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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROSE, A EMANCIPADA / L. P. Baçan
ROSE, A EMANCIPADA / L. P. Baçan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ROSE, A EMANCIPADA

 

            - Mas por que eu não tenho o direito de ir, cristão?

            - Não é uma questão de direito, Rose. É que não fica bem você ir sozinha, sem mim.

            - Não concordo. Se a estória fosse o inverso. Se ao invés de você, eu não pudesse ir. Você ficaria? Ou iria do mesmo modo?

            - É claro que eu ficaria.

            - Então por que não ficou naquele dia do churrasco na fazenda?

            - Bem, aquela foi uma ocasião especial... Você estava doente.

            - Mais um motivo para você ficar. Eu poderia ter morrido.

            - Quer saber de uma coisa. Você não vai e acabou!

            Rose fechou firme seus lábios finos e bem delineados, esboçando uma careta. Era mais raiva do que decepção. Apenas porque seu namorado não poderia ir, ela teria que não ir também a um piquenique à beira de uma represa nos arredores da cidade. Tratava-se de uma promoção dos alunos da ultima série do primeiro grau, visando arrecadar fundos para a formatura. Rose já havia adquirido sua cota, mas surgira aquele imprevisto. Ela tentava convencer Valério, seu namorado, que a deixasse ir.

            - Escute, meu bem - disse ele, abrandando a voz e alisando seus longos cabelos negros. - A gente pode ficar, não vamos brigar por causa disso. Poderemos ir à matinê e depois passar a tarde na piscina. Então, o que acha?

            - Mas eu quero ir - choramingou ela. - você poderia me deixar ir, Valério, e depois se encontraria comigo lá.

            - Puxa vida, você é cabeça-dura mesmo. Já disse que não poderei ir, caramba.

            - Por isso que é uma porcaria ser mulher - desabafou ela, chutando uma pedra ao seu lado. - Se a gente é homem pode fazer o que quiser, ir onde quiser, sozinho, sem ninguém para se preocupar com a gente.

            - Eu não acho que seja tão ruim assim ser mulher...

            - Quer mudar, quer?

            - Ufa! Você está intragável hoje.

            Estavam no portão do colégio, esperando o sinal de entrada. Estudavam na mesma série. Valério deveria ser um ano mais velho que ela. Ambos adolescentes ainda, mas já namoravam há algum tempo. Rose levantou, cheia de ressentimento e decisão.

            - Você quer saber de uma coisa, Valério? Pois eu vou, quer você queira, quer não.

            - Você é quem sabe - disse ele, sem surpresa, abrindo os braços e fazendo uma expressão de desalento.

            - Vou sim. Passar bem - concluiu ela, afastando-se, pisando duro, sem olhar para trás.

            Quando se dirigia para sua classe, após o sinal de entrada, a primeira providência de Rose foi mudar de lugar. Costumava sentar-se lá no fundo, ao lado dele. Naquele dia foi sentar-se na frente.

            - No mínimo deve ter brigado com ele - comentou uma amiga ao lado.

            - Valério é burro, Cristina! O que tem de mais me deixar ir ao piquenique sozinha?

            - Ah, foi por isso. Esses homens e essa mania de dominadores.

            - Por isso que sou a favor do Movimento de Libertação da Mulher. Temos que nos libertar, destruir esse conceito de servilidade que os homens tem de nós, mulheres.

            - Falou bonito. Quero ver isso na prática.

            - O que você quer dizer com isso?

            - Quero ver até quando você agüenta ficar sem ele.

            - Você vai se surpreender.

            Naquele dia, a pedido dos próprios alunos, teriam uma aula diferente. apesar de interesse comum sobre o assunto, o professor encarregado de ministrar essa aula surgiu com a seguinte proposta:

            - Caros alunos, como se trata de um assunto muito delicado, sugiro que dividamos a classe. Primeiro os rapazes terão a palestra e depois as garotas...

            - Por que a distinção, professor? - indagou Rose.

            - É que o assunto sexual é muito delicado para ser tratado numa classe mista...

            - Mas isso não é uma contradição? Sexo é feito a dois, nada mais justo que a palestra seja ouvida pelas garotas e pelos rapazes ao mesmo tempo.

            - Mas vai ser embaraçoso - gaguejou o professor, corando, pois não esperava pela resposta da garota.

            - Rose está com a macaca hoje - comentou Valério em voz alta, pretendendo mesmo ser ouvido por ela.

            - É isso mesmo Rose - concordaram, porém, as outras garotas, solidarizando-se com sua sugestão.

            - E então, professor? O que resolve.

            - Vocês me colocaram numa situação difícil. Eu... Confesso que...

            - Por que toda essa indecisão, professor? - interrompeu-o a garota - Não pense que o assunto nos é de todo desconhecido. Já sabemos muito mais do que supões. Acontece que temos dúvidas em comum que devem, segundo penso, serem resolvidas em comum.

            O professor batucou com os dedos no tampo da mesa, fechando a cara, enquanto parecia pensar.

            - Está bem - disse ele, resolvido. -- Vocês querem em comum? Pois vão ter em comum. Antes de mais nada, gostaria que escrevessem num pequeno pedaço de papel suas dúvidas e me entregassem. Eu irei respondendo a essas perguntas. E não se preocupem, não é preciso escrever o nome no papel.

            Rose, ao ouvir isso, levantou propositalmente o material de cima da carteira e soltou-o de novo, fazendo um barulhão.

            - Assim não dá, professor - bronqueou ela. - Eu já tenho dezesseis anos, não sou tão criança e tenho coragem suficiente para lhe expor minhas dúvidas verbalmente, sem usar desse subterfúgio. Isso é coisa do passado, o senhor está tratando o assunto com discriminação, com um cuidado exagerado. Do que tem medo, afinal?

            A classe toda ficou tensa e em silencio, aguardando a reação do professor. Este limitou-se a respirar fundo e sentar-se, olhando fixamente para a garota.

            - Ele vai perseguir você - disse-lhe um colega ao lado.

            - Deixe-o me perseguir para ver - desafiou Rose.

            - Você pode ter coragem para fazer perguntas pessoalmente, mas nós não temos - cutucou-lhe uma colega atrás.

            - Como não? Não quero nem saber. Vocês vão ter que agüentar firme agora.

            - Por favor, Rose. Não insista - pediu outra.

            - Mas o que é isso? - indagou ela, virando-se para suas amigas. - Vocês são mulheres ou galinhas com sangue de rato?

            As outras baixaram as cabeças, demonstrando que não estariam com ela daquela vez.

            - E então, como vamos fazer? - indagou o professor, com ares triunfantes, vendo que a garota ficava sozinha naquela sua idéia.

            Rose engoliu em seco, arrancando uma folha de papel e rabiscando ali perguntas mais absurdas sobre o tema. Ao entregá-la ao professor, porém, ele, sem a ler, amassou-a e jogou-a no cesto de lixo, deixando a garota sem reação.

            Naquele dia, após o término das aulas em sua casa, Rose passou a tarde toda em seu quarto, pensando. Fora traída pelas próprias colegas, além da desfeita e do pouco caso que lhe fizera o professor. E por quê? Apenas porque expusera suas idéias. Bem verdade que estava um pouco nervosa por causa da briga que tivera com Valério e aproveitara a situação para desabafar. No entanto, sentia-se tremendamente irritada com suas amigas, com aquela servilidade com que aceitaram as idéias do professor sem questionar. Aquilo era inadmissível, ainda mais no século XX, quando se apregoava que todos os lados que a mulher se emancipava, assumia posições de liderança, antigamernte privilégio dos homens.

            As outras que se danassem, mas ela não iria aceitar imposições. Não depois de ter brigado com Valério por causa daquilo, precisava fazer alguma coisa, precisava se... Emancipar?

            Repetiu a palavra. Soava bem, como algo importante.

            - Sou uma mulher emancipada - comentou em voz alta - passeando em frente ao espelho da penteadeira.

            Achou que estava bem. Repetiu a cena, antes de sentar-se na cama e enterrar o queixo nas mãos, pensativa.

            - Rose! - gritou a mãe - Telefone!

            - Quem é.

            - Valério.

            - Não quero falar com ele.

            - Então venha dizer-lhe isso pessoalmente.

            - Está bem! - concordou ela, caminhando pesadamente até a sala, onde estava o telefone.

            - Ainda está brava, Rose? - indagou ele.

            - Vá a... - disse ela, murmurando um palavrão.

            - O que isso, anjo?

            - Não me chame de anjo.

            - Ainda está zangada comigo?

            - Pensa que não ouvi suas gozações lá no fundo da classe.

            - Eu não fiz por mal...

            - Não quero nem saber - soletrou ela. - O que você quer comigo?

            - Quero pedir-lhe desculpas.

            - Quer dizer que vai me deixar ir ao piquenique? - indagou ela, enquanto seu rosto se iluminava.

            - Eu apenas disse que queria pedir desculpas. Isso não muda nada.

            - Tem razão, não muda nada. passar bem.

            - Espere aí, não desligue ainda.

            - Você já disse o que queria e já conhece minha decisão. Não temos nada a falar.

            - Sabe, é que hoje à noite é aniversário da Cleide e ela vai dar uma festinha. Coisa simples, estilo americano. As meninas levam os salgadinhos e...

            - Eu já sei, ela me convidou - cortou ela.

            - E então você vai?

            - Talvez.

            - Não faça charminho, Rose. Eu a conheço.

            - Conhece? Puxa, que coincidência! Não fomos apresentados ainda, somos desconhecidos e eu não falo com desconhecidos - finalizou ela, batendo o telefone.

            Sua mãe, que terminava de colocar uma cortina nova que fizera na janela da sala, olhou para ela, sorrindo.

            - Briga feia, não?

            - Esses homens são burros mãe - desabafou ela sentando-se no chão.

            - É mais sério do que pensei. O que houve?

            - Ele não quer me deixar ir ao piquenique de domingo, só porque ele não pode ir. Tem cabimento isso?

            - E vocês brigaram por causa disso?

            - Eu disse que iria, quer ele deixasse ou não.

            Sua mãe veio sentar-se perto dela, numa poltrona. Alisou-lhe os cabelos com carinho.

            - Mãe, o que é preciso para uma mulher se emancipar?

            - Por quê? Você pretende se emancipar?

            - Se emancipar significa não se deixar dominar, quero.

            - Entre outras coisas difíceis, você vai ter de arrumar um trabalho - disse-lhe a mãe, tentando desanimá-la.

            - Por quê?

            - Para ter seu próprio dinheiro. Assim não dependerá mais do namorado para ir ao cinema. E quando forem, racharão as despesas. E farão o mesmo nos bailes, na lanchonete...

            - Então vou arrumar um emprego para mim.

            - Bobagem filha.

            - Não, mãe. Agora é por teimosia. Imagine o que me aconteceu hoje. Vou lhe contar... - falou ela, narrando todo o ocorrido à mãe.

            - Não é tão mal assim. Você provocou o professor...

            - Mas tinha razão, não tinha?

            - Tinha, tinha sim, filha.

            - E aquela moscas mortas das minhas amigas nem se abalaram. Deixaram-me sozinha na fogueira.

            - É o que sempre acontece a quem assume uma liderança sem consultar seus liderados.

            - Quer dizer que eu não deveria ter feito aquilo.

            - Como atitude pessoal, sim, mas falando por todas elas, não. Reconheço, porém, que elas foram muito moles. Deveriam, apesar de tudo, terem ficado do seu lado.

            - É duro não ser compreendida! - exclamou ela, fazendo um arzinho de vitima meio melodramático.

            - As moças que se emancipam totalmente, acabam se afastando do próprio lar, vão morar em um apartamento próprio. Você pretende fazer isso?

            - É preciso?

            - É uma exigência da posição que assumiram.

            - Mas eu não quero sair de casa.

            - Então esqueça toda essa bobagem de emancipação. É um assunto muito complicado para você.

            - Também não é assim que se fala, não é, mãe?

            - Está bem, não é assim, desculpe-me. Primeiro você vai ter que pensar no que realmente pretende fazer, o que quer com esse ato. Depois veremos o que se fará.

            - Você me dará todo apoio, não dará?

            - Lógico que sim, filha. Apesar de você ainda ser uma criança...

            - Ah, não! Você também, mãe? Tenho dezessete anos, já sei muitas coisas da vida, não sou criança mais.

            - Acho que vamos ter o que se chama de choque de gerações, filha.

            - Eu sabia que cedo ou tarde isso teria que acontecer, mãe - dramatizou Rose.

            - Precisamos agir com cautela agora, filha. O diálogo é a base de tudo, não podemos permitir que isso venha abalar nossa paz - replicou a mãe, no mesmo tom que a filha, como se fosse uma brincadeira.

            Para Rose, no entanto, tudo era sério, como tudo é sério aos dezessete anos.

 

            A noite, Rose relutou em aceitar ou não o convite da amiga para a festa de aniversario. A presença de Valério lá iria ser muito desagradável para ela. apesar de tudo, ela gostava dele. Vê-lo dançar com alguma outra garota seria o fim. Por outro lado, ela sentia que precisa se impor. Sua idéias de emancipação falavam alto propondo aquilo um desafio que tinha que aceitar. Ainda havia tempo. Correu a preparar alguns salgadinhos para a festa.

            Seu principal dilema, porém, foi como vestir-se. Era uma festa intima entre o pessoal do bairro, todos iriam comparecer vestidos esportivamente. Ela no entanto, queria abafar, fazer-se notada. A cena ocorrida no colégio, naquele dia havia abalado seu moral perante os amigos. Precisava fazer alguma coisa para recuperar seu prestigio abalado.

            Escolheu uma de suas calças compridas mais novas e uma blusa branca de renda bem folgada e quase transparente. Com um sorriso de desafio nos lábios, tirou o sutiã e pôs a blusa, admirando-se ao espelho. Estava o máximo, com seus cabelos caídos contrastando com o branco da blusa. Uma calça comprida azul-escuro completava o traje.

            - Que maravilha! - exclamou o pai, quando ela surgiu na sala, pronta para sair. - Onde vai tão elegante?

            - Vou a uma festa na casa de Cleide.

            - Está realmente muito bonita. Mas não acha sua blusa um tanto ousada? - opinou a mãe.

            - Não seja tão desatualizada, mãe, senão vamos ter outro choque de gerações - disse ela, passando por eles, beijando-os e, a porta, antes de sair atirou-lhes beijos. - Não me esperem, talvez eu chegue tarde.

            Assim que ela saiu, seu pai ficou olhando para a esposa, surpreso.

            - Que estória foi aquela de choque de gerações?

            A mulher riu antes de narrar-lhe a conversa que tivera com a filha naquela tarde.

            - Que bobagem a dela! - concordou o marido.

            - E isso é só o começo. Não sei o que anda passando pela cabeça dela, mas tenho uma leve impressão de que isso vai longe.

            - É fase.

            - O que você acha de arrumar um emprego para ela lá na empresa?

            - Lá na industria? Você está maluca. Só há trabalho de escritório e de fiandeira - disse ele, pois era gerente de uma firma de tecidos. - De fiandeira não dá, pois é um trabalho muito difícil.

            - Ela está numa fase de afirmação e contestação. Temos que ajudá-la. Dar-lhe um emprego de secretária para não fazer nada, pouco adiantaria. apesar de ser um trabalho duro, acho que devemos tentar o de fiandeira.

            - Tem certeza de que deseja isso mesmo.

            - Pelo menos lá ela estará perto de você. Vai ser mais fácil vigiá-la, não concorda?

            - Quanto a isso você tem razão. Amanhã vou falar com o chefe do pessoal e ver o que posso fazer. Mas ela vai sofrer um bocado.

            - Não se preocupe com isso. Rose pode ser tudo menos uma frágil garotinha indefesa. Ela saberá se portar bem. Vai ver como é difícil ganhar o próprio sustento. Vai ser uma boa lição.

 

           A festa estava muito animada e Rose ganhava todas as atenções dos rapazes presentes à reunião. Sua beleza, bom humor e espontaneidade cativaram a todos. Ela percebia isso e cuidava em caprichar ao máximo, vibrando em ver a expressão geral de desagrado das outras garotas. No intimo, Rose sentia-se vingada da falta de camaradagem das amigas que a puseram em má situação no colégio, naquela manhã.

            Valério estava presente, muito bem vestido. Rose o notou, chegando, por momentos, a se arrepender de haver brigado com ele. A vontade de jogar toda aquela pose de lado, retirar a máscara e correr para os braços dele, ouvir as palavras de amor que ele costumava sussurrar, sentir-se protegida entre aqueles braços fortes, era muito grande. Mas tinha que resistir, disfarçando.

            A noticia de que ela brigou com ele já havia se espelhado, de modo que todos os rapazes a disputavam para dançar. De muito bem grado ela aceitava, pois aquilo aumentava ainda mais o despeito das outras colegas. Pode-se dizer que Rose era toda a alma da festa.

            Numa pausa entre uma seleção musical saiu para o jardim com um colega. A noite estava fresca, estrelas cintilavam no céu e o burburinho da cidade chegava até eles misturando ao som das conversas que vinha da sala.

            - Quer dizer que você brigou com o Valério, não é? - indagou-lhe o rapaz, aproximando-se dela.

            - Sim, brigamos. Ele é um chato de galocha.

            - Fico muito satisfeito que isso tenha acontecido - continuou o rapaz, aproximando-se mais ainda dela.

            Estavam ambos sob uma pequena árvore no jardim da casa. Rose havia se encostado ao tronco e o rapaz se postara a sua frente, com uma das mãos apoiada pouco acima de sua cabeça.

            - Por que você fica tão satisfeito assim?

            - Sabe, Rose. Há muito tempo venho olhando você de longe, tentando me aproximar, mas você não me dava pelota...

            - Verdade?

            Rose não era nenhuma ingênua. Sabia que ela própria, seu corpo e sua beleza aliados a cumplicidade daquela blusa audaciosa, em muito perturbava os rapazes. Aquele, em particular, estava dizendo uma porção de bobagens, porque tinha uma namorada que, por sorte dele, não estava na festa. Ela sabia muito bem o que ele pretendia, por isso ficou na defensiva, mas, muito marota, incentivava-o só para ver até onde ele iria.

            - Você é muito bonita...

            A mão dele deslizou do tronco e foi pousar nos ombros da jovem, onde fizeram uma leve pressão, quase um carinho.

            - E você é muito simpático - sussurrou ela, passando a língua de leve entre os lábios.

            O rapaz empolgado, aproximou seu rosto vagarosamente do dela, fechando os olhos. Quando seus lábios estavam quase tocando os lábios dela, Rose, de olhos abertos, indagou:

            - Aquela ali à porta não é sua namorada?

            - Quem? Onde? Cadê - indagava o rapaz, todo atrapalhado, sem saber como parar em pé.

            Rose, porém, ria a valer da peça que havia lhe pregado. Ao perceber que havia sido enganado, o rapaz olhou-a seriamente, olhos fuzilando, com vontade de agarrá-la pelo pescoço e esganá-la.

            - Foi realmente muito divertido, não foi? - indagou ele, sério.

            - Muito - concordou ela, sem parar de rir.

            - Ri melhor quem ri por último - falou ele, num tom de ameaça, afastando-se.

            Rose esperou um pouco até se acalmar e parar de rir e depois entrou. Não soube por que, mas teve a impressão de que o ambiente se tornou tenso quando ela entrou. Naquele justo momento, colocaram nova fita no gravador e ela aguardou ser convidada a dançar por algum dos outros rapazes. Para seu espanto, porém, nenhum deles fez menção de se dirigir a ela. Pelo contrário, estavam todos convidando garotas que até então não haviam dançado nenhuma vez.

            Não sabia ela que o rapaz a quem pregara aquela peça havia entrado e proposto a todos os outros rapazes que não a convidassem mais para dançar, coisa que todos concordaram, inclusive Valério. Este o fizera mais por divertimento do que por outra coisa. Queria ver até onde Rose iria com aquela sua atitude.

            Rose, porém, não se abalou. Aproximou-se de uma de suas colegas.

            - Rita, você nem queira saber o que aconteceu agora pouco...

            - Depois você me conta, Rose - disse a outra.

            - Aprontei uma boa com o...

            - Verdade? - cortou-a a outra, afastando-se também.

            Uma se podia aceitar; duas já era coincidência. Todas elas também pareciam estar contra a jovem. Bastou olhar ao redor para ter certeza daquilo.

            - Ah, é assim? - murmurou ela, aproximando-se de onde estava o gravador e desligando-o. - O que há com todo mundo aqui? Estão me estranhando.

            Os pares pararam de dançar e olharam para ela com um sorriso zombador.

            - Que foi, queridinha? Não está gostando da festa? - indagou uma.

            - Já está de saída? Que pena! - sugeriu a outra.

            Rose sentiu vontade de sapatear ali mesmo, apanhar o gravador e atirá-lo ao chão, dizer mil e um palavrões, mas se conteve. Precisava agir com toda dignidade.

            - Muito abrigada! A festa esteve boa, mas tenho que ir - disse ela, esforçando-se para que sua voz não tremesse.

            Ao sair, passou pelo poste que continha a chave geral de energia elétrica da casa e foi até o portão. Uma idéia diabólica estalou em sua mente. Voltou até o poste e desligou a chave geral, retirando os fusíveis. Quando os ocupantes da casa dessem pelo fato, já estaria longe com eles. Até que se normalizasse tudo, o transtorno seria geral.

            Caminhou apressada para casa, mas, antes de chegar lá, um carro a alcançou. Era Valério.

            - Rose, quero falar com você.

            - Não temos nada a dizer.

            - Não seja teimosa, Rose - dizia ele, dirigindo o carro ao lado da calçada, bem devagarinho, acompanhando os passos da garota.

            - Você também fazia parte daquele complô?

            - Aquilo foi só uma brincadeira, você mereceu.

            - Não, não mereci. Aquele cara é que mereceu o que fiz. Ele não tem vergonha de trair a namorada daquele jeito? - E aquelas galinhas mortas lá, nem para defender uma amiga.

            - Rose, cale a boca e entre aqui - ordenou ele, rispidamente.

            Noutros tempos ela se intimidaria, como quase ia fazendo naquela momento. Instintivamente já ia se dirigindo para o carro, mas parou. Levantou o indicador à frente do rosto e balançou-o de uma lado para o outro dizendo:

            - Não, não, não. Você não manda em mim. Pensa que basta estalar os dedos ou dar uma ordem e a tonta aqui vai correndo se aninhar nos seus pés? Está muito enganado, mocinho.

            - Está bem, Rose. Você quer fazer o favor de subir aqui? - pediu ele, mais satisfeito, pois pelo menos já a havia feito parar de andar.

            - Por que você não desce e vem falar comigo aqui?

            Ele freou o carro, desligou-o e desceu. Aproximou-se dela e, inesperadamente, abraçou-a fortemente e beijou-a com ardor, quase sufocando-a.

            - O que tem a dizer depois disso? - perguntou ele, todo orgulhoso, como se esperasse que aquele beijo e aquela manifestação de posse fossem abrandar o coração da jovem.

            - Muito primário e apressado. Você já esteve em melhor forma - falou ela, recomeçando a caminhada.

            - É hoje! - exclamou ele, caminhando atrás dela.

            Já estavam próximos da casa da jovem. Mais alguns passos e ela atingia o portão. Antes que entrasse, porém, ele a segurou pelo braço.

            - Quer ter a bondade de me soltar?

            - Você está com medo de mim? - ironizou ele.

            - Medo de você? Por que, você morde? - respondeu ela, na mesma medida.

            O rapaz contou até dez para não perder a calma.

            - Foi você que tirou os fusíveis, não foi? - indagou ele.

            - Talvez.

           - Pois você fez muito bem - tratou ele de mudar de tática. Ir contra ela estava se mostrando ineficaz. Talvez se lhe desse razão...

            - Você acha? - falou ela, enquanto um sorriso esperançoso se desenhava em seus lábios.

            - Eles mereceram. Dou toda razão a você. Aquele chato do Augusto não tinha nada que se meter com você. Quando ele veio propor que colocássemos você na geladeira, quase lhe dei um murro na cara.

            - Devia ter dado mesmo. Será que ele não se enxerga.

            - E depois, aquelas tontas todas, com ciúmes de você, agiram daquele modo. Que falta de personalidade, de caráter. Por isso que gosto de você. Você é única, Rose - frisou ele, abrandando a voz, enquanto segurava-lhe as mãos e as levava aos lábios, beijando-as com doçura.

            Uma cintilação de estrela passou pelos olhos da garota. Ela se tornou frágil, desprotegida, com aquele sorriso de adolescente apaixonada enfeitando-lhe o rosto.

            - Você me deixa? - pediu ela, docemente.

            - Deixa o quê, querida? - quis ele saber, beijando-lhe a testa, o nariz, as faces, o queixo...

            - Eu ir ao piquenique...

            Ele a soltou como que fulminado por um raio. Virou-se, deu alguns passos em direção ao carro, fez meia volta, chegou até ela novamente, olhou-a bem, respirou fundo, bateu as mãos uma contra a outra.

            - Vá para o inferno! - soletrou ele, dirigindo-se ao carro e saindo a toda, deixando-a decepcionada ao portão.

            - Bestão! Na certa pensou que eu ia cair nessa - murmurou, mais tentando se consolar do que se vangloriando, antes de entrar.

            - Voltou cedo, filha. A festa não estava boa? - interpelou-a a mãe.

            - Estava chatíssima - respondeu, sentando-se ao lado do pai.

            Seus pais notaram sua cara amarrada e percebiam que alguma coisa havia saído errado.

            - Sua mãe me disse que você pretende arrumar um emprego, é verdade?

            - É sim, pai. Quero me emancipar.

            Seu pai se esforçou para não rir, tamanha foi a graça com que ela pronunciou aquelas palavras.

            - Posso lhe arrumar um.

            - Onde?

            - Lá na fábrica.

            - Não vai dar certo.

            - Por quê?

            - Porque serei tratada como sua protegida, aquela coisa toda.

            - E se eu prometer tratá-la como a todos os empregados?

            - Talvez eu aceite.

            - Então, Srta. Rose, procure por mim em meu escritório amanhã. Aqui está meu cartão - disse-lhe o pai.

            - Obrigada, Sr. Alberto. Estarei lá amanhã... depois das aulas. Antecipo que só poderei trabalhar meio expediente.

            - Não tem importância. Antecipo que você, quero dizer, a senhorita só vai ganhar meio salário.

 

            No dia seguinte, após as aulas, Rose se dirigiu à fábrica em que seu pai trabalhava. Não tinha ainda a menor idéia sobre que tipo de trabalho teria que fazer. Estava, porém, muito animada com tudo aquilo.

            Como seu pai estivesse ocupado recebendo alguns compradores, Rose o aguardou na sala da secretária. Esta era uma jovem muito bonita, loura, vinte e tantos anos, muito desembaraçada e simpática. Sentada numa poltrona em frente da escrivaninha, Rose a observou com curiosidade. A jovem, sentindo-se observada, olhou para ele e sorriu:

            - Seu pai não demora.

            - Meu pai não, meu patrão - frisou Rose.

            - Patrão? Ora por quê?

            - Vou trabalhar aqui.

            - Verdade?

            Rose assentiu com a cabeça, sorrindo. Observou a jovem à sua frente por mais algum tempo, antes de indagar-lhe:

            - Você é emancipada?

            - Emancipada.

            - Sim, sou.

            Rose se levantou e aproximando-se dela, debruçou-se sobre a escrivaninha.

            - É bom ser assim?

            - Não tenho queixas.

            - E seus pais?

            - Meus pais não moram aqui, moram numa cidade vizinha.

            - Como é sua vida? Onde você mora? O que faz?

            - Por que tantas perguntas?

            - É que eu também pretendo me emancipar - afirmou Rose, voltando-se a sentar-se, assumindo ares de importante.

            - Na cidade onde eu morava não havia nada para se fazer. Se a gente quisesse trabalhar, tinha que ser de doméstica, apesar de todo estudo que tivesse. Por isso vim para cá. Londrina já é um grande centro industrial; as oportunidades são maiores.

            - Quando você tomou essa decisão, e que seus pais disseram?

            - Como todos os pais do interior, protestaram, brigaram, foi uma confusão geral. Depois eu lhes fiz ver que não havia nada de mal se fazer isso. Eles acabaram compreendendo que eu precisava trabalhar. Em parte eles tinham razão. O medo deles era a idéia de saber que eu ficaria sozinha numa cidade grande, cheia de vícios e perigos. Amor exagerado, em resumo.

            - E daí, o que você fez?

            - Primeiro arrumei um emprego, foi justamente aqui. Eu já havia feito um curso de secretária, por isso foi fácil. Além disso eu havia estudado inglês e francês, o que me ajudou muito. Depois do emprego, procurei algumas garotas que estivessem na mesma situação que eu para que alugássemos um apartamento juntas. Hoje tudo corre bem. Eu continuei estudando, progredindo, e não me arrependo da decisão que tomei.

            Rose pensou alguns instantes antes de indagar:

            - Para a gente se emancipar é preciso mesmo se afastar dos pais?

            - Não, não é tão necessário, mas a gente não se sente emancipada assim. No principio eu também sofri muito, senti saudades, mas hoje me sinto totalmente ajustada. Tenho toda liberdade do mundo, faço meus horários, dirijo minha vida como acho melhor.

            Naquele momento, a porta do escritório do pai se abriu e os compradores saíram. Havia terminado a entrevista.

            - Posso falar com ele agora? - indagou Rose à secretaria.

            - Vou anunciá-la, um instante só.

            Pouco depois, muito segura de si. Rose se apresentava perante seu pai.

            - E então, Srta. Rose? Está disposta mesmo a começar?

            - Imediatamente.

            - Aviso-lhe que o serviço é duro.

            - Não pedi moleza, patrão.

            - Muito bem, senhorita. Vou levá-la até o chefe do pessoal.

            Seu pai se levantou, mas, antes de segui-lo, Rose olhou para ele meio chateada e perguntou:

            - Tem que ser assim tão formal, pai?

            - Você não queria tratamento de igualdade.

            - É, pedi - concordou ela, seguindo-o.

            Como seu pai dissera, o serviço era realmente difícil. Durante quatro horas ela teria que ficar em pé, cuidando da máquina de fiar. Ela não reclamou, no entanto. Estava disposta a trabalhar e trabalharia, não importava o trabalho.

            Ao final da tarde, no encerramento do expediente, o encarregado da produção convocou uma reunião com as operárias.

            - Como vocês notaram, hoje pela manhã tivemos aquele problema com a instalação elétrica, de modo, de modo que não pudemos manter a produção costumeira. Isso nos é tremendamente prejudicial, pois temos contratos de exportação a cumprir. A diretoria se reuniu ainda há pouco e decidiu solicitar a colaboração e compreensão de todas...

            Rose aguçou os ouvidos e veio se aproximando do homem, curiosa. Pelo tom de voz dele, pela explanação toda, alguma coisa ia ser solicitada.

            - Por isso - continuou o encarregado - eu convoco todas vocês para um período de horas extras noturnas. Vocês receberão uma refeição aqui mesmo na fábrica, além das horas extras e adicionais noturno. Compreendendo que muitas de vocês moram em bairros afastados daqui, a empresa já contratou um ônibus para no final da noite, levá-las uma por uma a suas residências. Podemos contar com vocês?

            As operárias todas se entreolharam. Era, realmente, um imprevisto. Muitas delas estudavam, tinham encontro com namorados ou já haviam assumido outro compromisso. Por outro lado, era uma boa chance de receberem um dinheiro a mais no final do mês. Como nenhuma se manifestou, Rose se adiantou do grupo e encarou o encarregado:

            - Espere um pouco aí, moço. Isso também não é assim. Você já pensou no monte de problemas que isso vai causar a todas nós?

            - Você é nova aqui, mocinha?

            - Sim, comecei hoje, mas não sou nenhuma boba. Apesar de não ter nada para fazer à noite, ninguém vai me obrigar a ficar aqui. Como é que nossos familiares vão ficar sabendo que estamos trabalhando? Na certa eles irão ficar preocupados. E será que acreditarão depois quando dissermos que estávamos trabalhando?

            - A diretoria já pensou nisso. Só aguarda a decisão de vocês para divulgar um comunicado pela televisão. Temos certeza de que todas as famílias vão ficar sabendo...

            - Mesmo assim. Vocês não têm o direito de fazer isso.

            - Escute, moça, por favor. Eu não estou obrigando ninguém, eu estou pedindo, em nome da diretoria, a colaboração e a compreensão de todas vocês.

            - E a diretoria?

            - O que tem ela?

            - Eles vão ficar aqui trabalhando ou vão embora.

            - Moça, o problema é na produção e não na diretoria. É preciso manter uma produção diária num determinado nível. Quando isso não acontece, temos um monte de problemas.

            - Eu não topo e convido todas as minhas colegas a não aceitarem também. Pensem nas aulas que vão perder, nos seus namorados, pobrezinhos, esperando em vão a noite toda. Pensem que eles, inconsoláveis, possam até ir buscar consolo em outro lugar. Pense nos seus afazeres domésticos, pensem no cansaço que estão, pensem...

            - Moça, por favor, você está dificultando tudo - interrompeu-a o rapaz lutando para não perder a calma.

            - Ele tem razão moça. Deixe a gente decidir isso - falou uma jovem lá no fundo.

            - É isso mesmo, você está falando por você, sem ouvir nossa opinião - completou outra.

            - E não tenho razão? Vamos, digam se não tenho razão - disse Rose, subindo num pequeno caixote para olhar todas as quase trezentas operárias.

            - Eu não agüento mais - desistiu o encarregado, saindo à procura de seus chefes.

            - O único que ainda se encontrava lá era justamente o pai de Rose. O rapaz entrou em seu escritório visivelmente transtornado.

            - Sr. Alberto, assim não dá. Eu fui falar com as moças, mas uma delas, uma novata que não conhece ainda, dificultou tudo. Está criando uma porção de obstáculos. Vai acabar convencendo as operárias e não fazerem as horas extras. Vá lá e convença aquela desmiolada a colaborar.

            - Essa desmiolada novata não é por acaso magra?

            - Sim, isso mesmo.

            - Cabelos compridos e olhos negros?

            - É.

            - Bonitinha e malcriada?

            - Sim, senhor conhece aquela doida.

            - Sim, é minha filha - disse ele, após um longo suspiro. - Vamos lá verificar isso.

            Quando viu seu pai se aproximando, Rose fez uma pose de líder, tornou-se sério e aguardou:

            - Minha filha, o que está havendo?

            - Nada disso, Sr. Alberto. Tratamento de igualdade, lembra-se?

            - Venha cá, Rose - ordenou-lhe o pai, segurando-a pelo braço e afastando-se de onde estavam as operárias.

            - Pai, vocês não têm o direito de...

            - Rose, isso aqui é uma fábrica, com planejamento e compromissos a cumprir. Hoje de manhã tivemos um contratempo com a instalação elétrica e toda produção parou por quatro horas. Isso significa uma quebra muito significativa em nosso planejamento. Além disso, as garotas ficarem sem fazer nada durante toda a manhã e receberão por isso. Estamos apenas pedindo uma colaboração no sentido de regularizar esse problema. Não estamos desrespeitando nada, estamos sendo até bastante justos em tudo que oferecemos. Compreende isso?

            - Quer dizer que essas garotas vão perder aulas, perder compromissos, desgastarem-se apenas pelo frio planejamento da firma?

            - Ah, filha, você puxou sua mãe.

            - Não meta problemas de família nisso. É um assunto profissional.

            - Está bem. Que poderes tem você? É por acaso representante sindical? Foi nomeada representante das operárias?

            - Não, eu assumi quando...

            - Pois não é assim. Por acaso você perguntou a elas se elas queriam que você fizesse o que fez, que falasse em nome delas?

            - Não, eu não pensei que...

            - Pois então fique com a boca calada, ou serei obrigado a despedi-la.

            - Você faria isso...

            - Quer apostar?

            A severidade presente no rosto de seu pai a convenceu.

            - Está bem. Mas se as garotas não quiserem?

            - Problema delas.

            - Está certo. Eu fico com a boca fechada, mas sob protesto. Mais uma vez vocês, os machões, estão subjugando o sexo frágil, impondo uma decisão arbitrária.

            - É, é isso mesmo, concordo com você, mas vamos para lá terminar com isso - finalizou seu pai, reconduzindo-a onde estavam as outras.

            Foi solicitada uma opinião geral e as operárias compreenderam o problema, aceitando realizar o trabalho. Para não ficar atrás, apesar da insistência do pai Rose decidiu ficar também.

            Mais tarde, após o jantar que tiveram ali na fábrica e antes de iniciarem o trabalho, uma jovem se aproximou de Rose, sentando-se perto dela.

            - Elogio o que você fez, mas sinto que tenha sido inútil - disse ela.

            - Você gostou?

            - Sim, gostei, você falou muito bem, mas não está por dentro dos nossos problemas.  

            - Como assim?

            - Ouvi o Sr. Alberto chamá-la de filha, assim deduzi que você deve estar trabalhando por um simples capricho, o que não acontece com todas nós. Olhe, a maioria que trabalha aqui, faz isso porque precisa. Nós temos que ajudar no orçamento de nossos lares. Uma oportunidade como a de hoje de no final do mês engordar um pouco mais o envelope de pagamento nunca é recusada. Ela significa um sapato novo, um vestido novo, entende?

            - Puxa, é tão duro assim?

            - É... Como é seu nome mesmo?

            - Rose. E o seu?

            - Mirtes.

            - Você disse que eu trabalho por capricho, não foi? Mas não é verdade. Trabalho para me emancipar.

            - Emancipar? O que significa isso?

            - Significa que quero viver independente, ter liberdade, não ser dominada pelos homens.

            - Você não quer ser dominada pelos homens.

            - Claro que não. E você?

            - Ah, eu quero.

            - Por quê? Para passar o resto da vida cuidando de panelas e fraldas, indo do fogão para o tanque todos os dias até o fim?

            - É o meu maior sonho.

            - Você deve estar maluca!

            - Maluca? Eu? Então todas nós estamos. Não vejo a hora de me casar, ter minha casinha, meus filhos e meu marido. Assim não terei que trabalhar duro como faço.

            - Mas é uma contradição! Você está disposta a se tornar um simples objeto para o resto da vida?

            - Que objeto? Quero ter meu lar, meu marido para me amar e proteger, isso é maluquice? Para mim não é. É o maior sonho da minha vida.

            - Todas as outras pensam assim?

            - Pode perguntar a elas.

            - Será que a maluca sou eu?

            - Cada louco com sua mania, Rose - finalizou a outra levantando e se afastando, deixando a garota realmente desconcertada.

 

            Quando chegou em casa, naquela noite, morta de sono e cansaço, sua mãe a esperava. apesar de toda pena que sentia, a mulher procurou não demonstrar.

            - Cansada, filha?

            - Demais, mãe.

            - O que me conta de seu primeiro dia de trabalho?

            - Uma coisa maluca, mãe. Papai já deve ter contado tudo, não?

            - Sim, ele me disse. Você não acha que está levando tudo muito a sério?

            - Mas quem disse que eu estava brincando, mãe? É sério mesmo. Nunca agi tão sério assim em minha vida.

            - Pretende voltar ao trabalho amanhã?

            - Claro que sim - respondeu ela, sem muita convicção.

            Na verdade, decepcionara-se com o que vira e ouvira naquela tarde. Se por um lado as palavras da secretária lhe demonstrassem as vantagens de emancipação, o que vira na maioria, isso é, nas operárias, era justamente o contrário. Onde estaria então a vantagem? alguma coisa não estava certa, ela estava falhando em alguma coisa.

            Sentou-se numa poltrona, cruzando as pernas sobre o estofamento e enrolando os braços ao redor dos joelhos, pensativa e esgotada. Sua mãe veio sentar-se junto dela.

            - Seu rosto não demonstra nenhuma alegria - observou a mãe.

            - É porque estou muito cansada. Vou tomar um banho e cair na cama.

            - Não quer conversar um pouco comigo.

            - Mãe, sinceramente, o que pensa de tudo que estou fazendo?

            - Não importa o que eu penso, filha. O importante é o que você está achando de tudo.

            - Estou decepcionada - confessou ela, debruçando a cabeça sobre os joelhos.

            - É apenas o começo...

            - Mas eu estou encontrando dificuldades...

            - Não deve desistir.

            - Você concorda comigo?

            - Sim. Na sua idade, é importante realizar tudo que se pretende. Acontece que às vezes a confusão é muito grande...

           - Quanto a isso tem razão. Estou muito confusa. Acho melhor eu ir tomar aquele banho e me deitar. Amanhã cedo tenho aula, não quero chegar atrasada.

            Despediu-se da mãe e foi para o quarto. Despiu-se, tomou um banho e caiu na cama, adormecendo imediatamente.    

            Ao acordar, na manhã seguinte, tudo parecia mais claro. Ela pode em tudo que acontecera no dia anterior, descobrindo seu erro. Não poderia nunca buscar adesões no meio das operárias, simplesmente porque elas não tinham as mesmas pretensões que ela. Vinham de um outro meio, muito diferente do seu. O que deveria fazer era encontrar pessoas como a secretária do pai, cultas, mentalmente aberta, evoluídas.

            No colégio todo mundo já sabia de seu emprego, coisa que ela não procurou esconder. Foi com orgulho que exibiu suas mãos cheias de bolhas, frutos do trabalho do dia anterior.

            - Mas por que você está fazendo essa loucura? - perguntou uma colega.

            - Que loucura? Você é burra, não entende.

            - O que foi que eu disse, Rose?

            - Você e outras como você são a negação da espécie feminina, traidoras do ideal da libertação e da igualdade. É por causa de vocês que nosso movimento não vai para frente...

            - Nosso movimento? Que movimento?

            - Ufa! Movimento de Libertação da Mulher, Woman's Lib, já ouviu falar?

            - Sim, mas você é representante dele, alguma coisa assim? Eu não sabia - comentou a outra, na inocência de sua ignorância.

            Outras colegas haviam se aproximado também e ouviram com interesse as idéias de Rose. A garota, percebendo isso, caprichou no discurso. Apesar de todo seu empenho, porém, nenhuma delas lhe deu credito.

            Quando entraram para as classes, antes que se iniciasse a primeira aula, a secretária do estabelecimento veio chamá-la.

            Curiosa com aquele chamado, dirigiu-se à sala do diretor. Para sua surpresa, encontrou lá o professor com quem havia discutido na manhã anterior.

            - Srta. Rose - disse o diretor - recebi uma queixa contra a senhorita por parte aqui do professor Melo. Segundo ele, a senhorita o desrespeitou abertamente na aula de ontem. O que tem a dizer sobre isso?

            O sangue subiu-lhe ao rosto, corando-lhe as faces. Ao olhar para o professor sentiu-lhe o olhar cínico e superior, o que a deixou furiosa.

            - Depende do que ele lhe disse, Sr. Diretor. Eu acho que não fiz nada de mau. Apenas não concordei com os métodos dele, é um direito meu, não é?

            - Você me ofendeu, Rose - atalhou o professor.

            - Mas não era caso para comunicar ao diretor, era?

            - Não é a primeira queixa que recebo contra você, Rose. Ultimamente você anda muito rebelde, respondona...

            Rose percebeu que não adiantaria argumentar. Aceitou a advertência e prometeu se comportar melhor. Ao voltar para sua sala de aula, as amigas a olharam com curiosidade.

            - O que o diretor queria com você? - perguntou uma.

            - Tudo culpa de vocês - respondeu ela, sem dar maiores detalhes.

 

            Naquele instante, o Sr. Alberto, pai de Rose, encontrava-se sozinho em seu escritório. Pensava na filha e no que ela pretendia fazer. Sempre a procurara educar com liberdade e compreensão e sabia que aquilo era uma fase, mas que precisava, também, fazer alguma coisa para ajudar a filha.

            Não encontrava, no entanto, uma solução ou medida a tomar. Era-lhe realmente difícil pôr-se no lugar da filha, procurar pensar da mesma forma para poder sugerir alguma coisa.

            Acendeu um cigarro e foi até a janela, pensativo. Estava tão compenetrado que não percebeu a entrada da secretária, que trazia alguns papéis para serem assinados.

            - Sr. Alberto! - chamou ela.

            - Oh, sim, desculpe-me, Néia. Estava distraído.

            - Trouxe uns contratos para serem assinados.

            Ele se dirigiu até sua escrivaninha, assinando os papéis. Antes de entregá-los à secretária, olhou-a distraído, antes de perguntar:

            - Você vive com seus pais, Néia?

            - Não, Sr. Alberto. Moro com algumas amigas num apartamento...

            - Você é o que se chama emancipada, não?

            - Engraçado! - Sua filha me fez essa mesma pergunta ontem.

            - Verdade? Você falou com ela?

            - Sim, ela me fez uma série de perguntas. Eu até achei graça quando ela disse que pretendia se emancipar também...

            - Sabe, Néia, acho que você podia me ajudar.

            - Como assim?

            - Minha filha botou essa idéia na cabeça e eu não sei o que fazer para ajudá-la.

            - Ela é muito jovem ainda, isso vai passar.

            - Sei disso. Ela está confusa, gostaria que você ajudasse um pouco. O que me diz.

            - Mas o que eu poderia fazer?

            - Sei lá, pense em alguma coisa.

            - Não sei realmente o que fazer num caso desse...

            - E eu, então? Espere, tive uma idéia. Ela quer se emancipar, que tal se você a convidasse para passar alguns dias com você, morando em seu apartamento? Eu cuidaria das despesas...

            - Mas o senhor acha que isso daria resultado?

            - Não custa tentar. E então, concorda? Para facilitar tudo eu vou transferi-la dos teares para cá. Digamos que ela vai ser sua auxiliar. Você inventa aí qualquer serviço para ela fazer, mandei-a procurar documentos no arquivo, catalogar correspondência, o que julgar melhor.

            A jovem riu.

            - Sabe, Sr. Alberto, admiro seu interesse. Nem todos os país agiriam assim.

            - É, por isso devo penar mais que os outros, Néia?

 

            Na hora do recreio, Valério se aproximou de onde Rose se encontrava, tomando seu lanche. Ele chegou e encostou-se no muro, perto dela, sem dizer nada. Quando ela notou sua presença, olhou-o com curiosidade.

            - O que você quer comigo? - perguntou ela, com a boca cheia.

            - Estou com fome. Quer me dar um pedaço do seu sanduíche?

            - Claro, tome.

            - Obrigado.

            - Você me parece meio triste.

            - E não deveria estar?

            - Por quê?

            - Pergunta boba essa, não.

            - Não acho. Você disse que estava triste e eu quis saber por quê.

            - Só poderia ser por sua causa, Rose. Eu juro, juro mesmo como não posso ficar sem você. Esqueça aquele maldito piquenique, por favor.

            - Você ainda está preocupado com aquele piquenique? Talvez eu até nem vá mais...

            - Você vai fazer isso por mim? Puxa! - exclamou ele, segurando-lhe a mão, emocionado.

            - Eu não disse nada disso. Talvez eu não vá porque tenha outras coisas mais importantes para fazer.

            - O que, por exemplo? - indagou ele, soltando-lhe a mão.

            - Uma porção de coisas.

            - O que o diretor queria com você?

            - Passar-me um sabão por causa do que fiz ontem com o Professor Melo.

            - Eu sabia que você ia se dar mal. Exagerou um pouco...

            - Ontem você me disse que eu tinha razão. Não o culpo por isso. No fundo, você fica ao lado de seus semelhantes. É a voz do machismo falando mais alto.

            - Rose, você tem alguma coisa contra nós, homens?

            - Não, pelo contrário, até os aprecio...

            - No duro mesmo?

            - quando são inteligentes o bastante para perceberem que o lugar das mulheres não é somente no fogão, que nós temos condições de disputar em pé de igualdade em qualquer setor...

            - Duvido - ironizou ele, sorrindo malicioso.

            - Ora, cale a boca!

            Valério ficou em silêncio, observando enquanto ela terminava seu sanduíche. Havia, naquela rebeldia adolescente, uma promessa de futura mulher muito bela. Ela gostava dela, talvez até a amasse. Não a conhecia, porém, a fundo, Rose sempre fora muito misteriosa. Às vezes impulsiva e rebelde, às vezes ponderada e muito carinhosa. Sua personalidade ainda estava em luta, tentando se definir.

            - Rose, olhe para mim - pediu ele com delicadeza, segurando-a pelos ombros.

            - O que você quer?

            - Olhe-me nos olhos e diga-me sinceramente: Você gosta de mim?

            Ela evitou olhá-la nos olhos.

            - Por favor, Valério, tem gente olhando.

            - Que me importa isso? Quero que me diga, por favor.

            - Não vou dizer.

            - Quando eu a abraçava e beijava, lembra-se? No cinema... Você tinha cócegas... Aquele dia na piscina... Vamos, olhe para mim.

            - Valério, não. Está acabado...

            O sinal anunciando o final do recreio soou, para tristeza do rapaz.

            - Está bem - disse ele, com raiva. - Siga em frente com suas idéias malucas. Eu só lhe digo mais uma coisa, você vai se arrepender e ainda vai me pedir perdão por tudo que está me fazendo, ouviu bem?

            - Não amole - terminou ela, passando, por ele e caminhando para o pátio do colégio.

            Enquanto caminhava, sentia seu coração aos pulos, seu peito arfado, sua cabeça latejando. As palavras de Valério haviam-na atingido em cheio. Tivera que fazer um esforço enorme para não se deixar cair nos braços dele, beijá-lo ali mesmo. Mas havia algo que falava dentro dela, o orgulho próprio e aquela idéias todas que giravam e giravam por sua cabeça. ao passar pelo lavatório, apanhou um pouco de água e passou no rosto, talvez para se prevenir, caso alguma lágrima teimosa resolvesse escorrer-lhe dos olhos.

            Após as aulas, quando chegou para o almoço, ainda teve tempo de encontrar seu pai que já voltava para o trabalho.

            - Filha, tenho algo a lhe dizer: Você vai ser transferida.

            - Transferida? Como assim, pai?

            - Você não vai mais trabalhar nos teares, vai para o escritório. Néia precisa de uma auxiliar, há muito trabalho na secretaria.

            - Quem é Néia.

            - Minha secretária.

            - Vou trabalhar com ela?

            - Sim, de hoje em diante. Quero mantê-la afastada das outras operárias. Você acabaria convencendo-se de que deveriam ser nomeadas diretoras ou gerentes também.

            - O que não seria má idéia, não?

            - É, é uma boa idéia. Meu escritório seria transformado em salão de chá, com cortinas de bolinhas e vasos de flores por toda parte. Seria realmente muito lindo.

            - Puxa, que bom, pai!

            - Desculpe-me. Você vai gostar do novo trabalho, é mais condizente com sua personalidade.

            - Confesso que gostei disso. Olhe minhas mãos como ficaram - disse ela, exibindo as bolhas.

            - Minha pobre criança...

            - Eu não sou criança!

            - Minha pobre mocinha - corrigiu ele - cabeça dura e desmiolada.

            - A que horas deverei estar lá?

            - Dentro de uma hora, está bem?

            - Está ótimo, patrão.

            - E por favor, filha não se meta em embrulhadas ou eu acabo perdendo meu emprego.

            - Não se preocupe. Saberei me comportar - concluiu a garota, despedindo-se do pai com um beijo.

 

            - Então, Néia, já pensou no que vai fazer com respeito à minha filha? - indagou Alberto à secretária.

            - Sim. Vou fazer amizade com ela primeiro e depois vou convidá-la          para passar o fim de semana comigo. Minhas amigas de apartamento vão sair da cidade e eu ficarei sozinha, é uma desculpa. Farei com que ela sinto que não é tão fácil assim ser emancipada.

            - Procure exagerar um pouco. E se ela, a principiou, gostar, insista para que ela fique uma semana a mais, se isso não for causar aborrecimentos para vocês lá no apartamento.

            - Não se preocupe, daremos um jeito.

            - Qualquer despesa que for necessária, por favor, me avise.

            - Eu avisarei, não se preocupe.

            - Ótimo. Ela deverá chegar logo. Pobrezinha, está com as mãos cheias de bolhas. Dê-lhe somente alguns serviços leves hoje.

            - Ela é uma boa menina, está tentando se afirmar. Isso passará.

            - Espero que tenha razão.

            Um pouco mais tarde, mas na hora certa, chegou Rose. Seu pai, já havia providenciado uma escrivaninha adicional, colocando ao lado daquela ocupada pela secretária.

            - Meu pai me disse que devo ser sua auxiliar...

            - Certo. Fico muito contente com isso. O serviço aqui é muito, eu estava mesmo precisando de uma ajudante. Você sabe datilografar?

            - Sim, até já tenho diploma.

            - Vai ser ótimo. Deixe-me ver suas mãos.

            A garota exibiu as mãos.

            - Só que hoje você não vai poder datilografar nada. Enquanto isso, tenho aqui uma relação de documentos que gostaria que você procurasse nos arquivos. Venha, vou lhe mostra o que terá que fazer.

            Com muito boa vontade, Rose executou todo o trabalho que a jovem lhe forneceu pela tarde toda. Ao final do expediente, Néia a cumprimentou:

            - Você é muito eficiente. Estou até com medo, sabia?

            - Medo por quê?

            - Com tanta eficiência assim, seu pais poderá me despedir e deixar você cuidando de tudo.

            A garota riu feliz e orgulhosa.

            - O que você vai fazer neste fim de semana, Rose.

            - No fim de semana? Tenho um piquenique marcado para o domingo, por quê?

            - Ah, é uma pena, então.

            - Mas por quê?

            - Porque minhas amigas vão sair da cidade neste fim de semana e eu vou ficar sozinha. Se fosse possível, gostaria que você ficasse comigo.

            - Eu vou adorar.

            - E o seu piquenique?

            - Eu cancelo, não tem importância.

            - Sendo assim...

            - Mas escute uma coisa: você não tem namorado?

            - Tinha. Briguei com ele na semana passada.

            - Brigou? Que pena! Eu também briguei com o meu. Imagine você que ele não queria me deixar ir sozinha ao piquenique. Tem cabimento uma coisa dessas?

            - Só por isso vocês brigaram?

            - E não é o bastante? ele queria me escravizar.

            - Como é o nome dele?

            - Valério.

            - É muito bonito?

            - É, é bonito, simpático, mas muito cabeça dura e exigente. aliás, todos os homens são assim. Querem estar sempre ao nosso lado, nos protegendo como se fôssemos crianças...

            - Às vezes isso é muito bom...

            - Como?

            - Sim, isso mesmo. quando a gente está na fossa, é ótimo ter um ombro onde recostar e chorar as mágoas.

            Rose se ajeitou melhor na cadeira.

            - Fossa por quê?

            - Sei lá, tristeza, solidão, saudade de casa, cansaço. Tudo isso se mistura e explode um dia dentro da gente sem mais nem menos.

            - Você já se sentiu assim?

            - Muitas vezes.

            - Mas não deve ser tão ruim assim é?

            - Depende de como você encare as coisas.

            - Não entendi.

            - Depende do temperamento da gente, se você é ou não extrovertida para disfarçar seus sofrimentos ou se você é do tipo calado, como eu, que não sabe se animar num momento desses.

            - Eu não como sou? Nunca estive na fossa.

            - É natural. Com sua idade, tudo é muito superficial. Eu já tenho vinte e cinco anos, não posso dizer que já vivi bastante, que tenha muita experiência, mas quando as coisas acontecem, eu as sinto realmente. Mas vamos deixar isso de lado. Eu estou influenciando você.

            - Não pelo contrário. Eu fiquei curiosa com o que você disse. Não pensava que fosse tão difícil assim ser emancipada.

            - Se somar todos os prós e os contras, não é tão ruim, na verdade. É que a gente tem aquela velha tendência para exagerar os sofrimentos e diminuir as alegrias.

            Rose ficou batendo distraidamente os dedos nas teclas da máquina de escrever à sua frente. As palavras de Néia, ao invés de causar-lhe desânimo, despertaram nela uma atração maior ainda. Era como se ela pretendesse realizar consigo mesmo uma prova. Desejava provar a si mesma que aquilo não era tão ruim, que ela era um caso especial, que poderia ficar acima de tudo aquilo.

            - Sabe quanto eu vou ganhar aqui? - indagou a Néia.

            - Seu pai não disse, mas deve ser mais do que ganharia lá no tear. O serviço aqui é mais sofisticado, é preciso maiores referências...

            - É que estou pensando numa coisa. Logo chegam as férias do meio do ano. Eu poderia aproveitar para fazer minha transferencia para o curso noturno e trabalhar o dia todo. Assim receberei mais, e se você e suas amigas concordarem, gostaria de ir morar com você. isto se meu dinheiro der, é claro.

            - Eu ficaria muito contente em ter você lá, mas deve pensar bem primeiro. Não se esqueça de que todas nós, eu e minhas colegas, somos da mesma idade. Nossas diversões poderão ser um pouco diferentes das suas, você poderia se sentir deslocada lá.

            - Não se preocupe com isso. Tenho dezessete anos, mas já sou bastante madura. E depois, é uma coisa que eu quero fazer.

            - Converse com seu pai. Se ele concordar...

            - Vou fazer isso. Hoje é sexta-feira. Amanhã, sábado, há expediente aqui?

            - Só pela manhã. Você não precisará vir à tarde.

            - Então depois das aulas vou direto para o seu apartamento, está bem? Qual é o seu endereço?

            - Vou anotar para você - disse Néia, rabiscando o endereço numa folha da agencia. Tome, fica ali no centro, não vai ser difícil achá-lo.

            - Ótimo. Eu estarei lá antes da uma hora.

 

            Seus pais ouviram atentamente tudo que ela queria dizer. Apesar da seriedade com que a garota encarava aquilo, eles a viam apenas como um capricho de adolescentes.

            - Você pode ir passar o fim de semana lá - disse-lhe o pai, que já havia narrado seus planos à esposa. - Quanto a transferir-se para o curso noturno para trabalhar o dia todo, pense um pouco mais. É um passo muito sério que você pretende dar.

            - Por isso eu quero dá-lo, por que é sério.

            - Conversaremos isso mais tarde, pense alguns dias primeiro - sugeriu-lhe a mãe.

            - Já estou quase decidida, mãe.

            - Então dê-nos um pouco mais de tempo para pensar - pediu o pai.

            - Mas não tem o que pensar, pai. É uma decisão minha e quero fazê-lo, mesmo... mesmo contra a vontade de vocês.

            Sua mãe olhou com curiosidade e surpresa. Não esperava que ela fosse tão longe com suas idéias. Tinha, no entanto, que concordar com ela. Era algo decisivo em sua vida.

            - Está bem, filha. Se você quer assim...

            - E é claro também, se isso for possível lá na firma - disse a jovem, dirigindo-se ao pai.

            - Não haverá problema - concordou ele.

            Quando a garota se retirou, marido e mulher se entreolharam, sem saber o que dizer.

            - O que me diz disso agora? - indagou a esposa, pouco depois.

            - Não pensei que ela fosse levar isso tão longe, mas não temos com que nos preocupar. Néia é uma boa garota, saberá cuidar de Rose. E, depois, ela vai trabalhar lá mesmo no escritório e eu a verei todos os dias.

            - Você a verá e eu? Quando vou poder vê-la? Nos fins de semana? Pensamos em tudo, Alberto. Só não pensamos em mim, eu não estava preparada para que isso acontecesse.

            - A gente nunca está preparado quando isso acontece, querida. É um capricho dela, vai passar. Essa fase da adolescência é cheia de sutilezas. Por outro lado, se não passar e ela continuar nisso, estaremos tranqüilos porque agimos acertadamente. Oferecemos a ela toda nossa ajuda quando ela precisou. Acho que isso é o mais importante.

            - Quanto a isso você tem razão. Se tivéssemos feito uma oposição isso poderia acabar num conflito com conseqüências desastrosas para ela.

            - Assim sendo, de modo ou de outro, no futuro, ela só poderá ter gratidão para conosco. Isso me deixa bem mais tranqüilo.

            - E a mim também.

            Após o jantar daquela noite, Rose saiu para andar um pouco pelo bairro. Sentindo-se muito importante e precisava pensar na decisão que tomará. Havia uma pracinha, com árvores e bancos no fim da rua onde morava e ela se dirigiu para lá. Sempre que se encontrava com Valério, quando namoravam, iam para lá.

            Foi, no entanto, com um pouco de tristeza que se sentou num dos bancos e ficou olhando os casais de namorados que ocupavam os outros bancos ou simplesmente passeavam de mãos dadas ou abraçados. A solidão em seu coração e ela entendeu as palavras de Néia sobre fossa.

            Nem reparou naquele vulto ao lado do banco, olhando para ela com ternura. Valério, que estava por perto a vira chegar e se aproximara. Estava olhando para ela, admirando-lhe aquele rosto perfeito onde notava um quê de tristeza.

            - Quais sãos as novidades? - disse ele, finalmente.

            - Oh, é você? Nem o vi chegar...

            - Você estava tão pensativa - comentou, enquanto se sentava.

            - É que tomei um séria decisão hoje.

            - Séria? Verdade? Desistiu de ir ao piquenique...

            - É mais ou menos isso, mas não pelas razões que você supõe.

            - O que aconteceu, então?

            - Eu estou trabalhando no escritório de meu pai agora. Saí dos teares. Olhe como ficaram as minhas mãos no primeiro dia.

            Ele segurou-lhe as mãos para observar melhor. Para surpresa da garota, porém, ele as levou aos lábios e beijou-as com suavidade. Ela não teve condições de retirá-las.

            - Você não diz nada? - quis ela saber.

            - Dizer o quê? - respondeu, continuando a beijar-lhe a mão, o pulso, o braço.

            - Valério, por favor, não faça isso.

            - Como você quiser, amor - concordou ele, soltando-lhe as mãos. - Eu não estava fazendo por mal.

            - Eu sei disso. Eu estou triste hoje, apesar de também estar alegre. Você pode entender o que eu quero dizer?

            - Acho que entendo. A gente se sente assim às vezes.

            - Você também já se sentiu triste, Valério?

            - Tenho me sentido muito triste nos últimos dias e por sua causa. Rose, acho que descobri uma coisa muito importante para mim. Eu não havia ligado para isso antes porque não tive oportunidade. Depois que brigamos, porém, tenho pensado em você de outro modo. Eu... Eu a amo, Rose.

            - Ama? Mas... Você nunca me havia dito isso antes.

            - Porque nem eu sabia disso. Eu amo você, essa carinha marota, essa tristeza que vejo agora em seus olhos, essas mãos cheias de bolhas, esses cabelos... Tenho sonhado com você e tenho sentido tanto a sua falta. Nunca pensei que pudesse acontecer isso. Ontem, por exemplo, eu vim aqui. Esperava encontrá-la, mas não aconteceu...

            - Eu estava trabalhando...

            - Eu soube disso. Mas eu vim e me sentei naquele banco ali na frente e fiquei pensando em você. Cheguei até a sentir seu perfume e o calor de suas mãos nas minhas, de tanto que pensei. Mas quando eu olhava para o lado e não a via ali, puxa vida! Como doía.

            Rose ficou sem palavras. Se já se sentia triste antes de encontrar-se com ele, depois disso ficou ainda mais. Ela própria ainda não tivera tempo de pensar em Valério, se sentia ou não a falta dele. Sabia, porém, que era gostoso estar ali, ao lado dele, ouvindo aquelas palavras tão carinhosas.

            Estendeu a mão e acariciou-lhe os cabelos.

            - Sabe, Valério, eu nunca havia ouvido isso antes de ninguém. Você me amar, puxa, é tão bacana!

            - E você, Rose? Você me ama?

            - Eu... Eu não sei, ainda não pude pensar nisso.

            - Então feche os olhos.

            - Para quê?

            - Feche os olhos e não os abra até que eu mande, está bem?

            - Se você quer - concordou ela, fechando os olhos.

           Ele acariciou-lhe o rosto delicadamente, alisou-lhe os cabelos e depois colou seus lábios nos dela, beijando-a com amor. Sem que ela percebesse, seu braço enlaçou o rapaz e ela retribuiu o beijo com ardor.

            - Agora abra os olhos e diga-me: você me ama?

            Antes de responder, Rose pensou nas palavras de Néia. Era bom ter um namorado onde pudesse recostar a cabeça de vez em quando e chorar as mágoas. Mas só para isso? Então ela também estava errada porque estaria usando ele. Se a ela, mulher, não interessava ser tratada como objeto, não era justo também tratar assim os homens.

            - Eu... Eu não sei mesmo, Valério. Juro como não sei - respondeu ela, levantando-se precipitadamente e quase correndo para casa.

            - Cabeça-dura! - gritou o rapaz, com todas as forças que tinha.

 

            Após as aulas do dia seguinte, enquanto arrumava sua mala para passar o fim de semana com Néia, Rose pensava em Valério, nas suas palavras, em tudo aquilo          que ele descobrira. Na verdade, passara a noite toda pensando naquilo, havia, dentro dela, mais do que simples amizade. Ela sentia sua falta. Não sabia, porém, o que fazer. Era algo muito grande para que ela entendesse em sua plenitude e pudesse encarar e decidir com certeza.

            Após fazer sua mala, sentou-se na cama, pensativa. Naquele momento Valério deveria estar em casa ainda. Um pouco mais tarde, talvez ele fosse ao clube de que eram sócios. Ou talvez fosse à lanchonete do bairro, ouvir música e tomar chope. Eram esses os programas costumeiros.

            Levantou-se ainda indecisa, e foi à sala, sentar-se perto do telefone. Sua mãe estava lá.

            - Nervosa, filha?

            - Impaciente.

            - Você não me parece muito contente, acho que está preocupada com alguma coisa.

            - Com Valério é que estou preocupada.

            - Vocês brigaram, não brigaram?

            - Sim, mas eu o encontrei ontem à noite, lá na pracinha. Conversamos e ele me disse uma coisa que me deixou desconcertada.

            - O que foi?

            - Ele disse que me amava, mãe. Que me amava. Eu não esperava uma coisa dessas. Além disso, ele me perguntou se eu o amava e eu não soube responder. Mas sinto falta dele. Será que eu o amo, mãe?

            Sua mãe riu daquele seu jeito dramático que sempre empregava quando tinha dúvidas.

            - Como vou saber? Isso é uma coisa que você mesma tem que descobrir e ultimamente você tem descoberto muitas coisas. Essa talvez seja a mais importante de todas.

            - Por quê.

            - Porque é o amor, filha.

            - Amor, amor, amor. O que é o amor? principio do caminho que nós leva às panelas, ao tanque de lavar roupas, às fraldas...

            - Doce caminho, filha! Doce caminho!

            - Mas a vida não pode ser isso.

            - E não é só isso. Depende do que façamos para torná-la mais alegre, mais movimentada e divertida. Eu, por exemplo, não me queixo. Tenho um lar, um marido maravilhoso e uma filha que só tem me dado alegrias. O que mais posso desejar?

            - Mas não é monótono isso, mãe?

            - Rotina, essa é a pior inimiga do amor. Temos que fazer tudo, inventar uma porção de coisas para afastá-la. É preciso cuidar em sempre renovar, em nunca envelhecer espiritualmente.

            - Então você é contrária ao movimento de Libertação da Mulher?

            - Não sou contrária, sou a favor. É tudo uma questão de opção. Acho que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens em tudo, não nego isso. Creio apenas que as coisas devem vir naturalmente. Há aí muitas mulheres desempenhando cargos, antigamente, privilégio dos homens. Essa foi a opção delas, elas queriam aquilo. Você, por exemplo, quer ser emancipada. Quer trabalhar, viver sozinha ter liberdade. É sua opção. Se você conseguir se definir nisso que escolheu sorte sua.

            - Então você aprova que eu passe esses dias com a Néia?

            - Não tenho nada contra. Talvez isso a ajude...

            - E quanto ao meu trabalho? Que acha do fato de eu pensar em sair de casa, ir morar com Néia e suas amigas?

            - Desde que você não se esqueça da gente...

            - Isso não acontecerá, prometo - afirmou ela, abraçando-se à mãe.

            - E quanto a Valério, o que você decidiu?

            - Estou pensando em telefonar para ele agora.

            - Então vou deixá-la sozinha para fazer isso - disse a mulher, retirando-se da sala.

            Com um pouco de receio, receio de algo que nem ela conseguia definir, Rose discou para a casa do rapaz. Ele atendeu:

            - Valério, sou eu, Rose. Não, por favor, não digá nada ainda. Eu pensei muito naquilo que você me disse ontem. Eu ainda estou confusa, sabe? Dê-me um pouco mais de tempo para pensar...

            - Nós poderíamos nos encontrar hoje?

            - Não vai ser possível, vou passar o fim de semana com uma amiga.

            - Fora da cidade?

            - Não, aqui mesmo. É no apartamento da secretária de papai, ela vai ficar sozinha porque as amigas vão viajar. Pediu-me que lhe companhia.

            - E se eu fosse me encontrar com você lá?

            - Não sei se deveríamos...

            - E por que não? Você pretende obter sua liberdade, coisa que eu, sinceramente, não entendo. Talvez nosso encontro seja um teste definitivo para você e suas idéias.

            - Como assim?

            - Você quer liberdade, mas será que você está preparada para essa liberdade?

            - Você está pensando mal de mim. Valério - observou ela; percebendo o duplo sentido das palavras dele.

            - Não estou pensando nada de você, nem vou exigir nada de você. Que eu saiba, você não pretende ficar solteirona, pretende?

            - Não, claro que não. Quero apenas antes de qualquer coisa, me firmar profissionalmente, ter um emprego que possa me dar condições de dividir com igualdade as obrigações do lar com meu futuro marido.

            - Gostei disso, querida. Já que você confirma que pretende ter um marido, por que não eu?

            - Suas idéias são... são antiquadas, Valério.

            - Isso depende da gente conversar. Até agora eu nunca tinha pensado nisso com seriedade. Agora que descobri que a amo, talvez tudo se torne mais fácil.

            - Repito isso, por favor!

            - Repetir o quê?

            - Repita que me ama.

            - Eu a amo, Rose. Eu a amo, amo, amo e amo.

            - É tão gostoso ouvir isso, Valério.

            - E eu poderei repeti-lo mais e mais, quantas vezes você quiser. Dê-me o endereço de sua amiga, eu a procurarei à noite.

            - Está bem, anote aí.

            Ela ditou o endereço do apartamento de Néia e depois ficou sem saber o que dizer. Era um silêncio gostoso, apenas quebrado pela respiração dele através do fone e pelo bater de seu coração. Desejou assim de repente que ele estivesse ali, perto dela, bem perto mesmo. Talvez então tudo fosse diferente.

            Quando chegou, Néia a recebeu muito alegre. Ajudou-a a guardar a mala, mostrou-lhe o apartamento e depois sentaram-se na mesa da pequena cozinha do apartamento.

            Néia o dividia com mais duas amigas. Havia apenas a sala, uma cozinha pequena, um quarto grande e banheiro. Era, no entanto, o suficiente para elas.

            - E então, gostou do nosso apartamento?

            - Achei um pouco pequeno. Será que caberemos nós quatro aqui?

            - Está mesmo resolvida?

            - Sim - confirmou indo até a janela para olhar a cidade. - Surgiu um imprevisto, porém. Meu namorado...

            - Você não havia brigado com ele?

            - Agora eu não sei mais nada. Eu sempre tive namorados, desde que entrei no colégio. Foram tantos que nem sei mais. Nunca me apaixonei de verdade, mas agora está me acontecendo uma coisa gozada, diferente. Esse rapaz o Valério, disse que me amava. Assim sem mais nem menos, no pé da "lata", chutou-me isso aos ouvidos. Fiquei atordoada, até. Não soube o que responder. E ele confirmou isso depois. Mas eu ainda não sei se o amo, ando tão confusa.

            - Não se preocupe. Essa é uma das coisas maravilhosas do mundo e, quando acontece, é assim...

            - Então você acha que estou apaixonada por ele?

            - Eu não quis dizer isso. Quando acontece, a gente fica sabendo, pode deixar.

            - Demora muito?

            - Você é ingênua ainda - comentou Néia, aproximando-se dela.

            - Por que você diz isso?

            - Por uma série de coisas, mas vamos deixar isso para lá. Já bolei tudo que vamos fazer neste fim de semana. Olhe, hoje vamos jantar fora, comer uma pizza num bom restaurante, com vinho e tudo. Antes iremos ao cinema ou ao teatro, o que você escolher.

            - Tudo isso para hoje à noite?

            - Sim, algum problema?

            - É que talvez Valério venha me procurar aqui, eu lhe dei o endereço. Mas, puxa vida! Se ele vir aqui, você vai ficar segurando vela, eu nem tinha pensado nisso. Não tem importância. Eu telefono para ele e peço para que não venha. Amanhã eu me encontro com ele. Hoje a noite nós vamos sair juntas... Mas tem um problema. Eu estou dura da silva, sem nenhum...

            - Eu lhe empresto. Quando você receber o pagamento me paga.

            - Você é um amor, Néia. E agora, à tarde, o que vamos fazer?

            - Vamos ao meu clube.

            - Seu clube?

            - Sim, o clube dos industriários. É um lugar maravilhoso, fica retirado da cidade. Todos os sábados o pessoal se reúne e promove um churrasco, roda de samba, coisas assim.

            - A gente vai para lá de ônibus?

            -Não, já arrumei condução para nós. Um colega ficou de passar aqui e nós levar.

            - Colega? Não é seu namorado?

            - Não, é um rapaz lá da firma, acho que você já o conhece.

            - Existem tantos rapazes lá...

            - Esse é especial, pelo menos para você.

            - Não vá me dizer que é o...

            - Sim, ele mesmo. O encarregado da produção.

            - E ele sabe que eu vou?

            - Ainda não.

            - E se ele não quiser me levar?

            - Sérgio é um bom rapaz, vocês ficarão amigos. Enquanto ele não vem, vamos nos aprontar. Eu fiquei de levar maionese, quer me ajudar a terminar de fazer.

            Um pouco mais tarde, realmente, o rapaz apareceu. Tocou a campainha e aguardou. Néia o atendeu:

            - Espere só um pouquinho, nós já vamos.

            - Nós? Você não disse que suas amigas...

            - É uma nova amiga, colega nossa lá da fábrica. Acho que já a conhece.

            - Quem é ela? - indagou ele, enquanto entrava e sentava-se.

            - Eu, Rose, muito prazer - disse a garota, entrando na sala.

            - Você! Essa maluca vai com a gente? Eu desisto! Eu desisto! Na certa ela vai falar daqui até lá como uma matraca.

            - Acalme-se, Sérgio. Ela não é tão má assim. Aquilo tudo que aconteceu lá na fábrica foi um mal-entendido - interveio Néia.

            Graças a ela, Rose e Sérgio se entenderam. Ele era um bom rapaz, muito divertido. Com tudo pronto, saíram. Não demorou e já estavam fora da cidade dirigindo-se para o local, sede do clube dos industriários da cidade.

            Lá chegando, um rapaz, assim que as viu chegar, aproximou-se.

            - Néia, preciso falar com você - pediu ele, humildemente.

            - Não temos mais nada a dizer - respondeu a moça, com rudeza.

            - O que há, Néia? - quis saber Rosa enquanto Néia a puxava pelo braço, afastando-se do rapaz.

            - E esse aí é meu antigo namorado. Ele vive insistindo para falar comigo, mas eu não quero.

            - E por que não? Na certa ele quer pedir desculpas. Por que mesmo vocês brigaram?

            - Nem me lembro mais. Uma bobagem dele.

            Rose percebeu que ela não queria falar no assunto, por isso não insistiu. Ficou porém, com pena do rapaz. O antigo namorado da amiga era alto e forte, cabelos curtos e dois olhos verdes maravilhoso. Parecia muito calmo e carinhoso. Rose não conseguia entender por que eles teriam brigado. Depois pensou que tudo aquilo não era da conta dela e tratou de esquecer o assunto.

            - Um pouco mais tarde, após o almoço, quando todos se reuniam sob um pequeno bosque com árvores frondosas, o mesmo rapaz se aproximou dela.

            - você é amiga de Néia?

            - Sim, somos amigas, trabalhamos juntas.

            - Sabe quem sou eu.

            - Você era namorado dela.

            - Ela não tem falado nada sobre mim? Se sente minha falta? Se quer voltar?

            - Não, na verdade só a conheço há poucos dias. Parece-me, porém, que ela está muito magoada com você. O que houve? Por que vocês brigaram?

            - Uma pequena traição minha, perfeitamente justificável, mas ela não quis nem saber. Néia é muito exclusiva e possessiva.

            - Vocês dois formam um belo casal, pena que esteja desfeito.

            - Tenho esperanças de reconquistá-la, por isso vim falar com você.

            - Comigo? O que eu posso fazer?

            - Sei lá, você está mais tempo com ela, poderia dar-lhe uns conselhos, não sei. Estou quase desesperado. Amo aquela garota...

            - Puxa, estamos aqui conversando e ainda nem nos apresentamos. Meu nome é Rose e o seu?

            - O meu é Pedro, mas meus amigos me chamam de Pedrinho. Se você preferir assim...

            - Olhe, agora não dá para a gente conversar mais. Néia vem vindo aí. Hoje à noite nós duas vamos sair. Vamos ao cinema e depois jantar em algum restaurante...

            - Você não sabe onde?

            - Não ainda não. Você sabe, por acaso, onde passa um filme bom?

            - No Cine Glória. Convença-a a ir lá, que eu as esperarei. Darei um jeito de me aproximar. Enquanto isso, veja se consegue descobrir se ela ainda gosta de mim ou não, está bem?

            - Está bem - concordou rapidamente Rose, afastando-se ao encontro de Néia que já vinha chegando.

 

            - O que o Pedrinho queria com você? - indagou Néia, quando voltaram para o apartamento, no final da tarde.

            Apesar da curiosidade que alimentara durante todo o tempo, desde que vira Rose e o rapaz conversando, Néia conseguiu se conter. Agora que estavam sozinhas poderiam conversar com calma.

            Haviam chegado naquele momento e ambas se estenderam no chão da sala, cansadas. Rose havia se divertido muito, conhecera muitas pessoas, convivera num clima de camaradagem geral até então desconhecido para ela.

            - Nada de importe - respondeu Rose, evasivamente, enquanto tirava vagarosamente os sapatos.

            - Não queria me enganar. Vocês se separam rápido demais quando me viram chegando. Na certa falavam de mim, não é isso mesmo?

            - Não vou negar. Falávamos sobre você. Eu gostei dele, Néia. Ele me pareceu um ótimo rapaz - disse Rose, levantando-se um pouco para olhar a amiga ao seu lado.

            - Aí é que você se engana, querida.

            - O que ele fez foi tão ruim assim?

            - Para mim foi. Ele se encontrou um dia com uma antiga colega de escola e foram juntos ao cinema. Nós ainda éramos namorados e eu não gostei do que ele fez.

            - Só por isso?

            - Você acha pouco?

            - Ah, Néia. Não vejo nada demais nisso que ele fez.

            - E se fosse com você? O que você acharia?

            - Não sei, não passei por isso ainda. Mas me parece estranho numa garota tão moderna como você não deixar passar um deslize desses...

            - Talvez você tenha razão, mas quando se é sozinha, Rose, a gente vê as coisas por um outro aspecto. O medo de ficar só é muito grande...

            - Mas você acabou ficando só.

            - Sim, acabei ficando só - repetiu a outra, com tristeza.

            - Por que você não volta com ele?

            - Ah, isso nunca. Se ele fez aquilo uma vez, poderá repetir.

            - Talvez ele tenha aprendido uma lição.

            - Quem pode garantir. Mas vamos deixar isso de lado. Você quer ir tomar um banho?

            Rose se levantou e foi até o quarto preparar sua roupa. Enquanto se despia, pensava no que a amiga havia dito. Havia sim, vantagem, em se viver só, ser emancipada, mas o que Néia demonstrava era o contrário. Tudo muito triste. A liberdade, no fim, era apenas um disfarce para a solidão, uma válvula de escape.

            Após o banho, enquanto se vestia, Néia veio ter com ela no quarto.

            - O que vamos fazer agora à noite?

            - Vamos primeiro ao cinema, como já disse.

            - Ouvi dizer que o Cine Glória vai exibir um bom filme hoje.

            - Que filme?

            - Não me recordo o título.

            - Que tipo de filme é? Aventura? Romance?

            - Também não sei.

            - Então como sabe que o filme é bom?

            - Ouvi alguém comentar, mas só prestei atenção ao nome do cinema.

            - Então está bem. E enquanto eu tomo meu banho, você não quer preparar um lanche para nós? Há uma porção de coisas na geladeira, veja o que achar melhor. E aquele seu namorado você não ia telefonar para ele?

            - Puxa, já estava me esquecendo. Vou fazer isso já, depois preparo o lanche.

            Rose foi até o telefone e pensou um pouco antes de ligar. Valério iria ficar muito decepcionado. Sua mão tremeu ligeiramente quando discou. Ele atendeu e, ao perceber que era, mal pôde conter sua satisfação.

            - Estou com saudades de você, Rose - sussurrou ele.

            - Eu também, Valério...

            Ela precisava dizer-lhe que não poderiam se encontrar à noite, mas faltava-lhe coragem. Ao ouvir a voz dele, alguma coisa machucou-lhe o peito enchendo-a de uma tristeza inexplicável.

            - Estou triste, Valério - foi o que conseguiu dizer.

            - Triste? Por que, querida?

            - Não sei. Passei uma tarde tão divertida, mas estou triste agora. Acho que é porque não vamos... Não vamos poder nos encontrar à noite - conseguiu finalmente dizer.

            - Não vamos? Mas nós combinamos...

            - Houve um imprevisto. Aquela colega minha, ela está sozinha e brigou com o namorado. Não vai ficar bem a gente se encontrar e deixá-la segurando vela.

            - Ah, Rose! - exclamou ele, decepcionado. - Puxa, eu estava tão contente em saber que a encontraria hoje. Tenho tanta coisa para lhe fazer.

            - E eu gostaria de esclarecer tanta coisa com você.

            - O que, por exemplo?

            - Aquilo que você disse lá no banco da pracinha. Ficou martelando meus ouvidos.

            - Chegou a alguma conclusão?

            - Não sei, nunca amei ninguém, não posso saber como é.

            - Está sentindo minha falta?

            - Estou - afirmou ela, com a certeza de que não mentia.

            - A gente poderia se ver à noite, nem que fosse por alguns momentos. Sua amiga não vai se importar com isso.

            - Sim, talvez haja uma chance. Nós iremos, à noite, ao Cine Glória. A gente poderia se encontrar lá. Depois de lá iremos a um restaurante, mas não sei ainda em qual.

            - Vocês vão sozinhas?

            - Sim, naturalmente.

            - Duas mulheres sozinhas num restaurante?

            - O que há de mal nisso? Somos livres, emancipadas...

            - Não me preocupo quanto a isso.

            - O que o preocupa, então?

            - Não sei, alguém pode mexer com vocês...

            - Ora, Valério, que bobagem!

            - Bom, nada me impede também de ir ao restaurante.

            - Talvez seja uma boa idéia. Logo mais, no cinema, a gente conversa, está bem?

            - Sim, estarei lá. Cine Glória, não?

            - Isso mesmo.

            - Tchau, bem!

            - Tchau... Valério!

            Foi com um aperto no coração que colocou o fone no gancho. Sua vontade era continuar por mais tempo aquela conversa, ou então estar, naquele momento, junto dele. Aquelas idéias todas sobre emancipação ficavam, a cada instante distantes, como se houvesse uma coisa mais importante que ela precisava ainda descobrir.

            Teve a idéia de ligar para os pais e dizer que tudo ia bem. Conversou com a mãe e tranqüilizou-a.

            - Estou me divertindo bastante, mãe - disse ela, sem ânimo.

            - Espero que tenha oportunidade de descobrir se é isso que você quer mesmo fazer. Não está com saudades de casa?

            - Para dizer a verdade, sim, mas Néia me disse que isso acontece apenas no começo. Depois a gente se acostuma.

            - Se acostuma a viver com saudade, filha?

            Rose não soube o que responder. Disse dos planos que haviam feito para aquela noite e prometeu telefonar no dia seguinte.

 

            - Rose telefonou agora - disse ela ao esposo.

            O Sr. Alberto desviou os olhos do jornal para o rosto preocupado da esposa.

            - Sim, eu estava ouvindo. Que tal a achou?

            - Ela disse que estava se divertindo, mas seu tom de voz negava isso. Ela me parecia um pouco triste.

            - Você disse triste?

            - Sim, isso mesmo.

            - E por quê?

            - Não sei, talvez saudade, talvez decepção. Apesar de todas aquelas idéias malucas. Rose é ainda uma criança. Essa experiência talvez seja muito forte para ela.

            - Não acho. Ela queria isso.

            - E se ela se decepcionar?

           - Isso vai ser ótimo porque será uma descoberta feita por ela mesma. Assim, longe de ser desastre, vai lhe dar mais segurança quando fizer uma opção definitiva.

            - E nós? A casa tem estado tão vazia sem ela.

            - Há muito tempo não ficávamos a sós assim. Isso não lhe sugere nada.

            - O quê, por exemplo?

            - Puxa, não consegue pensar em nada excitante? Afinal de contas, não somos tão velhos assim. Poderíamos aproveitar a noite...

            - E se a gente fosse...

 

            A fita era uma comédia muito divertida. O cinema todo ria das peripécias do astro principal, às voltas com uma namorada maluca e uma motocicleta mágica, que até voava.

            Néia não percebeu, mas Rose sim. Pedrinho sentou-se algumas cadeiras afastado delas, mas na mesma fila. A todo instante lançava seus olhares suplicantes em direção a Rose. Assim que o percebeu, Rose fez-lhe sinal para que viesse sentar-se perto delas. O rapaz relutou um pouco, mas acabou concordando. O que mais penalizou a garota foi o olhar triste dele, triste e quase submisso.

            - Olá, Pedrinho, que surpresa você aqui - falou Rose, tratando de dar àquele encontro uma aparência de casualidade.

            - Ôi, que surpresa digo eu - respondeu ele, olhando para Néia.

            - Néia, veja quem está aqui - disse Rose, com entusiasmo.

            - Já vi e não gostei - respondeu a outra, secamente.

            - Psiu! - exigiu um espectador sentado logo atrás dele.

            - Não amole - murmurou Rose.

            - Acho que não vai adiantar - cochichou Pedrinho.

            - Vai sim, agüente firme aí que eu dou um jeito.

            Rose virou-se para a amiga e disse-lhe, em voz baixa.

            - Se você quiser, eu deixo vocês dois sozinhos aqui.

            - Não quero.

            - Mas o que tem isso? Converse com ele, é uma boa chance de vocês reatarem o namoro.

            - Estou começando a achar que tudo isso foi uma cilada sua. Aquela estória de escolher o Cine Glória não foi bem contada. Vocês combinaram isso, não foi?

            - Mas é para o seu bem, não fizemos por mal. Ele está arrependido e gosta realmente de você. Não estaria aqui se não fosse assim.

            - Eu não quero falar com ele e fim de papo, Rose.

            Rose voltou a olhar para a tela, procurando pensar em alguma coisa que pudesse dar o empurrãozinho final. Então se lembrou de que ela também precisava daquele empurrãozinho final, quando estava ali, tentando convencer uma amiga de algo que um dia ela também precisava se convencer. Quando Valério lhe pedira que fosse ao piquenique, ela permaneceu firme e não cedeu. As situações eram quase idênticas, ambas infantis. A teimosia de Néia não era muito diferente da sua. Sentiu-se invadida por uma ternura imensa ao se lembrar de Valério.

            Ao pensar nele, lembrou-se de que possivelmente ele viria ao cinema. E justamente naquele momento, ela o reconheceu subindo o corredor, à procura dela. Talvez aquilo pudesse resolver a situação.

            - Néia, pelo amor de Deus, você tem que resolver agora ou vai me pôr na maior complicação do mundo. Meu namorado vem subindo o corredor. Se ele vir o Pedrinho sentado do meu lado, a coisa vai pegar fogo. Por favor, troque de lugar comigo.

            - O quê? Onde está ele?

            - Não discuta, por favor, mude logo - pediu ela, levantando-se.

            - Você me arruma cada uma - reclamou Néia, mudando de lugar.

            Mas era tarde demais para Rose. Valério percebera a manobra mas, sem saber o que acontecia, entendeu que Rose estava sentada com aquele rapaz e que mudara de lugar precipitadamente ao vê-lo.

            - Então, era por isso que você queria que eu viesse, não é? - indagou ele, rancoroso.

            - Por favor, Valério. Deixe-me explicar.

            - Pssiu! - insistiu o expectador sentado atrás.

            - Cale a boca! - ordenou Rose.

            - Não há o que explicar. Vejo que não perdeu tempo. Estou entendo perfeitamente bem essa estória toda de emancipação. Você queria liberdade, pois é isso que vai ter. Eu fui um tolo em não ter percebido isso antes. Apesar de tudo, eu a amei, Rose - finalizou ele, levantando-se e saindo apressadamente, sem dar tempo a ela de explicar tudo.

            Quando deu por sí, ele já havia saído e ela estava ali, sozinha, sentindo um aperto no coração e um nó na garganta.

            - Viu só o que aconteceu? Foi tudo culpa sua - choramingou, virando-se para sua amiga.

            - O que foi? Não entendi! - quis saber Néia, pois naquele momento estava muito empenhada em corresponder ao beijo que Pedrinho lhe dava.

            - Fui ajudar vocês dois e acabei perdendo meu namorado.

            - Mas o que houve?

            - Ele pensou que eu estivesse sentada com o Pedrinho e nem quis ouvir minhas explicações. O que eu vou fazer agora?

            - Mas por que você ficou tão preocupada assim. Afinal, era apenas um namorado, você arruma outro.

            Rose calou-se e ficou séria. Não, não era aquilo. Valério não era apenas um namorado, era mais que isso, ela podia perceber. E fora preciso que aquilo acontecesse para que ela descobrisse.

            - É que... É que eu o amo, descobri agora - soluçou ela.

            - Pssiu! - voltou a pedir o espectador descontente.

            Rose virou-se e olhou o rosto carrancudo e severo de um senhor, fazendo biquinho.

            - O senhor viu o que aconteceu?

            - Eu lá quero saber o que aconteceu, garota - respondeu o homem, asperamente.

            Rose endireitou-se na cadeira, mordeu os lábios e começou a sapatear com o pé no assoalho, enquanto chorava e dizia:

            - Eu amo aquele miserável! Eu amo aquele miserável...

 

            A descoberta atingiu-a como um soco, deixando-a tonta e sem reação. Fora preciso aquilo para que descobrisse o quão importante era Valério em sua vida.

            Desde o principio do namoro, nos primeiros beijos, havia em tudo um sabor especial, desconhecido, diferente daqueles outros namorados. Valério era especial, significava muito para ela.

            Durante o resto da fita, permaneceu em silêncio. Mal percebia o que se passava na tela, quando todos riam de uma cena engraçada, tinha vontade de se levantar e gritar pedindo silencio.

            Ao seu lado, Néia e Pedrinho trocavam juras e beijos de amor. Uma pontinha de inveja nascia em seu coração, assim como um pouco de revolta. Fora esperto o bastante para reaproximar os dois, mas não conseguia pensar em nada que pudesse justificar aquele incidente para Valério. Sua cabeça era um redemoinho de idéias, onde agigantava-se aquela principal: a de que o amava.

            Após o filme foram para um restaurante. Durante todo o percurso, Rose permaneceu em silêncio, com uma vontade de chorar e rever seu namorado.

            Enquanto aguardavam que o garçom os servisse. Pedrinho segredou ao ouvido de Néia, após haver observado a tristeza e o desanimo que se estampavam no rosto de Rose:

            - Néia, não é justo. Precisamos fazer alguma coisa por ela.

            - Mas eu não sei o que fazer. Só se fôssemos procurar o rapaz e lhe contássemos tudo que aconteceu.

            - Não sei também, acha que seria o certo? Ela se encontra na mesma situação em que me encontrava. A dela é até mais explicável, mas seu namorado não vai querer ouvir nada.

            - Agora compreendo o quanto eu estava sendo egoísta e teimosa. Se eu tivesse compreendido tudo antes, não seria preciso que isto acontecesse com Rose.

            - Aquele namorado dela também é um cabeça-dura de marca maior. Nem quis esperar para ouvir suas explicações.

            - O ciúme faz coisas irracionais, meu amor. Digo isso por experiência própria.

            O garçom serviu uma grande pizza com uma garrafa de vinho. parecia, no entanto que todos os três haviam perdido a fome.

            - Como é, pessoal. Vamos comer - perguntou Rose, assim que o cheiro delicioso do prato insinuou-se em seus sentidos.

            O casal concordou. Enquanto comiam, Rose percebeu a expressão de sofrimento no rosto deles. Procurou sorrir para aliviar um pouco a tensão.

            - Olhem, não se preocupem comigo. Eu vou dar um jeito - disse, sem muita convicção.

            - Puxa, Rose, estamos tão agradecidos a você, não é, meu bem?

            - Sim, querida. Mas estamos também chateados com o que aconteceu com você.

            - Isso não é nada. Pela primeira vez na minha vida estou amando. É um preço caro que estou pagando pela descoberta, mas eu concordo. Além disso, consegui a reconciliação de vocês dois.

            - Mas isso provocou sua separação, o que sentimos muito - falou Néia.

            - Agora que sei que amo Valério, tudo vai ser mais fácil para mim. Vou lutar por uma coisa que é minha, vou conseguí-lo.

            - E aquelas idéias todas de emancipação, liberdade, direitos iguais?

            - Olhe, Néia. Tenho visto tantas coisas nos últimos dias que estou duvidando da validade de todas essas teorias. Talvez haja um ponto de equilíbrio em tudo isso, uma espécie de...

            - Talvez eu consiga lhe explicar, Rose - interrompeu-a Pedrinho. - Eu creio na igualdade baseada no amor. Quando se ama, Rose, acha-se sempre a fórmula ideal para agradar gregos e troianos, homem e mulher. Agora que você sabe que ama, verá que tudo vai ser mais fácil no seu relacionamento com seu namorado.

            A jovem pensou com curiosidade no que o rapaz havia dito. Havia lógica naquilo, uma lógica simples, concreta e realizável. Todas aquelas idéias sobre feminismo exagerado pareceram-lhe tão absurdas como todas as idéias de machismo exagerados.

            Mas aquilo não resolvia nada. Seu problema era Valério. E era um problema que tinha que resolver a qualquer custo, pois era o mais importante de sua vida, até o momento.

            - O que você pretende fazer agora, Rose? - quis saber Néia.

            - Agora quero me divertir bastante e não pensar mais no assunto. Isso não quer dizer que vou esquecê-lo. Quero apenas esfriar um pouco a cabeça para, mais tarde poder agir com mais calma. Encontrarei um jeito de convencê-lo. Se ele me ama realmente como disse, vai acreditar em mim e voltar.

            - Quer que a gente faça alguma coisa?

            - Acho que não vai ser necessário. Vai ser uma boa para mim e para ele. E... - interrompeu-se de repente, como lembrando alguma coisa.

            - O que foi, Rose? Você ficou séria de repente - observou a amiga.

            - Lembrei-me de uma coisa muito importante.

            - Alguma coisa que se relacione com o Valério.

            - Não, é uma prova que terei que fazer na segunda. Eu havia me esquecido completamente dela. E nessa preciso estudar como nunca, pois, é a única que pode me deixar para exame. Passando nessa, estarei aprovada.

            - Se é tão importante assim, você vai ter que estudar, mas não trouxe livros, cadernos, nada.

            - É sobre isso que estou pensando. Acho que vou voltar para casa amanhã cedo. Normalmente eu não faria isso porque detestaria deixá-la sozinha. Agora que você e Pedrinho reataram isso não importa mais. Vocês vão precisar, e vão querer é claro ficar sozinhos, não é? Acho que eu só atrapalharia.

            - Nada disso, Rose. Devemos muito a você - observou Pedrinho.

            - Não foi nada. Eu apenas forcei uma situação, que o tempo se encarregaria de resolver. Cedo ou tarde vocês, voltariam porque se amam. Só dei um empurrãozinho.

            - E que empurrãozinho! - exclamou Néia, abraçando-se ao namorado.

 

            Sua mãe ficou surpresa ao vê-la chegar no dia seguinte, toda sorridente. Na verdade esperava que Rose se decepcionasse com aquilo, pois não estava ainda preparada para a responsabilidade que tal ato exigia. O que não podia supor, porém, era que essa decepção viesse tão depressa. mesmo assim, procurou disfarçar a alegria que sentia.

            - O que foi, filha? Por que voltou tão cedo? Nós só a esperávamos à noite.

            - Puxa, mãe! Aconteceu alguma coisa em tão pouco tempo que foi o suficiente para eu poder entender que não estava preparada para o que fiz. Além do mais, aconteceu-me uma coisa maravilhosa. - disse ela, radiante, enquanto atirava a mala sobre o sofá e sentava-se.

            - Já tomou café? Quer comer alguma coisa?

            - Não, obrigada! Já tomei café lá no apartamento de Néia. Além disso, hoje aprendi como se faz café. Néia me ensinou.

            - Que boa professora! Conseguiu ensinar o que eu vinha tentando há muito tempo.

            - Eu tive que aprender senão não tomaria café. Néia impôs essa condição.

            - Se eu soubesse disso teria feito o que ela fez há mais tempo.

            Ambas riram contentes.

            - E então, o que aconteceu de tão maravilhoso assim.

            - Descobri o amor, mãe.

            - Como? O que aconteceu?

            - Acalme-se, não fique tão nervosa assim. Aprendi mais nessas poucas horas que passei com Néia do que em toda minha teimosa adolescência. Todas aquelas minhas idéias sobre a libertação da mulher caíram por terra. Agora entendo o que você me disse sobre opção. Eu precisava abrir os olhos, não é tão fácil assim se emancipar, ser livre. A gente tem que pagar um preço altíssimo. A solidão, mãe, é a pior inimiga de quem se diz livre. Ela vive ameaçando, presente em cada canto em cada sombra. É um negócio terrível realmente.

            - Então vai desistir dessas idéias todas que tinha?

            - Não, mãe. Vou adaptá-las ao meu caso. Descobrir um modo de pôr tudo isso em prática, mas livre de fanatismo, deixando-me levar apenas pelo coração, pelo amor.

            - Você amadureceu muito em tão pouco tempo, filha. Estou satisfeita com isso. Mas você poderia ter ficado o dia todo com Néia, ela estava sozinha, não?

            - Agora não está mais. Fiz outra coisa que me encheu de alegria, mãe. Consegui fazer com que ela e o namorado voltassem a namorar. Foi um plano meio maluco, mas deu certo para eles. para mim, porém, o resultado foi inesperado.

            - Por quê?

            Rose contou-lhe tudo que havia ocorrido. Ao final, olhou para a mãe com uma expressão de tristeza no rosto, mas foi só por uns instantes. Rapidamente procurou disfarçar o que sentia.

            - Que complicação, filha!

            - Eu vou sair dela, não se preocupe. Hoje à tarde preciso estudar bastante, pois a prova de amanhã é muito importante para mim. Quero passar direto em todas as matérias.

            - Pensei que fosse procurar Valério ainda hoje.

            - Calma, mãe. Isso é outra coisa que aprendi. É preciso dar um empurrãozinho mas na hora certa. Não convém precipitar. Vou começar meu plano amanhã cedo, no colégio.

            - E o que pretende fazer?

            - Pretendo mostrar a ele que sou outra, que tudo que eu havia pensado e dito foi um engano meu. Além disso, quero provar que estou mais madura, e que agora sei de uma coisa que não sabia antes.

            - E que coisa é esta, filha?

            - Que eu amo, Valério - respondeu ela, enquanto se levantava e caminhava para seu quarto.

            Apanhou seus livros e cadernos e voltou para a sala. Apanhou o telefone e ligou para Cleide, sua amiga.

            - Sou eu, Rose. Por favor, Cleide. Sei que você está de mal comigo, mas estou telefonando para lhe pedir desculpas. Tudo aquilo que fiz lá na sua festa de aniversário foi uma burrice minha. Desculpe-me, sim?

            Cleide quase deixou cair o telefone. Rose, num tom de voz submisso, pedindo desculpas? Era coisa para se comprovar.

            - É você mesmo, Rose? Estou duvidando. Você não é de pedir desculpas.

            - Sei disso, Cleide, mas muita coisa aconteceu. Olhe, eu não fiz aquilo por mal. Eu queria esnobar um pouco, exagerei. Você vai me desculpar? não vai?

            - Claro, Rose. Eu a desculpo. Achei até tudo muito divertido. Aquele cara mereceu o que você fez a ele. É que todas as meninas estavam com inveja do seu sucesso.

            - Além disso, você está estudando para a prova de amanhã.

            - Ah, eu não tive tempo. Além do mais, vamos sair para o piquenique daqui a pouco. Nem pensei nisso.

            - Você não está nem um pouco preocupada?

            - Nem um pouco. À noite, quando eu voltar, vou preparar umas colinhas. Nosso professor não enxerga muito bem, por isso não me preocupo. Aliás, é o que toda a turma vai fazer. Ninguém iria perder esse piquenique por nada neste mundo.

            - A prova vai ser difícil, tem muita matéria, você já reparou? - advertiu Rose.

            - Nem me preocupo, Rose. nem um pouco mesmo.

            - Outra coisa, Cleide. Você sabe se o Valério decidiu ou não ir ao piquenique?

            - Até agora não fiquei sabendo de nada...

            - Você o viu ontem à noite, por acaso?

            -Sim, ele estava aqui no cinema do bairro.

            - Sozinho?

            - Sozinho, com quem poderia estar?

            - Obrigada! - respondeu ela, alegre, desligando o aparelho.

            Por alguns momentos ela teve medo de que ele com dor-de-cotovelo, houvesse procurado algum consolo nos braços de outra. Depois se arrependeu desses pensamentos. Pelo menos durante todo o tempo em que foram namorados, Valério não dera mostras de ser despeitado. Sempre se mostrava muito calmo e ponderado, a não ser quando ela o atormentava muito.

            Abriu o caderno e começou a estudar o primeiro ponto.

 

            Valério estacionou o carro ao lado da pracinha, para onde convergiam estudantes vindos de todas as ruas do bairro. Em poucos instantes, tudo estava tomado por aquela alegria cordial, enquanto eles aguardavam a chegada do ônibus que os levariam ao local do piquenique.

            Com os olhos o rapaz procurou pela garota, mas seria muito difícil encontrá-la, por isso saiu, disfarçadamente, à procura dela.

            - Valério, venha cá! - pediu Cleide, assim que o viu.

            - O que houve?

            - Está procurando por Rose?

            - Não, estava só dando uma olhada no pessoal - mentiu.

            - Vai me dizer que levantou cedo só para isso?

            - Está bem, estou procurando por ela. Você sabe se ela vai? Quando eu voltava da padaria eu a vi chegando em casa cedo. Deve ser porque vai ao piquenique, não é?

            - Voltando para casa cedo? Onde ela estava?

            - Estava com uma amiga lá no centro da cidade.

            - Bem, eu só sei que não faz muito tempo que ela telefonou para minha casa pedindo desculpas.

            - Rose? Pedindo desculpas? Você deve estar sonhando.

            - Não, era ela mesma. Até perguntou por você.

            - Por mim? Verdade?

            Os olhos do rapaz brilharam, interessados, mas depois uma carranca substituiu seu sorriso. Lembrando-se de que vira Rose sentada com outro rapaz no cinema. Fora um golpe muito sujo o dela ter feito aquilo. No entanto, não conseguiu esquecê-la. Reconhecia que fora muito precipitado naquele momento. Talvez houvesse uma explicação para tudo.

            - O que ela quis saber? - perguntou ele.

            - Só queria saber se você ia ou não ao piquenique. Eu disse que não sabia.

            - E ela vai?

            - Aí é que está o mais difícil de aceitar. Rose não vai ao piquenique, vai ficar em casa estudando para a prova de amanhã.

            - Ela vai fazer isso?

            - Disse que vai.

            Valério coçou a cabeça sem entender mais nada.

 

            Na manhã seguinte, antes de ir para seu trabalho, o pai de Rose quis falar com ela. Quando estava toda a família na mesa do café, ele indagou a ela:

            - E então filha? Depois de tudo que aprendeu, ainda vai continuar trabalhando?

            Rose sorriu e concordou com a cabeça, acrescentando:

            - Estou gostando do meu trabalho e Néia pretende me ensinar uma porção de coisas hoje. Não pense que não sei que estou lá porque você assim desejou. Aqueles servicinhos pequenos que Néia me deu, no inicio, confirmaram isso. Mas não me dei por vencida. Exigi que ela me desse trabalhos sérios. Quero aprender tudo que puder e depois, caso não possa ser aproveitada lá, vou procurar uma outra firma.

            - Então você sabia...

            - Não sou tão... criança assim, pai.

            - Pretendemos abrir um novo departamento na firma. Se você estiver em condições, poderá ganhar o emprego. É serviço de secretária também.

            - Vou fazer tudo para consegui-lo.

            - Assim espero, filha. Assim espero.

            Enquanto se dirigia para o trabalho Alberto, o pai de Rose, não escondia sua satisfação pela transformação por que passara a sua filha. Ela simplesmente amadurecera em pouco tempo.

            Em parte, devia essa transformação à secretária, Néia. Por isso, logo que chegou ao escritório, chamou-a:

            - Néia, gostaria de agradecê-la por tudo que fez por minha filha. Você conseguiu pôr-lhe juízo na cabeça.

            - Eu fiz isso? indagou Néia surpresa.

            - E não foi?

            - Sua filha aprendeu sozinha. Ela precisava apenas, de uma oportunidade, de um momento. O que fiz foi propiciar esse momento.

           - Estou agradecido do mesmo modo. Soube que vocês foram a uma reunião de amigos no sábado, cinema, restaurante. Você deve ter gasto algum dinheiro, por favor, diga-me quanto para que eu possa fazer o cheque.

            - Não, o senhor não me deve nada.

            - Ora, Néia, não faça cerimônias.

            - Na verdade, eu é que fiquei devendo à sua filha. Ela conseguiu também abrir meus olhos, fazendo-me voltar para o meu namorado, aliás, agora já é noivo. Pretendemos nos casar brevemente.

            - Pretende deixar o emprego?

            - Não, claro que não.

            - Seu futuro marido, o que acha disso?

            - Nós pensamos do mesmo modo. Ele não vê inconveniente algum em que eu trabalhe fora. Aliás ele diz que isso...

            - Não diga mais nada. Acho que sei o que você vai dizer - finalizou ele, rindo.

 

            Antes da entrada dos alunos na classe, todos comentavam o piquenique do dia anterior. Apesar de uma mudança brusca de temperatura, tudo fora muito bem e todos haviam se divertido a valer.

            - Você não sabe o que perdeu - disse Cleide a Rose.

            A garota procurou Valério com os olhos, antes de responder.

            - Posso imaginar pelos comentários de todos vocês.

            - Estava divino, menina. E você, boba, preocupada com a prova de hoje. Olhe aqui onde está minha preocupação - falou Cleide, mostrando um pequeno pacote de papéis, cortados em tiras bem finas.

            - Eu preferi não me arriscar. A gente nunca sabe. Você tem que pensar que todo mundo vai colar. Um ou outro vai ser descoberto. Você já pensou em ficar com zero na última prova?

            Enquanto conversava com a amiga, Rose procurava encontrar Valério no pátio da escola. Assim que se livrou de Cleide, saiu caminhando, tentando encontrá-lo.

            - Não sabia ainda o que faria ao vê-lo. Havia pensado numa porção de coisas que poderia fazer para que ele a entendesse e perdoasse, mas chegara à conclusão de que nada adiantaria. Se Valério a amasse realmente, voltaria para ela.

            Foi encontrá-lo um pouco retirando dos demais alunos, sentando ao pé do muro, perto do portão de entrada. Ele estava estudando, ou parecia estudar, com um caderno aberto na frente dos olhos.

            Todas as coisas que havia pensado, voltaram à sua cabeça num turbilhão, deixando-a confusa. Um sentimento estranho a impelia a correr ao encontro dele, mas, ao mesmo tempo, a fazia ficar parada, olhando-o emocionada.

            Na hora da prova, Rose viu recompensado todo seu esforço. As questões eram muito difíceis, mas os estudos que realizara no dia anterior a capacitavam a realizar uma boa prova. Com os outros colegas, porém, o mesmo não aconteceu. Aqueles que esperavam colar com toda facilidade, viram suas intenções atrapalhadas pelo professor, que realizou uma fiscalização severa durante toda a prova. Rose foi uma das primeiras a terminar a prova. Logo depois dela, Valério.

            Durante o recreio, logo em seguida à prova, as amigas de Rose a vieram procurar. Todas elas estavam indignadas.

            - Rose, você tem que nos ajudar - disse Cleide que não havia conseguido resolver nenhuma das questões e não pudera usar das "anotações" que trazia consigo.

            Rose olhou para o grupo de amigas que a cercava e indagou como se não soubesse de nada:

            - Ajudá-las em quê? O que aconteceu?

            - Tem cabimento o que ele fez? - perguntou uma.

            - De quem vocês estão falando?

            - Do professor, Rose. Você viu que prova mais difícil ele deu?

            - E o que vocês querem que eu faça? - indagou ela.

            - Que reclame ao diretor em nosso nome.

            Rose sabia antes que dissessem, que era aquilo mesmo o que elas iriam lhe pedir. Já haviam feito isso antes. Só que dessa vez a garota não iria agir impulsivamente. Conhecia bastante suas amigas, sabia que nenhuma delas tomaria uma iniciativa por conta própria.

            Antes de responder, Rose vislumbrou, perto delas, Valério, que fingia não prestar atenção à conversa.

            - Então vocês querem que eu reclame ao diretor, não é?

            - Sim, isso mesmo.

            - Reclamar o quê? A prova foi muito fácil, eu a resolvi logo. Não sei o que possa reclamar.

            - Mas, Rose! Você tem que nos ajudar - exclamou Cleide.

            - Tenho que ajudá-las? Para quê? Para depois, se alguma coisa acontecer, vocês pularem fora e me deixarem sozinha dentro de um barco afundando, como fizeram naquele dia? Não, desta vez não vou pôr minha mão no fogo. Reclamem vocês, façam um requerimento ao diretor, o que quiserem. Mas nessa eu não entro.

            As outras se entreolharam chocadas, mas Rose só percebia Valério olhando divertido para o que acontecia ali. A garota desejou poder saber o que ele pensava, enquanto sorria, olhando para o grupo onde ela se encontrava. Quando seus olhares se cruzaram. Valério ficou sério e olhou para outro lado.

            Rose pensou em aproximar dele, mas desistiu. Ao invés disso, ficou esperando que ele a olhasse de novo, para sorrir candidamente. Valério a olhou disfarçadamente diversas vezes, mas não se animava a vir falar com ela. Quando o sinal anunciando o final do recreio foi ouvido, Rose bateu o pé com força no chão, chateada com a indecisão do rapaz.

            Naquela tarde, depois das aulas, confidenciou-se com Néia.

            - Ah, Néia, está tão difícil...

            - Você não deve lhe deu um empurrãozinho?

            - Dei. Fiquei olhando para ele como uma tonta, rindo, esperando que ele entendesse alguma coisa, mas não deu em nada. Ele ficou lá, com aquela cara de pamonha, sem fazer nada.

            - Paciência, Rose. Mas já que ele não vem a você, por que você não vai a ele?

            - Pois é isso mesmo que estou pensando. Se o encontro hoje à noite vou agarrá-lo, sapecar-lhe um beijo na boca e dizer-lhe que o amo. Isso se ele me deixar chegar perto dele. Aquela cena lá no cinema estragou tudo.

            - Eu sinto muito...

            - Desculpe-me, não estou culpando você. Em parte devo lhe agradecer. Não fosse aquilo eu talvez não descobrisse o quanto amo Valério.

            - Por que você não me deixa falar com ele?

            - Para quê?

            - Para explicar-lhe que todo aquilo que aconteceu lá no cinema foi um terrível engano. Depois que ele ficar sabendo; virá correndo para você.

            - Acha que é válido isso?

            - E por que não?

            - Estou tentando aceitar sua ajuda. Aquele cabeça-dura é bem capaz de não decidir sozinho.

            - Posso telefonar para ele agora mesmo.

            - Você me deixa ouvir a conversa na extensão?

            - Claro que sim.

           - Então vou discar para ele. Quando ele atendeu você fala - propôs a garota, apanhando o telefone.

            Não estava com sorte, porém. Discou para vários lugares, sem conseguir encontrá-lo.

            - Onde terá ido? - indagou, aborrecido.

            - Deve estar por aí. Daqui a pouco a gente tenta de novo.

            - Sim, faremos isso.

            Enquanto Rose passava a tarde toda a sua procura, Valério se encontrava no fliperama da lanchonete, se divertindo com alguns amigos. No final da tarde, quando já ia para casa, viu entrar Pedrinho o namorado de Néia. Imediatamente o reconheceu como sendo o rapaz que estava sentado com Rose.

            Valério havia ficado intrigado com os olhares lançados por Rose durante o recreio, pela sua atitude em não aceitar o jogo das colegas, como sempre fazia. Normalmente, aquela prova seria pretexto para a garota arrumar uma boa complicação com o professor. Ela agira, porém, de um modo inesperado. Além disso, passara todo o domingo estudando. Alguma coisa se passava com ela.

            Enquanto pensava nisso, aproximou-se do balcão e pediu um refrigerante. Olhou para Pedrinho, sentado ao seu lado, cheio de curiosidade e uma espécie de despeito também. Não resistiu e indagou:

            - Desculpe a pergunta, mas você é namorado da Rose?

           - Rose? Não, minha namorada se chama Néia. É amiga de Rose. Trabalham no mesmo escritório.

            - Quer dizer que você não é mesmo namorado de Rose?

            - Não, de modo algum. O que o levou a pensar assim?

            - É que eu os vi no cinema, no sábado...

            - Sim, de fato eu estava perto dela, mas por um outro motivo. Eu havia brigado com Néia e Rose estava tentando nos reaproximar. É uma garota sensacional, ela. Conhece?

            - Se conheço. Já fui namorado dela?...

            - Espere um pouco. Não foi você que apareceu lá no momento em que...

            - Eu mesmo. Que burro eu fui! Não esperei pelas explicações dela.

            - Olhe, rapaz aquela garota gosta um bocado de você. Seu nome é Valério, não é?

            - Sim.

            - Vocês estão separados mesmo? Brigaram por causa daquilo lá no cinema?

            - Não, acho que não brigamos. Mas você disse que ela gosta de mim mesmo?

            - Foi o que ela disse.

            - Puxa, rapaz! Obrigado! - agradeceu Valério, saindo numa disparada.

            Apanhou seu carro e dirigiu-se até a fábrica, onde Rose trabalhava. Consultou o relógio várias vezes. Esperava encontrá-la à saída.

            Faltavam poucos minutos para as seis quando estacionou seu carro no portão da fábrica. Enquanto aguardava, fumava nervosamente. Quando a sereia estridente anunciou o final do expediente, sentiu um friozinho percorrer-lhe o estômago.

            Saiu do carro e esperou ansioso pela saída da garota. Quando a viu saindo com Néia, aproximou-se delas:

            - Ôi! - cumprimentou ele.

            - Ôi! - respondeu Rose, sentindo o mundo faltar a seus pés.

            Toda a raiva que sentira durante a tarde por tentar falar-lhe, sem conseguir encontrá-lo, sumiu. Tudo tornou-se maravilhoso para ela ao ver o sorriso dele.

            - Acho que vou indo na frente. Vocês dois devem ter muito que conversar - disse Néia.

            - Quer que a leve de carro? - indagou Valério, sem tirar os olhos de Rose.

            - Não, obrigada! Vou de ônibus mesmo - disse ela, afastando-se, muito feliz, com o acontecido.

            Valério e Rose ficaram olhando um para o outro, sem saber o que dizer.

            - Eu tentei falar com você a tarde toda - murmurou ela.

            - Comigo? E para quê?

            - Primeiro me diga o que veio fazer aqui - pediu ela, desejando apenas uma confirmação de tudo que supunha.

            - Vim aqui porque a amo, quero que volte a ser minha namorada. Você aceita?

            - Claro que sim.

            - Antes me responda uma pergunta: Você me ama?

            - Sim, seu tolo. Eu o amo. Não sei como isso aconteceu, mas eu o amo. E é tão maravilhoso amá-lo, Valério - disse ela, caminhando ao encontro dele.

            - Minha tolinha e cabeça-dura - sussurrou ele, abraçando-a firme e forte. - Que bom que você voltou para mim.

            - Mas exijo uma condição - replicou ela, no mesmo tom de voz.

            - Que condição?

            - Que você...

            Não chegou a terminar. Valério a cobria de beijos, impedindo-a de falar o que quer que fosse.

            - Qual é a sua condição?

            - Que você me ame cada vez mais, assim como eu farei - respondeu ela, fechando os olhos e aguardando mais um beijo apaixonado.

 

                                                                                 L. P. Baçan  

 

                      

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