árvore, sentou-se junto dela.
- Assumo que, uma vez que pareces o gato que descobriu as natas, descobriste alguma coisa. O que te disse esta mulher sábia?
Miri interrompeu o ato de partir o pão para pestanejar para ele, depois a sua boca alargou-se num sorriso tão deslumbrante que Simon perguntou: - O que foi?
- Nada. - Miri lutou por reprimir o seu sorriso, mas os seus lábios estremeceram e fizeram covinhas nas faces. - Foi porque usaste o termo mulher sábia em vez de
bruxa. Ainda pode haver alguma esperança para ti, Simon Aristide.
- Não contaria com isso. Agora vais contar-me o que a mulher te disse ou não?
Miri estendeu-lhe uma fatia de pão e um pedaço de queijo, incapaz de conter um arrepio de nervosismo. - Oh, Simon, elas passaram por esta aldeia há vários dias.
Pelo que Madame Brisac me contou, têm de ser Carole e aquelas duas bruxas.
- Ah! Finalmente dispões-te a dizer bruxas em vez de mulheres sábias - ripostou Simon, incapaz de conter a ironia. - Talvez também ainda haja esperança para ti,
Miribelle Cheney.
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Miri torceu o nariz, espetando o rosto para ele. Parou de mordiscar o seu pedaço de queijo antes de continuar: - Madame Brisac disse que eram três. Uma muito alta
e loura que dava pelo nome de Ursule. Outra mulher era pequena e morena, com traços fisionómicos de anã. Isso parece-se muito com a forma como o velho Sébastien
descreveu a mulher que levou Carole. E estas duas tinham com elas uma jovem com cabelo cor de areia. - A expressão viva de Miri atenuou-se. - A madame disse que
a rapariga parecia pálida de adoentada. E muito infeliz. Esteve muitas vezes à beira das lágrimas, mas nunca se atreveu a chorar ou a mulher mais alta, Ursule, bater-lhe-ia
na cabeça.
Simon inclinou-se para a frente para agarrar o pulso de Miri. - Não te preocupes. Nós vamos encontrar a rapariga e salvá-la. - Era uma promessa precipitada, mas
Simon achou que devia fazer ou dizer alguma coisa para aliviar a ruga de apreensão da testa de Miri. - Parece que tinhas toda a razão acerca de a rapariga não estar
a segui-las de livre vontade. Estás perfeitamente à vontade para me dizer: "Eu bem te disse."
Miri abanou a cabeça, mas pareceu grata por ele a tranquilizar. A luz da esperança voltou a brilhar-lhe nos olhos. - Parece que já não estão a viajar pelo rio. Compraram
algures um par de mulas.
- Mais provavelmente roubaram-nas - disse Simon depois de engolir mais uma dentada de pão e queijo.
- Os naturais da vila também pareceram suspeitar delas. Madame Brisac disse que as três mulheres foram tidas como gitanes e desencorajadas de se demorarem.
- Isso condiz. É assim que as seguidoras desta assembleia frequentemente viajam pelo campo, disfarçadas de ciganas. Suspeito que foi assim que Lucie Paillard se
envolveu com elas. Diz-se que ela era muito dada a consultar as ciganas para lhe lerem a sina. - Simon sacudiu as migalhas das mãos e aceitou o cacho de uvas que
Miri lhe estendia. - Então e Madame Brisac tem alguma ideia de qual o caminho que tomaram quando abandonaram a vila?
Miri teve de acabar de mastigar antes de ser capaz de responder:
- Madame Brisac acredita que elas tomaram a estrada que ruma para norte, em direção a Paris.
Era esse o destino final das bruxas - Se não fosse por Miri, Simon estaria tentado a seguir o rasto das mulheres, ver se elas o encaminhariam por
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fim até à própria Rosa de Prata. Mas Miri estava demasiado preocupada com Carole Moreau e quereria esperar, e essa era a única esperança que restava a Simon para,
assim que Carole fosse salva, conseguir persuadir Miri a regressar à ilha Encantada.
Assim que terminaram o seu repasto, Simon estava de novo pronto para partir. Pensou que Miri estaria igualmente ansiosa, mas quando tentou erguer-se, ela levantou-se,
pressionando-lhe o ombro com a mão para
o reter.
- Não, Simon. Descansa um pouco.
- Mas aquelas bruxas levam um avanço considerável. Se viajam de mula, isso joga a nosso favor. Devemos ser capazes de as apanhar se mantivermos a pressão. Os cavalos
já descansaram...
- Mas tu não - insistiu ela. - Pareces quase cinzento de fadiga e reparei antes que estiveste quase a cair da sela.
- Às vezes acontece quando durmo pouco - admitiu Simon enquanto afastava as mãos de Miri para se pôr de pé. - Elle está habituada a isso. Limita-se a abrandar o
passo quando sente que a minha mão fica frouxa nas rédeas.
- Mas não pode apanhar-te se caíres. Ela fica muito nervosa contigo.
- Oh, suponho que ela te disse isso - disse Simon arrastadamente.
- Sim, disse - respondeu Miri sombriamente.
Simon olhou-a de lado, percebendo que ela não estava a gracejar. Desde que conhecera Miri que ela insistia em possuir a extraordinária capacidade de comunicar com
animais, uma pretensão que sempre deixara Simon desconfortável.
Miri ergueu o queixo, franzindo a testa. - Não olhes para mim assim, Simon Aristide, como se pensasses que eu ou sou doida ou estou possuída. Elle também fala contigo.
Disseste-me que frequentemente ela te avisa do perigo.
- Sim, mas isso é diferente - afirmou Simon. - Posso dizer isso pela maneira como ela relincha ou como recua, ou até como inclina a cabeça.
- Ela fala-te em dezenas de maneiras diferentes, tal como todos os animais são capazes de fazer. Eu sou simplesmente capaz de ouvir e compreendê-los melhor do que
a maioria das pessoas. E sucede que sei que tu és uma grande fonte de preocupações para Elle. Ela pensa que não tomas o devido cuidado contigo.
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Simon desviou o olhar de Miri para a sua égua e ficou desconcertado quando Elle levantou a cabeça e espetou as orelhas como se soubesse que estavam a falar sobre
ela.
- Mas não posso adormecer assim ao ar livre, a meio do dia, deixando-te desprotegida...
Miri pressionou-lhe a boca com a ponta dos dedos para lhe silenciar o protesto. - Claro que podes. Estamos suficientemente seguros aqui. Tu disseste que a assembleia
da Rosa de Prata nunca atacou durante o dia e não serás uma grande proteção se perderes os sentidos. Antes, pediste-me para eu confiar em ti, mas tens de aprender
a merecer confiança. Descansa um pouco e fecha os olhos - persuadiu-o. - Cabe-me a mim agora cuidar de ti.
Não sabia como era difícil aquilo que lhe estava a pedir. Já passara tanto tempo desde que deixara de depender de alguém exceto dele mesmo. Mas ela tinha razão.
Estava morto de cansaço. Pouco útil seria para ela se a sua vigilância fosse limitada.
- Está bem - consentiu contrariado. - Mas não me deixes dormir mais do que cinco minutos, estás a ouvir?
Miri respondeu-lhe com um simples sorriso sereno. Enquanto Simon se esticava sob a árvore, Miri foi dar de beber aos cavalos. Quando voltou, Simon dormia profundamente,
com um braço a servir-lhe de almofada.
Miri encostou-se ao seu lado, com grande cuidado para não o acordar. Parecia tão depauperado, como se mesmo a dormir não conseguisse escapar inteiramente a uma vida
de ansiedades e desgostos. Não resistiu a afastar-lhe uma madeixa de cabelo do rosto. com a ponta dos dedos tocou na pala do olho e sentiu-se tentada a retirar-lha,
mas receou que Simon interpretasse isso como uma nova intrusão. Não gostava de expor as suas feridas, tanto as da carne como as que estavam mais profundamente enterradas
no seu coração.
Há muito tempo que ele já fazia parte da sua vida, desde que se enamorara dele enquanto rapaz até ele ser o homem que ela acreditara odiar. Simon Aristide, o infame
le Balafre, mestre caçador de bruxas, o arqui-inimigo da ilha Encantada. Mas nestes dois últimos dias ela também lhe vislumbrara uma outra faceta, a do homem que
lhe dera um inocente beijo de boas noites e colocara uma porta como barreira entre ambos. O mesmo homem que se arriscara a partir sozinho para confrontar um inimigo
poderoso para manter Miri a salvo, aquele que acolhera Colette Paillard nos seus braços, procurando absorver a sua dor. Simon Aristide... o protetor.
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- Quem és realmente, Simon? - suspirou Miri. - Aviso-te que desta vez quero descobrir quem és, por muito empenhadamente que procures esconder o teu coração.
Mas por agora estava satisfeita por vigiá-lo enquanto dormia.
Simon andava aos tropeções pela ilha, as ruas estavam vadias e silenciosas, ancinhos e arados jaziam abandonados nos campos e as portas das casas encontravam-se
cobertas por pranchas de madeira.
"Mamã - Papá - Irene-", chamava freneticamente. Mas não havia resposta, apenas o arrepiante gemido do vento e o trovejar do seu coração. Era como se ele fosse o
único sobrevivente do mundo.
Exceto a velha mulher no jardim da vila, com o seu cabelo grisalho a ondular ao vento, enquanto lançava algo para afundo do poço, murmurando pragas.
"Ei, vós aí! Esperai!", gritou Simon. "O que fazeis?"
A velha bruxa endireitou-se depois de estar dobrada sobre o poço e riu, revelando os seus dentes podres e negros. Enquanto Simon corria para a apanhar, a bruxa ergueu-se
com uma gargalhada semelhante a um cacarejo.
Simon abaixou-se quando ela voou para ele com as unhas compridas como garras. Mas quando o sobrevoou, ficou horrorizado por ver que afinal não era o seu alvo. Ela
continuou a voar até junto de uma criança que apanhava margaridas na planície. com a cabeça escura inclinada e atenta à sua tarefa, não viu a bruxa a voar sobre
ela.
"Corene!", Simon gritou o nome da sua pequena irmã mas a sua voz foi afastada pelo vento. Começou a correr, esforçando as pernas, mas sabia que nunca chegaria a
tempo. Corene finalmente olhou para cima e gritou de terror ao ver a bruxa a cair sobre ela.
- Corene! - Simon acordou ofegante e sentou-se de um salto. Semicerrou os olhos face ao brilho dos raios de sol, ainda com a mente enevoada pelo seu sonho. Sentiu-se
desorientado, sem saber onde estava, até se aperceber que uma mulher se inclinava sobre ele, com o rosto emoldurado por uma coroa de tranças louras e os olhos meigos
e apreensivos.
- Simon, estás... estás bem? - perguntou Miri.
Soprou tempestuosamente e passou a mão pelo rosto, procurando limpar os últimos vestígios do sono. - Sim. Foi só... só...
- Um pesadelo - - completou Miri. Fez uma pausa e depois perguntou baixinho: - Quem é Corene?
Simon encolheu-se, envergonhado por perceber que devia ter falado durante o sono, choramingando como uma criança assustada.
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- Ninguém - começou por resmungar, mas por uma vez a negação ficou-lhe atravessada na garganta. Olhou fixamente para as mãos suspensas entre os joelhos. - Ela é...
era a minha irmã.
Miri aproximou-se, pegou-lhe numa das mãos, num gesto meigo e encorajador. Os seus olhos estavam repletos de perguntas, mas não o pressionou, limitou-se a esperar.
Mas Simon achou que já bastava de viagens dolorosas ao passado por um dia. Jesus. Há anos que não tinha este pesadelo. Era o resultado de se permitir recordar.
- Olha. Eu estou bem. Não foi mais do que um sonho estúpido.
- Bruscamente puxou-lhe a mão até aos lábios e depois libertou-a. - Desculpa se te assustei. Que raio de maneira embaraçosa para um homem se comportar.
- Não, não fiques embaraçado. Todos temos pesadelos. - Pestanejou enquanto confessava: - Eu própria os tenho às vezes.
- Sim, minha querida, mas eu sou um caçador de bruxas. Espera-se que eu seja o motivo de pesadelos e não que seja eu próprio a atemorizar-me com eles. - Procurou
sorrir e aliviar a tensão enquanto se punha de pé.
Estendeu-lhe a mão. Ela procurou o chapéu que tinha pousado e depois deixou-o puxá-la. Simon franziu a testa ao ver quanto o Sol já tinha viajado no céu.
- Miri, eu disse-te para não me deixares dormir tanto.
- Estavas cansado. Precisavas de descansar.
- Mas para ti deve ter sido um tédio ficar aí sentada a ouvir-me ressonar.
Miri apontou os dedos à aba do chapéu e abanou a cabeça, sorrindo carinhosamente. - Não, na verdade foi bom usufruir de um momento de paz. Apesar da seca, este vale
ainda é um belo lugar e, depois de toda a escuridão que enfrentámos, foi reconfortante observar as pessoas a cuidarem de todo o tipo de tarefas diárias normais.
Simon varreu o olhar à sua volta e compreendeu o que ela queria dizer. A vila de Longpre parecia tão preservada do mal quanto um qualquer lugar podia estar. Simon
sabia por sua própria e dura experiência como isto podia mudar rapidamente e como tal serenidade podia ser interrompida num abrir e fechar de olhos. No entanto,
havia algo de tranquilizante na imagem de dois garotos a correr com um cachorro preto pela viela, de uma roliça dona de casa a estender a roupa lavada e de alguns
rapazes vigorosos a saltarem de uma jangada, mergulhando ruidosamente no rio.
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Alguns rapazes vigorosos e... nus.
Simon pigarreou e moveu-se rapidamente para o lado, procurando tapar a vista a Miri. Ela sorriu quando percebeu o que ele estava a fazer e pareceu divertida com
o gesto.
- Está bem, Simon. Estive algum tempo a observar aqueles rapazes a refrescarem-se no rio. com grande inveja, posso acrescentar - disse, abanando-se com o seu chapéu.
- Nadar um pouco seria extremamente refrescante.
- Mas, Miri, aqueles homens estão... estão...
- Nus - - Encolheu os ombros. - Não penso que haja algo de vergonhoso no corpo humano. Somos como Deus nos fez e aqueles jovens são belos e robustos exemplos da
Sua criação. Embora não tão belos como tu.
- Mas tu nunca me viste nu - acrescentou Simon desconfortavelmente. - Viste?
Miri baixou as pálpebras pudicamente. - Não completamente. Mas houve uma vez, quando te escondi na ilha Encantada e te levei roupas para mudares pelo teu traje de
caçador de bruxas, quando te escondeste no bosque para te mudares, eu procurei espreitar.
- Miribelle Cheney!
O sorriso dela era completamente impenitente. - Não consegui resistir. Eu era curiosa e a culpa foi de Gabrielle. Ela passava a vida a dizer-me que a razão por que
os caçadores de bruxas odiavam as mulheres era porque tinham as suas partes mirradas.
- Eu não odeio mulheres e não há nada de errado com as... as minhas partes - retorquiu Simon, indignado.
- Tenho que acreditar na tua palavra. Não consegui ver o suficiente para poder dizer. - Os olhos dela dançavam, travessos. - Mas o que vi de ti era bastante bonito.
Embora Simon ficasse atrapalhado ao sentir as suas faces corarem, não pôde deixar de rir. - Nunca me passou pela cabeça que eras uma garota tão endiabrada.
- Estavas demasiado ocupado a pensar que eu era bruxa.
- Não, nunca pensei isso sobre ti. - Sorriu ternamente enquanto lhe tocava o rosto. - Nem uma só vez.
Ela retribuiu-lhe o sorriso, com os olhos tão prateados como o rio e os lábios macios e húmidos. Seria tão fácil deslizar a mão até à sua nuca, aproximá-la, tão
fácil saborear a doçura daqueles lábios vermelhos tentadores... tão fácil amá-la.
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O último pensamento fez tremer todo o corpo de Simon. Deixou cair precipitadamente a mão ao longo do corpo. - É melhor fazermo-nos ao caminho e aproveitar enquanto
é dia. com sorte talvez consigamos apanhar aquelas bruxas amanhã ao fim do dia.
Encaminhou-se para junto dos cavalos e achou muito mais fácil concentrar-se em apertar as cilhas da sela de Elle do que deter-se mais profundamente sobre o efeito
que Miri tinha nele. O desejo - Deus! -, quem lhe dera que fosse apenas desejo o que ela lhe despertava. Luxúria, paixão, aquelas coisas que compreendia e com que
sabia lidar. Mas eram as emoções mais profundas que ela lhe despertava que o alarmavam.
Ela seguira-o até junto dos cavalos, mas em vez de ajudá-lo a preparar-se para a partida, colocou-se ao seu lado.
- Simon... - Tocou-lhe na manga.
Quando ele se atreveu a olhá-la, reparou que estava deprimida, com o olhar de novo ensombrado. Supôs que fosse a sua menção às bruxas que lhe recordara o assunto.
Ela olhou-o seriamente. - Quando alcançarmos essas mulheres, tu... tu vais manter a tua promessa, não vais? Aceitas que Carole está inocente e que não lhe deve acontecer
mal algum?
- Sim - respondeu ele.
- E as outras?
Simon não conseguiu proferir a resposta, mas a tensão na sua boca terá sido resposta suficiente.
Miri estremeceu. - Mas e se algumas das outras seguidoras desta assembleia forem como Carole e tiverem sido enganadas ou... ou coagidas?
Simon suspirou profundamente. - Miri, eu vou tentar que essas mulheres tenham um julgamento justo e com tanta compaixão quanto possível. Exceto uma. - Os seus lábios
cerraram-se. - Não haverá misericór dia para a Rosa de Prata.
A luz empalidecia após mais um dia tórrido na cidade de Paris, com as sombras da tarde a oferecerem um pouco de refúgio do calor. Mais um dia de sol escaldante e
a falta de chuva tinham transmitido à cidade uma estra nha mescla de letargia e tensão, especialmente nos seus bairros mais pobres. Ao longo da Rue de Morte estalou
outra briga perto de uma das tabernas, com punhos a voar e facas a brilhar. Estava demasiado calor para que tal incidente arrastasse a multidão usual de espectadores
com os seus apupos, até mesmo os carteiristas, demasiado apáticos para aproveitar a distração que a rixa proporcionava à sua atividade.
As três mulheres que desciam a estreita rua passaram de largo pela taberna. Ursule Gruen, que seguia na frente, era alta e ossuda, com cabelo cor de palha. Fazia
um contraste surpreendente com Odile Parmentier, morena e baixa, com um rosto pequeno e afilado, quase com traços de duende.
Desde que tinham entrado em Paris que as duas mantinham uma discussão em voz baixa, fazendo ocasionalmente uma pausa para olharem sobre os ombros a infeliz rapariga
que as seguia.
- Devíamos livrar-nos dela agora, enquanto há tempo - resmungava Ursule. - Que miúda choramingona, estúpida e inútil. Ao recrutá-la cometeste um grande erro e agora,
Odile, não queres admiti-lo.
- Oh, por piedade, ela é muito jovem. Dá-lhe uma oportunidade suspirou Odile. - Deixa que a Rosa de Prata decida sobre o seu destino.
Carole Moreau arrastava-se atrás das duas mulheres, perfeitamente consciente de que era o tema da acesa discussão. Mas estava tão consumida pela sua própria infelicidade
que nem se preocupava. Exausta e esfomeada, tinha a garganta seca, e a fadiga provocava-lhe dores nas pernas. A pele dos
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sapatos estava gasta, tinha-lhe nascido uma bolha feia no calcanhar e a camisa e o vestido, nojentos, estavam ensopados em suor e colados ao seu corpo magro. Tinha
a face direita inchada e negra pela última agressão do punho de ferro de Ursule. Por mais do que uma vez, Odile prevenira Carole.
"Não provoques a Ursule. Ela tem um temperamento horrível. Matou o marido, sabes? Bateu-lhe com o ferro de engomar. Por isso é que teve de fugir da sua terra e se
tornou seguidora da Rosa de Prata, para evitar a dança do baloiço."
"A d... dança do baloiço-", balbuciou Carole.
"A forca. A morte por enforcamento, tonta." Tombou a cabeça para o lado, com o braço erguido, imitando uma pessoa a baloiçar na corda, com os pés a sapatearem uma
curta dança frenética.
Embora se tivesse arrepiado com o aviso de Odile, Carole teve sempre dificuldade em manter-se calada. Tinha conquistado a última agressão de Ursule por se atrever
a reprovar o modo como a mulher tratava as mulas roubadas. Depois de os pobres animais terem sido montados até à exaustão, Ursule insistira em livrarem-se deles
antes que fossem apanhadas com eles. Soltara-os, deixando-os abandonados à sua sorte no meio do arvoredo.
O calor tornara Ursule ainda mais ríspida do que era habitual. Quando Carole tentou fazer frente à sua crueldade, Ursule arremessou-a ao chão, resmungando que estavam
próximas do seu destino. As mulas já não eram necessárias, mas pelo menos tinham sido úteis para alguma coisa, o que era com certeza muito mais do que ela alguma
vez diria sobre Carole.
Esta breve altercação ocorrera fora de Paris. Desde então, Carole mantivera um silêncio taciturno, como que para provar que, por uma vez, Ursule tinha razão quanto
a alguma coisa. Carole já não tinha valor ou utilidade para ninguém. A última vez que pudera observar o reflexo da sua imagem, ficara chocada e desgostosa com o
que vira, uma jovem vagabunda, pálida, magra, coberta de sujidade, com as roupas rasgadas e com o cabelo emaranhado e nojento.
Nunca tivera muito de seu, mas pelo menos sempre se esforçara por ter uma aparência limpa e agradável. Tinha muitos defeitos, mas nunca fora uma vadia. Podia ser
temperamental e ter a língua afiada e, tal como a mãe procurara ensinar-lhe, precisava de refrear o seu obstinado orgulho. Mentira aos tios quando se escapara para
os seus encontros com Raoul, mas, para além disso, tinha sido sempre séria e honesta e nunca pedira a ninguém mais do que uma côdea de pão.
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Mas desde que se encontrava com Ursule e Odile que fora reduzida à mais baixa espécie de vagabunda. Tornara-se pedinte, ladra e talvez, também, uma assassina. O
seu filhinho...
Carole sentiu um nó na garganta e engoliu em seco com dificuldade. Sempre detestara chorar em frente dos outros, mas desde que deixara a ilha Encantada dava por
si, frequentemente, à beira das lágrimas, uma fraqueza perigosa perante Ursule, que não tinha paciência para qualquer demonstração de sentimentos. O mais discreto
fungar podia valer a Carole outro pontapé ou bofetada. Até Odile franzia o rosto, parecendo bastante desapontada com ela, incapaz de entender por que Carole estava
tão infeliz. Fora-lhe oferecido o grande privilégio de servir a Rosa de Prata e tinha um futuro glorioso pela frente.
Mas Carole sentia-se como se tivesse abandonado o seu futuro, toda a sua vida na ilha Encantada, quando fora obrigada a abandonar o seu bebé junto ao rio, perto
da casa de Miri Cheney. Sempre tivera a certeza de que odiaria aquele ser estranho que crescera dentro dela durante todos aqueles meses e que transformaria a sua
vida num longo sofrimento.
O que nunca esperara que lhe sucedesse foi ter aquela onda de sentimentos que a dominou quando viu o bebé pela primeira vez. Era tão pequenino, tão indefeso e...
tão perfeito com os seus dedinhos pequeninos.
"Não olhes para ele e, faças o que fizeres, não lhe dês um nome", avisara-a Odile.
Mas o coração de Carole já o batizara, Jean Baptiste, o nome do seu adorado avô. Agarrando o bebé nos braços, Carole balbuciara os seus agradecimentos a Odile e
a Ursule por a terem ajudado durante o trabalho de parto, mas mudara de opinião. Já não tinha qualquer interesse em juntar-se à assembleia de bruxas da Rosa de Prata.
Foi nessa altura que viu pela primeira vez o lado feio de Ursule Gruen. Era tarde de mais para reconsiderar, gritara Ursule. Tinham confiado nela e feito dela sua
confidente. Sabia demais sobre a Rosa de Prata para que lhe fosse permitido, simplesmente, afastar-se. O pacto entre elas fora selado com sangue e não podia ser
quebrado. Carole tinha de se juntar à Rosa de Prata ou morrer, e o bebé tinha de ser sacrificado.
Carole apertara o bebé contra si, suplicante. Iria com Ursule e Odile conforme prometido, mas não havia razão para o bebé morrer. Jean Baptiste podia ficar com os
seus tios, que sempre lhe tinham prometido cuidar do seu filho se fosse um rapaz.
Mas as suas súplicas encontraram pela frente um coração empedernido. Ursule arrebatara-lhe o bebé dos braços. Quando Jean começou a chorar,
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Carole fora obrigada a soltá-lo, receando que ele pudesse magoar-se com a disputa. Enfraquecida como estava pelo trabalho de parto, tudo o que Carole pôde fazer
foi chorar enquanto Ursule lhe arrancava o bebé.
Odile inclinara-se sobre a cama para a tranquilizar, murmurando desesperadamente ao seu ouvido. - Por piedade, tem juízo ou Ursule esmaga o cérebro do bebé mesmo
à tua frente e a seguir mata-te também.
Carole tentara acalmar os seus soluços, procurando desesperadamente pensar em algo para fazer ou dizer que pudesse salvar o seu filho. Como desejara nunca ter-se
cruzado naquele dia na praia com Odile e Ursule; nunca ter ouvido todas as fascinantes histórias sobre a Rosa de Prata e de como a feiticeira era a campeã de todas
as mulheres que eram vítimas do abuso dos seus namorados, dos seus maridos, das suas famílias e do resto do mundo brutal e insensível. Ao juntar-se a ela, Carole
não mais seria alvo de desprezo e crueldade ou voltaria a sentir-se desamparada.
Como fora idiota em ouvir e acreditar nas suas violentas histórias. Por que teria ficado tão furiosa e obstinada naquele dia quando Miri Cheney tinha sido tão bondosa
e se oferecera para ajudar...
Mademoiselle Cheney. Ao pensar na Senhora da Floresta, com o seu olhar azul de prata, doce mas arrebatador, uma inexplicável sensação de calma descera sobre si,
uma centelha de esperança, talvez a única para o pequenino Jean. Engolira as suas lágrimas, desculpando-se pelo seu momento de fraqueza.
Fora muito difícil, mas fingira ter sentido repulsa pelo bebé e declarando que conhecia o local onde ele devia ser abandonado, nas rochas perto do rio no interior
da floresta. Ninguém vivia lá perto. O sítio era perfeitamente isolado, insistira, com a mentira a tropeçar-lhe na língua.
Quase perdera a coragem quando chegou o momento de abandonar Jean, mas conteve as lágrimas e deitou-o cuidadosamente perto do rio, envolto no seu melhor xaile. Tentou
não pensar em como ele parecia frágil; em como a floresta à sua volta parecia escura e ameaçadora. Em vez disso, rezou para que todo o amor com que a sua avó tecera
aquele xaile pudesse de alguma forma proteger o seu pequeno filho, mantê-lo a salvo até que Miri Cheney o encontrasse.
Pensou que tinha conseguido enganar completamente Ursule e Odile. Especialmente Ursule, com os seus odiosos olhos tortos, não era afinal tão inteligente. Carole
não se apercebeu de como subestimara a malvada mulher até estarem na canoa a remar para longe da ilha Encantada, quando
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Ursule lhe falou com um sorriso malicioso da outra oferenda que deixara para a Senhora da Floresta, a rosa de prata venenosa.
Muito provavelmente, nesta altura, tanto Mademoiselle Miri como Jean já estariam mortos. com os olhos a arder, Carole pestanejou fortemente para suster as lágrimas.
Não. Não podia permitir-se acreditar nisso. Se não pensasse nisso, não seria verdade.
Rezou para que os anjos no céu olhassem pelo seu filho e pela Senhora da Floresta e os protegessem. Os lábios de Carole estremeceram. Talvez o Todo-Poderoso não
escutasse as orações de uma rapariga tão má como ela. Rezou então à alma do seu bondoso avô, pedindo-lhe para interceder em seu nome junto de Deus. Para que fosse
permitido a Jean Baptiste viver, crescer forte e saudável como um homem bom e ter uma vida boa.
Fora este o único pensamento a dar-lhe forças para prosseguir durante todas estas semanas, isso e a ideia de que poderia de algum modo fugir e regressar à ilha Encantada.
Mas na parte inicial da viagem sentira-se muito fraca por ter dado à luz e Ursule mantivera sobre ela uma vigilância apertada.
A partir do momento em que ultrapassaram os portões de Paris, a esguia mulher aliviou a sua vigilância. Ela e Odile estavam tão embrenhadas na conversa que Ursule
parecia não se ter apercebido de que Carole ficara um pouco para trás. Esta podia ser a única e última oportunidade para Carole fugir antes de chegarem ao covil
da Rosa de Prata. Abrandou ainda mais o passo. Nenhuma das suas companheiras olhou para trás.
Mas enquanto Carole lançava um olhar à sua volta, sentiu um aperto no coração face à perspetiva de tentar desaparecer naquele labirinto de ruas estreitas e sujas,
repleto de estranhos com mau aspeto e de olhares frios e indiferentes. Que esperanças poderia ter de sobreviver sem dinheiro e nada mais do que as roupas rasgadas
que vestia? Até na ilha Encantada ouvira demasiadas histórias assustadoras sobre o que podia suceder a uma rapariga sozinha, engolida numa cidade como Paris.
Podia ser violada, obrigada a trabalhar num bordel ou ser impelida para uma vida de outros crimes. Até podia acabar na "dança do baloiço". Mas podia algum destes
destinos ser pior do que aquele que a esperava se fosse levada às mãos dessa Rosa de Prata?
com o coração a bater de incerteza, Carol parou. A sua hesitação saiu-lhe cara, pois Ursule reparou que ela estava a ficar para trás. com as mãos nas ancas, Ursule
fitou-a.
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- Anda cá, minha cadela inútil, e nem sequer penses em fugir. Se eu tiver que ir atrás de ti, vais arrepender-te.
Carole não teve qualquer dúvida. Mesmo que fosse suficientemente temerária para correr e fugir, nunca chegaria longe, não com a bolha que tinha no pé, as dores e
o cansaço que sentia nas pernas. Era inútil. Estava presa, completamente presa, desde o momento em que saíra da ilha Encantada.
Tudo o que podia fazer era arrastar-se atrás de Ursule como um rafeiro acossado. Conseguiu esquivar-se ao pontapé da bota grossa da mulher, encolhendo-se junto a
Odile. A pequena mulher de cabelo escuro arriscou conceder-lhe um sorriso de encorajamento. - Não te preocupes, Carole. Estamos quase a chegar. Olha.
Carole ergueu os olhos baços na direção apontada por Odile, para uma grande casa que se elevava detrás de um muro de pedra ao fim da rua. A mansão destoava dos cortiços
e da miséria que a rodeava, como uma relíquia de tempos idos, antes de a prosperidade ter partido para outros bairros mais promissores da cidade.
Recortada contra a luz ténue do final da tarde, a casa feita de pedras irregulares, com as suas torres semelhantes a pimenteiros, parecia escura e decadente. Mas
à medida que Carole se aproximava, coxeando para acompanhar as suas companheiras, viu que alguém fizera reparações. Secções da parede que cercava a propriedade pareciam
ter sido recentemente rebocadas e não estavam tão sujas como as partes mais antigas da cantaria.
Carole arriscou espreitar para lá da vedação de ferro. As sombras do fim da tarde envolviam o jardim ao fundo, mas ainda conseguiu descortinar um canteiro de rosas.
Não mortalmente artificiais, prateadas, mas exuberantes e vivas, numa profusão de vermelhos e brancos. O seu doce perfume flutuou até Carole, num agradável contraste
com o fedor das ruas.
Apesar do calor e da seca, era óbvio que alguém tratava de manter este jardim bem cuidado, com cada rosa cuidadosamente regada manualmente. Esta visão confundiu
Carole. Fora tão confrontada com a miséria durante a sua jornada que quase não tivera possibilidade de pensar no seu destino final, para imaginar em que tipo de
lugar uma feiticeira podia viver.
Se o tivesse feito, era bem mais provável que se tivesse lembrado de imagens de uma casa localizada em alguma floresta sombria e profunda ou nas ruínas de um castelo
empoleirado no alto de um pico rochoso e inacessível. Nunca teria esperado encontrar a terrível Rosa de Prata a viver num lugar tão normal como uma velha casa com
o seu belo jardim.
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Carole pestanejou, sentindo a agitação de uma esperança renovada. Talvez toda a infelicidade que suportara até agora, incluindo o ser forçada a abandonar Jean Baptiste,
fosse mais devida à crueldade de Ursule do que da Rosa de Prata.
Se esta feiticeira era a campeã das mulheres desesperadas que Odile afirmava, talvez Carole pudesse apelar à sua própria misericórdia, explicar-lhe que se enganara,
que pura e simplesmente não estava dotada para se tornar feiticeira. Podia jurar sobre a sepultura da mãe que nunca diria nada do que ficasse a saber sobre a Rosa
de Prata. A feiticeira podia até cortar-lhe a língua se quisesse assegurar o seu silêncio. Carole tremeu com este pensamento tão pavoroso, mas estava disposta a
suportar qualquer dor, a aceitar qualquer castigo. Desde que a deixassem voltar para casa...
A vela ardia lentamente no candelabro, espalhando um brilho desmaiado sobre as paredes de pedra tosca da portaria onde Carole se encontrava, à espera da sua audiência
com a Rosa de Prata. A perspetiva do encontro enchia-a tanto de esperança como de medo, mas fosse o que fosse que estivesse para lhe acontecer, ansiava porque chegasse
rapidamente ao fim.
Afundou-se num banco, observando ansiosamente a vela, sabendo que, quando esta se apagasse, iria ser deixada completamente às escuras. As únicas janelas na portaria
eram umas aberturas altas, tão estreitas que só deixavam passar meros fragmentos de luar. A falta de ventilação tornava a sala quente e abafada e Carole sentiu o
suor escorrer-lhe pela espinha.
Apesar da exiguidade da sala e da crescente ansiedade de Carole, muitos dos seus outros desconfortos tinham sido aliviados. Depois de terem tido acesso aos jardins
da mansão, Ursule e Odile unham desaparecido na direção da casa. Carole fora entregue aos cuidados de uma rapariga chamada Colette, que a guiou até à portaria.
Deram-lhe comida, vinho e água para se lavar e refrescar. Embora Yolette fosse reservada e silenciosa, recusando responder a qualquer das ansiosas perguntas de Carole
sobre a Rosa de Prata, pelo menos tinha-a tratado com mais consideração do que as suas companheiras de viagem. Aplicara uma cataplasma no pé magoado de Carole e
entregara-lhe um vestido, um pouco grosseiro, mas limpo.
Carole animou-se um pouco. Se estava a ser tratada assim, gentilmente, isso era um bom sinal. A não ser que estivesse apenas a ser preparada para
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algum tipo de sacrifício satânico. Carole reprimiu imediatamente esta ideia medonha. Embora Colette tivesse um ar severo, Carole desejaria ter pedido à rapariga
para ficar a fazer-lhe companhia até ser chamada. Mas antes que Carole pudesse engolir o seu orgulho e fazê-lo, a rapariga apanhou as suas roupas imundas e informou-a
de que em breve viriam buscá-la.
Foi a frase mais longa que a rapariga lhe dirigiu e fê-lo enquanto saía da portaria, deixando-a fechada. Há quanto tempo isso se passara, Carole não tinha ideia.
Não tinha nada para fazer e passar o tempo, exceto preocupar-se, atormentar-se e ver a vela a arder, cada vez mais pequena.
Os seus nervos foram sujeitos a uma tensão tal que estavam prestes a estalar quando finalmente se fez ouvir o ruído da chave a rodar na fechadura. A porta rangeu
ao abrir-se e desta vez foi Odile quem entrou, com uma lanterna na mão. Não havia sinais de Ursule, para grande alívio de Carole.
Odile também se tinha lavado e usava roupa nova. Enquanto Carole se levantava, Odile aproximou-se.
- Vamos, minha querida, chegou a hora. - Sorriu, levando Carole pela mão, mas quando sentiu o tremor nos dedos de Carole, o seu sorriso esfriou. - Oh, querida, vais
ter que aprender a controlar-te mais do que foste capaz até agora. Depois tudo ficará em ordem, juro-te. - Odile inclinou-se, aproximando-se mais, e disse em tom
conspirativo: - A Ursule está metida em grandes sarilhos. A senhora não está nada satisfeita com ela.
"Quando fomos enviadas à ilha Encantada, era apenas para procurarmos descobrir a verdade sobre todos os rumores que a nossa senhora tinha ouvido sobre o eventual
regresso de uma das irmãs Cheney à ilha; para ver quem era a feiticeira, saber quais os seus poderes e depois relatar tudo. A Ursule excedeu completamente a sua
autoridade quando deixou aquela rosa para matar a Senhora da Floresta. - Odile encheu as bochechas e soprou um longo suspiro. - Mas eu conheço Ursule Gruen muito
bem. Ela vai tentar evitar a ira da senhora voltando-a contra mim. Ela já está lá fora no átrio a queixar-se que eu pus em perigo a segurança da Rosa de Prata recrutando
alguém que não merece confiança.
"É por isso, minha querida, que tens de ter coragem. - Odile apertou fortemente os dedos de Carole. - Se estiveres chorosa e sem graça quando fizeres a tua vénia
à senhora, vais deixar-me malvista.
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Carole largou-lhe a mão, dizendo com ressentimento: - Tenho tido muitas razões para chorar, portanto, Odile, o que quereis que faça exatamente?
- Bem, comporta-te mais como aquela pequena que eras quando nos encontrámos pela primeira vez e amaldiçoavas o teu amante, a tua família e aquelas estúpidas e virtuosas
mulheres da ilha. O que é feito dessa jovem ardente?
Morreu quando foi forçada a abandonar o filho, era o que Carole queria retorquir, mas sabia que era inútil. Odile podia ser mais bondosa do que a brutal Ursule,
mas tão-pouco era capaz de compreender os sentimentos de Carole.
- Oh, Carole. - Odile abanou a cabeça, pesarosa. - Eu compreendo que foste obrigada a fazer coisas que te devem ter parecido cruéis. Mas isso é porque, por enquanto,
não entendes perfeitamente a Rosa de Prata e os seus propósitos. Tudo ficará para ti muito mais claro quando fores admitida no círculo restrito.
"Mas primeiro tens de sobreviver à tua audiência com a senhora. Não quero assustar-te, mas Ursule continua a insistir que tu és excessivamente fraca para seres admitida
na nossa corte, que tens de ser fechada num saco e lançada ao Sena como um gatinho inútil. Depende de ti provares que ela está enganada.
"A nossa senhora admira mulheres duras e fortes. - Odile lançou-lhe um sorriso incentivador. - Mantém a cabeça bem erguida, comporta-te como a donzela guerreira
que conheci na ilha Encantada e a senhora não dará atenção a Ursule. De acordo?
Carole concordou, desconfortavelmente, acenando a cabeça: - vou tentar.
- Menina bonita. - Odile deu-lhe uma palmadinha no rosto. - Vamos então. Não se deve fazer esperar a senhora.
Erguendo a lanterna, Odile conduziu Carole para fora da portaria. Carole ergueu os ombros e seguiu Odile pela escuridão do jardim, procurando assumir uma expressão
determinada.
Mas a sua coragem desvaneceu-se quando entraram na mansão, com o seu coração a bater descontroladamente ao pensar que, dentro de momentos, estaria por fim na presença
da terrível Rosa de Prata.
Seguiu Odile até um grande átrio que era iluminado por um candelabro de ferro, suspenso numa corrente presa a uma das traves. A luz das velas
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iluminava um mar de rostos, todos eles de mulheres, talvez uma dúzia ou mais, pelo que Carole conseguiu vislumbrar. Algumas não pareciam muito mais velhas do que
ela, outras, como Odile, aparentavam estar na sua meia-idade. Roliças, magras, morenas, louras, todas as mulheres tinham em comum as suas expressões radiantes, o
seu ar de regozijo contido, como que à espera que acontecesse algo de importante.
O átrio estava em silêncio, à exceção do ruído de uma voz que provinha da frente da sala. Esticando o pescoço, Carole viu um cadeirão em estilo de trono montado
sob um dossel de seda, mas encontrava-se vazio. Duas figuras ocupavam o estrado perto do cadeirão. Uma era Ursule, a enorme mulher prostrada de joelhos perante uma
mulher alta e magra que envergava um vestido totalmente negro, com as saias arqueadas por uma crinolina.
- A senhora - sussurrou Odile ao ouvido de Carole, mas não precisava de o fazer. Desde que pela primeira vez a vislumbrara, Carole tivera poucas dúvidas de que estava
finalmente na presença da Rosa de Prata.
Carole nunca vira ninguém em que encaixasse tão perfeitamente a sua noção de bruxa. O cabelo negro com madeixas prateadas caía-lhe pelos ombros a partir de um bico
de viúva numa face exótica com maxilares angulosos e um nariz fino e reto. A pele da mulher era tão branca que parecia não ter sangue; os seus olhos negros eram
frios e a boca não era mais do que um cruel traço vermelho. Uma das mãos, magra, enrolada como uma garra a um bastão de madeira que trazia consigo, a outra brincando
com um estranho medalhão pentagonal que usava pendurado no seu pescoço esguio.
À medida que Carole ia assimilando estes pormenores, apertava-se-lhe mais o coração. Qualquer esperança de poder contar com a compaixão da Rosa de Prata estava agora
completamente perdida.
Cabisbaixa, Ursule Gruen arrastava-se perante a feiticeira. - Senhora, eu... eu sei que considerais as irmãs Cheney como inimigas, que elas vos provocaram graves
danos. Foi difícil recolher informação sobre a Senhora da Floresta. Ela... ela é tão recolhida, mas eu tinha a certeza de que a queríeis ver destruída. Para vos
vingar, pensei...
- Pensastes? - interrompeu a feiticeira, desdenhosamente. - A Rosa de Prata não exige que nenhuma das suas seguidoras pense, apenas que obedeça. A minha vingança
não vos diz respeito, Ursule Gruen. Eu tratarei das Cheney à minha maneira e quando eu desejar. Tudo o que se espera de vós é que façais o que vos é ordenado. Será
pedir muito?
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- N... não, senhora. Mas não fui a única a desobedecer - lamuriou-se Ursule. - A Odile não fez melhor.
Carole ouviu Odile suster a respiração à menção do seu nome.
- Em vez de cumprir a nossa missão, estava mais preocupada em recrutar uma rapariga choramingona e revelar a existência da nossa assembleia a alguém que não merecia
a nossa confiança...
- Maldita! - murmurou Odile. - Sabia que ela ia tentar transformar-me em bode expiatório. - Precipitou-se para a frente, abrindo caminho pelo meio das outras mulheres.
Subindo até ao estrado, prostrou-se ao lado de Ursule, ajoelhando perante a feiticeira. - O vosso perdão, senhora, mas o que Ursule está a dizer não é verdade. Eu
atingi uma posição suficientemente qualificada na nossa irmandade para ter o direito de iniciar novos membros se descobrir alguém merecedor disso.
- O que esta miserável desgraçada não é. - Ursule olhou ameaçadoramente para Odile. - Qualquer louca podia ver isso.
- Mas ela fez aquilo que lhe foi exigido - argumentou Odile. - Sacrificou o filho que gerou.
- Mas sem desejar fazê-lo - retrucou Ursule. - Se essa cadela traiçoeira tivesse conseguido o que queria...
- Silêncio. Ambas! - ordenou friamente a feiticeira, batendo com o bastão no chão de madeira. Ursule e Odile obedeceram imediatamente, retraindo-se. - Eu mesma julgarei
a rapariga - afirmou a feiticeira. Onde está ela?
- Aqui - assinalou alguém, apontando para o fundo da sala onde Carole se encontrava encolhida.
Carole encolheu-se ainda mais quando todas as cabeças se voltaram para ela e numerosos olhos a observaram, curiosos, críticos e inquisidores.
- Aproxima-te e apresenta-te, rapariga - ordenou a feiticeira.
Carole parecia ter congelado, incapaz de se mover por sua própria vontade. Alguém lhe deu um empurrão e ela cambaleou em frente; o grupo de mulheres afastou-se para
lhe dar passagem. Carole sentiu as faces a arder sob o peso daqueles olhos arregalados. Ao aproximar-se do estrado, procurou recordar-se de tudo o que Odile lhe
dissera. Cabeça alta, queixo erguido. Sê corajosa, dura, brava.
Mas o seu espírito estava toldado pelo medo e o coração explodia-lhe no peito. As pernas tremiam-lhe tanto que ameaçavam ceder enquanto
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subia para o estrado. Ursule e Odile tinham-se levantado, afastando-se do caminho. A boca de Ursule curvou-se num sorriso feio e Odile lançou a Carole um olhar que
tanto tinha de encorajador como de suplicante.
- A desgraçada está aqui, senhora - anunciou Ursule como se a Rosa de Prata não pudesse ver pelos seus olhos.
A feiticeira ergueu a mão morbidamente pálida. - Aproxima-te, jovem.
Quando Carole hesitou, Ursule não conseguiu conter-se e deu-lhe um empurrão até ela ficar parada a tremer, apenas a alguns centímetros de distância daquele semblante
frio. Mordeu os lábios, sem saber o que fazer. Vénia? Ajoelhar como Ursule e Odile tinham feito?
- Como te chamas, rapariga? - perguntou a feiticeira.
- Carole Mo... Moreau. - A voz saiu-lhe num guincho assustado.
- Diz senhora - recomendou-lhe Odile num claro murmúrio.
- S... senhora.
A feiticeira curvou as mãos em volta do seu bastão. - E então, Carole Moreau? Queres ser uma seguidora da Rosa de Prata?
Este era o momento de dizer não à feiticeira, de lhe suplicar para a deixar partir, livre, para regressar à ilha Encantada. Mas, quando Carole fixou aqueles olhos
opacos e vazios, a sua língua secou, colando-se-lhe ao céu da boca.
Engoliu em seco e horrorizada deu por si a murmurar obedientemente:
- Sim, senhora.
- E és merecedora de tal honra?
- Não sei - respondeu Carole, infeliz.
- Dá-me a tua mão.
Parecia uma ordem tão inócua. Carole não poderia dizer porque se sentira aterrorizada em obedecer-lhe. Estendeu-lhe timidamente os dedos. Um silêncio expectante
parecia ter caído sobre toda a assembleia enquanto a feiticeira tateava o ar, procurando a mão de Carole. Carole pestanejou, espantada por uma súbita constatação.
A bruxa era cega. Mas o choque de Carole com essa descoberta não foi nada comparado com o sobressalto que a percorreu quando a mão da feiticeira se fechou sobre
a dela, com o seu toque tão frio. Correu os dedos pela palma da mão de Carole, arranhando-a suavemente com as unhas.
Carole tremeu com a perturbadora sensação que a percorreu, como se estivesse a ser picada por agulhas. Uma sensação gélida que lhe correu pelo pulso, pelo braço,
cruzando-lhe o rosto e sondando-lhe o coração com
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dedos de gelo. Era como se todas as memórias, todos os segredos, todas as emoções que já vivera ao longo dos seus quinze anos estivessem a ser-lhe sugados.
Queria libertar a mão, mas apesar de os dedos da bruxa serem finos, quase quebradiços, era como se tivesse ficado presa por algemas de ferro. Quando a feiticeira
a libertou, Carole tremia da cabeça aos pés. Levou a mão ao peito, procurando massajar os seus dedos gelados na tentativa de lhes devolver algum calor.
A feiticeira murmurou: - Sinto em ti algumas qualidades que poderão ser úteis, Carole Moreau. Revolta, ressentimento, ódio. Mas também possuis um grau de fraqueza,
um sentimento inútil. Não tenho a certeza... - Calou-se com o cenho profundamente franzido.
Carole sentiu um nó na garganta, consciente de que a sua vida dependia do equilíbrio daquelas últimas quatro palavras.
Ursule não se conteve em triunfo. - Ah, senhora, é exatamente como tentei avisar-vos. A rapariga não é de confiança. Devemos desfazer-nos dela e punir Odile por...
Mas Odile interrompeu-a rapidamente. - Se a senhora não tem a certeza, porque não deixar a própria Rosa de Prata decidir o destino da rapariga?
A sugestão foi imediatamente assumida e secundada por outras vozes no átrio. - Sim! Sim, deixemos a nossa Rosa de Prata decidir.
Carole pestanejou, confusa. Pensara que aquela mulher aterradora que estava à sua frente era a Rosa de Prata. A bruxa premiu os lábios como se estivesse incomodada
com o entusiástico coro que subia de tom a cada minuto. Então encolheu os ombros. - Muito bem. A nossa rainha é jovem e inexperiente, mas será bom que ela ganhe
experiência a tomar estas decisões.
Batendo com a ponta do bastão, usando-o para se guiar, a bruxa passou por Carole até ficar à beira do estrado. Enfrentando a assembleia, pediu silêncio. Quando a
assembleia retomou a quietude, a feiticeira proclamou:
- É chegado o momento em que vós, as poucas privilegiadas, tereis autorização para prestar homenagem à Rosa de Prata.
Deu ordens a duas das mulheres para irem escoltar a sua rainha. Enquanto as duas desapareciam por um par de largas escadarias, o burburinho de um renovado entusiasmo
voltou a encher o átrio. Momentaneamente esquecida, Carole olhou à sua volta com perplexidade, ainda hesitante quanto ao seu erro. Dirigiu o seu olhar inquisidor
para Odile, mas o rosto da
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mulher estava tão enlevado como o de todas as mulheres presentes, com os olhos ansiosamente focados no alto das escadas. A escolta apareceu primeiro. Cada mulher
empunhava uma vela a arder e no seu conjunto iluminavam solenemente o caminho para a misteriosa figura que se encontrava atrás delas na penumbra.
A feiticeira do cabelo negro tocou no seu medalhão e depois bateu com o bastão mais uma vez. - De joelhos, todas vós. Prestem a vossa obediência e saúdem Megera.
A nossa Rosa de Prata, a nossa futura rainha.
- Megera seja louvada - proclamou a assembleia de mulheres, com todas a dobrarem-se reverentemente sobre os joelhos. Ursule e Odile imitaram as outras e Ursule nem
sequer deu a Carole a oportunidade de obedecer por vontade própria; puxou Carole para baixo com tanta violência que ela caiu sobre os joelhos. Mas Carole quase não
sentiu dor, percorrida por uma nova onda de medo. Meu Deus, se esta inquietante bruxa cega não era a Rosa de Prata, então quão mais terrível deveria ser a verdadeira
feiticeira. Não se atreveu a olhar para cima enquanto a procissão se aproximava. O átrio ficara tão silencioso que conseguia ouvir o roçagar do vestido e um passo
ligeiro enquanto a Rosa de Prata subia para o estrado. A curiosidade venceu-lhe finalmente o medo e Carole atreveu-se a olhar para cima. A feiticeira sentara-se
no trono com os dedos magros e delicados a agarrarem os braços do cadeirão dourado.
O olhar curioso de Carole vagueou pela diminuta figura coberta por vestes reais de cor púrpura bordadas com rosas de prata. Um círculo dourado coroava as tranças
castanhas que caíam até à cintura da feiticeira, com o seu pálido rosto oval dominado por grandes olhos verdes, que imediatamente pareceram estranha e simultaneamente
mais velhos e mais novos do que os de Carole. Carole abriu a boca, com a mente a refazer-se do segundo choque da noite.
A terrível feiticeira, a pavorosa Rosa de Prata... era apenas uma menina.
Um relâmpago recortado de trovoada rompeu os céus e o trovão ouviu-se à distância. Simon parou à porta do velho estábulo, com a esperança de que poderiam ali permanecer
até passarem as chuvas diluvianas. A tempestade que se aproximava fizera o dia escurecer mais cedo e Simon sentira a necessidade de interromper a jornada. Ele e
Miri estavam cansados de mais um dia no rasto da jovem Moreau e das suas companheiras.
A sua busca ainda nada produzira a não ser frustração desde que tinham deixado a vila de Longpre. Pouco mais tinham recolhido do que vagos relatos. Um idoso couteiro
teria visto as três mulheres atravessarem as terras do seu amo. A mulher de um agricultor tinha a certeza de que vira o trio, mas estava tão cansada de tratar das
suas galinhas e cuidar dos seus filhos irrequietos que não suportava ser pressionada para se lembrar do assunto.
Se não conseguissem alcançar a jovem Moreau e as suas companheiras antes de elas serem engolidas pela mole de ruas e abundante populaça que era Paris, Simon temia
jamais conseguir encontrá-las. Isto se, porventura, Paris ainda estivesse no sítio para onde se dirigiam. Enquanto massajava a nuca dorida, Simon foi assaltado pela
sensação de fracasso que o avassalara ao longo destes últimos meses.
Só que agora era ainda pior porque sentia que também estava a incumprir com ela. Prometera a Miri que encontraria Carole Moreau e asseguraria que ela ficasse a salvo,
mas talvez tivesse sido melhor seguir a pista que a Rainha das Trevas lhe dera quanto ao desaparecimento do Livro das Sombras.
Pesquisai tanto na vossa memória como em quaisquer registos que possais ter feito. Descortinai quem mais estava na estalagem e possa ter tido a oportunidade de roubar
o livro e talvez assim consigais desmascarar a nossa astuta Rosa de Prata.
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Mas a passagem de dez anos era demasiado longa para trazer à memória todos os pormenores de um determinado dia, mesmo que tão movimentado como aquele. Simon andara
tão obcecado com o seu plano para deter o conde de Renard, que tomara pouca atenção a tudo o resto. Tinha guardado diários daqueles anos da sua vida, mas estavam
fechados numa caixa que tinha guardado na arrecadação.
Parar para consultar os diários significaria abandonar a perseguição das bruxas e da jovem Moreau, uma decisão que iria afligir Miri. E ela tinha sido tão incrivelmente
paciente nestes últimos dias, sem nunca se queixar do calor, das cansativas horas na sela, dos longos silêncios de um homem habituado a manter para si os seus pensamentos.
Nem sequer reclamara sobre a perspetiva de passar a noite naquele velho estábulo.
Simon tinha a desconfortável sensação de estarem a ser seguidos desde a última vila por onde tinham passado; era o inexplicável instinto que assegurara a sua sobrevivência
em muitas ocasiões. Ter-se-ia sentido idiota a explicar este instinto a alguém. Outra pessoa poderia troçar, pensar que ele se comportava irracionalmente, mas Miri
era, ela própria, tão misteriosa que compreendera e concordara completamente com a sua decisão de abandonar a estrada principal. Assim, avançaram pelo meio do arvoredo
e através dos campos da quinta dos Maitland.
Os Maitland eram um casal sossegado e reservado que estava em dívida com Simon por um serviço que ele em tempos lhes prestara. Simon detestava fazer uso disso, pois
os Maitland já tinham sofrido bastante e não queria sobrecarregá-los com mais nada. Mas com mais uma noite a cair e a perspetiva de uma tempestade, a sua primeira
preocupação fora a de abrigar Miri num lugar seguro.
Uma vez que a crescente família dos Maitland sobrelotava a casa em que viviam, o estábulo era a única acomodação que Monsieur Maitland podia oferecer a Monsieur
Aristide e ao seu jovem companheiro, afirmara o agricultor com pesar. Mas isso servia perfeitamente a Simon; era melhor para ele e para Miri ficarem perto dos cavalos
e esconderem assim o segredo do seu género. Os Maitland eram boa gente, mas rígidos na sua noção de decoro. Ficariam escandalizados se porventura se apercebessem
de que o companheiro de viagem de Simon era afinal uma mulher disfarçada de rapaz.
Mais um clarão de relâmpago traçou os céus, iluminando a casa e o muro baixo de pedra que a rodeava. Tudo estava calmo e Monsieur Maitland e a sua família recolheram-se
para dormir. Mas um par de mastins de
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aspeto feroz manteve-se de guarda junto ao portão, prontos para saltar furiosamente ao mais pequeno sinal de qualquer intruso.
Satisfeito por tudo parecer seguro, Simon recolheu ao celeiro. Embora a tempestade ainda não tivesse provocado mais do que algumas gotas de chuva, o ar arrefecera
bastante, portanto pelo menos no interior do recinto não se sufocava.
O celeiro estava bem cuidado mas era pequeno. Simon ficara do lado de fora para dar a Miri um pouco de privacidade enquanto ela se lavava com a água que lhe trouxera
do poço da quinta. Para não a apanhar em qualquer momento menos apropriado, chamou do lado de fora: - Miri ?
- Aqui - ecoou a voz dela. Uma lanterna suspensa na cavilha de um dos postes espalhava uma luminosidade suave pelo interior do estábulo. Uma vaca leiteira ruminava
um molho de palha, observando Simon com os seus grandes e plácidos olhos. O cavalo de arado dos Maitland dormia, tal como o impassível cavalo de Miri.
Simon foi encontrar Miri na última cocheira com Elle. Tinha o cabelo solto caído sobre os ombros e estava a entrançar a crina negra da égua, usando as suas próprias
fitas para prender as tranças. Tanto ela como a égua refletiam a imagem de puro contentamento e Simon sentiu aliviar um pouco a tensão. Mas avançou para a cocheira
fingindo resmungar.
- Mulher, que raio estás a fazer à minha égua?
- Estou a entrançar-lhe a crina. Distrai-a da trovoada e... - Miri apertou os lábios enquanto se concentrava a acabar um nó de trança - ... e pensei que pelo menos
uma de nós devia ficar bonita.
- Eu sou um caçador de bruxas. Devo espalhar o terror no coração dos malfeitores. Já pensaste que posso parecer um pouco ridículo a montar um cavalo adornado com
fitas?
Miri lançou-lhe um sorriso impenitente. - O céu nos impeça de nos intrometermos com a tua temida reputação, Monsieur le Balafre. vou esforçar-me por desfazer o entrançado
antes de sairmos de manhã, embora a Elle possa não estar de acordo. Ela gosta dos seus novos atavios.
A égua bufou, abanando a cabeça quase como se estivesse a exibir-se, provocando um sorriso relutante a Simon. Debruçou-se sobre a parede da cocheira, observando
Miri enquanto esta continuava com os seus procedimentos. Por vezes, Elle mostrava algum nervosismo devido à aproximação da tempestade, mas parecia distraída do ribombar
distante dos trovões.
Não estranhou ver Elle tão calma ao toque de Miri. Ela sempre tivera um efeito extraordinário sobre qualquer criatura que caminhasse sobre qua tro patas.
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E também sobre as que caminhavam sobre duas, admitiu Simon ironicamente.
O simples facto de estar na presença de Miri era suficiente para se sentir aliviado do peso das preocupações e frustrações do dia. Ela tinha a pele coberta por um
esplendor róseo e as ondas pálidas do cabelo cintilavam-lhe sobre as costas.
- Estás bastante enganada - murmurou. - Não é só Ee que é bonita.
Embora a sua cor se intensificasse com o cumprimento, Miri limitou-se a rir e a não aprová-lo, abanando a cabeça. Aproximou-se de Elle, acariciando-lhe o nariz e
cantarolando baixinho uma canção doce que derretia os ossos de Simon. A letra era numa língua estranha que ele não conseguia compreender, mas Elle respondeu com
um suave relincho.
Esta estranha capacidade de Miri comunicar com os animais devia enervá-lo, mas Simon acabou por se ir habituando ao seu estranho dom e até a ficar fascinado.
- Então que segredos estão as senhoras a partilhar agora? - perguntou num tom meio irónico para ocultar o seu fascínio.
- Nada de importante. Bisbilhotices de mulheres.
- Sobre mim, sem dúvida. Suponho que Elle estará a fazer-te queixas de como sou um cretino rabugento e irrefletido.
Miri riu-se. - Não, nunca ouviria nada como isso. Pelo menos não de Elle. - Os olhos de Miri enterneceram-se enquanto acrescentava: - A tua égua adora-te, Simon.
Seria capaz de morrer por ti.
- Pobre tonta - ripostou Simon enquanto entrava na cocheira e fazia festas no pescoço de Elle.
A égua empurrou-o suavemente com o nariz. Ele massajou as pontas dos dedos exatamente entre os olhos, fazendo-a abanar a cabeça com contentamento. O rosto de Simon
descontraiu-se num sorriso caloroso, até que se apercebeu de que Miri se afastara para o observar. Os temíveis caçadores de bruxas não deviam ficar assim meigos
e sentimentais com os seus cavalos. Embora continuasse a afagar Elle, pigarreou e disse rudemente:
- Desculpa não ter conseguido arranjar melhor acomodação para esta noite a não ser este estábulo. Eu devia...
- Meu bom Deus, Simon. - Miri interrompeu-o com uma clara e sonora gargalhada. - Esqueceste por completo com quem estás a falar? Quando eu era criança, teria alegremente
dormido com o meu pónei todas
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as noites, se a minha mãe me deixasse. Quanto a mim, os estábulos são os lugares da Terra que estão mais perto do céu.
- Especialmente ao fim do dia - acrescentou Simon -, quando os animais estão a preparar-se para a noite, com aquela noção do descanso bem merecido ao fim de um dia
difícil. De paz total, de fim de viagem. Mesmo que seja só uma ilusão.
Miri concordou com um aceno. - Adoro os sons da noite, os pios dos mochos e das corujas, o murmúrio da palha e o batimento dos cascos nas cocheiras.
- O resfolegar e os relinchos...
- E o doce aroma do feno fresco.
- O cheiro de uma casa quente misturado com o couro... - Simon interrompeu-se, um pouco envergonhado com a sua onda de entusiasmo.
Miri também se calou, sorrindo-lhe timidamente. Os seus olhares cruzaram-se num momento de completa identificação, com uma sensação de total acordo que parecia aproximá-los
e ligá-los.
Simon sentiu o coração agitar-se com a consciência da presença dela, que tão frequentemente procurava combater. A lanterna espalhava luz sobre ela e o brilho refletia-se
nos seus olhos e no seu cabelo dourado. Pa recia tão delicada e acessível. A camisa de linho colava-se às suas formas fe mininas, revelando vestígios cativantes
dos seus seios soltos. O corpo de Simon agitou-se numa ânsia de a puxar para si, apertá-la fortemente contra o seu corpo, e respirar o seu quente aroma feminino.
Não perdeu tempo a afastar-se. Tinha feito um bom trabalho durante o dia, quando os seus pensamentos estavam ocupados com a caça e todos os seus sentidos concentrados
na deteção de qualquer perigo que se aproximasse, ao controlar os desejos que Miri despertava nele.
Mas quando estavam a sós, estes momentos mais tranquilos ameaçavam ser a sua ruína, repletos com o perigo de Miri poder tentá-lo para além de tudo o que era razoável
e escavar o seu caminho sob a sua pele, até ao fundo do seu coração.
Embora Miri tivesse feito um excelente trabalho a tratar de Elle, Simon pegou numa escova e, concentradamente, começou a escovar a garupa lustrosa da égua. Ouviu-se
miar e um gato malhado roçou a saia de Miri.
Miri levou o animal aos seus braços e perguntou: - Então, quem são estes Maitland? São teus amigos?
- Os caçadores de bruxas não têm amigos, Miri.
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A resposta perturbou-a. Enquanto coçava a base do maxilar do gato, franziu a testa. - Tive a impressão de que Monsieur e Madame Maitland ficaram muito agradados
por poderem oferecer-te abrigo para a noite.
- Só porque se sentiram obrigados a isso. Eu prestei-lhes um serviço insignificante no outono passado.
- Oh?
Simon preferia não falar sobre o assunto, mas devia saber que Miri não ia deixá-lo passar em claro tão facilmente. Não que alguma vez o tivesse massacrado com perguntas
ou exigido respostas. Limitava-se a esperar, olhando-o, expectante.
Simon suspirou e continuou a escovar Elle. - Alguém vandalizou a igreja local, espalhando sangue de porco no altar. A família Maitland foi tida como suspeita e uma
multidão de homens embriagados da vila dirigiu-se para aqui para exigir vingança. Eu consegui convencê-los de que estavam enganados e persuadi-los a voltar para
casa.
- E como é que foste capaz de conseguir isso?
- Intercetei a multidão brandindo a minha espada, fazendo saltar Elle da escuridão para a frente deles na estrada. - A boca de Simon esticou-se num esgar de satisfação
ao recordar todos aqueles rostos a encolherem-se à luz das tochas, com os olhos arregalados e as bocas abertas com medo.
- Elle e eu podemos lançar um verdadeiro espetáculo de terror quando queremos. Devias ter visto como ela consegue mover e fazer estalar a crina e revirar os olhos,
com os cascos a atacarem o ar como um cavalo negro demoníaco e vingador, que salta diretamente das mandíbulas do Inferno.
"Pelo menos quando não está toda ataviada e entrançada - acrescentou Simon, ironicamente.
Miri aproximou-se mais da cocheira. Quando Elle farejou com curiosidade o gato nos seus braços, o felino não gostou. Fugindo dos braços de Miri, trepou para o alto
da cocheira e depois saltou, desaparecendo do estábulo. Miri quase não notou enquanto olhava para Simon.
- Isso é o que chamas prestar um serviço insignificante aos Maitland? Esses homens horríveis podiam ter lançado fogo à casa para os queimar vivos E tu com eles.
Simon encolheu os ombros. - A multidão era composta pelo tipo de trabalhadores que se podem encontrar em qualquer povoação. Mas, sim, a situação podia ter ficado
muito feia. Até os homens comuns podem ser perigosos quando a sua coragem fica inflamada por vinho a mais, mau
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génio e violência. Toda a vila estava furiosa e chocada pela profanação da igreja.
- O que levaria alguém a suspeitar que os Maitland pudessem ter feito semelhante coisa? Só os vi por breves instantes, mas pude ver que são gente boa e bondosa.
- Mas também são conhecidos por serem partidários da religião reformada.
- E... e tu sabias isso quando os defendeste? - hesitou Miri. Simon entendeu o espanto. No verão em que conhecera Miri, estava a tentar ajudar o seu velho mestre,
le Vis, a caçar e acabar com o capitão huguenote Nicolas Remy.
Quando passou para a frente da cocheira para escovar a cernelha de Elle, disse: - Defendi os Maitland porque sabia que eles não eram responsáveis pelo vandalismo
na igreja. Era mais um ato ocasional, provocado por algum membro da Rosa de Prata. Ou talvez não fosse tão ocasional.
"Essas harpias satisfazem-se a causar a infelicidade ou a provocar sarilhos nas povoações por onde passam, lançando as pessoas umas contra as outras, principalmente
huguenotes e católicos. Na verdade descobri que uma delas tinha gravado uma representação tosca de uma rosa no altar. Quando a mostrei ao padre no dia seguinte e
os ânimos se acalmaram, consegui convencer todos de que a profanação da igreja era obra de bruxas e que os Maitland estavam inocentes.
- Inocentes? - Miri mordeu o lábio e depois prosseguiu com hesitação.
- Desculpa, Simon, mas... mas esse não é um termo que esperasse ouvir da tua boca. Muito menos aplicado a um huguenote. Vachel le Vis não te ensinou a odiar todos
os membros da religião reformada e a olhá-los como heréticos?
- Tentou. - Simon parou de escovar Ele, perturbado, como frequentemente ficava quando recordava aqueles tempos há muito passados, quando era aprendiz de le Vis e
queria agradar ao homem que lhe salvara a vida que, no entanto, tão perturbada fora por muitos dos seus ensinamentos.
Ao sair da cocheira, Simon passou distraidamente os dedos pelas cerdas da escova. - Ele dizia que, como bom cristão e verdadeiro católico, eu devia desprezar todos
os heréticos e condená-los a arderem no Inferno. Fez-me sentir tão confuso que passei horas a rezar sobre o assunto. - Soltou uma gargalhada sem alegria. - Acredites
ou não, naquele tempo eu 215
na verdade ainda rezava, queria ser um bom cristão como o mestre le Vis pregava, mas a sua doutrina era tão diferente daquela outra, tão bondosa, que aprendera com
o meu pai.
"Surpreendentemente, ele era mais tolerante do que muitas das pessoas da vila, talvez porque conhecia melhor o mundo. Contou-me frequentemente como o meu avô estivera
nas guerras em Espanha e de como a minha avó fora salva por um bondoso e competente médico mouro. E uma vez, quando o meu pai viajava para uma feira noutra vila,
ele próprio foi assaltado por larápios e foi salvo por um mercador judeu...
"Judeus e mouros... O mestre le Vis tê-los-ia condenado a todos, juntamente com os huguenotes, independentemente de serem bondosos ou valentes. Mas o meu pai tinha
sempre o hábito de dizer que, se havia tantas ruas numa cidade como Paris, muitas mais haveria no céu. Não precisamos todos de seguir exatamente o mesmo caminho
para chegar ao destino.
Simon vislumbrou repentinamente uma vívida imagem de Javier Aristide sentado à lareira, enquanto partilhava a sua simples sabedoria, mantendo as suas mãos rudes
de trabalho ocupadas a talhar madeira. As mãos do pai poucas vezes estavam desocupadas, sempre a trabalhar em alguma coisa: arranjar a perna partida de um banco,
talhar uma tigela de madeira para a mãe ou algum caprichoso animal para Lorene. Pela primeira vez em muitos anos, a recordação era mais comovente do que dolorosa.
Não se apercebera de que se deixara embalar pelos seus pensamentos até Elle o ter empurrado com o focinho, incitando-o a continuar a escová-la. Miri olhava-o com
um brilho suave nos olhos que ele desejava merecer.
- Não me olhes dessa maneira, Miri Cheney - avisou.
- De que maneira? - perguntou ela.
- Como se pensasses que de alguma maneira eu sou como o meu pai. Não sou. Ajudei os Maitland unicamente porque... porque servia os meus interesses. Dificilmente
posso esperar levar a tribunal a Rosa de Prata se outros forem condenados pelos seus crimes. Não sou um herói.
- Duvido que os Maitland concordassem. Quando penso no que podia ter-lhes acontecido... - Miri estremeceu. - Estes conflitos religiosos já são suficientemente terríveis
sem mais ninguém a semear deliberadamente mais discórdia. Se isso é o que essa Rosa de Prata está a tentar fazer, então a mulher é um verdadeiro monstro. Quando
chegará ao fim toda esta crueldade sem sentido entre huguenotes e católicos? Preocupo-me muito com Gabrielle e a sua família.
216
- Gostava de te poder dizer que não tens motivo para isso - respondeu Simon sombriamente. - Mas pelo que ouvi naquela noite em Chenonceau, a guerra vai ficar ainda
pior. Se a Rainha das Trevas não for capaz de deter as ambições do duque de Guise, ele irá conseguir o controlo total do exército real e marchar sobre Navarra e
procurar esmagar os huguenotes de uma vez por todas. Podes querer avisar a tua irmã.
- Tenho a certeza de que Remy está perfeitamente ao corrente do perigo e assegurará a proteção da família, mas à primeira oportunidade enviar-lhes-ei um aviso...
- interrompeu-se Miri, com o rosto inundado por um rubor revelador. Baixando a cabeça, gaguejou: - Isto é... avisaria a Gabrielle se soubesse onde ela está. O que
na verdade... não sei.
Era uma fraca mentirosa. Mas num mundo tão cheio de pessoas muito mais dotadas para fingir, Simon achava a transparente honestidade de Miri um dos seus mais adoráveis
traços de personalidade.
- Podes tentar enviar uma mensagem para a quinta deles em Pau sugeriu.
Quando a cabeça de Miri se ergueu repentinamente com os olhos cheios de consternação, ele acrescentou: - Há muito que fiquei a saber para onde Gabrielle e o seu
capitão huguenote fugiram, mas não tinha qualquer interesse em persegui-los. A Senhora da Ilha Encantada e o seu marido feiticeiro escaparam à minha caçada.
- Agora que sabes que Renard não tem o Livro das Sombras, já não tens qualquer razão para procurá-lo, tens? - perguntou Miri.
- com ou sem o Livro, o conde ainda é perigosamente versado em magia negra.
- Renard jamais usaria o seu conhecimento para qualquer fim malévolo, Simon - disse Miri, de rosto voltado para ele, com os seus belos olhos ansiosos e suplicantes.
- Tens de acreditar em mim.
Ele bem gostaria de poder. Lamentou ter chegado a mencionar Renard. Tal como lançar um seixo na superfície serena de uma lagoa, isso ameaçava perturbar a harmonia
recém-encontrada entre ambos. Simon conhecera poucos momentos de paz na sua existência, especialmente acompanhado por Miri, e por isso eram o que de mais precioso
havia para ele. Mordeu os lábios e deu por si a fazer uma concessão que jamais pensara possível.
- Se alguma vez voltar a cruzar-me com Renard, farei tudo para lhe voltar as costas e deixá-lo seguir o seu caminho. Por ti.
- Ele é um bom homem, Simon. Preferia que o fizesses por ele.
217
- Ah, agora estás a exigir demasiado de mim. Ele é o neto da famosa Melusina, a feiticeira que transmitiu tantos dos seus negros conhecimentos a outros, incluindo
a velha bruxa que destruiu a minha vila.
- Não podes culpar Renard por isso. Era a mesma coisa do que eu... te culpar por teres sido criado por um caçador de bruxas.
- le Vis não me criou - interpôs Simon. - Mas salvou-me a vida.
Sentiu-se tenso como sempre sucedia de cada vez que tinha de defender le Vis. Tinha lutado em vão antes de se justificar perante Miri sobre aquilo que frequentemente
era perturbador para ele mesmo: porque passara tantos anos ao serviço de um louco.
- Pensas em le Vis como um monstro e ele deu-te razões para isso. Houve momentos em que, quando tinha os seus ataques de loucura, eu próprio... - Simon calou-se,
controlando a sombria memória. - Mas houve outros em que ele podia ser o mais paciente dos professores. Ensinou-me latim e grego, leitura, escrita e cifra, conhecimentos
que como um simples rapaz do campo nunca poderia ter esperanças de adquirir.
"Mas, para além da educação, devo-lhe a minha própria sobrevivência. Não sei o que aquela maldita bruxa velha lançou ao poço naquela noite, mas deu origem a uma
praga de tal virulência que se espalhou por toda a vila e pelas terras próximas, incluindo a propriedade onde eu trabalhava nos estábulos. Quando a notícia se espalhou,
fomos isolados do resto do mundo. O mais perto que alguém se aproximava era até um monte próximo onde era deixada comida, que poucos tinham força para ingerir, enquanto
todos os que eu conhecia iam morrendo, um a um. - Simon engoliu em seco enquanto recuava até à parte mais recôndita do seu passado, um local que muito raramente
revisitava. - Na minha própria família, o meu pai foi a primeira vítima, depois foi a minha mãe. Lorene foi a última, tão inconsciente com febre e dores que já nem
me conhecia, mas mantive-a nos meus braços até ela morrer.
Elle mordiscou-lhe a manga, empurrando-o para ganhar a sua atenção e esfregando-lhe a cabeça na manga. Ele deu-lhe uma palmada distraidamente e afastou-se, encostando-se
na parede contrária enquanto concluía o seu relato.
- Eu próprio estava tão fraco naquela altura que levei a maior parte do dia para cavar a sepultura dela. E ela... ela era um farrapo tão frágil de rapariga. Depois
de ter acabado de sepultar a minha irmã, desmaiei numa vala ao lado da estrada. Por qualquer razão desconhecida, fui poupado à devastação da peste.
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Miri escutara-o em silêncio e só os seus olhos deixavam transparecer tristeza. Mas aproximou-se, tocando-lhe suavemente na mão. - Às vezes é assim que as coisas
acontecem, Simon. A minha mãe, que era invulgarmente dotada no tratamento das vítimas da peste, muitas vezes se surpreendia como algumas pessoas pareciam completamente
imunes. Mesmo com todo o seu conhecimento da antiga medicina, nunca o compreendeu; limitava-se a agradecer a Deus que assim fosse.
- Não sei se o facto de ser poupado foi obra de Deus ou do Diabo. Tudo o que sei é que fiquei caído à beira da estrada à espera de morrer e que foi lá que le Vis
me encontrou. Mais ninguém quis aproximar-se de um lugar amaldiçoado por uma bruxa. Ele foi o único que se atreveu a lá ir.
- A minha mãe ter-se-ia atrevido e, acredites ou não, Renard também o faria. - Miri apertou-lhe a mão. - Estou contente por le Vis te ter salvado, Simon. Agradeço-lhe
por isso, mas como eu gostava que tivesses sido encontrado por alguém que não ele.
- Acredita, minha querida, que eu também - respondeu Simon tristemente. Era a primeira vez que admitia isso perante alguém, até perante si mesmo. Mas, nestes últimos
dias com Miri, dera por si a examinar partes da sua vida que mantivera fechadas durante anos. Eram aqueles seus olhos misteriosos que o perscrutavam, bem no seu
interior, levando a luz aos recantos mais sombrios do seu coração, quer ele quisesse quer não.
Ela parecia sentir como lhe era difícil, sempre que ele era capaz de partilhar memórias com ela. Quando ficava silencioso, ela não o pressionava pedindo mais pormenores.
Aproximando-se, afastou-lhe uma madeixa de cabelo da sobrancelha, passou-lhe as pontas dos dedos pela testa da mesma maneira tranquila como atenuava o medo da trovoada
à sua égua.
Mas havia muito pouco a fazer por um homem quando as tempestades estavam todas na sua alma, pensou Simon. Devia ter-se afastado dela, mas havia tanto conforto, tanto
calor nas suas carícias, e ele há muito que se sentia frio e só, isolado do resto do mundo.
Ela passou-lhe a mão pelos cabelos, com as pontas ainda molhadas de ter lavado o suor e a poeira da estrada. Simon fez uma careta, imaginando como se pareceria a
uma gárgula, com o rosto cicatrizado, barba desgrenhada e cabelo negro em desalinho. Quando os dedos dela encontravam um nó, ela pacientemente desfazia-o.
219
Para aliviar a tensão desta conversa triste, Simon espicaçou Miri: - Espero que não estejas com ideias de me deixar petrificado como fizeste com a Elle. Estará muito
para além do teu poder, minha querida.
- Não tenho intenções de tentar domar-te, Monsieur Aristide. Embora gostasse de te persuadir a veres-te livre disto. - Quando Miri tocou no fio que prendia a pala
do olho para a tirar, ele esticou-se, agarrando-lhe o pulso para a impedir.
- Não.
- Mas, Simon, não pode ser confortável para ti usares sempre isto. A tua pele precisa de... de respirar e não é como se eu nunca tivesse visto a tua ferida antes.
Tu mostraste-ma daquela vez em Paris, lembras-te?
- Só porque estava a tentar intimidar-te e a querer fazer-te sentir culpada.
- Funcionou. Bastante bem, posso acrescentar. - Miri tentou rir-se, mas saiu-lhe um som brando e triste. Baixou as pálpebras para disfarçar o olhar triste, uma sombra
mais provocada por ele.
Simon aliviou a pressão no pulso dela, segurando-lhe suavemente a mão. - Eu fui absolutamente incrível contigo, não fui? Fosse o que fosse que te disse na altura,
eram apenas a minha amargura e o meu mau temperamento que falavam. Nunca me fizeste nada de que te possas sentir culpada.
- Fui eu que interferi no vosso duelo e a razão pela qual a espada de Renard conseguiu quebrar a tua guarda.
- Mas fui eu que o desafiei. Quando um homem empunha uma espada, é melhor que esteja preparado para aceitar as consequências da sua ação. Naquele dia provavelmente
salvaste-me a vida. Renard era muito melhor espadachim, poderia ter-me matado se não tivesses tentado impedir o duelo.
- Ou tu a ele. Ele estava enfraquecido pelas provações da sua prisão na Bastilha. Aquele dia é uma das piores memórias da minha vida. Nunca lidei bem com a ira nem
com a violência. Fazem-me mal à alma e... e fui forçada a ver-vos a atacarem-se daquela maneira, sem querer que nenhum de vós ficasse ferido. Não podes imaginar
o que aquilo foi para mim.
Ele não podia. Pelo menos não naquela altura. Acabara de ser informado de que o seu mestre estava morto, cruelmente esquartejado pelo conde de Renard. le Vis, o
homem que era tudo para Simon, a sua própria família, o seu protetor, o seu professor. Simon sentira-se tão só como depois de
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a sua vila ter sido destruída, aterrorizada e perdida. Ao precisar de canalizar a sua revolta e o seu terror contra alguém, escolheu o feiticeiro Renard, que já
culpara de tentar voltar Miri contra si.
Mas ele próprio conseguiria isso sozinho. Apanhado no negro turbilhão da sua própria angústia, pouco pensou em Miri ou na dor que lhe iria infligir ao bater-se com
alguém de quem ela gostava, forçando-a a tomar partido, rasgando o seu coração em dois. Apertou-lhe a mão. - Miri, perdoa-me. Nunca mais te farei passar por algo
semelhante. Juro.
Era uma maldita de uma promessa impetuosa, tão impetuosa como aproximar Miri de si. Mas só conseguia pensar na necessidade de apagar a dolorosa memória e afastar
aquela mágoa do seu olhar. Fez aquilo que desejava fazer desde há dias, envolveu-a nos braços e puxou-a para si. Ela resistiu apenas um momento antes de se fundir
com ele, enterrando o rosto no seu ombro.
Abraçaram-se mutuamente. Os únicos sons que se ouviam eram os aconchegados murmúrios dos outros seres no estábulo e um vago ribombar de trovão vindo de longe da
escuridão. Simon sentiu, transtornado, que as coisas tinham sido sempre assim com Miri desde que a conhecera; alguns momentos fugazes de paz antes de a tempestade
iminente se abater sobre eles.
Este só podia ser mais um desses momentos, pensou tristemente. E abraçou-a mais fortemente por isso. Ela finalmente moveu-se, erguendo a cabeça. Quando as pontas
dos seus dedos alcançaram a pala do olho para a retirar, desta vez ele não a impediu.
Era difícil não voltar aquela metade do seu rosto para a escuridão e evitar o seu olhar sério. Há muito tempo que não se via ao espelho, mas quando era um rapaz
tonto, mais desolado pela perda do seu aspeto do que pela do seu olho, observara amargamente o seu reflexo e memorizara a forma da sua cicatriz. A feia prega de
carne repuxada que selava o seu olho direito fechado.
Tinha aprendido a usar a sua deformidade ao longo dos anos para bárbaros efeitos, para intimidar, aterrorizar e repelir. Nada disto queria agora provocar em Miri.
Nem desejava despertar-lhe piedade. Recuou quando ela tocou meigamente na sua pálpebra cicatrizada.
- Preciso de te fazer a minha pomada especial para isto - murmurou ela.
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- Já passou qualquer esperança de cura, não te parece?
- Fizeste com que esteja pior do que tinha de estar, irritando a pele com o uso prolongado da pala. Quero que a tires, pelo menos quando estivermos juntos e sozinhos.
- Está bem - concordou ele, procurando parecer indiferente. Vaidade. Era apenas estúpida vaidade e le Vis sempre o acusara de a ter em excesso. Era uma das poucas
coisas sobre as quais o seu falecido mestre tinha razão.
A respiração parou-lhe no peito à medida que ela se inclinava para ele e fazia roçar a boca pela sua face, depois pela pálpebra, a seguir pela sobrancelha. Quando
sentiu o impacto quente e húmido de lágrimas na face, gemeu.
- Ah, Miri, não faças isso. Não chores. Já desperdiçaste anos demais comigo e eu nunca fui merecedor de nenhum deles.
Agarrou-lhe a face entre as mãos, pressionando a boca contra os olhos dela, as faces. Queria apenas limpar-lhe as lágrimas com beijos. Teria jurado que não queria
fazer mais do que isso, só que uma pequena gota escorreu para o canto da boca dela e ele apanhou-a com a sua, sem pensar. Os seus lábios sobre os dela, o sal das
suas lágrimas a misturar-se com a doçura da boca de Miri. Fez um frouxo esforço para fugir à tentação, mas ela enterrou-lhe os dedos no cabelo, mantendo-o cativo
e rendendo-se no mesmo fôlego, abrindo os lábios... uma tentação à qual não tinha forças para resistir. Beijou-a, de início ternamente, depois a pouco e pouco mais
profundamente, explorando com a língua os quentes vales da sua boca. Miri respondeu avidamente, pressionando o seu corpo contra o dele.
Apalpou-lhe o peito através do linho da camisa e sentiu o calor, o batimento do coração, que parecia ter acelerado a compasso com o seu. O corpo endurecido com o
desejo por ela, a ânsia de a envolver nos seus braços e levá-la para...
Levá-la para onde? Deitá-la nas tábuas ásperas do chão do estábulo como um qualquer soldado saqueador que procura uma cópula rápida com a ordenhadora - Não havia
cama, nenhuma divisão onde fazer amor com ela. Não havia um lugar macio e seguro para estarem juntos. Nunca antes houvera, nunca haveria.
com um breve gemido afastou a boca da dela, embora ainda não fosse capaz de a libertar. Abraçou-lhe a cintura, repousando a fronte sobre a dela, com a respiração
de ambos a misturar-se em suspiros irregulares. Quando ela lhe acariciou o pescoço, com a mão a viajar pelo bico do decote da sua
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camisa, sentiu a pulsação acelerar com o toque suave dos seus dedos sobre a sua pele nua. Agarrou-lhe a mão, segurando-lhe os dedos sobre o seu coração galopante.
- Oh, Deus, Miri, isto não é sensato - - disse.
- Eu sei - murmurou ela. - Mas porque parece tão certo? - Não faço ideia. Nunca compreendi esta loucura entre nós.
- Loucura? - repetiu ela tristemente. - Sim, suponho que é. Afastou-se dele, que, com relutância, a libertou.
- Desculpa-me - disse, com as faces em brasa. - Não sei o que me deu. Estou tão envergonhada.
- Não estejas. A culpa é mais minha do que tua. Tinha prometido que não voltaria a beijar-te.
Miri suspirou. - Simon, caso não tenhas reparado, eu também te estava a beijar. - Percorreu os dedos pela corrente de prata que lhe pendia ao pescoço, algo que fazia
muitas vezes quando tinha apreensões ou preocupações. Pela primeira vez ele reparou que da corrente pendia um elaborado medalhão gravado.
- O que é isso? Algum tipo de amuleto para afastar demónios? Não parece funcionar muito bem - gracejou, ansioso por aliviar a tensão entre os dois.
Miri parecia acabrunhada pela culpa quando respondeu: - Foi uma oferta de um amigo. Tu conheceste-o daquela vez que estiveste hospedado na Estalagem Régia, embora
eu duvide que te recordes dele. Chama-se Martin, o Lobo.
Simon fez um esgar. Lembrava-se demasiado bem do alto e bem-parecido jovem que andava atrás de Miri como um filhote de lobo afeiçoado.
- Ah, sim, aquele larápio de Paris. Não fazia ideia de que ainda te relacionavas com ele.
- Devia ter falado nele mais cedo. Não sei porque o não fiz. Mas com tanta coisa a acontecer e lembrando-me como tu não gostavas dele...
Simon deu uma gargalhada seca. - Se bem me lembro, a aversão era mútua. O rapaz olhava sempre para mim como se quisesse cortar-me a cabeça e depois desfilar em parada
com ela espetada numa lança.
- Martin quereria cortar muito mais do que a tua cabeça se soubesse o que acabou de acontecer entre nós. Achar-me-ia a pior das devassas, o que afinal suponho ser.
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- Não és nada disso e eu cortaria a língua do homem que o dissesse. - Simon encostou os dedos sob o queixo de Miri, obrigando-a a olhar para ele. - Miri, não fizeste
nada de errado. Apenas partilhámos alguns beijos calorosos. Um homem e uma mulher viajando juntos, dia e noite, em tão estranhas circunstâncias... é natural que
nos sintamos algo tensos, um pouco ávidos. Não surpreende que nos tivéssemos deixado levar. Acontece, mas parámos antes que fosse longe demais. Foi apenas um louco
momento de fraqueza, nada de que o teu Lobo venha a ouvir falar, certo?
Em vez de a reconfortar, as palavras de Simon pareceram deixá-la ainda mais triste. Mas acenou, concordando e procurando sorrir. Apontando para o medalhão, Simon
pediu: - Posso ver isso?
Miri mostrou-lhe renitentemente o grande medalhão oval de prata gravada com a figura de um lobo a uivar à Lua. Ele abriu o fecho e procurou ignorar a irritante inscrição.
Teu até ao fim dos tempos. Concentrou-se no magnífico relógio e assobiou suavemente.
- Uma bugiganga cara. Desculpa-me a pergunta, mas tens a certeza de que o teu larápio não roubou isto?
- Claro que não roubou - exclamou Miri, indignada. - Fosse o que fosse na sua juventude, Martin já não é um ladrão. Ascendeu muito ao serviço do rei de Navarra e
transformou-se num verdadeiro cavalheiro. É muito apreciado por todas as damas da corte.
Simon não tinha dúvidas sobre isso. Mesmo quando o Lobo não era mais do que um vulgar larápio, tinha uma irritante tendência para se pavonear e provavelmente estaria
ainda tão bem-parecido como sempre. Maldito fosse. Sentiu um ferrão de algo tão ridículo como ciúmes e fez os impossíveis para o ignorar.
- Apesar das suas galanterias para com as outras mulheres, é óbvio que ele te é bastante devotado - assinalou Simon.
- O homem é um romântico sem remédio, trata-me como se eu fosse a sua deusa inatingível e chama-me a sua Senhora da Lua, esforçando-se sempre por cometer corajosas
façanhas em minha honra, para me conquistar o coração. - Miri sorriu, com remorsos. - Às vezes gostava que ele não se esforçasse tanto, que ele se recordasse que...
que...
- Que és uma mulher com necessidades muito prosaicas?
Ela olhou-o de relance, claramente surpreendida com a perceção dele. Embora concordasse com um aceno de cabeça, disse rapidamente: -Não
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me queixo. Ele ama-me sinceramente e tem sido um amigo devoto desde há anos, sempre a fazer-me rir, animando-me quando estou triste.
Mas tu ama-lo - Simon queria perguntar, mas não o fez, por um lado porque temia a resposta dela, por outro porque não era da sua conta. Mas não conseguiu evitar
perguntar-lhe: - Então porque não casaste com ele? As tuas irmãs não aprovam?
- Oh, sim, especialmente Gabrielle há muito que me incitou a casar com ele. Tanto ela como Ariane adoram o Martin.
Tanto como me desprezam a mim, pensou Simon; o contraste entre ele e o Lobo era vivo e doloroso. De um lado, um elegante e atraente cortesão que permanecera fiel
a Miri ao longo de todos estes anos. Do outro, um caçador de bruxas, cicatrizado e abatido, atormentado por mais recordações e remorsos do que os que podia contar,
o arqui-inimigo da sua família, o homem que a magoara sucessivamente, uma vez após outra.
Não que isso interessasse. Nunca tivera qualquer esperança de conquistar Miri para si. Nunca tomara consciência do quanto efetivamente a amava... até agora.
Fechou o medalhão e deixou-o cair sobre o colo de Miri, dizendo num tom de falsa alegria: - Atrevo-me a dizer que as tuas irmãs têm razão. Quando concluirmos esta
infernal caçada à Rosa de Prata, deves assentar com o teu Lobo. Ele poderá dar-te um belo lar e uma família.
Todas as coisas que ele nunca conseguiria.
- Minha querida, depois de todo o sofrimento por que passaste, mereces ser feliz - acrescentou delicadamente.
Então e tu, Simon? O que mereces tu? Miri queria perguntar-lhe, mas ele já se afastava dela a passos largos, resmungando algo sobre dar uma última vista de olhos
pelo pátio da quinta para verificar se tudo estava seguro. Passou a língua pelos lábios, saboreando a paixão do seu beijo e sentindo ainda o calor dos braços dele
à sua volta.
Enquanto ele desaparecia pela porta do estábulo, Miri teve um arrepio, sentindo-se subitamente fria e desolada. Aconchegou nas mãos o medalhão de Martin, olhando-o,
infeliz.
Casa com ele. Era o que as suas irmãs e Marie Claire lhe tinham dito e que mesmo Miri já dissera para consigo que devia fazer. E agora até Simon o dizia. Mas enquanto
voltava a colocar o medalhão sob o vestido, Miri sabia que nunca o faria e, depois de todo este tempo, compreendia finalmente porquê.
Estava perdidamente apaixonada por Simon Aristide.
Miri deitou-se de costas, com o cobertor que Madame Maitland lhe entregara para se proteger da cama de palha áspera que preparara para si no sótão do estábulo. Estava
exausta, mas não tinha sono, preocupada com os seus próprios pensamentos agitados e com a presença do homem que dormia a poucos metros dela. Fora-lhe muito difícil
convencer Simon a deitar-se durante a noite em vez de ficar de sentinela no exterior. Os cães dariam o alerta face a qualquer vestígio de problemas, argumentara,
e se a tempestade por fim rebentasse - Ficaria encharcado, passaria uma noite terrível em vigília ou eventualmente a passar pelo sono sobre o chão duro e no dia
seguinte estaria completamente exausto sem qualquer boa razão para isso.
No fim concordara, para surpresa de Miri. Talvez estivesse simplesmente demasiado cansado para discutir, embora tivesse que estar tão consciente quanto ela de que
pela primeira vez não conseguira interpor uma porta entre ambos como fazia em cada estalagem onde ficavam.
Mas Simon não precisava da barreira de uma porta. Enquanto se acomodavam para passar a noite, estivera sempre silencioso e ausente, construindo um muro entre ambos,
onde afinal não havia nenhum. Era infernalmente bom nisso.
Ela voltou-se para o lado dele e podia descortinar a silhueta da sua forma, quase invisível à luz do pouco luar que penetrava as nuvens e era filtrado pela janela
aberta no telhado. Simon Aristide, o homem que sempre amara, por muito que tivesse lutado por negá-lo.
Amava-o desde que era uma jovem ingénua, apaixonada pelo rapaz atraente que encontrara uma noite num penhasco varrido pelo vento, com os seus caracóis negros e olhos
tão reluzentes como o luar, e um sorriso intenso de um encanto irresistível.
Mas o que sentia por Simon era agora muito mais profundo do que o amor pueril da sua adolescência, quando fora fascinada pela sua beleza física. Via demasiado claramente
os seus defeitos. Não os superficiais, na sua face, mas as cicatrizes que estavam enraizadas profundamente no seu coração. A dor, as memórias dolorosas que o levavam
a fugir de si mesmo e a manter o mundo à distância.
Apercebeu-se de que ele era capaz de ser absolutamente implacável se sentisse que isso se justificava. Podia ser duro e desconfiado e ter um profundo desdém por
tudo o que se relacionasse com a magia. E no que respeitava
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a Renard era completamente inflexível e obstinado. Amar Simon seria uma traição, não só à devoção que Martin lhe dedicara durante todos estes anos, mas também à
sua própria família.
Mesmo sabendo que isso era verdade e vendo a dura realidade da situação, ter a noção destas coisas não ajudava nada. Ainda assim, ansiava por aproximar-se de Simon,
tocá-lo, acariciá-lo, procurar o calor dos seus lábios na escuridão. Teve de se abraçar fortemente para conter o impulso.
Ele tinha percorrido um caminho tão longo e tão duro desde aquele verão em que irrompera pela ilha Encantada, quando era um jovem colérico e amargurado. Porque,
por muito que o negasse, colocara-se em grande perigo para salvar os Maitland. E não o fizera com qualquer interesse próprio como insistira, mas sim com a mesma
preocupação e compaixão que o tinham levado a consolar Madame Paillard ou a chorar e rezar sobre
a campa de uma criança abandonada. Era uma prova para o seu caráter ter sobrevivido a horrores que teriam derrubado a maioria dos homens, a destruição da sua vila
e a perda da sua família.
Obviamente que tinha remorsos sobre a sua aprendizagem com le Vis, o fanático que o transformara em le Balafre, o implacável e solitário caçador de bruxas. Só com
a sua égua é que Simon relaxava completamente, dedicando a Ee uma afeição sem reservas que parecia ser incapaz de mostrar a mais alguém. Miri conseguia perceber
isso. Era tão mais seguro amar um cavalo, um cão ou um gato... a companhia das mais simples criaturas da Terra oferecia uma aceitação, um afeto e uma confiança totais
e sem qualquer complicação. A existência de Simon era ainda mais solitária e isolada do que fora a de Miri nestes últimos seis meses depois de regressar à ilha ;
Encantada, em busca da paz e da felicidade que já não havia naquela ilha. Simon parecia ter desistido há anos de ter qualquer esperança. Mesmo que Miri pudesse esquecer
completamente tudo o que devia a Martin e à sua família e oferecesse o seu coração a Simon, sabia que ele a rejeitaria. Aprendera a recear a mera menção do amor
e olhava-o como uma fraqueza. A atitude mais sensata e sensível que Miri podia ter era aprender a superar os seus próprios sentimentos.
Suspeitava que isso ia ser algo muito mais difícil de fazer do que de pensar. Suspirou. Enquanto se voltava sem cessar na sua cama improvisada, ouvia a agitação
de Simon. Embora não pudesse ver-lhe o rosto, sabia que
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ele estava tão desperto quanto ela. Ter-se-ia apercebido de que ela o observava, este homem tão atento à escuridão? Sobressaltou-a quando a sua voz repentinamente
troou.
- Parece que a tempestade passou.
- Sim. - Miri concordou tristemente enquanto olhava para cima através da janela aberta. O último vestígio de nuvens tinha desaparecido e a Lua brilhava fortemente
no céu. - Mais um dia sem chuva. Pobre Mãe-Terra - lamentou-se ela.
- le Vis teria dito que a seca é um sinal da ira de Deus e que o povo francês está a ser condenado ao Inferno pelos seus pecados.
- E estaria enganado. Deus não é assim cruel, Simon. Nunca destruiria o que criámos com tanto amor. Penso que Ele luta por transformar a pior das almas em algo bastante
melhor. Não acredito no Inferno.
- Eu acredito. Embora não pense que seja um qualquer lago de chamas ardentes como le Vis clamava.
Miri desejou discernir as feições de Simon. Mas mesmo com o luar a entrar pela janela, não conseguia ver mais do que a sombra do seu rosto barbado, com a cabeça
apoiada no braço, a olhar pela janela.
- Então, como pensas que é o Inferno? - perguntou-lhe brandamente.
- Frio. Escuro. E quando procuras tocar alguém no vazio, não há ninguém.
O vazio da sua voz tocou o coração de Miri. Todas as suas certezas sobre a sensatez de manter a distância foram esquecidas. Precipitou-se para junto dele, apalpando
até encontrar-lhe a mão. Embora Simon ficasse tenso, não retirou a mão, entrelaçando os seus dedos nos dela. Após um longo momento, voltou a falar, ainda com mais
hesitação.
- O meu pai concordaria contigo... sobre a seca. Recordo-me de algo que ele me disse no ano em que muitas das colheitas da nossa vila foram destruídas por chuvas
torrenciais. Disse-me que não se pode compreender os desígnios da natureza. Pode-se tentar viver em harmonia com a Terra, regozijar nos dias de abundância, pôr algo
de parte para conseguir suportar os períodos de carência e ter fé em Deus para conseguir atravessá-los.
- Viver em harmonia com a Terra - murmurou Miri. - Foi exatamente isso que a minha mãe me ensinou.
- Tu terias compreendido o meu pai. Ele... ele ter-se-ia dado bem contigo.
- Estou certa de que também teria gostado dele. Conta-me mais coisas sobre ele - pediu-lhe, enquanto massajava suavemente os seus dedos.
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Receava que ele recusasse. Era difícil conseguir que Simon falasse sobre a sua família, mas talvez lhe fosse mais fácil assim, perdido nas sombras, com as mãos dadas.
De início começou a falar lentamente, depois animou-se enquanto lhe descrevia como era a vida na sua pequena vila, até ela poder ver tudo claramente, desde a viela
sinuosa à casa bem cuidada.
Javier Aristide com as suas mãos rudes do trabalho, a partilhar a sua doce sabedoria, ensinando a Simon tudo o que sabia sobre a criação de animais domésticos. A
mãe, ferozmente atarefada na cozinha, mantendo simultaneamente a casa e a família arrumadas, em boa ordem doméstica, mas sempre pronta para uma carícia ou para um
sorriso radiante. E a sua pequena irmã Lorene, sempre fascinada atrás de Simon, correndo para ele sempre que esfolava o joelho ou encontrava qualquer pequeno tesouro
para lhe mostrar.
Embora Miri tivesse a certeza de que ele não se apercebera disso, Simon revelara-lhe também que tipo de rapaz era, com bom coração, pronto para rir e brincar. Tivera
já vislumbres da sua bonomia logo que o conheceu, mesmo depois de ter caído sob a influência de le Vis, traços que se mantinham no homem a quem segurava a mão na
penumbra.
Sem dar por isso, Miri começou a falar da sua mãe, a maravilhosa Senhora da Ilha Encantada que lhe ensinara a magia de cultivar ervas e a aplicar os seus conhecimentos
de curandeira na cura de pessoas e dos mais simples animais da Terra. Do seu pai, corajoso e elegante, que tantas vezes a levara a passear pelos riquíssimos reinos
da imaginação, a procurar unicórnios na floresta. Das suas irmãs; Ariane, solene e bondosa, que fora para ela como uma segunda mãe; Gabrielle, brincalhona e impulsiva,
com quem Miri tanto discutira, mas que Miri sabia poder contar como a sua mais feroz protetora.
Enquanto apertava a mão de Simon, apercebeu-se subitamente de como era perigosa esta partilha de memórias que só aprofundava os seus sentimentos por ele e forjava
laços mais fortes do que o simples desejo. Ainda assim, desde há muito tempo que não sentia tamanha paz interior.
As pestanas começaram a ficar-lhe cada vez mais pesadas. Sentiu-se adormecer, ainda de mão dada com ele. Mas foi uma paz que só durou até ser arrastada para o mundo
sombrio dos seus sonhos...
As salamandras rastejavam pelos muros do palácio. Miri evitava-as enquanto batia fortemente aporta do castelo, procurando freneticamente que a deixassem entrar.
Quando fez uma pausa para respirar, ouviu vozes que pareciam vir a flutuar de muito longe, atra vés
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da vasta extensão verde de relva. Miri cambaleou nessa direção, correndo ao longo dos caminhos do jardim que se inclinavam para um rio de espuma. O caminho à sua
frente estava barrado por estátuas. Não, não eram estátuas, apercebeu-se com o coração a bater, mas sim as ameaçadoras figuras das peças de xadrez que se elevavam
sobre ela.
Mas havia algo de estranho nelas, o que de algum modo era ainda mais perturbador. Miri gelou ao ver que não havia rainha branca, mas apenas duas rainhas negras e
com o infeliz cavaleiro branco preso entre ambas.
Os peões resmungavam preparando-se para atacar, tal como já antes haviam feito. Miri procurou lançar um aviso, mas a sua voz saiu-lhe como um murmúrio rouco. Um
peão avançou, mais pequeno do que os demais, não empunhava uma maça mas sim um livro. Quando o peão abriu o livro, espalhou uma névoa verde sinistra que envolveu
o cavaleiro branco.
O cavaleiro inspirou-a e caiu no chão, indefeso, enquanto os outros peões atacavam, esmagando-o. Miri correu em sua ajuda, mas como sempre já era tarde de mais.
A carapaça de pedra caíra, revelando um homem ferido a sangrar.
Quando Miri lhe afastou o cabelo para trás, ao retirar os dedos estes vinham escuros e pegajosos. Mas desta vez ela podia ver a face do homem claramente, com o sangue
a escorrer como um rio escuro sobre o seu rosto cicatrizado.
- Simon - gemeu.
- Miri!
Sentiu as mãos fortes dele a agarrarem-lhe os ombros. Embora lutasse desesperadamente para se libertar, tanto as mãos como a voz eram insistentes, puxando-a para
fora das redes sombrias do seu sonho.
- Miri, acorda!
Quando abriu os olhos, espantada, gritou, sem saber onde estava até ver a sombra do homem que pairava junto a si.
- S... Simon. - O seu pesadelo permanecia ainda tão forte, tão vivo na sua mente, que se ergueu repentinamente e lhe passou os dedos freneticamente pela fronte,
pelas faces e pela barba. Não encontrando nenhum vestígio de sangue, nenhuma ferida aberta, pareceu despertar completamente com um soluço de alívio.
Simon segurou-lhe os dedos trémulos, apertando-os suavemente.
- Miri, o que se passa? Tiveste um pesadelo-?
Sim - suspirou ela.
- Então, vem para aqui. - Puxou-a para os seus braços, embalando-lhe a cabeça contra o ombro. Afagando-lhe o cabelo, murmurou: - Chiu... Agora estás acordada e eu
estou aqui. Não foi nada. Foi só um pesadelo.
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Miri aconchegou-se a ele, tranquilizada pelas suas carícias, pelo tom grave da sua voz. Mas as lágrimas ainda lhe corriam pelas faces quando nervosamente dizia:
- Não, tu... tu não entendes. Eu... eu tenho pesadelos como este desde que era pequenina. Sonhos estranhos que se prolongam uma vez e outra até... até serem verdade.
A mão de Simon imobilizou-se no cabelo de Miri. - Queres dizer como uma... profecia?
- Sim.
Miri podia sentir o seu cenho carregado e sabia que o caçador de bruxas que existia nele desconfiava de tudo o que eram visões ou a arte proibida de adivinhar o
futuro. Mas ele voltou a afagar-lhe o cabelo e com voz meiga disse: - Está bem. Conta-me este último.
Ela engoliu em seco e com um suspiro assustado descreveu-lhe o sonho em frases soltas, o palácio com lagartos rastejantes, gigantescas peças de xadrez, o destroçado
cavaleiro branco.
- E depois... depois apercebi-me de que não era uma peça de xadrez, mas sim tu. E tu estavas ferido e a sangrar - concluiu com um suspiro.
Simon ficou silencioso durante um longo momento, como se não soubesse exatamente o que responder. Acabou por lhe dar uma suave palmada no ombro e dizer: - Muito
bem, prometo ficar longe de salamandras e nunca mais voltar a jogar xadrez.
Embora a sua voz soasse solene, Miri podia dizer que ele estava a gracejar com ela, a fazer o melhor que podia para afugentar os seus medos. Ela podia perceber perfeitamente
o quão louco tudo isto lhe podia parecer, mas ainda assim estava completamente frustrada.
Batendo-lhe com a mão na face, recuou, esforçando-se por olhá-lo fixamente através da escuridão. - Isto não é uma brincadeira, Simon. Tens que levar isto a sério.
Sei que parece incrível, uma tolice confusa, mas de início os meus sonhos nunca são claros. As coisas que acontecem são... são máscaras, símbolos de acontecimentos
que só compreendo quando é tarde de mais. - Os lábios estremeceram-lhe. - E os meus pesadelos acabam sempre por ser verdade. O pior que tive foi há alguns anos.
Eu... eu sonhava repetidamente sobre o massacre do dia de São Bartolomeu. Todos aqueles inocentes chacinados. Nem sequer consigo começar por dizer como foi medonho.
- Não precisas de o fazer - disse Simon. - Eu estava em Paris com o meu mestre, lembras-te?
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Miri recordou-se, mas era algo em que sempre tivera receio de pensar, imaginando as coisas terríveis que Simon poderia ter feito sob as ordens de le Vis. Olhou-o
fixamente, à espera de conseguir ver o seu rosto.
- Então, tu saíste naquela noite com le Vis para... para...
- Não.
A resposta de Simon foi repentina, mas encheu-a de alívio. Voltou a aninhar-se nos seus braços enquanto ele continuava: - O mestre le Vis podia provar que eu não
estava encarregado de... de... aplicar a justiça divina sobre os heréticos, como ele lhes chamava. Ele proibiu-me de abandonar a casa, mas, mesmo lá bem no fundo
das caves, eu podia ouvir os gritos das mulheres e das crianças.
"Que Deus me perdoe, Miri, não fiz nada para as ajudar. Era como se lá fora houvesse naquela noite uma loucura à solta, uma espécie de infeção contagiosa que me
ameaçasse. Nunca senti tanto medo, nem tanta cólera e tanto ódio.
- Isso foi obra da Rainha das Trevas - assegurou-lhe Miri, procurando tranquilizá-lo. - Ela lançou um miasma no ar.
- O quê?
- É uma das mais perigosas poções. Quando a inspiramos, turva-nos a razão e potencia todos os nossos sentimentos mais sombrios.
- Mas será verdadeiramente possível uma coisa assim? Seria reconfortante acreditar que a bruxaria seria responsável pelos horrores daquela noite, mas há nos homens
uma violência que precisa de algum encorajamento. Eu... senti-me quase insano com uma fúria mal contida. Na verdade, tinha o meu punhal na mão, estava pronto para
me precipitar nas ruas e... e... tive que lutar fortemente para conter os meus impulsos. Arremessei o punhal para longe e caí sobre os joelhos a vomitar. Era tão
fraco quanto o mestre le Vis me acusava de ser.
- Não, não eras! - Miri aproximou-se para lhe afagar a face. - Os homens feitos são incapazes de resistir ao poder de um miasma; porém, tu conseguiste e não passavas
de um confuso jovem de quinze anos. Já pensaste como é notável... - Miri interrompeu-se, paralisada por uma constatação assustadora. - Simon, acho que sei qual é
o significado do meu sonho. Ou pelo menos parte dele. As duas rainhas negras. Elas são a Rosa de Prata e Catarina e tu de alguma forma vais ser apanhado no meio
de ambas. E uma delas irá libertar algo... talvez um miasma para te fazer mal.
- Bem, de acordo contigo, já sobrevivi uma vez...
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- Mas desta vez tenho tanto medo de que não sobrevivas.
- Espero que estejas enganada, mas mesmo que assim não seja... Miri, não posso desistir de perseguir a Rosa de Prata só porque tu tiveste um pesadelo.
- Bem sei - respondeu-lhe, agarrando-se a ele. - Oh, Simon, começo a duvidar se alguma vez conseguiremos derrotar essas bruxas. - Engoliu em seco, dando finalmente
voz ao medo que desde há dias procurava ignorar. - Perdemos todos os vestígios de Carole e daquelas malvadas mulheres que a levaram, não é assim?
Simon suspirou, roçando-lhe os lábios no alto da cabeça. - Assim receio - disse calmamente. - É por isso que tenho estado a pensar que precisamos de fazer outra
abordagem, procurar provas noutro lugar. Mas para o fazer preciso... de te levar para casa.
- Não! Já te disse antes. Não regressarei à ilha Encantada.
- Não quis dizer a tua casa, Miri - hesitou e depois surpreendeu-a ao acrescentar rispidamente: - Estava a falar da minha.
A Rosa de Prata arrastou-se pelas escadas até ao seu quarto de dormir, dispensando as aias num aceno cansado da sua pequena mão. A fita que usava ameaçava escorregar-lhe
de novo sobre as orelhas e ela empurrou-a para trás, impaciente. Os seus frágeis ombros suportavam o peso do manto e o grosso traje de veludo que a abafava com o
calor do verão. O vestido, ensopado pela transpiração, colava-se à sua frágil silhueta.
Megera sentia-se exausta após mais uma audiência com as mulheres que se reuniam diariamente no átrio da velha casa, para se extasiarem perante ela em reverência,
para proclamarem a sua obediência ao trono, para ansiosamente procurarem ser merecedoras dos seus favores. A sua corte, como a mamã persistia em chamar-lhes.
Não, a mamã não, Meg procurava recordar-se. Devia referir-se a Cassandra Lascelles como a senhora, tal como todas faziam. A mamã ficava bastante vexada quando ela
o esquecia. com um pequeno arrepio, Meg apalpou com os dedos o medalhão que lhe pendia do pescoço. Se havia coisa que a jovem aprendera desde tenra idade fora que
não era bom vexar a sua mãe.
Escapou-se para o interior do seu quarto e fechou a porta, encostando-se a ela com um pequeno suspiro, aliviada por conseguir afastar todas as suas extremosas seguidoras,
mesmo que fosse só por pouco tempo. Livrar-se de todas aquelas mãos suplicantes que se estendiam para ela, aqueles olhos esperançosos, aqueles rostos expectantes
que a mordiscavam como pequenos ratos famintos e inundavam os seus ouvidos com as suas súplicas.
"Grande rainha, por favor devolve-me a juventude... cura a minha perna aleijada... amaldiçoa o homem que me roubou a inocência."
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Ou os pedidos que Meg mais abominava entre todos... "Oh, poderosíssima Rosa de Prata, perdi a minha irmã... a minha mãe... a minha filha. Poderás trazer-ma de volta
à vida como fizeste com a pequena Lysette naquele dia em que ela caiu no lago e se afogou?"
Meg queria gritar para todas. Lysette esteve quase afogada. A garota só parecia ter parado de respirar. Não estaria realmente morta ou então Meg nunca teria sido
capaz de a reanimar com o Beijo da Vida, uma magia curadora que aprendera com uma velha ama.
Mas a mamã proibira-a rigorosamente de falar nisso.
"Deixa-as pensar que conseguiste ressuscitar a pequena. Só vai reforçar a tua reputação como grande feiticeira."
"Mas... mas é uma mentira", gaguejou Meg. "Eu não tenho tal poder."
"Podias ter, minha tonta. Se te esforçasses e aplicasses."
Meg não tinha a certeza do que a assustava mais. Se a perspetiva de que nunca seria capaz de cumprir todas as sombrias promessas que era obrigada a fazer ou se algum
dia o seria...
Puxou o fecho que apertava o seu manto e soltou um suspiro de alívio quando as pesadas pregas lhe caíram dos ombros. Queria dar um pontapé no mais do que odiado
traje para um canto, mas sabia que seria severamente repreendida por não cuidar devidamente do seu "traje oficial".
com relutância apanhou o manto e pendurou-o num cabide montado na parede. Seguidamente retirou a coroa de prata. Os seus dedos moveram-se na direção do medalhão
suspenso ao pescoço. A corrente entrançada irritava-lhe a pele junto às clavículas numa mancha vermelha provocada pela transpiração.
Meg queria tirar o medalhão, mas sabia que não se atreveria. Encolheu-se, pensando nas dolorosas consequências que poderia sofrer se o tentasse. Não, de maneira
alguma se atreveria a isso.
com tristeza, observou-se no pequeno espelho que se encontrava sobre o jarro e o lavatório. Já sem a coroa e o manto, a Rosa de Prata desvanecera-se e agora só restava
Meg. Aquele pensamento era a única satisfação que lhe restava. Olhou atentamente as suas feições angulares e vivas, o seu cabelo castanho escorrido, e franziu o
nariz desagradada antes de voltar costas ao espelho.
Sentia-se cansada e abatida pelo calor, atirou com os sapatos e lançou-se sobre a enorme cama que dominava o quarto. Talhada em pesado carvalho e coberta por uma
colcha azul e damasco bordada com rosas de prata, era uma cama digna de rainha, ou pelo menos assim dizia a sua mãe.
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Meg odiava ainda mais a cama do que o seu manto e a coroa. Não era assim tão mau dormitar sobre ela a meio da tarde, mas quando estava só à noite, no escuro, sentia-se
frequentemente como se a grande cama a fosse engolir como uma boca gigante no momento em que fechasse os olhos.
Era uma fantasia infantil de uma criança de nove anos. Meg sabia-o, mas não podia evitar. com o coração a cavalgar com medo, apertava fortemente a almofada junto
ao peito e consolava-se com algumas lágrimas onde ninguém a podia ver ou criticar pela sua fraqueza.
Chorava e pensava saudosamente nos seus tempos em Inglaterra antes de ela e a mamã terem regressado a França. Fora apenas há três anos, mas Meg recordava-se perfeitamente
da pequena casa junto ao mar em Dover e da sua ama, que cuidara dela desde as suas primeiras horas de vida. Uma mulher roliça e genialmente sensata que se chamava
Prudence Waters, mas para Meg sempre fora a sua muito amada Nourice.
Naquela altura, Meg nunca tivera medo da escuridão, não enquanto estava deitada no seu pequeno berço com os braços de Nourice à sua volta, embalada no seu sono pelo
murmúrio do mar. Nourice sempre lhe chamara a sua pequena Meggie, algo que enfurecia a mamã.
"O nome dela é Megera", gritava a mãe. Tudo o que a inglesa fez foi encolher os ombros. Nourice fora uma das poucas pessoas que nunca pareceram ter medo de Cassandra.
Mas devia ter tido, pensou Meg enquanto fitava o teto entalhado da sua cama. Sentiu um nó na garganta quando recordou o dia de primavera em que Finette, uma amiga
da sua mãe, a levara a passear na praia para apanhar conchas. Meg correra à frente, ansiosa por regressar a casa e mostrar a Nourice a estrela-do-mar que encontrara.
Mas não haveria uma mulher risonha à sua espera, para se espantar deliciada com os pequenos tesouros que descobrira e sacudir o sal e a areia do seu cabelo, lavar-lhe
as mãos e o rosto e aprontá-la para a ceia. Não conseguia encontrar Nourice; não estava na cozinha, nem no jardim, e a explicação da sua mãe fora: "Megera, já és
muito crescida para continuar a ter uma ama. Ela ensinou-te tudo o que sabia. Enviei a senhora Waters de volta para a sua família."
Meg fora proibida de chorar ou de fazer mais perguntas. Na verdade também não o desejava, havia algo de cruel na boca da sua mãe que a assustava. Engolira o seu
desgosto, aprendera a aceitar o facto de que Nourice desaparecera da sua vida. Tal como Cérbero, o notável e velho cão que desde há tanto tempo era os olhos da mãe.
236
Levantando a mão, Meg observou a pálida cicatriz nas costas do braço onde Cérbero lhe mordera, naquele verão em que fez cinco anos. Fora um dia tórrido como este
e Meg tinha a certeza de que Cérbero nunca tivera intenção de lhe morder. O pobre e velho mastim estava a passar imensos tormentos com o calor, como todos, e não
queria ser afagado pelas mãos transpiradas de uma menina.
Mas a mamã colocou-lhe a trela. Ela e Finette levaram-no até à praia e algumas horas depois regressaram sem o Cérbero e a mamã disse sucintamente: "Livrei-me dele."
"Mas porquê, mamã-", perguntara Meg, atónita e aterrorizada. A sua mãe amava aquele cão mais do que tudo e do que todos no mundo, especialmente Meg.
Cassandra respondera friamente: "Por tua causa. Nada deve ameaçar a minha Rosa de Prata."
Não a minha menina ou a minha única filha, mas a Rosa de Prata, refletiu Meg com tristeza. A lenda na qual a mamã tinha depositado todos os seus sonhos, tanto que
se dispusera a sacrificar o seu querido Cérbero. Mas culpara Meg por isso. Por muito jovem que fosse, Meg fora capaz de o sentir.
Meg arrepiou-se ao pensar o quanto quisera avisar a nova jovem de que ela própria a autorizara a juntar-se à assembleia. Naquela noite, quando Carole Moreau se ajoelhara
perante ela, aguardando o seu veredicto, Meg olhara-a profundamente nos olhos.
Meg era excelente na velha arte mágica de ler os olhos. Nourice ensinara-a bem e Meg tinha um dom natural para o fazer, embora muitas vezes não gostasse de usar
essa sua capacidade. Olhe-se demasiado profundamente os olhos de alguém e pode acabar-se por tropeçar em pensamentos ou segredos sombrios que seria preferível não
querer conhecer.
Mas enquanto estudara Carole, Meg apercebera-se imediatamente de que Carole era diferente das outras mulheres furiosas e azedas no grande átrio. Carole estava triste,
confusa e assustada, tanto como a própria Meg, que sentira uma imediata afinidade com a rapariga mais velha. Carole queria apenas ir para casa, regressar à ilha
Encantada, e Meg desejou poder deixá-la partir. Mas a mamã nunca o permitiria. A única maneira de ajudar a rapariga e mantê-la segura era declará-la como apta para
se tornar membro da sua irmandade.
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Mas enquanto Carole lhe prestava preito, beijando-lhe a mão, Meg desejou inclinar-se e segredar-lhe ao ouvido: "Deves ter cuidado. Nunca irrites ou desagrades a
minha mãe. Viajar-te-á desaparecer."
Às vezes, Meg imaginava se fora isso que acontecera ao seu pai. Nunca o conhecera, nem nunca supusera que uma criança devia ter um pai até ao dia em que viu um menino
pescador na praia e o pai a ensiná-lo a consertar as redes.
Meg fora imediatamente para casa e quisera saber onde estava o papá, uma pergunta que repetiu muitas vezes. Quando estava com disposição mais tranquila, Cassandra
Lascelles contava histórias sobre o pai de Meg ser um mercenário, um homem que navegava pelo mundo exercendo o seu destemido comércio, um feroz guerreiro, tão feroz
que era conhecido como Flagelo.
Noutras alturas, nos momentos sombrios como Meg lhes chamava, quando a mamã já tinha bebido uísque em excesso, rosnava para Meg e dizia-lhe que ela era a semente
do Diabo. Meg achava ambas as respostas igualmente desencorajadoras e, após algum tempo, desistira de perguntar e aprendera, em vez disso, a tecer os seus sonhos.
Assim, decidira que na realidade o seu pai fora um rei. Um homem elegante, alto e corajoso com cabelo negro e olhos cintilantes, que ria, a levantava no ar e dançava
com ela, chamando-lhe a soa petite princesse. Meg tinha sido raptada do seu berço no palácio e levada para longe.
Mas o pai andava à sua procura. Um dia ele chegaria num grande cavalo branco e levaria Meg pelos mares até ao seu reino. Havia apenas um problema com as suas fantasias
e que era quando se imaginava montada na sela à frente deste homem magnífico... como uma espécie de pequena e feia rapariga. Por isso, nos seus sonhos, ela também
se transformava numa bela princesa com caracóis dourados e olhos azuis.
Nada disto poderia vir a ser verdade. Ela já tinha idade para o saber, mas não se importava. Há muito que descobrira que viver num castelo no ar com o papá que nos
adora é melhor do que o mundo real com a casa cheia de mulheres amargas com esperanças alarmantes e uma mãe que nos despreza por sermos fracos.
Acalmada pelos seus pensamentos, Meg enroscou-se de lado na cama, afundou o nariz na almofada e adormeceu. Foi acordada cedo de mais por uma rude mão que lhe abanou
o ombro.
- Megera! Acorda, preguiçosa.
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Os olhos de Meg abriram-se, espantados. O sol tinha desaparecido e o quarto estava envolvido em sombras. Olhou de soslaio através da penumbra, fitando a mulher que
a acordara. Não precisava de a ver nitidamente para saber quem era. Conhecia bem demais a voz estridente e o odor ácido de Finette.
Contorcendo-se para se esquivar das mãos de Finette, Meg bocejou e esfregou os olhos ainda ensonados.
- Mas que diabo pensas que estás a fazer, rapariga? - admoestou Finette. - A preguiçar na cama a meio do dia.
- Não sei - murmurou Meg. Além de Cassandra Lascelles, Finette era a única mulher da assembleia que se atrevia a falar-lhe rudemente e com tão pouco respeito. Talvez
por ser a serva mais velha e digna de confiança de Cassandra. Isto é, tanto quanto era possível a mãe confiar em alguém.
Meg nunca gostara dela. Ao contrário da bondosa e meiga Nourice, Finette era toda ela duramente angulosa, desde o seu rosto azedo e olhos manhosos ao seu peito raso
e às suas ancas ossudas. E por muito bonita que fosse a roupa que vestisse, Finette parecia sempre uma vadia porque nunca se lavava. Tinha a pele incrustada com
camadas de sujidade, o cabelo fibroso emaranhado e nojento, cheirava a uma mescla acre de suor, sujidade e urina.
Debruçando-se sobre Meg, com os ombros curvados, Finette escarnecia: - Então, tem vossa alteza a mínima ideia de que horas são?
Resistindo ao impulso de lhe puxar pelo nariz, Meg atirou-se para o outro lado da cama. Olhou para a janela e ficou desanimada ao ver que o Sol se pusera há pouco.
Não fazia ideia de que tinha dormido tanto.
- Oh, não - lamentou-se.
- Oh, não - troçou Finette. - A senhora espera-te há muito. Há horas que devias estar nos teus estudos.
Meg encolheu-se interiormente à menção da sua mãe, mas não queria dar a Finette qualquer satisfação mostrando-o. Saltando da cama, Meg procurou rapidamente os sapatos
enquanto Finette rezingava com ela.
- És uma pirralha tão egoísta. Já pensaste quantas mulheres arriscaram a vida e desistiram de tudo para te seguirem? Todas confiam em ti para decifrares o Livro
das Sombras e dominares aqueles feitiços.
Meg baixou a cabeça, deixando o cabelo cair para ocultar a sua expressão de medo e horror. Odiava aquele livro, desejava poder lançá-lo ao fogo, mas era uma coisa
com tanto mal que duvidava se ele chegaria sequer a arder.
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Há muito, Nourice ensinara a Meg os rudimentos da leitura de ninas1 e símbolos misteriosos, elogiando, encantada, os rápidos progressos de Meg.
"Que maravilha que tu és, minha pequena boneca. Teres aprendido tão depressa e seres tão novinha. Conheci mulheres adultas que nunca foram capazes de dominar a língua
antiga, mas tu tens um dom para isso. Faço votos para que um dia ultrapasses até a tua ama. Tenho tanto orgulho em ti, minha querida."
Na altura, Meg ruborizara, deliciada com o elogio de Nourice, mas agora a recordação entristecia-a. Nourice já não teria orgulho nela; não se soubesse como Meg usava
as aptidões que lhe tinham sido ensinadas.
Era muito dotada a decifrar os antigos símbolos, mas ainda assim o Livro das Sombras era muito difícil de ler. Quanto mais conseguia decifrar aquelas enigmáticas
páginas, mais aterrorizada ficava. Até os mais inocentes feitiços saíam maléficos. O pó para preservar a vida das rosas transformava-as num veneno mortal. A agulha
mágica que podia infiltrar remédios curativos no sangue das pessoas tornara-se uma arma terrível. Pelo menos nas mãos da sua mãe.
Por vezes, Meg inquietava-se sobre se o mal estaria no livro ou em Cassandra. Mas era um pensamento demasiado medonho para uma jovem alimentar sobre a sua mãe. Meg
afastou-o enquanto acabava de se calçar.
Finette elevou-se sobre ela, batendo o pé: - Então, o que é que vais traduzir hoje?
- Não sei. Farei aquilo que a mamã, quero dizer, a senhora me disser - respondeu Meg rispidamente.
- É bom que te lembres que fui eu que consegui o livro, ao roubá-lo debaixo dos narizes do caçador de bruxas e da Rainha das Trevas - gabou-se Finette. - E não foi
com poucos riscos para mim. Eu...
- Sim, sim - interrompeu Meg com um longo e sofrido suspiro. Já ouvira pelo menos um milhão de vezes a história de como Finette enganara o espião da Rainha das Trevas
e roubara o livro. E o mesmo se passava com todas as outras.
Gritou quando a mão de Finette lhe apertou fortemente o braço.
- Lembra-te apenas daquilo que me é devido, é tudo. Espero há muito mais tempo do que todas as outras mulheres a recompensa pelos meus serviços. Quero que me descubras
uma poção que me torne bela e desejável.
1. Nome dos carateres dos antigos alfabetos germânicos e escandinavos. (N. do T.)
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Meg fez uma careta. Não havia no mundo feitiço suficientemente poderoso para conseguir aquilo. Sentiu-se tentada a sugerir que havia uma magia que Finette poderia
tentar. Chamava-se água quente e sabão perfumado. Mas foi suficientemente sensata para manter o pensamento para si. Afastando-se de Finette, saiu do quarto numa
pose digna, com o seu pequeno queixo projetado no ar.
O quarto ocupado por Cassandra Lascelles estava situado no ponto mais alto da casa. As designadas para assistir a senhora aproximavam-se frequentemente do quarto
com pavor, incluindo a sua própria filha. Mesmo durante a altura mais brilhante do dia, a torre norte parecia triste e sinistra, um lugar de sombras e segredos.
com as palmas das mãos húmidas da transpiração, Meg subiu a escada de caracol. Imaginava como a mãe estaria zangada devido ao seu atraso. Rezou para que ela não
tivesse estado a beber. O temperamento de Cassandra era muito pior quando o demónio se libertava da garrafa de uísque e lhe invadia o coração.
Meg apertou o seu medalhão e engoliu em seco, o amuleto parecia um nó à espera de ser apertado. Mas só estava a piorar as coisas ao adiá-las. O crepúsculo descera
sobre o patamar, deixando-o escuro como breu, mas conseguia ver a luz sob a frincha da porta do quarto da sua mãe.
Meg respirou fundo e bateu à porta: - M... mamã... digo, senhora?
Não obteve resposta. Talvez tivesse sido tão tímida que a mãe a não tivesse ouvido, mas era pouco provável. Embora a mamã não pudesse ver, os seus outros sentidos
eram extremamente apurados, especialmente a audição.
Meg arriscou bater de novo, um pouco mais forte. Quando o silêncio se prolongou, bateu várias vezes. Quando a mamã bebia demasiado uísque, ficava tão indisposta
que caía num alarmante sono profundo do qual Meg não a conseguia despertar.
Receando pela mãe e suplantando as suas outras apreensões, Meg deu a volta à maçaneta e abriu um pouco a porta, o suficiente para quase poder entrar. As mobílias
do quarto da torre eram escassas, uma cama estreita, uma cadeira, uma mesa, o aparador onde a mãe mantinha as suas ervas secas necessárias para preparar poções e
o pequeno cofre trancado que continha o maldito Livro. Nunca nenhuma das coisas da mamã podia ser tocada ou movida para que ela não tropeçasse ou não fosse capaz
de en contrar o que queria.
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Meg aprendera há muito que isso deixava Cassandra realmente furiosa.
- Senhora - - Atreveu-se a abrir a porta um pouco mais até conseguir ver a sua mãe perto da lareira vazia do quarto. Meg gelou, afogando um grito de pavor ao deparar-se
com o que viu, muito pior do que Cassandra Lascelles a servir-se da sua garrafa ou a bater com o bastão, irritada...
A mamã estava de novo a fazer magia...
Cassandra estava dobrada sobre uma tina de cobre colocada no centro da mesa, murmurando um feitiço por entre a sua respiração. Um par de velas negras ardia com uma
chama branca e quente, lançando um estranho halo sobre as suas feições ósseas. Sacudiu a espessa cabeleira negra raiada de prata enquanto ondulava a mão sobre a
tina.
A mãe de Meg era uma mulher assustadora, mas ficava ainda mais assustadora quando se balançava, mergulhando profundamente no seu transe. Parecia ficar mais alta,
mais forte, com a sua sombra a prolongar-se pela parede. Os seus olhos, normalmente tão escuros, ainda ardiam com um fogo interior enquanto os fixava na tina. Só
era cega no reino dos vivos. Quando rompia o véu e penetrava no submundo, Cassandra podia ver.
Meg retrocedeu, tremendo. Quantas e quantas vezes Nourice a avisara contra a necromancia, a prática proibida de invocar os mortos.
"É magia da pior espécie, minha querida. Não só é errado perturbar a paz das almas que partiram, por muito que as amemos e sintamos a sua falta, como a necromancia
pode ser muito perigosa. De cada vez que alguém perturba o reino dos mortos, arrisca libertar espíritos maus e vingativos que procuram uma reentrada no nosso mundo."
Enquanto a mãe murmurava sobre a tina de cobre, Meg queria entrar no quarto e impedi-la. Agarrar-se às suas saias e suplicar-lhe: - Não, mamã. Por favor, não.
Mas a mamã não só jamais a escutaria como poderia até forçar Meg a participar. Já o tentara por diversas vezes antes de lhe ensinar a arte mági ca, sempre sem sucesso.
"Claramente não tens dom para a necromancia", queixara-se a mãe perante o fracasso de Meg. És demasiado estúpida para aprender."
Meg sabia que não era. Simplesmente não queria aprender aquela arte negra.
Quando uma terrível neblina começou a sair da tina, Meg agachou-se e só queria não olhar e fechar a porta. Mas continuou a observar com uma espécie de fascínio horrorizado
enquanto a mãe invocava em voz alta.
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- Nostradamus! Escutai-me, mestre. Convoco o vosso espírito no reino dos mortos. Vinde até mim. Quero falar-vos sobre o futuro.
A água fervente na tina ameaçava transbordar, emitindo um furioso sopro de vapor. Uma voz profunda ressoou desde o fundo da tina, causando um arrepio frio no corpo
de Meg.
"O que é agora, feiticeira? Porque voltas a perturbar a minha paz com as tuas infindáveis questões sobre o tempo futuro? Respondi repetidamente às tuas perguntas.
Que mais te posso dizer?"
Meg estremeceu. Tinham-lhe dito que Michel Nostradamus tinha sido um sábio doutor e profeta quando ainda andava na Terra, aconselhando e ajudando muita gente. O
seu espírito estava usualmente furioso sempre que a mamã o invocava, embora desta vez o fantasma soasse mais exausto do que enfurecido.
Era a mamã que estava furiosa enquanto vilipendiava: - O que me podeis dizer? Que tal por uma vez a verdade em vez de todas as falsidades e evasivas sem fim?
"Quais falsidades? Quando é que alguma vez te menti?"
- Dissestes-me que um dia haveria uma revolução em França, que os reis seriam varridos do trono. Haveis previsto que haveria um tempo em que as mulheres deixariam
de ser subservientes aos homens e haveis profetizado que Megera estava destinada a essa grandeza.
Meg encolheu-se à menção do seu nome. Era assustador escutar um espírito falar sobre ela, mesmo quando Nostradamus concordava com a mãe.
"A criança a quem chamas Megera está destinada a ser uma mulher poderosa. Tudo isso eu profetizei e acontecerá."
- Quando? Vejo poucos sinais de que alguma das coisas venha a ser verdade, embora eu tenha dado o meu melhor para fazer com que acontecessem. Dificilmente estarei
mais próxima de colocar a minha filha no trono de França do que aquilo que estava há anos. Vós... vós haveis-me iludido.
"Foste tu que te iludiste a ti própria, bruxa", respondeu a voz sepulcral. "Eu nunca disse nada quanto a Megera reinar em França. Foste tu que pegaste em todos estes
acontecimentos isolados de que falei e os teceste de acordo com o teu louco padrão."
- Porque me haveis enganado e levado a acreditar. - Cassandra cerrou os punhos e mostrou os dentes. - Não quero mais as vossas evasivas ou profecias vagas. Dizei-me
de uma vez por todas, o que queríeis dizer quando me dissestes que a minha filha iria deter grande poder? Virá ela a ser rainha ou não?
243
"O destino de Megera depende de..."
A voz desvaneceu-se num suspiro. O coração de Meg batia ansiosamente. Quem? De quem dependia o destino dela? Pressionou o rosto contra a abertura da porta, esforçando-se
por conseguir ouvir.
A mãe debruçou-se mais sobre a tina. - Não! Mestre. Não vos atrevais a desaparecer antes de me assegurardes que...
Fitou a água fumegante com o cenho profundamente franzido.
- Quem... quem é que se esconde aí? Quem vem lá? Eu invoquei o mestre Nostradamus, não a vós. Voltai. Voltai, digo, e... - Cassandra interrompeu-se, afastando-se
da tina num grito inquieto. - Mãe, és tu? Não, não! - Agitou freneticamente as mãos como se estivesse a defender-se de uma agressão.
"Dente de serpente. Bruxa pérfida." A voz furiosa de uma mulher fez-se ouvir, tão estridente para Meg que esta teve de tapar os ouvidos com as mãos. "Tu traíste-me
e também às tuas irmãs..."
- Não. Não o fiz - guinchou Cassandra, afastando-se, cambaleando, da mesa. - Deixa-me sozinha.
O fumo entrou em rodopio, assumindo uma forma mais escura e ameaçadora. Para horror de Meg, pareceu-lhe ver uma mão esquelética erguer-se da névoa, como uma garra,
sobre a mãe. Quando Cassandra gritou, Meg tapou os olhos, demasiado aterrorizada para olhar.
Ouviu uma pancada e depois um grande estrépito e tomou consciência de que Cassandra devia ter derrubado a tina, lançando-a para fora da mesa. Seguiu-se um silêncio
medonho, só interrompido pela respiração de Cassandra. Ou era ela mesma?
Quando finalmente Meg se atreveu a espreitar, nada restava da névoa a não ser um persistente fio de fumo. A tina entornara-se, espalhando água pelo chão. A mãe estava
de cócoras junto à mesa e as lágrimas caíam-lhe em cascata pelas faces.
Meg mordeu o lábio, sentindo o peito fortemente apertado. Só uma vez tinha visto a sua temível mãe gritar, na noite em que Cérbero desaparecera. A mãe sentara-se,
enrolando a trela do cão nas mãos, chorando como se o coração estivesse prestes a rebentar-lhe. Meg apressara-se a envolvê-la com os seus braços, procurando desculpar-se,
com os seus próprios soluços, para dizer o quanto lamentava ver a mãe obrigada a ver-se livre do cão. Quisera apenas confortar a sua mãe, mas Cassandra empurrara-a
brutalmente com o rosto cheio de ódio.
244
Que seria exatamente o que a sua mãe faria se agora se atrevesse a aproximar-se dela. Cassandra encarava as lágrimas como uma fraqueza e Meg sentia que ela não gostava
de aparentar fraqueza à frente de ninguém, muito menos dela. Qualquer tentativa para consolar a mamã só contribuiria para que ela a desprezasse ainda mais do que
antes.
Meg demorou-se na entrada da porta, perturbada pelas lágrimas da mãe, sem saber o que fazer. Enquanto procurava apoiar-se ora num pé, ora noutro, perdeu o equilíbrio
e acabou por chocar contra a porta, fazendo-a ranger.
Cassandra imobilizou-se, virando imediatamente a cabeça. Removeu as lágrimas do rosto, perguntando: - Quem é? Quem está aí?
Meg engoliu em seco, com a língua a colar-se ao céu da boca. Seria pura loucura não lhe responder. A sua mãe saberia que ela estava ali. Sabia sempre por causa dos
medalhões que usavam e que se combinavam entre si, amuletos que forjavam um elo inevitável e negro entre ambas e que permitiam a Cassandra adivinhar os paradeiros
recentes de Meg...
Nestes últimos meses, Meg aprendera a tornar-se invisível. Tudo o que tinha de fazer era imaginar que havia um tronco mágico nas profundezas do seu coração, depois
imaginar-se a trepá-lo, puxar o capuz e esconder-se. Ali, a mamã nunca conseguiria encontrá-la, nem mesmo com o seu olho negro interior.
Mas desta vez Meg não foi suficientemente rápida a reagir. Cassandra agarrou o seu medalhão, com os tentáculos da sua mente a estenderem-se, e a respiração acelerada
e o bater do coração de Meg denunciaram-na. Em pânico, procurou o seu tronco, mas era tarde de mais. A mãe gritou-lhe:
- Megera! Sei que estás aí. O que foi que já te disse sobre andares escondida a espiar? Vem cá.
Tremendo, Meg empurrou a porta até esta se abrir o suficiente para poder entrar no quarto. Agarrando-se à perna da mesa, Cassandra conseguiu pôr-se de pé. Apontou
imperativamente para o espaço diretamente à sua frente.
- Vem cá. Imediatamente.
Meg avançou lentamente, quase escorregando na poça de água entornada da tina. O recipiente de cobre escorregou no chão enquanto procurava apanhá-lo.
- Que som é esse? O que estás a fazer? - grunhiu a mãe.
- Estou só a apanhar a vossa tina, a arrumar...
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- Estou a educar-te para seres uma rainha ou uma criada de copa? Deixa isso com a Finette.
- Sim, senhora. - Meg pousou obedientemente a tina sobre a mesa. Aproximou-se um pouco mais até ficar ao alcance das mãos da mãe. A mãe agarrou-lhe os ombros, colocando-a
diretamente à sua frente. Meg podia sentir o gelo dos dedos da mãe através do tecido do seu vestido.
- O que estiveste a fazer toda a tarde? - perguntou Cassandra. Antes que Meg pudesse responder, a mãe inquiriu: - Andaste a perder mais tempo com aquela rapariga
Moreau?
- N... não.
- Finette disse-me que, desde que essa rapariga foi autorizada a juntar-se à nossa assembleia, sempre mostraste um interesse especial por ela.
Meg engoliu em seco. Gostava de Carole. A rapariga mais velha era o que de mais parecido tivera com uma amiga, desde que viera para Paris. Mas a mamã não iria gostar
de ouvir isso.
- Mademoiselle Moreau é... é um pouco tímida - retorquiu Meg.
- Estive apenas a tentar fazê-la sentir-se bem-vinda.
- Bem-vinda - A rapariga não é uma convidada desta casa. Ela está aqui para servir a nossa causa, para maior glória da Rosa de Prata e da nova era de poder para
as mulheres sábias. Os teus interesses, Megera.
Não, esses são os vossos interesses, mamã, não os meus. Meg rapidamente suprimiu os seus pensamentos. A mamã não conseguia ler nos olhos, mas, com o seu toque, podia
adivinhar os pensamentos e deles extrair segredos e memórias. Sentiu-se aliviada quando Cassandra a libertou da sua preensão gélida, embora Meg soubesse que não
se atreveria a desviar-se um centímetro do local onde a sua mãe a deixara. Procurou distrair o desagrado da mãe queixando-se de Finette.
- Finette é... é tão furtiva, senhora. Eu também devo ser a sua rainha, mas ela é muito rude comigo. E está sempre com queixas...
- Silêncio! É dever de Finette informar-me de quando te esqueces. Se queres que Finette te respeite como rainha, então tens de agir como uma, deixar de te comportar
de uma maneira tão familiar com os teus súbditos. Ouvi dizer que até autorizaste Carole Moreau a tratar-te por Meg.
Meg fitou o chão aos seus pés enquanto balbuciava: - Gosto mais do que de Megera. O meu nome é tão estranho.
- Megera foi uma deusa, uma das Erínias da mitologia grega. Mas de que valeu dar-te um nome tão magnífico se te comportas como uma plebeia?
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- N... não sei, mamã. Quero dizer, senhora. vou... vou tentar fazer melhor, prometo.
- Prometes sempre - expirou exasperada a mãe. - Porque é que nunca pareço capaz de te fazer compreender, Megera? Desde que nasceste, mesmo antes, foste designada
para ser grande. Foi profetizado que eu conceberia uma filha que seria muito poderosa.
"Mas não será um poder que te será dado por qualquer homem, mas sim conquistado através de uma revolução de mulheres sábias. Eu já te contei a lenda, minha pequena.
Era uma vez em que as Filhas da Terra não eram escravas dos homens e podiam praticar a sua magia sem medo de serem queimadas na fogueira por feitiçaria. Nostradamus
conseguiu ver um tempo no futuro em que as Filhas da Terra retomarão o seu lugar de direito, só que não consigo forçar o velho tonto a dizer-me quando. - Cassandra
abriu as mãos num gesto de impaciência. - Não tenho intenção de esperar que passem décadas até já estar morta e desaparecida. Estas mudanças vão suceder durante
a minha vida. As Filhas da Terra vão fazer cair tronos
e destituir os homens de todo o seu poder, começando aqui em França. Tu estás predestinada a liderar-nos para esta nova era de glória, Megera. Uma rainha entre rainhas,
a mais poderosa feiticeira que o mundo já conheceu.
Meg encolheu-se enquanto fitava a mãe. Odiava quando a mãe falava assim, ficava corada, com as feições contorcidas. Parecia e soava um pouco louca e Nourice também
pensava assim.
Meg franziu a testa, com uma memória a atormentá-la, algo que ela já quase esquecera, a discussão entre a mãe e Nourice na noite em que Prudence Waters desaparecera.
"Doces céus, Cassandra", exclamou Nourice. "Já é mau teres andado a praticar necromancia, mas tudo isto sobre profecias, revolução e colocar a Meggie no trono de
França... é completamente louco. com certeza que não acreditas em toda esta insensatez."
"Garanto-te que acredito", respondeu Cassandra friamente. "E tu ou me apoias nestes planos para a minha filha ou podes ir-te embora."
Nourice raramente aparentava severidade, mas fizera cara feia a Cassandra. "E deixar aquela pobre criança para ser varrida pelas tuas ambições insanas? Penso que
não, e mais, se persistires em perseguir esta estranha loucura, terei de informar a Senhora da Ilha Encantada."
"A Senhora da Ilha Encantada", troçou Cassandra. "já não é ninguém, agora que foi banida da sua ilha e forçada ao exílio."
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"Estásprofundamente enganada. Ariane Cheney ainda desperta bastante respeito entre as mulheres sábias decentes ao ponto de ser capaz de te deter. Quanto a Meggie,
retiro-a dos teus cuidados e levo-a para onde nunca a encontrarás..."
Meg enrugou a testa, esforçando-se por recordar. Teria a doce Nourice realmente ameaçado a mamã ou tudo isto seria imaginação sua? Tudo aquilo de que tinha a certeza
era que no dia seguinte Nourice desaparecera e a mamã obrigara-a a usar o medalhão.
- Megera! - A voz ríspida da mãe despertou Meg dos seus sonhos. - Estás a dar-me atenção?
- Sim, senhora.
- Então faz o favor de ter uma resposta. Aqui estou eu a falar-te sobre o teu grande futuro, sobre como me esforcei a trabalhar para ti. É graças a mim que agora
tens o considerável acompanhamento de mulheres sábias, prontas a matar e a morrer por ti. No entanto, não vejo sinal da tua gratidão.
- Obrigada, s... senhora. Mas... mas...
- Mas o quê?
Meg deixou cair a cabeça, sabendo que seria melhor travar a língua. Como poderia explicar à mãe que não queria ninguém a matar ou a morrer por ela? Quanto a magoava,
como se fosse um punho enorme a esmagar-lhe o coração, saber de todas as coisas malévolas que as suas seguidoras faziam em seu nome.
Disse em voz baixa: - Acho que há muita coisa que não compreendo. Especialmente quanto a esses inocentes bebés, esses pequeninos. Porque têm de morrer?
A mãe cerrou os lábios. - Quantas vezes também terei que te explicar isso? Os bebés masculinos não têm utilidade para a assembleia. Admito que abandoná-los possa
parecer-te cruel, mas tem sido feita a mesma coisa a bebés femininos desde há séculos.
- Mas qual é a justiça que há em tratar os meninos da mesma forma? - argumentou Meg. - Passam a ser duas coisas más em vez de uma. E se é isso que é preciso fazer
para eu ser rainha, não o quero ser.
Meg apercebeu-se imediatamente de que fora longe demais. A mão de Cassandra agarrou tão fortemente o medalhão que os nós dos dedos ficaram brancos. Meg conseguia
sentir a pulsação da sua mãe em fúria através do seu próprio amuleto, como uma faca quente e abrasadora a perfurar-lhe o coração.
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Agarrou-se ao peito e gritou, caindo de joelhos, quase atordoada pela dor: - Mamã, p... por favor, não.
- Que eu não volte a ouvir-te dizer semelhante coisa - guinchou Cassandra.
- Não volto, mamã. Senhora! Por favor... por favor, parai. - Meg soluçou, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
Cassandra largou o seu medalhão, deixando-o a balouçar à volta do pescoço. Meg sentiu o alívio da dor como se estivessem a retirar-lhe a faca do coração. Fraca e
trémula, arrojou-se aos pés da mãe.
Cassandra dobrou-se, aproximando-se dela, até a sua mão pousar sobre a cabeça de Meg. Passada a sua ira, parecia subitamente abatida e exausta.
- Oh, filha, porque me obrigas a castigar-te desta maneira?
Puxou Meg para os seus braços, apertando-a tanto que quase a deixou sem respiração. Mas estava tão faminta pelo mínimo vestígio de afeto da sua mãe que susteve as
lágrimas e suportou o doloroso abraço sem se queixar.
Cassandra recuou um pouco até tocar na cadeira. Afundou-se nela e depois fez algo que chocou Meg, algo que não se recordava de jamais ter visto a mãe fazer. Puxou
Meg para o seu colo e segurou-a junto a si.
Meg quase nem sabia como responder. Cautelosamente, repousou a cabeça sobre o ombro da mãe. Cassandra passou os dedos pelo rosto de Meg até lhe encontrar as lágrimas
e depois limpou-as bruscamente.
- Megera, tens tão pouca experiência sobre a dureza da vida. E culpa minha. Protegi-te demais e de muitas maneiras, como nunca fizeram comigo quando eu era criança.
Sabias que eu cresci aqui, nesta mesma casa?
- N... não.
- Cresci, mas, ao contrário de ti, não dormi em nenhum quarto bonito como uma princesa mimada. Passei grande parte dos anos confinada ao esconderijo sob a casa.
Meg levantou a cabeça para olhar a mãe com espanto. Quando se mudaram pela primeira vez para a casa, a mamã mostrara-lhe a passagem secreta atrás do armário do grande
átrio. Se alguma vez a assembleia fosse surpreendida por caçadores de bruxas ou pelos soldados da Rainha das Trevas, Meg devia fugir por aquelas escadas de pedra
e esconder-se, e só essa mera perspetiva fazia-a estremecer. A câmara inferior era escura e fria como uma masmorra, infestada por aranhas e uma ou outra ratazana.
- Vivestes naquela horrível sala oculta? Mas porquê, mamã?
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Por uma vez, a mãe não a repreendeu por não a tratar por senhora. O rosto de Cassandra estava ensombrado por memórias e, a julgar pela ruga na sua sobrancelha, não
eram agradáveis.
- Tive de me esconder dos caçadores de bruxas. Assaltaram esta casa, capturaram a minha mãe e as minhas três irmãs. Sabes o que os caçadores de bruxas fazem às feiticeiras?
- Sim - disse Meg. Finette adorava contar-lhe histórias horripilantes sobre o destino das bruxas capturadas e sempre antes de ela ir para a cama, para que os sonhos
de Meg fossem atormentados por calabouços, mulheres a gritarem de dor enquanto os seus braços eram arrancados das articulações, os seus dedos esmagados e as unhas
arrancadas. - As feiticeiras são torturadas até confessarem e darem os nomes das suas amigas. Depois são queimadas na fogueira. - Meg arrepiou-se. - Vivas.
- É verdade, e de todas as mulheres da minha família só eu escapei de tão terrível destino.
Meg refletiu sobre isto, pensando na sessão mais recente da sua mãe, que de alguma maneira correra mal. Como a mamã ficara pálida e assustada quando o outro espírito
aparecera... o espírito a que Cassandra chamara... mãe.
Pertenceriam aquela voz estridente e a mão à própria avó de Meg, uma mulher de quem raramente ouvira falar até agora? Se isso fosse verdade, porque estaria a sua
grand-mère tão furiosa e acusadora, como se estivesse a culpar Cassandra pelo seu terrível destino?
Cassandra não estava inclinada para discutir o seu passado e responder a quaisquer questões sobre a família que Meg nunca conhecera. Mas, sentada sobre o joelho
da mãe com ela a afagar-lhe abstraidamente o cabelo, Meg ganhou coragem para perguntar: - Como eram a minha avó e as minhas tias'
Cassandra franziu o sobrolho como se tivesse ficado desconcertada pela inesperada pergunta. Depois encolheu os ombros. - Eram feiticeiras, embora não tão preparadas
como eu. Eu era a melhor de todas nós, mesmo sem a minha visão.
Meg recordou os sussurros preocupantes que escutava entre as suas seguidoras, rumores sobre a cegueira da sua mãe. Arriscou timidamente:
- Mamã, eu... eu ouvi algumas mulheres dizerem que... que a minha avó fez um pacto com o Diabo. Ela trocou os teus olhos pelo teu dom de necromancia.
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- Uma história disparatada - respondeu Cassandra, para grande alívio de Meg.
Brincando preguiçosamente com uma madeixa do cabelo de Meg, Cassandra continuou: - Mas a tua avó foi responsável pela perda dos meus olhos. Tudo porque amava o meu
pai, o bispo, mais do que me amava a mim.
- O meu avô foi um bispo? Mas isso não é um homem santo? Supunha que eles não deviam ter esposas.
O lábio de Cassandra curvou-se num sorriso feio. - A minha mãe não era sua esposa e o meu pai estava bem longe de ser santo. A minha mãe, as minhas irmãs e eu éramos
o segredo vergonhoso de sua eminência. Embora ele nos tenha dado esta excelente casa, para nos visitar tinha de o fazer às escondidas e fazia-o com pouca frequência.
Mas, sempre que se dignava vir, o mundo inteiro parava para a minha mãe. Consumia-se em agradar-lhe. A tal ponto que, numa noite em que eu estava doente com escarlatina,
ela preteriu-me pela cama dele. Foi assim que perdi a visão e nunca perdoei à minha mãe por isso.
Meg contorceu-se, desconfortável com estas confidências, compreendendo apenas uma parte do que Cassandra lhe contava. Mas sentia o azedume e a dor da sua mãe. Impulsivamente
abraçou Cassandra, desejando que as coisas pudessem ter sido diferentes para a sua mãe e para ela também.
Quão mais agradável teria sido regressar a Paris se, em vez desta casa cheia de exigentes mulheres meio loucas, tivesse sido saudada pelos seus avós. Não por um
qualquer bispo frio e uma bruxa, mas por avós casados e afetivos que a abraçariam e lhe chamariam Meggie, acolhendo-a na sua casa.
E o seu pai também estaria presente. Talvez não um rei, mas ainda assim elegante e encantador. Seria terrivelmente apaixonado pela mamã e então talvez ela esquecesse
a conquista de França e ficasse feliz ape nas por...
- Pára! - Meg encolheu-se quando as unhas da mãe se cravaram no seu ombro. - Maldição, rapariga. Sei o que estás a fazer. Posso ler-te como a um livro aberto.
Meg encolheu-se ainda mais. Imersa no seu sonho acordado, esquecera a capacidade de a mãe ler os pensamentos através do toque. Cassandra deu-lhe um forte abanão.
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- Odeio esse teu hábito. Essa tendência que tens para te perderes em sonhos bonitos e fugires do mundo real.
Tu fazes o mesmo, mamã. Só que tu usas uma garrafa de uísque.
O ressentido pensamento brotou na cabeça de Meg antes de conseguir suprimi-lo. Cassandra susteve a respiração com um silvo furioso. Desferiu uma clamorosa bofetada
no rosto de Meg que lhe levou as lágrimas aos olhos. Empurrou Meg para fora do seu colo. Meg caiu e a anca bateu no chão com um baque desagradável.
Sentou-se lentamente, esfregando o peito palpitante e pestanejando para reter as lágrimas. Sentiu um fluxo de emoção tão estranho que levou um momento para perceber
o que era. Revolta.
Mas a emoção desapareceu face ao seu habitual medo enquanto Cassandra se punha de pé. Meg lançou a mão ao medalhão que lhe pendia do pescoço, susteve a respiração
e preparou-se para ser castigada.
Embora Cassandra premisse os lábios, não fez qualquer menção de tocar no seu amuleto. - Chega deste disparate - declarou. - É tempo de cumprires os teus deveres
para comigo e para com o resto das tuas cortesãs.
Cassandra remexeu desajeitadamente na corrente presa ao cinto e retirou uma pesada chave de ferro: - Toma, vai buscar o Livro das Sombras.
Meg levantou-se do chão. com os dedos a tremer, aceitou a chave das mãos da mãe e foi abrir o pequeno cofre, ao lado da cama da mãe. Continha apenas dois objetos.
Um pesado anel de sinete com a letra C e um livro não maior do que era a Bíblia de Nourice.
O temível Livro das Sombras parecia tão inofensivo; um velho volume com páginas quebradiças e amarelecidas, encadernadas numa capa de couro já gasta. Mas assim que
Meg o tomou nas suas mãos, foi como se o livro tivesse ganho uma estranha vida própria. Podia sentir a pulsação dos conhecimentos sombrios que o livro continha,
de uma forma estranha que tanto a repelia como atraía.
Meg levou o Livro para a mesa e pousou-o; nervosamente limpou as mãos ao vestido. Cassandra recuperara o seu bastão. Usando-o para sondar o caminho à sua frente,
aproximou-se de Meg e colocou-se ao seu lado.
- Em que quereis que eu trabalhe hoje, mamã? - perguntou Meg friamente. - No feitiço para recuperar os vossos olhos?
- Se fosses uma filha como deve ser, já devias dominá-lo - respondeu Cassandra desdenhosamente.
Meg manteve-se muito quieta, procurando não trair o seu segredo ao mínimo sopro de respiração. Há muito que conseguira dominar o feitiço,
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mas para a mamã recuperar a visão, outra pessoa teria que dar a sua. Cassandra não teria contemplações em sacrificar alguém, mas Meg evitava o simples pensamento.
Talvez a sua mãe não fosse tão colérica e amarga se pudesse ver, mas o custo era ainda muito alto.
Como gostaria de pedir a Cassandra: "Mamã, vamos livrar-nos deste livro medonho, esquecer todos estes loucos planos e esquemas antes que algo de realmente mau aconteça.
Regressemos a Dover e vamos viver na nossa linda casa. Eu cuidaria de vós, juro que o faria. Seria os vossos olhos tal como era o Cérbero."
Mas dar voz a tal súplica só estimularia ainda mais a cólera da sua mãe, por isso Meg engoliu as palavras. Começava a melhorar a sua capacidade de ocultar as coisas
a Cassandra, um poder crescente que simultaneamente a excitava e a assustava.
- Por agora, esquece o feitiço para restaurar a minha visão - disse-lhe Cassandra. Depois sobressaltou Meg perguntando-lhe: - Sabes o que é um miasma?
- S... sim - respondeu Meg nervosamente. - Nourice explicou-me quando ouvi algumas histórias sobre a Rainha das Trevas. Ela disse-me que um miasma é uma emanação
gasosa venenosa que... que enlouquece as pessoas, ao ponto de quererem magoar-se umas às outras, e só alguém tão malvado como a rainha Catarina poderia pensar em
usar tal magia negra. Um só miasma é tão perigoso e pode ficar tão fora do controlo de uma feiticeira que até a Rainha das Trevas já não se intromete com isso.
- A senhora Waters contou-te isso tudo, foi? - murmurou Cassandra com um esgar. - A mulher era uma grande louca e acho que te proibi de voltares a mencionar o seu
nome. - Cassandra correu os dedos pela mesa até encontrar o livro das Sombras. Bateu com a mão na capa. - Diz-se que este livro contém os feitiços mais poderosos
conhecidos das Filhas da Terra. Tem de haver um miasma aqui, algures. Quero que o descubras e que o traduzas para mim.
Meg olhou fixamente a mãe, consternada. Isto era de longe a pior coisa que Cassandra já lhe mandara fazer. - M... mas porquê, mamã? Que uso faria de uma magia tão
terrível?
- A nossa revolução avança muito devagar. Tenciono apressar os acontecimentos, mas isso é tudo o que precisas de saber para já. Faz apenas o que te ordeno.
Meg apertou as mãos. Não podia... Não o faria, mas não se atrevia a contrariar abertamente a sua mãe. Procurando desesperadamente encontrar
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uma maneira de evitar a inquietante tarefa, tentou esquivar-se: - Mesmo que o livro tenha esse feitiço, vai ser muito difícil e já é tão tarde. Não podíamos descer
para cear e então amanhã...
- Para ti não haverá ceia nem pequeno-almoço. Ficarás aqui fechada até encontrares uma forma de preparar um miasma, mais forte e poderoso do que qualquer coisa que
a Rainha das Trevas possa conceber. Percebes-me, filha?
A boca de Meg expressava revolta. Poderia a mãe mantê-la fechada na torre até ela morrer à fome? Mas ao observar a implacável determinação no rosto de Cassandra,
já não tinha tanta certeza.
- Sim, senhora - sussurrou.
Agarrada ao seu bastão, Cassandra encaminhou-se para a porta. Parou no limiar, apenas para avisar: - Não quero ter de te punir de novo. Por isso, Megera, não me
dececiones.
- Sim, senhora - repetiu Megera. Precipitou-se sobre a mesa, olhando fixamente o livro, com o queixo desanimadamente apoiado nas mãos. Só depois de a porta se fechar
e de ter a certeza de que a mãe estava fora do alcance da sua voz é que se atreveu a acrescentar com rebeldia: - Mas o meu nome é Meg.
Simon refreou as rédeas de Elle após um duro galope, abrandando para o andamento a passo enquanto abandonavam a estrada principal e se dirigiam para o caminho que
conduzia à floresta. Pouco mais do que uma estreita passagem, o caminho ficava muitas vezes intransitável durante o inverno ou após uma chuva torrencial e as rodas
das carroças tendiam a atolar-se na lama.
A seca deixara o caminho seco, os sulcos deixados pelas carroças agrícolas estavam bem fundos e ressequidos na terra. Mas pelo menos as árvores ofereciam alguma
sombra em mais uma tarde de sol abrasador.
Elle suava um pouco, mas o seu galope recente pouco afetara a sua resistência ou velocidade. Simon tivera de refrear a égua para evitar que ela se lançasse em corrida,
ou Miri jamais seria capaz de acompanhar o andamento. Embora Samson fosse mais resistente, o impassível cavalo teria sido engolido pela poeira caso Simon tivesse
deixado Elle ganhar algum avanço, um facto que preocupava Simon.
Quando se tinham sentado nas selas naquela manhã, no estábulo dos Maitland, ele incitara Miri a trocarem de montada. Elle podia ser assustadiça com qualquer outra
pessoa, mas teria deixado que Miri a montasse. Contudo, Miri tinha recusado perentoriamente.
"Não", insistira. "Ver-te montado noutro cavalo vai deixar Elle infeliz e ciumenta. Mesmo que eu procure explicar-lhe, ela vai continuar apensar que te desagradou
e ficar com medo de ter feito alguma coisa errada."
Mas os sentimentos magoados da égua não preocupavam tanto Simon como a segurança de Miri. Se fossem atingidos por algum perigo na estrada, queria ter a certeza de
que Miri conseguiria fugir, especialmente considerando a sua preocupação com o facto de estarem a ser seguidos. Não muito
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depois de terem deixado os Maitland, Simon tomara consciência de que as suas apreensões da noite anterior eram justificadas.
Estavam a ser seguidos por um trio de cavaleiros, quase invisíveis na estrada atrás de ambos, por vezes desaparecendo ininterruptamente durante quilómetros, outras
vezes reaparecendo. O trio parecia ter desaparecido quando ele e Miri tinham parado para descansar na última povoação. Mas mal tinham regressado de novo à estrada,
Simon pôde ver os vultos familiares atrás deles, sem ganharem distância, mas também sem nunca ficarem para trás, tão persistentes que poucas dúvidas lhe restaram
sobre se estavam efetivamente a ser perseguidos.
O trio não era constituído por agentes da Rosa de Prata, isso era certo. Andavam em plena luz do dia e os cavaleiros eram homens. Cansado deste jogo do gato e do
rato, Simon fizera sinal a Miri e ambos adotaram um galope veloz. Simon estava suficientemente familiarizado com esta região para serem capazes de dificultar a vida
aos seus perseguidores, subindo montes, cruzando campos, atravessando pequenas ribeiras, percorrendo finalmente este velho caminho na floresta.
Incitando Miri a seguir à sua frente enquanto se infiltravam mais pelo arvoredo, Simon ficou para trás. Rodando na sela, olhou de relance para trás. Tudo era silêncio,
à exceção do batimento dos cascos de Elle e Samson, o débil murmúrio da brisa nos ramos das árvores e o ruído de um decidido pica-pau a martelar numa árvore.
Simon nada mais viu para além do imperturbável trecho de caminho à sombra das árvores. Para já tinham conseguido despistar os seus perseguidores, mas não se contentou
muito com isso. Suspeitava que os cavaleiros que os perseguiam não tinham de facto verdadeira vontade de os apanhar. Simon acabara por conseguir ter um vislumbre
suficiente do primeiro cavaleiro para adivinhar a sua identidade e, se estivesse certo, os seus perseguidores sabiam provavelmente para onde Simon se dirigia. Estes
bosques marcavam os limites das modestas propriedades que Simon recebera como oferta do rei.
Miri retardou Samson até Simon voltar a apanhá-la. O caminho quase não tinha a largura suficiente para o deixar cavalgar lado a lado e o joelho dela roçava o dele.
Olhando-o apreensivamente sob a aba do seu chapéu, perguntou: - Achas que os despistámos?
- Por agora, mas isso quase não importa. Se aqueles homens forem quem eu penso, sabem onde vivo. A Rainha das Trevas conhece bem a propriedade que o filho me ofereceu.
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- Portanto, acreditas que aqueles homens trabalham para Catarina?
- Pareceu-me reconhecer Ambroise Gautier na frente. Faz sentido para a Rainha das Trevas manter-me vigiado. Eu devia ter esperado isso acrescentou Simon, com ar
trocista. - Sua majestade não é a mais confiada das almas.
Miri deu uma palmada no pescoço fumegante de Samson. - O que vamos fazer, Simon? Se conseguirmos encontrar o esconderijo da Rosa de Prata, estaremos a conduzir os
agentes de Catarina até ela e ao Livro das Sombras.
- Não te preocupes. Hei de arranjar alguma maneira de me livrar de Gautier antes que isso aconteça. Vamos. Estamos quase a chegar. A minha casa está a menos de um
quilómetro desta floresta.
Simon encorajou o andamento da sua égua e Miri imitou-o, ficando ambos em silêncio enquanto prosseguiam através das árvores. As coisas tinham sido um pouco desajeitadas
entre eles desde que tinham acordado após uma noite passada nos braços um do outro, tão quente e familiar como se tivessem passado a ser amantes. Miri ruborescera
e afastara-se dele, e ele ficara tão calado como um rapaz virgem depois de ter dormido com a sua primeira donzela. Teria sido mais fácil para ele se tivessem feito
amor em vez do que tinham feito. Houvera algo demasiado íntimo quando partilharam aqueles suspiros no escuro; confissões, memórias e emoções que ele normalmente
mantinha profundamente para si. Era diabolicamente mais fácil despir um corpo do que uma alma.
E, no entanto, naquela manhã ele não se sentia tão exposto e vulnerável como esperava, embora estivesse terrivelmente cansado. Não tinha descansado o suficiente.
Depois de consolar Miri após o seu pesadelo e de a ter feito adormecer, há muito que se mantinha acordado. O doce calor do corpo dela tão junto ao seu fora uma espécie
de delicada tortura, que o conduzira a um estado de dolorosa ereção. Lutara duramente para contrariar o seu desejo e impedir as suas mãos de vaguearem por onde não
deviam. Para além desta dor física por Miri, saboreara a sensação da cabeça dela tão confiadamente aconchegada contra o seu ombro, o leve arfar da sua respiração.
Esforçara-se por se manter acordado, sem deixar que nenhum doce momento lhe escapasse, porque sabia que jamais voltaria a tê-la assim nos seus braços.
Mas não fazia sentido deixar-se atormentar pelo desejo de uma mulher que nunca poderia ter. Se porventura alguma dúvida houvesse sobre isso,
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tinha a visão daquele medalhão a balouçar no pescoço de Miri para o lembrar.
Quando Simon e Miri saíram do arvoredo, o caminho continuou por campo aberto, curvando para a casa aninhada na suave subida de um monte. Fora Simon a desenhar a
casa; uma modesta construção de dois andares em granito. Como única extravagância, as janelas com vidros em forma de losango que refletiam o sol da tarde.
Há mais de um ano que Simon não vinha a casa. Mas à medida que se aproximavam, as orelhas de elle espetaram-se. Ao avistar a pastagem onde tinha brincado enquanto
poldra, a égua puxou ansiosamente pelo bridão.
- Eia, calma, menina - disse Simon, refreando-a com firmeza mas suavemente.
Semicerrou os olhos à luz do Sol enquanto observava a sua propriedade. A casa era ladeada por séries de anexos bem cuidados; os estábulos, uma capoeira, uma casa
para a lavagem de roupa, o celeiro, uma barraca para o arado. O trigo fora ceifado, fosse qual fosse a pobre colheita sobrevivente à seca. Mas a horta parecia estar
a medrar e a água na lagoa dos patos não estava excessivamente baixa.
Simon notou Miri ao seu lado, erguendo-se nos estribos enquanto esticava o pescoço, olhando curiosamente à sua volta. A sua decisão de a trazer às suas terras parecera
tão simples e lógica na noite anterior. Fora na quinta que deixara os seus relatórios, os diários que podiam proporcionar as pistas fundamentais de que precisavam
para identificar a Rosa de Prata. Mas sentia-se estranhamente envergonhado, como se estivesse a oferecer uma parte ainda mais privada de si mesmo para ela inspecionar.
- Portanto... este é o teu lar? - perguntou Miri, maravilhada. Simon nunca pensara na quinta daquela maneira, nunca chamara lar à sua casa, pelo menos até falar
dela a Miri.
- O meu lar - repetiu lentamente, como se a palavra fosse estrangeira para a sua língua. - Sim, suponho que sim.
Miri puxou o chapéu para trás, com os olhos tão abertos de franca surpresa que Simon não sabia se devia estar alegre ou melindrado.
- Que raio esperavas tu? Que eu vivesse numa espécie de masmorra rodeada pelos meus instrumentos de tortura?
- Não pensei que vivesses em lado algum. Falaste da tentativa de fixar raízes naquela primeira noite, mas fiquei com a impressão de que tinhas abandonado a ideia.
Disseste que não te sentias como pertencente a isto.
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- Não sinto, mas preciso de um sítio qualquer para guardar os meus documentos, as minhas roupas e os meus livros. Estou a ficar velho demais para viver só com o
que carrego nos alforges. Mas já não vinha aqui desde que a Rosa de Prata mandou as suas assassinas perseguirem-me. Não quero pôr nenhuma das pessoas daqui em perigo.
Não teria sequer arriscado cá vir se não precisasse de consultar os meus diários. Tenho uma mordoma excelente que mantém as coisas a funcionar normalmente sem ser
necessária a minha presença.
A sua explicação provocou as usuais rugas entre os olhos de Miri. Enquanto prosseguiam lentamente pelo caminho, a cabeça dela voltava-se de um lado para o outro.
Simon procurava imaginar como ela via a quinta. Não podia estar assim tão impressionada, uma mulher que crescera num magnífico palacete no meio da beleza da ilha
Encantada com as suas vastas florestas e uma linha costeira maravilhosa.
A sua quinta certamente que não era nada comparada com o que ela podia esperar se casasse com Martin, o Lobo. De acordo com Miri, o seu elegante Lobo detinha uma
posição de alto favor junto do rei de Navarra, que não era um monarca pervertido e meio louco como o rei de França, que Simon relutantemente servira.
Henrique de Navarra tinha reputação de ser inteligente e corajoso, com um vigoroso prazer pela vida, não muito diferente de Lobo. Ele e Miri teriam provavelmente
um grande conjunto de aposentos no palácio real. Talvez até o Lobo adquirisse uma propriedade, muito mais impressionante do que os modestos hectares de Simon. Não
que isso interessasse. Não estava a colocar-se como rival de Lobo. Apesar disso, olhou Miri, aguardando ansiosamente a sua reação.
- A propriedade estende-se desde aquela floresta que atravessámos até àqueles campos altos mais além. - Simon fez um gesto largo com a mão. - Para lá da próxima
subida fica a pequena aldeia e alguns dos aldeões ajudam-me na colheita do trigo e na apanha das maçãs no outono. O prado é delimitado por um riacho e por parte
da floresta onde as cabras podem pastar à solta. Também há um pequeno rebanho de ovelhas, alguns porcos e...
Simon interrompeu-se com uma careta quando se apercebeu de que mais uma vez estava a falar demais. Adquirira o lamentável hábito de o fazer quando estava com Miri.
- E... pronto, aqui está - concluiu, voltando a pegar nas rédeas. - É só uma pequena quinta. Nada de mais.
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Miri fitou-o, ajeitando o seu peso na sela.
- Simon, é perfeita - disse e o seu sorriso pareceu florescer dentro dele, que teve de controlar o impulso para lhe devolver o sorriso e a ânsia ainda maior de se
inclinar para ela e beijar-lhe os lábios tentadores.
Como era possível uma mulher ser tão atraente, com madeixas de cabelos soltos das tranças, o rosto sombreado por um chapéu gasto, o corpo esbelto coberto por uma
túnica disforme e bombachas? Mas era; o seu belo rosto possuía um brilho natural e o azul do céu refletia-se nos seus olhos azul-prateados.
Simon procurou imaginar Miri num palácio, entre toda a artificialidade da vida na corte, trajada com espartilho, crinolina, caros vestidos de seda e jóias, e o cabelo
anelado e armado sob uma elegante touca. Tentou imaginar e não conseguiu. Era como imaginar uma fada da floresta capturada e presa sob um jarro de vidro até lhe
caírem as asas e o seu brilho desaparecer.
Mais facilmente conseguia visualizá-la aqui, na sua quinta, passeando pelos campos ou chapinhando pelo riacho, com o cabelo solto caído pelos ombros a vaguear pelo
prado, com os olhos a brilharem-lhe de alegria ao pegar num cordeiro recém-nascido, com ele a mordiscar-lhe o queixo.
Uma visão tonta e fútil. Só porque as diferenças entre ambos se tinham esbatido durante estes últimos dias, isso não significava que alguma coisa tivesse mudado.
Aquelas diferenças reapareceriam rapidamente assim que a família de Miri tivesse notícias de que ela estaria na sua companhia e enviasse alguém a procurá-la. Ou
quando ele prendesse a Rosa de Prata e a sua assembleia e fosse obrigado a levá-las a julgamento por feitiçaria.
Tinha de fazer tudo para manter a sua promessa e procurar entregar a jovem Moreau sã e salva a Miri. Não tinha dúvida de que Miri não se demoraria muito depois disso.
Por muito que reprovasse as atividades da Rosa de Prata, o coração terno de Miri nunca conseguiria suportar os julgamentos e as execuções.
Ela iria levar Carole e regressaria à ilha Encantada. Ele nunca mais veria Miri e era assim que devia ser, o melhor para ambos. Não tinham futuro, o passado ensombrava-os
com memórias dolorosas e demasiados remorsos. Para além disso, havia apenas o presente. Se bem que Simon fosse assaltado por uma sensação de vazio e de perda, procurou
libertar-se dela, determinado a não perder um só momento do prazer que via na face de Miri enquanto observava a sua quinta.
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Enquanto dirigiam os seus cavalos para o pátio do estábulo, ele apontou-lhe o jardim de vegetais e ervas atrás da casa. Embora Miri olhasse de relance para o jardim,
a sua atenção estava mais concentrada sobre Simon. Exatamente quando sentia que começava a conhecer o homem, ele voltava a surpreendê-la.
Quando ele, hesitantemente, lhe falara em trazê-la a sua casa, não sabia o que podia esperar. Talvez uns quartos insignificantes alugados, sobre uma loja ou uma
estalagem, nada como esta quinta isolada e próspera.
Ele dera-lhe a impressão de ser um vagabundo solitário, sem nenhum lugar a que pudesse chamar seu. Embora tivesse mantido a sua quinta, insistia que se sentia como
se não lhe pertencesse. Mas só le Balafre, o caçador de bruxas com a sua sinistra venda no olho, o insistente traje negro e o olhar incansável, é que não pertencia
a esta serena paisagem. Simon Aristide podia pertencer, pensou Miri, desde que desse a si próprio uma oportunidade.
Quando um idoso palafreneiro e um moço de estrebaria apareceram para cuidar dos cavalos, Miri não detetou nenhuma apreensão no rosto dos homens ao verem Simon. Foram
circunspectos e respeitosos ao saudá-lo e dar-lhe as boas-vindas a casa. Qualquer distanciamento que Miri pudesse sentir vinha mais de Simon enquanto desmontava.
Não que fosse rude ou desagradável enquanto devolvia a saudação, apenas rígido e reservado, com o seu escudo invisível em posição.
Um escudo que nada fez para deter o jovem que se encontrava a trabalhar no jardim. Deixou cair a enxada com um grito sonoro assim que viu Simon e correu pelo pátio
do estábulo com um cão preto e branco a segui-lo. O rapaz era alto e desajeitado, de cabelo louro-claro, rosto redondo corado e orelhas grandes. Os seus braços longos
e as mãos maciças balouçavam fortemente enquanto corria para Simon, gritando alegremente.
- Mestre Simon! Mestre Simon! Haveis voltado!
Precipitava-se para Simon com tal velocidade que parecia que ia atropelá-lo. Mas no último instante deslizou até parar. Envolveu Simon com os braços num abraço de
partir costelas, enquanto o cão ladrava e descrevia círculos frenéticos em volta de ambos.
Miri desmontou, entregando Samson ao moço de estrebaria, quase sem reparar no que fazia enquanto observava o surpreendente desenrolar da cena. Estava à espera que
Simon repreendesse o rapaz ou o afastasse.
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Porém, embora Simon parecesse consideravelmente embaraçado, com Miri e os criados a olharem-no, deu desajeitadamente uma palmada no ombro do robusto rapaz.
- Ah... sim, estou contente por te ver, Yves. Mas preciso de respirar. O rapaz largou Simon, sorrindo. Quando o cão se sentou e baixou as orelhas, ladrando e rosnando,
Yves repreendeu-o severamente.
- Aqui já, está Quieto! Que se passa contigo? É o nosso mestre Simon. Lembras-te dele? Tem maneiras e saúda-o como deve ser.
O cão inclinou a cabeça e emitiu um latido fraco. Mas Simon fez exatamente o que Miri teria feito, ajoelhando-se e estendendo a mão ao cão para farejar, não fazendo
nenhum movimento brusco enquanto Beau se aproximava. Num instante o cão estava a abanar a cauda e Simon a coçar-lhe a cabeça atrás das orelhas.
- Assim está melhor - aprovou Yves. - O Beau tem estado supervigilante, tal como nos dissestes para estar, mestre Simon. No caso de aquelas bruxas poderem... - Calou-se
assim que subitamente reparou em Miri.
Os moços de estrebaria tinham lançado a Miri olhares corteses mas interrogativos. Yves olhou-a com indísfarçada curiosidade através dos seus olhos profundamente
azuis. Quando Miri os perscrutou bem fundo, viu uma alma simples, uma daquelas que está destinada a permanecer criança para sempre, apesar da sua enorme corpulência
e dos seus membros ossudos.
- Quem é, mestre Simon? - perguntou Yves.
Simon desviou o olhar do cão para dirigir a Miri um meio sorriso.
- Uma amiga minha. Miri, este é Yves Pascal, o filho da minha mordoma.
Miri sorriu gentilmente para Yves, mas quando lhe estendeu a mão e tentou cumprimentá-lo, o rapaz corou e recuou. Desatou a correr na direção da casa, berrando a
plenos pulmões: - Mamã! Mamã!
Quando o cão arrancou atrás de Yves, Simon pôs-se de pé, esfregando as mãos.
- Desculpa - disse Miri. - Não queria assustá-lo.
- Não assustaste. Yves é muito tímido, é só, e... um pouco lento no seu entendimento. - Simon apressou-se a acrescentar: - Mas é um trabalhador incansável e muito
bom com todos os animais. Pode desempenhar a maior parte das tarefas se lhe explicarmos cuidadosamente o que tem de fazer. Todos os outros trabalhadores da quinta
são muito pacientes e compreensivos para com ele.
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E, se não fossem, Miri suspeitava fortemente que teriam de responder perante Simon. Um tom protetor transparecera na sua voz ao falar do rapaz.
- É óbvio que Yves gosta muito de ti - observou Miri.
- O pobre rapaz não conhece melhor. - Simon encolheu os ombros, como sempre procurando desvalorizar qualquer boa opinião sobre si.
Antes de Miri tentar argumentar com ele, Yves voltou a sair da casa a correr, puxando uma mulher muito pequena pela mão.
- Depressa, mamã - apressava Yves. - Mestre Simon voltou a casa e trouxe uma amiga com ele. Depressa!
- Eu vou depressa - protestou a mãe com uma gargalhada. Era tão baixa como ele era alto, vestia um vestido comprido e um avental, com os cabelos brancos como neve
presos sob uma modesta touca de linho.
O rosto iluminou-se-lhe ao ver Simon. Embora não o tivesse abraçado como Yves, precipitou-se para lhe pegar na mão.
- Mestre Simon! - exclamou. - Bem-vindo a casa. Desta vez esteve tanto tempo ausente. Estávamos todos muito preocupados. Que alívio ter voltado ileso.
- Ah... sim, obrigado, madame - respondeu Simon seriamente.
- Mas magro demais - admoestou a pequena mulher. - Como quer combater a temível Rosa de Prata se não toma cuidado consigo...
- Mamã - interrompeu Yves, puxando pela manga da mãe e apontando para Miri. - Olha, a amiga do patrão. Chama-se Miri - acrescentou. - Ela é uma rapariga, apesar
de se vestir como um rapaz.
Miri recuou timidamente quando a atenção de Madame Pascal se voltou para ela.
- Miri, apresento-te Madame Esmee Pascal - disse Simon. - Trabalha como minha mordoma.
Miri assumira que a mulher trabalharia na casa de Simon, mas como mordomo? Uma posição de grande confiança e responsabilidade que poucos considerariam passível de
ser assegurada por uma mulher.
Não conseguiu ocultar a sua surpresa enquanto encarou Madame Pascal. A mulher retribuiu-lhe firmemente o olhar. Quase não chegava ao ombro de Miri e tinha o rosto
bem proporcionado e tão enrugado como uma maçã seca, mas os seus olhos eram de um azul brilhante, como os do filho, inteligentes e penetrantes.
Quando os seus olhares se encontraram, Miri sentiu um sobressalto de reconhecimento; cada uma das mulheres identificando a outra pelo que era,
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uma Filha da Terra. Miri tirou o chapéu. Simon já revelara o seu segredo quando se distraíra e lhe chamara Miri em frente de Yves, mas de qualquer modo não teria
feito diferença. Não havia engano possível, Madame Pascal era outra mulher sábia.
- Madame Pascal, apresento-vos Miribelle Cheney - começou Simon. - Ela...
- Eu sei quem é - interrompeu Esmee Pascal, dobrando-se numa profunda vénia. - É irmã da Senhora da Ilha Encantada.
- Não - disse Simon, surpreendendo Miri, e acrescentando depois com um sorriso tranquilo. - Bem, sim, ela é irmã de Ariane. Mas Miri é mais conhecida como Senhora
da Floresta.
Esmee esvoaçava pela cozinha, fazendo lembrar a Miri um laborioso beija-flor, enquanto punha a família a mexer-se, enviando uma das jovens criadas arejar os quartos,
outra recolher mais água no riacho e o ajudante de cozinha correr até casa.
- ... e diz à tua mãe para nos mandar as tuas duas irmãs. Vamos precisar de mais ajuda, pois Monsieur Aristide está cá e trouxe uma convidada.
Sentada em frente à grande mesa da cozinha, afastada do movimento, Miri interrogava-se sobre se o homem que se considerava desnecessário para este lugar tinha alguma
ideia da lufada de animação que a sua chegada tinha causado. Simon deixara-se arrastar por Yves para ir inspecionar uma vaca que a qualquer momento podia parir um
bezerro. Miri tê-los-ia acompanhado de boa vontade, mas Simon insistira que ela se refrescasse depois de tão dura manhã a cavalgar. Tinha confiado Miri aos cuidados
de Esmee Pascal, que parecera tão ansiosa por servi-la que Miri fora incapaz de recusar.
Além do mais, estava mais do que curiosa, tanto sobre a casa de Simon como sobre a mulher sábia que se atrevera a viver sob o telhado de um caçador de bruxas. Se
Simon tinha alguma ideia do que era Esmee, poucos sinais dera disso, e por enquanto Miri poucas hipóteses tivera de conversar com a mulher.
Enquanto Esmee dava as suas ordens, Miri aguardou silenciosamente, escrutinando tudo à sua volta. A casa de Simon era modesta, construída com uma simplicidade que
ela achava encantadora. Não havia um átrio ostensivo, o andar principal era ocupado por uma cozinha que servia simultaneamente para cozinhar e como sala de jantar.
Exibia uma chaminé suficientemente grande para nela caber um homem, prateleiras com todos os
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utensílios de cozinha imagináveis, chaleiras e caldeirões, escumadeiras, colheres, conchas, espetos, passadores, almofarizes, mãos de almofarizes e raladores. Ao
lado de uma mesa enorme com os seus bancos e cadeiras, havia um armário bem recheado de especiarias e uma prateleira para secar ervas, suspensa do teto.
Passando à jovem criada uma pilha de roupa branca, Esmee enxotou a rapariga pelas escadas e depois apressadamente estendeu a Miri uma tigela fumegante com um líquido
aromático.
- As minhas desculpas por vos fazer esperar e por estarmos tão mal preparados para vos receber, minha senhora. Mas mestre Simon raras vezes aqui vem, lamentavelmente,
e nunca tivemos um convidado tão importante.
- Estou muito longe de ser importante - protestou Miri, baixando os olhos, incomodada, para a sua roupa suja da viagem. - Nem tenho o título de senhora.
- Mestre Simon diz que sois e isso basta-me.
Miri limitou-se a sorrir e a abanar a cabeça. Ficara embaraçada quando Simon a apresentou como Senhora da Floresta, mas também enternecida. Durante muito tempo repudiara
quem ela era e o que representava, mas quando a apresentou a Madame Pascal, quase parecia orgulhoso de Miri.
Aproximando-se, Esmee entregou-lhe a tigela nas mãos. - Por favor, experimentai um pouco do meu chá de ervas. Reconheço que seria uma bebida muito mais agradável
num frio dia de inverno, mas o chá é muito tonificante após uma longa jornada.
Esmee não precisava de lhe dizer isso. Miri segurou a tigela sob o nariz e inspirou o aroma familiar que lhe recordava comoventemente a sua casa e Ariane. A sua
irmã mais velha ensinara-lhe a preparar uma infusão semelhante, mas nunca conseguira fazer um chá tão saboroso como o de Ariane.
Quando sorveu um gole da tigela, Miri apercebeu-se de que Madame Pascal o conseguira. Soltou um suspiro apreciativo. - Obrigada... - começou, mas foi interrompida
por uma criada que chamava pelas escadas para saber qual o quarto destinado a Miri.
- Deve ficar no quarto do senhor, Marguerite - gritou Esmee.
Miri engasgou-se ao sorver outro gole de chá. Ficara tão dominada com as outras impressões ao chegar à quinta, que não prestara muita atenção quanto às conclusões
que Esmee poderia retirar sobre o facto de ela viajar sozinha com Simon.
Miri corou e balbuciou: - Oh, não, madame, reconheço que pode parecer pouco próprio, mas asseguro-vos de que Simon e eu não... - Recordando-se
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de como acabara de passar a noite anterior nos braços dele, o rosto de Miri ficou ainda mais escaldante. - Não quero que penseis...
- Eu não penso nada, senhora. Não vos atormenteis com o caso do quarto. Mestre Simon nunca o usa, mas o quarto é o melhor da casa e ele iria querer que vós ficásseis
nele. - Esmee fez uma careta. - Quando alguma vez chega a dormir, normalmente adormece naquele pequeno cubículo de sala que lhe serve de estúdio.
Tranquilizada, Miri procurou recuperar do embaraço, enquanto Esmee lhe arranjava pão fresco e mel.
- Apenas algo para aconchego. Prometo que vai haver um belo jantar - suspirou Esmee. - Não que mestre Simon repare nisso. Nunca presta muita atenção ao que come
e, pelo que aparentais, atrevo-me a dizer que não deveis ser melhor do que ele. Mas prometo descobrir alguma coisa para abrir o vosso apetite.
Miri ficaria mais do que satisfeita só com o pão e o mel, mas, não querendo desapontar Esmee, afirmou que, depois de tantos dias de viagem, bem lhe saberia uma boa
refeição. Quando Esmee se sentou no banco à sua frente, Miri lutou para vencer a timidez que muitas vezes a dominava na presença de alguém desconhecido que não tivesse
pelo, cauda ou garras.
- O vosso chá é tão excelente como a vossa bela cozinha, madame - disse.
- Obrigada, mas não é a minha cozinha, embora o patrão Aristide insista que eu cuide da casa como se fosse minha. Mas foi ele que concebeu tudo. - Esmee limpou uma
gota de transpiração da sobrancelha. - Quando conheci o temível le Balafre, esperava que ele fosse muito mais adepto de ter uma câmara de tortura do que uma cozinha.
Acredito que, quando ele arranjou este lugar, tinha a cabeça cheia de memórias da sua mãe e imaginou o tipo de casa que teria sido a dos sonhos dela.
- Simon falou-vos sobre a mãe? - interrogou Miri.
- Não... não diretamente. - Quando Esmee corou com ar culpado, baixando os olhos, confirmaram-se as primeiras suspeitas de Miri sobre a mulher.
- Então eu estava certa quando adivinhei que éreis uma mulher sábia. Vós podeis... ler nos olhos.
- Um pouco - confessou Esmee com embaraço. - Tal como o fizeram gerações de mulheres da minha família antes de mim.
- E Simon sabe que... que...
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- Que ofereceu abrigo a uma da nossa condição? Não podia deixar de saber, considerando que foi ele que me salvou de ser torturada e queimada na fogueira. Atrevo-me
a dizer que vos surpreendeis.
- Não. - Miri engoliu mais um pouco de chá. - Em tempos poderia surpreender-me, mas agora já não tanto, considerando o que fiquei a conhecer sobre Simon Aristide
nestes últimos tempos.
- Ótimo. - Os pequenos ombros de Esmee pareceram descontrair-se com bastante alívio. - Eu queria contar-vos isto imediatamente. Percebi que haveis sentido o que
eu era e preocupava-me que pudésseis achar errado e estranho que uma mulher sábia fosse empregada de um caçador de bruxas.
- Não mais estranho do que eu própria - disse Miri. - Embora não seja empregada de Simon, aliei-me a ele para... para...
- Para perseguir a Rosa de Prata.
- Portanto também sabeis disso?
Esmee acenou seriamente com a cabeça. Aqui, mestre Simon normalmente nunca se refere à sua outra ocupação, mas sentiu-se obrigado a avisar-nos sobre a Rosa de Prata,
não fosse alguma dessas malvadas bruxas aparecer na quinta. Gostaria de ter feito algo para o ajudar, mas confesso que tudo o que tem a ver com magia negra me deixa
a boca seca com medo. Mas estou contente por ele agora vos ter a seu lado. Como sois corajosa, minha querida.
- De modo nenhum. Simplesmente, não havia mais ninguém. - Embaraçada com a admiração da mulher mais velha, Miri procurou mudar rapidamente de assunto. - Importai-vos
de me contar como é que Simon decidiu salvar-vos?
- Não, mas não é uma história interessante nem nova. - Esmee espalhou uma generosa porção de mel numa fatia de pão e estendeu-a a Miri, encorajando-a a comer. Miri
deu algumas dentadas para lhe ser agradável, esperando impacientemente que Esmee começasse a contar a sua história. Finalmente decidiu-se com um suspiro contrafeito.
- Em tempos fui casada com um próspero mercador e comerciante de vinhos. Marcellus e eu tivemos muitos bebés, mas o único que sobreviveu à infância foi Yves. Mas
ele é um filho meigo e amoroso e nós considerávamo-nos bastante abençoados, com uma vida feliz e próspera.
O rosto de Esmee ensombrou-se. - Isto até surgir a primavera em que o meu marido foi apanhado sob chuva torrencial e se constipou. Foi uma
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daquelas inexplicáveis tragédias. Era um homem tão forte e vigoroso e de repente foi atingido pela febre e ficou com os pulmões tão congestionados pela pneumonia
que nenhum dos meus antigos remédios pôde salvá-lo. Morreu numa calma manhã de maio quando as rosas começam a florir. Os olhos humedeceram-se-lhe e Esmee pestanejou
ferozmente.
- O meu marido não tinha outros parentes vivos, exceto um sobrinho, filho da irmã. Marcellus quase não tinha arrefecido na campa quando Robert apareceu na quinta,
assumindo que o meu marido não podia deixar a sua valiosa propriedade a uma simples mulher e a um "rapaz idiota", como chamou ao meu doce Yves. "Yves pode... pode
não ser o mais esperto dos rapazes, mas não é um idiota. Essa descrição encaixava muito melhor em Robert, o malandro ranhoso. - Esmee interrompeu-se, com as faces
subitamente coradas.
- Desculpai-me, senhora.
- Não tendes que pedir desculpa. Pelo que vi de Yves, ele possui algo mais raro e valioso do que a esperteza. Ele é rico em dádivas do coração.
Nunca conheci esse Robert, mas eu própria me inclinaria a chamar-lhe " a mesma coisa.
Esmee sorriu-lhe reconhecida, num estranhamente adorável sorriso desdentado. Respirou fundo e continuou: - Robert estava preparado para generosamente deixar que
eu e Yves continuássemos numa das casas da propriedade desde que cuidássemos da vinha e da loja. Imaginai como ficou escandalizado ao descobrir que o meu marido
fora suficientemente sábio para deixar um testamento, que nos nomeava claramente, a mim e a Yves, como seus herdeiros.
"Robert poderia ter contestado o testamento nos tribunais e poderia até ter ganho, mas isso ser-lhe-ia muito dispendioso e levaria muito tempo. Então descobriu uma
maneira mais rápida e segura de ficar com a propriedade. Eu era conhecida em toda a nossa comunidade como uma competente parteira, conhecedora de muitos remédios
herbais antigos. Contestei muitas vezes o médico local sobre alguns dos seus tratamentos ignorantes, portanto foi fácil para Robert incriminar-me...
- Incriminar-vos como feiticeira - concluiu tristemente Miri.
- Quase não precisarei de explicar-vos, minha querida, que é o risco que todas as mulheres sábias correm por mostrarem capacidades invulgares. Nunca é exigida uma
prova concreta, basta a mera suspeição para condenar uma mulher. Quando ouvi dizer que o temível le Balafre tinha che gado
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para assistir ao meu interrogatório, fiquei completamente desesperada. Não tanto por mim, mas pelo meu pobre Yves, imaginando o que podia ser dele quando eu morresse.
"Faltou-me completamente a coragem quando fui arrastada à presença de le Balafre. Assim que ergui os olhos para o seu rosto cicatrizado, comecei a tremer e dificilmente
consegui fixar o olhar naquele único olho negro e implacável, com receio de lá encontrar um demónio escondido.
Esmee sorriu, abanando a cabeça ao recordar o momento. - O que encontrei foi um homem de razão e com extraordinária perceção. Monsieur Aristide percebeu imediatamente
o golpe do meu sobrinho. Mas Robert tinha tanto apoio das autoridades locais que nem mesmo le Balafre podia impedir os procedimentos. O melhor que conseguiu fazer
foi fazer-nos fugir.
"Perdi toda a minha propriedade, toda a minha herança, exceto alguns pertences que consegui desviar antes de Yves e eu fugirmos. Depois de preparar a nossa fuga,
Simon trouxe-nos para vivermos aqui, que é onde temos estado desde então; Yves ajuda na quinta naquilo que pode e eu sou governanta de Monsieur Aristide, embora
o senhor goste de me honrar com o título de mordoma.
- Uma posição de grande confiança para uma mulher - referiu Miri.
- Uma posição de grande confiança para qualquer pessoa. Partilho as responsabilidades com o velho Jacques, que cuida do estábulo e do gado. Antes trabalhou como
chefe palafreneiro para uma das maiores estalagens de Paris até ser considerado velho demais e o despedirem. Monsieur Aristide é grande ao oferecer às pessoas uma
segunda oportunidade.
- A todos menos a ele - refletiu Miri carinhosamente.
- Ah, também haveis notado isso sobre ele?
- Oh, sim, e quando lhe perguntamos porque ajuda os outros, foge à pergunta, fingindo que também é do seu interesse.
- Eu sei. Na verdade tentou convencer-me de que eu lhe fiz um favor. Que salvar-me o ajudou a expiar pecados passados. - Esmee lançou um olhar constrangido a Miri.
- Pelo que consegui ler nos olhos dele, ele estava a pensar em vós e na destruição que forjou na ilha Encantada.
Miri apoiou o queixo sobre as mãos, com a testa enrugada enquanto considerava a observação de Esmee. - Isso também pode explicar por que deixou fugir a minha amiga
Marie Claire, por achar que precisa de compensar as suas faltas - meditou mais para si mesma do que para Esmee.
- Simon muito provavelmente acredita que é isso que está a fazer.
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Esmee olhou-a com curiosidade. - Mas não achais que seja assim?
- Não penso que os seus motivos sejam tão simples. - Miri passou o dedo pela borda da tigela, esforçando-se, como acontecia desde há dias, por compreender todas
as contradições que existiam em Simon Aristide e encontrar algum sentido naquele homem. com hesitação, disse: - Penso que as ações de Simon têm muito a ver com o
rapaz que era antes de a sua família e a sua vila terem sido destruídas. Antes daquele monstro do le Vis procurar transformar Simon em le Balafre, um molde tão contrário
à natureza de Simon que quase o destruiu.
Miri estendeu as mãos num gesto indefeso como se procurasse as palavras para explicar: - Simon é um homem cuja vida foi destroçada por mais de uma vez e é como se
tivesse ficado com todos aqueles fragmentos de si mesmo e agora esteja a tentar desesperadamente juntá-los de novo.
- Um trabalho que tem de ser feito por ele, mas o amor e a compreensão da mulher certa ajudariam. - Esmee desconcertou Miri ao sobre-erguer-lhe a sobrancelha sugestivamente.
- Oh, n... não, madame - gaguejou. - Seja o que for que estiver a pensar, essa mulher não sou eu.
- Não? Os vossos olhos dizem-me o contrário, minha querida.
As faces de Miri escaldaram. - Independentemente do que eu possa sentir por Simon, não será possível nós ficarmos juntos. Não depois de algumas coisas que ele fez,
especialmente o assalto à ilha Encantada. Eu... eu podia ser capaz de lhe perdoar, mas a minha família... nunca.
- Muitas mulheres são dirigidas pelas suas famílias e os seus casamentos são combinados. Mas as mulheres sábias têm sido frequentemente mais felizes nesse aspeto,
capazes de seguir os seus próprios corações, especialmente as senhoras da ilha Encantada.
- Isso pode ser verdade para as minhas irmãs, mas não para mim. Há muito sangue entre Simon e a minha família, especialmente o meu cunhado Renard. Apesar de Simon
me ter jurado que nunca voltará a empunhar a espada contra Renard e eu ter a certeza de que Ariane podia fazer com que Renard...
Miri fez uma pausa, ponderando as possibilidades. Se a sua família tivesse conhecimento de como Simon salvara Esmee e protegera os Maitland, talvez pudesse...
Miri travou as suas melancólicas conjeturas, abanando tristemente a cabeça.
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- Não, não há qualquer esperança - afirmou, tanto para si como para Esmee. - Simon considera Renard um feiticeiro malévolo e Renard odeia caçadores de bruxas. E
mesmo que eu conseguisse persuadir Ariane de que Simon mudou, Gabrielle nunca acreditaria nisso. Por muito que a minha família me ame, não penso que qualquer deles
pudesse alguma vez aprender a... gostar de Simon ou a aceitá-lo.
- As famílias não têm sempre que se adorar, filha. Não espetarem garfos uns aos outros à mesa do jantar é, por vezes, tudo o que podemos pedir.
- Esmee esticou-se através da mesa para apertar meigamente a mão de Miri. - Os meus próprios pais também não gostavam de Marcellus, mas no fim mudaram de ideias.
Tenho a certeza de que as vossas irmãs vos amam tanto que poderiam fazer o mesmo.
Miri sorriu tristemente. - Mesmo que isso fosse verdade, há um grande obstáculo entre mim e Simon, o próprio homem. Ele retrai-se a toda e qualquer forma de ternura.
Como poderia eu oferecer o meu coração a um homem que considera o seu afeto por mim uma fraqueza.
- Compete-vos ensinar-lhe o contrário. - Esmee pôs-se rapidamente de pé. - Devíamos começar por dar-vos um banho e vestir-vos algo mais feminino. As minhas roupas
não vos servirão, mas tenho a certeza de que poderemos encontrar algum vestido junto de uma das mulheres...
- Não, madame, por favor, eu não poderia...
- Podeis e fá-lo-eis - disse Esmee com firmeza. A velha mulher acrescentou com um brilho ligeiramente travesso nos olhos: - Tenho a certeza de que esse vosso traje
masculino é muito confortável, mas não chegaremos a lado nenhum com mestre Simon até vos desfazerdes das vossas bombachas.
Várias horas mais tarde, Miri passeava pelo pátio do estábulo, com um leve vestido de lã a borboletear-lhe em redor dos tornozelos. Estava-lhe um pouco pequeno,
ligeiramente apertado nas ancas, mas tinha um tom tão suave de azul que parecia estar enrolada num pedaço de céu.
Miri passou delicadamente os dedos pelas pregas do vestido, pensando que nunca o devia ter aceitado de empréstimo e receando estar assim, simplesmente, a encorajar
os anseios casamenteiros de Esmee Pascal. Mas agora que a sua identidade era conhecida, dificilmente poderia continuar a passear-se com um traje masculino. Por respeito
ao decoro, essa fora a única razão por que capitulara, pensava Miri, procurando convencer-se.
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Isso não explicava a esvoaçante e ridícula sensação que sentia, a mesma que já experimentara enquanto adolescente quando pusera o seu melhor vestido para fazer com
que Simon reparasse nela e deixasse de a ver como uma criança. Sentindo-se absurdamente envergonhada, ergueu a mão para verificar a fita que lhe segurava o cabelo
entrançado para trás, deixando cair a trança solta pelas costas. Ao fazê-lo, esfregou os dedos junto ao pescoço, apercebendo-se com ar culpado de que faltava uma
coisa.
O medalhão de Martin. Tirara-o quando tomara banho e esquecera-se de voltar a colocá-lo... Não, para ser sincera, tinha de admitir que o deixara deliberadamente
sobre a pequena mesa junto ao jarro e ao lavatório. Não importava o que acontecesse, sabia que teria de lho devolver e temia a dor que causaria ao seu querido amigo.
Ao cruzar o pátio, foi surpreendida quando Yves surgiu a correr do estábulo, parecendo perturbado. O rapaz tropeçou e parou quando a viu e Miri pensou que ele iria
ficar de novo envergonhado como acontecera antes.
Mas o rapaz correu para ela e puxou-lhe a mão. - Oh, Senhora Floresta. Tendes de vir já. Mestre Simon precisa de vós. Não há mais ninguém. Jacques teve que ir recolher
as ovelhas e um dos cordeiros desapareceu, por isso ele teve que levar Bertrand para o ajudar e só fiquei eu...
- Yves, por favor. - Miri pressionou delicadamente os dedos sobre a boca do rapaz para deter o frenético fluxo de palavras. - Diz-me só o que se passa. Aconteceu
alguma coisa a Simon?
- Não! - O rapaz parecia prestes a rebentar em lágrimas. É a Melda. Ela está a parir o seu bezerro e está tudo a correr mal.
Miri precipitou-se para o estábulo onde Simon já se encontrava. com o tronco nu, estava estendido sobre a palha ao lado de uma vaca com malhas castanhas, nitidamente
em estado de angústia. Manchado de sangue e sujidade, com o braço profundamente enfiado nas entranhas da vaca, fez uma careta quando as contrações lhe apertaram
o braço. Mas ficou consideravelmente aliviado ao ver Miri.
- Simon, o que se passa?
Ele resmungou. - O bezerro não está na posição certa. Deu a volta e quase não há espaço. Agora está em posição para saírem primeiro as pernas.
Não precisou de explicar-lhe o que aquilo significava. Se as pernas do bezerro saíssem primeiro, a bacia da vaca podia ser esmagada. Podiam perder-se tanto a mãe
como a cria.
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- Estou a tentar pôr uma corda à volta do bezerro, para poder dar-lhe a volta.
Miri acenou com a cabeça. Não pensou duas vezes, desapertando o corpete do vestido e fazendo-o deslizar pelos ombros, ficando em combinação, apesar dos olhos arregalados
de Yves. Agachou-se junto a Simon.
- Vá, deixa-me ser eu a fazê-lo. O meu braço é mais pequeno.
- E mais sujeito a ser esmagado. - Simon contraiu o rosto com nova contração, com a pélvis da vaca a apertar-lhe o braço. - Eu consigo fazê-lo. Só... só preciso
que segures a ponta da corda e puxes quando eu disser.
Miri ajoelhou-se a seu lado, limpando o suor do rosto de Simon enquanto ele procurava enfiar mais o braço na pélvis da vaca em tensão. Yves andava às voltas por
perto, torcendo as suas grandes mãos à medida que o tempo passava. Miri observou ansiosamente os esforços de Simon, mas tinha poucas esperanças. Mesmo com todas
as suas aptidões com animais, sabia que os bezerros nesta posição normalmente nasciam mortos. Seria um milagre se não perdessem também a mãe.
Simon cerrou os dentes e puxou com tudo o que tinha. A sua expressão infeliz alegrou-se um pouco enquanto ofegava. - Bem. Penso que tenho o laço preso em volta do
bezerro. Se puxares a corda, eu vou empurrar o bezerro e a cabeça deve dar a volta.
Miri fez como ele lhe pedia, segurando com força a ponta da corda, mantendo uma tensão firme. O rosto de Simon reanimou-se com entusiasmo. - Miri, acho que a cabeça
está a dar a volta. Continua a puxar.
Simon retirou o braço para a ajudar. Os dois trabalharam em conjunto até o bezerro emergir, primeiro a cabeça, depois o resto rapidamente. Yves quase dançou encantado,
mas o seu rosto enrugou-se ao ver o pequeno animal imóvel no chão do estábulo.
- Oh, m... mestre Simon. Está morto.
- Não - disse Miri, recusando desistir. Limpou a boca do bezerro e soprou-lhe para a garganta. Seguindo-lhe o exemplo, Simon aplicou pressão sobre as costelas do
animal. O bezerro arquejou, sacudindo a perna.
Ambos caíram para trás, exaustos, rindo de alívio, juntamente com Yves. Simon agarrou o bezerro e ergueu-o junto à mãe. A vaca, cansada, levantou a cabeça, cheirando
a sua cria. Esquecendo todo o cansaço, lambeu o seu bezerro. O pequeno animal esticou o pescoço e cambaleou até se pôr de pé.
Anteriormente, Miri testemunhara muitas vezes este milagre e nunca deixava de se comover. Mas até agora nunca tivera ninguém com quem
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partilhar os seus sentimentos. Quando o seu olhar se cruzou com o de Simon, viu que esta era uma magia que ele compreendia tão bem como ela. Ele esticou-se para
lhe agarrar a mão e a comunicação silenciosa que fluiu entre eles era mais profunda do que quaisquer palavras.
Miri encostou-se no estábulo, esfregando a testa do bezerro enquanto este a olhava com os seus grandes olhos castanhos aveludados. Yves saíra a correr excitadamente
para informar a mãe sobre o mais recente habitante da quinta, deixando Miri e Simon nas limpezas.
Fizeram-no de forma bastante eficiente, removendo todos os resíduos e colocando palha limpa. Era estranho, pensou Miri. Quase parecia que ela e Simon tinham trabalhado
juntos durante toda a vida.
com uma esfregadela, Miri limpou-se; tinha voltado a pôr o vestido, mas estava renitente em apertar o corpete, o que lhe restringiria de novo os movimentos. Sorriu
quando o bezerro procurou mordiscar-lhe os laços soltos. Quando recuou para pôr a salvo as fitas do corpete, olhou de relance para a sala dos arreios, onde Simon
se estava a lavar com o balde de água que Yves lhe trouxera.
Agora que a crise chegara ao fim, Miri entreteve-se a observar o que antes só fugazmente tinha notado, a grande extensão do tronco de Simon, a força dúctil nos seus
braços e ombros. Outrora achara belo o físico dele quando jovem; mas o homem era agora absolutamente magnífico.
Escapou-lhe um suspiro involuntário de admiração. Quando Simon se voltou para olhar na sua direção, ela baixou os olhos, um pouco envergonhada por ser apanhada a
espreitar gulosamente. Mas entrou na sala dos arreios para lhe procurar uma toalha.
Depois de Simon lhe agradecer, um daqueles estranhos silêncios caiu sobre ambos. Miri encostou-se à porta da sala, tentando não fixar Simon enquanto este enfiava
rapidamente a roupa lavada sobre o peito densamente coberto de pelos.
- Foi uma coisa maravilhosa a que acabaste de fazer, ao virar o bezerro. Quando é que aprendeste a fazer aquilo?
- Foi na minha terra. - Depois acrescentou, trocista: - Eu não nasci caçador de bruxas, Miri.
- Eu sei disso. Estou satisfeita por finalmente começares a lembrar-te disso.
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Ele não respondeu, hesitando um pouco enquanto esfregava a toalha pelo braço.
- Provavelmente vais ficar com algumas medonhas nódoas negras murmurou Miri.
- Valeram a pena - respondeu Simon com um sorriso doce, olhando o bezerro a ser amamentado.
Miri aproximou-se e deslocou a sua mão delicadamente ao longo da pele quente e nua do seu braço. Simon ficou tenso ao toque de Miri, mas quando o seu olhar se cruzou
com o dela, Miri sentiu o pulsar do desejo entre ambos. com relutância retirou a mão, voltando a sua atenção para o interior dos estábulos.
- Este é um grande estábulo, espaçoso e arejado, mas há tantas cocheiras vazias.
- Em tempos pensei criar cavalos.
- Porque não o fizeste?
- Não sei. Nunca estive aqui tempo suficiente, especialmente depois de começarem os ataques da Rosa de Prata.
- Mas, Simon, depois de ela ser derrotada, podes voltar para aqui, as sentar e...
Ele interrompeu-a abanando a cabeça. -Já te disse. Tentei antes e não funcionou.
- Porque afirmas que não pertences aqui, mas eu pergunto-me se realmente o tentaste. Por aquilo que Madame Pascal me conta, tu és pródigo a dar segundas oportunidades
às pessoas. Porque não a Simon Aristide?
Simon enrolou a toalha à volta do pescoço, com as pontas húmidas do seu cabelo negro despenteado a pender-lhe sobre o rosto enquanto lhe lançava um olhar prudente.
- Ah, com que então, agora falas sobre mim com a minha mordoma, tal como fazes com a minha égua. Não pensei que Madame Pascal gostasse tanto de bisbilhotices como
Elle.
- Esmee limitou-se a contar o que tu nunca farias, como lhe salvaste a vida. E não tentes fingir que foi por teu interesse que o fizeste. Nunca ouvi falar de nenhum
caçador de bruxas ter lucrado alguma coisa deixando fugir uma condenada.
- Esmee é tão feiticeira como tu és - resmungou Simon. - Só te posso contar o que lhe disse, que ajudá-la fazia parte da expiação dos meus pecados passados, e cometi
bastantes, não achas? Nada do que possa fazer será suficiente para justificar o que fiz na ilha Encantada e o que te fiz.
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Miri olhou-o docemente. -Já me parece bastante bem que estejas a tentar expiá-los. A maioria dos homens continuaria a desculpar-se, repetindo o mesmo erro vezes
sem conta.
- Não há qualquer garantia de que eu o não faça. - Simon afastou-se dela, apoiando as mãos na mesa. - É o medo que me torna tão difícil assentar aqui e esquecer
o passado. Aqui a vida é boa e eu... admito que adoro este lugar, pelo menos durante o dia, quando estou ocupado a cultivar a terra ou a cuidar do gado.
O rosto de Simon ensombrou-se, com um olhar atormentado a dominar-lhe o rosto. - Mas à noite a história é diferente. Tenho tempo demais para pensar e não posso fugir
daquilo que sou, daquilo que fiz, e fico ainda mais só.
- Não tem que ser assim, Simon. Há pessoas que querem esquecer o teu passado, mesmo que tu não o consigas; que querem... amar-te, desde que tu deixes que isso aconteça.
E uma delas estava precisamente à sua frente, embora Miri não se atrevesse a dizê-lo. Puxou-lhe pelo braço até ele se voltar para encará-la. Trémula pela sua própria
ousadia, espalmou a mão contra o peito de Simon. Fez correr os dedos pela superfície áspera, com a camada de pelos negros a contrastar com o aço sedoso dos seus
músculos.
Ergueu os olhos para ele, deixando transparecer neles o brilho do seu coração, confessando-lhe aquilo que não era capaz de dizer. Simon olhou-a fixamente, sustendo
a respiração com consciência do que ela lhe estava a oferecer... tudo o que não podia aceitar.
- Miri...
Mas ela silenciou-o com os lábios, com a sua boca tão doce e atraente a suspirar sobre a dele. Ele combateu a sua inevitável resposta, o endurecimento do seu membro.
Agarrando-lhe pelos ombros, procurou afastá-la delicadamente e os lábios dela separaram-se dos dele, mas a língua continuou a provocá-los.
com um gemido profundo, puxou-a para si em vez de a afastar. Esmagando-a contra si, devorou-lhe a boca, esfomeado, com o corpo desesperado pela necessidade dela
que há tanto tempo reprimia.
Lançou a cabeça para trás com um grito, recuperando a razão; qualquer impulso decente que tivesse por esta mulher estava reduzido a um fio.
- Miri - suplicou, destroçado. - Não me faças isto. Sabes bem como me é difícil resistir-te.
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- Então deixa de tentar - sussurrou ela, envolvendo-lhe o pescoço nos braços, colando-se a ele de tal forma que Simon podia ouvir o bater do seu coração, o toque
morno dos seus seios sob o corpete meio aberto.
A boca dela voltou a reclamar a dele e Simon sentiu o último fio reben tar. Beijou-a sofregamente, enfiando-lhe as mãos no cabelo. Mas o fogo da sua paixão foi subitamente
interrompido quando ouviu vozes. Era Yves que voltava ao estábulo, sem dúvida com a mãe atrás.
Simon afastou-se precipitadamente de Miri, ficando cada um deles a olhar-se consternadamente. O rosto dela ruboresceu, tinha o aspeto inconfundível de uma mulher
que acabava de ter sido ansiosamente beijada, e ele receou que o seu rosto estivesse igualmente revelador.
Reunindo as suas dispersas astúcias, saiu da sala dos arreios, disposto a escudá-la de qualquer embaraço.
Yves entrou no estábulo, anunciando alegremente: - Por aqui, monsieur. Ela está aqui.
Monsieur? Simon contraiu-se. Ele já antes avisara o rapaz para desconfiar de quaisquer estranhos que se aproximassem da quinta, mas o homem que entrara no estábulo
atrás de Yves não parecia ameaçador.
O homem alto e atraente envergava uma capa riscada e um chapéu emplumado, o seu traje era elegante, apesar de obviamente ter sofrido os efeitos de uma longa e dura
viagem. Qualquer ameaça que existisse provinha do brilho glacial dos seus olhos.
Quando os seus olhares se cruzaram, Simon reconheceu-o. Sabia quem era o homem, mesmo antes de Miri aparecer vinda da sala dos arreios. O seu rosto ficou pálido
com o choque enquanto gritava: - Martin!
Martin, o Lobo, encaminhou-se a passos largos até meio do estábulo, parando subitamente quando Simon o intercetou, os dois homens a olharem-se mutuamente num antagonismo
velho de anos, embora a reserva fosse maior por parte de Simon enquanto estudava o seu adversário.
Reconheceu poucos traços do arrogante rapaz que recordava daquele já remoto verão. Martin, o Lobo, parecia ter crescido mais alguns centímetros, os seus ombros tinham-se
alargado e a sua face esbelta exibia barba aparada e bigode. Era odiosamente bem-parecido, tal como Miri fizera crer a Simon, mas não havia nele nada da efeminação
de um cortesão, apesar do seu caprichoso gibão e bombachas. Quando puxou a capa para trás, a mão pousou-lhe no punho da espada; havia no homem uma aura de perigo,
uma emoção raivosa nos seus olhos verdes, sofrimento misturado com acusação.
O olhar de Simon pestanejou para onde deixara a sua própria espada, encostada à cocheira de Melda, onde tinha tirado a camisa e o gibão. Mas retraiu-se ao reparar
no rosto de Miri. Parecia louca de apreensão, mas aproximou-se de Lobo, procurando sorrir.
- M... Martin, que grande surpresa.
- Evidentemente - disse ele, esquadrinhando com o olhar o corpete desapertado de Miri, de tal maneira que o sangue voltou a subir-lhe às faces. Remexeu nas fitas,
aparentando estar tão miseravelmente culpada que Simon quis socar os olhos de Lobo. Colocou-se em frente de Miri numa atitude protetora, um gesto que levou Lobo
a olhá-lo com semblante carregado.
O único alheio à crescente tensão era Yves, que avançou, tagarelando alegremente: - Não é o melhor dia de sempre? Primeiro mestre Simon regressou
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trazendo com ele a Senhora da Floresta, depois Melda teve o seu bezerro, e agora o amigo da senhora Miri vem visitar-nos. Não é o mais formoso companheiro que já
se viu? - Yves sorriu com admiração para Lobo. - Vede que esplêndido chapéu usa...
Yves emudeceu, olhando apreensivamente ora para Lobo, ora para Simon, à medida que começou a sentir que havia algo errado. - Mestre Simon, fiz alguma asneira? Esqueci-me
da regra sobre estranhos, não foi? Mas... mas Monsieur Martin disse que era amigo de Miri.
- E é - apressou-se Miri a tranquilizar o rapaz. - Não fizeste nada de errado.
- Então porque é que mestre Simon está a olhar para mim tão zangado?
- Não estou zangado contigo, Yves. - Apesar da sua própria tensão, Simon conseguiu falar com Yves num tom suave. - Não te preocupes. Está tudo bem.
- Lamento discordar de vós, Monsieur le Balafre - respondeu Lobo, mostrando os dentes. - Mas acho que esta situação não está nada bem.
- Martin, por favor. - Miri procurou intercetá-lo, mas ele afastou-a, aproximando-se ameaçadoramente de Simon.
- Há muito que existe um ajuste de contas a fazer entre nós dois, Mestre Caçador de Bruxas, e acabastes de aumentar o vosso débito. Como se não bastasse toda a dor
que haveis infligido a Miri no passado, tivestes agora o descaramento de a atrair para longe da ilha Encantada e colocá-la sob grande perigo, pedindo-lhe ajuda na
caça à vossa feiticeira.
- Martin, as coisas não são assim - interrompeu Miri, mas Lobo continuou furiosamente.
- Por Deus, se também haveis interferido com a inocência da minha senhora, impugnado a sua honra, eu...
- O único que está a impugnar a sua honra sois vós - rugiu Simon. - Percebo o que isto pode parecer, mas aconselho-vos a controlar-vos e a pensar duas vezes antes
de voltardes a falar.
Lobo desapertou a capa, tirando-a e lançando-a para o lado. Seguiu-se rapidamente o chapéu. - Sou homem de poucas palavras, senhor, prefiro a ação.
- A sério? A memória que tenho de vós é a de que não conseguis ter a vossa boca fechada por mais de dois segundos de cada vez.
Os olhos de Lobo faiscaram. A réplica de Simon não contribuíra nada para melhorar a situação. Mas achava a tendência do homem para o drama
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verdadeiramente irritante. Nada lhe daria mais prazer do que agarrar Lobo pela gola do seu elaborado gibão e atirar com ele para fora do estábulo. Mas Simon era
suficientemente justo para admitir que Lobo tinha alguma razão para a sua fúria. Sabia como se teria sentido se encontrasse Miri nos braços de um muito odiado inimigo,
portanto lutou por manter o seu temperamento controlado.
Quando Lobo fez menção de puxar a espada da bainha, Miri agarrou-lhe o braço. - Não, Martin, pára! com certeza podes ver que Simon não está armado.
- Isso remedeia-se facilmente. - Sacudindo Miri, Lobo dirigiu-se ao sítio onde Simon deixara a sua espada encostada. Apanhando-a, lançou-a a Simon, com bainha, cinto
e tudo o mais.
Num reflexo, Simon apanhou-a, mas não fez qualquer movimento para a empunhar. Yves encolheu-se contra a parede do estábulo, gemendo, sem perceber o que se estava
a passar, mas assustado por ver a espada. Simon também conseguia ouvir Elle. Pressentindo o dono em perigo, a égua deu um relincho estridente e desferiu um coice
na cocheira. Mas o olhar de
Simon concentrou-se no rosto de Miri. Estava branca, torturada por memórias de outro local e de outro tempo, quando observara dois homens de quem gostava a procurarem
matar-se, algo a que Simon prometera não voltar a sujeitá-la.
- Por favor, não - soluçou, mas dirigia a sua súplica como se ele sozinho tivesse o poder de impedir que as coisas fossem mais longe. E estava provavelmente certa,
porque Lobo parecia estar para além do alcance da razão.
- Não te preocupes, minha querida - tranquilizou-a Simon. - Não tenho intenção de lutar com ele. - Simon lançou a espada ao chão. Caiu sobre o chão coberto de palha
com um baque mudo.
Os lábios de Lobo contorceram-se num ricto enquanto perguntava:
- O que se passa, caçador de bruxas? Oh, tinha-me esquecido. Preferis que os vossos oponentes sejam mulheres indefesas e, mesmo assim, gostais de ter um exército
a proteger-vos as costas.
O golpe verbal de Lobo fez efeito. Simon rangeu os dentes, decidido a não tolerar a provocação.
- Martin, não - instou Miri, ferozmente, mas Lobo ignorou-a.
- Miri pode ter esquecido toda a devastação que vós e os vossos homens haveis provocado na ilha Encantada, mas eu não esqueci. Uma qua drilha
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de vis cobardes a aterrorizar pobres anciãs e raparigas. É para isso que estais aptos? Tendes medo de enfrentar outro homem?
Simon fixou Lobo com um olhar glacial. - Não, simplesmente tenho o bom senso suficiente para não me envolver num duelo inútil que só causaria ainda mais sofrimento
a Miri. Se porventura a conhecêsseis minimamente, teríeis consciência do quão doloroso isto é para ela. Já para não mencionar o facto de estardes a assustar Yves
e a enervar a minha égua. Portanto, ou vos acalmais ou saís do meu estábulo.
- Muito bem. Resolvamos o assunto lá fora.
Simon cruzou os braços sobre o peito. - Não vamos resolver o assunto para lado nenhum. Já vos disse. Não combato nenhum homem sem uma boa razão.
- Razão? Quereis uma razão? - rosnou Lobo. - Que tal esta?
O seu punho disparou com a rapidez de um relâmpago e Simon não teve hipótese de se esquivar. O soco atingiu-o na face, fazendo-o cambalear para trás, com o maxilar
a explodir-lhe de dor. Miri gritou em protesto, mas antes que pudesse reagir, Yves agarrou o braço de Martin.
- Não. Não deveis agredir mestre Simon - bramiu.
Lobo empurrou impiedosamente o rapaz. Yves tropeçou e caiu contra uma das cocheiras. O temperamento de Simon, até então tenso mas refreado, estalou. Praguejando
ferozmente, lançou-se sobre Lobo e atirou-o violentamente contra a parede do estábulo.
Lobo ripostou, procurando atingir o rosto de Simon com outro soco, mas este desviou-se e o punho do adversário raspou-lhe apenas a orelha. Simon desferiu uma série
de socos no abdómen de Lobo até este se dobrar e cair de joelhos.
Puxando o punho atrás, Simon quase não conseguiu evitar o golpe seguinte quando Miri se interpôs entre ambos. A visão do seu rosto apavorado enquanto se dobrava
sobre Lobo travou a fúria incontida de Simon.
Ele recuou, arquejando, enquanto Jacques e outro moço de estrebaria, Bertrand, entravam de rompante no estábulo, atraídos pelo ruído. Num relance, o velho Jacques
percebeu a situação. Ele e Bertrand agarraram em Lobo ainda sem fôlego, sob os protestos de Miri. Bertrand, em especial, parecia pronto para retomar a refrega no
ponto em que Simon a deixara.
Simon endireitou-se, com a respiração forte e acelerada. Saboreou sangue nos lábios enquanto observava o caos no estábulo. Yves estava de cócoras, encolhido, a chorar
com as mãos na cabeça. Ele empinava-se e mergulhava
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na sua cocheira, com o perigo de se magoar nos seus esforços desesperados para chegar até Simon. Até o impassível Samson bufava e escoiceava e o novo bezerro berrava
desconsoladamente.
Quando os seus homens se preparavam para arrastar Lobo para fora e ensinar-lhe a devida lição", Simon interveio: - Não, deixem-no ir.
Indecisos, Jacques e Bertrand afrouxaram a preensão sobre Lobo, que se sacudiu e libertou, endireitando-se, procurando recuperar alguma da sua dignidade. Simon dirigiu-se
a passos largos para Yves, rodeando o rapaz com o seu braço, enquanto Jacques e Bertrand se apressaram a acalmar Elle e os outros animais.
Simon agarrou o queixo de Yves, forçando delicadamente o trémulo rapaz a olhar para ele.
- Já acabou, rapaz - sossegou-o. - Estás a ver? Já acabou. Agora anda e ajuda-me a convencer Elle disso mesmo.
com lágrimas nos olhos, o rapaz fungou e acenou com a cabeça.
O olhar atormentado de Miri esvoaçava entre Lobo e Simon. Aproximou-se de Simon, vacilante. - Oh, Simon, lamento muito...
Simon acenou-lhe bruscamente. - Não te preocupes com isso. - Fixou Lobo. - Põe-no daqui para fora.
Não esperou para ver se a sua ordem era executada e dirigiu toda a sua atenção para a tarefa de repor a paz no estábulo. Só depois de conseguir fazer com que Yves
e Elle deixassem de tremer é que olhou de relance para trás e viu que Miri e Lobo tinham saído.
Lamentou ter sido tão ríspido com Miri. Não queria que ela pensasse que a considerava de alguma forma responsável pelo que acontecera. Se ele e Lobo não tivessem
perdido a cabeça, a situação nunca se teria tornado tão feia, embora o Diabo soubesse como ele tentara evitá-la.
Esfregou cuidadosamente a mão no seu formidável maxilar, preocupado por Miri estar sozinha com Lobo, quando ele estava ainda tão exaltado. Não que receasse que ele
a pudesse magoar fisicamente, mas, para Miri, palavras brutais eram tão más como qualquer agressão física. Entregando Yves ao cuidado ríspido mas bondoso de Jacques,
Simon voltou a vestir a camisa e o gibão de pele. Encaminhou-se para a entrada do estábulo, procurando cuidadosamente Miri e não querendo começar novo confronto
com o seu namorado de cabeça quente.
Viu o casal perto da lagoa e, com a silhueta recortada pelos últimos raios ígneos do pôr do Sol, o cavalo de Lobo estava preso pela trela nas
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proximidades. Simon descontraiu-se, algo aliviado. Embora Lobo tivesse Miri agarrada pelos ombros, parecia estar a desculpar-se perante ela e simultaneamente a repreendê-la,
sem dúvida procurando convencê-la a montar e a partir imediatamente atrás dele, recordando-lhe quanto a amava e quão desgraçado era Simon. Miri abanava a cabeça,
com o queixo erguido naquele teimoso ângulo que Simon conhecia tão bem, mas também sem fazer o mínimo movimento para se afastar de Lobo.
Era tudo o que Simon podia fazer para não começar a correr para eles. Enquanto observava os dois juntos, sentiu-se como se um demónio de ciúme estivesse a roer-lhe
o coração. Agora tinha uma ideia do que Lobo sentira quando os descobriu, a ele e a Miri, juntos.
Havia uma diferença. Simon não tinha o direito de sentir ciúmes porque Miri não lhe pertencia, não como pertencia a este atraente homem que fora o seu devoto amigo
durante anos e que tivera o apoio da sua família para partir à sua procura.
Durante alguns fugazes momentos no estábulo, Simon pudera sonhar com a felicidade de sonhos recordados e esperanças esquecidas. Quando tivera Miri nos seus braços
e a beijara, e ela o olhara com a mesma fome que ele sentia, quase se atreveu a acreditar no que vira a brilhar no rosto dela, todo o amor que ela tinha para lhe
dar. E, Deus lhe valesse, esteve quase a ser suficientemente louco para o aceitar.
Se Lobo não tivesse chegado naquele momento... Simon soltou um suspiro repleto de azedume e remorso. Não, ainda bem que Lobo chegara, recordando-lhe a ele e a Miri
aquilo que corriam o perigo de esquecer. Esta quinta, tranquila como parecia, não era uma ilha encantada, isolada do resto do mundo. Não havia forma de fugir ao
seu passado, nem aqui nem em lado nenhum, o que era algo que sabia desde sempre.
Conseguira manter a sua promessa perante Miri, evitar qualquer desfecho trágico desta vez. Mas nem os amigos dela nem a família estariam dispostos a entregá-la a
um degenerado como ele. E depois de tudo o que ele fizera, porque haviam de o fazer? Da próxima vez que alguém viesse procurá-la, os assuntos corriam o risco de
serem resolvidos com sangue. Se fosse o feiticeiro, Renard...
Simon apertou o maxilar, não querendo sequer pensar no assunto. Era muito melhor que Miri partisse com Lobo imediatamente. Este doce interlúdio que tinham partilhado
viria a ter um fim abrupto, mais cedo do que Simon podia esperar. Pensara que iriam ter mais tempo...
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Mas tempo para quê? Para tornar a sua inevitável separação ainda mais dolorosa? Enquanto Simon observava Miri com Lobo, a sua proximidade era óbvia apesar da discussão.
Simon não sabia como poderia haver ainda maior dor do que esta.
Martin agarrou Miri pelos ombros, os seus olhos verdes reviravam-se com raiva, dor e ultraje. - Maldição, Miri. O que estavas a pensar? Partir com este pérfido canalha?
Como podias fazer-me isso e à tua família? E que raio queres tu dizer com pedir desculpa àquele bastardo?
Dividida entre a ira e a culpa, Miri olhou-o ameaçadoramente. - Alguém tinha de o fazer e era óbvio que tu não o farias. Pelo menos devias ter dito a Yves que estavas
arrependido. Como pudeste maltratá-lo daquela maneira? Apesar da sua corpulência, não conseguiste ver a boa alma que há nele, pouco mais do que uma criança?
Martin corou, aparentando vergonha e desconforto. - Reconheço isso agora e lamento. Nunca o quis fazer... - Largou-a, erguendo as mãos num gesto frustrado. - Maldição!
Quando é que me tornei no vilão desta peça?
- Quando apareceste a pavonear-te nas terras de Simon, a discursar e a gritar como... como um ator a representar com exagero numa farsa de mau gosto.
- Exagero - repetiu Martin em tom abafado. - Mon Dieu, mulher! Não fazes ideia do que passei nestas últimas semanas, procurando encontrar o teu rasto no comprimento
e na largura de França, esforçando-me até à beira da exaustão, louco com a preocupação de estares nas garras daquele caçador de bruxas. Quando Marie me contou...
- Não posso crer que ela o tenha feito - interrompeu Miri. - Prometeu-me fielmente que não contaria a ninguém.
- O que esperavas que a pobre mulher fizesse depois de partires numa missão demente para combater uma malvada feiticeira e à procura da ajuda daquele réptil rastejante?
Quando cheguei à ilha Encantada, ela estava praticamente histérica.
Miri lançou-lhe um olhar impaciente. - Marie nunca foi histérica em nenhum dia da sua vida e tu sabes isso, Martin. Lamento tê-la apoquentado. Marie, pelo menos,
entendeu porque parti. Não tive outra escolha.
- Tinhas, sim. - Martin bateu com o punho no peito. - Podias ter-me procurado.
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- Mesmo que tivesse tempo para o fazer, como, em nome de Deus, poderia eu descobrir-te? Quando vivia em Pau com a minha irmã, metade do tempo nem sabia onde estavas.
Andavas sempre envolvido em alguma missão ou em qualquer outra louca aventura ao serviço do rei de Navarra.
- Louca aventura? Atreves-te a falar-me de aventuras loucas? - questionou Martin, agitando-lhe furiosamente o indicador em frente do rosto. Quando ela lhe afastou
a mão, ele recuou alguns passos, erguendo os braços e gritando: - Isto... isto é inacreditável. Estamos a ter uma discussão de amantes quando nunca o fomos realmente.
Durante todo este tempo, adorei-te e respeitei-te tanto que mal me atrevi a beijar a orla do teu vestido. Então chego aqui e encontro-te com Aristide seminu e tu
com os laços desfeitos.
- Tínhamos acabado de ajudar a parir um bezerro, Martin.
- Oh, é assim que lhe chamam aqui no campo? Tínhamos um termo bastante diferente para isso nas ruas de Paris.
As faces de Miri ruboresceram escaldantes. - A minha castidade conti nua intacta, se é isso que te preocupa.
- O que me preocupa é esse bastardo ter tido as mãos sobre ti, ter-te seduzido...
- Ele não estava a seduzir-me. Eu sim, estava a seduzi-lo. Eu amo-o. - As palavras brotaram-lhe mais abruptamente do que alguma vez pretendera. Acrescentou num tom
mais tranquilo: - Sempre o amei.
Martin empalideceu, mas abanou a cabeça num gesto familiar de negação. - N... não, tu não o amas. Estás apenas confusa, é tudo. Ele sempre conseguiu provocar isso
em ti, maldito homem. Pela maneira como te enfeitiçou, bem poderia ele mesmo ser um qualquer feiticeiro amaldiçoado por Deus. Mas não há maneira de poderes estar
apaixonada por ele; não depois de todas as coisas terríveis que fez à tua família, depois de te ter traído uma vez após outra.
- O Simon mudou...
- O diabo é que mudou. Quando se é vilão, é-se para sempre. - Martin cruzou os braços sobre o peito, mas, sob a sua ira, Miri conseguia ver a profundidade da ferida
que lhe provocara.
Pousou-lhe delicadamente a mão no ombro, com os olhos a arderem-lhe com remorsos. - O único vilão que há aqui sou eu. Tens todo o direito de estar furioso e perturbado
comigo. Nunca quis magoar-te, mas traí-te.
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Martin lançou-lhe um olhar desolado. - Disseste que não tinha acontecido nada nos estábulos. Que ele não tinha... que tu não tinhas... que ainda eras virgem.
- Não estou a falar desta noite. O dia em que te traí foi quando te deixei colocares aquele medalhão ao meu pescoço e deixei que tivesses esperanças...
- Não digas isso, Miri - interrompeu-a com a respiração ofegante. Afastou-lhe o cabelo para trás no pescoço. - O meu medalhão... não estás a usá-lo.
Miri teve dificuldade em enfrentar o seu olhar magoado. - Não, mas tenho-o guardado. Queria devolver-to na próxima vez que nos encontrássemos.
- Não o aceito - disse rispidamente. Engoliu prolongadamente em seco, procurando sorrir. - O quê, minha Senhora da Lua? Depois de me roubares o meu coração, também
queres roubar-me todas as minhas esperanças e sonhos?
- Meu muito querido amigo. - Miri pousou-lhe a mão ao longo da face. - Há anos que eu deveria saber que não podia ser aquilo que tu querias que eu fosse. Mas eu
estava tão só, tão infeliz, e precisava tanto da tua amizade... mas não é desculpa. Nunca deveria ter permitido que tivesses mais esperanças do que isso. Provoquei-te
o maior dos erros.
- Nunca! - insistiu ele, pegando-lhe na mão e depositando-lhe um beijo na palma. - Este não é o melhor momento para discutirmos isso. Estamos ambos cansados e perturbados,
dizendo aquilo que não queremos dizer.
"Tinhas razão ao dizer que eu estava sempre fora em alguma louca aventura. Mas... mas eu modifico-me, juro. Tenho a certeza de que o rei me tem estima suficiente
para me oferecer uma posição na sua corte e poderemos passar a residir no palácio. Ou numa bela casa em Nerac.
- Oh, Martin! - gemeu Miri. Ele continuava a recusar dar atenção a tudo o que ela lhe dizia.
Ele prosseguiu apressadamente: - Não temos que decidir nada agora. O importante é tirar-te deste lugar miserável.
Pegando-lhe no pulso, puxou-a para junto do seu cavalo como se pretendesse partir à desfilada com ela, no seu típico estilo impulsivo. Nunca lhe iria ocorrer que
ela teria deixado para trás a sua montada e os seus pertences até terem já percorrido várias milhas de estrada. Nem sequer notou nela a tentar protestar ou ver-se
livre das suas mãos.
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- Não estamos assim tão longe de Paris. Podíamos lá estar antes do amanhecer. Só preciso de consultar um banqueiro sobre alguns fundos que vão ser secretamente desviados
para Navarra. Depois ficarei livre para preparar a nossa jornada de regresso a Pau.
Miri afundou-se nos calcanhares. - Não tenho intenção de ir a qualquer lugar. Esqueceste a primeira razão por que me aliei a Simon? A questão da Rosa de Prata ainda
está por resolver.
- Deixa que o caçador de bruxas trate dessa malvada feiticeira. É o dever dele, não é? E talvez, se tivermos sorte, eles acabem um com o outro.
- Martin! - Miri puxou pela mão até se soltar. - Também é o meu dever. Esqueceste quem sou?
- És a senhora que eu adoro, a minha melhor e mais viva razão de ser. Miri soltou um suspiro impaciente. - Acontece também que sou uma Filha da Terra e uma das irmãs
Cheney da ilha Encantada. Na ausência de Ariane, é minha responsabilidade encontrar esta Rosa de Prata e impedi-la de provocar mais mal.
- Está bem. Está bem. Eu tratarei da feiticeira depois de te mandar para casa.
- Alguma vez ouves aquilo que eu te digo? - perguntou Miri, indignada. - Não me vais mandar para lado nenhum. És tu quem não precisa de se envolver nisto. Devias
seguir para Paris e tratar dos teus assuntos com o rei...
- E deixar-te aqui sozinha com um homem de quem não gosto e em quem não confio? Um homem que mostrou perante mim que tem uma inquietante tendência para... para assistir
à parição de vacas. - Acho que não, minha querida.
Olharam-se mutuamente, com os olhos presos num confronto de vontades, mas por uma vez Martin pareceu perceber a verdadeira medida da sua determinação.
- bom! - Revirou os olhos, erguendo as mãos num gesto dramático de rendição. - Se queres caçar bruxas, vamos caçar bruxas. - A boca retorceu-se-lhe com pesar. -
Suponho que não conseguirei persuadir-te de que podemos resolver o assunto por nós mesmos e dispensar os serviços de Monsieur Ciclope.
Miri franziu o sobrolho, expirando longamente, mas ele ergueu a mão para a travar.
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- Não interessa. Era apenas uma sugestão. Completamente sensível e deliciosa, pensei eu, mas posso ver que não estás tão enamorada pela ideia como eu.
Ela apertou-lhe a mão e disse-lhe seriamente: - Meu querido amigo, és um homem muito inteligente e corajoso, um dos mais valentes que já conheci. Mas duvido que
Simon se alie a nós. Não depois da cena do estábulo. E, francamente, eu própria não o suportaria, tendo-vos a ambos constantemente prestes a puxar pelos punhais.
- Não seria assim, juro. Se ele conseguir retrair-se, certamente que eu também consigo - protestou Martin com um olhar de ofendida inocência.
- Conheces-me, Miri. Obedeço ao teu mínimo desejo. Se a minha Senhora da Lua mo ordenar, eu tratarei aquele patife, miserável e falso, como se fosse meu irmão. Será
exatamente como... como Abel e Caim.
Miri regressou ao estábulo, esfregando a testa. Doía-lhe a cabeça de ter procurado convencer Martin de que seria melhor ele partir. Esquecera-se de quão teimoso
podia ser o seu amigo. Ele insistira que, quer Simon autorizasse quer não, ia ficar, mesmo que tivesse que erguer uma tenda à porta da casa.
Era perfeitamente capaz de levar por diante tal ameaça e Miri sentiu um nó no estômago com a perspetiva de mais um confronto entre os dois homens. Embora Simon se
tivesse comportado com uma tolerância que a surpreendera, Miri encolheu-se perante a perspetiva de a sua paciência ser de novo posta à prova.
Entrou no estábulo para encontrar tudo muito mais calmo do que quando saíra. Yves e os moços tinham já saído, deixando Simon sozinho. Ele estava na cocheira com
Elle, dobrado a examinar as patas dianteiras da égua. Receando que a égua se tivesse magoado no meio da agitação na cocheira, Miri correu para eles, exclamando:
- Simon, o que é? Elle magoou-se?
Embora Simon se contraísse à sua aproximação, limitou-se a olhá-la de relance. Terminando o seu exame à outra pata de Elle, disse bruscamente:
- Não, parece que está bem.
- E Yves?
- Ele está bem. Mandei-o ter com a mãe.
- E... e tu?
- Eu também estou bem.
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Quando Simon se endireitou lentamente, Miri pensou que ele estaria tudo menos bem. Não esperava que lhe tivesse agradado a chegada de Martin. Antecipara até que
ainda podia estar furioso. Teria preferido isso aos modos que ele aparentava, fechado e distante. O seu lábio estava gretado e inchado no local onde Martin o agredira,
mas quando Miri tentou observar a ferida, Simon afastou-se.
- Tens de deixar-me pôr um pouco de salva no golpe.
- Eu próprio posso tratar disso.
- Tenho a certeza de que podes, mas... - Miri hesitou, desencorajada com a expressão ameaçadora de Simon. Considerando a forma como fora abraçada por ele antes de
Martin chegar, o contraste nas maneiras de Simon era doloroso. Elle era muito mais acolhedora, bufando suavemente e empurrando Miri com a cabeça.
Enquanto Miri esfregava o nariz aveludado da égua, disse: - Simon, lamento muito tudo o que aconteceu. Eu... eu não fazia ideia de que Martin iria aparecer aqui
e a comportar-se tão mal. Nem sei dizer-te como te estou grata por teres recusado o seu desafio.
- Eu tinha-te dito que jamais voltaria a sujeitar-te a tão dolorosa experiência - disse Simon, laconicamente. - Depois de todas as vezes que te menti, já era tempo
de manter pelo menos uma das minhas promessas, não achas?
- Apesar disso, reconheço como te deve ter sido difícil manteres-te controlado quando Martin estava a ser tão provocador. Teve muito mais significado para mim do
que poderia explicar-te. - Humedeceu os lábios nervosamente e continuou: - Atrevo-me a dizer que Martin até te pediria desculpa, se... se não fosse tão obstinadamente
orgulhoso e teimoso. Ele gostaria de... de...
- Salvar-te das minhas garras? Era isso que eu esperava, que ele viesse buscar-te para te levar para casa, mas está a ficar muito tarde para vocês partirem ainda
hoje. Não tardará muito até ser manhã e eu posso tolerar o teu noivo até lá.
Simon saiu da cocheira e afastou-se como se o assunto estivesse resolvido. Momentaneamente surpreendida, Miri correu atrás dele. - Eu não sou noiva de Martin nem
tenho a intenção de o ser. Se o fosse, pensas que alguma vez te teria beijado e acariciado daquela maneira? Que espécie de mulher julgas que sou?
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- Uma mulher com pouca experiência no que toca à paixão. Devia ter-te impedido antes de sermos apanhados no calor do momento. Estavas confusa...
Para sua surpresa, os olhos de Miri brilharam de fúria. - O próximo homem que me disser o quão confusa estou vai levar um soco nos olhos. Eu sei o que o meu coração
me diz, Simon.
- O que está a dizer é mentira. Partilhámos alguns beijos quentes, foi tudo. Ainda bem que o Lobo chegou para te levar...
- Não vou a lado nenhum até termos derrotado a Rosa de Prata e já estou mais do que farta de que me digam o que devo fazer e o que é suposto eu sentir. - Miri girou
sobre os calcanhares, precipitando-se para a porta do estábulo. Parou para olhar para ele de relance sobre o ombro. - Ah, e não fiques alarmado, Simon. Não me vou
atirar a ti de novo, nem tenho qualquer intenção de casar com Martin. Todos os homens provocam mais sarilhos do que aqueles que merecem. Quando tudo isto acabar,
vou para casa, para o meu gato.
Era tarde e a Lua brilhava no céu. Miri sentou-se no banco de madeira à beira da lagoa, com as saias puxadas para cima, que revelavam as suas pernas bem torneadas
enquanto balouçava os pés na água, com o cabelo luminoso sobre as costas.
Simon observava do arvoredo. Devia ter insistido para que ela voltasse para dentro de casa. Era extremamente imprudente ficar ali fora sozinha durante a noite, mesmo
nas suas terras. Mas compreendia as razões por que o fazia. Estava magoada pela sua rejeição e perturbada pela tensão entre ele e o Lobo. Tudo isso levara Miri até
à água e a suave brisa da noite iria ajudá-la a recuperar o seu sentido de harmonia.
O Lobo era um idiota romântico, mas Simon podia entender o que o levava a chamar a Miri a Senhora da Lua. Havia algo etéreo em Miri, mas também havia uma paixão
e uma força que passavam inteiramente despercebidas ao outro.
- Talvez seja melhor dirigires esse teu olhar quente para outro lado, caçador de bruxas, antes que percas o outro olho.
Simon sobressaltou-se com a voz sedosa que silvava para ele. Voltou-se para descobrir Lobo atrás de si, com os dedos agarrados ao punho da espada.
- Mon Dieu, como eu gostaria de vos atravessar já aqui e agora.
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- E porque não o fazeis? - perguntou Simon.
Lobo olhou-o fulminantemente, frustrado e deixando cair a mão ao lado do corpo. - Porque temo que ela nunca mo perdoasse se o fizesse.
- Para além dos limites do perdão de Miri estende-se um sítio desolado e frio. Sereis sensato em evitá-lo. Acreditai-me, sei-o bem - retorquiu Simon, cansado. -
Não a segui até aqui esta noite com qualquer propósito de luxúria em mente. Não é seguro para ela estar aqui sozinha.
- Cuidar de Miri é missão minha, não vossa. Eu sou aquele que mais ardente e devotamente a adorou ao longo dos anos.
- Em vez de cuidar dela, talvez para variar devêsseis procurar olhar realmente para ela - sugeriu Simon. - Ela não é uma qualquer deusa, uma qualquer Senhora da
Lua para ser reverenciada de longe. É apenas uma mulher, se bem que uma mulher notável, com necessidades de mulher...
- Não preciso que gente como vós me diga seja o que for sobre a minha senhora - grunhiu Lobo.
- Não? Achais mesmo que ela será feliz aprisionada em alguns aposentos de um palácio, afastada dos grandes espaços do campo e das florestas?
- Ela estará muito mais feliz comigo do que estaria convosco nesta quinta deplorável. Pelo menos anda teria a família. Haveis despedaçado a vida dela uma vez na
ilha Encantada. Seríeis capaz de procurar agora separá-la das irmãs para sempre? Eu posso não ser merecedor da minha Senhora da Lua, mas vós com certeza não o sois.
- Julgais que eu não sei já disso? - perguntou Simon, passivamente. Rodando sobre os calcanhares, afastou-se, dizendo: - Cuidai dela e assegurai-vos que ela volte
para dentro de casa em segurança.
com má cara, Martin observou o seu inimigo desaparecer na escuridão. Esta mansa resposta dificilmente seria a que esperava obter do implacável Aristide. Por um momento,
até tinha parecido que o degenerado realmente se preocupava com Miri. Mas Aristide sempre fora um bom mentiroso, abusando da confiança e inocência de Miri e traindo-a.
Mas o caçador de bruxas não era o único, pensou Martin desconfortavelmente. O pecado também lhe pesava bem fundo na sua alma, por muito que procurasse esquecê-lo,
lançá-lo para o mais escuro e profundo recanto da sua consciência.
O seu amor por Miri tinha ainda poucos dias quando, naquela noite há dez anos em Paris, se deixara arrastar para a cama de uma bruxa...
Megera encolhera-se no meio da sua enorme cama, com o corpo apertadamente curvado como que para se afastar de uma agressão. Exausta pelo trabalho que tivera com
o Livro das Sombras, dormia profundamente, alheia à figura silenciosa da mãe que andava à sua volta.
Cassandra tateou até sentir o cobertor, puxando-o com uma rara suavidade para sobre os frágeis ombros da sua filha. Megera moveu-se, inquieta, na sua almofada enquanto
Cassandra passava os dedos pela face da jovem. Mesmo a dormir, Megera procurava afastar-se dela.
A filha ultimamente andava a fazer muito isso. Cassandra tocou no seu medalhão e cismou. Outrora era capaz de adivinhar todos os pensamentos de Megera. Agora já
não tinha a certeza disso. A filha parecia estar a ficar cada dia mais sigilosa, como se a sua vida estivesse a tornar-se numa entidade completamente separada da
de sua mãe e esse pensamento enlouquecia-a.
Para Cass, os seus melhores tempos foram quando Megera ainda se encontrava no interior do seu útero, com os seus dois corações a baterem em uníssono, partilhando
a respiração, partilhando o sangue, com Megera inteiramente dependente de Cass para a sua própria existência. Sentira-se tão próxima da filha quando Megera não era
mais do que um esvoaçar de movimento, uma crisálida de todos os seus sonhos e ambições, tão plena de promessas. Naquela altura não houvera frustração, deceção ou
apreensão quanto a fracassos. E nem sinal de retiro taciturno de Megera, da sua evidente preferência por outras pessoas, como a senhora Waters e agora aquela miserável
jovem Moreau. Nem sinal de Megera a oferecer a estranhos a confiança ou o amor que eram devidos à sua mãe. Cass temia que a única
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amarra que a prendia à filha estivesse no medalhão suspenso sobre o coração de Megera.
O coração de Cass torcia-se com a dor da rejeição que raramente se permitia sentir. Quando se carrega uma criança no útero, se atravessam as agonias do parto, se
dedica a vida à filha, trabalhando e calculando em todos os momentos do dia para tornar grande aquela criança, então com toda a certeza ela terá de amar a mãe...
mesmo que mais ninguém o faça.
Cass engoliu em seco, procurando desesperadamente convencer-se de que aquilo não interessava.
- Quer me ames, quer me odeies, és minha, minha Rosa de Prata. E serás sempre - sussurrou, passando os seus dedos suavemente pelo rosto de Megera.
Megera gemeu adormecida, voltando-se para o outro lado, para longe de Cass, que cerrou os maxilares e tirou a mão. Mas congratulou-se a si mesma por, na última batalha
de vontades que ambas tinham travado, ela ter emergido como vencedora.
Forçara Megera a traduzir as instruções para produzir o miasma e a escrevê-las numa folha de pergaminho, que estava agora dobrada e guardada no corpete do vestido
de Cass. Cansada e esfomeada, Megera entregara-lhe finalmente a tradução naquela manhã.
"Tens a certeza de que decifraste bem o miasma-", perguntara Cass. "Descobriste a poderosa poção de que eu precisava?"
"Sim, mamã... digo, senhora", respondera a jovem num tom ressentido que levara Cass a esbofeteá-la. "Mas o que está descrito no Livro não é exatamente uma poção.
Será mais como um pó."
"Não me importa a forma do miasma. Apenas uma coisa me interessa. Será tão poderoso como o da rainha das Trevas-"
"Será pior do que o dela. O Livro diz que ninguém o pode combater. Deixará todos loucos; deixará todas as pessoas que respirem o pó furiosas e cheias de ódio, dispostas
a matar e a destruir, até as suas próprias vidas. A única proteção do miasma é uma espécie de unguento que se esfrega sob o nariz. Também escrevi as instruções para
o fazer."
Cass apertara o rosto de Megera na sua mão, sem saber se devia acreditar nela ou não. Beliscara a bochecha da jovem, procurando adivinhar os seus pensamentos, mas
Megera tinha... Cass fez um esgar. Megera não tinha propriamente bloqueado o acesso à sua mente, mas os pensamentos dela tinham-se esquivado a Cass, ficando fora
do seu alcance como se estivessem envolvidos num frustrante jogo de escondidas.
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Cass poderia ter tentado agarrar o seu medalhão, fazer a sua filha passar por mais uma dolorosa sessão sobre rebeldia, mas o documento que Megera escrevera falava
por si. Cass não podia ler as palavras, mas ao fechar os seus dedos sobre o pergaminho, como que sentiu o seu poder, bem como as manchas das lágrimas cheias de remorsos
de Megera.
Cass alongou os lábios. Se havia coisa que deplorava na sua filha, mais do que em qualquer outra pessoa, era a sua compaixão e a sua relutância em abraçar as medidas
sombrias necessárias para a colocar no trono de França.
Cass culpava Prudence Waters pela fraqueza da sua filha. Arrependera-se fortemente de ter contratado aquela velha mulher como ama de Megera, mas não tivera alternativa.
A senhora Waters era uma das poucas mulheres sábias suficientemente dotadas para educar Megera na arte da decifração das antigas runas.
Se a inglesa tivesse confinado as suas lições a isso, tudo estaria bem. Mas, em vez disso, procurara encher a cabeça de Megera com disparates sobre a verdadeira
missão de uma Filha da Terra: disseminar compaixão e paz, curar e renegar as artes mais preciosas da magia negra. Cass pensava que devia ter dado mais atenção ao
que se estava a passar nos primeiros anos de vida de Megera. Mas nunca fora do género de ficar meiga e sentimental com crianças tal como ficavam as outras mulheres.
As crianças eram seres singularmente desinteressantes, incapazes de fazer outra coisa para além de gritarem umas com as outras e de se sujarem. Os bebés não eram
melhores. A voz pipilante de Megera frequentemente provocara dores de cabeça a Cass. Quando se apercebera de como a bem-amada Nourice constituía uma má influência
para Megera, já era tarde de mais. Ao mesmo tempo, Prudence Waters ficara a saber sobre o Livro das Sombras e os verdadeiros planos de Cass para a sua filha.
A mulher atrevera-se inclusivamente a ameaçar Cass, afirmando-lhe que retiraria Megera dos seus cuidados. Cass só podia pensar que a senhora Waters avaliara mal
a capacidade de ela defender o que era seu, considerando-a indefesa apenas por ser cega, o que fora um grave erro da sua parte.
Cass interrogava-se preguiçosamente se o corpo da velha mulher alguma vez teria sido encontrado. Não que isso interessasse. Sobrariam já muito poucas das mulheres
inglesas capazes de a identificar.
Quanto à infeliz influência apaziguadora que a senhora Waters tivera em Megera, Cass esperara que a sua filha a ultrapassasse com o tempo, mas,
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para seu cruel desespero, tal não sucedera. Cass começava a recear que a fraqueza de Megera fosse mais intrínseca, resultado de sangue mau, e que as falhas da sua
filha fossem muito mais um legado do seu pai incógnito do que da senhora Waters.
Usando o seu bastão, Cass encaminhou-se cautelosamente para a janela do quarto. O caixilho fora deixado aberto de par em par, não havia nem sinal de qualquer brisa.
Uma noite quente de verão, com ar sufocante e imóvel. Tão diferente da noite de há uma década quando o céu parecia rebentar com trovões e relâmpagos e um vento negro
e forte soprava no exterior da estalagem onde Cass trabalhava.
Quando a tempestade rugiu lá fora, soube que seria a noite perfeita para conceber uma bebé, destinada a ser uma grande feiticeira, uma líder entre as mulheres sábias,
uma conquistadora que faria com que Alexandre, o Grande, e Gengiscão parecessem rapazinhos choramingas. Uma noite perfeita e Cass escolhera o homem perfeito para
ser pai da sua filha.
Nicolas Remy, o capitão huguenote que conquistara tanto renome pela sua crueldade e pelas suas ferozes capacidades como guerreiro, que era conhecido como Flagelo.
O fogo e o aço de Flagelo, combinados com o seu poder negro, gerariam uma criança que seria forte e invencível.
O único obstáculo ao seu plano era o de Remy ser o bem-amado de Gabrielle Cheney, uma mulher que outrora Cass considerara como a sua única amiga. Mas Gabrielle devia-lhe
um favor e aquilo parecia ser uma coisa tão pequena para pedir. Só queria usar o Flagelo por uma noite. Ainda se sentia ultrajada por Gabrielle ter sido egoísta
ao ponto de recusar.
Mas Cass estava preparada para a possibilidade da recusa ingrata de Gabrielle. Enganara-a fazendo com que ela desse a Remy o medalhão que permitiria a Cass ficar
com controlo sobre ele. Mas nunca esperara que Gabrielle fosse também capaz de a enganar...
Cass segurou-se ao parapeito da janela com o coração a arder de fúria e de rancor enquanto se recordava como esperara que Gabrielle lhe enviasse Remy. Ficara tensa,
nervosa, sabendo que todo o seu futuro dependia daquela noite.
A espera fora especialmente difícil porque tinha decidido recentemente controlar o que tinha sido sempre a sua maior fraqueza, um vício pelas bebidas fortes. Embora
se sentisse fraca, conseguira subjugar o seu demónio, determinada em manter as ideias claras nesta noite mais importante da sua vida.
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E então ele entrara no quarto, identificando-se como sendo um criado que trazia os refrescos que ela nunca pedira. Ordenara-lhe que saísse, mas ele persistira. Era
um patife bem esperto, com a sua voz macia, tentando-a com o copo de uísque, e ela estava tão desesperada por uma bebida... Apenas uma para lhe acalmar os nervos.
Mas uma levara a outra e depois a outra, até sentir as suas forças desaparecerem numa garrafa como tantas outras vezes já sucedera. A sua mente turva registara que
o seu futuro estava em perigo de lhe fugir. Nostradamus fora muito específico anteriormente nas suas previsões. A sua maravilhosa filha tinha de ser concebida naquela
noite ou nunca mais, e Remy ainda não tinha chegado.
Frenética, confusa com a bebida, Cass fez a única coisa que podia. Usou o perfume especial que preparara para seduzir o anónimo vilão que invadira o seu quarto.
Mesmo ao fim de todos estes anos, não fazia ideia de quem ele seria. Tudo o que recordava era a sua voz melosa e uma observação que ele fizera em que se referia
a si mesmo como um lobo solitário.
Tinha andado tão preocupada com as ambições que tinha para a sua filha que o seu desejo de vingança tivera que esperar, um luxo a que não se podia dar presentemente.
Mas algum dia, de alguma forma, ela apanhá-los-ia e fá-los-ia pagar por se terem intrometido nos seus sonhos, Gabrielle e o seu Flagelo.
E quanto ao lobo solitário, fá-lo-ia sofrer uma agonia mortal a que nenhum homem resistira. Ele iria rastejar aos seus pés, suplicando que o matasse antes de ela
terminar...
Uma leve pancada na porta do quarto interrompeu os seus amargos pensamentos. Antes que pudesse responder, a porta rangeu e alguém entrou. Não precisava de perguntar
quem era. Era por demais conhecida com o seu aroma acre de criada.
Finette arrastou-se até onde Cass descansava, junto à janela. - Senhora - disse em voz baixa. - Uma mensageira chegou. Há notícias da nossa espia na residência da
rainha.
- Recebê-la-ei lá em cima na minha torre - respondeu Cassandra. Retirou o pergaminho do corpete. - Depois de me levares até lá, quero que escolhas duas mulheres
da nossa irmandade que sejam as mais dotadas na preparação de poções. Odile e Yolette, penso eu. Põe-nas a trabalhar imediatamente no miasma e no unguento protetor.
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Finette pegou ansiosamente no pergaminho. - Pensais que Megera conseguiu mesmo traduzir corretamente o miasma? Podemos confiar na criança?
- Claro que podemos. Ela é a minha própria filha. Faz aquilo que lhe digo - disparou Cassandra, renitente em admitir, mesmo perante Finette, aquilo que afinal temia,
que o seu controlo sobre Megera estava a enfraquecer.
A porta do quarto da torre rangeu ao abrir-se. Cass ouviu o roçagar de saias e uma fungadela familiar quando Nanette entrou no quarto.
- Salve, senhora, reverenda mãe da nossa Rosa de Prata - saudou a rapariga, preparando-se para beijar a mão de Cassandra, mas esta retirou-a impacientemente.
- Sim, deixa lá essas formalidades. Diz-me apenas o que preciso de ouvir.
- Há grandes novidades, senhora. O encontro que haveis esperado vai ter lugar. O rei de França, a Rainha das Trevas e o duque de Guise vão-se reunir no Louvre dentro
de alguns dias. Podemos atacá-los todos de
uma vez.
Cass fez uma expressão de apreensão. Isso não lhes dava muito tempo para prepararem e testarem o miasma.
- Mas há um problema.
Cassandra apertou fortemente o seu bastão. Não queria ouvir falar de mais problemas. - Que diabo temos então?
- É o caçador de bruxas. le Balafre ainda está vivo e, pior do que isso, trabalha agora com a Rainha das Trevas para vos derrubar.
Cassandra apoiou-se na parede, sentindo-se momentaneamente oprimida.
- Então Agatha Ferrers falhou. O homem tem mais vidas do que um gato. Será muito mais difícil - Haverá alguém que possa livrar-me deste demónio?
- Eu podia - voluntariou-se Nanette. - Até sei onde ele está. A aliança entre o caçador de bruxas e a Rainha das Trevas não é fácil e ela mandou que ele fosse seguido
por Gillian, que já me informou de que seguiu o rasto do caçador de bruxas até sua casa.
- Ele tem casa? - disparou Cass. - Porque nunca ninguém descobriu isso?
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- Porque ele é muito esperto, senhora. Mas ele regressou para lá e não fica longe daqui.
- Quero que alguém seja enviado atrás dele e que desta vez não haja erros. Precisamos de mandar as nossas melhores e talvez de mudar a nossa tática. As que forem
têm de estar preparadas para serem corajosas e engenhosas, dispostas a dar as vidas e a confiar na Rosa de Prata para as ressuscitar.
- Senhora, deixai-me ser eu - apelou Nanette. - Peço-vos que me concedais essa grande honra.
Cassandra desejou que a altura da rapariga estivesse a par do seu entusiasmo. - Podes ir, mas também precisarás de uma mulher com muita força. Ursule será a melhor
escolha. Ela vai ficar sequiosa do sangue do homem quando souber de Agatha Ferrers. Era prima dela.
- Ursule tem sede de sangue de qualquer homem - riu-se Nanette. - É a sua bebida preferida.
Cassandra tamborilou os dedos sobre o parapeito da janela. A ideia surgiu-lhe lentamente, fazendo com que os seus lábios se curvassem num sorriso matreiro. - Vamos
enviar outra. Uma recruta nova chamada Carole Moreau.
- com o seu perdão, senhora - disse Nanette. - Mas pensais que é acertado enviar alguém inexperiente em tão importante missão?
- Ah, mas Mademoiselle Moreau subiu bem alto na consideração da nossa Rosa de Prata.
Demasiado alto, refletiu Cass desagradavelmente. Esta seria uma excelente oportunidade para testar a lealdade da jovem Moreau. E se ela perecesse na batalha, dando
a sua vida heroicamente ao serviço da Rosa de Prata, tanto melhor. Umas escassas e tranquilas palavras ao ouvido de Ursule seriam suficientes para tratar do assunto.
O pequeno-almoço foi uma refeição tensa, com Míri a empurrar a comida no prato, sentindo-se presa entre os dois homens à mesa. Martin assumira uma postura indolente
e saboreava a abundante refeição, mas Simon parecia ter tão pouco apetite para o pequeno-almoço como ela. Manteve um prolongado silêncio. Não estava tão frio e distante
esta manhã, mas havia uma tristeza abatida sobre ele.
Madame Pascal servira-os, mas deixara os três sozinhos e saíra para tratar das suas tarefas matinais.
Miri procurou aliviar a tensão falando com forçada jovialidade.
- Finalmente vamos ter uma interrupção na seca.
- Como podes ter tanta certeza disso, meu amor? - interrogou Martin, arrastadamente.
- Disseram-me as rãs quando ontem à noite estive junto à lagoa. Martin quase se engasgou. Lançou-lhe um olhar de aviso com uma mensagem bem clara. Tem cuidado com
o que dizes em frente do caçador de bruxas.
Mas Simon claramente o surpreendeu, concordando: - Eu também as ouvi.
Martin franziu a testa como se ambos estivessem coligados para troçar dele.
- As rãs a coaxar são um claro sinal de que a chuva está a chegar. Nunca haveis ouvido falar disto antes? - perguntou Simon.
Martin encolheu os ombros. - Em Paris, quando alguém quer saber se vai chover, põe o dedo fora da janela.
O silêncio desceu de novo sobre todos. Simon desistiu de fingir que comia, afastando o seu prato. Apesar de todos os seus firmes esforços para
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evitar olhar para Miri, os seus olhares acabaram por se cruzar e ambos refletiam um desejo frustrado.
Quando ela se sentara sozÍnha junto à lagoa, pressentira Simon a observá-la através da escuridão e alimentara a esperança de que ele viesse até ela para poderem
remendar o rasgão que se abrira entre ambos. Interrogou-se se ele o teria feito apenas por Martin. Sentiu-se envergonhada de si mesma por desejar que o seu querido
e devotado amigo estivesse bem longe.
Suspirando, fez outra tentativa para quebrar o silêncio. - Estava tão belo e tão tranquilo ontem à noite junto à lagoa. Acredito que estou a recuperar a minha aptidão
para me ligar com a natureza e que eu julgava ter perdido na ilha Encantada.
- Mon Dieu, Miri. Não me digas que andaste outra vez a distribuir carícias pelas árvores - troçou Martin.
Surpreendentemente, Simon saiu em defesa de Miri. - Quando eu era jovem, costumava fazer algo semelhante. Quando me deitava no chão, pensava poder ouvir a pulsação
da Terra. Há anos que não sou capaz de fazer isso.
- Talvez não vos tenhais esforçado o suficiente. Experimentai um pouco mais fundo, talvez sete palmos mais abaixo, Monsieur Ciclope.
- Martin! - admoestou Miri.
Simon hesitou perante a provocação. Levantou-se. - Não tem importância. Já me disseram coisas piores. com licença, tenho trabalho para fazer.
Saiu da sala, encaminhando-se para as escadas. O rosto de Miri não escondeu a Martin o seu desagrado. - Percebo que não gostes de Simon, mas estás a gozar da sua
hospitalidade.
- Foi apenas uma piada. Digo-as com frequência.
- Mas nunca antes te conheci essa crueldade.
- Também nunca fui tão ciumento como agora. - Como ela não respondeu, acrescentou: - Esta era a tua deixa, Miri. A tua fala devia ser: meu querido Martin, não tens
razão para ser ciumento.
- Isto não é uma peça de teatro, Martin.
- Se fosse, seria mais uma farsa do que um drama - lamuriou-se Martin. - Desde que aqui cheguei, não só tive que ouvir-te defendê-lo, como o seu pessoal se esforçou
por me realçar as virtudes de Aristide. Mas que grande e bondoso homem é este patrão, tão razoável e justo, generoso para com os pobres, protetor das viúvas e dos
órfãos, salvador de vacas em
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sofrimento. Parece que de um fôlego passou de malvado le Balafre a São Simão. É mais do que suficiente para deixar um homem atordoado.
Miri suspirou, cansada. - Oxalá pudesse fazer-te compreender quem é Simon. Não fazes a mínima ideia do que ele sofreu, do que foi a sua vida.
- Então e a minha, Miri? Embora eu não ande por aí a lamentar-me sobre ela, a minha juventude também não foi agradável. Um filho bastardo, abandonado pela minha
mãe, sem a mínima ideia de quem é o meu pai. Cresci nas ruas de Paris e aprendi a sobreviver roubando carteiras. Ele, pelo menos, teve família até aos onze anos.
- Isso é verdade, mas tu tiveste a felicidade de te cruzares com Nicolas Remy. O meu cunhado é um homem bom e nobre. Simon foi salvo por um lunático, um caçador
de bruxas meio louco. O simples facto de ele ter sobrevivido é um testemunho do seu caráter.
Martin afundou-se ainda mais na sua cadeira, aparentemente irritado.
- Muito bem, se é isso que admiras num homem, tenho a certeza de que podia... podia aprender a ajudar as vacas a parirem.
Mesmo sem querer, Miri riu-se com a ideia de Lobo, com o seu gosto por belos gibões e camisas com punhos de renda, arrojado na lama e no sangue de um estábulo.
- Eu podia - insistiu num tom ofendido. - Estive a pensar melhor em algumas coisas. Tu achas que eu nunca te escuto nem sei realmente quem és. Mas sei. Só que, tendo
sido tão pobre e conseguido tanto no mundo, é natural que queira dar à mulher que adoro belos vestidos e jóias e uma grande casa. Mas se quiseres que eu viva numa
casa de campo nas florestas da ilha Encantada, fá-lo-ei num abrir e fechar de olhos.
- Oh, Martin. - Esticou o braço sobre a mesa para lhe pegar na mão. - Ias aborrecer-te e sentir-te o maior dos infelizes em duas semanas.
- Não, não ia - insistiu. - Não se estivesse contigo.
Miri limitou-se a sorrir tristemente e a abanar a cabeça. Conhecia este homem bem melhor do que ele a si mesmo.
- De tudo o que aconteceu entre nós, o que mais me custou foi o dia em que tirei aquele medalhão; receio ter perdido o meu amigo.
Ele sorriu-lhe ternamente, levando-lhe delicadamente as mãos aos lábios. - Não, ele ainda está aqui. Aconteça o que acontecer, Miri, prometo que contarás sempre
com a minha amizade.
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Enquanto Simon se retirava para a solidez do seu quarto, o som do suave riso de Miri por alguma coisa dita por Lobo subiu pelas escadas. O homem tinha um encanto
abundante, a capacidade de fazer com que as pessoas à sua volta sorrissem e rissem em vez de se encolherem com medo. Traços estes que o próprio Simon outrora possuíra.
Apesar da animosidade que trouxera com a sua chegada, Martin já fizera muito para enternecer o pessoal de Simon. Arrancando sorrisos a Madame Pascal, conseguindo
até que o velho e ríspido Jacques se risse. Esforçara-se imenso por compensar Yves, e não por qualquer desejo de querer impressionar Miri ou manipular o rapaz. Apesar
do aparato dos seus grandes gestos, havia uma bondade genuína nas suas abordagens a Yves. Simon poderia ter gostado dele por isso, não fosse a maneira como ele olhava
para Miri, chamando-lhe o seu amor, com todas aquelas frases melosas que lhe brotavam da boca, coisas que Simon nunca poderia dizer.
Simon olhou-se no espelho pendurado sobre o lavatório, procurando desesperadamente algum traço do rapaz atraente e despreocupado que fora outrora. Tudo o que via
refletido era a aparência cansada e amargurada de um homem cujo rosto tinha cicatrizes tão profundas como a sua alma.
Este quarto, mais do que qualquer outro naquela casa, segredava-lhe sobre sonhos que nunca conhecera até agora, esperanças que alimentara dentro daquelas mesmas
paredes quando construíra a casa.
O quarto e a cama eram grandes demais para um homem solitário; gritavam pela presença de uma mulher, uma companheira para envolver nos seus braços numa noite fria
de inverno. O banco junto da janela era um bom sítio para ela costurar e sonhar, com as grandes janelas de losangos vidrados a emoldurar o céu para ela, com vista
para as árvores, as aves e os animais no quintal.
O espaço aos pés da cama seria perfeito para um berço... mas já estava ocupado pelas amargas recordações do passado, o baú que raramente gostava de abrir. Todos
os diários e relatórios da sua caça às bruxas, escritos que mantivera meticulosamente de quando era suficientemente arrogante para acreditar que o seu trabalho era
de importância transcendental. Há anos que tinha deixado de guardar os relatórios, quando começou a desejar esquecer, não lembrar, os que tivera que suportar e testemunhar.
Aqueles diários estavam repletos de escritos vituperativos de um homem amargurado e furioso. Um homem que se envergonhava de ter sido e que temia poder voltar a
ser. O baú era uma caixa de Pandora de todos os
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males do mundo, dos quais ele próprio fora um. Mas agora o baú também continha as respostas que procurava, portanto não tinha alternativa senão abri-lo.
Levantou a tampa e começou a procurar, através dos anos de sombrias memórias, casos que ele julgara. Interrogou-se sobre quantos mais erros teria cometido para além
do da ilha Encantada.
Muitos dos registos dos seus primeiros tempos tinham-se perdido no incêndio da Estalagem Régia. Procurara mais tarde reconstituí-los, dolorosamente, confiando apenas
na sua memória. Percorreu os vários diários até encontrar o que tratava daquele último dia na Estalagem Régia. Abriu-o e a sua leitura foi dolorosa porque os seus
pensamentos daquele dia não tinham sido justos. Foram negros, cheios de azedume, vingança contra Renard, fúria com Miri por fazê-lo sentir-se fraco, hesitante quanto
a trair a sua confiança, procurando justificar isso perante si mesmo.
Naquele tempo em Paris, tinha estado ocupado a interrogar dezenas de pessoas, oferecendo uma moeda a quem quer que lhe chegasse com histórias sobre quem praticava
feitiçaria. Na altura congratulava-se por a sua abordagem ser tanto mais equilibrada e justa. Ao contrário do seu mestre, não torturava ninguém para obter informação.
Usava armas mais subtis, questionário inteligente, intimidação, suborno.
Aprendera à sua custa que havia pessoas dispostas a vender a sua própria mãe por uma moeda. Um notável exemplo disso fora a mulher que traíra Gabrielle Cheney.
Cassandra Lascelles. Afirmara ser amiga de Gabrielle, mas, por qualquer inflamada razão, fora ela quem contara a Simon como descobrir as provas necessárias para
prender Gabrielle. Ela estava na posse do anel e dos malditos medalhões da Rainha das Trevas, que tinham desaparecido juntamente com o Livro das Sombras.
Ainda não sabia até que ponto a irmã de Miri seria culpada de feitiçaria ou de simples tolice. Na realidade, pouco se importara. A sua prisão fora apenas uma artimanha
para atrair o conde de Renard para uma armadilha.
Na altura quisera investigar mais detalhadamente a tal mulher Lascelles. Não era a primeira vez que ela traía a sua própria espécie perante caçadores de bruxas.
De acordo com os registos deixados pelo seu mestre le Vis, Cassandra procurara salvar a sua própria pele denunciando a mãe e as irmãs como feiticeiras. O simples
ato de denúncia não seria suficiente para a salvar, mas a juventude e a cegueira da rapariga tinham causado em le Vis uma rara predisposição de misericórdia. Depois
da busca em sua casa, Cassandra
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desaparecera durante muitos anos, voltando a mostrar-se apenas naquele verão quando proporcionou informações contra Gabrielle.
Mas Simon não via como é que podia ter sido ela a roubar o Livro das Sombras no meio do caos do incêndio. Não só a mulher era cega, como Simon estava certo de que
naquele dia ela não estivera sequer perto da estalagem.
Não fizera quaisquer interrogatórios, afastando todos os que estavam ansiosos por entregar os seus vizinhos a troco de uma mão-cheia de moedas. Para além dos seus
próprios homens e dos Cheney, só havia uma pessoa mencionada nas suas notas; uma mulher magricela, persistente e suja a bradar à porta das cozinhas para a deixarem
entrar. De acordo com os registos de Simon, o seu nome era Finette e tinha lamuriado algo sobre ter vindo reclamar uma recompensa em nome da sua patroa, que teria
fornecido informações a Simon uma semana antes.
Uma semana antes... mais ou menos a mesma altura em que Simon detivera Gabrielle. Simon teve um esgar. Seria possível que esta Finette fosse a bruxa que se apoderara
do Livro das Sombras e que a sua mentora fosse Cassandra Lascelles? Seria Lascelles a verdadeira e infame Rosa de Prata?
Enquanto Simon se concentrava no diário, procurando mais pistas, apercebeu-se de que algo batia contra a janela. Um som que há muito não ouvia e que lhe levou algum
tempo a identificar.
Chuva... e não aquelas poucas e deploráveis gotas que tinham ameaçado a França durante todo o verão na perspetiva de refrescar. Depois de todas essas falsas tempestades,
dos relâmpagos e das trovoadas que não tinham trazido mais do que raios e ruído, por fim os céus abriam-se, deixando cair a chuva redentora sobre a terra ressequida.
Um verdadeiro dilúvio abençoado.
Simon correu ansiosamente para a janela, sentindo o seu coração eufórico, e não era o único. Miri saíra da cozinha para a chuva, indiferente ao facto de estar a
ficar encharcada. Como verdadeira Filha da Terra que era, ergueu os braços, acolhendo a chuva, rodopiando numa dança alegre que trouxe um sorriso aos lábios de Simon.
Aparentemente, Lobo observava-a na segurança do umbral. Miri correu de volta para a casa rindo e, agarrando-o pelas mãos, arrastou-o para fora. Simon estava quase
certo de que ele voltaria imediatamente para dentro, como um gato escaldado, mas Martin riu-se às gargalhadas. Os dois de mãos dadas, saltitando numa dança louca.
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Simon observou-os, desejando ainda possuir aquele tipo de alegria no coração, capaz de tal à-vontade. Mas, pelo contrário, sentiu-se contraído, com picadas no pescoço,
numa sensação desconfortável de que algo estava errado.
Rapidamente se apercebeu do que se tratava. Ele Fora deixada no cercado e estava a comportar-se de forma assustadiça, recuando espantada, abanando a cabeça. As tempestades
enervavam-na, mas não havia trovões nem relâmpagos. Se quisesse fugir ao dilúvio bastava-lhe trotar até à passagem lateral para regressar ao estábulo. Não, fosse
o que fosse que estava a perturbá-la, não era a chuva.
Simon pressionou mais o rosto contra o vidro, procurando espreitar através da chuva que caía. Quase não conseguia descortiná-las. De início pareciam simples sombras,
mas não podia haver sombras onde não havia sol. Eram três figuras que se aproximavam lenta e furtivamente e mesmo àquela distância Simon conseguiu discernir que
eram mulheres.
Não, mulheres não. O seu instinto avisou-o. Bruxas.
Simon puxou pela espada e correu escada abaixo. Assim que chegou ao pátio, puxou o cabelo para trás e limpou a chuva do olho. Lobo segurava Miri nos braços, fazendo-a
rodar à sua volta, sem se ter ainda apercebido do perigo.
Simon correu, com as botas a chapinharem nas poças. Gritou um aviso que deixou Lobo alerta quando a primeira figura carregou. Desviou Miri do caminho e começou a
puxar pela espada, mas cometeu um erro fatal.
Hesitou quando viu que o seu oponente era uma mulher, um impulso cavalheiresco típico daquele pateta romântico, pensou Simon. Só depois de a enorme mulher brandir
uma faca é que Lobo reagiu. Apanhou-lhe o braço, mas ela desferiu-lhe uma tremenda cabeçada nos maxilares.
Lobo cambaleou para trás e escorregou na lama, ficando momentaneamente atordoado e indefeso. A giganta mostrou os dentes e ergueu a faca para acabar com ele. Simon
saltou sobre Lobo, desviando o golpe com a sua espada no último momento.
A mulher avançou para Simon com um grunhido selvagem. Ele ergueu a espada e desferiu-lhe um golpe profundo. Não esperou que ela caísse, quase não reparando nos seus
uivos de dor, e voltou-se para enfrentar as outras duas bruxas.
Uma fora atrás de Miri, pegando-lhe com os braços pela cintura, e ameaçava derrubá-la. Quando Simon correu em seu auxílio, a terceira
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bruxa apareceu para atacá-lo. Através da chuva teve um vislumbre esbatido de uma pequena mulher escura com olhos selvagens, que empunhava uma familiar arma mortífera,
a lâmina de bruxa.
A mulher rodou em volta de Simon, procurando encontrar uma abertura para se precipitar sobre ele. Mas subitamente uma sombra escura apareceu sobre ambos. Elle saltara
o cercado e erguera as patas traseiras à chuva, sacudindo a sua crina negra e molhada, escouceando o ar.
A bruxa tropeçou para trás com um grito aterrorizado. Batendo com as mãos numa tentativa desesperada de afugentar o cavalo. Elle derrubou a bruxa, pulando e pisando-a
sucessivamente com os cascos.
Quando Simon conseguiu agarrar as rédeas de Elle e afastá-la, a bruxa estava morta, com o seu sangue a misturar-se com a chuva e a lama do quintal. Elle bufava e
tremia com medo e fúria. Simon afagou-a e falou-lhe, procurando acalmá-la, enquanto procurava freneticamente encontrar Miri. Mas Lobo estava já de pé e tinha corrido
em seu auxílio, arrastando a outra bruxa para longe dela.
Nesta altura, Jacques e um dos trabalhadores da quinta chegaram a correr. Simon confiou Elle ao velho palafreneiro e correu para Miri. Nos seus esforços desesperados
para chegar até Miri, a jovem bruxa quase conseguia libertar-se da preensão de Lobo.
Mas quando Simon ergueu a sua arma, Miri segurou-lhe o braço:
- Não, Simon. Por favor, não. É Carole.
A jovem prostrara-se aos pés de Martin e, ensopada e suja, parecia mais uma criança encolhida do que uma bruxa. Procurava desesperadamente chamar por Miri, gaguejando
palavras que não lhe saíam dos lábios aterrorizados.
Mas Miri estava imóvel, olhando apavoradamente para outro lugar. Ficou pálida ao ver as duas mulheres mortas no quintal. Simon apressou-se a tapar-lhe a visão, puxando-a
fortemente para si e afagando o seu cabelo molhado. O fogo nas suas veias que o lançara a rugir para a batalha apagara-se, deixando-o frio e a tremer com medo do
que podia ter acontecido a Miri.
Miri encostou-se a ele por um momento, depois começou outra vez a lutar, esforçando-se por ver.
- Não, minha querida, não olhes - disse-lhe Simon roucamente.
- Lamento o que tive de fazer, mas não havia escolha. Aquelas bruxas.
- Não, não são as bruxas. - Miri engasgou-se. - Simon, olha. Elle...
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Não conseguiu entender o que ela lhe dizia até olhar para trás e ver Jacques ajoelhado junto a Ele, a examinar-lhe o peito. Estaria ela ferida?
Simon precipitou-se para ele, perguntando: - O que é?
Jacques voltou-se para ele sem palavras, segurando um objeto que extraíra do peito de Elle. A lâmina de bruxa com o êmbolo pressionado.
- Não - guinchou Simon. Passou desesperadamente a mão pelos ombros e pelo peito de Elle como se pudesse de alguma forma impedir o veneno no seu lento mas inexorável
curso através das veias.
Cambaleou um passo para trás, passando a mão pelo cabelo e agarrando a cabeça, sentindo-se como se ela fosse explodir com o desgosto e a raiva. Agitando os braços
à sua volta, precipitou-se para a única bruxa sobrevivente, que estava agarrada a Miri, mas Simon puxou-a. Agarrando-a pela garganta, abanou-a como a uma boneca
de trapos.
- Maldita! Que Deus condene todas as bruxas da Terra ao Inferno. Diz-me já antes que te parta o pescoço. Quem diabo te enviou? Quem é a Rosa de Prata?
A rapariga sufocou, com os dentes a tremer de medo. - Não, não p... posso.
Simon deu-lhe novo e violento abanão. - É Cassandra Lascelles? Diz-me já ou...
Miri e Martin seguraram-lhe os braços, afastando a rapariga. Lobo saltou para o meio de ambos, empurrando Simon para trás.
- Parai com isso. Não vedes que estais a assustá-la quase até à morte. Assim não conseguireis nada dela.
Simon rosnou e empurrou Martin para o lado. Mas a rapariga desmaiou, caindo num profundo desfalecimento. Miri conseguiu apanhá-la a tempo de não bater no chão, enquanto
Lobo saltava em frente para a ajudar.
Simon cambaleou, ofegante, com a raiva a dar lugar ao desespero ao regressar para junto de Elle.
- Mestre, posso... - começou o velho Jacques a perguntar com os olhos a brotarem de pesar.
Simon tirou-lhe as rédeas das mãos, abanando a cabeça. - Não, ela é a minha senhora. Foi em mim que ela sempre confiou para...
Calou-se, incapaz de continuar. A cabeça de Elle começara já a pender, mas os seus olhos escuros e tristes olhavam Simon com a mesma devoção e confiança que sempre
lhe mostrara.
Retraindo a respiração irregular, puxou-a pelas rédeas e retirou-a da chuva para o interior do estábulo, levando-a para casa uma última vez.
A chuva tamborilava sobre o telhado do estábulo. O som que há apenas algumas horas fora tão bem acolhido era agora desolado e melancólico enquanto Miri e Simon se
esforçavam sobre Elle. Miri puxou-lhe para trás a capa de inverno e aplicou uma cataplasma sobre o ferimento num esforço para tentar extrair tanto veneno quanto
conseguisse. Mas não estava a funcionar. A ferida era penetrante e tinha má aparência e a égua tinha o pelo sedoso completamente ensopado em suor.
Simon trabalhava desesperadamente, passando-lhe a esponja com água morna para a arrefecer. Elle tinha a cabeça pendente imóvel, muito diferente dos seus usuais modos
alegres. Tentou recuperar, esticando-se para Simon quando este lhe esfregou o pescoço.
Acariciou-a entre os olhos, onde ela mais gostava, murmurando roucamente: - Vamos, minha beleza. Eu estou aqui. Não tenhas medo. Não vou deixar que alguém... - Interrompeu-se
com um riso amargo, troçando das suas próprias palavras. - Não deixar que alguém lhe faça mal. Jesus Cristo, já deixei que isso acontecesse. Não sou melhor a cumprir
as minhas promessas para com Elle do que fui para com todos os outros.
- Simon... - Miri endireitou-se, procurando pousar a mão no braço dele, confortando-o, mas ele afastou-a. Parecia quase selvagem, com o seu cabelo negro molhado
numa confusão, o rosto pálido sob a barba espessa. Tinha tirado a venda encharcada do olho, deixando sobressair a cicatriz profunda, o que lhe dava a aparência de
um guerreiro derrotado que acabara de percorrer o seu caminho através de uma tempestade.
Mas a sua mão era meiga quando massajava as pontas dos dedos entre os olhos de Elle. - Devia ter construído aquela maldita cerca mais alta.
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Eu... eu sabia que ela podia saltar aquilo. Desde que era uma poldra que o conseguia fazer, mas nunca me preocupei com isso, porque ela nunca fugia como os outros
cavalos. Ela... ela só percorria o caminho até à casa, à minha procura.
- Simon, mesmo que tivesses feito a cerca mais alta, ela tê-la-ia derrubado, magoando-se para chegar até ti.
- Pelo menos nunca teria ficado entre mim e a maldita bruxa. Porque tiveste que fazer aquilo, Elle ? Porquê? - perguntou Simon asperamente.
Os olhos de Ele brilharam. Apesar do seu próprio sofrimento e da confusão, a égua lambeu a mão de Simon, não percebendo inteiramente a angústia do seu dono, mas
como sempre procurando confortá-lo. Por uma vez, Simon não fez qualquer esforço para ocultar as suas emoções, descansando a sua testa contra a de Ele e com os ombros
vergados pelo desespero.
Os olhos dela ardiam. Miri sofria por ambos; pelo magnífico e inocente animal, que nada fizera para merecer esta dor, e pelo homem, que durante tanto tempo se mantivera
isolado, nunca se atrevendo a amar alguém para além desta sua égua. A vida já causara a Simon Aristide suficientes desilusões e perdas dolorosas. Miri não podia
deixar que ele sofresse mais esta.
Pestanejou intensamente. Se cedesse às lágrimas, isso nada aproveitaria, nem a Simon nem a Bile. Tinha que recuperar a calma para pensar. Enquanto Simon recomeçava
a passar a esponja sobre o pelo de Ele, Miri deslocou a sua mão ao longo do maxilar inferior da égua até lhe sentir a pulsação. Pressionou o dedo contra a artéria
e começou a contar. A pulsação de Bile estava bem acima do normal para um cavalo em descanso. Os flancos da égua subiam e desciam rapidamente, tornando dolorosamente
óbvio que a sua respiração estava a ficar mais difícil. Miri procurou freneticamente recordar-se de outros remédios que tivesse utilizado para tudo, desde cólicas
a encefalites.
Repousando as mãos na reluzente garupa de Ele, Simon lançou a Miri um olhar atormentado. - Não há esperança, Miri. Nem sei como me deixei convencer por ti a tentar
usar estes remédios inúteis. Desde que vi Jacques a extrair-lhe a maldita lâmina de bruxa, percebi que Ele estava condenada.
- Não, não está, Simon. Não podemos desistir. Temos de...
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- Temos de quê? - interrompeu ele cruelmente. - Não há mais nada a fazer, Miri. Tudo o que vamos fazer é prolongar o seu sofrimento. Já vi antes os efeitos do veneno
da lâmina das bruxas. Sei como vai atuar.
- Então descreve-mo.
- Tal como se está a passar com Elle. Tive uma ligeira esperança de que pudesse ser diferente com um cavalo. Ela é muito maior, mais forte do que um homem, e talvez
de alguma forma pudesse resistir... - Interrompeu-se, apertando desesperadamente as mãos. - Mas o veneno está a progredir da mesma maneira que vi antes. Primeiro
os suores, a apatia e a febre, a respiração difícil. E só vai ficar pior, provocar horríveis espasmos musculares, convulsões, um delírio que pode durar dias, com
tantas e tão fortes dores que vi homens adultos ficarem loucos a gritar. - Simon mordeu os lábios e engoliu em seco. - A minha senhora serviu-me fielmente e sempre
confiou totalmente em mim, não vou permitir que agora ela acabe assim. Não vou deixá-la sofrer.
- Nem eu, Simon - chorou Miri. - Mas recuso-me a desistir tão facilmente. Tens pelo menos que me dar uma oportunidade de combater este veneno.
- E como diabo vais fazer isso? O que sabes tu de venenos?
- Apenas o que aprendi com Renard.
Miri viu Simon contrair-se imediatamente ao ouvir o nome, tal como receara que sucedesse. Ergueu o queixo e continuou obstinadamente:
- Graças à sua avó, o Renard era bastante versado em venenos, mas colocou a sua sabedoria ao serviço de boas causas, desenvolvendo antídotos e ensinando-me...
- Não quero saber o que ele te ensinou. Se pensas que eu vou deixar Elle sofrer mais com essa magia negra de feiticeiro...
- Como pode ser magia negra se eu a puder salvar? - protestou Miri. - E vou precisar de usar também aquela lâmina de bruxa.
O rosto de Simon refletia ultraje. Saiu da cocheira, com as mãos nas ancas, enquanto procurava esclarecer as coisas com ela. - Maldição, mulher. Nem sequer posso
acreditar que tenhas sugerido tal coisa. Já é mau ela ter sofrido uma punhalada antes, mas tu propões usar aquela arma infernal para...
- Não é uma arma infernal nem uma lâmina de bruxa - ripostou Miri, fortemente. - É apenas uma seringa e posso usá-la para acelerar a velocidade do antídoto nas veias
de Elle.
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Simon soltou um riso incrédulo. - Esperas que eu acredite que podes usar o mesmo instrumento que está a matá-la para a salvar?
- Sim! - Miri deu alguns passos na sua direção, pousando as mãos na implacável extensão do seu tronco. - Oh, Simon, eu sei que le Vis te ensinou a não acreditar
e a temer tudo o que tivesse a ver com a antiga sabedoria, tudo o que ele considerava magia negra. Mas tu já viste por ti próprio que uma mesma coisa pode ser usada
para o bem ou para o mal, conforme quem a usa. O mesmo machado pode ser usado para cortar a cabeça de um homem como também pode ser utilizado para cortar lenha para
fazer uma fogueira, impedindo que se morra de frio. Aquilo a que chamas a lâmina de bruxa não é diferente. Pensas que eu alguma vez a utilizaria para um fim malévolo?
- Claro que não. Mas... - Ficou imóvel a fitá-la, franzindo a testa, o primeiro sinal de incerteza a aparecer no seu rígido semblante. - Mesmo que eu concordasse
em deixar-te fazer esse... esse antídoto de Renard, onde ias preparar tal coisa? Nas minhas terras não existe nenhuma arrecadação de feiticeira.
Miri mordeu o lábio inferior, hesitante em contar-lhe, mas sem ter alternativa. - Na verdade, tens. Esmee tem uma arrecadação nas traseiras da tua casa de lavagens.
- O quê? - A boca de Simon abriu-se, numa expressão mista de espanto e traição. - Depois de salvar aquela mulher de ser condenada por feitiçaria e trazê-la para
aqui, ela tem vindo a praticar feitiçaria debaixo do meu próprio nariz?
- Feitiçaria não, Simon, apenas o tipo de magia e meios de cura que as mulheres sábias preservaram durante séculos, apesar da superstição ignorante e da crueldade
de homens como o teu falecido mestre. Esmee tem usado a antiga sabedoria para manter as tuas pessoas bem e as tuas próprias terras a prosperarem. Não reparaste como
os teus pomares e as tuas hortas sobreviveram enquanto tão grande parte do resto do país está destroçada pela seca?
- Sim, mas pensei... - Passou a mão pelo cabelo. - Diabo, não sei o que pensei. Mas seja qual for a espécie de... de magia branca que Esmee possa ter praticado é
uma coisa. O tipo de feitiçaria que Renard abraçou é um assunto completamente diferente.
- Isto não é com Renard. É comigo. Peço-te para confiares em mim como nunca o fizeste antes. Pelo menos dá-me uma possibilidade de salvar Ele.
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Ele olhou de soslaio para Elle, claramente dividido entre a esperança e a desconfiança que le Vis lhe inculcara durante anos. O seu olhar voltou a pousar no rosto
de Miri, com algo a suavizar o seu olho enquanto concedia: - Está bem. O que queres que eu faça?
- Fica com Elle. Continua a passar-lhe a esponja, fala com ela, evita que ela se agite e se mova demasiado. - Miri olhou-o seriamente. - E promete-me que não fazes
nada de desesperado até eu voltar.
Simon concordou relutantemente com um aceno de cabeça. - E se esse teu antídoto não funcionar, se o sofrimento dela ficar mais forte?
- Então deixar-te-ei fazer o que tem de ser feito. - Miri pressionou a mão dele, acrescentando delicadamente: - E ajudo-te a dizer adeus.
Martin arrastou-se até à cozinha vazia; a cabeça ainda lhe vibrava da pancada que a bruxa lhe dera. Nenhum homem gostava mais de uma boa briga do que ele. Se havia
uma limitação que Miri possuía, e Martin estava longe de querer reconhecer que a sua Senhora da Lua tinha alguma... mas, se Miri tivesse uma falha, ela era a sua
evidente aversão a qualquer forma de confronto, querendo sempre que tudo se resolvesse por meios pacíficos.
Mas, às vezes, tal não era simplesmente possível. Não havia nada como um pouco de devastação para pôr o sangue de um homem a correr-lhe nas veias. Mas uma coisa
era a estimulação de um duelo ou um combate de pugilismo com outro homem e outra bastante perturbadora era quando o atacante era uma louca mulher gigante. Martin
gostava das mulheres meigas e femininas a bordarem artisticamente um lenço para oferecerem a um admirador ardente, manejando delicadamente a tesoura para cortar
o fio, não um punhal para lhe cortar a garganta.
Sentia-se humilhado por ter sido apanhado tão desprevenido. E se não fosse Simon Aristide, o seu sangue também estaria, tal como provavelmente o de Miri, a ensopar
o lamacento quintal. Agora estava em dívida para com Aristide, uma situação que não lhe era nada agradável.
Não só a sua dívida para com o caçador de bruxas pesava fortemente sobre ele, como ficara obcecado por algo que Aristide dissera enquanto interrogava Carole Moreau.
"Quem é a Rosa de Prata? É Cassandra Lascelles?"
Cass Lascelles. Martin arrepiou-se e não foi só pelas suas roupas molhadas. Havia um nome que ele tinha feito tudo por esquecer; podia bem passar toda a sua vida
alegremente sem ter de o ouvir de novo.
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Tão feiticeira quanto louca, ela tinha um qualquer esquema louco para seduzir Nicolas Remy, forçá-lo a ser pai da sua filha feiticeira. Remy, o homem que fora tudo
para Martin, amigo, irmão, mentor e capitão. Martin faria tudo pelo seu herói e naquela noite, quando Martin partira para a Cheval Noir em lugar de Remy, tinha inadvertidamente...
Apesar das suas roupas molhadas, Martin sentiu uma gota de suor percorrer-lhe as costas enquanto se recordava de ter sido fechado naquele tórrido quarto de estalagem
com a feiticeira, procurando embriagá-la o suficiente para lhe roubar o malvado amuleto com que ela ameaçara a vida do seu capitão. Martin nunca previra que os sombrios
encantos da feiticeira se poderiam voltar contra ele.
A bruxa tateou até a mão tocar no seu peito, arranhando-o. Quando Martin se apercebeu da direção que os pensamentos dela tomavam, arrepiaram-se-lhe os cabelos da
nuca.
"Sois fer... feroz?", perguntara com a sua voz embriagada, pouco clara. "Dissestes algo antes sobre ser duro, musculado-"
Martin engoliu em seco, procurando afastar-se dela. "Tenho uma tendência para ser demasiado fanfarrão."
"Sentes-te suficientemente duro para seres pai do meuferoz bebé?"
"Eu sou mais um lobo solitário. Não sou tanto do género paternal."
"Quem quer saber disso? Desde que sejas do género fornicador."
Antes que conseguisse detê-la, a mão da bruxa apanhou-o entre as pernas e o seu membro despertou numa inevitável resposta. A estranha e inebriante essência do seu
perfume penetrou-lhe nas narinas, enevoando-lhe o cérebro. Mesmo apesar de algum recanto obscuro da sua mente lutar por resistir, o veneno meloso dos seus lábios
destruiu o que restava da sua razão. com um grito feroz, caiu sobre ela, rasgando-lhe o carpete do vestido...
Martin estremeceu, bloqueando na sua mente tudo o que mais acontecera naquela noite. Enojado e envergonhado pela luxúria que a bruxa nele despertara, Martin fizera
tudo por esquecer.
Cassandra Lascelles desaparecera não muito depois e, durante anos, deixou de ser vista ou de se ouvir falar dela. O que terá levado Aristide a pensar que Cassandra
pudesse estar envolvida com este assunto da Rosa de Prata? Fosse o que fosse que tivesse despertado as suspeitas do caçador de bruxas, Martin esperava que ele estivesse
enganado, mas se houvesse qualquer hipótese de aquela bruxa ter regressado a França, algum perigo que pudesse correr pelo facto de os seus caminhos se terem cruzado,
ele precisava de saber e de saber agora.
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Mas dificilmente poderia perguntar a Aristide. Não só o caçador de bruxas estaria pouco inclinado a responder a quaisquer perguntas colocadas por Martin, como estava
nesta altura demasiado perturbado com o que acontecera à sua égua para pensar em qualquer outra coisa. Apesar da sua antipatia para com Aristide, até Martin se comovera
e sentira uma ponta de solidariedade para com ele. Não que compreendesse completamente os laços intensos existentes entre o homem e a sua égua. Martin gostava bastante
da sua atual montada. O seu grande garanhão cinzento era o tipo de montada de que gostava, veloz com alguma genica. Mas era apenas um meio para o levar de um lugar
para outro.
Dito isto, o meio preferido de transporte de Martin continuava a ser o dos seus dois pés. Quando rapaz em Paris, teve pouco a ver com cavalos, para além de tentar
afastá-los do seu caminho, amaldiçoando todo e qualquer asno que quase o derrubasse ou o salpicasse com lama nas ruas. Naquele tempo, como larápio das ruas, roubara
muitas coisas, mas os cavalos não estavam entre elas. Eram simplesmente demasiado grandes para os esconder. Qualquer à vontade que finalmente tivesse adquirido na
sela, devia-o a Nicolas Remy e a Miri.
Martin não era muito dotado para cuidar de animais, mas até ele poderia dizer que a égua de Aristide não lhe parecia estar bem. Mas se havia alguém que pudesse salvar
o animal, seria Miri. Normalmente, o instinto de Martin ter-lhe-ia dito para ficar perto de Miri, mas não havia nada que pudesse fazer para a ajudar naquela situação.
Contudo, os seus sempre impulsivos ciúmes levaram-no a não a deixar na companhia daquele caçador de bruxas.
Maldito. Começava a achar difícil continuar a chamar-lhe aquilo, desde que o desgraçado tivera a impertinência de lhe salvar a vida. Ao fim de tantos anos era difícil
abandonar a suspeita, a raiva e o ciúme que Simon despertava nele. Mas Martin tinha outros pensamentos com que se preocupar, a preocupante possibilidade de que Cassandra
Lascelles tivesse reaparecido, e só havia uma pessoa para além de Simon que podia dar descanso aos seus receios.
Mas primeiro... Martin olhou para as suas roupas molhadas e lamacentas. Era melhor ataviar-se um pouco porque tinha uma jovem para seduzir.
Carole Moreau estava enfiada no quarto de Madame Pascal, atrás da cozinha. Madame Pascal desaparecera com Miri na direção da casa de lavagen,
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ambas as mulheres em profunda troca de impressões sobre algum remédio que planeavam preparar para a égua. Parecia que iam ficar ocupadas por algum tempo.
Martin aproximou-se silenciosamente da porta do quarto. Agora sentia-se mais igual a si próprio, com um gibão limpo, o cabelo penteado e atado em rabo de cavalo.
Se não estivesse ainda a chover, ter-se-ia sentido tentado a surripiar algumas flores do jardim de Madame Pascal.
Bateu suavemente à porta, meio receoso de encontrar Mademoiselle Moreau adormecida. Sabia que anteriormente Madame Pascal tinha levado uma poção à jovem. Mas aparentemente
nem o velho remédio herbal da mulher fora suficiente para atenuar o medo e a aflição da rapariga.
Uma voz abatida mandou-o entrar. Martin abriu um pouco a porta e espreitou para dentro. A rapariga estava deitada, enfiada na cama de Madame Pascal, e embora não
fosse uma cama muito grande, Carole ainda parecia pequena e infantil, com as sardas a salientarem-se nas suas faces pálidas.
Poderia ser uma coisinha bem atraente noutras circunstâncias. Mas havia sombras sob os seus olhos azuis, com uma expressão tão desolada que despertou imediatamente
todos os impulsos cavalheirescos de Martin.
Os seus olhos dilataram-se ao vê-lo. Obviamente que estava à espera de Madame Pascal. com um arquejo suave, sentou-se imediatamente, puxando a colcha até ao queixo
numa atitude protetora.
- Por favor, mademoiselle. Não vos alarmeis - apressou-se Martin a tranquilizá-la, exibindo o seu mais gentil sorriso. - Queria apenas ver como estáveis a passar.
Lágrimas enormes brotaram dos olhos de Carole. - Então não estais furioso comigo, monsieur?
- Porque estaria eu furioso convosco?
- P... porque eu tentei ajudar a matar-vos.
Martin acenou a mão com desdém. - Ah, não penseis nisso, filha. Eu inspiro frequentemente instintos homicidas nos meus semelhantes, embora não tão frequentemente,
devo confessar, entre o sexo mais fraco.
Para seu horror, duas grandes lágrimas escaparam-se pelas faces de Carole. - Não, não, ma petite, peço-vos. Não choreis.
Se havia coisa que Martin não suportava, era a visão de qualquer mulher em lágrimas, especialmente uma tão pequena e triste donzela como esta. Puxou por um lenço
de fina cambraia e estendeu-lho.
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Carole pegou-lhe e limpou os olhos. - Obrigada. Detesto chorar em frente das pessoas, mas parece que o tenho feito demasiado nestes últimos dias.
- É perfeitamente compreensível depois de tudo o que haveis passado.
- Então não me odiais por ser uma daquelas malvadas mulheres? Eu n... não queria vir, sinceramente que não. - Fungou. - B... bem, talvez quisesse um pouco. Pensei
que talvez conseguisse ter uma oportunidade para fugir, mas p... primeiro queria ser suficientemente corajosa para ajudar a vermo-nos livres do caçador de bruxas.
Pelo bem de Meggie, compreendeis?
Martin não compreendera absolutamente nada, mas acenou que sim, encorajando-a.
- Quando entrámos no quintal estava a chover e não conseguimos distinguir. Tomámo-vos pelo caçador de bruxas.
- Mon Dieu! - Ultimamente Martin sofrera muitos golpes no seu orgulho, mas ser confundido com um caçador de bruxas! Era mais do que podia suportar. Empertigou-se
indignado e exclamou: - Mademoiselle, ofendeis-me. Achais que sou parecido com essa espécie de demónio?
- Não. Pelo menos agora que posso ver-vos mais claramente. - Baixou as pestanas enquanto lhe lançava um olhar de pura apreciação feminina.
- Então tenho de conseguir perdoar-vos - retrucou Martin. - Como poderia eu fazer outra coisa com uma tão encantadora e jovem senhora. Vejo agora de quem o vosso
filho herdou aparência tão encantadora.
Carole sentou-se ansiosamente na cama, recuperando as cores. - Vós haveis visto o meu pequeno Jean Baptiste?
- Bien súr, mademoiselle. Quando fui à ilha Encantada à procura de Mirí.
- Como é que ele estava? Como parecia ele? Está a passar bem?
- Como poderia não estar? É como um príncipe rodeado por uma corte de mulheres reverentes. Está a receber o melhor dos cuidados de todas as vossas amigas na ilha
Encantada.
O rosto de Carole ensombrou-se. - Eu não tenho amigos, msieur.
- com toda a certeza que tendes. Mademoiselle Miri é uma - disse, fazendo uma vénia. - E Martin, o Lobo, é outro.
Inclinou a cabeça, olhando-o timidamente. - Sois vós, monsieur?
- Certamente, ma petite. - Martin levou a mão da jovem
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levemente aos seus lábios. Ela esboçou um ligeiro sorriso que lhe fez covinhas no rosto, mas rapidamente assumiu um tom sério, entrelaçando os seus dedos nos dele.
- Posso perguntar-vos uma coisa, Monsieur Lobo?
- Martin - disse ele.
- Martin - repetiu ela, sorrindo de novo. - O que sucedeu às minhas duas companheiras? Estão... estão mesmo mortas?
- Receio que sim. Acho que as puseram num dos barracões lá atrás até que se possa arranjar algum tipo de sepultura.
Carole soltou a mão da mão dele e começou a enrolar os dedos na colcha, cabisbaixa. - Vós podeis achar-me muito malvada, monsieur, mas não lamento que elas tenham
morrido. Ursule, a grandalhona, era uma mulher odiosa e brutal e Nanette... não era tão má, mas era completamente louca. Era assustadora.
- De modo algum penso que sejais malvada, mademoiselle. O pouco que vi daquelas duas bruxas foi suficiente para me gelar o sangue, mas suponho que elas não são nada
que se compare à Rosa de Prata.
A rapariga fungou, contraindo-se ao ouvi-lo mencionar a feiticeira. Ele prosseguiu com a sua voz doce e persuasiva: - Não quero alarmar-vos, mademoiselle, mas a
feiticeira irá acabar por descobrir que haveis falhado a vossa missão e seguramente irá enviar mais alguém.
Carole estremeceu. - Sim, provavelmente é o que fará.
- Contudo, se me disserdes quem ela é, onde a posso encontrar..
- Eu não... eu não sei exatamente onde é, monsieur. Nós vivíamos numa velha casa em Paris e nunca ouvi o nome da mulher. Só sei que se referem sempre a ela como
senhora.
- Podeis descrever-ma?
A testa da jovem enrugou-se. - Ela é exatamente como aquilo que pensamos que uma bruxa se parece. Tem cabelo negro espesso e comprido com madeixas prateadas. A pele
é branca de morta. E o seu toque... quando nos toca, os dedos são tão frios que quase se sente ela a sugar todos os pensamentos e todas as memórias, por mais antigas
que sejam.
Martin engoliu em seco. Poderia haver duas mulheres a condizer com esta descrição?
- E os olhos... são tão escuros. Vazios.
- Porque é cega?
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Carole olhou-o com surpresa. - Como sabeis isso, monsieur?
O coração de Martin ensombrou-se com a confirmação de todos os seus receios. - Acredito que já devo ter-me cruzado com essa mulher... essa Rosa de Prata.
Carole contorceu-se quando o ouviu. Baixou os olhos para as mãos antes de dizer: - A senhora é a malvada. É ela que dirige a assembleia e é ela que está por trás
de todas as ações maléficas. Mas não é a Rosa de Prata. Essa... essa é Meggie.
- Meggie? - perguntou Martin, confuso.
- Ela não é malvada. - Carole olhou-o seriamente. - Meggie não é nada malvada. Longe disso. Mas tem a infelicidade de ser a filha da terrível bruxa.
- Sua filha? Essa bruxa tem uma filha? - Martin sentiu o sangue a fugir-lhe do rosto. - Que idade tem ela?
- Meggie tem nove, quase dez.
Martin humedeceu os lábios. - E... e o pai da criança?
- Ninguém sabe quem possa ser, monsieur. Mas a senhora é tão cruel que está sempre a dizer a Meggie que ela foi gerada pelo Diabo.
com a mente a vacilar do choque com tudo o que acabara de ouvir, Martin teve que se dirigir até à janela para esconder o seu semblante a Carole. A criança gerada
pelo Diabo - Bem que gostaria de acreditar nisso, mas tinha medo de que houvesse uma explicação muito diferente, muito pior.
A Rosa de Prata era filha de Cassandra Lascelles, mas estava aterrorizado por ela poder ser também sua filha.
As sombras alongavam-se nas cocheiras, onde Miri e Simon se mantinham ansiosamente a vigiar Elle, esperando por alguma mudança. Já incapaz de se manter de pé, Elle
estava deitada de lado na cocheira, com a cabeça esticada na direção de Simon, as pálpebras quase fechadas e o peito agitado à medida que arquejava.
Quando Miri lhe administrou o antídoto, Simon apaziguou os medos de Elle o melhor que pôde, mas foi incapaz de observar Miri a introduzir a seringa no pescoço da
égua, infiltrando-lhe o antídoto que, esperava, lhe pudesse salvar a vida. Mas, agora, tudo o que podiam fazer era esperar, ter
esperança e rezar.
Elle parecera tão sensível ao ruído que tinham retirado do estábulo todos os outros animais. Fora mais difícil afastar Jacques e Yves. Mas
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o rapaz estava muito melhor em casa com a mãe. Os acontecimentos do dia tinham sido para ele extremamente perturbadores e Ele precisava de tanto silêncio e sossego
quanto lhe pudessem dar.
Enquanto afagava o nariz de Elle, Simon disse para Miri: - Sabias que foi apenas uma questão de sorte Elle passar a ser a minha montada? Havia um mercador que queria
comprá-la para a filha montar. Elle teria uma bela vida, mimada num rico estábulo, de onde só sairia ocasionalmente para passeios ligeiros, mas naquele dia eu cheguei
primeiro. Ofereci ao criador de cavalos muito mais dinheiro por ela. - Acariciou o nariz da égua. - Elle estaria numa situação muito melhor.
- Não, não estaria - contrariou Miri. - Teria sido apenas mais uma posse da rapariga, um novo brinquedo, nada do que significa para ti. Ela adora-te, Simon. É contigo
que ela quer estar. Preferiria sempre estar contigo por pouco tempo, fosse quanto fosse, do que viver durante anos no melhor...
Miri interrompeu-se, sem ter a certeza absoluta se estava a falar dela ou da égua. Esticou-se para afagar o pescoço de Elle, enviando-lhe os seus pensamentos.
Por favor, Elle. Podes consegui-lo. Luta por voltar.
Os pensamentos enevoados da égua chegaram-lhe de volta. Tão cansada... cansada...
Não. Tu podes fazê-lo. Luta por voltar. Não podes morrer. Por favor. Tens de ficar, por ele. Ele precisa de ti.
Observando-a, Simon apertou fortemente ambas as mãos e resmungou:
- Nunca devia ter concordado com isto. Não está a funcionar. Miri, estamos a torturá-la para nada.
Miri começava também a desesperar, mas percebeu que o sucesso do tratamento era muito mais importante do que salvar apenas a vida de Elle. Simon convencera-se de
tal forma que a magia era o mal, envenenado pelos ensinamentos de le Vis, que Miri sentiu que não estava só a batalhar por Elle, mas pela própria alma de Simon Aristide.
Afagando mais uma vez a égua, procurou incutir-lhe os seus pensamentos e a sua vontade. Elle, por favor, tens que tentar. Ele precisa de ti. Não fases ideia de quanto.
Fora imaginação sua ou os olhos da égua pestanejaram e abriram-se depois e as escuras profundezas tinham ficado líquidas e claras? Elle procurou erguer a cabeça,
inicialmente um pouco desajeitadamente. Simon susteve
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a respiração. O animal emitiu um ligeiro relincho, depois lentamente rolou, colocando as patas sob o corpo. Um pouco cambaleante, de início, conseguiu pôr-se de
pé.
Ajoelhando-se, Miri pressionou as mãos sobre a boca, incapaz de falar, enquanto observava Simon, que também se levantava, com uma expressão espantada, deslumbrada,
plena de admiração. No instante seguinte, envolveu nos braços o pescoço da égua, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Acariciou-a, olhando vagamente para Miri,
procurando com todas as suas forças reter a emoção.
- Obrigado - disse-lhe com a voz rouca.
Miri andava pelo estábulo, dando ajacques as últimas instruções sobre como vigiar Elle durante aquela noite. A égua parecia estar mais forte e, para já, Miri não
estava apreensiva, mas, pelo sim pelo não, deu instruções ajacques para a chamar caso Ele revelasse qualquer sinal de recaída. Depois saiu dos estábulos para ir
procurar Simon.
Assim que teve a certeza de que Elle ia ficar bem, desaparecera. Agora que a crise passara, Miri temia que talvez a sua atenção se voltasse para Carole, para a interrogar.
Miri acreditava que a ira dele se esgotara, mas estava decidida a colocar um escudo entre ele e a aterrorizada rapariga, se fosse necessário.
Mas quando saiu dos estábulos, surpreendeu-se ao ver Simon sentado no banco de madeira à beira da lagoa, a observar os últimos raios de sol que se espalhavam sobre
a água cintilante.
Aproximou-se dele lentamente, sentindo que ele fora até ali pela mesma razão que ela o fizera na noite anterior, ou seja, era também a maneira de ele restaurar a
sua harmonia. Ele podia não acreditar, mas na verdade ambos tinham muita coisa em comum.
Mas enquanto Miri se aproximava, Simon não parecia estar a encontrar qualquer paz. Tinha o olhar fixo na seringa que simultaneamente causara tanto mal a Elle e lhe
salvara a vida.
Quando Miri se aproximou, ele olhou para cima, colocando o instrumento cuidadosamente de lado. Olhou-a com ansiedade: - Elle continua a passar bem?
- Está ótima. Aliás, parece que todo o incidente parece tê-la deixado esfomeada. Acredito que está a usar de todo o seu encanto para convencer Jacques a dar-lhe
uma ração extra de aveia.
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Simon sorriu. - Ela é boa nisso.
Miri parou a seu lado junto ao banco. Esticou o braço para lhe afastar uma madeixa de cabelo da testa. - Agora, estou mais preocupada sobre como está a passar o
dono de Elle.
Ele fez uma careta. - Não muito bem. Tenho estado a tentar rever al gumas coisas... a tentar encontrar um sentido... bem, acho que para toda a minha vida, afinal.
Há muito tempo, quando le Vis chegou à minha vila e me salvou, eu não fiquei propriamente agradecido. Na realidade, eu queria morrer, desejava estar morto. Não podia
compreender porque só eu, de toda a minha família e de toda a minha vila, fora poupado. le Vis disse-me que a razão por que sobrevivi foi para lutar contra o mal;
contra a espécie que tinha destruído a minha família, para que outros não viessem a sofrer o mesmo destino. Durante muitos anos, esse foi o pensamento que me deu
forças e dirigiu a minha vida. Mas, Miri, agora não tenho a certeza disso. Já não tenho a certeza de nada do que fiz, de nada daquilo que julguei compreender. Sinto-me
quase como se toda a minha vida não tivesse sido mais do que um prolongado erro.
- Oh, Simon. - Miri segurou-lhe as mãos.
- Eu, melhor do que ninguém, tinha consciência do que era le Vis. Mas estive sempre extremamente determinado em não me deixar perder na sua loucura, em não me transformar
em alguém como ele. Mas, depois, penso em como por vezes me comportei, quando fui atrás daquela pobre rapariga, e olho para mim, para o meu reflexo... - Simon olhou
para a sua imagem refletida nas águas brilhantes. - E é o reflexo de le Vis que eu vejo, a devolver-me o olhar.
Miri apertou-lhe mais as mãos. - Não é isso que eu vejo, Simon. Não é o que sempre vi. Sempre que olhei para ti, vi um homem bom, apesar de todas as tuas feridas
e todas as tuas dores. Um homem bom que lutava por sobreviver e procurava encontrar o seu caminho de regresso à luz.
Embora ele respondesse entrelaçando os seus dedos nos dela, continuou a olhar tristemente para a lagoa. - Durante tantos anos fui verdadeiramente cego na minha amargura
contra o conde de Renard, completamente convencido de que ele era um feiticeiro, mas agora sei que devo a vida de Elle à sua sabedoria. - Simon engoliu em seco.
- Penso que esta fúria que acalentei contra ele desde o princípio era apenas produto da minha própria culpa. Continuo a lembrar-me de quando ele carregou sobre mim
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com a sua espada para atacar os irmãos da nossa ordem de caçadores de bruxas. Nesse dia, le Vis planeava sujeitar-te à provação do julgamento pela água. Eu devia
estar grato a Renard por te ter salvo. Creio que a razão que me deixou furioso foi o facto de ser ele a salvar-te quando devia ser eu a fazê-lo.
- Oh, Simon, eras pouco mais do que um rapazinho naquela altura, tão confuso e assustado como eu.
Simon limitou-se a abanar a cabeça sombriamente. - Mesmo daquela vez em Paris quando ataquei Renard, quando fui procurar vingar-me dele por ter liquidado le Vis...
- Não foi ele. Durante muito tempo tentei dizer-te isso. Foi obra da Rainha das Trevas. Na altura da morte do teu mestre, Renard estava preso na Bastilha.
Simon abanou a cabeça com tristeza. - Devia ter acreditado em ti. Mas foi tão mais fácil culpá-lo por fazer o que eu mesmo queria fazer. - Soltou um forte suspiro.
- Nunca acabei de contar o resto da história sobre a véspera do dia de São Bartolomeu.
"Eu estava fora de mim, furioso, com o punhal nas mãos. Mas... mas não eram os huguenotes que eu queria destruir. Era le Vis que eu queria matar... o homem que salvara
a minha vida. Estive quase a correr atrás dele e... - Simon passou a mão pelo cabelo, com o olhar repleto de angústia.
- Senti-me tão dilacerado e confuso, tão despedaçado interiormente. Foi por isto que, sucessivamente, procurei afastar-te de mim.
- Mas tu tens vindo a emendar-te pouco a pouco. Não foi um qualquer louco como le Vis que arriscou a vida para ajudar os Maitland ou salvar Madame Pascal e Yves,
ou que procurou proteger-me e poupar-me vezes sem conta. O teu espírito tem vindo a lutar para vencer a escuridão, mas, Simon, estás tão cansado. - Miri afastou-lhe
delicadamente os cabelos do rosto atormentado. - Deixa-me amar-te. Deixa-me ajudar-te.
Embora ele beijasse ardentemente a palma da mão de Miri, disse:
- Não posso, Miri. Tenho muito medo. Tu foste a única coisa boa e constante na minha vida. Se eu te contagiar com a minha escuridão...
- Não o farás - gritou ela. - Posso ser suficientemente forte por nós os dois, muito mais do que já fui antes. Tudo o que tens de fazer é abrir os teus braços e
deixar-me entrar.
Simon fitou-a por um longo momento, com o seu olho negro a oscilar entre os seus receios e os seus anseios. Os anseios ganharam e ele .abriu
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lentamente os braços. Quando Miri caiu neles, ele apertou-a contra si. Miri agarrou-lhe os cabelos, puxando-o e procurando avidamente os seus lábios.
Perdidos na paixão do seu abraço, nenhum deles reparou na silhueta do homem solitário à porta do estábulo. Enquanto Miri se rendia ao abraço de Aristide, Martin,
o Lobo, via todos os seus sonhos serem reduzidos a pó.
com o coração a destroçar-se lentamente, entrou no estábulo para retirar o seu cavalo.
A recente chuva deixara as ruas escorregadias e lamacentas, mas contribuíra para arrefecer o ar e os ânimos na cidade. O alívio em relação ao calor deu origem à
celebração. Os sons de risos e festejos ainda podiam ouvir-se vindos de algumas tabernas, mesmo a esta hora tardia. Mas ao longo da Rue de Morte por onde Martin,
o Lobo, se movia lentamente, tudo era escuro e silencioso.
Noutras circunstâncias, poderia ter sido tentado a juntar-se à pândega. com uma vida tão dura como a sua tantas vezes o fora, na luta pela sobrevivência nas ruas,
sempre amara a grande cidade de Paris e o ruído, o burburinho, a abundante humanidade, as casas altas, o pulsar da vida que fazia o sangue das suas veias correr,
estimulado. Mas, engolido pela escuridão, sentiu-se intimidado pelas formas sinistras da casa que se erguia à sua frente.
A Maison dEsprit.
Na sua juventude, como tantos outros na cidade, passara por ela encolhendo-se e fazendo o sinal da cruz. Já nesse tempo a casa tinha a reputação maléfica de ser
um lugar onde as bruxas viviam, sempre prontas a amaldiçoar quem quer que se aproximasse. E nesses tempos Martin tinha grande temor de tudo o que tivesse a ver com
o sobrenatural.
Podia constatar que a casa estava em melhores condições do que outrora. As janelas estavam restauradas, as rachas nas paredes estavam rebocadas, mas para ele o lugar
continuava a possuir um aspeto sinistro, transportando-o de volta à noite tão remota em que, pela primeira vez, ali estivera com o capitão Remy, avisando-o de que
era melhor evitar aquele lugar. Um aviso que agora desejava que todos tivessem ouvido, especialmente Gabrielle
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Cheney, pois assim não teriam ficado a conhecer nada sobre Cassandra Lascelles. Ela não teria desempenhado qualquer papel nas suas vidas.
Espreitando através das grades do portão, Martin pensou que a casa ainda parecia assombrada por fantasmas, maldições e segredos. E agora um desses segredos podia
muito bem ser seu se Carole Moreau lhe disse a verdade. Ainda tinha a esperança de eventualmente vir a descobrir que a jovem estaria, na altura, histérica ou profundamente
enganada quanto ao facto de a Rosa de Prata ser apenas uma rapariguinha, a filha da feiticeira e muito provavelmente também dele. Uma noite. Uma vez. Deitado com
a mulher. Certamente que isso não teria sido suficiente. Mas bem sabia que não podia acreditar nisso.
Carole descrevera-lhe esta criança como sendo notável, quase um anjo, mas as outras coisas que lhe dissera sobre Meg tinham-no deixado gélido; que ela tinha de facto
ressuscitado uma criança, que tinha olhos que pareciam poder alcançar o nosso interior e tocar o nosso coração. Mon Dieu, a Martin isto soava muito mais próprio
de uma bruxa do que de um qualquer anjo.
Quando se inclinou do lado de fora do portão a espreitar, sabia que não ia descansar até conhecer a verdade. Talvez se tivesse precipitado ao abandonar a quinta
daquela maneira, avisando apenas o rapaz, Yves, mas esperava de alguma forma conseguir regressar antes do amanhecer. De qualquer forma, pensou amarguradamente, recordando
a última imagem de Miri nos braços de Aristide, se ela chegara sequer a reparar que ele partira.
Talvez fosse melhor eles estarem preocupados. Não estava propriamente ansioso para que tanto Miri como Aristide conhecessem o seu vergonhoso segredo. Martin nunca
contara a ninguém sobre a noite em que fora seduzido por uma bruxa. A sua própria carne se sentira contaminada pelo contacto com a mulher. Lembrou-se de depois se
ter ajoelhado no chão a vomitar as entranhas, sentindo-se amaldiçoado, contaminado para sempre.
Se isso se viesse a tornar verdade, que Deus o ajudasse. Pensou em como Miri reagiria ao descobrir que ele era o pai da Rosa de Prata, a criança demoníaca. Talvez
se limitasse a voltar-lhe as costas. Mas ela já lhe parecia perdida, e alimentar estes pensamentos tão sombrios quando estava sozinho na escuridão, ponderando fazer
algo tão perigoso como preparar-se para espiar uma assembleia de bruxas, não contribuía nada para sustentar
a sua coragem.
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Disse para com os seus botões que o mais prudente e sensato seria regressar à estalagem onde deixara o cavalo, para ver se conseguia encontrar algum dos seus velhos
companheiros dos seus dias de larápio de rua, e talvez depois aproximar-se da casa ao romper da aurora.
Mesmo então, Martin interrogou-se sobre o que iria fazer. Simplesmente encaminhar-se corajosamente para a porta, bater e dizer: "Desculpai-me, haverá alguma bruxa
malvada que viva aqui e que eu possa ter engravidado há dez anos? Não, o seu único caminho era ele próprio saltar o muro. E quanto a ser sensato e prudente - Martin
encolheu os ombros. Bem, nunca fora especialmente prudente durante os passados vinte e oito anos da sua vida. Porquê começar agora?
Mais uma vez relanceando o olhar nervosamente para a casa, antes de lhe faltar a coragem avançou lentamente para junto do muro de pedra. A superfície era suficientemente
irregular, com apoios para os pés e as mãos, pelo que conseguiu trepá-la rapidamente. Tinha trocado o seu traje mais vistoso por um gibão de veludo preto e calças
que o ajudavam a confundir-se com a noite. Quando aterrou no jardim, contraiu-se, pesquisando à sua volta por qualquer sinal de alguém poder ter visto a sua entrada.
Recordou-se de que uma vez a bruxa tivera um cão feroz, mas, pelo que Carole Moreau lhe dissera, não havia nenhum cão, apenas uma casa cheia de bruxas. Mas o jardim
parecia tranquilo.
Onde antes houvera ervas daninhas e fontes cobertas por musgo, podia agora ver canteiros de rosas bem tratadas. Havia algo de bastante perturbador no contraste entre
toda aquela beleza inocente e a mórbida casa que se erguia à sua frente. O lugar estava completamente às escuras. Agachou-se por um momento, sem saber exatamente
o que fazer a seguir, quando ouviu ruídos que pareciam vir das traseiras da casa. Esgueirando-se cuidadosamente através dos arbustos, deu a volta à casa até conseguir
ver luz a sair das janelas.
Uma delas estava ligeiramente aberta, para deixar entrar a brisa que a chuva recente trouxera. Agachando-se, Martin encaminhou-se furtivamente para a janela, até
ser capaz de deitar uma espreitadela para o interior. Descobriu que lá dentro era a cozinha de uma grande casa.
Estava iluminada pela luz das velas e havia pelo menos três bruxas. Só conseguia ver uma claramente; era uma mulher pequena, morena, com a aparência de anã. Havia
outra, mais magra, que estava de costas para a janela. Estas duas estavam a beber copos de vinho, alegremente envolvidas
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numa espécie de brinde. Uma terceira encontrava-se de pé, segurando um copo de vinho, mas parecia estranhamente deslocada, com o seu belo vestido de seda e a respetiva
crinolina. Era loura e baixa, usava uma máscara semelhante às que as cortesãs usam para esconder a sua identidade.
As duas primeiras bruxas interromperam o brinde para espreitarem para um caldeirão que fervilhava na chaminé e Martin inalou o odor, enrugando o nariz. Fosse o que
fosse que estavam a preparar, tinha a maldita certeza, de que não era um guisado. Um cheiro bastante fétido e acre emanava do caldeirão e esfumava-se pela janela.
A mais pequena das duas, a anã, disse: - Achas que é para ficar assim?
A mulher magra com o cabelo sujo respondeu: - Como hei de saber? Nunca antes preparei um miasma.
Martin fungou. Miasma. Já antes tinha ouvido aquele termo perturbador. Era a poderosa poção que a Rainha das Trevas supostamente tinha lançado em Paris para provocar
a terrível loucura do massacre do dia de São Bartolomeu. Mon Dieu, estariam estas malditas bruxas a planear um novo e semelhante banho de sangue?
A mulher magra mergulhou um atiçador no caldeirão. - Parece que está a endurecer junto às paredes do caldeirão. Não pode estar bem.
- De acordo com a Rosa de Prata, é isso que deve acontecer - retrucou a anã. - Depois de endurecer, então podemos triturá-lo. Ficará em pó e então quando for inalado...
- A Rainha das Trevas vai ficar louca. - A bruxa escanzelada deu uma risada seca; parecia mais o riso de uma mulher embriagada. - Ela destruirá o duque de Guise.
- Então os cidadãos de Paris voltar-se-ão para ela e para o filho e isso será o fim da Casa de Valois - gritou a anã. - Oh, quem me dera ser uma das escolhidas para
entregar o miasma à rainha.
- A senhora não irá confiar uma missão tão importante a qualquer uma. Quer ser ela a desempenhá-la. Porém, ela irá permitir-me acompanhá-la, como sua serva e amiga
de longa data - gabou-se a magricela. Ergueu o seu copo. - À revolução que se avizinha!
- E à ascensão da nossa Rosa de Prata.
As duas fizeram tilintar os copos e voltaram-se para a terceira.
- Mademoiselle Harcourt, porque não se junta ao nosso regozijo?
A mulher sorriu languidamente, mas não estendeu o seu copo para brindar com elas. Em vez disso, bebeu um trago. - Não posso regozijar-me ou sentir-me tranquila até
a ação estar de facto concluída.
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Pela primeira vez, a mulher esquálida voltou-se e Martin pôde ver bem o seu rosto. Revolveu-se-lhe a memória e o coração quase lhe parou. Ele conhecia a mulher.
Qual era o seu nome? Francine - Fabrianna - Não. Finette. Era isso. Ela era a criada de Cassandra Lascelles há muitos anos. Martin fizera com que um dos seus amigos
a seduzisse e distraísse para ele poder infiltrar-se no quarto onde Cassandra esperava por Remy.
Retrocedeu um pouco, sabendo que onde estivesse Finette a sua patroa não estaria longe. Mas, já que viera até aqui, tinha que descobrir o que as malditas bruxas
estavam a preparar e precisava de saber tudo sobre a Rosa de Prata. Poderia a rapariguinha realmente fazer parte desta horrível conspiração?
Enquanto Gillian Harcourt bebia o seu vinho, recusando juntar-se à alegre celebração das outras duas, Finette fungou. - Hum! Parece-me que a senhora da corte está
acima da nossa companhia, Odile.
Gillian retorquiu: - Não, a senhora só aprendeu a ser cautelosa. Sou eu quem tem estado ao serviço da Rainha das Trevas todos estes anos. Sei muito melhor o quão
perigosa ela é do que todas vós.
- Oh, sim, pobrezinha - escarneceu Finette. - Que vida terrível ela teve, a viver toda apaparicada no palácio e a seduzir todos aqueles homens elegantes sob as ordens
da Rainha das Trevas. - Finette lambeu os lábios com lascívia.
Mas aquela que fora chamada de Odile pareceu mais compreensiva.
- Não consigo imaginar que tenha sido assim uma vida tão agradável.
Gillian encolheu os ombros. - Às vezes foi. Mas, sim, sempre estive muito ao dispor da Rainha das Trevas. Tive que seduzir quem quer que ela me ordenasse.
Finette franziu a testa. - Até ouvi dizer que, durante algum tempo, fostes amante daquele caçador de bruxas.
O quê? Martin ficou tenso.
- Sim, por algum tempo. Mas é por isso que também estou nervosa quanto a Simon Aristide. Também não podemos ignorá-lo.
- Oh, asseguro-vos - sorriu Odile - de que desta vez se está a tratar bem dele. A senhora enviou Ursule e Nanette atrás dele, e Ursule pode não ser boa em certas
coisas, mas é ótima a matar.
- Espero que tenhais razão - disse Gillian -, porque não durmo bem desde que me apercebi de que Simon Aristide e a Rainha das Trevas estavam a trabalhar juntos.
A Rainha das Trevas deu-lhe autoridade absoluta
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para fazer o que quiser, o que significa que, se ele descobrir onde estamos, ficaremos à sua mercê. E posso dizer-vos que misericórdia o homem não tem nenhuma.
Martin quase se engasgou. Teve de bater com a mão na boca para abafar a expressão do seu ultraje. Então afinal Simon estava aliado com a Rainha das Trevas. Estivera
quase a dar ouvidos a Miri depois de o homem lhe ter salvado a vida. Tinha começado a mudar de opinião sobre Aristide, mas mais uma vez, como habitualmente, o degenerado
estava a trair a confiança de Miri e mais uma vez ela ia ser magoada por ele. E em mais de uma maneira.
Se esta mulher estava a dizer a verdade e tivesse sido amante de Aristi de... Martin deu um passo atrás, afastando-se da janela, dividido entre querer descobrir
a verdade sobre a Rosa de Prata e regressar para Miri. Mas antes que pudesse decidir o que fazer, um ramo estalou atrás de si. Voltou-se para trás, mas já era tarde
de mais. Deu de caras com a ponta de uma espada desembainhada, empunhada por uma mulher baixa de aspeto feroz. A ponta da espada pousou-lhe na garganta.
- Não vos movais - silvou ferozmente a mulher - ou perfuro-vos a garganta, espalhando o sangue por todo o lado e sobre as janelas.
Outra voz ecoou na escuridão. - O que me poria muito triste, pois fui eu que da última vez as tive de lavar.
Martin ergueu as mãos, dizendo: - Perdoai-me. Não queria causar nenhum incómodo a qualquer das senhoras. Reconheço que o meu aparecimento aqui possa ocasionar algum
alarme. - O seu olhar dançava entre as duas enquanto falava, procurando avaliar as suas hipóteses de saltar fora do alcance delas e sacar da sua espada, mas antes
que pudesse reagir, uma terceira apareceu e agarrou-lhe os braços. Quase não conseguia perceber as formas das mulheres na escuridão, exceto o brilho fanático dos
seus olhos quase de ratas. Mas podia dizer que estavam armadas até aos dentes com espadas e punhais. Porque não havia a mulher de continuar a ser guardada por um
cão? Preferiria muito mais um cão do que estas criaturas meio loucas.
Tentou exibir um sorriso encantador. - Senhoras, percebo que isto pode parecer mau, mas asseguro-vos de que estava simplesmente... estava à procura da casa de Pierre
Tournelles. Acho que me enganei no local.
A que primeiro o abordara mostrou os dentes num sorriso cintilante.
- Bem, já que estais aqui, monsieur, é melhor entrardes e juntar-vos à festa.
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A chegada de Martin provocou o fim súbito da algazarra na cozinha. Foi lançado para uma cadeira, com as mãos atadas atrás das costas e os pés amarrados. Amaldiçoando
silenciosamente a sua estupidez, esperou que nunca se ouvisse dizer que Martin, o lobo, um dos mais astutos agentes de Navarra, se deixara apanhar por um punhado
de mulheres. No entanto, se não mantivesse a sua astúcia, pensou, não só não se ouviria falar disso como sequer se voltaria a falar dele.
Reparou que a beldade da corte, a outrora amante do caçador de bruxas, tinha nervosamente desaparecido assim que ele fora arrastado para dentro. Para além da feroz
guarda que primeiro o atacara, as únicas duas que restavam era a mulher anã, de seu nome Odile, e Finette, a criada de Cassandra, que nunca tivera um odor agradável.
Estava pior agora, que tresandava a uísque. Pavoneava-se em redor de Martin, passando-lhe os seus dedos sujos pelo rosto.
- Então, capturámos um espião. O que acham que devemos fazer com ele?
- Arrancar-lhe os olhos - sugeriu a guarda.
- Ou talvez devêssemos cortar-lhe os testículos - sugeriu Odile. Martin fez os possíveis por não se encolher. - Senhoras, receio estar afeiçoado a essas duas partes
do meu corpo. Eu esperava que pudéssemos ser um pouco mais razoáveis sobre isto. Que tivésseis um pouco de misericórdia. - Suspirou. - Tive um dia muito mau. Bem,
para dizer a verdade, toda a semana não foi grande coisa. Na realidade, pensando bem, o ano inteiro tem sido bastante miserável.
Finette deu uma estridente gargalhada. - Não tão miserável como as coisas vão ficar para vós, monsieur.
A pequena guarda de rosto amargo sugeriu: - Penso que talvez seja a língua dele que precise de ser cortada.
Para desespero de Martin, Finette escarranchou-se no seu colo, dizendo, enquanto puxava o cabelo dele para trás: - Oh, penso que seria desperdiçar uma bela língua
e um bom par de testículos. Talvez o leve comigo como brinquedo.
Martin inclinou-se para trás na cadeira tanto quanto pôde, arrepiando-se, pensando que teria sido bem melhor ter-se posto a caminho com a língua e com os testículos
intactos antes de tudo isto acontecer. - Senhoras, por favor, asseguro-vos de que tudo isto foi um erro..
- E fostes vós quem o cometeu. - A voz gélida parecia saída do nada e gelou o sangue de Martin. Finette saltou do seu colo. Sustendo a respiração,
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Martin preparou-se e voltou-se para a figura recortada na entrada, com as mãos brancas agarradas ao seu bastão.
O coração quase lhe parou ao avistar Cassandra Lascelles. O seu rosto magro ainda era emoldurado por aquela enorme massa de cabelo cor de ébano, embora agora tivesse
algumas madeixas prateadas. E lá estavam ainda os mesmos olhos mortos, a mesma boca cruel. No entanto, envelhecera consideravelmente em dez anos e aquela terrível
e sedutora beleza que outrora possuía desaparecera por completo, deixando no seu rasto nada mais do que crueldade.
À medida que avançava, tateando o seu caminho até ele, Martin respirava irregularmente e sentia a boca seca.
Encolheu-se quando ela lhe tocou no rosto, com os dedos a vaguear como gotas de gelo através da sua fronte.
A mão tremeu-lhe e a pouca cor que tinha desvaneceu-se das suas faces. - Mas, pelo próprio demónio, sois mesmo vós. Quando ouvi a vossa voz, pensei estar a sonhar.
- Perdão, madame, mas não creio que nos tenhamos encontrado antes. - Martin procurou desesperadamente negar, mas foi silenciado pelos dedos dela ao moverem-se sobre
a sua boca.
- Haveis imaginado que eu poderia esquecer aquela vossa voz? Tão macia, tão persuasiva, que me atormentou as noites nestes passados dez anos. - Pressionou mais fortemente
as pontas dos dedos sobre os lábios dele e um arrepio percorreu o corpo de Martin, com uma estranha e perturbadora sensação. Lembrou-se que a feiticeira tinha a
fama de possuir a capacidade de adivinhar os pensamentos dos outros apenas através do toque.
Martin lutou para manter a sua mente em branco. Mas sentia que era já tarde de mais. A boca de Cassandra estirou-se num sorriso de fria cólera e triunfo. Inclinou-se
para ele, com um hálito que tresandava a conhaque. Obviamente estivera a participar nas celebrações, mas só bebera o suficiente para ficar um pouco instável sobre
os pés.
- Bem, meu audacioso amante, depois de todos estes anos, apareceis mais uma vez magicamente no meu coração. Parece que o destino decidiu finalmente sorrir-me.
- Fico satisfeito por sorrir a alguém - murmurou Martin. - Tudo o que pareço conseguir dele é mais um pontapé no traseiro.
Cass riu-se, afagando-lhe a sobrancelha com uma terrível delicadeza.
- Nem podeis imaginar há quanto tempo desejava este reencontro. Haveis desaparecido tão repentinamente depois da nossa única noite de paixão.
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Martin humedeceu os lábios. - Ah, desculpai-me. A minha intenção foi sempre a de voltar no dia seguinte, aparecer com doces e flores, mas não tinha a certeza de
como seria recebido.
- Penso que sabeis perfeitamente como teria sido a receção. Ter-vos-ia arrancado e comido o coração.
- Isso seria uma lástima. O meu coração é muito duro. Tenho a certeza de que encontraríeis muito melhor iguaria numa cidade como Paris.
Susteve a respiração enquanto a mão dela se movia sobre a sua garganta, com as unhas riscando-lhe suavemente a pele.
- Meu lobo solitário - murmurou. - Sabeis nestes passados dez anos quanto tempo passei a pensar em vós?
Martin desviou a cabeça, procurando evitar-lhe a respiração fétida encharcada em conhaque.
- S... sinto-me lisonjeado, madame, por ter tido tanta importância.
- Oh, sim. É certo que haveis tido. Pensei muito, muito mesmo, no que faria se tivesse a sorte de vos pôr novamente as mãos.
Martin fez má cara. Era exatamente isso que ele temera. - Haveis passado todo este tempo a pensar em mim? Tempo a que poderíeis seguramente ter dado melhor uso.
Cerrou os maxilares quando ela começou a desapertar-lhe o gibão, mas naquele momento uma voz infantil fez-se ouvir.
- Mamã?
Cassandra imobilizou-se, tal como todas as mulheres na sala; Odile e a guarda afundaram-se em profundas vénias, mas Finette voltou-se, exclamando: - Megera, o que
estais a fazer fora da cama?
A voz infantil respondeu: - Não conseguia dormir. T... tive um pesadelo. Estava preocupada com Carole. Ela... ela já voltou, mamã?
Finette encaminhou-se para a criança. - Não precisais de preocupar-vos com ela, vossa majestade. Precisais sim de voltar para a cama.
Mas Cassandra endireitou-se, com uma expressão de desagrado nos lábios. - Não. Trazei a criança aqui.
Quando Finette obedeceu, o coração de Martin bateu muito mais forte do que quando fora ameaçado pelas bruxas. Aguardou, sustendo a respiração, enquanto uma pequena
figura se aproximava.
Era tão pequenina. Por um momento pensou desanimadamente que ela não podia ter nove anos. Tinha de ser mais nova do que isso. Não podia ser sua filha. Olhou para
aquele pequeno ser de rosto anguloso com cabelo
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castanho baço. O que tinha de mais surpreendente eram os seus olhos verdes, que, quando viram Martin na cadeira, se abriram ainda mais. Ela recuou um pouco timidamente
até a mãe tocar no terrível medalhão que usava ao pescoço e se voltar.
- Vem cá, filha. Durante muito tempo atormentaste-me com perguntas sobre o teu pai. Sempre te disse que ele era o Diabo. Sucede que eu estava errada sobre isso.
Parece que foste gerada por um lobo. Vem cá, Megera, e faz uma vénia ao teu querido papá.
A brisa entrava pela janela do quarto de Simon, trazendo consigo o murmúrio das árvores, o doce perfume das flores e ervas do jardim, o chamamento queixoso de um
rouxinol. Simon e Miri olharam-se mutuamente tal como tinham feito naquela noite quando se encontraram pela primeira vez no meio dos monólitos. Mas em vez de estarem
rodeados por tochas e fogueiras, não havia nada para além do brilho suave das velas e a dolorosa vulnerabilidade no rosto de Simon Aristide.
Um rosto muito mais cansado da vida do que o do belo rapaz de que Miri se recordava. Um rosto de guerreiro, lapidado por missões que só o esmagaram, dragões que
quase o tinham liquidado, escuridão que quase o reclamara.
Mas no estábulo onde combatera com o demónio pela sua alma, vencera. Nesta noite, neste momento, Miri podia sentir o quão desesperadamente ele a queria; sentir nele
a maravilha e o medo.
A voz dele ecoou na sua memória, quando se encolhia junto à lagoa, com a lâmina de bruxa que salvara Elle embalada nas suas mãos. Será que alguma vez consegui fazer
as coisas certas?
Ela sabia que ele não queria que isto - o fazerem amor - fosse mais um erro. Algo de que ela se arrependesse.
- Simon, posso contar-te um segredo? - Aproximou-se, passando-lhe os dedos pelo rosto cicatrizado.
Ele inspirou, como se aquele simples pedaço de doçura o aniquilasse. O olho fechou-se ao toque dela, as pestanas do seu olho saudável, escuras como azeviche, ricamente
curvadas na sua face imaculada. - Podes contar-me tudo, senhora.
- Penso que tenho estado à espera disto desde sempre. Desde o primeiro momento em que te vi, eu...
- Eras pouco mais do que uma criança nessa altura.
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- Eu não digo que sabia então o que fazer contigo. Mas em todas aquelas noites, sozinha na minha casa na floresta, ouve momentos em que só conseguia imaginar...
Não me atrevia a admitir para mim mesma que eras tu nos meus sonhos. Um amante sombrio, que não tinha medo...
- Mas eu tenho. Tenho medo de te magoar. Medo de falhar perante ti. Medo... de que mereças alguém perfeito para se deitar contigo, Miri. Alguém inteiro, com um coração
limpo para te oferecer. Ainda há tanto entre nós. Não consigo ver como...
- Eu quero-te - interrompeu ela, olhando fixamente o seu olho.
- Só a ti.
- Então Deus te ajude. Não sou suficientemente forte para fugir. Delicadamente ela fez escorregar os dedos sob a pala do seu olho, não querendo que nada, especialmente
aquele pedaço de pele atrás do qual ele se escondera durante tanto tempo, se interpusesse entre ambos.
Já antes o vira sem a venda. Removera-a quando sabia que isso o irritaria. Mas desta vez era diferente, tão diferente. A aceitação tangível das cicatrizes que ambos
tinham sofrido, uma terna absolvição.
Pressionou a boca contra a carne dobrada, com os seus próprios olhos a vaguearem fechados, todo o seu corpo vivo com admiração, desejo.
Coragem. Ele tinha mostrado tanta coragem, ousando ir até ela, deixando derrubar os muros que durante tanto tempo lutara por manter entre ambos.
Desapertou-lhe o gibão, deslizou as palmas das mãos sob a camisa de linho, enfiando-as entre o tecido e a sua pele quente.
Simon rugiu enquanto os dedos dela percorriam o seu tronco, e Miri exultava com a sua resposta quando ele puxou a camisa pela cabeça, rasgando-a com a impaciência
de ficar livre. - Eu preciso de te tocar... preciso de te ver...
O homem tão destemido, tão forte, despiu-a com mãos trementes. Dedos poderosos que tinham confortado um rapaz simples, acalmado uma égua em sofrimento e desafiado
multidões em fúria para proteger inocentes despiam agora peça por peça do traje de Miri, desfolhando o tecido do seu corpo como pétalas de uma flor até ela estar,
pálida, imóvel, nua perante o seu olhar esfomeado.
Ela nunca sentira vergonha do seu corpo. Porém, quando Simon a observou, sentiu o esplendor de algo novo, algo diferente, uma onda feminina de orgulho por poder
oferecer esse prazer escaldante ao homem que amava.
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Simon fez deslizar as palmas das mãos, endurecidas pela espada, pela curva que descia dos ombros de Miri, depois pelas ancas, percorreu a inclinação do seu peito
com os dedos, provocando-lhe um calor escaldante que ela nunca sentira. Depois com a boca explorou-lhe a concavidade junto à garganta, beijando-a, enquanto a erguia
nos seus braços e a levava para
a cama.
A cama era larga demais para um homem solitário. A cama que sussurrava sonhos que Miri duvidava que algum dia Simon os tivesse admitido, mesmo para si próprio nas
noites escuras que passara sozinho.
Deitou-a de costas sobre a colcha, com o seu grande corpo sobre o dela, num delicioso contraste entre a sua dureza e a macieza dela, deixando Miri sufocada.
Uma Filha da Terra, educada no equilíbrio da natureza, compreendia com certeza a dança de macho e fêmea, a atração do Sol pela Lua, do mar pelo litoral, do céu pela
terra.
Mas quando a boca de Simon tomou a dela num beijo faminto e as suas mãos descobriram cada depressão e cada curva do seu corpo, com os quadris a abaterem-se pesadamente
sobre ela enquanto entreabria as suas coxas, soube que não percebia nada sobre toda a magia que havia em fazer amor.
Fazer amor...
Pois era isso que Simon estava a fazer com ela. Infundindo em cada fibra do seu ser a paixão que durante tanto tempo lhe negara, dizendo-lhe com as mãos e com a
boca o quão faminto estivera por saboreá-la, por senti-la, pelo acolhimento que o corpo dela podia oferecer ao seu.
Miri gritou quando a boca dele se fechou sobre a dela, traçando com a língua a depressão dos seus lábios, implorando entrada. Abriu-se para ele ansiosamente, franqueando-lhe
a entrada. Simon gemeu, arqueando-se sobre ela, e ela sentiu a haste dura da sua ereção.
Afagou-lhe a longa extensão das costas, procurando aproximar-se, alcançar o mais fundo dos lugares do seu coração que durante tanto tempo ele lhe recusara. com os
dentes prendeu-lhe o lábio inferior, provocando-o com instinto feminino, tão antigo como a primeira Filha da Terra, que dera o seu corpo à sombra de menires. Ritos
de fertilidade, afirmação de vida, a própria terra a renovar-se.
Simon beijou-a percorrendo-lhe o pescoço até à garganta, o peito, a respiração quente, os lábios húmidos e insuportavelmente sensuais quando se
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fecharam sobre o mamilo de Miri. Ela gritou enquanto ele a sugava com uma ternura tempestuosa, secando-a até à última sensação, até que o seu corpo gritou com o
desejo que só ele podia satisfazer.
- Simon... - gritou Miri, ofegante. - Simon, por favor...
Ele selou-lhe a boca com um beijo, com um profundo impulso do corpo.
A dor arrancou um grito a Miri quando ele perfurou o seu véu virginal, mas depois ela riu-se, um som que surpreendeu Simon. Fê-lo hesitar. Recuou, observando os
olhos dela.
- Estás bem?
- Estou... estou tão feliz por tê-la perdido... - disse-lhe sorrindo. - Fizeste-me esperar... muito tempo... Simon Aristide.
- Farei com que esta noite valha a pena, Miri. Se depender do meu poder...
Colocou-se sobre ela num ritmo que fluía como o poder do mar em volta da ilha Encantada, uma pulsação de vida que ela sentira na terra, mas que só agora compreendia.
A pulsação que Simon confessara ter sentido quando se deitara na terra quando rapaz.
A pulsação batia no coração de Miri, que abanava a cabeça, com gritos arrancados da garganta quando Simon a levou ao delírio e se rendeu também à sua ejaculação.
Uma magia tão velha como os tempos. Mas nova. Insuportavelmente nova enquanto Simon e Miri a reclamavam como sua.
A escuridão era tanta e tão implacável que parecia pressionar os olhos de Martin. Podia sentir nas costas o frio húmido da parede de pedra a que estava acorrentado
e puxou pelas suas algemas, cerrando os dentes com frustração ao tentar arrancá-las da parede.
Sabia que estava trancado numa qualquer câmara subterrânea da casa. Pelo pouco que pudera ver antes de as feiticeiras o deixarem acorrentado na escuridão, as paredes
pareciam velhas e decrépitas, prestes a cair a qualquer momento. Exceto, claro está, aquela a que o acorrentaram e que parecia sólida como um pilar de mármore.
Fletiu os músculos e puxou até esfolar os pulsos, mas sem qualquer proveito. Encostou-se para trás, ofegante, intimando-se a não entrar em pânico. - Já estiveste
em situações piores, Martin, o lobo - murmurou. Infelizmente naquele momento não conseguia recordar-se quando.
Estava acorrentado e à mercê de uma feiticeira louca que tivera dez anos para planear a sua vingança. Ele tinha saído furtivamente da quinta, deixando Miri com aquele
caçador de bruxas que mais uma vez traía a confiança dela. E o único que tinha alguma ideia de onde ele se encontrava era Yves, mas o rapaz ficara tão encantado
com o chapéu emplumado que o capitão Martin lhe oferecera pela ajuda com o seu cavalo que podia não se lembrar de muito mais.
Era difícil organizar quaisquer noções de fuga quando não podia sequer ver as próprias mãos para perceber se conseguira qualquer progresso nos seus esforços para
se libertar. Se ao menos tivesse a luz de um toco de vela...
Devia ter dado mais atenção ao seu velho amigo Pierre, que muitas vezes o avisara para ser cauteloso quanto ao que desejava, pois naquele mo mento
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a porta no alto das escadas rangeu e apareceu uma luz trémula. Era difícil exultar com a aproximação de uma vela quando não se tem qualquer ideia de qual o tipo
de tortura que ela pode anunciar.
Martin contraiu-se, com os olhos semicerrados, à medida que a luz que se aproximava projetava sombras vacilantes nas paredes. Escutou o passo ligeiro de alguém que
descia furtivamente as escadas. Animou-se, sabe Deus porquê, completamente surpreendido pela vistosa e delicada camisa de noite e pelos pequenos pés descalços.
Era a filha da bruxa. Ainda não conseguia aceitar o facto de que também pudesse ser sua filha. Tivera apenas um fugaz vislumbre da criança antes de ela sair da cozinha
depois de Cassandra o apontar como seu pai. Parecera-lhe uma criança estranha e perturbada com grandes e assombrados olhos verdes, simultaneamente surpresa e assustada
com ele.
Ele estava muito mais surpreendido por ela se ter aventurado a descer até ali sozinha para o enfrentar. Igualmente surpreendido pelo bater do seu coração com a aproximação
dela. Quando chegou ao fundo das escadas, parou por um momento, com a vela na mão. Ele semicerrou os olhos ao brilho da luz após a escuridão total.
Quando os seus olhos se adaptaram, viu-a pousar a vela numa mesa tosca de madeira. O brilho da vela era como um halo para o seu pequeno rosto, solene e magro. No
entanto, o seu cabelo não parecia tão despenteado como antes. De facto, parecia até que se tinha dado ao trabalho de o escovar e de o atar com uma fita cor-de-rosa.
Aproximou-se, com os seus olhos, como que órfãos, a fixá-lo de uma forma perturbadora. Ali ficou durante um longo momento, sem dizer nada. E, pela primeira vez na
sua vida, Martin, normalmente tão fluente com qualquer ser feminino que cruzasse o seu caminho, não conseguia pensar numa única palavra para dizer a esta pequena
que bem podia ser a sua própria filha.
Por fim pegou nas pontas da sua camisa de noite e baixou-se numa pequena e singular vénia. - Boa... boa noite, Monsieur Lobo - gaguejou.
Perplexo, Martin respondeu: - Boa noite, hum, Mademoiselle Rosa de Prata.
Uma pequena ruga apareceu-lhe sobre a sobrancelha. - O meu nome é Meg - disse.
- Um nome estranho para uma francesa, se me perdoais por dizer isso.
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A pequena empoleirou-se num pé, esfregando os dedos nus no tornozelo oposto. - Bem, o meu nome na realidade é Megera. Mas não é muito melhor. A mamã diz que o meu
nome provém de uma fuga vingativa de uma deusa com serpentes no cabelo. Não gosto nada de serpentes - confidenciou.
- Também não gosto muito delas - admitiu Martin. A sua observação conquistou um ligeiro vestígio de sorriso naquele rosto que parecia demasiado sério para uma criança.
Aventurou-se e aproximou-se mais. - É verdade - Sois realmente o meu papá?
- Assim mo fez crer vossa mãe.
- Mas... vós não quereis acreditar. - Os seus pequenos ombros agitaram-se com um sorriso envergonhado. - Não vos censuro. Também para mim é difícil acreditar.
- Porquê? - perguntou Martin.
Esticou-se para tocar na manga do seu gibão de veludo. - Porque sois belo e eu sou feia. Sou magra e escanzelada e o meu cabelo é da cor dos ratos. Fui lá acima
e tentei escová-lo, para ficar mais bonita, mas não ajudou.
Apesar de o não querer, Martin comoveu-se com a expressão solitária da criança. - Não, estais muito enganada. A vossa fita é... é muito bonita. E o vosso cabelo
não é da cor dos ratos. Lembra-me muito mais a cor da canela e, quanto a serdes magra, eu próprio era bastante magricela com a vossa idade, mas cresci.
Talvez tenha sido pouco inteligente estabelecer tal comparação, dizer algo que possa ter encorajado aquela criança a pensar que podia pertencer-lhe. No entanto,
a tristeza nos seus olhos tocara-lhe o coração. Quando as suas palavras lhe arrancaram um sorriso trémulo, Martin deu por si a corresponder-lhe com outro sorriso.
- Às vezes gostava de poder fazer um feitiço que me fizesse crescer mais depressa, tornar-me mais bonita. Mas não gosto nada de magia. Assusta-me.
Martin olhou-a com surpresa. - Mas pensava que planeáveis ser uma terrível feiticeira e governar a França.
Meg abanou tristemente a cabeça. - Esse é o sonho da mamã, não o meu. Eu não quero ser a Rosa de Prata.
- Então o que gostaríeis de ser?
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Ela inclinou a cabeça para o lado. - Uma bela senhora que saiba dançar e tocar alaúde. Mas, agora mesmo, gostava só de pertencer a alguém. Ser a pequena filha de
alguém. - Olhou-o tão esperançada que Martin se contorceu fazendo chocalhar as suas correntes.
- Hum, pertenceis a alguém. A vossa mãe.
O lábio inferior da garota estremeceu. - Não. Eu sou apenas a sua Rosa de Prata. O seu sonho. A sua ambição. Nunca fui só a sua filha. - Lançou-lhe um tímido olhar
sob as pestanas. Eram notavelmente escuras e espessas, emoldurando-lhe os seus olhos muito verdes. - Há muito tempo que sonho convosco - disse.
- Sonhais?
- A mamã não gosta quando eu sonho acordada. Mas pensei muitas vezes sobre quem seria o meu papá e imaginava que vós poderíeis ser um belo príncipe a cavalgar num
cavalo branco.
- Bem - disse Martin pesarosamente -, eu tenho um cavalo, mas temo que a semelhança acabe aí. Não é bom que sonheis acordada sobre mim, querida. Só ireis ficar desapontada.
Receio que os anjos não tenham sido especialmente bondosos quando vos dotaram com os vossos pais. Uma bruxa como mãe, e eu... sou pouco mais do que um aventureiro.
Acho que não daria um bom pai.
Puxou pelas correntes, mostrando as algemas. - E, como podeis ver, as minhas atuais expectativas são muito limitadas.
Ela atreveu-se a aproximar-se ainda mais. Quando tocou no ponto do pulso onde ele esfolara a pele ao esforçar-se por se soltar, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
- Deveis ter deixado a mamã muito zangada. Não é bom fazer isso, monswur.
Martin suspirou. - Tenho disso dolorosa consciência, minha querida. Mas sois bondosa em avisar-me.
- Quando ela está realmente furiosa, faz as pessoas desaparecerem. - Pestanejou para reter as lágrimas, procurando sorrir. - Só que eu vou salvar-vos, tenho de ser
eu a fazer-vos fugir. - Engoliu em seco com dificuldade. - Mesmo que nunca mais vos veja.
- Não, mademoiselle... Meg... se... se conseguirdes encontrar maneira de me tirar daqui, levo-vos comigo. - Martin pestanejou duas vezes, atónito pelas precipitadas
palavras que lhe saíram dos lábios. Quase não pusera os olhos nesta criança, há pouco mais de uma hora ou duas, e no entanto já sentia uma inexplicável afinidade
com ela. Ou talvez fosse apenas um .dos
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seus usuais impulsivos gestos para salvar uma donzela em apuros, ainda que desta vez fosse uma muito jovem.
O rosto da pequena brilhou ao ouvir a promessa, para logo depois se ensombrar de novo. - Gostava de poder ir convosco, mas não posso. A mamã nunca me deixaria. Bem
vedes... - Procurou no interior da camisa e puxou por uma corrente de prata na qual tremeluzia malevolamente um medalhão.
Martin ficou estarrecido, quase sem acreditar que Cassandra Lascelles pudesse ser tão malvada ao ponto de enfeitiçar a sua própria filha com aquela carga demoníaca.
- Mon Dieu - disse. - Por que razão vossa mãe vos deu um amuleto tão demoníaco?
Os dedos de Meg tremiam quando tocou no medalhão. - A mamã usa-o para nos mantermos ligadas e... e por vezes para me castigar, quando não faço o que ela me diz.
Apesar do óbvio medo que a criança tinha da mãe, o pequeno queixo de Meg ergueu-se em sinal de desafio. Uma inesperada centelha de maldade percorreu-lhe os olhos.
Inclinou-se para Martin, sussurrando: - Posso dizer-vos um grande segredo, Monsieur?
Ainda a recuperar do choque do medalhão, Martin conseguiu acenar afirmativamente.
- E, se vos disser, jurais que não o contais a mais ninguém? Especialmente à mamã?
- Juro... - Martin ia começar a fazer uma cruz sobre o coração, mas a mão não conseguiu chegar tão longe. - O vosso segredo fica seguro comigo, ma petite. Ela não
mo conseguirá arrancar, mesmo que ameace...
- Martin quase dizia "arrancar-me os olhos e cortar-me os testículos", mas lembrou-se a tempo com quem estava a falar. - Mesmo que ameace lançar-me ao mais feroz
dos dragões.
Meg deu um riso inesperado. Por um momento, o seu rosto pálido e aqueles olhos demasiado adultos transformaram-se. Martin apercebeu-se de que a pequena não pudera
rir-se o suficiente com frequência. Se ela tivesse sido verdadeiramente sua filha, ele teria assegurado que os seus olhos brilhassem muitas vezes com alegria. Que
tivesse fitas cor-de-rosa e enfeites suficientes que a ajudassem a sentir-se mais bonita. Em vez daquele maldito medalhão, um medalhão do mais fino ouro. Martin
interrompeu-se, surpreendido com aquilo que imaginava.
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Tinha a tendência para se perder em sonhos, acordado, sem dar por isso, tal como a sua filha...
A sua filha. As palavras provocaram-lhe uma dor estranha e pungente no coração. A pequenita aproximou-se mais dele e, encostando-lhe os lábios ao ouvido, murmurou:
- O medalhão ajuda a mamã a saber onde estou, mas eu aprendi como enganá-la às vezes. Uso a minha imaginação e finjo que estou escondida num grande... - A criança
recuou subitamente, dando um grito agudo. Agarrou no medalhão e o rosto empalideceu-lhe.
- Meg, o que foi? O que se passa? - perguntou Martin ansiosamente. Afastou-se dele cambaleando, com os olhos dilatados pelo medo.
- Mamã, eu... eu não estava a fingir o suficiente. Ela... ela sabe onde estou e está furiosa.
- Por piedade, querida, agarra na vela! Sai daqui! Vai e esconde-te!
- É... é tarde de mais - tremeu.
Martin ouviu a porta no alto das escadas a ser aberta, os gonzos a rangerem. Depois o terrível batimento do bastão quando Cassandra Lascelles começou a descer para
a câmara subterrânea.
Meg levantou-se, gelada de medo como um veado apanhado na mira de uma besta. Martin rangeu os dentes, puxando pelas correntes, num impulso para se colocar à frente
da criança, protegendo-a. Mas tudo o que podia fazer era observar, indefeso, enquanto Cassandra se precipitava sobre a filha, como a fúria que dera nome a Meg.
Os olhos cegos da bruxa pareciam fixar-se diretamente sobre a criança encolhida: - O que estás a fazer aqui em baixo, Megera?
A pequena humedeceu os lábios. - Eu... eu só queria ver mais uma vez Monsieur Lobo.
- Tens a certeza de que não vieste aqui abaixo com alguma ideia para soltar Monsieur Lobo da sua armadilha?
- N... não.
- Mentirosa! - berrou Cassandra. Fechou os dedos brancos da mão sobre o seu próprio medalhão e Meg soltou um grito horrível.
Caiu de joelhos, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, enquanto Lobo rugia: - Que diabo lhe estais a fazer? Parai com isso! - Deu um novo puxão às algemas.
- Se quereis atormentar alguém, porque não escolheis alguém do vosso tamanho? Como eu!
- A vossa vez chegará em breve, meu lobo solitário. - Os lábios de Cassandra retorceram-se num sorriso frio. - Agora tenho de ensinar à minha filha uma lição sobre
lealdade.
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Meg dobrou-se, gritando e agarrando-se ao estômago. - Mamã, por favor, não! Fazei com que pare! Perdão!
Martin cerrou os dentes, com a fúria a percorrê-lo, mais feroz e primitiva do que nunca. Se fosse um lobo, teria despedaçado a garganta da mulher. Os soluços de
Meg rasgavam-no, com a sua dor a penetrá-lo mais do que qualquer outra dor que já sentira. O terrível castigo da bruxa parecia não ter fim, até que por fim largou
o medalhão.
Meg estava prostrada no irregular chão de pedra, com os seus pequenos ombros agitados. Martin desejava pegar-lhe nos seus braços. Mas tudo o que podia fazer era
fitar a bruxa e amaldiçoá-la.
- Que Deus vos faça arder no Inferno! Que espécie de mãe sois para fazer semelhante coisa à vossa filha?
- Sou aquela que vai fazer dela uma rainha, apesar de todo o sangue ruim que herdou de vós.
Apalpando junto ao chão até encontrar a criança, Cassandra agarrou rudemente Meg pelo braço e puxou-a até ficar de pé. - Não há tempo para choramingar, Megera. Tens
de ir para cima vestir-te. O miasma que traduziste está pronto e temos uma audiência com a Rainha das Trevas.
A criança lamuriou-se: - Mas eu não quero ir.
Porém, Cassandra respondeu friamente: - Já é tempo de veres o que é preciso para alcançar o poder. Aprender a ser suficientemente implacável para destruir todos
os que se erguerem no teu caminho.
- Por amor de Deus, mulher, ela ainda é uma criança! - protestou Martin. - Sabeis que horrores ocorreram em Paris da última vez que foi libertado um miasma? Toda
a cidade mergulhou na loucura e a barbárie durou dias.
- É precisamente isso que tenho em mente.
- E se o miasma também vos consumir? O mais leve golpe de vento...
- Obrigado pelo vosso cuidado - interrompeu Cassandra com um sorriso de desdém. - Mas a minha inteligente filha desenvolveu um antídoto para me proteger. Não ficarei
louca.
-Já sois louca - disparou Martin. - Pensais que a Rainha das Trevas é idiota? Porque vos concederia ela uma audiência?
- Porque eu tenho algo que ela quer - rosnou Cassandra. - O Livro das Sombras.
- Tencionais oferecer-lhe esse livro terrível?
- Claro que não, imbecil. vou ter um livro com muito estilo que será muito semelhante ao antigo manual. Até as páginas vão estar um pouco...
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cobertas de pó. - Sorriu. - A Rainha das Trevas só se aperceberá de que foi enganada quando for já demasiado tarde. Quanto a quaisquer suspeitas que sua majestade
possa ter, irão desaparecer. Como poderia ser de outro modo quando o livro lhe vai ser apresentado por uma inocente menina?
Cassandra estendeu possessivamente o braço sobre os ombros de Meg. A criança estremeceu, parecendo tremendamente apreensiva.
Martin esticou as suas correntes, contendo um palavrão furioso.
- Este vosso esquema é pura demência. Pelo menos deixai Meg fora disto. Se falhardes, sabeis o que a Rainha das Trevas fará com ela?
- Então é melhor não falharmos, não é, Megera?
A criança tremeu, apavorada, libertando-se da mãe, e lançou-se para junto de Martin, com a sua face molhada junto à dele, apertando-lhe a mão, segurando-se a ele
desesperadamente.
- Meg - segredou-lhe ele ao ouvido. - Não tenhas medo. Eu... eu vou soltar-me. Eu virei... eu hei de salvar-te, seja como for.
Mas as mãos da bruxa já se tinham fechado sobre a pequena, afastando-a.
- Maldição, Cassandra! - grunhiu Martin. - Não podeis fazer-lhe isto.
A bruxa deu uma gargalhada trocista, batendo no seu medalhão. - Eu posso obrigá-la a fazer tudo o que eu quiser, incluindo matar-te. Mas isso é um prazer que reservo
para mim mesma.
Agarrando no braço de Meg, a mulher procurou o seu caminho de regresso pelas escadas. Meg lançou-lhe um último olhar, como se procurasse memorizar o seu rosto antes
de ser arrastada para a escuridão. A porta bateu atrás das duas com um baque surdo. Mas a vela de Meg continuou a arder o suficiente para Martin conseguir examinar
o objeto de metal que a criança depositara na sua mão, mesmo sob o nariz de Cassandra.
Era um pequeno e forte gancho de cabelo.
Apesar do horror da situação, Martin sorriu. com uns dedos tão ágeis e um espírito tão inteligente e arrojado, Meg era sem dúvida sua filha.
Todas as velas se tinham apagado, exceto uma; a sua luz suave bruxuleava sobre o corpo de Simon. Miri aconchegou-se, sonolenta e saciada, nos seus braços, mas estava
renitente em render-se ao sono. Esperara muito por esta noite e, agora que a vivia, desejava que pudesse durar para sempre.
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A paz que sentia era mais profunda do que qualquer outra que já conhecera. Só desejava ter a certeza de que Simon partilhava os seus sentimentos. Sempre fora um
homem de poucas palavras e o seu ato de amor parecia tê-las arrebatado. Ele estava deitado silenciosamente, com os dedos entrelaçados no cabelo dela, enquanto o
peito dela descansava junto ao peito dele, marcando o ritmo do coração.
Mas quando Miri ergueu a cabeça para lhe sorrir ternamente, a sua expressão era tão séria que lançou uma sombra no resplendor do crepúsculo da felicidade que pousara
sobre ela desde que ele a desejara.
- Simon - - balbuciou. - Não... não estás arrependido?
- Deus, não. - Levou-lhe a mão aos lábios, ternamente. - Mas tenho medo de que tu possas estar.
Quando ela tentou protestar, ele pressionou-lhe a ponta dos dedos sobre a boca. - Sinto-me como se tivesse sido completamente irresponsável, trazendo-te para aqui,
rendendo-me às minhas próprias necessidades.
- Também as minhas necessidades, Simon - insistiu Miri.
- Só que passei este último ano obcecado pelo que acontece às jovens mulheres quando são apanhadas na situação desesperada de ficarem grávidas de um bebé não desejado,
fora do casamento. Se eu te tivesse feito um filho, Miri...
- Seria o nosso filho indesejado? - perguntou Miri impacientemente.
- Nunca sonhaste ter filhos? Talvez um filho, para lhe ensinares as coisas que o teu pai te ensinou.
- Há muito tempo que não me atrevo a sonhar seja o que for.
- Não é o que este quarto me tem dito.
Provocando-a, disse: - Andas de novo a ler auras - O que é que sentiste sobre a minha casa? Algo assombrado?
- Não. - Dobrou os braços e apoiou-os no peito dele, olhando-o. - Não. É mais uma aura de espera pela vida a começar. Esta é uma casa grande, Simon, perfeita para
uma família. Não me podes dizer que nunca pensaste nisso quando a construíste.
- Talvez o tenha feito - disse, acariciando-lhe um fio de cabelo e afastando-o da sobrancelha. - Só que nunca pensei que fosse para a minha família.
- E agora?
- Não sei. É muito cedo e tudo é novo. E ainda há muito por resolver. A questão da Rosa de Prata. O que vai pensar a tua família sobre nós. E, depois, há o teu pretendente,
o Lobo.
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A menção a Martin entristeceu-a. Ele desaparecera da quinta e ninguém parecia ter qualquer ideia de quando ou para onde ele podia ter ido, exceto Yves. O relato
do rapaz sobre a partida de Martin fora algo confuso; uma história que tinha a ver com uma missão urgente e a promessa de Monsieur Lobo regressar na manhã seguinte.
Ou talvez fosse ao anoitecer. Yves ficara tão envergonhado pela sua incapacidade de se recordar que Miri não quis pressionar o rapaz sobre mais pormenores.
Embora a partida de Martin fosse inexplicável, a sua ação impulsiva era bem do seu género, e Miri estava mais desgostosa do que preocupada com o assunto. Apoiando
o queixo nas mãos, disse: - Nunca quis magoar Martin. Receio que ele nos possa ter visto abraçados junto à lagoa e foi por isso que partiu tão repentinamente. Nem
sequer tive possibilidade de lhe dizer adeus.
- Eu não me preocuparia com isso - disse Simon com ironia. - Se conheço minimamente Lobo, ele não é do estilo de bater em retirada discretamente. Prevejo que estará
de volta antes do amanhecer, a não ser que tenha ido procurar reforços para te salvar das minhas garras ignóbeis. Mas teria que fazer uma longa cavalgada para chegar
a Navarra.
- Ou à Irlanda - disse Miri carinhosamente.
- Irlanda?
Miri hesitou um momento antes de confessar. - É onde Ariane e Renard têm estado todos estes anos. A viver numa casa de campo, bem no coração das montanhas Wicklow.
É um sítio tão bonito, Simon.
Ele fitou-a longamente, atónito, e depois segurou-lhe o queixo ternamente na palma da mão. - Obrigado por me confiares isso.
- Eu confio em ti. Agora só precisas de aprender a confiar em ti próprio.
- Talvez possas ensinar-me, se ao menos pudéssemos ficar aqui. Mas, infelizmente, não podemos.
- A Rosa de Prata - disse com má cara, recordando o que ele antes dissera a Carole. - Portanto, pensas que a feiticeira é Cassandra Lascelles?
- Não tenho forma de saber com toda a certeza até termos oportunidade de fazer mais umas perguntas a Mademoiselle Moreau logo de manhã. Mas deves ter-te encontrado
com a Lascelles, anos atrás, quando a tua irmã erradamente fez amizade com ela. Qual foi a tua impressão?
- Gelo. Mal. - Miri franziu o cenho, pesquisando na sua memória. - Ela perturbou-me muito. Senti algo negro nela, inquietante, mas houve uma razão, mais forte do
que qualquer outra, que me levou a não confiar nela.
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- E qual foi?
- O meu gato não gostou dela.
Sem querer, Simon riu-se. - Se bem me lembro, o Necromante também não gostava muito de mim.
- Na primeira noite em que nos encontrámos ele gostou, quando me ajudaste a salvá-lo - disse-lhe Miri, sorrindo. - E penso que, tal como eu, ele estará disposto
a dar-te uma segunda oportunidade.
Por um momento ficou grave. - Esta segunda oportunidade, Miri, ou terceira, ou quarta... eu não quero desperdiçá-la. Há algo que preciso de te contar.
Miri ficou estática, com o coração a dar um pequeno salto de apreensão. - O que é?
- É sobre a noite em que fui ver a Rainha das Trevas. Houve uma coisa que te ocultei. Ela confiou-me um documento que me confere o poder absoluto de vida ou de morte
sobre a assembleia da Rosa de Prata. Foi um erro e um disparate não te ter dito, mas tive medo que ou me pedisses para o destruir ou voltasses a perder de novo a
confiança em mim. Olhou-a ansiosamente e ela percebeu o quanto ele ainda temia o que pudesse suceder.
- Se... se quiseres que eu rasgue o documento e me veja livre dele agora, eu faço-o.
- Não. Tudo o que peço é que uses com sensatez o poder que te foi concedido.
- vou tentar.
- E há mais um favor que te quero pedir.
- Tudo o que eu possa dar-te.
Miri afastou as sombras da única forma que conhecia, com as pontas dos dedos a descerem suavemente pelo peito dele até mais abaixo. - Faz amor comigo outra vez,
Simon, antes de o Sol nascer. E tenta...
- Tento o quê?
- Tenta recordar-te de... como sonhar...
Saciada do amor de Simon, Miri aconchegou-se no seu abraço, com as pálpebras a ficarem-lhe cada vez mais pesadas até que por fim adormeceu. Mas nem mesmo a força
dos braços de Simon pôde impedi-la de ser arrastada para o assombrado mundo dos seus sonhos.
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Miri dirigiu-se para o palácio, mas desta vez as altas torres brancas pareciam-lhe familiares e lembrava-se de já antes ter estado ali, e não apenas nos seus sonhos.
Caminhava pelos longos relvados verdes que cercavam o Louvre.
O caminho levou-a até passar uma gruta e voltou a ver os lagartos, mas desta vez não eram mais do que esculturas na parede rochosa. Prosseguiu até atingir uma área
coberta de relva que apresentava sinais de ter recentemente acolhido um encontro de damas no gozo de uma tarde preguiçosa de verão. Pequenos tamboretes e bordados
tinham sido deixados abandonados. Sobre a mesa repousava um tabuleiro de xadrez mas sem as monstruosas peças que antes a tinham atormentado. Havia apenas peças comuns,
daquelas que podia levantar na sua mão.
Pegou na rainha negra. Parecia tão pequena e inofensiva, assim pousada na sua mão. Bem ao contrário da figura sombria que se erguia à sua frente. Miri gelou ao ver
Catarina de Médicis, trajando o seu habitual e inflexível negro. Era acompanhada apenas por uma das suas damas, uma descorada mulher loura. Enquanto Catarina fixava
um ponto atrás de Miri, apertou fortemente as mãos com uma expressão tensa, como se estivesse à espera.
Miri voltou-se, seguindo a direção do olhar dela. Viu outra mulher alta e escura aproximar-se; tinha apele branca como gelo e os seus olhos eram vadios e cegos.
Cassandra Lascelles. Era antecedida por uma criança, uma pequenita com cabelo castanho-claro e olhos verdes assustados. Olhos com o tom profundo da floresta que
estranhamente recordavam a Miri os olhos de Martin.
A criança segurava debaixo do braço um livro com capa negra de pele. Miri estava entre as duas mulheres, invisível como um fantasma. A menina entregou o livro à
Rainha das Trevas e depois retrocedeu, tremendo. Mas antes que Catarina pudesse abrir o livro, Simon apareceu vindo do nada.
Quando ele se precipitou para o livro, a Rainha das Trevas soltou um guincho furioso. Seguiu-se uma luta. Quando Simon lhe conseguiu arrancar o livro, este caiu
e abriu-se e uma nuvem de poeira soltou-se das suas páginas.
Simon inspirou-a, asfixiando. Os seus joelhos vergaram-se e cederam sob o seu peso.
Os olhos de Miri arregalaram-se. Ergueu-se com um grito agudo que acordou Simon. Os seus braços apertaram-na enquanto a olhava com uma expressão ensonada.
- Miri, o que se passa? - balbuciou. - Outro pesadelo?
- Não, não foi um pesadelo. Foi um aviso. Agora sei o que significa o meu sonho. - Ela puxou-o desesperadamente, procurando acordá-lo completamente. - Temos de ir
falar com Carole; interrogá-la sobre a Rosa de Prata antes que seja tarde de mais.
Apesar da tarde quente, Martin puxou o chapéu de abas largas sobre o rosto. Sobre os ombros ondulava-lhe uma capa escura. O suor escorria-lhe sobre a testa e tinha
a visão semiobscurecida pela pala que usava sobre um olho. O couro irritava-lhe a pele e interrogou-se como conseguia Aristide suportar o uso de tal coisa, assustando
velhas senhoras e crianças. Mas enquanto Martin se encaminhava para os portões do Louvre, ignorou o seu desconforto, concentrando-se em manter um ar carrancudo e
parecer o mais sinistro possível. Era uma artimanha desesperada, tentar fazer-se passar pelo caçador de bruxas. Mas, tão em cima da hora, não teve tempo para arranjar
um esquema melhor para conseguir entrar no palácio.
Precisara de toda a manhã para abrir a maldita fechadura e teve de perder ainda mais tempo precioso antes de ser capaz de fugir da câmara subterrânea e fugir da
Maison dEsprit sem ser visto.
Não sabia quanto tempo tinha para impedir Cassandra e salvar Meg. Mas não era a primeira vez que se lançava às cegas numa qualquer dura aventura.
No entanto, pela primeira vez, o seu coração não batia com aquele estremecimento familiar de medo e excitação. A apreensão provocava-lhe um nó no estômago. Talvez
na sua vida tivesse embarcado em missões mais perigosas ao serviço do rei de Navarra, mas nunca estivera envolvido em nenhuma cujo desfecho fosse mais importante
para ele.
Enquanto recuava um pouco, observou os guardas, procurando adivinhar qual o que lhe parecia mais estúpido para ser enganado, tanto pelo disfarce como pelo documento
por si forjado e que fazia parecer que tinha sido convocado pela Rainha das Trevas.
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O que tinha uma cabeleira ruiva com o estômago em tensão sob a túnica pareceu a melhor aposta para Martin. Mas antes que pudesse caminhar na direção do homem, uma
mão apertou-lhe repentinamente o ombro.
O coração de Martin deu um pulo enquanto se via forçado a encarar o homem que se encontrava atrás de si. Olhou fixamente para os traços implacáveis de Aristide,
mas pela primeira vez o rosto do homem alegrou-se. O desgraçado tinha de facto a impertinência de lhe estar a sorrir.
- Se estais a procurar imitar-me, Lobo, devíeis pelo menos certificar-vos de colocar a pala sobre o olho certo.
Martin ruboresceu com uma onda de fúria a percorrê-lo. Lançou-se sobre Aristide, procurando apertar-lhe a garganta. Mas Aristide evitou o golpe, arrastando Martin
para longe dos portões, procurando abrigo sob uma frondosa árvore.
- O que diabo pensais que estais a fazer? - perguntou Simon.
- Não vos atrevais a interrogar-me, pérfido degenerado! - rosnou Martin, esforçando-se por se libertar e enfiar o punho no queixo de Aristide. Mas antes que o pudesse
fazer, Miri apareceu, com o cabelo revolto pelo vento e o rosto sujo com o pó da estrada. Martin parou de lutar, sem saber se ficara mais desanimado ou mais aliviado
por vê-la. - Miri, não sei o que estás a fazer aqui, ou como tu e o caçador de bruxas me encontraram, mas precisas de saber o que descobri esta noite. Aqui este
traidor mentiroso tem vindo a trabalhar com a Rainha das Trevas.
- Eu sei - respondeu ela, calmamente.
- Sabes? - Martin ficou de boca aberta.
- Sim. Simon disse-mo.
- Também te falou da sua amante?
Pelo menos aquilo parecera baralhar a insuportável calma de Miri.
- Qual amante? - indagou Simon com má cara.
- Gillian Harcourt, como se não soubésseis.
- Gillian e eu partilhámos companhia há muitos anos. E que diabo tem ela a ver com isto?
- Oh, não muito - escarneceu Martin. - Só que a maldita mulher está aliada com Cassandra Lascelles e está até a ajudar a feiticeira a entrar no palácio para...
Mas Miri interrompeu-o, voltando-se para Simon. - Essa Gillian... deve ser a mulher loura do meu sonho!
- Sonho? Qual sonho? - perguntou Martin. A maldita pala fazia com que ele tivesse que rodar a cabeça de um lado para o outro para ser capaz
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de ver tanto Miri como Simon. Impacientemente, Martin arrancou a pala e o chapéu. - O que se passa aqui? - Olhou ameaçadoramente para Miri e Simon. - Como me haveis
encontrado? - Exijo uma explicação!
- Vós primeiro - ripostou Simon. - Porque raio haveis desaparecido a noite passada?
- Estou surpreendido que qualquer um de vós tenha notado a minha ausência - murmurou Martin, provocando um abrupto fluxo de cor nas faces de Miri. - Agora não tenho
tempo para explicações. Há uma menina que foi arrastada para o palácio e eu tenho de ajudá-la.
- A pequenita com olhos verdes - Carole contou-nos tudo sobre Meg - disse Miri. - Sabemos que ela é filha de Cassandra e que é a Rosa de Prata.
- Há uma coisa que vós não podeis saber - gritou Martin em desafio. - Ela também é minha filha. E não é uma malévola feiticeira. Portan to, se este vosso caçador
de bruxas pensa que vai sequer tocar-lhe, vai ter que se haver comigo primeiro. A pobre criança esteve à mercê daquela mulher demoníaca, foi Cassandra que a forçou
a todas aquelas coisas. - Olhou para Simon. - Mas porque me preocupo em explicar-vos isto? Não podereis jamais entender o que isto é para ela; ser controlada por
uma louca.
- Talvez não seja uma louca - respondeu Simon calmamente. - Mas entendo o medo e a confusão dela, muito melhor do que pensais. Porém, tendes razão quanto a uma coisa:
não temos tempo a perder. Portanto, ou podemos ficar aqui a discutir uns com os outros ou confiais em mim para vos ajudar a salvar a vossa filha.
A Rainha das Trevas caminhou ao longo do muro isolado dos jardins. Tinha permitido que todas as suas aias regressassem ao palácio, exceto Gillian. O banco do jardim
revelava sinais de uma tarde abruptamente interrompida. Um alaúde encostado ao banco de madeira, um jogo de xadrez por acabar. Catarina brincou nervosamente com
uma das torres.
Por vezes sentia-se como se tivesse estado a jogar xadrez durante toda a sua vida, mas as consequências das vitórias e derrotas eram muito mais mortíferas do que
ver simplesmente um dos peões varrido do tabuleiro. Mal podia acreditar que o objeto por que há tanto ansiava, o Livro das Sombras, estava prestes a ser-lhe depositado
nas suas mãos.
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Ficara estupefacta quando Gillian lhe chegara com as novidades de que alguém da assembleia da Rosa de Prata tinha vindo ao palácio e estava na disposição de lho
entregar a troco de uma quantia em dinheiro.
O dinheiro era uma coisa trivial. Catarina teria pago qualquer montante para adquirir o livro, mas depois de tantos anos de buscas e de espera, o livro parecia estar
prestes a cair nas suas mãos demasiado facilmente.
Todas as suas suspeitas despertaram e estudou a sua dama de companhia. Os olhos de Catarina podiam já não ser o que tinham sido outrora, mas ainda conseguia perceber
o nervosismo de Gillian, cheirar-lhe o medo.
Catarina há muito que se habituara à traição, aos tortuosos caminhos da intriga, para não reconhecer uma traidora quando via uma. Mas Catarina gostava de dissimular
as suas emoções; nem por um só pestanejar deixaria que Gillian percebesse que as suas suspeitas tinham sido despertadas.
Gillian estaria muito mais nervosa se tivesse pressentido que Catarina, por precaução, tinha colocado Ambrose Gautier alerta a uma distância discreta, pronto para
prender imediatamente a cortesã caso se concretizassem as suspeitas de Gillian poder estar a atraiçoar Catarina.
As mãos de Gillian deslizaram-lhe até à garganta, mas assumiu um sorriso nervoso e disse: - Vossa majestade, acho que a mulher de que vos falei acabou de chegar.
Catarina olhou de soslaio para o relvado por onde uma mulher alta com cabelo escuro se aproximava. Catarina ficou tensa, cautelosa, enquanto observava a figura a
aproximar-se. Não, duas figuras. Surpreendeu-se ao ver que a segunda era apenas uma criança. E a criança parecia conduzir a mulher mais velha pela mão.
Gillian murmurou para Catarina: - A pobre senhora Cassandra é cega, vossa majestade. Depende inteiramente da filha.
- Isso intriga-me. Como foi possível uma mulher tão indefesa conseguir obter e manter o Livro das Sombras afastado da Rosa de Prata? Uma missão que nem o terrível
caçador de bruxas Aristide conseguiu cumprir.
- Não... não sei, vossa majestade. - A voz de Gillian vacilou. - A mulher não me contou muito, mas ela tem de facto o livro. Certamente podeis ver que a criança
o traz consigo.
Catarina semicerrou os olhos. A criança certamente carregava alguma coisa. Mas Catarina já fora enganada uma vez. Contudo, o seu coração sentiu uma onda de excitação.
Catarina deu um passo ansioso em frente, para logo se deter. A mulher e a criança de facto pareciam bastante inofensivas, mas não conseguira sobreviver
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até aqui correndo riscos desnecessários. - Pagarei à mulher aquilo que ela pedir - disse Catarina. - Mas primeiro tenho de examinar o livro.
A saia de Gillian roçagou pela relva quando se aproximou da mulher e da filha. Estavam a cerca de dez metros dela, a falar em voz baixa.
Catarina não podia ouvir o que diziam, mas a mulher cega murmurou algo ao ouvido da criança e depois impeliu a menina na direção de Catarina. com o livro agarrado
junto ao seu peito esguio, a criança avançou lentamente para Catarina. Era claramente uma pequenita e os seus traços mais impressionantes eram os olhos grandes e
verdes, que estavam repletos de medo.
Refreando a sua impaciência, Catarina procurou falar num tom gentil.
- Aproxima-te, minha querida. Nada tens a recear. Deixa-me só ver o teu livro.
A pequenita imobilizou-se em frente de Catarina, curvando-se a tremer numa profunda vénia. Agarrava o livro tão fortemente como se estivesse renitente em entregá-lo.
- Dá-me o livro, querida - ordenou Catarina.
Lentamente, a rapariguinha estendeu o livro a Catarina. Mas enquanto os dedos de Catarina percorriam o pequeno livro com capa de couro, uma figura escura precipitou-se
para junto de Catarina, que ficou surpreendida ao verificar que se tratava do caçador de bruxas, Aristide. Ao vê-lo, a criança gritou aterrorizada e correu para
junto da mãe.
- Não, vossa majestade! - gritou Aristide. - Não toqueis no livro! É uma armadilha!
Catarina hesitou por uma fração de segundo, mas se alguma coisa a podia convencer sobre a autenticidade do livro seria o facto de Aristide ter aparecido para lho
arrebatar. Gritou por Gautier, mas ele já ali estava, interpondo-se entre ela e o caçador de bruxas.
Antes de Gautier poder puxar pela espada, Aristide derrubou-o com um soco. Quando o caçador de bruxas quis agarrar o livro, Catarina segurou-o com mais força, recusando
soltá-lo.
- Como vos atreveis? gritou. - O que quereis com este ultraje?
- Quero proteger-vos. Dai-me já o maldito livro antes que... Catarina agarrou-se ao livro com quanta força tinha. Aristide arrancou-lho das mãos com tal força que
o livro voou. Caiu no chão e abriu-se com uma sufocante nuvem de pó a elevar-se das suas páginas esvoaçantes.
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Tarde de mais, Catarina recuou, pressionando o lenço sobre as narinas. Sentia a cabeça à roda, e teias de escuridão dançaram-lhe diante dos olhos até cair prostrada
no chão.
Miri correra atrás de Simon, tropeçando na bainha das saias. Tudo o que pôde fazer foi observar, impotente, como os acontecimentos dos seus sonhos se transformavam
em realidade perante os seus olhos. Mas que a poeira que se soltara do livro não era um miasma, disso Miri tinha a certeza.
Em vez de serem levados à loucura, todos os que estavam perto do livro, a Rainha das Trevas, os seus guardas e Simon, tinham caído ao chão. Simon conseguira cair
sobre o livro e fechá-lo. Mas tinha caído sobre o banco, esmagando-o, e a relva à sua volta estava coberta de peças de xadrez. Tinha um corte profundo no sobrolho
e o sangue escorria-lhe pela face.
Miri lançou-se ao chão a seu lado, procurando freneticamente tomar-lhe a pulsação. Ainda estava suficientemente forte. Olhou de relance para onde caíra a Rainha
das Trevas; tinha uma das mãos esticada e o seu lenço ondulava sobre a relva.
Miri apanhou-o e molhou-o numa fonte próxima. Aplicou o tecido fresco sobre a face de Simon e esfregou-lhe os pulsos. Para seu alívio, ele gemeu e abriu excitadamente
o olho.
- Miri? - - disse, com a voz embargada. - O que... aconteceu?
- Não tenho a certeza - respondeu. - Acho que o livro continha apenas uma espécie de pó soporífero.
A cabeça de Simon tombou para o lado. - Onde... onde está Cassandra? A menina?
Miri, preocupada com Simon, esquecera tudo sobre a feiticeira e a filha. Mas quando olhou à volta viu que não havia sinal delas nem de Gillian Harcourt. E Martin...
Miri julgara-o por perto, mas afinal parecia também ter desaparecido.
Simon apertou a mão de Miri, procurou levantar-se, para logo cair sem forças. - Eu fico bem - disse. - Vai procurar a menina...
Meg sentiu as mãos da mãe agarrarem-lhe os braços como garras, arrastando-a enquanto cambaleavam pela margem em direção à curva do rio sob o palácio. Deveria haver
um barco pequeno atracado, com Finette e Odile à espera para as ajudar a fugir. Mas Meg não via sinais de ninguém. Procurou
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resistir, protestando: - Mamã, não há nenhum barco. Acho que estamos perdidas. Devemos ter vindo na direção errada. Temos de voltar para trás. Cassandra arrastava-se
ofegante, agitando a mão à sua frente num gesto desesperado. - O quê? Voltar para trás, para onde? - exclamou estridentemente. - Onde está aquela malvada Harcourt?
Devia estar a ajudar-nos a fugir.
- Não sei - soluçou Meg. Gillian desaparecera assim que vira o caçador de bruxas. Talvez tivesse alcançado o rio primeiro, avisado as outras e todas tivessem abandonado
Meg e a sua mãe.
As unhas de Cassandra cravaram-se em ambos os ombros de Meg quando a agarrou, dando-lhe um forte abanão. - Maldita! Traíste-me. Traíste a nossa causa! O que estava
naquela poção que traduziste? Não era um miasma com toda a certeza.
- Não tenho a certeza - vacilou Meg. - Penso que me enganei. Era apenas uma espécie de poção para dormir.
A mãe rangeu os dentes. - Não te enganaste, fizeste-o de propósito, Megera. Maldita sejas!
Embora Meg tremesse, uma espécie de onda feroz de desafio pareceu disparar através dela. Ergueu o queixo. - Sim! Fiz! Fiz de propósito! Não queria que ninguém se
magoasse e não quero ser rainha e o meu nome é Meg.
A mãe desferiu-lhe uma ruidosa bofetada, mas naquele instante fez-se ouvir uma voz implacável: - Parai, Cassandra! Deixai-a em paz!
O coração de Meg palpitou-lhe no peito quando se virou para o lado de onde provinha o som e o viu a caminhar ao longo da margem. O homem que ela pensara nunca mais
poder voltar a ver, apesar do que ele lhe prometera quando se separaram. Mas afinal ele viera como um príncipe guerreiro com o seu cabelo negro e os seus magníficos
trajes, com a espada bem firme na mão.
A respiração irregular de Meg só a deixou murmurar o nome que toda a sua vida esperara poder pronunciar: - Papá!
Mas enquanto ele se encaminhava para ela, o braço de Cassandra fechou-se possessivamente sobre os seus ombros. Os dedos de Cassandra voaram para o seu medalhão e
quando Martin se aproximou disse-lhe: - Afastai-vos. Mais um passo e juro que a destruo. Não deixarei que vós ou qualquer outro me retire a minha Rosa de Prata.
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Meg tremeu. Viu o pai hesitar, sem saber o que fazer. E sabia que, apesar de ser tão corajoso, não havia maneira de poder derrotar o terrível poder de sua mãe. Olhou-o
desconsoladamente.
- Está bem, papá. Não há nada que possais fazer. Já foi bom terdes vindo.
Martin deu mais um passo hesitante em frente, para se imobilizar imediatamente quando a mão de Cassandra se fechou sobre o terrível medalhão. Mas naquele momento
uma senhora com um vestido azul apareceu a correr pela margem. Era uma senhora alta com uma grande cabeleira loura. Aproximou-se até quase ficar ao lado do pai de
Meg.
- Martin! - chamou.
Ele voltou-se desesperado. - Não sei o que fazer. Miri, ela tem aquele maldito medalhão. O outro está ao pescoço da criança.
A mão de Cassandra apertou o ombro da filha. - Quem é? De quem é esta voz?
Meg fixou o olhar em Miri, dizendo em tom calmo: - É uma fada!
Miri aproximou-se, sorrindo para a pequenita. - Não, sou amiga do teu pai. O meu nome é Miribelle Cheney.
- Miribelle Cheney? - rosnou Cassandra. - Lembro-me de vós. Sois irmã de Gabrielle. A insignificante.
Mas, ignorando-a, a atenção de Miri concentrou-se na criança. Ajoelhou-se à frente da jovem assustada. - Meg, quero que me escutes cuidadosamente e que olhes sempre
para os meus olhos. Um amuleto mágico só tem poder sobre ti se tu deixares. vou contar-te uma coisa que a minha mãe me disse há muitos anos. A magia é apenas o poder
que provém da tua própria mente. - Miri tocou-lhe com a mão na têmpora. - Mas ainda mais forte é a magia que vem daqui. - Miri colocou a mão sobre o coração da menina.
- Ninguém pode ter poder sobre ti a não ser que tu o permitas, nem mesmo a tua própria mãe.
- Não? - troçou Cassandra. - Deixai-me mostrar-vos o que vale o meu poder.
A mão de Cass fechou-se sobre o seu medalhão. Meg encolheu-se no seu colo e deu um pequeno grito de dor.
Martin avançou, puxando pelo braço de Miri. - Miri, o que estás a fazer? Não podes...
Mas Miri afastou-o, ordenando-lhe que se mantivesse em silêncio. Manteve o seu olhar focado em Meg, cativando os olhos da criança, sem
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nunca hesitar. Embora os olhos de Meg estivessem repletos de lágrimas e de medo, ela fixou Miri como se estivesse hipnotizada.
- Olha para mim, Meg, só para mim - ordenou -, e faz o que eu te digo. Agarra o medalhão e tira-o.
Os dedos da pequena pegaram no amuleto pendente do pescoço. A respiração da mãe ouviu-se num silvo furioso e Meg gritou de novo com dor, caindo de joelhos, olhando
para Miri.
- Não p... posso. É muito pesado. Está a puxar-me para baixo.
- Miri, pára! Vais fazer com que ela morra! - protestou Lobo de novo, mas Miri acenou-lhe drasticamente para se manter afastado.
- Não é muito pesado, Meg. É só um colar, nada mais. Tira-o.
- Megera, tenta fazer isso e eu mato-te. Juro que o faço - guinchou a mãe.
- Não, não mata - disse Miri. - Ela não pode magoar-te, Meg. Não tem poder sobre ti. Tira o colar.
A pequena olhou desesperadamente para Miri, que, ao perscrutar as profundezas daqueles olhos verdes, podia ver todo o medo, a dor e o ódio que Cassandra instilava
na filha. Durante todo este tempo em que Miri temera ter de enfrentar esta temível feiticeira, nunca pensou ter de travar o combate através dos olhos de uma criança.
Meg fungou, embora as lágrimas lhe corressem pelas faces. Os seus pequenos ombros endireitaram-se com determinação. Enganchou os dedos na corrente e com um poderoso
puxão arrancou o medalhão e arremessou-o pelo ar. O esforço custara à criança o que restava da sua força e acabou por cair no chão, soluçando. Mas Martin já lá estava,
para a segurar e amparar nos seus braços.
Cassandra puxou inutilmente pelo seu próprio medalhão e deu um grito horrível. Caiu de joelhos com lágrimas a caírem-lhe pelo rosto. - Não! O que me haveis feito?
Não podeis tirar-me a minha Rosa de Prata! Ela é tudo o que tenho!
Martin embalava nos seus braços a criança que soluçava. Colocando-lhe a mão no ombro, Miri deu-lhe um abanão ansioso.
- Martin, tens que tirar Meg daqui, já. Antes que a rainha recupere e mande a guarda atrás dela e de Cassandra.
Martin olhou-a fixamente. - Então e tu?
- Eu tenho de ir procurar Simon.
- O diabo é que vais... - começou Martin, mas Miri interrompeu-o.
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- Não há tempo para discussões. Meg é quem corre mais perigo face à Rainha das Trevas. Saiam já de Paris e regressem à quinta de Simon. Arranjaremos forma de ir
ter convosco.
Martin ergueu-se, levantando Meg nos seus braços, e a pequena segurou-se a ele, encostando o rosto molhado contra o ombro do pai. Olhando ferozmente para Miri, Martin
disse: - Maldição, Miri. Não podes esperar que te deixe assim. Não me peças para escolher...
- A escolha não é tua. É minha! Agora vai antes que seja tarde de mais. Naquele mesmo instante ouviram-se gritos distantes que anunciavam a aproximação iminente
dos guardas do palácio. Martin lançou a Miri um último e atormentado olhar antes de fugir com a filha de regresso à cidade.
Enquanto Miri hesitava, tentando decidir o que fazer a seguir, apercebeu-se de que Cassandra se encaminhava para a beira do rio. Durante a discussão com Martin,
Miri esquecera-se completamente da feiticeira. Cassandra aproveitara a distração para tatear o seu caminho até à margem da praia. Ou por acidente ou de propósito,
escorregara e caíra ruidosamente no rio.
Miri correu para a margem da praia, caindo de joelhos, na esperança de conseguir apanhar a ponta da saia da mulher, mas a corrente já puxava Cassandra para longe
da margem. Esbracejava violentamente enquanto a água lhe ensopava o vestido, com o peso dele a afundá-la. Os seus esforços frenéticos para se manter à superfície
só a afastavam mais da margem. Desapareceu sob as águas, para emergir depois arquejante.
Nesta altura, os guardas do palácio apareceram a correr para a praia. Miri sentiu uma mão fechar-se sobre o seu ombro. Voltou-se em desespero para o homem que se
erguia sobre ela. - Temos de fazer alguma coisa. Tentar ajudá-la! - Mas percebeu que já era tarde de mais. A mão branca e morta de Cassandra apareceu uma última
vez à superfície para depois se afundar e desaparecer sob a espuma das águas.
Simon estava deitado, esticado na cama, de olhos fechados. Encolheu-se enquanto Miri lhe tratava da testa. O quarto era lindíssimo, com tapeçarias penduradas nas
paredes e uma cama de quatro colunas que era usada por algumas das damas de companhia do palácio.
Muito melhor do que as húmidas masmorras de alguma prisão, onde Miri quase receara que fossem parar. Mas de qualquer modo eram prisioneiros e Miri só rezava para
que Martin e Meg tivessem conseguido escapar.
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Miri removeu o sangue da testa de Simon. Fora tudo o que conseguira para o manter deitado enquanto tratava dele.
- Não sou tão apta a tratar de um homem como seria a tratar de um cão, mas parece-me que ainda podes precisar de ser suturado.
- Está ótimo, Miri - respondeu. - Preciso de me levantar. - Afastou-a, apesar de ela procurar fazer com que se mantivesse deitado.
- Não tenho a certeza de que já estejas livre dos efeitos da poção soporífera de Meg.
- Não. - Enrugou o nariz com asco. - É o perfume daquela almofada que me deixa tonto. Faz-me lembrar muito de...
- De Gillian Harcourt? - interrogou Miri numa voz judiciosa.
Simon tirou as mãos dos olhos, com um ar algo culpado. - Miri, lamento que tenhas sabido daquela maneira. Mas há muito que tudo terminou entre mim e Gillian. Nem
sequer chegámos a começar. Foi apenas um breve período de algumas semanas em que ambos nos servimos um do outro.
- Oh, Simon, não tens que me explicar.
Ele enfiou as mãos nas dela, mas antes que ela pudesse responder, bateram à porta e esta abriu-se.
Ambrose Gautier entrou; tinha o maxilar inchado do soco de Simon. Dirigiu-se a Simon com rancorosa cortesia: - Ah, desculpai-me pela interrupção deste momento de
ternura, mas estou aqui para vos escoltar a ambos até à presença de sua majestade.
Ladeados por guardas, Miri e Simon foram escoltados até à antecâmara da rainha, mas logo que Ambrose Gautier os anunciou, retirou-se respeitosamente. Simon ficou
algo surpreendido por verificar que tinham sido deixados a sós com Catarina. Sabia que a sua cabeça ainda andava à roda. Apercebeu-se de que foi por sua pura e indomável
vontade que Catarina conseguiu levantar-se para os receber.
Como sempre, Simon dificilmente sabia o que esperar desta mulher. Sabia apenas que preferia estar a enfrentar a Rainha das Trevas sem Miri. Procurou mantê-la um
pouco atrás de si enquanto avançava para fazer a sua vénia.
A Rainha das Trevas cumprimentou-os. - Monsieur Aristide, Mademoiselle Cheney, por favor aproximai-vos. A minha visão já era má e respirar uma golfada daquela poeira
infernal certamente não veio ajudar.
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Simon fez a sua vénia, mas Catarina quase o ignorou. Toda a sua atenção estava concentrada em Miri. Quando Miri começou a fazer a sua vénia, a rainha pegou-lhe na
mão, dizendo: - Aproximai-vos, filha.
Simon esteve quase a intervir. A Rainha das Trevas disse em tom trocista: - Nada receeis, Monsieur Aristide. Não estou prestes a comer a jovem.
Miri avançou, tão alta e orgulhosa como qualquer das Senhoras da Ilha Encantada. Embora se tenha inclinado durante a vénia, manteve a cabeça orgulhosamente erguida.
Catarina pegou-lhe no queixo com os dedos, olhando-a de alto a baixo com os olhos semicerrados.
- Miribelle Cheney. Portanto sereis a mais nova das filhas de Evangeline. Recordo-me de vós naquele verão em que haveis visitado a vossa irmã Gabrielle em Paris.
Éreis bastante nova e silenciosa, a pequena com olhos inquietantes.
- Inquietantes, vossa majestade? - perguntou Miri.
- Sim, minha filha. Eu era muito boa a ler os olhos. Podia detetar os segredos mais sombrios de qualquer alma. Os vossos olhos assemelharam-se sempre mais a um espelho
inquietante, refletindo os próprios segredos sombrios dos outros. - Largou o queixo de Miri e recuou. - Oh, não importa. São os efeitos colaterais daquela poção
infernal. Estou confusa.
Enquanto Miri se levantava e se colocava ao lado de Simon, Catarina esfregou a ponta do nariz, como se quisesse limpar a cabeça. - Bem, Monsieur Aristide, a nossa
aliança não acabou exatamente como eu esperava. Claro que na altura eu não sabia que também estáveis a receber ajuda da ilha Encantada.
- Não vi necessidade de o mencionar, vossa majestade. Afinal, os nossos alvos eram absolutamente os mesmos - desafiou, sabendo que ela não podia refutar a afirmação
e admitir o que realmente desejava.
- É verdade. Ainda assim deveis admitir que nós os três formámos uma improvável trindade. E agora, uma vez que haveis sido um pouco descuidado no envio dos vossos
relatórios, talvez pudésseis clarificar exatamente o que se passou hoje nos meus jardins.
Simon informou-a rapidamente de tudo o que fora capaz de associar à conspiração de Cassandra. - Penso que a ideia inicial era a de a Rosa de Prata atingir vossa
majestade com um miasma. Algo tão poderoso que vos levaria à loucura. E quando o duque de Guise chegasse...
- Levar-me-ia a matá-lo, o que teria provocado um tumulto com todos os católicos de Paris, que muito provavelmente teriam vindo procurar liquidar-me e ao meu filho.
Um plano muito sagaz.
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Miri atreveu-se a falar. - Na verdade, vossa majestade, a mim parece-me uma completa loucura.
- Não, minha querida. Podia ter funcionado, exceto por um pequeno aspeto, é que o duque de Guise não está em Paris. O seu encontro com o rei foi adiado até ao próximo
mês. Mas a vossa Rosa de Prata não devia saber disso, porque Gillian também o desconhecia. Uma mulher que se revelou profundamente ingrata para mim. Embora tenha
conseguido fugir dos jardins do palácio, a minha guarda ainda a procura. Espero que seja capturada antes de sair da cidade e depois tratarei da sua deslealdade.
A maneira como Catarina falou fez um calafrio percorrer Simon. Apesar da traição de Gillian, sentia uma ponta de piedade pela sua antiga amante, mas nada podia fazer
por ela.
Simon estudou Catarina, procurando sondar a sua disposição. Tinha de estar irritada com o ludíbrio de que fora vítima, amargamente dececionada pelo facto de o volume
que ela julgava ser o "Livro das Sombras ser afinal uma falsificação. Mas parecia ter as suas emoções bem controladas quando perguntou: - E então essa mulher, Cassandra
Lascelles? Era ela que estava por trás de tudo isto? Ela era a Rosa de Prata? Tendes a certeza de que está morta?
- Presumivelmente sim, vossa majestade. Ela caiu ao rio.
- Eu mesma a vi afogar-se - acrescentou Miri em voz baixa, arrepiando-se. Apesar da presença da Rainha das Trevas, Simon pegou-lhe na mão, reconfortando-a.
- Sem dúvida que a mulher está morta, majestade - afirmou Simon. - E lamentavelmente arrastou com ela a pobre menina. Nenhuma delas pode ter sobrevivido.
Quando Miri se sobressaltou com estas palavras, Simon deu-lhe um aperto de aviso na mão. Mas Catarina estava demasiado absorvida pelos seus próprios pensamentos
para poder reparar. Carrancuda, deu uns passos pela sua antecâmara.
- A criança não me preocupa. O que quero saber é o que foi feito do verdadeiro Livro das Sombras.
- Infelizmente, vossa majestade, isso é algo que podemos nunca vir a saber, agora que a Rosa de Prata está morta - respondeu Simon friamente.
Ele tinha as suas ideias quanto à localização do livro. Na primeira oportunidade queria fazer uma busca na Maison d'Esprit. Mas manteve a expressão cuidadosamente
neutral quando Catarina o observou.
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- Parece que depositei demasiada fé nas vossas aptidões, Mestre Caçador de Bruxas. Esperava que conseguísseis encontrar o local da assembleia de bruxas e aquele
livro infernal também. Quem sabe quantas das suas seguidoras ainda andam a monte?
- com o fim da Rosa de Prata, duvido que elas constituam qualquer ameaça para vossa majestade.
- De qualquer forma, haveis-me desiludido profundamente.
- Desiludido? - Miri estremeceu indignada. - Vossa majestade parece já ter esquecido que Monsieur Aristide arriscou a vida para frustrar a conspiração da feiticeira.
Se em vez da poção soporífera se tivesse libertado um miasma, teríeis perdido a razão e todo o país poderia estar agora à beira de uma revolução.
Catarina franziu os lábios. - É bem verdade - concedeu contrariada. - E suponho que ele me livrou da ameaça da Rosa de Prata.
- Facto pelo qual, segundo me contou Simon, lhe havíeis oferecido uma recompensa - recordou-lhe Miri.
- Ele disse-me que não havia nada que quisesse. Mas suponho que, como a maior parte dos homens, deve ter mudado de ideias e já pensou em alguma coisa.
Simon só teve que pensar por um momento antes de dizer: - Sim. Apenas uma coisa. Gostaria que devolvêsseis à Senhora da Ilha Encantada e ao marido a sua propriedade.
Miri deu um ligeiro suspiro. Até Catarina parecia desconcertada com o pedido.
- Exatamente quando penso que já sou velha demais para ser surpreendida, Monsieur Aristide. Um caçador de bruxas a pedir a restauração do património de uma feiticeira?
- Não - disse. - Uma mulher muito sábia e o seu marido. Cometi um erro há anos, e vós também. Acredito que vossa majestade e eu esperamos ambos que este seja o fim
do assunto Rosa da Prata. Mas com todas estas bruxas dispersas pelo campo seria bom ter a Senhora da Ilha Encantada de volta à sua ilha para ajudar a manter a vigilância.
A Rainha das Trevas torceu os lábios, parecendo estar a considerar o assunto. - Por uma vez parece que estamos de acordo, Mestre Caçador de Bruxas. Desde aquele
ataque à ilha Encantada, o mundo parece ter ficado estranhamente desequilibrado. Mas seria preciso saber onde se encontra a senhora.
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Miri falou: - Acredito que posso ajudar nisso, vossa majestade. Gostaria de falar com a minha irmã logo que possível.
A rainha concordou sombriamente, mas voltou-se para Simon. - Mas então e vós, monsieu? com estas bruxas à solta, talvez possa convencer-vos a continuar ao meu serviço
até todas elas serem encontradas e detidas.
Mas Simon abanou a cabeça. Apertando mais a mão de Miri na sua, disse: - Não, vossa majestade. Os meus dias de caçador de bruxas chegaram ao fim.
O Sol espalhava uma serpentina de luz cintilante sobre a lagoa, uma brisa suave soprava através das árvores e a quinta de Simon era um refúgio pacífico depois de
toda a violência e agitação de Paris. Miri inspirou fundo uma lufada de ar, sentindo que finalmente podia respirar de novo. Sorriu da ombreira da porta, olhando
para o trio junto à lagoa, Yves, Carole e Meg lançando seixos a deslizar sobre as águas e dando a comer pão duro aos patos.
O seu sorriso ficou mais triste enquanto refletiu que, dos três, só o maior, o rapaz alto e desengonçado, no fundo permanecia uma criança. Depois de tudo por que
Carole e Meg tinham passado, tinham também sofrido uma grande transformação para sempre, forçadas a crescerem muito para além das suas idades.
Mas, por agora, era agradável vê-los a rirem-se e a serem felizes como crianças. Enquanto uma nuvem caía sobre ela, Miri olhou à sua volta e Lobo juntou-se a ela
na ombreira da porta, olhando enlevado a sua filha. Os seus lábios curvaram-se numa expressão trocista. - Mon Dieu, ela gosta mesmo disto. O que se passa convosco,
mulheres sábias, e as quintas?
Miri riu-se. - Não sei se conseguiria sequer começar a explicar-te.
Martin parecia melancólico. - Ela está feliz. É a primeira vez que a vejo sorrir desde... desde... - Nenhum deles precisava de o dizer depois daquele infeliz momento
em que a criança fora informada sobre a morte da mãe.
- Quase desejava poder deixá-la aqui, mas...
- Eu sei. - Miri olhou-o com tristeza. Todos tinham concordado que a melhor decisão seria Martin desaparecer com Meg. Embora o corpo de Cassandra Lascelles não tivesse
sido recuperado, com certeza que ela não teria escapado à morte na corrente do rio. Miri esperava que os planos insa nos
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da mulher tivessem morrido com ela, mas quando Simon assaltara a casa em Paris, os restantes membros da assembleia tinham desaparecido. Nem tão-pouco o Livro das
Sombras fora encontrado, mesmo na câmara subterrânea oculta. Algumas das bruxas podiam estar ainda determinadas em encontrar a sua Rosa de Prata e ressuscitar o
sonho de Cassandra. Tam bém havia o risco de a Rainha das Trevas poder descobrir que Simon a tinha enganado quanto à verdadeira identidade da Rosa de Prata e que
Meg não se afogara juntamente com a mãe.
Voltando-se para Lobo, Miri perguntou: - Então, para onde vais? - Pensei que talvez a pudesses levar para a ilha Encantada.
Lobo abanou a cabeça. - Não. Nem mesmo com o regresso de Ariane me convenço de que a minha filha lá estaria a salvo. Nem sequer tenho a certeza se é seguro para
mim levá-la de volta para Navarra. Penso que o nosso melhor rumo será deixar a França de vez. - Procurou sorrir.
- Nós cá nos arranjaremos. Não te preocupes connosco, Miri. Acho que Meg gosta de Inglaterra e para ela será como voltar a casa. Já por lá viajei muito para poder
fazer-me passar por inglês, embora me dê arrepios fazê-lo. Ah, mas os sacrifícios que temos de fazer por um filho... - Porém, o sorriso desvaneceu-se-lhe no instante
seguinte. Olhou pensativamente para Meg. - Meu Deus, Miri, nunca tive ninguém antes. Quando fui salvo pelo capitão Remy, adotei-vos como minha família, mas ela...
ela é do meu sangue - disse maravilhado, como se mal pudesse acreditar nisso. - Sou o pai dela. Eu, um papá. Quem poderia imaginá-lo?
- Tenho a certeza de que serás um excelente pai.
Ele abanou a cabeça. - Estou assustado. Não faço a mínima ideia de como proceder como pai. Nunca tive um pai. Quando penso nos erros que posso cometer...
- Acho que irás descobrir que aquela criança pode ser uma flor resistente. Um pouco de amor e de sol é tudo quanto precisa para se desenvolver perfeitamente. Como
pai de Meg... Deves pensar nisso como mais uma grande aventura.
- Só há uma diferença. Desta vez tenho um medo de morte. - Mas nada mais disse, pois Meg aproximava-se para se juntar a ele.
Enfiou a sua pequenina mão na dele. - Não tenhais medo, papá. Eu cuidarei de vós. Tal como sempre quis cuidar da mamã, mas ela não me deixou.
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Uma lágrima escorreu pela face de Meg; Martin enxugou-a com o seu lenço e envolveu a filha com o braço. Miri acocorou-se ao seu lado e pegou-lhe na mão.
A pequenita olhou-a seriamente, com olhos demasiadamente envelhecidos para aquele pequeno rosto pálido. - Achais que sou muito má, senhora Cheney? Sou a culpada
da morte da minha mãe.
Miri puxou-lhe o cabelo para trás. - Não, querida. Acredito que fizeste tudo para a salvar. Às vezes, por muito que amemos alguém, não conseguimos ajudá-lo. Pelo
menos quando esse alguém não o quer.
Meg franziu a testa. Embora inteligente, tudo isto era demais para uma rapariguínha absorver. Passou as mãos pelo pescoço. - Sempre odiei aquele medalhão que a mamã
me fazia usar, mas... mas é um pouco assustador estar sem ele. É como se pudesse sempre senti-la, saber que tinha alguém.
- Bem, agora tens mais alguém e eu posso dar-te um talismã muito melhor do que aquele medalhão. - Miri retirou o medalhão de Martin do seu bolso e colocou-o ao pescoço
de Meg.
Meg examinou-o e passou o dedo sobre a gravura do lobo. Quando olhou para o pai, havia um sorriso deslumbrante a transformar completamente o rosto da criança. Miri
pensava que ela um dia viria a ser de uma beleza fulgurante. Martin ia ter muito com que se preocupar. Mas manteve esse pensamento para si; Lobo já estava suficientemente
nervoso.
Naquele momento, Simon saiu do estábulo com o cavalo de Martin e Madame Pascal apareceu com as provisões que embrulhara para a viagem dos dois. Enquanto Meg se despedia
de Carole, Martin voltou-se para Miri e Simon.
- Bem, adeus, caçador de... - Interrompeu-se para corrigir. - Aristide. Fico em dívida para convosco para sempre, monsieur. Confio, evidentemente, que me perdoareis
inteiramente por não vos abraçar ao partir.
- com certeza - respondeu Simon, dando um passo atrás. - Ficar-vos-ei muito mais grato se não o fizerdes.
- Teria ainda que ficar irritado convosco e dizer-vos que haveis roubado a minha Senhora da Lua, mas receio que, desde sempre, ela nunca tenha sido minha.
- Nem foi minha.
- Estas senhoras da ilha Encantada seguem os seus próprios corações e fazem as suas próprias escolhas. E está claro para mim que ela fez
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a sua - disse Martin com tristeza. - Confio que nem sequer preciso de vos dizer para cuidardes bem dela.
- Dificilmente faria de outro modo. Não quereria que voltásseis a aparecer no meu estábulo.
Ambos os homens sorriram e trocaram um aperto de mãos. Por fim, Martin voltou-se para Miri, com o coração por um momento demasiado oprimido para poder dizer alguma
coisa. Apertou-lhe a mão. - Minha muito querida amiga. Sabes que se precisares de mim...
Ela acenou afirmativamente, com lágrimas a brilharem-lhe nos olhos.
- Eu fico bem. Agora tens alguém que precisa muito mais de ti.
Martin beijou-a no rosto e depois saltou para o cavalo, levando a filha à sua frente. A criança olhava-o embevecida enquanto galopavam pelo caminho, com Yves a correr
atrás deles, acenando-lhes adeus com o seu chapéu emplumado.
Carole e Madame Pascal voltaram para dentro de casa. Ainda havia que tratar dos preparativos para a viagem de regresso de Carole à ilha Encantada e para o bebé que
lá a esperava.
Miri estava sozinha com Simon, como quase não estivera desde que tinham regressado de Paris. Durante um longo momento, os seus olhares encontraram-se.
- Bem - disse Simon. - Agora, minha senhora, quando queres partir? Sei que deves estar ansiosa por regressar à ilha Encantada.
- Sim, vou querer lá ir e saudar Ariane quando ela regressar a casa. E, claro, tenho que levar Carole de volta ao seu filho. Simon, desejava que pudesses vir comigo.
- Duvido muito que pudesse ser bem acolhido.
- Mas é graças a ti que a Senhora pode regressar à ilha Encantada e todos sabem disso.
- Esperas demasiado das pessoas, Miri. Estou satisfeito por ter pelo menos conseguido acertar alguma coisa, mas imaginar que algum dia poderei ser perdoado e bem-vindo
à ilha... é esperar demasiado. Contudo, sei que a ilha Encantada é o teu lar, onde pertences. Onde sempre quiseste estar.
Miri abanou a cabeça. - Outrora pensava isso. Recordo-me de Ariane dizer que esperava que eu encontrasse o que procurava quando regressei à ilha Encantada. Mas,
de facto, não estava na ilha Encantada. Tudo o que procurei na ilha foi o meu passado, mas o meu futuro é aqui contigo.
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- Estendeu-lhe a mão e ele parecia não se atrever a alcançá-la. Por isso, foi ela a pegar-lhe na mão.
- Caso não tenhas percebido, Simon Aristide, estou a pedir-te que sejas o meu marido.
Ele sorriu, com a sobrancelha ligeiramente erguida. - Vós, as mulheres da ilha Encantada, sois desconcertantemente atrevidas.
Miri recusou ficar intimidada pela provocação. - Um de nós tinha que o dizer e eu sabia que não irias ser tu, meu muito relutante pretendente. Nunca sequer chegaste
a dizer que me amas. É uma sorte eu ser tão boa a ler os olhos.
Simon levou-lhe uma mão aos lábios. - Amo-te mesmo, Miri. Sempre amei. - Sorriu enquanto a abraçava.
- Porque sempre fui a tua grande fraqueza?
- Não, meu amor - murmurou, pressionando ternamente os seus lábios contra os dela. - A minha maior força.
Susan Carroll
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