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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROSAS E GOIVOS / Horácio Nunes
ROSAS E GOIVOS / Horácio Nunes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Horácio Nunes

 

 

 

 

PERSONAGENS: MARIA (25 anos)  OLÍMPIA (28 anos)  ELVIRA (20 anos)  JORGE (30 anos)  CARLOS (24 anos)  MAURÍCIO (25 anos)  ALFREDO (26 anos)  VISCONDE (55 anos)  JOSÉ (30 anos)  MASCARADOS CONVIDADOS CRIADOS   Atualidade.  

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PRÓLOGO BACANAL Sala rica, mas de gosto severo. Portas de arcada laterais e ao fundo. É noite. Ao subir o pano, Jorge, Carlos, Alfredo, Maurício e convidados estão sentados ao redor de uma mesa profusamente servida.   CENA I Jorge, Carlos, Alfredo, Maurício, Convidados.   CARLOS Eia, meus amigos! Bebam, folguem, cantem, que eu não os deixarei sair antes de finda a noite. Vamos! Não nos falta o Champanhe, o Madeira, o Chambertin!  
ALFREDO Bebamos! à saúde de Carlos de Andrade! Hip! hip!   TODOS (tocando os copos)  Hurra! (Bebem)   CARLOS Bebam! Tudo aqui me pertence, é meu: — os vinhos, os copos, os móveis, a casa, e, sobretudo, seiscentos contos de réis! Eu não sou mais o desgraçado de outrora que tentas vezes comeu e bebeu à vossa custa. Estou rico. Minha tia morreu, finalmente, deixando-me todos os seus bens, porque não podia levá-los, a mesquinha velha! Deixou-me tudo: o seu velho cofre, o seu velho vinho e até a sua velha criada, que não é a antiguidade menos curiosa da casa... Bebam, pois, senhores! Encham os copos a transbordar!... (Todos enchem os copos) Um hurra! por Deus! um hurra à morte de todos os tios e tias, cujos sobrinhos esperam herança e desesperam por não poderem vê-los de viagem para o outro mundo!   TODOS (erguendo os copos)  Hip! hip! Hurra! (Bebem)   MAURÍCIO É preciso confessar que és bem feliz, Carlos. Oh! se por descuido me caísse do céu ou surgisse do inferno um tio ou tia para morrer deixando-me todos o seu ouro!   CARLOS Não se ganha uma fortuna como se bebe Bordeaux, meu amigo, a menos que se seja salteador. Eu não queria hoje adquirir as riquezas de Rotschild com o trabalho enorme que empreguei para fazer jus a estes miseráveis seiscentos contos. É mais difícil aturar uma velha de setenta e dois anos, do que um milhão de rapazes como nós. Quando eu visitava essa tia maldita, que Satanás tenha, o seu primeiro bom dia era sempre uma repreensão: — “Como cheira a fumo este rapaz!”  
ALFREDO E enquanto ela te dizia isso em voz alta, dizias tu, mentalmente: — “Como cheira a ouro esta velha!”   CARLOS Depois, passava-me um sermão sobre o jogo, a dança, o fumo, as mulheres, as pandegas. Profetizava-me a miséria, a desespero.   MAURÍCIO Enquanto Deus lhe concedesse um fôlego... Tinha razão.   CARLOS Eu, que sempre detestei os conselhos, via-me obrigado a atendê-la. Saudava a criada, afagava o gato, amimava o cãozinho e... beijava minha tia, que tinha setenta e dois anos!   TODOS Horror!   CARLOS Contava-lhe as misérias do mundo, desrespeito pelas coisas santas, o meu amor pela solidão...    MAURÍCIO Do boudoir das raparigas bonitas...    CARLOS E chorava por vê-la enferma, para, no fim de tão custosa comédia, embolsar alguns mil réis...    ALFREDO Juro dos seiscentos contos que mais tarde devias receber. Carlos, se tua tia ainda vivesse, eu era capaz de praticar uma loucura, uma enorme loucura!   MAURÍCIO Raptava-a?
  ALFREDO Não. Casava-me com ela!   TODOS Ah! ah! ah!   ALFREDO (erguendo-se, de copo em punho)  Meus senhores, acompanhem-me num hurra à minha noiva de além túmulo!... Eia, meus amigos, eia! (Todos enchem os copos) Hip! hip!   TODOS Hurra! (Bebem)   CARLOS Bebam mais, bebam sempre! O vinho ilumina o espírito e adormece os sofrimentos, — os sofrimentos do coração! — Bebam mais, bebam sempre! A embriaguez também é uma glória! Bebamos!     CENA II Os mesmos, Maria, Olímpia e Elvira.
MARIA (tomando um copo)  Bebamos, sim, bebamos!   OLÍMPIA (idem)  Viva a pandega!   CARLOS (à parte)  Maria!   JORGE (à parte) Maldita!   MARIA (erguendo o copo)  Hip! hip!
  TODOS Hurra! (Bebem)   ALFREDO A ti todos os meus beijos, Formosa Aspásia do amor!   MARIA (voltando-se)  Quem fala?   ALFREDO O teu poeta, peregrina houri!   MAURÍCIO À tua saúde, Olímpia!   JORGE À tua saúde, Elvira!   MARIA Silêncio! A vós, que tantas vezes me tendes aclamado rainha de todas as festas, a vós, que acabais de saudar-me com tanto entusiasmo e gentileza, vem, por meus lábios trêmulos, agradecervos tanta bondade o meu coração jubiloso! Gozemos! O que é a vida, meus senhores? Uma peregrinação estúpida do berço ao túmulo; a flor que se abre ao raiar da aurora embalsamando o ambiente com os seus perfumes sutis, e que à noite se desfolha lânguida, sacudida pelo sopro da tempestade; o vertiginoso turbilhonar da catarata espumante, cujas águas descem, descem sempre, e para sempre se perdem nas ínvias solidões da floresta virgem!... O que é a vida, meus senhores? O gozo, sempre o gozo, mas o gozo sem tréguas, altivo de sua insaciedade, orgulhoso do seu desregramento, soberbo das suas vitórias!   TODOS Bravo! bravo!
  MAURÍCIO Meus senhores, peço permissão para ausentar-me por cinco minutos apenas.   ALFREDO Onde vais?   MAURÍCIO É segredo.   OLÍMPIA Posso saber?   MAURÍCIO Depois. (Sai)     CENA III Os mesmos, menos Maurício.   MARIA Gozemos, pois! Gozemos hoje, amanhã, sempre, e que até na extrema hora possamos empunhar um copo de vinho e bradar com a voz já rouca pela derradeira agonia: — Viva o gozo!   ALFREDO És um anjo, Maria!   MARIA Um anjo! Um anjo que arrasta as asas brancas ao lodaçal do vício... É mal cabida a expressão, meu caro poeta. Os anjos adoram a Deus, prostram-se ante o seu trono e cantam-lhe hosanas... Eu adoro o ouro, prostro-me ante o altar do gozo e canto hosanas ao prazer... Os anjos são feitos de amor: eu sou feita de ódio; os anjos amam: eu desprezo!... O amor!... O que é o amor, meus senhores?  
ALFREDO Bravo! soberbo!   CARLOS És muito severa, minha formosa Maria. O amor é poderoso: eleva e abate, dá vida e mata... É dos romances.   MARIA E acredita no que dizem os romances?... O senhor é de uma simplicidade espantosa!   CARLOS Acredito. E por que não hei de acreditar, se o que dizem os romances é o que vemos todos os dias, a todas as horas, a todos os instantes?... O que seria da criatura, se não houvesse um sentimento mais puro, um sentimento mais do céu, que a animasse?... Amei já, amei muito... A mulher dos meus extremos era para mim o júbilo, a glória, o paraíso dos meus sonhos...    MARIA E por que não se casou com ela?...    CARLOS Era uma mulher divina: cabelos negros, olhos negros...    ALFREDO Bravo!   MARIA Isso é poesia!   CARLOS Um dia fui pedi-la ao pai. O pai recebeu-me de braços abertos. Eu, na verdade, estava louco por essa mulher...    MARIA (ironicamente)  Deveras?
  CARLOS À noite houve um baile, um baile esplêndido, onde o luxo e a riqueza corriam parelhas... À meia noite desci as escadas de mármore do opulento palácio e fui para o jardim. O tumulto das grandes salas resplandecentes incomodava-me. Eu queria estar só para pensar na minha felicidade.   ALFREDO E depois?   MARIA (sorrindo)  E depois?   CARLOS Sabem o que vi?   OLÍMPIA Não deciframos enigmas.   CARLOS A mulher que, poucos momentos antes, me jurara um amor eterno... Mas caminhemos em regra. A noite estava soberba. A lua despontava pálida no seio azul do infinito... as auras perfumadas falavam de amores...    MARIA (irônica)  Tomos romance.   CARLOS Fui sentar-me perto de um caramanchão e pensei.   OLÍMPIA Em quê?   CARLOS No futuro... Sonhava-o doirado, cheio de venturas, repleto de amor... A minha cabeça ardia... Ajoelhei-me sobre a relva úmida de orvalho...    MARIA (irônica)  Era um mártir!... (Dá uma risada)   JORGE Era um pateta!   CARLOS Era um homem que amava, e que amava pela primeira vez... Ajoelhei-me sobre a relva úmida de orvalho, uni as mãos e fitei o céu...    MARIA (irônica)  Soberba atitude!   JORGE Ridícula posição!   CARLOS Eu não podia conter o coração no peito... Rezei com devoção e recolhimento, falei a Deus do meio da solidão que me cercava...    OLÍMPIA (rindo)  E o que disse a Deus?   JORGE Alguma parvoíce!   CARLOS Disse: — “Eu vos agradeço, meu Deus. Amo e sou amado. A mulher, por quem eu não trepidaria em dar a própria vida, é minha. Ela será o anjo da minha guarda na longa peregrinação deste mundo, será a minha companheira nos dias de alegria e de luto, o único objeto das minhas adorações na terra... Ouvistes as minhas súplicas, meu Deus; eu, de joelhos, vos agradeço!”   OLÍMPIA Majestoso!   ALFREDO Divino!   JORGE Ridículo!   MARIA (irônica)  Adiante.   CARLOS Escarneçam... Que importa?... Escarnecem porque nunca amaram... E eu amava, estava louco de amor... Nesse tempo o meu coração era puro...    OLÍMPIA Faço ideia!   CARLOS Depois, pensei... Um leve farfalhar de sedas veio arrancar-me à minha meditação... Ergui-me, ouvi o estalar de um beijo, um respirar febril, umas vozes sufocadas... Um frio de gelo invadiu-me o coração...    MARIA (rindo, irônica)  Teve medo?   CARLOS (fitando-a)  Medo?... Assaltara-me uma ideia diabólica... Aproximei-me e olhei... Quis dar um grito: morreu-me a voz na garganta... quis entrar: uma força misteriosa prendeu-me...   
OLÍMPIA O que viu?   CARLOS O que vi? Querem que lhes diga o que vi?... A mulher que jurara amar-me na vida e na morte, nos braços de outro homem, jurando amá-lo também...    MARIA Ah! ah! ah!   CARLOS Fiz um esforço supremo e de um salto achei-me junto dela: — “Miserável!” — bradei. Depois, olhei para o amante, que recuara trêmulo, e dei uma gargalhada.   ALFREDO E amava-a!   CARLOS Amava-a, sim; amava-a mais do que a própria vida... Mas aquilo era uma infâmia tão grande, que nem o meu desprezo merecia...    OLÍMPIA E depois?   MARIA (irônica, sorrindo)  Adianta, adiante.   CARLOS Ajoelhei outra vez, outra vez rendi graças a Deus, mas por ter impedido que eu desse o meu nome a essa mulher... Passado algum tempo o pai morreu... (Fitando Maria) Na noite do funeral, a filha infame...    ALFREDO E quem era ela?... quem era o seu amante?
  CARLOS (a custo)  Não sei...    MARIA O senhor sempre foi romântico.   CARLOS (como que querendo fugir à opressão)  Meus amigos, encham os copos! Um hurra à minha última noite de amor!   MARIA Um momento, meus senhores. Essa mulher, querem saber quem era?   ALFREDO Quem era?   MARIA Era... eu!   OLÍMPIA Tu!   ALFREDO E o teu amante?   MARIA Não tarde. Agora, meu caro anfitrião, permita que lhe diga que nunca o amei.   ALFREDO Amava a Maurício, é claríssimo.   MARIA Nem a ele.  
JORGE A quem então?   MARIA A ninguém. Eu não amava. Procurava o gozo, o prazer real. Nunca amei, não amo e nem hei de amar!   ALFREDO Quem sabe?   MARIA Eu! Eu, que escarneço de todas essas paixões divinas, que calço aos pés todos os preconceitos estúpidos da sociedade, que zombo da pureza da alma... eu, que sou livre como os pássaros da terra e as nuvens do céu... eu, que deslumbro a sociedade com a minha formosura... eu, Maria — a Messalina!   CARLOS Meus amigos, um último hurra, que o dia já vai alto! 
(Entra Maurício, com três coroas de rosas)     CENA IV Os mesmos e Maurício.   MAURÍCIO (entrando)  Sim, sim, um último hurra!   MARIA E um último brinde!   ALFREDO Quem o faz?   MARIA Eu, a rainha da festa.
  MAURÍCIO (coroando-a)  Mas coroada de rosas — as flores da formosura!   ALFREDO (coroando Olímpia)  E com a fronte inebriante de perfumes... (Designando Maria) para saudar o astro que passa — deslumbrando com as suas cintilações abrasadoras!...    MAURÍCIO (indo coroar Elvira)  Elvira...    ELVIRA (atirando a coroa ao chão)  Nunca! 
(Surpresa geral)   MAURÍCIO Por quê?   ELVIRA Porque servia aviltar-me muito, porque seria descer muito! Não! Esta coroa era mais uma afronta, era mais um insulto que queriam atirar-me à face! Ah! supõem os senhores que podem fazer o que lhes aprouver da pobre pecadora, e que ela se curvará a tudo com o sorriso nos lábios, e sem que lhe suba ao rosto não o rubor do pejo, porque não o tem, mas o sangue da indignação, do coração revoltado!   JORGE Muito bem, Elvira! muito bem!   ELVIRA A mulher, que se perde por um punhado de ouro, que se perverte impelida pelos instintos do vício, podem coroar-lhe a fronte, podem levá-la em triunfo de orgia em orgia!... Mas a mim, não! Perdi-me, sim, mas foi a necessidade que me obrigou: foi porque meus irmãos sofriam... e eu, pobre criança, que então era, não tinha um ceitil para socorrê-los... Fui pedir uma esmola. Deram-ma, mas como?... Abusando da minha fraqueza, calcando aos pés a minha inocência!... A miséria perdeu-me, mas não me perverteu!   JORGE (beijando-lhe a mão)  Eu te respeito, Elvira!   MAURÍCIO Deixemos as histórias lúgubres para depois. Agora — à mesa!   TODOS À mesa!   ALFREDO Encham os copos, meus senhores! 
(Todos enchem os copos, rodeando a mesa)   MARIA (tomando um copo e subindo a uma cadeira, à cabeceira da mesa) Contemplem-me, admirem-me, pasmem! Reúnam todas as flores da terra, todos os astros do céu, todas as pérolas de Ofir, todos os diamantes de Golconda, dissolvam tudo isso à chama ardente do delírio, ao fogo crepitante da loucura, e modelem depois uma estátua maravilhosamente bela, esplendidamente soberba, — e essa estátua serei eu! Eia, meus senhores! à saúde da Messalina! Hip! hip!   TODOS (tocando os copos)  Hurra! hurra!     ATO I  UM NOVO DOM JOÃO Salão luxuoso. É noite. Ao subir o pano, Maria está sentada junto de uma mesa, a meio da cena, com o rosto apoiado à mão, e Maurício, quase deitado em um sofá, fuma.
 
CENA I Maurício e Maria.
MAURÍCIO (contemplando o fumo do charuto, descuidosamente)  Pensas?   MARIA Em quê?   MAURÍCIO Em Carlos de Andrade, talvez.   MARIA É engraçado! E por que hei de eu pensar mais nele do que em outro qualquer? Sou livre, meu caro, e o meu pensamento é mais livre ainda.   MAURÍCIO E não o amas?   MARIA Amá-lo? Pois já se esqueceu do que eu disse ontem?... Não amei, não amo, nem amarei nunca. Não sei o que é o amor. Quando me virem apaixonada por um homem, dou licença que me cuspam na face, que me calquem aos pés, que fujam de mim, como de um lázaro. Sou bela, diz-me a consciência, e os meus espelhos não mentem; sou moça, pois que só tenho vinte e cinco primaveras; tenho todos os prazeres da vida, todos os gozos imagináveis... Que me importa o resto?   MAURÍCIO Mas é que nem sempre terás vinte e cinco anos nem um rosto de anjo.   MARIA Fala-me na velhice?... Oh! mas as mulheres como eu, quando pressentem que a velhice se aproxima, matam-se! Orgulhosa da minha formosura, não deixarei que o meu rosto crie rugas, que as minhas formas percam a flexibilidade... Amar?... Para quê?... Para ser uma Mimi?... para morrer tísica?... É romântico, mas é triste. Se eu posso viver livre, inteiramente livre, para que hei de ir entregar os pulsos às cadeias da escravidão? para que hei de escravizar-me a um homem, que mais tarde me desprezará, me lançará em rosto o passado, me atirará à face, com o mais esmagador desprezo, estas palavras: — “Quem foste? quem és?...”    MAURÍCIO Madalena arrependeu-se.   MARIA De haver sido uma mulher perdida? Não creia.   MAURÍCIO De que então?   MARIA Madalena arrependeu-se porque teve medo...    MAURÍCIO (tomando outra posição no sofá)  Medo?   MARIA Sim. Um medo horrível dessa ficção a que chamam — Deus. Acreditou na sua existência, creu que ele a castigaria com castigos tremendos, e fingiu-se arrependida...    MAURÍCIO E não crês em Deus?   MARIA Não. Creio na vida, porque vivo; no gozo, porque gozo; no prazer, porque sinto... Aqui — é o inferno; o céu é aqui. Além desta vida — é o vácuo, o abismo, o esquecimento. Aqui — chora-se ou canta-se, goza-se ou sofre-se; — é o céu ou o inferno: o céu para os que cantam, o inferno para os que choram. Quando se arroja dos pulmões o último alento, está tudo acabado. O algoz e a vítima, o feliz e o desgraçado vão para a terra imunda do cemitério, vão ser pasto dos vermes. Está tudo acabado.   MAURÍCIO E não te arrependerás nunca?   MARIA Não. Para o arrependimento é necessária a crença, e eu não creio na eternidade. A minha crença é o prazer. O mais é nada, e eu não me dou ao trabalho de pensar no nada. Tenho mais em que ocupar-me. A minha beleza e as minhas “toilettes” absorvem-me o tempo. Se eu empregasse o meu tempo em meditar no invisível, estaria louca em um mês ou morte em dois, porque seria uma medicação essa horrorosamente estúpida... Leve-me à janela, mostre-me um homem qualquer e diga: — “Aquele homem é uma mina!” — e eu me ajoelharei e direi: — “Aquele homem é um Deus!” — Compreende agora?   MAURÍCIO Mas estás tão séptica?   MARIA Estou. Tenho lido muito, tenho estudado muito. Meu pai deu-me uma instrução esplendida: gastou comigo rios de dinheiro. Conheço bastante o mundo, por mim e pelos livros. Mimi amou, amou muito, amou como só uma vez se pode amar na vida. Qual foi a recompensa desse amor imenso? Uma doença horrível — a tísica — o martírio contínuo, sem tréguas, de todas as horas, de todos os instantes. Depois — a morte, o esquecimento, os vermes, a podridão, enfim. Gabriela de Walereuse amou muito também. Qual foi a recompensa dessa amor enorme? Uma agonia, lenta, terrível, como os ódios da inquisição: — uma morte desastrosa: — uma bala acabando de despedaçar-lhe o coração já tão despedaçado.
Mariquinhas, a ingênua, a santa Mariquinhas, amou com extremo a Luiz Fernandes. Qual foi a recompensa desse amor sublima de criança? Ver o homem por quem daria a própria vida, morrer por causa de outra mulher; ver essa mulher roubar-lhe, sem compaixão, até o último olhar, o derradeiro sorriso do seu noivo, do seu único amor!... Oh! nada de cadeias, nada de escravidão, nada de amor! 
(Olímpia e Elvira, cada uma com um bouquet, entram pelo fundo)      CENA II Os mesmos, Olímpia e Elvira.   OLÍMPIA (oferecendo o bouquet a Maria)  A ti, que és a rosa mais deslumbrante dos jardins maravilhosos da formosura, saúdo com rosas, que são as flores da suprema beleza!   ELVIRA Para coroar-te a formosa fronte só um diadema das mais brilhantes estrelas. Mas, não podendo arrancá-las ao céu, venho saudar-te hoje com este singelo ramo de modestíssimas flores... (Oferece o ramo)   MARIA Obrigada, minhas amigas, muito obrigada.   MAURÍCIO Se estamos em maré de mimos, minha bela Maria, hás de permitir que eu também te faça um mimo. Em tuas mãos de fada — tesouro de perfeição — onde brilham as rosas esplêndidas da primavera, deve também o ouro espalhar em brilhantes reflexos as suas cintilações deslumbradoras. Elas te trouxeram rosas — rosas cheias de mel e de perfumes: — eu, humilde e comovido, trago-te o meu anel. Perdoa a mesquinha oferta. (Tira do dedo um anel, que dá à Maria)   MARIA Meus amigos, sinto-me feliz ao receber estas provas da mais sincera amizade. Não as mereço, mas aceito-as como uma recordação, que em todos os tempos me trará à memória esta noite...    MAURÍCIO Não mereces?   MARIA Não.   MAURÍCIO Mereces mais. Se eu possuísse as minhas da Califórnia, deporia a teus pés todas as suas riquezas, só para merecer-te um sorriso.   ELVIRA Eu faria um diadema de ouro cravejado de brilhantes para coroar-te a formosa fronte.   OLÍMPIA Eu alastraria de pó de ouro o chão onde tivesses de colocar as mimosas plantas.   MARIA Pelo que vejo e ouço, estão todos apostados para fazer-me enlouquecer de alegria... Pois olhem: eu, se fosse possuidora das riquezas de que falam, sabem o que delas fazia?... Empregava-as em bailes, ceias, orgias, para agradar aos meus amigos e passar a vida dos meus sonhos... Mas, embora não seja rica, preparo-lhes uma surpresa...    OLÍMPIA O que é?   MARIA Por ora é segredo; mas dentro em oito dias...    OLÍMPIA Ora, dize já...    MARIA Não.   OLÍMPIA De maneira que temos de esperar oito dias?   MARIA Sim. Hoje é sábado. No sábado próximo ficarão sabendo o que é. Preparem-se.   OLÍMPIA Não diminuis nem um dia?   MARIA Nem um só. Sou inflexível.   OLÍMPIA Má!   ELVIRA Eu estou pronta a esperar.   OLÍMPIA Pois eu não.   MARIA Que remédio tens?   OLÍMPIA Vingo-me. O primeiro bilhete que me escreveres devolvo-o.   MAURÍCIO Depois de o leres?   OLÍMPIA Não. Antes.   MARIA Não faças isso...    OLÍMPIA Faço.   MARIA Se fizeres, ficamos mal.   OLÍMPIA (abraçando-a)  Está bem; não faço. Eu sou tua amiga!   MARIA Não é preciso que me o digas. Leio nos teus olhos.   ELVIRA (aproximando-se do grupo)  E eu então?   MARIA (batendo-lhe no rosto)  Tu? Tu és a joia das raparigas bonitas no rosto e no coração.   ELVIRA Obrigada.   OLÍMPIA Como ficou orgulhosa!   MARIA Mas não me explicarão agora o motivo da surpresa que me fizeram há pouco?   ELVIRA Não fazes anos hoje?   MARIA Ah! faço vinte e cinco anos. (A Maurício) Estou envelhecendo, não?...    MAURÍCIO Quem sabe?...      CENA III Os mesmos, Alfredo e Jorge.   ALFREDO (da porta)  Permitem o ingresso a dois peregrinos que vêm depor as plantas da rainha da beleza os seus humilíssimos respeitos?   MARIA Como? Pois pedem licença? (Sobe)   ALFREDO (descendo com Jorge)  Temíamos que houvesse aqui dragões que nos impedissem a entrada.   MARIA Não estamos no jardim das Hespérides.   OLÍMPIA (a Alfredo)  O oferecimento em verso. Aqui os poetas só podem falar em verso.   ALFREDO Pelo que vejo, estamos em plano Parnaso!   JORGE Mas faltam seis musas.   ALFREDO E Apolo?   MAURÍCIO Desceu ao vale no fogoso Pégaso. Constou-lhe que queria aqui ter entrada um poetastro de aldeia e foi procurá-lo para fazê-lo conhecer o seu lugar. O pobre rapaz há de ficar desesperado; mas que tenha paciência...    JORGE (irônico)  É o caso de dizer-se com o poeta:   Ao Parnaso quer subir Novo rival de Camões, E das loucas pretensões As musas se põem a rir; Apollo, sem se afligir, Desta arte diz ao casmurro: — Pode entrar, que não o empurro, Nem me vem causar abalo; Já eu sustento um cavalo, Sustentarei mais um burro! —   MAURÍCIO Obrigado. Cá chegou.   JORGE O quê?   MAURÍCIO Quando entraram, a quem encontraram aqui?   ALFREDO Ah! ah! ah!   MARIA Nada de discussões. Ao contrário, quando Apollo chegar, contarlhe-ei tudo.   ALFREDO Quem é Apollo?
  MAURÍCIO O visconde de Monte-Verde.   MARIA Um vovô de cinquenta e cinco janeiros, pródigo como um rapaz de vinte primaveras.   OLÍMPIA Anda viajando?   MARIA Chegou hoje. Não deve tardar por aí.   MAURÍCIO É rico...    ALFREDO (dando um escrínio a Maria)  Ofereço-te uma pequenina prova da minha imensa simpatia.   JORGE (dando um livro)  Não te ofereço um mimo custoso e magnífico em que o ouro cintile com os seus reflexos fulvos e os diamantes deslumbrem com o seu brilho ofuscante. É um livro que te trago — “A Dama das Camélias” — uma mulher formosa como tu e cuja história é quase igual à tua. Aceita-o e medita sobre as suas páginas.     CENA IV Os mesmos e o Visconde.   VISCONDE (da porta, todo curvado, com o chapéu na mão)  Dão licença?   MARIA (subindo)  O meu querido Apollo!  
VISCONDE (beijando-lhe a mão)  Minha formosa Cleópatra! 
(Maria, Olímpia e Elvira formam grupo e conversam à parte, sem prestarem atenção ao Visconde)   MAURÍCIO  Visconde, um seu humilíssimo criado...    ALFREDO Ilustre visconde.   JORGE Senhor Visconde...    VISCONDE Oh! meus amigos, nada de incômodos... Estão em sua casa. (Curvando-se ante as damas) Minhas senhoras...    OLÍMPIA (a Maria)  Depois saberás.   ELVIRA (a Maria)  Sim, depois saberás.   MARIA (às duas, sorrindo)  E por que não hei de saber já?   OLÍMPIA Porque não é possível!   VISCONDE (sempre curvado)  Minhas senhoras...    OLÍMPIA Ah! estava aí, visconde?  
VISCONDE Há cinco minutos que a cumprimento...    MARIA Visconde, fico com ciúmes!   VISCONDE Ah! perdão... perdão...    ALFREDO Não o atormentes, Maria. Deixa-o descansar da viagem.   JORGE Coitado!   VISCONDE Feliz, deve dizer. Pois não mereço as atenções da formosa Maria?   MARIA E não vai comprar-me uma parelha de cavalos baios?   VISCONDE Hem? Uma...    MARIA Uma parelha de cavalos baios.   VISCONDE Uma parelha de cavalos baios! Mas isso é uma loucura!...    MARIA Se é uma loucura, não os compre; mas declaro-lhe que ficamos mal.   VISCONDE Nada... nada... para evitar essa desgraça, daria... daria toda a minha fortuna... Senhora... senhor Jorge... faça o favor...   
JORGE (aproximando-se)  Senhor Visconde...    VISCONDE Tire-me aqui de um embaraço... Diga à formosa Maria se eu sou ou não capaz de dar toda a minha fortuna somente para merecer-lhe um sorriso...    JORGE Quer que fale com franqueza, Sr. Visconde?   VISCONDE Sem dúvida, sem dúvida...    JORGE O Senhor não seria capaz de dar toda a sua fortuna; mas de enforcar-se... talvez... (Sobe)   OLÍMPIA (segurando o Visconde por uma orelha)  Usurário!   VISCONDE (fazendo uma pirueta)  Oh! Senhor... Senhor... Jorge... quer ver?   JORGE O quê?   VISCONDE Espere um momento. (Sai)     CENA V Os mesmos, menos o Visconde.   MAURÍCIO Maria, não o ponhas louco.  
MARIA Já está.   ALFREDO Mas é uma loucura mansa e divertida. Se o apertares muito, pode ficar furioso.   MARIA Que me importa?   MAURÍCIO E não tens pena?   MARIA Pena! Pois eu gasto o meu tempo em compadecer-me dos outros?   ALFREDO Então não tens coração?   MARIA Tenho, mas para viver, porque o coração é indispensável à vida, para compadecer-me dos outros, não.   ELVIRA Mas os sentimentos de humanidade...    MARIA Ora, minha cara! A humanidade... sou eu, os meus prazeres, os meus gozos, a minha opulência, a minha beleza incomparável! (Sai)   OLÍMPIA (à parte)  Vaidosa!      CENA VI Os mesmos, menos Maria.  
ALFREDO O que iria fazer o visconde?   MAURÍCIO Ora! necessariamente foi deitar-se a afogar!   ALFREDO Duvido. Aquele velho tem amor à pele.   OLÍMPIA Mas é um completo idiota!     CENA VII Os mesmos, Visconde e Maria.   VISCONDE (pelo fundo, com um escrínio na mão)  Maria! Maria!   MARIA (da direita)  Aqui estou. O que há?   VISCONDE Olha. Soberbo! Hem?   MARIA (tomando o escrínio)  Um adereço... Podia ser melhor; mas aceito, não se esquecendo dos cavalos.   VISCONDE Não me esquecerei. Se te amo tanto!   OLÍMPIA E eu então, visconde?   VISCONDE (atrapalhado)  Ah! eu... 
  OLÍMPIA Ama-me também?...    VISCONDE Eu... eu... creio que sim... mas... sim, quero dizer...    MARIA Visconde, ficamos mal!   MAURÍCIO É ridículo!   JORGE Pelo que vejo, são rivais?   ALFREDO Este visconde é um herói. Só lhe noto um defeito.   VISCONDE Um defeito... Qual é?   ALFREDO Apaixonar dois corações ao mesmo tempo.   VISCONDE Não tenho a culpa.   MARIA (fingindo chorar)  E eu que o amo tanto!...    OLÍMPIA (fingindo chorar)  E eu também!   VISCONDE Adeus, minhas encomendas!  
ALFREDO Aqui está o resultado da sua volubilidade.   VISCONDE Quando perderei o costume de ser borboleta!   JORGE (à parte)  Que miséria!   VISCONDE Perdão, Maria...    MARIA (subindo)  Acabou-se tudo!   VISCONDE Olímpia...    OLÍMPIA (subindo)  Está tudo acabado!   ALFREDO Ajoelhe-se, Visconde.   VISCONDE (caindo de joelhos)  Senhoras... por compaixão...    MARIA e OLÍMPIA Não!   VISCONDE Pelo amor que lhes...    ALFREDO Hem? O que é isso, visconde?   VISCONDE Pelo amor que te tenho, Maria!   JORGE (a Alfredo e Maurício)  Que figura fazemos nós aqui? Vamos?   ALFREDO Vamos.   MARIA Já?   ALFREDO Voltaremos depois. 
 
(Saem os três)   OLÍMPIA (à Elvira)  Vamos ao jardim?   ELVIRA Vamos   MARIA Deixam-me?   OLÍMPIA Vamos ao jardim. Aí fica o Visconde para te divertir. 
(Saem)   
 
CENA VIII Maria e Visconde.
  VISCONDE (satisfeitíssimo)  Ficamos, finalmente, sós!  
MARIA Creio que não.   VISCONDE Como?   MARIA Porque vou deixá-lo também.   VISCONDE Por quê?   MARIA Adeus! (Sai, enviando-lhe um beijo)      CENA IX   VISCONDE (enviando muitos beijos)  Eu estouro!... de repente estouro! Esta rapariga é um demônio!... um verdadeiro demônio!... E ama-me como uma doidinha... Nunca vi um amor assim! Mas o diabo é que ainda nada pude conseguir... Gasto com ela rios de dinheiro, e nada de novo! Enfim, talvez que mais tarde...      CENA X Visconde e Olímpia.   OLÍMPIA (entrando pelo fundo e batendo-lhe na face)  Visconde, venho buscá-lo.   VISCONDE Buscar-me... para onde?   OLÍMPIA Para o jardim.
  VISCONDE Para o jardim... Oh! menina, diga-me uma coisa.   OLÍMPIA Duas e três, se quiser.   VISCONDE A menina ama-me?   OLÍMPIA Não.   VISCONDE Não?   OLÍMPIA Não.   VISCONDE Por quê?   OLÍMPIA Porque o Visconde é um ingrato... um volúvel...    VISCONDE Ora, mas isso...    OLÍMPIA O que tem?   VISCONDE Nada, nada, absolutamente   OLÍMPIA Depois, sou tão amiga de Maria...   
VISCONDE Mas arranja-se tudo, sem que Maria saiba.   OLÍMPIA Deveras?   VISCONDE Deveras, sim.   OLÍMPIA E o visconde me dá...    VISCONDE O quê?   OLÍMPIA (afagando-o)  Vestidos de seda...    VISCONDE Dou...    OLÍMPIA (deitando a cabeça no ombro do visconde)  Fitas, anéis, colares, pulseiras, cavalinhos bonitos e um bocadinho do seu dinheiro?...    VISCONDE Oh! que demoninho!   OLÍMPIA Uma casinha bem linda, toda mobiliada, com um jardinzinho na frente e três criadinhas?   VISCONDE Dou, dou, minha joia; dou tudo que quiseres.   OLÍMPIA Como é bom! Vamos para o jardim?
  VISCONDE Vamos, vamos... A hora não pode ser mais propicia. Sim, a noite está magnífica... 
(Saem de braço)   OLÍMPIA (saindo, à parte)  Que tolo!...
    
CENA XI Carlos e Maria.
CARLOS (aparece ao fundo e Maria à direita)  Maria... (Maria envia-lhe um beijo e desaparece. Carlos dá um passo para segui-la, mas para. Pensativo) Quem sabe?...   
 
ATO II  O AMOR Gabinete rico. Mesa de meio. Preparos de escrita. Um álbum. Ao subir o pano, ouvem-se os últimos compassos de uma valsa. É noite. Carlos está sentado junto da mesa, com a fronte descansada na mão.    CENA I   CARLOS Esta mulher!... Para que vi eu esta mulher?... É um inferno este viver! E amo-a... eu, que a vejo cada vez descer mais, aviltar-se mais, amo-a como um insensato! Embalde procuro calcar no fundo do coração este amor maldito, embalde procuro esquecê-lo no meio dos prazeres, da embriaguez muitas vezes!... De dia, de noite, a todas as horas, a todos os momentos, sempre a vejo, e sempre bela! (Vendo o álbum) Ah! (Folha o álbum e para de repente) Maldito! (Lê) “Os teus olhos são duas estrelas que reverberam a sua luz divina na estrada coberta de abrolhos da minha vida de lágrimas, — a luz santa e pura das esperanças queridas...” — (Pausa) Todos escrevem no seu álbum... Porque não escreverei eu!... O que me impede de deixar também neste livro uma prova do amor que por ela sinto?... (Escreve. Jorge aparece ao fundo, onde fica, até Carlos acabar de escrever)   Amo-te! A vida, que se escoa rápida do berço à tumba, é solitária e triste, se não se abraça do prazer aos júbilos, pois só no amor é que o prazer consiste...    Sei que me esqueces... mas na dor sem bálsamo que me acabrunha e me devora o seio, consente em ser do meu amor o ídolo, e que eu te adore neste atroz anseio...    E quando a morte me prostrar... ai! chora-me...  sobre o cadáver do cantor que dorme geme, chorando da saudade as lágrimas: — Do amor sublime — coração enorme! –     CENA II Carlos e Jorge.   JORGE (descendo vagarosamente)  Bonitos estão eles, Carlos, mas são mal empregados.   CARLOS (levantando-se)  Ah!   JORGE Também escrever versos no seu álbum? Pediu-te os ela?... Essa mulher, meu amigo, é muito orgulhosa para fazer-te semelhante pedido...   
CARLOS Mas eu amo-a...    JORGE Amas?... E o teu nome?... e a tua honra?...    CARLOS Oh! tudo esqueço por amor dela: o meu nome, a minha honra... tudo...    JORGE Olha: queres saber o que é o amor entre as mulheres como Maria? Queres saber ao que chamam elas amor?... É ao ouro, à conveniência, ao luxo, à ociosidade, à devassidão. Sei que a amaste muito enquanto foi ela pura e virgem, que a adoraste quase como se adora a Deus; mas nunca supus que continuasses a amá-la depois de perdida, depois de mais vil do que o verme que se arrasta na podridão!   CARLOS Mas...    JORGE Oh! não me digas nada! Sei a história deste amor. Foste tu mesmo que a contaste; foi ela mesma que disse que nunca te amou. Goza os seus carinhos enquanto puderes; mas não a ames, porque esse amor é a abjeção, é o desprezo de se mesmo, é o crime. Por isso é que andas aí com cara de légua e meia, cabeça baixa, magro e de olhos no chão... Nesse andar, acabas doido, meu pobre amigo...    CARLOS Talvez!   JORGE E se sabias que havias de ficar doido, para que te apaixonaste por ela — por uma mulher sem brio, sem honra, sem coração? Por que não empregas o teu amor em uma rapariga honesta e pura, que possa recompensá-lo? Quem te disse que olhasses para uma Messalina? Por que te apaixonaste por ela?... Pela sua beleza?... Mas há tanta mulher bonita e digna do teu amor, tanta rapariga pobre a quem podes amparar com o teu nome... Por que te apaixonaste por ela, Carlos?   CARLOS Por quê? Porque o meu coração queria amar, porque essa mulher subjugou-o, porque eu não tive forças para fugir...    JORGE E o que pretender fazer agora?   CARLOS Sofrer... e calar-me...    JORGE És um covarde!   CARLOS Um covarde!   JORGE Esquece essa mulher, esquece-a, porque essa mulher há de ser a tua perdição... Porque não amas tua prima? É uma moça honesta e diligente. Conheço-a bem. Ainda ontem estive em sua casa. Durante todo o serão só falou em ti, queixando-se que não aparecias, que não ias vê-la. É pobre. Mas que importa? Não és tu rico bastante para repartir com ela a tua abastança? Tens tão perto o céu e queres precipitar-te no inferno. Abre os olhos e recua. Hoje ainda é tempo. Amanhã talvez já seja tarde. Tua prima ama-te. Julia é um anjo. Precisa de quem a ampare. Morreu-lhe a mãe o ano passado, como sabes. A pobrezinha vive só, porque o pai vai à casa somente para descansar dos seus penosos trabalhos, à noite. Casa-te com ela. Melhor companheira para as lidas deste mundo não encontras tu por certo...   
CARLOS Ah! se há mais tempo me tivesses dado esse conselho...    JORGE (aproximando-se de Carlos)  E então?   CARLOS Tê-lo-ia aceitado com os braços abertos... Mas hoje... não posso amar minha prima... Sinto-o do fundo da alma ; mas o meu coração não pode contar dois amores...    JORGE Pois que contenha um só. Esquece a Messalina e adora a Virgem.   CARLOS Esquecê-la?... Oh! nunca!   JORGE Louco! cem, mil vezes louco!... Pois não acabo de dizer-te que esta mulher é...    CARLOS Oh! cala-te! Não me faças sofrer ainda mais!   JORGE Deixo-te com os teus pensamentos. Prevejo que ainda hoje terás de te arrepender da tua paixão insensata...    CARLOS Como?   JORGE Não sei (Sai)      CENA III  CARLOS Oh! Deus não daria tanta beleza àquela mulher, sem lhe ter dado um grande coração! (Fica pensativo)      CENA IV Carlos e Maria.   MARIA Ah! estava aqui! Como acha a minha festa?   CARLOS Esplêndida...    MARIA Não parece, pois que foge das salas para vir meditar aqui...    CARLOS Eu meditava?   MARIA Sem dúvida. Um homem que vem a um baile e foge das salas, é porque está aborrecido e quer meditar.   CARLOS Em quê?   MARIA Em qualquer coisa... no amor, por exemplo.   CARLOS Oh! sim... no amor... mas nem amor febril, insensato, louco... no amor, sim... porque eu amo...    MARIA (sorrindo)  A mim!  
 
CARLOS A ti... Tu és o meu céu, a minha vida, a minha alma, a minha única ambição...    MARIA E o passado?   CARLOS O passado foi um pesadelo: desapareceu ao romper da aurora... Não o evoquemos. Deixemo-lo dormir nas cinzas frias do esquecimento...    MARIA Não. Lembremo-lo. Devemos lembrá-lo. Devemos lembrá-lo. Eu não o amava e o senhor queria a todo custo possuir-me. Eu entreguei-me a outro homem, e o senhor publicou a minha desonra, supondo que exercia uma vingança sobre mim. Mas enganou-se. Não fez mais do que adivinhar o meu pensamento e satisfazer o meu desejo. Amame? Creio. Mas eu não o amo. Neste ponto o passado revive... Procurou atirar-me à irrisão pública não me ferio a vingança, porque realizou a minha ambição, mas ferio-me a ideia da afronta, e eu quero desafrontar-me.   CARLOS Mas o meu amor, Maria?   MARIA (sorrindo, ironicamente)  O amor, segundo pintam-no os poetas, é um menino bonito, alegre, travesso, que anda sempre armado de arcos e aljava cheia de douradas setas. Filho de Marte e Vênus, isto é, filho de um deus tão mau e de uma deusa tão sem pudor, o amor não podia deixar de ter defeitos no seu todo... Com as suas farpadas setas dilacera, sorrindo — sorrindo, como eu estou neste momento, — o coração daqueles que nele procuram a felicidade, e zomba depois — como eu estou fazendo agora — dos sofrimentos e dos estragos que causa... Tem por mais íntimo amigo o ciúme...    CARLOS Sim... o ciúme... é isso...    MARIA (sempre irônica)  O ciúme — perfeito contraste do amor, conquanto seu companheiro inseparável — é um rapaz magro, amarelo, de cabelo desgrenhado, unhas aduncas e enormes, mãos grandes, pés dignos das mãos, olhos rajados e sangue, com o coração maligno e o cérebro cheio sempre de maus pensamentos. Quando o amor não se sente satisfeito com os estragos que fez com as suas penetrantes setas e atrozes zombarias, ordena ao ciúme que acabe de rasgar o coração — ferido já — com as suas unhas martirizadoras. O ciúme abraça com entusiasmo o perverso menino, e, de mãos dadas, começam ambos, como se fora simples brinco de crianças, a grande obra da destruição, da desgraça, da dúvida e das grandes loucuras quase sempre. Assim, para que hei de eu amar? para que hei de deixar o certo pelo duvidoso? Para que hei de trocar a felicidade pela desgraça? para que hei de desprezar a liberdade pela escravidão?... As mulheres como eu desprezam, odeiam, mas não amam nunca. O senhor ferio-me, não na minha honra, mas no meu amor próprio... E se me ama, como acaba de dizer, o seu amor será a minha vingança. Além disso, uma mulher como eu não ama... um tolo como o senhor!   CARLOS (exaltado; avançando um passo)  Oh! é demais!   MARIA (calma)  Que diz?   CARLOS Digo... digo que és uma infame!   MARIA Senhor! (Com cinismo) Só agora é que o sabe?   CARLOS (indo a ela, vencido pela paixão)  Oh! não! Perdão!... 
  MARIA (com desprezo)  Ah! ah! ah! pateta! (Sai)
    
CENA V 
  CARLOS (caindo numa cadeira)  Oh! e ela nem sabe quanto amor vai neste coração!      CENA VI Carlos e Jorge.
JORGE Ainda, Carlos!... Vamos; lágrimas não pagam dívidas. O lugar não é próprio para meditações. Quando vamos a um baile é para nos divertirmos, gozarmos com excesso, dançarmos desesperadamente, bebermos à saúde e à custa de todo mundo.   CARLOS Mas foste tu que me arrastaste...    JORGE E que tem isso? Arrastei-te, é verdade, porque não podia ver-te sombrio como um túmulo... O que é o amor? Um brinco como outro qualquer, cuja continuidade acaba por aborrecer-nos. E tu tomas a sério o amor! Pateta!... Não te ama ela? Que importa?... Há mulheres de sobejo para fazerem-te esquecer as angústias estúpidas de um amor ridículo. (Levando-o ao fundo) Olha: vês aqueles salões repletos de gente? Lindas mulheres ali dançam, esperando um olhar, um sorriso, uma palavra para se renderem... Verdadeiras Junos de formosura, elas são obras de Deus nos olhos lânguidos, na fronte esplendida, nos ombros cor de rosa, nos lábios que pedem beijos... mas no coração... mulheres! demônios de perdição, anjos maus do homem que nelas crê como tu! Mas o que se há de fazer?... Nasceram assim: com o instinto da hipocrisia, da perfídia, da ingratidão; hão de assim morrer. O amor mais veemente que possa abrigar um coração de mulher, não merece cinco minutos de meditação. Queres saber qual é o único amor verdadeiro, desinteressado e nobre?... É o amor de mãe. Este, sim, que em se reúne o que há de mais belo, de mais sublime, de mais grandioso. Os mais o que são?... Nada. Nascem e passam como o fumo...    “Nuvens são, vem com vento, o vento as leva!”    CARLOS Basta! Que te importa o meu abatimento?... Tu não amas, não amaste nunca!   JORGE Não amei nunca? Quem sabe?   CARLOS Tu, um séptico?   JORGE O amor é como o vinho: alegra uns, desespera outros, mata aqueles, torna descrentes estes... A descrença!... oh! a descrença!... E sabes tu se eu nunca amei? Ah! ah! ah! disseste bem... A mulher para mim vale menos do que um copo de cerveja: a cerveja dá vida, a mulher mata; a cerveja é um bálsamo para a saúde, a mulher é um martírio para o coração. Mas não ia eu caindo no sentimentalismo?... Vamos dançar, Carlos!   CARLOS Dançar!... Quem pode mostrar nos lábios o sorriso da felicidade, quando o coração lhe chora sangue? Não posso... Vai tu, Jorge... Tu és feliz.   JORGE Estás sarcástico hoje, Carlos. Há pouco disseste que nunca amei; agora dizer que sou feliz...   
 
CARLOS Mas então...    JORGE Sou um homem incompreensível, é o que eu sou. De que me serve chorar um amor perdido, se lágrimas são inúteis para revivê-lo? De que me serve meditar sobre as dores que me cruciam o coração, se a meditação mais as aumenta ainda? Fiz juramento de rir de tudo e de todos. É um passatempo como outro qualquer. Se eu visse hoje meu próprio pai expirando numa enxerga, crê que não tinha uma lágrima sequer para derramar pelo pobre velho... O sofrimento matou-me o coração...    CARLOS Jorge, nunca me falaste assim... No teu coração há uma chaga velha, mas que ainda goteja sangue. Por que não me contas o teu segredo — esse fatal segredo que te mata, que te faz descrer da Providência?... Em que seio mais amigo podes derramar as tuas lágrimas?   JORGE Hoje, não. Um dia te contarei tudo...    CARLOS Dize-me ao menos o nome da mulher que...    JORGE O nome dessa mulher, Carlos, é um segredo que nunca revelarei.   CARLOS O nome dessa mulher, Jorge!   JORGE Não, Carlos...    CARLOS O nome dessa mulher! Quero sabê-lo!
 
  JORGE Pois bem... Já que assim o queres... (Baixando a vos) É... Maria...    CARLOS (recuando)  Maria!   JORGE Amei-a como um louco. Depois, ela prostituiu-se. Chorei, mas enxuguei as lágrimas; calquei no fundo do coração o meu amor, e folgo e rio... Todos julgam-me feliz; mas só eu sei o que sofro... De novo te aconselho: esqueça essa mulher, essa mulher é um demônio que mata! (Sai)  
 
CENA VII 
  CARLOS (depois de uma pausa)  Então o destino desta mulher é este?... Deixemos de ser covarde! Arranquemos do peito este amor que me devora!... Jorge sofre... essa mulher mata-o... Vinguemos o meu verdadeiro, o meu único amigo! (Ao fundo) Messalina infame, aceita a luva do desafio que te atiro a face sem pudor! Guerra sem tréguas, guerra de morte!...   
 
CENA VIII Carlos, Olímpia e Visconde.
  OLÍMPIA (de braço com o visconde, pelo fundo)  Ah! ah! ah! Este visconde é de uma boa fé admirável!   VISCONDE E não é verdade?   OLÍMPIA Pois o visconde não vê que Maria não o ama?  
 
VISCONDE Não me ama?   CARLOS Não, visconde, porque aquela mulher a ninguém ama. Tem o coração de estranho assim como a face. O que ela ama é o seu ouro, o seu ouro só!   OLÍMPIA Mas o senhor insulta-a.   VISCONDE É verdade: insulta-a.   CARLOS A ninguém insulto. Pois será insulto dizer a uma Messalina. — Tu não tens pudor, tu não tens sentimentos, tu não tens coração?   OLÍMPIA O senhor há de permitir que eu transmita à minha amiga o que acaba de dizer.   CARLOS (exaltando-se)  Pode ir. Diga-lhe que a chamei face de estranho, coração de pedra, que é uma mulher sem brio, sem sentimentos... uma mulher infame!   VISCONDE Minha Olímpia, se não quiseres dizer, digo eu. Não posso suportar que se insulte a formosa Maria!   OLÍMPIA (fingindo grande ciúme)  Visconde!   VISCONDE Está bom, minha bela, está bom... Não digo nada...    CARLOS Senhor visconde, há quanto tempo conhece a formosa Maria?   VISCONDE Quatro meses.   CARLOS E quanto tem gasto com ela?   VISCONDE Quinze a vinte contos... não sei bem, porque não tomo nota destas coisas.   CARLOS Ah! ah! ah!   VISCONDE Ri-se?   CARLOS Rio-me... da sua simplicidade.   VISCONDE Da minha simplicidade?   CARLOS Sim. Pois o senhor, que tem perto de sessenta anos, deixa-se ainda depenar dessa maneira?   VISCONDE Maria ama-me!   CARLOS Ao senhor! Pois julga-se ainda no caso de ser amado? A sua simplicidade chega ao ponto de julgar-se com direito ao amor de uma mulher, e, sobretudo, de uma mulher como Maria?...    OLÍMPIA (ao visconde) 
 
Bem feito!   VISCONDE (incomodado)  Ora essa! E por que não?   CARLOS É preciso que um homem seja muito tolo para acreditar!   VISCONDE Tolo!... O senhor chamou-me tolo!   OLÍMPIA Contenha-se, visconde.   VISCONDE Não posso conter-me! Chamou-me tolo!   OLÍMPIA (a Carlos)  O senhor é um insolente!   CARLOS A sua injúria não me atinge. Estou muito alto para que possa chegar até mim.   VISCONDE (passeando, a gesticular)  Chamou-me tolo! sim... chamou-me tolo!... Ora, isto não se atura!   OLÍMPIA Visconde...      CENA IX Os mesmos, Alfredo, e Maurício.   ALFREDO Quem foi que o chamou tolo, visconde?  
 
VISCONDE Ora, quem havia de ser? Foi este senhorzinho, que supõe ter o rei na barriga, desde que herdou uns miseráveis contos da tia!   CARLOS (avançando) Senhor Visconde!   VISCONDE (recuando)  Espinhe-se agora, se lhe parece!   OLÍMPIA Vamos, visconde.   VISCONDE Vamos, minha joia. Se fico, estouro!... (Saindo de braço com Olímpia, a gesticular) Chamou-me tolo!... sim, chamou-me tolo!      CENA X Carlos, Maurício e Alfredo.   ALFREDO É irrisório este homem! às vezes tenho pena.   MAURÍCIO De vê-lo ser depenado?   ALFREDO Não. De vê-lo representar papéis tão ridículos.      CENA XI Os mesmos e Elvira.   ELVIRA (simplesmente vestida)  Então, abandonam as salas?... Não dançam, meus senhores?  
 
ALFREDO Estás ardente hoje, pequena!   ELVIRA Nunca fui, meu caro senhor. Maria espera-os, e ela não está habituada a esperar.   CARLOS Tens razão. Ela é muito infame para ter essa condescendência!      CENA XII Os mesmos, Maria, Olímpia e Visconde.   MARIA O Sr. Carlos de Andrade é muito generoso!   MAURÍCIO Retire a expressão!   CARLOS Não desço da minha dignidade.   MAURÍCIO Retire a expressão, repito!   CARLOS Não seja... tolo!   VISCONDE (dando um pulo, a olhar para Maurício)  Tolo!   MAURÍCIO (avançando)  Ah!   MARIA (colocando-se de permeio) 
 
Não se incomode, meu amigo. O senhor Carlos de Andrade amame; eu desprezo-o. Eis a razão porque se mostra tão altivo.   CARLOS Eu não me mostro altivo! — mostro-me superior à canalha!   TODOS À canalha!   MARIA Ah! ah! ah! Não se incomodem, não se incomodem, meus amigos... Isto é fogo de amor!   CARLOS (levando as mãos ao peito)  Sim, à canalha infame... porque — desprezo-a... porque odeio-a... porque... (Caindo numa cadeira) Meu pobre coração!...      CENA XIII Os mesmos e Jorge.
 
JORGE (entrando na ocasião em que Carlos cai, corre a ele)  Ah!   MARIA (dando uma risada)  É um louco!   ELVIRA (um pouco afastada, à parte)  Já não a ama!   VISCONDE (gesticulando)  Bem feito!... Chamou-me tolo! sim... chamou-me tolo!   JORGE (que está amparando a cabeça de Carlos, imperiosamente ao Visconde) Silêncio! (Valsa, dentro)   
 
ATO III FANTASIAS  Sala rica. Ao subir o pano, a cena está vazia. Pouco depois entra Olímpia pelo fundo. Traja um luxuoso vestido de baile. À esquerda, mesa com um álbum e um tímpano. É noite de baile.   CENA I    OLÍMPIA Ninguém! É inacreditável, pois já são quase dez e meia... (Senta-se, levando aos lábios um bouquet de rosas que tem na mão) E vim voando para dançar a primeira quadrilha. Apenas tive tempo de vestir-me e de tomar o meu bouquet de rosas... As rosas são as flores da minha paixão... (Levantando-se) Mas estou admirada!... Esta solidão, este silêncio dão-me que pensar... (Dá duas pancadas no tímpano)     CENA II Olímpia e José.   OLÍMPIA Maria?   JOSÉ A senhora saiu.   OLÍMPIA Como? Abandona a casa, quando devia estar recebendo os convidados?   JOSÉ Não sei. A ordem que recebi foi de franquear a entrada a todos que se apresentassem.  
 
OLÍMPIA E sabe onde foi ela?   JOSÉ Sei e não sei.   OLÍMPIA Como?   JOSÉ Sei, porque ouvi-a dizer à criada, quando se vestia, e não sei, porque não me o disse.   OLÍMPIA É galante! Mas onde foi?   JOSÉ À casa do Sr. Carlos de Andrade...    OLÍMPIA (admirada)  À casa de Carlos?   JOSÉ Sim, senhora. Foi buscá-lo de carruagem.   OLÍMPIA (indo sentar-se, sempre admirada)  Não é possível!   JOSÉ Tanto é, que foi.   OLÍMPIA (consigo)  Pois ela animou-se, depois do que passou?... (A José) Bem.   JOSÉ Era só isto?  
 
OLÍMPIA Só. Pode retirar-se.   JOSÉ Às ordens. (Sai)
     
CENA III
  OLÍMPIA Estou abismada! Mas não é possível... Este homem enganou-se certamente. Maria não se abaixava a tanto... Talvez fosse à casa de outro qualquer...      CENA IV Olímpia e Maria.
 
MARIA Ah! já estás cá?   OLÍMPIA É verdade, e sobre brasas.   MARIA Por quê?   OLÍMPIA Disse-me o teu criado que tinhas ido à casa de Carlos?   MARIA Fui.   OLÍMPIA Mas.   MARIA Parece-te que é descer muito, não?   OLÍMPIA Sem dúvida.   MARIA Pois estás enganada.   OLÍMPIA Como?   MARIA É querer subir. Sabes que aquele rapaz é rico?   OLÍMPIA Sei.   MARIA E então?   OLÍMPIA Então, o quê?   MARIA É preciso não afugentá-lo.   OLÍMPIA Mas ele insultou-te...    MARIA E como devemos nós receber os insultos que nos atiram à face?   OLÍMPIA Com a cólera no coração e um insulto maior nos lábios.   MARIA Não. Com os olhos alegres e o sorriso nos lábios; com o rosto tranquilo e o coração de mármore...    OLÍMPIA Mas...    MARIA Tenho mais experiência do que tu. Como sabes, aquele rapaz amame. O que ele disse não foi um insulto: foi um simples desabado. Momentos antes, havia-o eu tratado asperamente. O desabafo era justo. Não me ofendi. Sorri-me. Recebi tudo tão tranquila como nos melhores dias da minha vida...    OLÍMPIA Onde estão os teus convidados?   MARIA Estão no salão azul.   OLÍMPIA E já estás pronta?   MARIA Não. Vou vestir-me.   OLÍMPIA Pois apressa-te. Já são mais de dez horas.     CENA V As mesmas e Elvira.   ELVIRA (traja um vestido escruto, inteiramente simples)  Boa noite, minhas amigas.   MARIA Como estás bonita hoje! Mas vem cá, minha querida: é preciso mudares de pensar...    ELVIRA Como?   MARIA Gostas tanto das cores sentimentais!   ELVIRA Ah! é porque ando sempre de luto.   OLÍMPIA De luto! Por quem?   ELVIRA Por mim...    OLÍMPIA Ora, esta Elvira tem cada lembrança! Ah! ah! ah!   MARIA Ah! ah! ah! És uma tola!   ELVIRA Não escarneçam. Mal sabes tu, Olímpia, como tenho pena de ti, quando te vejo calcar aos pés todos os sentimentos bons... Mal sabes tu, Maria, como me rasgas o coração quando escarneces de tudo o que há de mais nobre e de mais sagrado. Bem me conheço... Sei que sou uma mulher indigna... Mas quando eu passo e me apontam ao dedo, quando me atiram uma frase dúbia, uma palavra de sentido duvidoso, eu choro... sinto o coração despedaçar-se-me e tenho remorsos...    MARIA Ora, minha amiga, não há quem te compreenda! Vou vestir-me. (Sai)   
 
CENA VI Elvira e Olímpia.
  OLÍMPIA De onde provém essa tristeza com que estás hoje, Elvira?   ELVIRA Não sei... (Senta-se)   OLÍMPIA Nada... Conquanto sempre fosses sentimental, tens algum segredo que te entristece. Conta-me o.   ELVIRA Não tenho segredo algum...    OLÍMPIA Enganas-me. Estás doente?   ELVIRA Não...    OLÍMPIA Amas?   ELVIRA (erguendo-se)  Eu! (Com esforço) Não...    OLÍMPIA Oh! oh! Como disseste esse — não!... — Amas, já sei.   ELVIRA Pois bem... sim... amo... Mas é um amor fatal este, é um martírio... Se eu não posso dizer ao homem dos meus pensamentos: — “Amo-te! amo-te muito!... Sou uma Messalina, mas o meu amor é virgem, é puro, é santo! Recebe-o, e em paga dá-me um pouco da tua compaixão!...”    OLÍMPIA Mas disseste que não podias revelar o teu amor ao homem a quem amas?   ELVIRA Não posso...    OLÍMPIA Por quê?   ELVIRA Porque o amor no meu coração — é um crime, nos meus lábios — um sacrilégio...    OLÍMPIA Ora!   ELVIRA O amor é tão divino, tão de Deus, que se eu dissesse a um homem: — Amo-te — ele teria o direito de cuspir-me na face, de matar-me até...    OLÍMPIA Deixa-te disse... Deitaria pela janela fora a última moeda, se lhe impusesses essa condição.   ELVIRA Além disso, o homem a quem amo é rico. Suporia que me declarei apaixonada para fazer jus à sua fortuna...    OLÍMPIA (irônica)  E se assim fosse!   ELVIRA Se assim fosse, eu seria a criatura mais vil, mais infame, mais abjeta... mereceria o ódio dos homens e a maldição de Deus!   OLÍMPIA Mas a quem amas?   ELVIRA É inútil perguntares-me o. Nunca to direi. Amo. Sinto que morrerei deste amor... Paciência... Oh! um sofrimento de mais ou de menos...    OLÍMPIA Minha amiga, esse amor é um castigo. Crê.   ELVIRA Quem sabe?... Talvez seja o perdão de Deus!   OLÍMPIA Olha: se Maria sabe que estás apaixonada, ela, que crê tanto no amor como em Deus, criva-te de sátiras.   ELVIRA Mas tu nada lhe dirás, não é assim? 
 
(Vários mascarados entram pela direita e saem pela esquerda. Ouve-se dentro a primeira parte de uma quadrilha)   OLÍMPIA Vou dançar. Adeus. (Sai, direita)      CENA VII   ELVIRA Oh! como são miseráveis estas mulheres! Quando me lembro que somos iguais, tenho vontade de morrer!... E ele?... Ama outra, ama uma mulher que não o ama... chora por uma mulher que o despreza... Mas se ele soubesse que eu o amo tanto... quem sabe?...
 
Mas quem lh’o dirá?... Eu?... Não... Tenho medo de ser odiada... Oh! nunca de meus lábios ouvirá ele uma palavra de amor... um queixume... mas tenho tanta pena de vê-lo sofrer!... (Senta-se a um lado, pensativa)     CENA VIII Elvira, Alfredo e Maurício.   ALFREDO (com um costume de truão)  Ora, vamos: nada de considerações. Dizes que ela gosta de ti?   MAURÍCIO (com um costume de antigo fidalgo espanhol)  Como uma louca.   ALFREDO Pois então, trata de seduzi-la. Se for tão bonita assim, Maria não desgostará de contá-la nas fileiras dos seus exércitos.   MAURÍCIO (a Elvira)  Em que pensas, minha gentil gazela?   ELVIRA (fria)  Em nada.   MAURÍCIO Não danças?   ELVIRA Não.   MAURÍCIO (sentando-se ao lado dela)  Estás insaciável hoje.   ELVIRA (levantando-se)  Que lhe importa?  
 
MAURÍCIO Ah! ah!   ELVIRA Digam-me: a respeito de quem falavam há pouco?   MAURÍCIO De uma rapariga bonita... como tu!   ELVIRA Chama-se...    MAURÍCIO Amélia.   ELVIRA E é filha...    MAURÍCIO De um pobre diabo, — um marceneiro.   ELVIRA E o senhor pretende seduzi-la?   MAURÍCIO Boa dúvida!   ELVIRA Mais uma infâmia!   MAURÍCIO Como!   ELVIRA Mas os senhores estão tão habituados à infâmia!...    ALFREDO Falas sério?   ELVIRA Pois não vê?   MAURÍCIO Ora!   ELVIRA Que mal lhes fez essa pobre rapariga?... Por que querem seduzi-la?... Não seria mais bonito que os senhores, ricos como são, protegessemna, casassem-na, do que a desonrassem, do que a atirasse ao vício, à depravação?   MAURÍCIO Estás brincando! Pois eu vou lá gastar um ceitil, sem um fim, seja qual for?     CENA IX Os mesmos, Olímpia, Maria e Visconde.   OLÍMPIA O visconde está hoje de um espírito transcendental! Se não tirasse a máscara, ninguém o conhecia.   VISCONDE (imita um macaco no vestuário)  Obrigado, meu povo!   ALFREDO Visconde, quem lhe sugeriu a ideia de metamorfosear-se em macaco?   VISCONDE Eu. Pois eu não posso ter uma ideia? E o senhor, quem lhe disse que se vestisse de truão?  
 
ALFREDO O visconde não só pode ter uma ideia, como até uma dúzia; mas não o julgo capaz de tal.   MARIA Deixe-o, visconde, e cumpra o prometido. (Maria traja luxuosamente)   VISCONDE Mas o que prometi eu?   MARIA Já se esqueceu? Cante. Estou ansiosa por ouvi-lo.   VISCONDE Não sei cantar.   MARIA Mas há de cantar.   MAURÍCIO O visconde hoje só assobia.   VISCONDE Não canto.   MARIA Ora, cante...    VISCONDE Estou constipado.   OLÍMPIA Isso não impede.   VISCONDE Impede, sim, senhora, impede. Já disse que não canto e não canto mesmo. Sou teimoso como um jumento.
 
  ALFREDO Similia cum similibus facile congregantur.   VISCONDE Como?   ALFREDO Quero dizer: — birds of a feather all flock together.   VISCONDE Isso quer dizer aquilo?   ALFREDO Isto quer dizer isto mesmo. É um adágio inglês. Sabe inglês?   VISCONDE Eu?   MAURÍCIO A pergunta é ociosa. Um macaco sabendo inglês deve ser engraçado!   MARIA (à Elvira)  Ainda não dançaste?   ELVIRA Não.   MARIA Hás de dançar agora. Quando se vai a um baile, é para se dançar. 
 
(Valsa, dentro)   ELVIRA Desculpa, mas não posso.  
 
VISCONDE Não pode?... Por que não pode?... Há de dançar comigo.   ELVIRA (sorrindo)  Com o senhor?   VISCONDE Esta valsa está mesmo de fazer os anjos andaram à rosa, e eu quero dançá-la. Vamos?   ELVIRA Não posso.   VISCONDE Pode, sim; vamos. (Quer tomar-lhe o braço)   ELVIRA (afastando-se)  Não seja importuno, Sr. visconde!   TODOS Ah! ah! ah!   ALFREDO Pobre macaco!   MARIA (a Elvira)  Fazes-me o favor?   ELVIRA Enfim...    VISCONDE Sempre cedeu. Ora graças a Deus!   ELVIRA Como é que os macacos valsam?  
 
TODOS Ah! ah! ah!   MARIA Nunca vi o visconde dançar, e quero apreciá-lo.   VISCONDE Pois aprecia agora. 
 
(Saem todos pela direita)   ALFREDO e MAURÍCIO (após o Visconde)  Macaco! macaco!      CENA X Jorge e Carlos.   JORGE (traja usualmente de preto)  Recomendo-te de novo a força e a coragem. Não mostres mais a essa mulher que a amas. Disseste-me que foi à tua casa?   CARLOS (traja usualmente de preto)  Foi.   JORGE Cautela. Esta mulher é um demônio. Todo o cuidado com ela é pouco. Viemos demasiado tarde. Não sei como anda isso aí por dentro. Vou ver.   CARLOS Eu fico.   JORGE Pois fica; mas toma cuidado. (Sai pela direita)    
 
CENA XI
  CARLOS Não sei o que sinto... Parece que uma vida nova se abre para mim... Ela foi procurar-me... Pediu-me que viesse... instou, suplicou... vi-lhe até lágrimas nos olhos... Talvez que me ame ainda... Quem sabe? Oh! como eu serei feliz então! Vê-la todos os dias, a todos os instantes, sempre carinhosa, bela sempre!... (Pausa) E se ela foi procurar-me, não por amor, mas por uma fantasia, por um capricho?... Se nunca me amar?... Oh! dúvida infernal, que, apenas, a esperança me sorri, lanças por terra, desfazes, sem dó, as mais formosas flores do meu mais ardente desejo!... (Senta-se à esquerda, pensativo)   
 CENA XII Carlos e Elvira.
 
ELVIRA (vai entrar pela direita e para. À parte)  Ei-lo. Pensa talvez em Maria, que nem dele se lembra... É sempre assim... Oh! se ele soubesse... Não me animo a dizer-lhe uma palavra... Tenho medo...    CARLOS (sem vê-la)  Oh! Maria, Maria! Se não tens de amar-me, se o teu coração é insensível e frio ao amor, mata-me, mas não me deixes sofrer este martírio!...    ELVIRA Oh! isto mata! Oh! meu Deus!   CARLOS (sem vê-la)  Sofro tanto!... E ela folga e nem se lembra que bem perto de se há um coração que sofre e que chora! (Oculta o rosto nas mãos)   ELVIRA (avançando e tocando-lhe timidamente no ombro)  Sofre?... 
 
  CARLOS (erguendo-se)  Ah! estavas aqui?   ELVIRA Não. Cheguei agora. Mas vejo-o tão triste...    CARLOS É engano teu. Estou cansado, mas nada sinto...    ELVIRA O senhor sofre, eu sei...    CARLOS Sabes?   ELVIRA Sei.   CARLOS Mas...    ELVIRA Animo! Maria não o ama; mas talvez que o ame ainda.   CARLOS (com desalento)  Talvez!   ELVIRA Descrê tão cedo? Pois olha: eu, que sou pobre, ou, que estou só no mundo, sem pai, sem mãe, sem um irmão, sem um amigo, ao menos em cujo seio possa derramar as minhas lágrimas, a quem possa pedir conselho, amparo e proteção — eu tenho esperança... Ai! da criatura que perde a esperança!   CARLOS Mas de que tens esperança?
 
  ELVIRA De regenerar-me, de tornar a ser uma mulher de bem, de ser feliz. Tenho sofrido muito. Preciso um pouco de descanso, de tranquilidade. E tenho esperança que se não encontrar o descanso na terra, Deus se compadecerá de mim; dar-mo-á no céu...    CARLOS Vem cá, minha Elvira... (Toma-lhe as mãos) Como és formosa assim! Olha; se eu não sentisse no coração um amor tão forte, tão veemente... amava-te...    ELVIRA (estremecendo)  Amava-me?...    CARLOS Amava-te, sim. Tu és meiga, és boa, és bela. Que mais precisava eu para ser feliz?... Mas Maria é o meu sonho de todas as noites, a minha meditação de todos os dias... Se para merecer-lhe um olhar, um sorriso, uma palavra, fosse preciso que eu desse o meu sangue, a minha vida, eu, de bom grado, daria a minha vida e o meu sangue... Amo-a... Que importa o passado?... Que importa o presente?   ELVIRA (comovida)  E se ela nunca o amar?...    CARLOS Morrerei... porque este amor é a única esperança da minha vida...    ELVIRA Eu pedirei por se, e ela não será tão inflexível, que não me atenda...    CARLOS Oh! não lhe diga uma palavra. Ela suporá que fui eu que a mandei...    ELVIRA Mas eu lhe direi que não.
 
  CARLOS Não a acreditará.   ELVIRA Pois bem: nada lhe direi, mas com uma condição...    CARLOS Qual é?...    ELVIRA (timidamente, depois de uma pausa)  É que...    CARLOS (tomando-lhe as mãos)  Fala.   ELVIRA É que há de amar-me... como a uma irmã... Promete?...    CARLOS (beijando-lhe a mão)  Pois se eu já te quero tanto!   ELVIRA Oh! obrigada! obrigada!      CENA XIII Os mesmos, Olímpia, Maria, Jorge, Alfredo, Maurício, Mascarados.   MARIA (a Carlos)  Estava aqui? Por que não me procurou?   JORGE (baixo a Carlos)  Cuidado!   MARIA Não dança?
 
  CARLOS Não.   MARIA Há de dançar comigo. (Música, dentro) Meus senhores, aproveitem a música. Uma valsa! (A Carlos) Dançamos, sim?   CARLOS (hesitando)  Maria...    MARIA (com extrema meiguice)  Peço-lhe como uma graça.   CARLOS (à parte)  Não posso resistir...    TODOS À valsa!... 
 
(Dançam todos, menos Jorge e Elvira)   CARLOS (à terceira ou quarta volta, desprende-se de Maria e vai cair numa cadeira)  Meu Deus! 
 
(Jorge corre a ele)   TODOS (acudindo)  O que é?   JORGE (depois de contemplar Carlos alguns momentos, fitando Maria)  É a peçonha da Messalina!   ELVIRA (ocultando o rosto nas mãos)  Ah!  
 
MARIA (dando uma risada)  Foi... um beijo!  
 
 
ATO IV MADALENA Em casa de Elvira. — Sala simples, mas decente. Ao subir o pano, Elvira aparece à direita e Maria ao fundo. É dia.   CENA I Elvira e Maria.   ELVIRA Ah!   MARIA (abraçando-a)  Venho visitar-te, já que não apareces.   ELVIRA Estive doente.   MARIA Com efeito, acho-te pálida. É preciso tratares-te, minha querida. Dessa maneira não vais bem. Tu não andas boa. Quase desmaiaste em minha casa, na noite do baile, depois adoeceste, e gravemente, a julgar pela tua fisionomia... É preciso tratares-te...    ELVIRA Para quê?   MARIA Para ficares boa, para gozares a vida, para seres feliz, como eu sou.   ELVIRA Feliz... enquanto outros sofrem, Maria. Essa tua felicidade custa lágrimas, custa torturas...    MARIA E quem é que chora?   ELVIRA Carlos, que te ama... Na noite do baile, falou-me em ti, na tua beleza, no teu coração. Depois, começou a falar em amor, a lastimar-se...    MARIA Esse rapaz é um doido. Não devia nunca ter pensado em amar-me. Na noite do baile fez-me uma declaração cheia de lágrimas... e de reticências. Ridicularizei-o. Foi este o motivo porque, em linguagem de arreeiro, chamou-me — infame canalha — em minha própria casa. Ora, bem vês que uma mulher da minha tempera não ama, porque o amor é o cativeiro, e eu quero ser livre, inteiramente livre...    ELVIRA Mas ele sofre tanto, Maria!   MARIA São sofrimentos esses que passam logo. Aconselha-o, e ele mudará de ideias.   ELVIRA Carlos ama-te e há de amar-te sempre.   MARIA Tanto pior para ele. Eu não posso amá-lo. Tenho razões fortes para isso.   ELVIRA Para o amor não há razões. Tu não o amas porque amas outro.   MARIA Ah! ah! ah! A ninguém amo. Mas suponhamos que seja como dizes. Por ventura não tenho o direito de dar o meu coração a quem bem me parecer? A ninguém amo. Gosto de ver esses homens me renderem mil finezas, satisfazerem os meus menores caprichos, apaixonarem-se por mim, e nada mais.   ELVIRA Então, não o amarias nunca?   MARIA Nunca.   ELVIRA Fazer mal. Estou convencida que o amor de Carlos seria a tua felicidade...    MARIA Quem testemunhasse o interesse que por ele tomas, apostaria que és sua intermediaria. Eu, pelo menos, estou inclinada a acreditá-lo...    ELVIRA Isso disse-me ele...    MARIA Sim?...    ELVIRA Sim, que tu dirias isso... Mas eu é que não me julgarias capaz de representar semelhante papel...    MARIA E por que não?   ELVIRA Maria!   MARIA Se os estimas, segundo creio, que mal há que te interesses por ele?   ELVIRA Estimo-o, sim; mas...    MARIA Pois fica com ele. Guarda-o para ti e coloca-o dentro de uma redoma para não apanhar pó... Ah! ah! ah!     CENA II As mesmas e Olímpia.   OLÍMPIA Bom dia, minhas amigas! Venho alegre como um passarinho na primavera! Estes homens! Quando deixarão estes homens de ser parvos! Ora, adivinha lá, Maria, o que me disseram hoje...    MARIA Não sei.   OLÍMPIA Já fui à tua casa para dar-te a grande notícia, mas disseram-me que estavas aqui, e vim correndo... Pois é público que o teu amante está arruinado...    MARIA O meu amante?... Bem sabes que não tenho.   OLÍMPIA Ora! E o que é o Visconde?   MARIA O visconde é um tolo. Meteu-se-lhe na cabeça que há de ser meu amante, e não há quem disso o dissuada. Gasta comigo todo o seu dinheiro, o que muito lhe agradeço, — porque enquanto ele empobrece, enriqueço eu, — e passa a vida em minha casa, — o que pouco abalo me dá, porque a sua presença não me impede de fazer o que quero. Está arruinado, dizes tu? Que importa?... Não é o primeiro que se tem arruinado por minha causa...    ELVIRA E não tens pena?   MARIA Pena de quê?... Ora vamos; tu não compreendes a vida. Viver é fácil, mas saber viver não é para todos. Não são quatro lágrimas que me comovem, nem dez suspiros que me abrandam... Olímpia. Mas o que faz o visconde?... Chora?...    OLÍMPIA Ri-se. Diz que dá por bem empregada a fortuna que contigo esbanjou, e que sente não ter outra ainda maior para depor-te aos pés.   MARIA E querem estes homens que se os ame, que nos sujeitemos às suas vontades e aos seus caprichos!... Conheci um que ingeriu uma dose de azul da Prússia, somente porque uma rapariga negou-lhe um beijo; outro, que fez-se eremita, porque a namorada recusou-lhe não sei o quê; outro, que se enforcou, porque morreu-lhe a noiva!... E ainda há mulheres que amam!... Essas que se desesperam, que choram por um homem, que se finam de paixão, que morrem de amor, merecem mais do que desprezo... merecem ser azorragadas na praça pública...    ELVIRA E sabes tu se hás de amar um dia?...    MARIA Ah! ah! ah! Pois eu posso lá amar, eu, que desprezo os homens, que me rio deles, que os detesto?   ELVIRA Não fales com essa isenção. Hás de amar um dia, não com um amor vulgar, mas com um amor veemente, bem do íntimo da alma, eterno. E quando amares assim, gostarás que o homem dos teus pensamentos, o homem, por quem viveres e serás capaz de morrer, te diga em face: — “Pois eu posso lá amar-te, eu, que desprezo as mulheres, que me rio delas, que as detesto?”   OLÍMPIA A mulher que não quiser ouvir essas palavras, faça como eu, faça como Maria.   MARIA É isso, minha Olímpia. Só tu me compreendes; só nós compreendemos a vida.   ELVIRA Se a esse modo de encarar as coisas chama-se — compreender a vida, — eu não posso nem quero compreendê-la.   MARIA Mas o que queres então?   ELVIRA Pouco, bem pouco mesmo. Uma casinha branca na encosta verdejante de um outeiro; um laranjal, ao lado, extenso, verde, coroado de flores, onde, à tardinha, langues suspirassem as auras casando as suas doces melodias ao melodioso trovar dos passarinhos alegres; à frente, um laguinho, azul e suspiroso como o primeiro sonho de amor de uma donzela; boiando nas águas transparentes do lago, uma barquinha, esguia, alva como um cisne, em que eu fosse, descuidosa e feliz, visitar as floridas margens, apanhar conchinhas e correr na prateada areia; ao fundo, um jardinzinho, em cujas grades azuis se entrelaçassem as trepadeiras modestas; lírios num canteiro, rosas noutro, violetas neste, e naquele — a flor dos meus extremos, a flor do amor eterno — a sempre-viva modesta; mais além, um bosquezinho feiticeiro, onde eu fosse, ao descambar do sol, falar de amor às auras, à flor, ao monte, ao céu sereno. E eu ali, só nesse paraisozinho das puras alegrias, vivendo esquecida do mundo, das festas, dos prazeres ruidosos, da perdição enfim...    MARIA Ah! ah! ah!   OLÍMPIA (ao mesmo tempo)  Ah! ah! ah!   MARIA Já acabaste?   OLÍMPIA Estás muito poética hoje! Olha: queres saber uma coisa? Põe a poesia de lado e ocupa-te com a realidade, que lucras mais.   MARIA Esta Elvira está apaixonada ou...    OLÍMPIA Está apaixonada.   MARIA Por quem?   OLÍMPIA Por...    ELVIRA (suplicante)  Olímpia!     CENA III As mesmas, Alfredo e Maurício.   ALFREDO Ora vivam!   MAURÍCIO Maria, sabes que estou hoje como um pintassilgo que foge à gaiola depois de um ano de cativeiro?   MARIA Sim? Tirou a sorte grande?   MAURÍCIO Melhor do que isso.   MARIA O que foi então?   MAURÍCIO Uma soberba conquista. Tens mais uma Vênus para os teus exércitos. A pequena esquivou-se muito, mas cedeu afinal. É um mimo, uma joia.   MARIA E onde está esse portento?   MAURÍCIO Hoje, em casa do pai; de amanhã em diante em toda a parte, menos em casa do pai.   MARIA E quem é o pai?   ALFREDO Um marceneiro.   MARIA Ora! Conquista de água-furtada! Não lhe faz honra a aventura, meu D. João das dúzias! (Jorge e Carlos aparecem ao fundo e somem-se)  
ELVIRA Então, sempre realizou o seu intento, não?   MAURÍCIO Por certo.   ELVIRA Fez mal. Que destino pretende dar agora a essa moça?   MAURÍCIO Nenhum. 
(Jorge aparece e fica encostado a uma das portas do fundo)   ELVIRA Quer vê-la então perdida, sem sentimentos, sem brio, como eu e como tantas outras, não?   MAURÍCIO Ora!   ELVIRA (perdendo gradualmente a calma)  Praticou uma infâmia!   MAURÍCIO (avançando um passo)  Elvira!   ELVIRA (medindo-o com a vista)  Estou em minha casa, meu caro senhor, e em minha casa só eu tenho o direito de levantar a voz. Praticou uma infâmia, repito. O homem que abusa da fraqueza de uma pobre mulher para seduzi-la, é um miserável! Pedi-lhe que deixasse tranquila essa rapariga em casa de seus pais. O senhor não me atendeu. Sabe agora quais serão as consequências do seu miserável triunfo! As lágrimas para a infeliz mãe, que com tanto trabalho a criou; o desespero para o pai, que nela concentrava todas as suas alegrias; a morte talvez para ambos...   
 
MAURÍCIO Que me importa?   ELVIRA Foi um passo glorioso, foi um triunfo esplêndido! Pois não é uma glória seduzir uma fraca mulher?... Não é de um triunfo lançar a desordem, o desespero, a morte ao seio de uma família?... E o senhor ufana-se de haver praticado uma ação semelhante!... Devia antes curvar a fronte, arrepender-se e correr à casa da sua vítima para reparar o mal. Eu sou uma mulher perdida, mas ainda tenho coração, o sentimento da dignidade ainda me não abandonou...    MAURÍCIO (aborrecido)  Ora!   ELVIRA Vá! Continue a seduzir, a desonrar, a matar de vergonha!... Que importa que atrás fiquem as filhas chorando lágrimas de sangue, fiquem os pais amaldiçoando o infame?... Vá! O primeiro passo está dado... Arraste essa infeliz pelos cabelos, cuspa-lhe na face — ainda quente dos seus ósculos fatais, — calque-a aos pés e atire-a ao abismo imenso, sem fundo, da prostituição! Leve-a de orgia em orgia, de bordel em bordel, até vê-la bem pervertida, bem mesquinha, bem vil... Depois... abandone-a ou mate-a... O senhor é um miserável!     CENA IV Os mesmos e Jorge.   JORGE (descendo)  Bravo. Elvira! Bravo!   TODOS Como?   JORGE Falaste como um anjo: o homem que abusa da fraqueza de uma pobre mulher para seduzi-la é um infame!   MAURÍCIO Senhor!   JORGE É um infame, sim! Pois que outro nome quer que se lhe dê?... Se o senhor tivesse uma irmã, se sua irmã fosse seduzida, o que faria ao sedutor?   MAURÍCIO Nada. O que havia de fazer?   JORGE Não o obrigaria a reparar o mal?   MAURÍCIO Não.   Jorge. Não o mataria?   MAURÍCIO Não   JORGE Oh! pois então não há brio nesse rosto, nesse coração não há sentimento?   MAURÍCIO Insulta-me?   JORGE Saia, senhor, saia imediatamente!   MAURÍCIO Mas o que tem o senhor com os meus atos?
 
  JORGE O que tenho? Queria o senhor talvez que eu lhe apertasse a mão e dissesse: — “Muito bem! avante!” — Se eu lhe estendesse a minha mão, manchá-la-ia, se eu lhe dissesse isso, seria tão infame, tão miserável como o senhor!   MAURÍCIO Ah! é de mais!   ELVIRA Senhores...    JORGE E o senhor vem contar a sua aviltante aventura, supondo ter praticado um ato glorioso... e diz que quer ver a mulher que seduziu — sem sentimentos, sem brio! Esta mulher disse-lhe: — “Vá, arrastea pelos cabelos, cuspa-lhe na face, calque-a aos pés, mate-a!...” — Eu lhe digo o mesmo, menos que a mate, para que cada lágrima da sua vítima seja-lhe um remorso, cada soluço — um martírio, cada miséria — uma agonia!... Vá... A sua presença revolta-me!   MAURÍCIO Nem mais uma palavra!   JORGE (calmo)  Saia!   MAURÍCIO Senhor!   JORGE Saia, já disse!   MAURÍCIO Eu saio... mas cuidado! (Sai)  
 
CENA V Os mesmos, Menos Maurício.
  MARIA (a Alfredo)  Não vai com o seu amigo?   ALFREDO (sentando-se)  Nada... Estou melhor aqui.   MARIA Elvira, a tua casa está hoje pior do que um mercado. Vou-me.   OLÍMPIA Eu também.   ALFREDO E eu também.   MARIA (a Elvira)  Podes dizer ao senhor Carlos de Andrade que perde o seu tempo enviando-me embaixadores.   ELVIRA Ofendes-me...    MARIA Ora... Não te retraias, minha sensitiva! Ah! é verdade: quando tiveres a tua casinha branca, o teu jardinzinho e a tua barquinha, não te esqueças de prevenir-me, sim?... (Sai, rindo às gargalhadas com Olímpia. Alfredo segue-as)      CENA VI Jorge e Elvira.   JORGE (tomando-lhe as mãos) 
 
És um anjo, Elvira!   ELVIRA Sou uma mulher que sente e que ama...    JORGE Amas?... A quem?   ELVIRA A ninguém... É um segredo.   JORGE Nem a mim o confias?   ELVIRA Ao senhor menos que a qualquer outro...    JORGE Por quê?   ELVIRA Porque se eu lhe o confiasse agora, daqui a pouco estaria descoberto...    JORGE Não... Dize-me a quem amas, que eu juro guardar o teu segredo como o sacerdote guarda o segredo da confissão.   ELVIRA Não posso...    JORGE Elvira, sê minha irmã. Sei que estás arrependida, e o arrependimento é a regeneração. Ama-me como amarias a um irmão, se o tivesses. Confia-me as tuas mágoas...    ELVIRA Senhor Jorge!...    JORGE Não me julgas digno de ser teu irmão?   ELVIRA Oh! não! Vivo tão só no mundo, e o senhor é tão generoso... Mas não me peça que diga o nome do homem a quem amo... O meu amor seria repelido, eu seria desprezada...    JORGE Quem sabe?   ELVIRA Eu, que não posso amar, porque uma mulher como eu não pode, não deve amar; eu, que me sinto feliz amando em segredo, e que seria desgraçada se revelasse os meus sentimentos. O senhor é um homem honrado. Não me forçará, de certo, a dar um passo que me repugna...    JORGE Mas já jurei guardar segredo. Além de que, para eu saber a quem amas, não é preciso que me o digas...    ELVIRA Como?   JORGE Porque tenho observado muito, e as minhas observações nunca me enganam.   ELVIRA Que irmãozinho tenho eu! É mais curioso do que uma mulher!   JORGE Mas vamos: a quem amas?  
 
ELVIRA E se eu lhe confiar o meu segredo?   JORGE Serei mudo como um túmulo.   ELVIRA Pois bem: eu amo...    JORGE A quem?   ELVIRA Eu amo...    JORGE Não tenhas receio... Receio por quê?   ELVIRA (escondendo o rosto nas mãos)  Ao Sr. Carlos...    JORGE As minhas previsões não me enganaram... (Carlos aparece ao fundo) Minha querida, fica sabendo que um segredo nunca se revela em voz alta... Olha: as paredes têm ouvidos...    ELVIRA (voltando-se)  Ah! O senhor atraiçoou-me!...      CENA VII Os mesmos e Carlos.   CARLOS (descendo e apertando com reconhecimento as mãos de Elvira) Obrigado, Elvira, obrigado!   ELVIRA (humilde) 
 
Não me fica odiando, não?...    CARLOS A ti, pobre anjo, que te sacrificavas para ver-me feliz!... Oh! não!... amo-te!... (Beija-lhe a mão)      CENA VIII Os mesmos e Maria.
 
MARIA Bravo! Quadro soberbo!... (Do fundo)   CARLOS (recuando)  Maria...    JORGE Nem mais um passo! Não venha empestar com o seu hálito impuro este amor que santifica a alma, que purifica o corpo e que ressuscita uma mulher.   ELVIRA (correndo a ela)  Vem, minha amiga... Dá-me um abraço... Sou tão feliz!   MARIA (afastando-a)  Pobre criança! Desprezas então a nossa vida alegre, a nossa vida de liberdade plena, para te entregares a um homem que te não ama, que nunca te amou, porque me ama, — a mim, a Messalina, a mulher altiva, a mulher que escarnece do amor e de quem ama?...    CARLOS (que tem estado de cabeça baixa, levantando-a e fitando Maria)  Amei-a... Para que negá-lo? Mas hoje desprezo-a... Não a odeio porque desceria da minha dignidade se a odiasse!   JORGE Muito bem, Carlos!  
 
MARIA Ah! ah! ah! Pois bem: fiquem embebidos nas cismas langorosas desse amor divino — que me faz rir — que eu continuarei a viver como tenho vivido: — alegre e satisfeita, esquecida do dia de ontem e meditando um novo prazer para o dia de amanhã! Adeus, Elvira. Tu és uma mulher perdida, e a Messalina será sempre a Messalina!   CARLOS Maria!...    ELVIRA Por que me tratas assim?...    MARIA Porque o mereces, porque és uma mulher morta, e eu costumo cuspir a saliva do desprezo à face das mulheres que morrem como tu!...    ELVIRA (suplicante, chorando e com vos sumida)  Maria...    JORGE Saia! Aqui não há mais Messalina: há uma mulher que se regenera pelo amor, uma mulher honrada, a quem estendo a minha mão, porque não temo manchá-la! (Estende a mão a Elvira)   ELVIRA (beijando-lhe a mão)  Senhor Jorge!   JORGE Pode sair. Vá. Continue a ser o que foi e o que é. Se se arrependesse, seria eu o primeiro a arrancá-la das trevas do vício, para encaminhála à luz. Mas não se arrepende, não quer arrepender-se... Faz mal...    MARIA Ah! ah! ah! Vou arrepender-me em casa de Olímpia, entre uma taça de champanhe e os sorrisos do visconde... Voltei cá para convidá-los a assistirem à minha conversão... Senhor Jorge, Sr. Carlos de Andrade, não querem vir fazer uma saúde à rainha da festa?... (Saindo) Ah! ah! ah! (Sai)      CENA IX Jorge, Elvira e Carlos.   ELVIRA (aproximando-se, humildemente)  Senhor Jorge, quanto lhe devo!   JORGE (entre os dois)  Agora, meus filhos, desprezo eterno ao passado; olhos no céu, e caminhar para o futuro! A tempestade passou. O sol das alegrias íntimas desponta: banhei-vos na sua luz! (Carlos e Elvira abraçam-no com efusão)    
 
ATO V A ÚLTIMA FESTA  Salão azul. Luxo deslumbrante. Quadros e espelhos. Flores por toda parte. Luzes em profusão. A meio da cena uma mesa profusamente servida. Ao subir o pano, Maria, ricamente vestida, entra pela direita. Vai a um consolo e dá duas pancadas num tímpano. Está pálida e tem os olhos pisados. Notase em todos os seus movimentos agitação nervosa. Apenas toca, vai sentarse no sofá. Entra José.   CENA I Maria e José.   MARIA E então?   JOSÉ Os convites foram distribuídos.
 
  MARIA Todos?   JOSÉ Menos o do Sr. Carlos de Andrade.   MARIA Por quê?   JOSÉ Porque sua senhoria partiu há cinco dias.   MARIA (erguendo-se)  Partiu? Para onde?   JOSÉ Não sei.   MARIA Partiu só?   JOSÉ Com a senhora Elvira.   MARIA (sentando-se, triste)  Com Elvira! Bem! Pode retirar-se. (José sai)     CENA II    MARIA (depois de um momento de abatimento, erguendo-se, com explosão) Traidores! E eu que a julgava sincera, que julgava verdadeira a sua amizade!... E ele! Miserável! Dizia amar-me, jurava-o até, para melhor iludir-me!... (Pausa, como com desprendimento, mas sempre comovida) Mas... que me importo eu com ele?... que me importa que se desse a outra mulher, que viva com ela, que a ame?... Se eu o amasse, não consentiria que me ludibriasse assim, oh! não!... Havia de vingar-me, vingar-me de um modo cruel... mais cruel do que a afronta!... Se eu o amasse... (Pausa. Senta-se, abatida) Ontem passei uma noite de insônia... Sentia a febre abrasar-me... Tive tantas ideias, tantos pensamentos desencontrados, que temi enlouquecer... (Pausa) Pensei nele... Vi-o belo, generoso, nobre... mas triste como a dor... Vi-o estender as mãos para mim, suplicante, lacrimoso, pedindo o meu amor, que era a sua vida. Vi-o arrastar-se de joelhos a meus pés, pedindo uma palavra de esperança... E eu sentia-me comovida. Estive um momento para erguê-lo, para apertá-lo nos braços, para dizer-lhe: — “Amo-te!” — (Com força, erguendo-se) Mas era uma mentira! Se eu não o amo! Se o meu coração não pode amar!... Eu, apaixonada, a palavra — amor — por mim pronunciada com sentimento, com paixão, seria irrisório!... Não, não amo! não quero amar!... (Senta-se, acabrunhada) Mas tudo foi um sonho, uma visão da febre!... (Pausa) Onde estaria ele ontem?     CENA III Maria e Visconde.   VISCONDE (indo direito à mesa)  Oh! oh! isto está suculento, verdadeiramente suculento!...    MARIA Acha?   VISCONDE Esplêndido! (Lendo as etiquetas das garrafas) Bravo! Isto é que é! Já sei que vamos ter uma noite cheia...    MARIA (erguendo-se, calma)  De vinho?   VISCONDE E de alegria também.
 
  MARIA É esse, pelo menos, o meu pensamento.   VISCONDE Sempre hás de ter pensamentos suculentos!   MARIA Diga-me: por onde tem andado desde a noite do baile? Há um mês que não o vejo.   VISCONDE Ora! Tenho andado por toda parte... e por parte nenhuma.   MARIA A resposta pode ser muito clara, mas não a compreendo.   VISCONDE Pois nada mais positivo. Tenho andado por toda parte, porque tenho passado a vida na rua do Ouvidor, palestrando com as francesas...    MARIA Deveras? E o visconde sabe francês?   VISCONDE Não; mas falava em português.   MARIA E elas?   VISCONDE Respondiam-me em francês.   MARIA E entendia-as?  
 
VISCONDE Não; mas era o mesmo.   MARIA E o visconde não temia ser vítima delas?   VISCONDE Vítima?   MARIA Sim. Quem sabe se essas mulheres escarneciam do visconde?...    VISCONDE De mim? Ora!   MARIA Ora, não! Pois se o visconde não as entendia! Quantas vezes faloulhes o visconde em fitas e elas responderam-lhe...    VISCONDE Com quê?   MARIA Com figas, por exemplo. Então, divertiu-se muito, não?   VISCONDE Muito!... Muitíssimo! Nunca me diverti tanto!   MARIA Nem em minha casa?   VISCONDE Ah! em tua casa a gente diverte-se também...    MARIA Mas vamos: não esteve em parte alguma porque...   
 
VISCONDE Porque não saí da rua do Ouvidor.   MARIA De modo que o visconde está com a educação completa! Para um provinciano que chegou aos sessenta anos sem nunca ter saído da sua terra natal, caminhou como um wagom. Felicito-o.   VISCONDE Ora! Os homens de talento depressa se habituam.   MARIA E o visconde tem talento?   VISCONDE Espero que não me faças a afronta de duvidar...    MARIA Deus me livre; mas quisera ter provas.   VISCONDE Provas! Pois quem bebe como um inglês, sabe todos os jogos e entretém relações com as raparigas de moda, — parece-me que tem talento... Ah! esquecia-me de dizer-te que também já tenho entrada nas caixas dos teatros...    MARIA Também? E em que idioma fala com as atrizes?   VISCONDE Em português.   MARIA E quando as atrizes são italianas?...    VISCONDE Falo também em português, sempre em português.
 
  MARIA E entende-as?   VISCONDE Não, mas é o mesmo, porque elas também não me entendem...    MARIA O senhor é um homem admirável, e tem uma boa fé mais admirável ainda... uma boa fé que toca a simplicidade.   VISCONDE Pois estás enganada, minha flor. Sou fino como uma raposa.   MARIA Acredito, porque é o senhor mesmo quem o diz.   VISCONDE E a prova é que quando o pelintra do Carlos me chamou — tolo, — entendi-o logo, e cresci, cresci tanto, que se Olímpia não tivesse mão em mim, eu era capaz de furar o céu com a cabeça... Fiquei como uma brasa!   MARIA Com efeito!   VISCONDE No primeiro ímpeto, quase o esganei...    MARIA E o que foi que o conteve?   VISCONDE A prudência.   MARIA Ou o medo?
 
  VISCONDE O medo! Não me conheces. Se me conhecesses melhor, verias o que vai em mim de...    MARIA De coragem?   VISCONDE De coragem, sim! Pois então! Mas aquele rapazola não perde por esperar!   MARIA O que pretende fazer?   VISCONDE Nada... Eu cá sei...    MARIA Se vai desafiá-lo para um duelo, peço-lhe que compareça no lugar do combate com o seu vestuário de macaco. Deve produzir um efeito magnífico!   VISCONDE Parece que estás zombando...    MARIA Eu?   VISCONDE Pois eu devo lá ir brigar vestido de macaco! Eram capazes de correrme à pedrada! Além de que, não quero saber de duelos nem por sonhos... O duelo é cego e...    MARIA E podia suceder que o visconde levasse alguma estocada contra a vontade, não?
 
  VISCONDE É exato. Quando encontrar o biltre ao voltar de uma esquina, doulhe meia dúzia de cachações, e está tudo acabado.   MARIA Mas isso não é vingança de fidalgo.   VISCONDE Ora, cada um faz o que quer, e eu quero fazer assim. É uma fantasia.   MARIA E depois da questão ainda não o encontrou?   VISCONDE Já, mas em lugares tão desertos que...    MARIA Que receou aproximar-se.   VISCONDE Nada... que não quis desafrontar-me. Eu quero que a minha vingança seja vista por todos, para que no dia seguinte os jornais digam: — “Ontem, às tantas horas do dia, na rua do Ouvidor, o Sr. visconde de Monte-Verde puxou as orelhas do Sr. Carlos de Andrade.”   MARIA Mas isso não é bonito. Pois o senhor, um titular, que passar por capoeira?   VISCONDE É mais uma prova de talento.   MARIA Quer que lhe diga uma coisa, visconde?... O senhor está hoje inteiramente desfrutável. Ainda não abriu a boca, depois que aqui chegou, senão para dizer tolices.   VISCONDE (formalizado)  Maria... isso que dizes...    MARIA É o que lhe digo.   VISCONDE Pois então... não dou mais pio! (Senta-se perto da mesa)     CENA IV Os mesmos e Olímpia.   OLÍMPIA Boa noite.   MARIA Adeus, Olímpia.   OLÍMPIA Ora, muito obrigada, Sr. visconde! muito obrigada!   (Visconde olha para ela e faz um movimento como que perguntando o que quer dizer)   OLÍMPIA Então o senhor abala de casa e faz-me esperar até agora?... Pensei que tinha partido.   MARIA O visconde também vai partir?   (Visconde faz um gesto afirmativo)
 
  MARIA Para onde?   (Visconde faz um sinal como querendo dizer: — para muito longe)   OLÍMPIA (sacudindo-lhe o braço)  Oh! visconde está mudo?   MARIA O Visconde prometeu-me há pouco não dizer uma palavra durante toda a noite.   OLÍMPIA Por quê?   MARIA Porque está hoje com a bossa da toleima desenvolvida demais.   OLÍMPIA Ah! ah! ah! É verdade, visconde?   (Visconde faz um gesto de protesto)   MARIA Mas para onde vai ele? Tu deves saber...    OLÍMPIA Não sei... Para a China... para a África... Ah! para a Califórnia... Não é para a Califórnia, visconde?   (Visconde faz um gesto afirmativo)   MARIA E o que vai ele fazer à Califórnia?   (Visconde faz sinal de dinheiro)
 
  OLÍMPIA Fortuna.   MARIA Para vir depor aos meus pés?   OLÍMPIA Diz ele.   MARIA Então é inútil sacrificar-se. Estou resolvida a não aceitar mais a opulência de quem quer que seja. Agora quero descansar. Se o visconde quiser partir, parte e seja muito feliz; mas, por mim, pode ficar para continuar a conversar em português com as francesas e com as italianas, também em português...    OLÍMPIA O que é que estás dizendo?   MARIA O que ele mesmo disse há pouco, isto é, que passou um mês a conversar em português com as francesas, que lhe respondiam em francês!   OLÍMPIA O senhor é um tolo!   (Visconde levanta-se, abre a boca para falar e torna a sentar-se)   OLÍMPIA Pois não se lembrava que estava servindo de peteca àquelas mulheres?... É um tolo, repito!   VISCONDE (erguendo-se)  Chamas-me tolo! Olímpia, olha que por causa dessa palavra jurei puxar as orelhas ao biltre do Carlos!
 
  OLÍMPIA E quer fazer-me o mesmo?   VISCONDE Não digo isso... mas não é prudente provocar o leão que dorme.   OLÍMPIA Ou o macaco!... Ah! ah! ah! É verdade: sabe que aquela sua ideia de transformar-se em macaco imortalizou-o?   VISCONDE (com empenho)  Deveras, hein?   OLÍMPIA Não se fala em outra coisa. Até um jornal que recebi há pouco, ocupa-se disso.   VISCONDE E o que diz?   OLÍMPIA Diz que o visconde teve uma ideia luminosa em escolher semelhante fantasia, e que aquele vestuário assentava-lhe tão bem, que houve até quem jurasse que o visconde era um verdadeiro macaco...    VISCONDE Hein!... (Batendo na fronte) O talento! o talento!   OLÍMPIA Mas o artigo não diz macaco...    VISCONDE O que é que diz então?   OLÍMPIA Não me lembro... Ah! orangotango.
 
  VISCONDE Estás ouvindo, Maria?... Até os jornais já se ocupam com as minhas ideias... (Batendo na fronte) O talento! o talento!     CENA V Os mesmos, Alfredo e Maurício.   ALFREDO Dão licença?   MARIA Oh! meus senhores...    ALFREDO Visconde, aceite os meus parabéns.   VISCONDE (vaidoso)  Por quê?   ALFREDO Os jornais já se ocupam da sua pessoa.   VISCONDE Assim acabou Olímpia de dizer-me... Hem!... E qual é a sua opinião?   ALFREDO A minha opinião é que o visconde, na carreira em que vai, ou chega em pouco tempo a um hospício...    VISCONDE (rindo)  Gaiato!   ALFREDO Ou os seus admiradores são capazes de mandar embalsamá-lo para que não se perca.
 
  VISCONDE (satisfeito)  Estão ouvindo?... Vou já à rua do Ouvidor espalhar que...    OLÍMPIA O quê? O senhor não sai daqui, por que eu não quero!   VISCONDE Ciumenta! Está bom, ficarei.   MAURÍCIO Maria, sabes quem desapareceu?   MARIA Quem?   MAURÍCIO Carlos e Elvira.   MARIA (bruscamente)  Já sei.   MAURÍCIO Dizem que estão em Petrópolis.   MARIA (dando uma risada nervosa)  Gozando a lua de mel?   MAURÍCIO É provável.   MARIA (com explosão)  São uns miseráveis!... Enganaram-me... escarneceram de mim... ludibriaram-me!... Oh! mas eu hei de vingar-me!...    TODOS (surpreendidos)  Como?
 
  MARIA Aquela mulher, que eu julgaria um anjo, se os houvesse, aquela mulher, que me jurava todos os dias uma amizade eterna, atraiçooume indigna, miseravelmente...    OLÍMPIA Mas como te atraiçoou ela?   MARIA (outro tom)  Ah! ah! ah! Que me importo! Eu sabia que ela o amava, mas nunca supus que praticasse a infâmia de confessar-lhe o seu amor!   VISCONDE Mas...    MARIA Hoje detesto-a, detesto a ambos... odeio-os mesmo... E quando uma mulher como eu odeia é capaz de tudo! Ah! mas hei de fazê-los sofrer... sofrer... sofrer tanto.   VISCONDE Mas por quê?   MARIA (exaltada)  Porque eles amam-se... e eu não quero que se amem... não quero! (Acalmando-se e mudando subitamente de tom) Mas os meus convidados demoram-se... Dar-se-á o caso que não venham?... Se não vierem, bem poucos seremos à mesa. É um contratempo, porque eu pretendia fazê-los passar uma noite esplendida... (À parte) Faltará ele... Não o amo, mas quisera vê-lo aqui...    MAURÍCIO (vendo entrar os convidados)  Ei-los.   MARIA (indo recebê-los)  Entrem, meus amigos, entrem. Já supunha que não vinham... 
 
(Entram os convidados. Jorge é o último)     CENA VI Os mesmos, Jorge e convidados.   MARIA (a Jorge)  Também veio? Obrigada. Nem sabe que prazer me dá em ter aceitado o meu convite.   JORGE (sorrindo ironicamente)  És muito amável! Quando deixarás de ser sereia?   MARIA Como?... Creia que falo sinceramente...    JORGE Como sempre?   MARIA Não; pela primeira vez.   JORGE Ah!   MARIA Meus amigos, agora que estamos todos reunidos, só nos resta ir para a mesa.   TODOS Sim, à mesa!... (Todos tomam lugar à mesa)   MARIA (vai ao consolo e toca o tímpano. Entram quatro criados, que principiam a abrir as garrafas e a encher os copos. Maria toma lugar à cabeceira) 
 
Meus senhores! Quem passa a existência no meio do revolutear dos gozos e do espadanar dos prazeres não se lembra de que o sofrimento é uma realidade, escarnece da dor, zomba da desgraça e ri-se das explosões do amor. Eu, que fui sempre esplendidamente bela, eu, que fui sempre ardentemente adorada, procurei tornar a minha vida um éden de alegrias, um mundo de festas, um jardim em primavera eterna... Se consegui o meu grande intento, se realizei o meu mais querido sonho, podeis dizê-lo vós todos, que nunca me vistes no rosto o selo da tristeza, que nunca me vistes nos olhos a cintilação de uma lágrima. Passei cantando todos os meus dias, passei a rir todas as minhas noites: — a minha vida foi como o paraíso descrito pela igreja e pelos poetas. Nunca um suspiro de mágoa fez-me estremecer o seio; jamais a nuvem da melancolia velou por um momento sequer o brilho fascinante dos meus olhos. Fui a rainha desejada de todas as festas, fui a soberana idolatrada de todos os prazeres. A opulência vinha de toda parte render-me preito e derramar a meus pés os perfumes inebriantes das suas homenagens... Sinto-me exausta hoje, sinto-me aborrecida de ver os homens ajoelhados perante mim, de ver tantas grandezas prosternadas à minha passagem, beijando, ébrias e loucas, os sinais das minhas plantas... Por isso, venho dizer-lhes, meus senhores, que é esta a última festa que lhes ofereço...    JORGE Como?... Desprezas então esta vida alegre, esta vida de prazeres e de liberdade plena, para te entregares à solidão, ao isolamento, à tristeza?... Pois tu, a mulher da moda, a mulher adorada e desejada por todos, abandonas o mundo, assim, sem um motivo, sem uma razão qualquer?... Abdicas assim a tua coroa de triunfos, renegas as tuas glórias?...    MARIA Tanto é possível, que o faço. (Rindo) Mas não vão supor que estou apaixonada, que é o amor que me impele a deixar minha vida de loucuras... Sabem perfeitamente que a ninguém amo, que escarneço de todos esses parvos que falam de amor, que os desprezo até!... Ah! ah! ah! (Carlos aparece ao fundo. Maria estende os braços e dá um grito sufocado) Ah!      CENA VII Os mesmos e Carlos.   JORGE (indo a Carlos, baixo)  Para que vieste?   CARLOS (baixo)  Cheguei agora mesmo.   MARIA (depois de um momento de ansiedade, corre a ele, toma-lhe as mãos)  Ah! finalmente, chegou!...    CARLOS Maria...    VISCONDE (aos convidados, que olham-se admirados)  Que maçada!   MARIA Não sabe com que ansiedade eu o esperava!... (Mostrando a mesa) É minha última noite de prazer: está tudo acabado!   JORGE (entre os dois)  Não se acabou! A Messalina será sempre a Messalina!   MARIA (suplicante)  Senhor!   JORGE Vamos, Carlos. É mais um laço que esta mulher quer armar à tua boa fé.  
CARLOS Mas eu...    JORGE Juraste obedecer-me! Vamos! 
(Carlos baixa a cabeça. Saem ambos)
 
CENA VIII Os mesmos, menos Jorge e Carlos.
  MARIA (correndo à porta, depois de um momento de hesitação)  Miseráveis! Oh! mas isto é infame! (Descendo, com vos trêmula) Meus amigos... Desculpem. Isto foi um pequeno incidente, a que não devemos ligar importância... Continuemos a nossa festa! (Tomando um copo) à minha saúde! Hip! hip!   TODOS (tocando os copos)  Hurra! hurra!   MARIA (deixando cair o copo e levando as mãos ao peito)  Acudam-me! acudam-me! Falta-me o ar... foge-me a vista... meu Deus!... (Caindo numa cadeira) Ah! 
(Todos aproximam-se)    
 
ATO VI LUTAS DA ALMA Gabinete. Maria, sentada junto de uma mesa, em atitude meditativa, passa a mão pela fronte, como tentando afastar uma ideia incomoda. Depois, lê pausadamente no álbum, que tem diante de se. É noite.    CENA I MARIA  Amo-te! A vida, que se escoa rápida do berço à tumba, é solitária e triste se não se abraça do prazer aos júbilos, pois só no amor é que o prazer consiste.   Sei que me esqueces... mas na dor sem bálsamo, que me acabrunha e me devora o seio, consente em ser do meu amor o ídolo, E que eu te adore neste atroz anseio...    E quando a morte me prostras... ai! chorar-me! sobre o cadáver do cantos, que dorme, geme, chorando da saudade as lágrimas: — “De amor sublima — coração enorme!”   (Está pálida, com olheiras e o rosto cavado; nota-se-lhe grande abatimento. Fica um momento absorta em funda meditação) 
 
E pode-se amar assim? Há coração de homem que tanto sinta? (Pausa) O que é o amor? Não sei... não o conheci nunca... Este homem diz que me ama, que há de amar-me eternamente. Mas então o amor não é um brinco, uma fantasia, como eu supunha... Deve ser um sentimento elevado, calmo, nobre... (Tosse. Pausa) Não amei nunca e jurei que nunca havia de amar... Mas estes versos impressionaram-me... Se isto é verdade, por que não hei de amar? (Como assaltada de uma ideia) E quem sabe se eu já amo? Será amor pensar em um homem a todas as horas, a todos os momentos? sonhar todas as noites com ele?... ter um desejo ardente de saber o que faz, o que pensa? (Pausa) Há um mês que penso consecutivamente nele, que tenho sempre diante dos olhos a sua imagem, que a minha maior vontade é vê-lo junto de mim, para contemplá-lo, para admirá-lo, para sorrir-lhe... Às vezes, quero mandar chamá-lo... mas tenho medo... De quê?... Não sei... Quando me lembro que ele está satisfeito, feliz, em companhia de outra mulher, tenho ímpetos de ir procurá-la, de calcá-la aos pés, de estrangulá-la!... (Pausa) E sofro, e choro, e tenho febre... Sinto um mal estar de conhecido, uma melancolia que me aterra... Eu, que fui sempre tão alegre, que me ria de tudo, que de tudo escarnecia, sentir-me assim — abatida, pálida, nervosa!... Será um castigo? Amarei eu realmente aquele homem? Oh! mas se isto que sinto é o amor, se esta raiva que me domina às vezes o coração é o ciúme... sou bem desgraçada!... (Deixa cair a fronte nas mãos, tossindo)      CENA II Maria e Visconde.   VISCONDE (entrando)  Ora viva a minha formosa Maria!   MARIA Está bom, visconde?   VISCONDE São como um pêro e forte como um carvalho. Nunca me senti com tanta disposição para divertir-me... Quando temos outra pandega?   MARIA Nunca mais.   VISCONDE Por quê?   MARIA Porque a minha casa deixou de ser um lupanar, porque eu morri para esses prazeres tumultuosos que cansam o espírito e matam o coração...    VISCONDE Não te compreendo.   MARIA Nem é preciso que me compreenda. Creio que ainda sou livre para tomar uma resolução qualquer...    VISCONDE Mas eu...    MARIA O senhor é exatamente como os outros. Não vem à minha casa por mim, mas pelos prazeres que lhe ofereço, pelos meus bailes, pelas minhas festas...    VISCONDE Contudo, julgo-me um pouco superior aos outros...    MARIA Por quê?   VISCONDE Porque... sim... na qualidade de seu protetor...    MARIA Meu protetor? Pois eu estou em idade e condições de ter protetores?   VISCONDE Pois se não queres que seja na qualidade de protetor, seja na de amante.   MARIA Melhor ainda.   VISCONDE Como?   MARIA Não tenho mais amantes, Sr. visconde. Se os tive, morreram. Afoguei-os no vinho da minha última Bacanal. De hoje em diante, quero viver para um homem só... 
  VISCONDE Quem te ouvir, dirá que estás apaixonada.   MARIA E estou.   VISCONDE Então tu, que dizias com altivez e orgulho que nunca amarias...    MARIA Pois amo. (Tosse)   VISCONDE A mim?   MARIA Ao senhor? Pois o senhor supõe-se no caso de ser amado, a sua simplicidade chega ao ponto de julgar-se com direito ao amor de uma mulher como eu?   VISCONDE E por que não?   MARIA Tenho dó da sua leviandade!   VISCONDE Maria, quero crer que tudo quanto tens dito não passa de uma brincadeira...    MARIA Nunca falei tão seriamente.   VISCONDE Então estás em um dos teus momentos de mau humor. Vou à rua do Ouvidor. Quando voltar, talvez já estejas boa.
  MARIA Nunca.   VISCONDE Veremos. Adeus. (Sai)
    
CENA III
  MARIA Escrevi-lhe ontem, e ainda não recebi resposta alguma... Que quererá dizer este silêncio?... Amar-me-á ele ainda?... Quem sabe?... (Tosse) Oh! aquela mulher! Como eu a odeio!... (Toca no tímpano. A José, que entra) Vou sair. Se vier procurar-me o senhor Carlos de Andrade, peça-lhe que espere e vá imediatamente chamar-me à casa de Esmeralda. (Sai pela direita. José segue-a. Cena vazia um momento)  
 
CENA IV Alfredo e José.
  ALFREDO (do fundo)  Ninguém! Tanto melhor. Vou deitar-me neste sofá, e deitado esperarei que apareça alguém. (Deita-se. José atravessa a cena da direita para a esquerda) Psiu!... oh! coisa! Onde está Maria?   JOSÉ Saiu neste momento. (Sai)   ALFREDO Saiu? Pois esperarei... Decididamente, o homem é um animal que nasceu para estar deitado.    
CENA V Alfredo e Maurício.
  MAURÍCIO (do fundo, percorrendo a cena com a vista)  Maria...    ALFREDO Saiu.   MAURÍCIO Esperarei. (Senta-se)   ALFREDO Espera-a como eu, deitado.   MAURÍCIO Estou com saudades dela. Há um mês que não a vejo.   ALFREDO Então foi desde a noite da pandega.   MAURÍCIO Consta que se nega a quem a procura...    ALFREDO E o motivo? Sabes?   MAURÍCIO Desconfio que Maria está apaixonada.   ALFREDO Ora! Maria não tem coração!   MAURÍCIO Mas ama desesperadamente ao Carlos.   ALFREDO Carlos é rico...   
MAURÍCIO Maria ama o homem.   ALFREDO Mas em que te fundas para dizer isso?   MAURÍCIO Em uma carta por ela dirigida a Carlos.   ALFREDO Viste essa carta?   MAURÍCIO Suspeitando que Maria amava, quis certificar-me.   ALFREDO E depois?   MAURÍCIO Ontem encontrei o criado com uma carta...    ALFREDO E tomaste-la?   MAURÍCIO Prometendo que a faria chegar ao seu destino.   ALFREDO Mostras-me a?   MAURÍCIO (dando a carta)  Ei-la.   ALFREDO (lê)  “Carlos, — Há um mês que não o vejo. Matam-me saudades suas. Peço-lhe que apareça. — Maria.” — (Restitui a carta) Está apaixonada. Não há dúvida. 
   
CENA VI Os mesmos e Olímpia.
  OLÍMPIA Por cá, meus senhores?... Onde está Maria?   ALFREDO Saiu.   MAURÍCIO Por onde tens andado, minha joia, que há tanto tempo não te vejo?   OLÍMPIA Passeando em Petrópolis.   MAURÍCIO E o teu visconde?   OLÍMPIA Ora! O meu visconde está cada vez mais parvo. Quando não anda fazendo tolices pela rua; está em casa me aborrecendo com as suas asneiras... Meteu-se-lhe agora em cabeça ser deputado...    MAURÍCIO E tu foste a Petrópolis cabalar?   OLÍMPIA Pois eu vou comprometer-me por aquele quadrúpede!   ALFREDO Pois olha que têm sido deputados muito bípedes mais quadrúpedes do que o visconde!    
CENA VII
Os mesmos e Maria.
  MARIA Meus senhores... (Senta-se, cansada. À parte) Não veio...    OLÍMPIA Mas como estás pálida!   MARIA Estou doente.   OLÍMPIA Há um mês nada sentias.   MARIA Mas hoje... sinto-me morrer...    MAURÍCIO Quem é o teu médico?   MARIA O doutor Vasconcellos... Mandei chamá-lo há pouco.   ALFREDO Ele há de restituir-te a saúde.   MARIA Para a morte não há remédio...    OLÍMPIA Ainda hei de ver-te prazenteira e linda.   MARIA Estou fraca, não tenho apetite e a febre não me deixa... Não posso dormir... Querem ver?   ALFREDO Dentro em pouco provar-lhes-ei que a minha moléstia é incurável... (Tosse, levando o lenço aos lábios e ficando cansada)   MAURÍCIO O que há nesse lenço?   MARIA Nada...    OLÍMPIA É sangue.   ALFREDO Sangue!   MARIA (a Alfredo)  Meu amigo, quero merecer-lhe um favor; vá procurar Carlos, sim?   ALFREDO Para quê?   MARIA Quero vê-lo...    ALFREDO (trocando um olhar com os outros)  Vou.   MAURÍCIO Eu também vou.   OLÍMPIA (à parte)  Voltarei quando estiver boa... se não morrer. Nunca tive jeito para irmã de caridade! (Alto) Meus caros, aproveito a amável companhia.   MARIA Já me deixas?  
OLÍMPIA Já. Tenho que fazer... mas voltarei... voltarei... Adeus, Maria... 
(Saem os três)
   
CENA VIII 
  MARIA Esperemos... Sinto o coração oprimido e triste... (Pausa) Quem diria que eu havia de chegar a este extremo, a esta agonia tamanha! Ele ama... Lembrança horrível, que tantas e tão dolorosas vigílias me tem feito passar... que tão amargas lágrimas me tem feito derramar!... Messalina altiva, quem te mandou amar assim?... quem te arrojou do pedestal em que assentavas o teu orgulho, ao abismo deste martírio atroz? (Pausa) Oh! a vida! a vida! Quem pode prever o que sucederá no dia que há de vir? Quem pode arrancar o véu que encobre o futuro, para ver as lágrimas ou os sorrisos que nos estão reservados? (Depois de um acesso de tosse, ajoelhando, fraca e abatida) Oh! Deus! creio em ti, creio no teu supremo poder, creio na tua soberana bondade! Madalena arrependida, venho, humilde e suplica, acolher-me à luz benéfica da tua santa proteção!... Amparame, oh! Deus! 
(Jorge aparece ao fundo e para, surpreendido por vê-la de joelhos)     CENA IX Maria e Jorge.   JORGE (cruzando os braços)  A infâmia quando se ajoelha é para pedir a inspiração de um novo crime!   MARIA (erguendo-se, calma)  Ou para implorar a Deus o esquecimento do passado.  
 
JORGE É raro. (Descendo) Dentre cem Messalinas, uma há que se arrepende, não para agradar a Deus e ser perdoada, mas com medo do inferno!   MARIA Porque crê na existência do inferno. Eu não. O inferno para mim é aqui, porque é aqui que se sofre. Além disso, o nada — sempre o nada.   JORGE Há o horror.   MARIA De quê?   JORGE Do esquecimento. As mulheres como a senhora preferem jejuar quinze dias, a serem esquecidas um momento.   MARIA Está enganado. O que eu mais desejo hoje é o esquecimento. Esqueçam-me todos, e eu me julgarei feliz; desprezem-me, e eu agradecerei, sorrindo, o desprezo; odeiem-me, e eu receberei o ódio com uma graça suprema! Esqueçam-me, desprezem-me, odeiem-me todos, menos um homem, um só, porque esse é a minha vida, a minha luz, o meu norte, a minha única ambição na terra... por ele vivo, por ele morrerei.   JORGE E julga que esse homem ama-a?   MARIA Tenho esperança.   JORGE É mal cabido o espírito neste momento... Pois a senhora supõe-se digna de ser amada por aquele homem?
 
  MARIA E por que não?   JORGE Porque aquele homem jamais descera da sua dignidade para dar-lhe o seu amor, o seu coração. Mas se a loucura dominá-lo, se a compaixão arrastá-lo, aqui estou eu para impedir a consumação dessa loucura, dessa compaixão insensata, aqui estou eu para dizerlhe: — “Que fazes, insensato?... Pois aquela mulher merece um sacrifício semelhante?... Recua! Deixa-a chorar, deixa-a morrer, deixa-a só com os seus remorsos, com as suas agonias! Não te aproximes dela. O seu contato mata, uma lágrima sua é a morte!”   MARIA Mas ele ama Elvira...    JORGE Porque Elvira é uma santa. Pecou, mas está arrependida. No seio de Elvira Carlos encontrará o perfume da castidade, o calor da esperança, a luz da vida, as flores sempre viçosas da mais santa amizade. E o que lhe daria a senhora?   MARIA Um amor ardente, infinito, um amor como jamais houve mulher alguma que o sentisse; um amor, que me arrancando do inferno em que vivo, daria o céu ao homem que me amasse!   JORGE Atriz consumada na vaidade e na mentira, a senhora representa o seu papel de um modo tal, que quem não a conhecesse julgaria estar na presença de uma mulher verdadeiramente apaixonada. O amor é um sentimento do céu, uma paixão divina: não pôde abrigar-se em uma alma corrompida, em um coração de lodo!   MARIA Basta! Se não quer crer-me, está no seu direito... Mas não me insulte. É uma ação mesquinha e vilã insultar uma pobre mulher, fraca e enferma, que não pode defender-se. Saia! O senhor amou-me, e eu nunca o amei; o senhor quis que eu fosse sua, e eu lancei-me nos braços de outro homem. Estava escrito no grande livro do destino que havia de suceder assim, e assim sucedeu. O seu amor transformou-se em ódio, e o senhor procura agora todos os meios para ferir-me, para massacrar-me. É pouco generoso, creia!... (Tosse, levando o lenço aos lábios)   JORGE E que nome deve-se dar à mulher que se perde por sua vontade, que se prostitui sem necessidade?   MARIA Que nome?... Desgraçada!   JORGE Não: indigna, infame, miserável.   MARIA Senhor!   JORGE Disse que está enferma. É natural. As orgias, a devassidão, as loucuras não enfermam só: matam também. E a senhora morrerá desprezada, repelida... Junto do seu leito de morte não verá um rosto, um coração amigo para dar-lhe coragem, para animá-la, para ajudá-la a morrer!...      CENA X Os mesmos e Elvira.   ELVIRA (que tem assistido, do fundo, ao final da cena precedente, avançando)  Verá! Serei eu!
 
  MARIA (fica um momento perplexa, como retida por uma força oculta, olhando-a, depois, com um movimento rápido e espontâneo, e banhada em lágrimas, abraça-a com transporte)  Tu és um anjo, Elvira!   ELVIRA Eu, sim. Ao náufrago, que braceja agonizante no meio das ondas revoltas, atira-se uma tabua de salvação; ao moribundo, que se convulsiona no leito frio da morte, mostra-se o Cristo, para arrepender-se das misérias da vida... Porque não se hás de estender a mão à mulher perdida, que chora e quer arrepender-se?... Ouvi tudo daquela porta. Há uma hora que o senhor massacra esta infeliz, sem ter misericórdia dos seus sofrimentos. Há um mês, eu era uma mulher infame, talvez mais infame do que ela. O senhor estendeume a mão, ergueu-me do lodo em que eu me revolvia e regeneroume. Por que não há de fazer o mesmo a esta infeliz?... Vamos, meu amigo, vamos: peço-lhe perdão, porque a desgraçada está arrependida.   MARIA (soluçando)  Meu Deus!   ELVIRA (ajoelhando)  Oh! sou eu que lho peço de joelhos... Não vê como ela chora, como sofre a desgraçada?... Seja tão generoso para com ela, como foi para comigo. Suplico-lhe: estenda-lhe a mão, e ter-me-á salvo duas vezes!   MARIA (suplicante)  Senhor Jorge...    ELVIRA Olhe... Não a mate!...    JORGE Não... não posso! É impossível! (Sai rápido)   
 
CENA XI Maria e Elvira.
  ELVIRA (erguendo-se e abraçando-a)  Ânimo, minha pobre amiga!   MARIA Ânimo! Como queres que eu tenha ânimo, se me sinto morrer?...    ELVIRA Eu tornarei a pedir e ele há de atender-me...    MARIA Não te atenderá. Aquele homem foi por mim ferido no coração, e quer vingar-se. Que se vingue, mas deixe-me morrer com a esperança de ser amada. Quando me falavas no amor, na solidão, no sossego, eu ria-me e escarnecia de ti, mas...    ELVIRA É porque nunca tinhas amado. Mas hoje que amas, e que, tenho esperança, serás feliz com esse amor, que se apoderou do teu coração para o teu arrependimento, não escarneces mais; não é assim?   MARIA Ele duvidou do meu arrependimento, do meu amor... mas Deus bem sabe se estou arrependida e se amo...    ELVIRA Amas, e eu sou um obstáculo ao teu amor. Se não fora eu, tu serias feliz. Parece que uma fatalidade me encaminha os passos. Mas não importa. Serei mais forte que a fatalidade, e hei de vencê-la — dando-te o amor de Carlos...    MARIA Mas tu também o amas!
 
  ELVIRA (com esforço)  Ora... um amor passageiro, que facilmente será esquecido... nem se pode chamar amor — a isto que eu sinto... É um capricho, uma fantasia, que amanhã terá desaparecido, para ser substituída por outra. (À parte) Uma fantasia!   MARIA (fitando-a)  Minha doce Elvira, se por tal preço tenho de ser feliz, rejeito a felicidade... Sorrir eu, enquanto tu choras; viver eu tranquila, enquanto tu sentes o coração dilacerado pelo sofrimento... não, nunca!   ELVIRA Louquinha! Mas se eu hei de sorrir com os teus sorrisos, se hei de ser feliz com a tua felicidade? Escuta. Eu era uma desgraçada, sem nome, que vivia no vício e no crime, passando muitas noites em trevas, muitos dias sem comer... Tu me estendeste a mão, cobristeme a nudez... Chegou a ocasião de eu pagar uma parte dessa dívida de gratidão, sem trabalho, sem sacrifício algum...    MARIA A tua dívida de gratidão! Não, porque nada me deves. Eu não te protegi por caridade; protegi-te porque eras bonita, e eu te queria para os meus prazeres. Tu eras uma alma virgem, e tomaste por caridade o que eu fazia por interesse. Foste vilãmente enganada... Perdoa-me...    ELVIRA Perdoar-te, o quê?   MARIA Quanto ao sacrifício que queres fazer-me da tua felicidade, rejeito-o, porque sou indigna dele. Eu nasci para isto. Como há pouco disse, estava escrito que havia de suceder assim, e sucedeu. Deixa-me morrer... Sê tu feliz, que bem o mereces, minha amiga. Eu sinto-me mais para o lodo, de onde saí, do que para o céu, a que tive a loucura de aspirar um momento. Era esta a minha última ilusão: desfizeram-me a, como eu desfiz as outras. Pequei muito. Começa agora a expiação. Sofrerei em desconto das minhas faltas. Sinto-me enferma. Quando o sofrimento prostra-me para uma vez no leito da agonia, quero ver-te sempre junto de mim, para consolares na hora derradeira... (Tosse. Elvira chora) O teu sorriso de anjo me purificará a alma, pedirá por mim a Deus... E quando eu morrer, se Deus tiver compaixão da mísera pecadora, minha alma, prostrada junto do trono do Altíssimo, pedirá a eterna felicidade para o anjo que teve misericórdia, que a protegeu sob as suas asas brancas, que a consolou com a palavra santa da resignação... pedirá por ti, enfim, que não me abandonas na adversidade, que queres sacrificar-te por mim...    ELVIRA Mas o que eu faço não é um sacrifício!   MARIA É.   ELVIRA Vamos... Depois falaremos sobre isto. Tens sofrido muito hoje... Deves estar fatigada. Vai descansar...    MARIA Mas...    ELVIRA Peço-te o eu. Vai.   MARIA (beijando-a)  Até logo. (Sai)     CENA XII   ELVIRA Amo-o, é verdade... Mas desde que esta desgraçada sofre tanto por ele, o meu amor trava a fel, não pode haver felicidade perfeita para mim... Sufocarei o meu amor, farei um sacrifício enorme, imenso, mas Deus sorrir-se-á no céu, perdoando-me o passado... Ninguém me verá chorar, ninguém me verá sofrer... Quando não puder suportar com os olhos enxutos e o coração sossegado a felicidade deles, irei procurar a solidão e o silêncio para pedir coragem a Deus!     CENA XIII Elvira e Jorge.   JORGE Vamos.   ELVIRA Para onde?   JORGE O teu lugar não é aqui.   ELVIRA É. Aqui há uma infeliz que sofre e que precisa de quem a anime. O meu lugar é aqui.   JORGE Mas o ar que se respira nesta casa infecciona; este luxo, esta opulência estão envenenados pela podridão da alma dessa mulher!   ELVIRA Eu quero que ela se salve, e o senhor há de salvá-la.   JORGE Estás enganada. Para essa mulher não há salvação possível. O seu coração está morto para o arrependimento. Não podes recusar-te a acompanhar-me. Tu eras uma matéria informe, um corpo sem alma, uma criatura abjeta e vil. Eu te ergui do lodo, dei-te uma alma, regenerei-te, purifiquei-te, finalmente. Tu és minha filha, e ordeno-te que saias. 
 
(Maria aparece à porta do quarto)   ELVIRA Devo-lhe muito, devo-lhe tudo... Obedecer-lhe-ei sempre, servi-lo-ei de joelhos, matar-me-ei a seus pés, se o exigir, mas não me obrigue a abandoná-la...    JORGE Não!   ELVIRA Peço-lhe pela sua honra, por tudo quanto há de mais sagrado!   JORGE É impossível!   ELVIRA Senhor Jorge!   JORGE Acabemos com isto! Vamos!   ELVIRA (resoluta)  Não irei!   JORGE (segurando-lhe o braço)  Hás de ir, porque eu assim o quero! Vamos!   ELVIRA (lutando)  Deixe-me! Não vou!   JORGE (arrastando-a)  Hás de ir!  
ELVIRA (lutando)  Deixe-me! deixe-me! 
(Saem)   MARIA (vacilante, dá alguns passos; chegando ao meio da cena, cai de joelhos, fitando o céu)  Meu Deus! Perdoa-lhe!... (Deixa cair a fronte nas mãos, solução)   
 
 
EPÍLOGO ENFIM! Alcova. Ao fundo um leito com cortinado. Perto do leito um toucador. Sobre o toucador um quadro com um retrato em miniatura. Maria, lívida e cadavérica, está adormecida em uma poltrona, perto da janela aberta. Traja um roupão branco e está com o cabelo solto. Elvira, do lado oposto, com os braços cruzados, contempla-a tristemente. É noite. O clarão da lua, entrando pela janela, ilumina Maria.  
CENA I
Maria e Elvira.
ELVIRA Dorme... Há tanto tempo que não tem um momento de repouso aquele coração dilacerando!... Escarneceste do amor, altiva e orgulhosa, e hoje o amor vinga-se de ti, mata-te sem compaixão!... Mata-te?... Oh! não! Tu não morrerás. Tens sofrido tanto... tanto... que é bem que vivas para gozar um pouco de calor do sol da felicidade... Oh! se eu pudesse trazê-lo aqui, lançá-los nos teus braços, dizer: — “Amem-se, sejam felizes!” crê que eu não hesitaria, embora isso me custasse a vida. Se o amo também tanto! (Maria faz um pequeno movimento) Move-se... Vai talvez despertar... Deixemo-la tranquila... (Sai)    
 
CENA II
  MARIA (tem um estremecimento nervoso; tosse; percorre vagarosamente a cena com a vista, sorrindo triste. Com a voz fraca e cansada)  Ah! que sonho tão doce!... Mas para que sonhar assim, se o despertar é tão triste?... Sonhei que o tinha junto de mim... tinha as suas mãos entre as minhas... contemplava-o... sorria-lhe. Era tão feliz! (Pausa) Dizem que o sono dá forças... mas eu sinto-me tão fraca! (Pausa) Sinto o coração oprimido... a cabeça arde-me... Meu Deus! Como é doloroso amar assim, sem esperança, sem futuro... tendo em recompensa de um amor tão grande a indiferença e o desprezo!... Oh! se ele soubesse quantos martírios tenho sofrido; não desprezaria os meus extremos... não se mostraria de gelo aos soluços da minha dor... (Tosse, olhando para o lenço, que retira dos lábios) Sangue! sempre sangue! É certo que bem pouco tenho que viver... Mas, se ao menos, antes da minha morte, ele me estendesse a mão e me dissesse: — "Vem! eu te perdoo!” — Como eu seria feliz ainda!... como eu agradeceria a Deus se me concedesse alguns momentos mais para chorar a seu lado... para vê-lo... para pedir-lhe perdão!...      CENA III Maria e Elvira.   ELVIRA Maria.   MARIA Ah! és tu!   ELVIRA Mas como estás pálida!   MARIA (com voz sumida)  É a palidez da morte...    ELVIRA Da morte?   MARIA Sim... Mas onde estão os meus amigos... os meus adoradores?... Fugiram todos?... É justo... Não se pode ter alegria onde há um cadáver...    ELVIRA Não fales assim. Há pouco falei ao médico sobre o teu estado...    MARIA E ele...    ELVIRA (hesitando)  Deu-me esperanças... muitas esperanças...    MARIA Não me iludes... Ouvi tudo... Ele disse...    ELVIRA (fugindo à questão)  Mas hoje parece que tens passado melhor... Já dormiste, o que não te sucede há uns poucos de dias.   MARIA Escuta. O médico disse...    ELVIRA (como acima)  Por que não procuras dormir outra vez?   MARIA O médico disse: ”Aquela mulher não tem mais do que alguns momentos de vida!”   ELVIRA Não foi isso. Entendeste mal. O que ele disse foi...    MARIA Supunham-me adormecida. Ao ouvir aquelas palavras tive medo... oh! um medo horrível! porque eu não quero morrer ainda...    ELVIRA Mas...    MARIA Eu bem o sinto. A minha vida está como uma luz quase a se apagar...    ELVIRA Ainda ficarás boa.   MARIA Podes mandar a receita à botica.   ELVIRA Vou mandar. (À parte) O médico não quis receitar... Disse que era inútil. (Sai)     CENA IV   MARIA Vou escrever-lhe... pedir-lhe que venha ver-me ao menos um momento... (Com grande custo vai a uma pequena mesa onde há o necessário para escrita e um tímpano. Escreve) — “Carlos. — De joelhos peço-lhe que venha ver-me. Dê-me essa consolação na minha hora derradeira.” — (Assina, fecha e subscrita a carta) Talvez que ele me atenda... Quem sabe?... (Dá uma pancada no tímpano e volta para a poltrona. A José, que entra, dando-lhe a carta) Esta carta imediatamente ao Sr. Carlos de Andrade. (José sai) Oh! se viesse!... Não zombará ele outra vez de mim?...      CENA V Maria e Jorge.
  JORGE (da porta)  Maria...    MARIA (vendo-o, com um estremecimento)  O senhor!   JORGE (descendo)  Eu. Por que não? Está melhor?   MARIA (à parte)  Na hora da morte não se deve abrigar ódios nem rancores no coração... Já no o odeio. (Alto) Sente-se... aqui... perto de mim... Preciso falar-lhe... (Jorge senta-se perto dela) O senhor amou-me muito noutro tempo; não é verdade?   JORGE Noutro tempo... é verdade...    MARIA Eu desprezei o seu amor...    JORGE Eu sofri muito...    MARIA Pois bem: hoje peço-lhe que me perdoe...    JORGE Perdoar-te?...    MARIA Sim; que me perdoe os sofrimentos que lhe causei. Oh! tenho padecido tanto!... Não fica me odiando, não? Compadeça-se de mim... que sou um cadáver!   JORGE Maria!   MARIA Dê-me a sua mãe... (Toma-a) Deixe-me beijá-la... banhá-la com as minhas lágrimas... (Beija-a)   JORGE Minha pobre Maria!... E pensaste um momento que eu deixaria de te amar?... O teu desvario matou-me para o mundo, mas não me matou para ti... O mal que te tenho feito não passa de uma vingança mesquinha e vil, de que hoje me arrependo... Quem deve pedir perdão sou eu...    MARIA Obrigada! As suas palavras fazem-me tanto bem!   JORGE Ainda é tempo, Maria... Queres ser minha?... Eu te levantarei da degradação em que caíste, dar-te-ei o meu nome em mácula, reabilitar-te-ei, farei com que todos te respeitem... e ai daquele que te não respeitar!   MARIA Não posso...    JORGE Não podes... Não vês que te amo ainda com mais ardor? Amo-te muito! Rio, canto, folgo, para que me não chamem covarde, para que não digam: — “É um miserável! Ama como um louco e é desprezado!” — Maria, vamos a França, a Itália... Tu recuperarás a saúde perdida e eu...    MARIA Não posso... Perdoa-me se é uma nova chaga que lhe abro no coração... mas amo tanto!   JORGE Houve tempo em que eu te supunha um demônio: hoje creio-te um anjo.   MARIA Não sou anjo. É Deus que me anima no martírio, porque Deus bem sabe que estou arrependida...    JORGE Vamos viajar... vamos a Itália...    MARIA Não... quero morrer onde nasci...    JORGE Mas isso é um suicídio!   MARIA É o meu último sofrimento... o sofrimento que me levará ao céu.   JORGE Ficaremos. Eu te enxugarei as lágrimas que derramares por ele; tu me pagarás o sacrifício com um olhar... Basta-me isso... Mas... estou te fazendo padecer ainda mais com estas lembranças... Descansa.   MARIA Não me deixe... Estou aqui tão só!   JORGE E os teus convidados, os teus amigos?   MARIA Os meus convidados, só vinham à minha casa para folgar; os meus amigos, só os tive durante a felicidade.   JORGE É assim. Miseráveis! Chegou a desgraça — todos te abandonaram!  
MARIA Amigos, de tantos que tive, só me restam dois: o senhor e Elvira. O senhor anima-me, Elvira... é a minha enfermeira.   JORGE Elvira é uma santa. Era uma pérola que se revolvia no lodo e que eu levantei. Seremos dois para chorar contigo.   MARIA E... Carlos?...    JORGE Admira o coração de Elvira, e procura esquecer o passado.   MARIA (estremecendo)  Ah!... (Tosse)   JORGE O que tens?...    MARIA Nada... Deve ser feliz, não?...    JORGE Suponho...    MARIA Sim... é natural... Oh! os homens!...      CENA VI Os mesmos e o Visconde.   VISCONDE Perdão...    JORGE O que deseja?   VISCONDE Procuro Olímpia.   MARIA Não está cá.   VISCONDE Há três noites que não vai à casa... Estou incomodadíssimo.   MARIA Então... não pergunta como me acho?   VISCONDE Tinha-me esquecido... Peço-lhe que diga a Olímpia, se aparecer cá, que a espero em casa. Que diabo! Façam como eu: frequento certas casas enquanto vejo que nelas há prazer; desde que pressinto a desgraça — adeusinho! Não sei para que servem amizades que incomodam!...    JORGE (avançando)  O senhor é um miserável!   VISCONDE O que diz?... (Recuando)   VISCONDE Há de dar-me uma satisfação! Desrespeitar um titular!... 
(Entra José)   MARIA (ansiosa)  E então?   JOSÉ Responde o Sr. Carlos de Andrade que não pode vir.
 
  MARIA Por quê?   JOSÉ Não disse o motivo. (Sai)   MARIA (ocultando o rosto nas mãos, com voz soluçante)  Ah!   JORGE (indo a ela)  Maria...    VISCONDE Eu supunha mais generoso o Sr. Carlos de Andrade...    JORGE Saia! Já lhe disse uma vez!   VISCONDE Valentão de...    JORGE O senhor!... (Vai a ele)   VISCONDE (trêmulo, recua de salto, e encaminha-se para a porta, olhando sempre para trás, e simulando arrogância)  Havemos de nos encontrar. Olá, se havemos!... 
(Jorge avança um passo. O visconde desanda a correr e desaparece)     CENA VII Jorge e Maria.   MARIA (levantando a cabeça, com extremo cansaço)  Meu amigo, um último favor... 
  JORGE O que é?   MARIA Vá procurar Carlos... traga-me o... Oh! eu quero vê-lo antes de morrer... (Enxuga os olhos)   JORGE Maria!   MARIA Vá... sim?...    JORGE (à parte, contemplando-a)  Voltarei a tempo? (Sai)      CENA VIII   MARIA (depois de um momento de prostração, com ânsia)  Meu Deus... Mas o que é isto que eu sinto?... Foge-me a luz... (Sufocada) Elvira... Elvira... As forças me abandonam... falta-me o ar... Se é a morte... Mas eu não quero morrer ainda... não quero morrer sem vê-lo... sem dizer-lhe o último adeus... sem pedir-lhe perdão...      CENA IX Maria e Elvira.   ELVIRA (correndo à ela)  Mas o que é isso?... o que tens?   MARIA Não sei... uma sufocação... uma fraqueza... Elvira... ai... sobre o toucador... o retrato de Carlos... 
  ELVIRA (indo buscar o retrato e entregando-lhe)  Ei-lo.   MARIA (beijando-o)  Ah! és tu... Adeus... adeus... meu único amor... Elvira... dá-me... a tua mão... (Toma-lhe. Elvira chora) Olha... faze-o feliz... sim? Peço-te eu... pede-te uma moribunda... Não chores... Adeus... Reza por mim... Sei que o amas muito... muito... amas como eu... como eu... (Deixando cair a cabeça para trás, com voz quase extinta) Ah!   ELVIRA (aflitíssima)  Maria! Maria!... Morta! Meu Deus! (Cai de joelhos, soluçando)      CENA X Os mesmos, Jorge e Carlos.   JORGE Maria...    ELVIRA (erguendo-se, a chorar)  Está morta!   CARLOS (indo à Maria)  Morta!...    JORGE (ajoelhando e tomando uma das mãos de Maria) Maria... Perdão! (Deixa cair a fronte sobre o peito)   ELVIRA (com humildade, a Carlos)  E eu?... 
(Carlos, como que saindo de um letargo, abraça-a)   
 
FIM DO DRAMA
 
TRANSIÇÃO 
De um lado a dor, o pranto, as travas d’agonia, a morte, o horror, o luto, o grito amargurado da miséria e da fome, o coração chagado...  — vida de luta insana, em lágrimas, sombria. –   doutro — a festa, o sorriso, as flores da alegria, o júbilo cantante e vivo e descuidado que faz da vida um céu, que traz o desejado anseio de viver — crescendo dia a dia... –   Deixemos d’amargura a dor que chora e clama, que as flores d’alegria esmaga e vai passando — fantástico corcel correndo a solta rédea, —   e às lágrimas fugindo, às lágrimas do Drama, vamos, almas em flor — hinos de luz cantando, em demanda do mundo alegre da Comédia!

 

 

                                                                  Horácio Nunes

 

 

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