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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROWAN DE RIN / Emily Rodda
ROWAN DE RIN / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ROWAN DE RIN

 

A ASSEMBLÉIA

Em uma manhã, os habitantes de Rin acordaram e descobriram que o riacho que corria da Montanha e que atravessava a aldeia se transformara num escasso fio de água. Quando a noite caiu, o riacho secara por com­pleto. A roda do moinho imobilizara-se. Não havia água para fazer girar as pesadas pás. A lagoa que dava de beber aos animais, de ambos os lados da aldeia, estava imóvel. Não havia um ribeiro borbulhante que lhe desse vida e a enchesse até a borda.

Não se viu nenhuma mudança no segundo dia, nem no terceiro. No quarto dia, a água da lagoa estava turva e acastanhada. Os bukshah abanavam as cabeças e davam pa­tadas no terreno quando iam beber pela manhã e à noite.

Cinco dias depois, a lagoa estava tão rasa que até a pe­quena Annad, que tinha apenas cinco anos, conseguia to­car o fundo com a mão sem molhar a manga. E o riacho continuava parado.

Na noite do sexto dia, a população preocupada reu­niu-se na praça do mercado para conversar.

— Os bukshah não beberam o dia todo — disse Lann, a anciã da aldeia e, outrora, uma grande guerreira. — Se não agirmos rapidamente, acabarão morrendo.

— Isso não vai acontecer à Estrela — murmurou Annad para o irmão, o guardador dos bukshah. — A Estrela não vai morrer, não é, Rowan? Porque vamos dar água do nosso poço à Estrela.

— Os bukshah não podem beber do nosso poço, Annad — disse Rowan. — Não é suficientemente doce para eles. Ficam doentes. Só podem beber a água que desce da Mon­tanha. Sempre foi assim. Se o riacho continuar seco, a Estrela irá morrer como os outros.

Annad começou a soluçar baixinho. Não era suposto as crianças de Rin chorarem, mas Annad era muito nova e adorava a Estrela. Rowan olhou em frente. Não havia lágrimas em seus olhos, mas o peito e a garganta doíam de tristeza e medo. A tristeza era por Estrela, sua amiga e a mais forte e mais meiga de todos os bukshah. E por todos os outros grandes animais, lanosos e corcundas, que tão bem conhecia pelo nome. Mas o medo era por si mesmo. Por si, por Annad, pela mãe e, de fato, por toda a aldeia.

Ao contrário de Annad, Rowan sabia que, sem os buks­hah, não haveria leite rico e cremoso para beber, nem queijo, coalhada e manteiga para comer. Não haveria lã grossa para as roupas. Não haveria ajuda para arar os campos ou para carregar as colheitas. Não haveria dorsos possantes para suportar os carregamentos durante as longas viagens até à costa para negociar com o povo astuto e silencioso, os Maris. A vida em Rin dependia dos bukshah. Sem eles, a aldeia também morreria.

Annad não podia imaginar o vale sem a aldeia. Mas Ro­wan podia. Ao ler as antigas histórias na casa dos livros, ao escutar, meio adormecido, Timon, debaixo da árvore-escola e, acima de tudo, sentado na relva junto ao riacho en­quanto os bukshah pastavam ao seu redor no silêncio da manhã, imaginara muitas vezes aquele local como os pri­meiros colonos deviam tê-lo visto.

Há centenas de anos atrás, esses colonos subiram pelas colinas acima, carregando os seus parcos pertences nas costas, em busca de um lugar, naquelas estranhas paisagens, que pudessem reclamar como seu. Vinham de longínquas paragens, do outro lado do mar. Tinham lutado contra um terrível inimigo. Foi na costa que ouviram falar, da boca de um povo nômade local que chamavam de os Viajantes, de um local no sopé de uma Montanha proibida nas terras altas, muito no interior. Perambularam muitos, muitos dias em busca desse lugar. Estavam extremamente exaustos. Alguns já tinham perdido a esperança. Foi então que numa tarde subiram ao topo de uma elevação e olharam para a zona inferior. Abaixo deles, aninhado entre uma elevada Montanha à sua frente e a colina sobre a qual se encon­travam, estendia-se um vale verde e secreto.

As pessoas ficaram a olhar, em silêncio. Viram árvores carregadas de pequenos frutos azuis e campos de flores que não reconheciam. Viram um riacho, uma lagoa e um rebanho de estranhos animais cinzentos erguendo as cabeças para olhá-los, os chifres reluzindo ao sol. Viram tranqüilidade, quietude, uma terra fértil e paz. As pessoas souberam que aquele era o local. Aquela seria a casa deles. Foi assim que desceram e se misturaram com os grandes e carinhosos animais, que eram mansos e não mostravam medo. Deram-lhes o nome de bukshah.

— O riacho corre do alto da Montanha — disse Bronden, a marceneira, a sua voz alta interrompendo os pensa­mentos de Rowan. Viu-a cortar o ar com o dedo hirsuto, apontando. — Por isso o problema tem de estar lá em cima. Lá em cima, há algo de errado. Algo está impedindo o fluxo da água.

Todos os olhos se viraram para a Montanha que se erguia bem alto acima da aldeia, o cume envolto como sempre em nuvens.

— Temos de subir à Montanha e descobrir o que é — continuou Bronden. — É a única alternativa que temos.

— Não! — Neel, o oleiro, abanou a cabeça. — Não po­demos subir à Montanha. Nem os Viajantes se aventuram a ir lá. Terríveis perigos aguardam aquele que se atrever. E, no cume está... o dragão.

Bronden riu dele.

— Fala como se fosse um Viajante louco, Neel! Não há dragão nenhum. O dragão é uma história contada às crianças para se comportarem. Se houvesse um dragão, já o teríamos visto. Já teria devorado os bukshah... e a nós próprios.

— Talvez cace as suas presas noutro lugar. Não sabemos, Bronden. — A voz calma e agradável de Allun, o padeiro, ergueu-se acima do burburinho das pessoas. — Mas, se me perdoar por falar como um Viajante louco, recordo-lhe que o meu pai era um deles, como seria de esperar, per­mita-me que lhe recorde o que de fato sabemos. — O seu rosto habitualmente sorridente estava austero ao olhar para Bronden. — Sabemos de fato que ouvimos o seu rugido praticamente todas as manhãs e todas as noites. E que vemos o seu fogo nas nuvens.

Bronden rolou os olhos em desdém, mas Rowan estre­meceu. Quando cuidava dos bukshah nas manhãs frias e negras do Inverno, e à noite depois do sol ter deslizado por trás da Montanha, escutava o som do dragão. Também já vira o seu fogo. No céu acima das nuvens. Nessas oca­siões, os bukshah ficavam agitados. Os animais mais jovens berravam e os mais velhos davam patadas no solo, abriam as narinas e juntavam-se com medo. Até Estrela gemia quando o dragão rugia e, quando lhe afagava o pescoço para acalmá-la, sentia as veias a palpitar sob a lã longa e macia.

Subitamente, apercebeu-se de uma coisa. Algo que mais ninguém parecia ter tomado em consideração. Tinha de falar. Nervoso, pôs-se de pé. Os aldeãos fitaram-no com curiosidade. O que teria o menino Rowan, o tímido guarda­dor de bukshah, para dizer?

— O dragão não voltou a rugir desde que o riacho secou — afirmou Rowan. — Nem pela manhã, nem à noite. — Falou o mais alto que conseguiu, mas a sua voz pareceu baixa no silêncio. Voltou a sentar-se.

— Isto é verdade? — Allun olhou em torno do círculo.

— O menino não está enganado?

— Não, não está — disse Bronden lentamente. — Tenho noção disso agora. Na verdade, há dias que não surge um som da Montanha. — Ergueu a cabeça. — Por isso, tenho razão. Há algo de errado lá em cima. Já lhes disse o que temos que fazer.

— Mas, não podemos fazê-lo — insistiu Neel, assustado.

— A Montanha é íngreme demais, peri­gosa demais. Não podemos ir lá em cima.

— Alguma vez alguém tentou? — inquiriu Allun.

— Sim! — respondeu Marlie, a tecelã e tintureira de tecidos. — Em tempos passados, houve pessoas que subiram realmente à Montanha, à procura de novos frutos para plantar no nosso pomar. Mas nunca regressaram. De­pois disso, o povoado de Rin aceitou o aviso e deixou a Mon­tanha em paz.

— Estão vendo? — exclamou Neel. — Estão vendo? Se subirmos à Montanha, morreremos.

— Mas, Neel — disse Bronden severamente —, se não subirmos à Montanha, morreremos.

— Bronden está certa. Temos de optar — afirmou Jonn Forte, o guardião do pomar. — Ou ficamos aqui e espe­ramos que o riacho comece a correr por si de novo, ou subimos à Montanha e tentamos remover o que está im­pedindo a água de fluir até nós. Ambas as alternativas são peri­gosas. Qual é a nossa decisão? Ir ou ficar?

— Temos de ir — respondeu Marlie. — Não podemos ficar de braços cruzados à espera que a morte chegue lenta­mente à nossa aldeia. Voto para que se vá.

— Eu também — gritou Bronden.

— Eu voto sim! — disse Jonn Forte.

— Eu também — acrescentou Allun.

— Sim! Concordamos! — exclamou Val, a moleira, que permanecera em silêncio ouvindo das sombras, ombro com ombro, como sempre, com Ellis, o seu irmão gêmeo. Val e Ellis trabalhavam no moinho, moendo os grãos em fa­rinha, limpando incessantemente o grande edifício de pedra para que nunca fosse avistado dentro de suas paredes uma partícula de sujeira ou a menor teia de aranha. Jiller, a mãe de Rowan, dizia que, desde pequenos, nunca ninguém os vira separados.

— Sim! Sim! Sim! — Um a um, os aldeãos foram se levantando. Rowan olhou em volta para os rostos fami­liares, agora tão sérios e preocupados. Maise, a bibliotecária, estava de pé, com o filho e a filha. Tal como Timon, o pro­fessor, e Bree e Hanna, dos jardins. Lann, de cabelos brancos, apoiava-se na sua bengala ao lado deles. Até Solla, uma mulher gorda e gentil que fazia doces e bolos e que nunca resistia aos seus cozidos, se pusera de pé. Em seguida, Rowan viu Jiller levantar-se lentamente e juntar-se a eles. Com o coração batendo fortemente, pôs-se de pé e juntou-se a ela.

Não tardou que Neel, o oleiro, e outros quatro fossem os únicos a permanecerem sentados.

— Está decidido então — exclamou Bronden em triunfo. — Vamos preparar as nossas armas e partimos ao amanhecer.

— Esperem! — disse Marlie. — Não podemos partir sem consultar Sheba.

— Aquela velha maluca? Aquela que provoca pesadelos nas crianças e que cura as dores de barriga? O que tem ela a ver com isto?

— Sheba é velha, Bronden, mas não é maluca — res­pondeu Marlie firmemente. — Como dirá qualquer pessoa que tenha sido curada pelos seus remédios. Sheba tem mais conhecimentos além das ervas e magias. Compreende a Montanha como você e eu nunca compreen­deremos. Sheba conhece o caminho para se subir à Montanha. A passagem secreta que lhe foi ensinada pela Sábia antes dela. Temos de pedir a Sheba que nos ajude.

— É boa idéia — concordou Jonn Forte.

As pessoas murmuraram entre si. Muitas não confiavam na Sábia, Sheba. Vivia sozinha do outro lado do pomar, colhendo ervas e outras plantas e vendendo os remédios, unguentos e corantes que preparava. Raramente falava com alguém além daqueles com quem negociava. E, quando o fazia, poucas vezes era simpática. As crianças de Rin eram agitadas, como quaisquer crianças. Mas tinham medo de Sheba e não a tratavam por Sábia, mas por Fei­ticeira.

— Oh, então! Que mal pode fazer? — disse Allun, sorrindo. — Se a velhota puder nos dizer alguma coisa, o que duvido, melhor ainda. Se nada disser, não perdemos nada.

— A tolice própria dos Viajantes! — exclamou Bronden. — Isto não é um jogo, Allun, Padeiro. Por que não...?

— Já chega! — gritou a velha Lann. Olhou para Bron­den, que franziu o cenho. — Vamos avançar para o des­conhecido — afirmou, severamente. — E o tempo é precioso. Não podemos nos dar ao luxo de perdermos tempo. Quem conhece melhor a Sheba?

— Eu a conheço — disse Jonn Forte. — Ela colhe uma erva que nasce debaixo das árvores de hoopberry no pomar.

— Eu negocio com ela — disse Marlie. — Os corantes púrpura e azul em troca de roupa.

— Nesse caso, irão os dois falar com ela — fungou Bronden —, já que estão tão ansiosos por isso. — Virou-lhes as costas.

— Vamos ficar aqui à espera — disse Allun. — Sejam rápidos. Há muito a planejar. — Riu. — Tenham cuidado para não insultá-la. Tal como Bronden, não é uma mulher fácil.

Jonn Forte olhou ao redor para os aldeãos e apontou. Rowan deu um salto. O dedo de Jonn apontava para ele!

— Menino Rowan — chamou Jonn Forte. — Pequeno coelho, guardador dos bukshah! Vá correndo buscar dois queijos no armazém de frios. Os queijos mais antigos, mais curados e mais fortes da prateleira de cima. E leve-os à cabana de Sheba. Sheba aprecia muito um queijo forte. A dádiva irá acalmar o seu temperamento.

Rowan ficou olhando de boca aberta sem se mexer. Tinha pavor de Sheba. A mãe deu-lhe uma leve cotovelada.

— Eu vou — disse a pequena Annad, ao lado dele. — Eu não tenho medo. — Ouviram-se gargalhadas por entre as pessoas.

— Vá fazer que te pedem, Rowan — disse Jiller bai­xinho. — Rápido!

Rowan abriu caminho por entre as pessoas.

— Aquele menino tem medo da própria sombra — ouviu Val, a moleira, murmurar para o irmão, quando passou por eles. — Nunca será o homem que o pai foi.

Ellis murmurou concordando.

Rowan correu, as faces ardendo de vergonha.

 

SHEBA

Rowan estava sem fôlego quando chegou ao armazém de frios. Tremendo, subiu as escadas e pegou dois dos queijos mais antigos. O armazém estava cheio de quei­jos, tinas com coalho branco de leite, batedeiras de man­teiga. Havia muito para toda a gente. Mas não por muito tempo, se não fossem substituídos.

Deixou o armazém de frios e atravessou correndo o pomar, em direção à cabana de Sheba. Podia ouvir o ruído da multidão reunida na praça do mercado, sen­tindo-se satisfeito por não ter que passar por eles. Quando chegou ao limite da aldeia, pensou no que Val dissera. Tropeçando ligeiramente no mato, começou a mover-se por entre as árvores de hoopberry, esquivando-se dos ramos retorcidos e pendentes. Pensou em Sefton, o seu pai.

Uma noite, Sefton chegara tarde do mercado, pouco depois do nascimento de Annad, encontrando a casa a arder. Uma tora resvalara da fogueira e incendiara o chão da casa. As chamas tinham alcançado as escadas e a casa estava cheia de fumaça. Sefton gritou por auxílio e subiu pelas escadas em chamas. Tirara Jiller inconsciente e o bebê da cama e trouxera-as para um local seguro. Depois, com as chamas cada vez mais altas e quentes, colocou um cobertor por cima da cabeça e regressou à casa — para ir buscar Rowan, que estava no sótão. Ninguém conseguiu impedi-lo, disseram mais tarde, embora o calor e a fumaça não tivessem permitido a entrada de qualquer outra pessoa. Nem mesmo dos corpulentos Val e Ellis, os moleiros. Nem mesmo Jonn Forte, amigo de Sefton.

Avistaram Sefton na janela do sótão, com Rowan nos braços. Viram-no abrir a janela e ouviram-no gritar. Correram para apanhar o que ele lançara — o filho, gritando aterrorizado, envolto na coberta da cama. E de­pois ouviram um estrondo e viram o telhado a abater e as chamas a elevarem-se e a crepitarem. Jonn Forte, ani­nhando Rowan nos braços enormes, soltou um grito de pesar. Sefton salvara a família. Mas partira para sempre.

Rowan crescera sabendo que o pai morrera para salvá-lo. Também sabia, embora nunca tivesse sido dito abertamente, que muitas pessoas na aldeia de Rin sentiam que a troca não fora justa. Os aldeãos eram agora agri­cultores e comerciantes, mas eram descendentes de grandes guerreiros. Antigamente, quando Rin era ameaçada, muitos dos mais velhos tinham lutado para defendê-la. A Guerra das Planícies estava viva na memória deles e registrada em dezenas de volumes na casa dos livros. A po­pulação de Rin tinha orgulho na sua tradição de coragem.

Desde muito novas, todas as crianças da aldeia apren­diam a correr, escalar, saltar, nadar — e lutar. Rowan treinara com os outros, mas nunca fora bom em nada. Sempre fora pouco desenvolvido para a idade. Sempre fora tímido. E, desde a noite do incêndio, tornara-se ainda mais calado e nervoso do que antes. Val tinha razão, pen­sou. Nunca seria o homem que o pai fora. Tal como nunca teria a força da mãe, a qual, desde a morte do pai, começara a trabalhar ainda mais, arando os campos de trigo com Estrela, plantando e apanhando a colheita, transportando-a para o moinho.

Fora atribuída a Rowan a tarefa de guardar os bukshah porque era uma tarefa fácil. Cuidar dos grandes e mansos animais não requeria braços fortes nem grande coragem. Apenas uma vez, há muito tempo atrás, uma guardadora de bukshah teve problemas. E a entrada para uma mina por onde ela caíra, na tentativa de salvar uma cria tres­malhada, encontrava-se fechada há muitos anos. Uma criança muito menor do que Rowan daria conta do recado. Mas era-lhe permitido que permanecesse junto dos animais, fato pelo qual se sentia agradecido.

Os bukshah adoravam-no e conheciam-lhe a voz. Olha­vam para ele com aqueles suaves olhos castanhos, e en­costavam o nariz à mão dele quando estava triste, como se percebessem as suas inquietações. Em troca, Rowan tentava tornar a vida deles confortável, aprendendo a curar as suas doenças, a tratar dos cortes e ferimentos como a mãe tratava dos dele, retirando cardos e outras coisas dos seus revestimentos de lã. Quando as neves invernosas sopravam no vale, trazia os mais velhos e fracos para o abrigo, sabendo que os ventos gelados os matariam, não suportando perder nem um deles. Na Primavera, quando o desabrochar do pomar adocicava o ar, corria e brincava com as crias, levando-lhes porções de ervilhas que roubava dos jardins quando ninguém estava vendo.

Rowan pôs-se à escuta. Podia ouvir os animais agora, no campo próximo, roncando e fungando uns para os outros enquanto o sol começava a afundar-se por trás da Montanha. Desejou estar com eles, em vez de estar a tropeçar nos seus próprios pés no pomar com os braços cheios de queijos malcheirosos e a cabeça cheia de medos vergonhosos.

Passou pela vedação que marcava o limite do pomar e os seus pés abrandaram quando avistou luz a tremeluzir na cabana de Sheba. A porta estava aberta, apesar do frio do ar da noite, e gigantescas sombras oscilavam e ras­tejavam sobre o estranho e pálido mato que crescia na frente. À medida que foi se aproximando, começou a tremer de novo.

Duas das crianças de Bree e Hanna contaram-lhe uma dada ocasião que, se desejasse, Sheba podia transformar-se numa lesma gorda. Apontaram para as lesmas que tiravam das folhas de couve. «Todas elas já foram pessoas», disse­ram. «Olha, ali está o nosso tio Arthal. Reconhecemos pela marca na testa. Deu à Feiticeira um tomate podre num saco, em troca de um remédio para a dor de barriga. Um tomate podre num saco de vinte. E foi isso o que ela lhe fez. Adeus, tio Arthal. Olá, tio Lesma. Quer dar-lhe um beijo?». Empurraram a criatura rastejante para a boca de Rowan e gritaram-lhe, enquanto ele fugia.

Rowan sabia que estavam gozando dele. Na verdade, sabia. Apesar disso, por vezes à noite, na cama, ou se um bukshah escapava e tinha que se aproximar da cabana de Sheba para apanhá-lo, a história das crianças surgia-lhe na mente, recordando-se da lesma gorda e lenta com a mancha na testa, e estremecia.

Enquanto avançava levemente por entre as sombras do mato, vozes foram ao seu encontro. Jonn Forte e Marlie. E outra voz, seca e baixa. Sheba.

— O riacho corre do topo da Montanha, acima das nuvens — dizia ela. — Corre debaixo da terra e das rochas, até Rin. Por isso, meus amigos, terão de subir até ao topo da Montanha. E ninguém, a não ser Sheba, conhece o caminho secreto! — O riso trocista ecoou para o exterior.

Rowan pensou em deixar os queijos na entrada e correr para casa. Contudo, quando deu um passo em frente, um galho estalou debaixo de sua bota.

— Finalmente! — Jonn Forte enfiou a cabeça para fora da porta. Pôs um braço atrás das costas de Rowan e puxou-o para dentro. — O menino com os queijos. A nossa oferta para você, Sheba — disse, animado. — Em troca do seu conheci­mento do caminho.

A velha mulher sentada junto da lareira cheirou o ar e estalou os lábios com um som ávido.

— Os queijos! — exclamou. Depois, franziu o cenho e os olhos estreitaram-se. — Traga-os aqui — ordenou. — Che­gue mais perto, menino.

Rowan hesitou. Marlie, ao lado dele, deu-lhe um leve empurrão. Os pés dele pareciam pedra. Forçou-os a avan­çar, um passo de cada vez.

— O que está escondendo? — perguntou Sheba, erguendo-se um pouco na cadeira. — Disse mais perto, menino! Chegue aqui e ponha esses famosos queijos no meu colo. Senão, como poderei saber se não estou sendo enganada? Iludida com mercadoria de segunda?

— São os melhores que temos, Sheba — disse Marlie. — Quem os escolheu foi o próprio Rowan, da prateleira mais alta do armazém de frios. Vai gostar deles.

— Isso é o que dizem — respondeu Sheba. Encurvou os ombros e fitou Rowan. À luz do fogo, os seus olhos pareciam vermelhos. Tinha a testa atada com um tecido púrpura e os cabelos pendiam como finas tranças grisalhas em torno da face. Cheirava a cinzas e pó, roupas velhas e ervas amargas. Rowan chegou à cadeira dela, colocou os queijos redondos e amarelos no seu colo e retrocedeu rapidamente, contendo a respiração, tentando não olhar para ela.

Mas Sheba perdera o interesse nele. Testava os queijos com os dedos ossudos, cheirando-os um a um. Rowan abraçou-se e estremeceu, protegendo-se atrás da alta figura de Marlie daqueles terríveis olhos vermelhos. E se ele tivesse escolhido mal? E se os queijos não fossem bons afinal? E se Sheba pensasse que ele estava tentando enga­ná-la?

A velha mulher olhou para cima.

— São bons — pronunciou. — Bons como disse que seriam, Jonn do Pomar.

— Naturalmente. — Jonn Forte fez-lhe uma vênia.

— E agora, Sheba — disse Marlie com firmeza —, vai nos dizer o que desejamos saber?

— Ah, corajosa Marlie! — Sheba riu, de forma pouco agradável. Tirou alguns paus de um cesto ao seu lado e lançou-os ao fogo. Este intensificou-se quando os paus se incendiaram e sombras dançavam no rosto dela quando se voltou para eles. — Corajosa enquanto tece os tecidos na segurança de sua casa e sonha com glória. Mas, até que ponto será corajosa na Montanha? A Montanha tem formas de subjugar moças corajosas como Marlie, se tiverem a ousadia de medir forças com ela. Tem formas... tantas formas... como irão descobrir.

Rowan sentiu Marlie ficar tensa e viu suas faces enrubescerem.

— Não necessitamos dos seus avisos, Sheba — disse, em voz calma.

— E Jonn! Jonn Forte, guardião das árvores! Um bom e grande homem! — escarneceu a velha mulher, igno­rando-a. — Agora vem aqui para me pedir favores. Mas não passava de um moleque de pés descalços há tempos atrás, chorando pela mãe quando Sheba passava? — Mos­trou-lhe os longos dentes castanhos num sorriso hediondo. — A Montanha não irá testar a sua força, Jonn. Irá des­truí-la. Como destruiu a força de homens com o dobro da tua coragem. Irá retorcer-se e choramingar como um bebê nas mãos da Montanha. Mas a Montanha não te soltará.

Houve um momento de silêncio. Rowan estava rígido de horror.

Jonn Forte riu. Pousou depois as mãos nas ancas e falou duramente para a velha mulher.

— Deixe de histórias, Sheba! — disse. — Não têm interesse nem para mim nem para Marlie. O único aqui com medo delas é o menino Rowan. Não deve nos consi­derar tão idiotas ao ponto de seguirmos o exemplo dele. Repare, está com um medo de morte, como se fosse um coelho escanzelado. Ainda por cima, escolheu queijos excelentes para você! Devia pedir-lhe desculpas.

Sheba continuou a sorrir, mas os seus olhos reluziam de vermelho.

— Ria o quanto quiser, Jonn do Pomar — escarneceu. — Se o menino é o único com medo, é o único com bom senso. Mal não faria se te deixasse guiar por ele! — Levou de novo a mão ao cesto junto dela. — E de fato devo pedir-lhe desculpas — retorquiu. Depois, com a rapidez do ataque de uma cobra, atirou um pau direto em Marlie, que gritou e deu um pulo para o lado assustada, fazendo com que o pedaço de madeira arremessado apanhasse Rowan em cheio.

Rowan cambaleou para trás e quase caiu, o pau na mão e o sangue começando a pingar de um corte na testa. Jonn Forte soltou uma exclamação de ira e avançou com os punhos cerrados.

— Uma oferta de Sheba — disse a velha mulher com rispidez. — E peço que me desculpe, Rowan dos bukshah.

— Sheba, você foi longe demais! — disse Jonn Forte em voz alta.

Os lábios dela curvaram-se.

— Fui? — perguntou. — Bom, nesse caso, talvez seja melhor esta reunião terminar.

— Só quando nos disser aquilo que viemos ouvir — exclamou Marlie. Olhou para Rowan, protegido nas sombras. — E rapidamente! Temos de ir tratar da testa do menino.

— Não passa de um arranhão — disse Sheba placidamente. — Mas, apesar de tudo, estou ficando exausta. Cansada das suas tolices. Vou dizer o que precisam saber. Tanto quanto puder. Esperem.

Recostou-se na cadeira e semicerrou os olhos. As mãos afagavam os queijos no colo como se fossem gatos. O fogo reluzia. Começou a murmurar para si. Durante algum tempo, não conseguiram tirar nenhum sentido das palavras dela. Foi então que, finalmente, falou com clareza:

 

«Sete corações a viagem encetarão.

De sete formas os corações sofrerão.

O coração mais valente seguirá em frente

Quando o sono é morte, e a esperança decadente.

Olha o rosto feroz do terror

E vê a resposta com clareza e fulgor,

Esquece então todos os pensamentos de teu lar

Pois só então a tua missão pode terminar».

 

As pálpebras de Sheba estremeceram e os seus olhos se abriram. Por momentos, fitou Jonn, Marlie e Rowan como que em sonho, como que se questionando por que estavam ali. Depois, a sua expressão carregou-se e acenou a mão para eles, impacientemente. Já não tinha o aspecto de uma feiticeira. Apenas de uma mulher velha, cansada e resmungona.

— Vão embora — disse. — Nada mais posso lhes dizer.

— Mas, o caminho, Sheba. O caminho que devemos seguir — rogou Marlie. — Não nos disse nada!

— Não disse? Bom, veremos. Talvez venham a descobrir o contrário. Agora, deixem-me em paz. — O queixo de Sheba caiu para o colo e ficou em silêncio. Aguardaram, mas ela não voltou a erguer a cabeça. Algum tempo depois, começou a ressonar.

— Está dormindo — murmurou Rowan.

— Dormindo ou fingindo — disse Jonn Forte, aborrecido.

— Seja como for, já não temos mais nada a fazer aqui. Temos de voltar. Os outros já esperaram o suficiente por nós.

Saíram da cabana e apressaram-se a regressar à aldeia.

— E voltamos de mãos abanando — exclamou Marlie.

— Com Rowan sangrando. Rowan, não me perdôo por ter me desviado e permitido que tomasse a paulada. Fui apa­nhada de surpresa.

— O velho demônio queria que Rowan sofresse — afirmou Jonn Forte com tristeza. — Estava me punindo por rir dela e por ter dito que pedisse desculpas. A culpa é minha.

Rowan, seguindo ao lado deles pelo pomar, sentia-se tonto e fraco, mas se isso se devia ao corte na testa ou sim­plesmente ao terror que sentira na cabana de Sheba, não sabia. Os horríveis avisos dela ecoavam na sua cabeça e o estranho cântico parecia ter sido cauterizado no seu cérebro. Não conseguia esquecê-lo. «Sete corações a via­gem encetarão... De sete formas os corações sofrerão...». Viu-se a repeti-lo em voz baixa, contando o tempo na perna com o pau que ainda segurava na mão. «O coração mais valente seguirá em frente... Quando o sono é morte, e a es­perança decadente...».

— Esqueça isso, menino Rowan — disse Jonn Forte intran­quilo. — Olhe lá na frente... as luzes da aldeia. Não tardará a estar em casa com a sua mãe. — Trocou olhares com Marlie. — E o que me dirá ela por trazê-lo para casa neste estado... — acrescentou, a meia voz.

 

OS HERÓIS

No entanto, depois de inspecionar o corte na testa do filho, Jiller limitou-se a sorrir e a encolher os ombros. Não era nada de grave, disse, e podia ser tratado mais tarde em casa. Aquele tipo de coisas acontecia a todas as crianças, uma vez ou outra. Rowan sabia que as palavras dela se destinavam tanto a si, como a Jonn Forte e a Marlie. Recordava-o que tinha de ser corajoso, como era próprio de uma criança de Rin, e que não se lamentasse.

Rowan sabia que Jiller se preocupava com o fato de ele ser nervoso e fraco. Escutara a mãe a afirmá-lo a Jonn Forte à porta de sua casa, apenas há um ou dois meses. Tentava ser paciente, dissera Jiller, mas Rowan era tão diferente dela, e do seu pai, e mesmo da pequena e forte Annad, que por vezes era difícil. Não o compreendia. Como gostaria que o pai dele fosse vivo...

Rowan afastara-se silenciosamente e subira as escadas para o quarto que partilhava agora com Annad. Perma­necera deitado por bastante tempo, sem pensar propria­mente em nada, apenas consciente de uma dor no peito.

Agora estava ao lado da mãe com a cabeça num tur­bilhão e olhos ardentes, sem nada dizer. Ansiava atirar-se aos braços dela e chorar por conforto, mas não encontraria conforto ali. Apenas vergonha.

— Bem eu lhes disse que Sheba seria uma perda de tempo! — dizia Bronden, meio em triunfo meio em desespero.

— Agora tem dois dos nossos melhores queijos naquelas mãos sujas e nós ficamos na mesma.

— Não faz mal — retorquiu Allun, encolhendo os ombros. — Decidimos que iríamos tentar junto dela, e assim fizemos. Há agora que chegar a uma nova decisão. Porque não podemos todos subir à Montanha. Quem vai?

— Eu vou — gritou Bronden. Fitou a todos, como que desafiando alguém a opor-se.

— Por que não? — replicou Jonn Forte. — Ninguém duvida da sua determinação, coragem ou direito, Bron­den. Tal como, presumo, ninguém duvida dos meus. Também irei.

Rowan tinha a sensação que uma mão de gelo lhe aper­tava o coração. Recordou as palavras de Sheba: A Montanha não irá testar a tua força, Jonn. Irá destruí-la.

— Não! — disse. A mão da mãe apertou-lhe mais o braço.

— Eu também — disse Marlie com firmeza, os olhos em Bronden.

Val e Ellis tinham estado a conversar calmamente entre os dois. Agora Val levantava a voz rouca.

— Até a roda do moinho voltar a girar, não temos trabalho para fazer — disse. — Por isso, vamos nos juntar a vocês na Montanha. É melhor do que ficar de braços cru­zados, à espera.

— Podia aproveitar para limpar a casa, para variar — brincou Allun.

Val olhou friamente para ele, enquanto alguns dos outros aldeãos trocavam olhares divertidos. Todos sabiam que Val e Ellis não gostavam que brincassem com o seu aprumo pela limpeza.

— Isto é uma loucura — gritou Neel, o oleiro, incapaz de continuar em silêncio. — Isto não é um assunto para brincadeiras! Bronden, Jonn, Marlie, Val, Ellis... os mais fortes de nós a partir para o desconhecido! — Apelou à assembléia. — Se estas cabeças duras não voltarem, como iremos sobreviver? O que acontecerá se os Zebak nos inva­direm de novo? Ou se surgir a ameaça de outro perigo qual­quer?

— Existe de fato a ameaça de um outro perigo, Neel — disse a velha Lann. — Neste exato momento, conosco aqui reunidos. Talvez o mais terrível que jamais enfrentamos. E, para salvar a aldeia desse perigo, alguns de nós terão de partir para o desconhecido. É exatamente por isso que terão de ser os mais fortes. — Voltou-se para Jonn. — No entanto, acho que o grupo é ainda muito pequeno. É necessário mais um.

Allun deu um passo em frente.

— Concordo. Eu irei acompanhá-los. — Viu Bronden abrir a boca para se opor e continuou rapidamente. — Ah, Bronden, sei que nem sempre vivi em Rin e que as minhas forças não se comparam às suas. Mas não sou pro­priamente um fraco. Domino, tanto quanto sei, todas as perícias que a viagem requer. E tenho outros pontos fortes a oferecer, graças ao sangue do meu pai. Por um lado, uma cabeça fria. Por outro, sei preparar uma fogueira. E conheço uma série de cânticos e anedotas que não deixa­rão de fazer falta. Além do mais, sem os moleiros e sem farinha, como irá ocupar o tempo um pobre padeiro nos dias que virão?

— Podia vir cavar o meu jardim, Allun — disse Sara, a mãe.

Ouviram-se risadas de todos os presentes. A velha mulher sorriu. Só Rowan e Allun perceberam que as mãos dela agarravam o avental, torcendo o tecido branco, e que os seus olhos reluziam não de riso, mas com lágrimas contidas. Já vivera tempo suficiente para ouvir as histórias antigas sobre a Montanha e para recear o seu poder. E Allun era o seu único filho.

No entanto, e como uma verdadeira filha de Rin, Sara sabia como ocultar os seus sentimentos. Apenas uma vez, há muitos anos atrás, baixara a guarda. E isso foi quando se apaixonou pelo homem que se tornaria o pai de Allun, um cantor de olhos castanhos risonhos que chegou à aldeia num dado Outono com um grupo de Viajantes. Rowan ouvira a história muitas vezes, muito embora essa tivesse acontecido muitos anos antes de ele nascer, quando os seus pais eram eles próprios ainda crianças. Fazia parte da história da aldeia, sendo repetida sempre que uma tribo de Viajantes vinha acampar por perto.

Rowan podia imaginar o choque que deve ter causado quando se ficou sabendo que Sara, a sensata professora da aldeia, iria deixar Rin para casar com um Viajante sem eira nem beira. A maior parte das pessoas ficou horro­rizada, tendo feito tudo para fazê-la mudar de idéia. Mas ninguém conseguiu persuadi-la e, quando os Via­jantes partiram, ela acompanhou-os, deixando a paz e segurança do seu lar para perambular com o homem que amava e com a sua tribo.

A população de Rin voltou a ver Sara alguns anos mais tarde, quando os Viajantes voltaram de novo àquelas para­gens. Nessa altura, o pequeno Allun já dava passos atrás dela, e a sua felicidade estava-lhe estampada no rosto para quem quisesse ver. Alguns abanaram a cabeça e disseram que os sorrisos dela não iriam durar muito. E tinham razão, embora não pelos motivos que eles pensavam.

Porque depois chegou o período de cinco anos da Guerra das Planícies, em que de novo o povoado de Rin, o povo Maris e os próprios Viajantes se viram forçados a unir-se em luta contra os invasores do outro lado do mar — os seus ancestrais inimigos, os Zebak. Tal como acon­tecera anteriormente com os seus antepassados, conse­guiram por fim expulsar os Zebak de suas terras. Mas a batalha foi longa e custou a vida de muitos valentes. E um deles foi o marido de Sara.

Depois disso, Sara trouxe o jovem filho de volta à aldeia. Sem o seu homem, a vida dos Viajantes não lhe era apelativa e desejava criar raízes de novo com o seu povo, no seu velho lar. Contudo, para Allun, o lar eram as tendas coloridas dos Viajantes, o cheiro das fogueiras no terreno a arder na noite, vastas planícies, florestas e estradas si­nuosas que pareciam não ter fim.

Magro, de olhos negros e cabelos encaracolados, Allun era a imagem do pai e muito diferente das crianças altas e fortes de Rin. Debaixo da árvore-escola com Bronden, Jiller, Val, Ellis e outros da mesma idade naqueles dias, man­tinha a cabeça erguida e sorria perante os olhares e sussurros deles. Fora da escola, embora se esforçasse por se parecer com eles, não tardou a perceber que a sua força não se igualava à deles e que a sua inte­ligência era a sua melhor arma.

Rowan sentia freqüentemente que Allun podia ser a única pessoa na aldeia que compreendia o que ele sentia, dado que também ele era mais fraco e diferente dos outros. Não que Allun alguma vez o tivesse afirmado. Mas, quando visitava a sua casa com Marlie e Jonn Forte, brincava muitas vezes com Rowan, interessava-se pelo que ele fazia e arran­java desculpas para os seus erros.

E agora, Allun também ia subir à Montanha. Tentando provar, mais uma vez, que era um digno cidadão de Rin. Jonn e Marlie pareciam satisfeitos e Bronden rolava os olhos para Val e Ellis, não lhe agradando o sexto membro do grupo, mas incapaz de pensar num bom motivo para negar a sua participação. Engraçado, Allun, o padeiro, um ho­mem de bom trato, ia desaparecer com os outros no secreto labirinto de escarpas e florestas que se erguiam acima deles. Rowan recordou de novo o rosto trocista de Sheba.

— Bom, se têm de partir, que assim seja! As ervas daninhas poderão esperar mais alguns dias — dizia a velha Sara, sorrindo e movendo as mãos em falso desespero enquanto os olhos ainda brilhavam com lágrimas.

— Abençoada seja, mãe — disse Allun. O seu tom era ligeiro, mas o amor e admiração nas palavras eram claros para todos.

— Muito bem — disse Jonn apressadamente, pois era um homem que ficava embaraçado com a demonstração aberta de sentimentos fortes —, sugiro que cada um vá para casa e faça os preparativos para a viagem. Quando a madrugada chegar, já devemos ter uma boa noite de sono. De acordo?

Os outros anuíram. Os aldeãos se desejaram boa-noite e começaram lentamente a dirigir-se para as respectivas casas. Alguns sentiam-se alentados porque algo estava sendo feito para resolver o problema que tão inesperadamente desabara sobre eles, estragando o calmo progresso dos seus dias. Alguns sentiam-se excitados, até invejosos, perante a grande aventura que aguardava os escolhidos. Mas muitos, como Neel, deitaram-se nessa noite com o coração pesado, porque os líderes e heróis da aldeia iam partir numa perigosa missão por todos eles, podendo não mais regressar.

Quando Annad finalmente adormeceu, exausta com toda a excitação, Rowan permaneceu deitado na sua cama, olhando através da janela para a enorme grandeza da Mon­tanha. O luar era muito intenso, mas a Montanha projetava-se negra contra o céu, secreta e cheia de mistério. Jiller desinfetara-lhe o corte na testa, mas a cabeça con­tinuava a doer e as palavras de alerta de Sheba ator­mentavam-no.

Esforçou-se por pensar em coisas agradáveis. Em Estrela, na nova cria que iria nascer no rebanho, no gosto do suco azul e fresco de hoopberries. E em recordações da mãe quando ele era bebê, uma Jiller mais carinhosa e feliz, cantando para ele. Contudo, quando estava prestes a adormecer, aqueles pensamentos negros regressavam de imediato, sentindo medo de fechar os olhos.

Por fim, mergulhou no sono — um dormir inquieto, minado de pesadelos. Estava de volta à cabana de Sheba. Mas, agora, as quatro paredes eram de rocha, gotejando de água e lama. E Sheba era enorme, o nariz longo e pontiagudo, os cabelos tranças grisalhas agitando-se como espessas cordas em torno do rosto sorridente, os olhos vermelhos e penetrantes. Jonn Forte e a mãe estavam com ele, mas não fizeram nenhum movimento para ajudá-lo quando a Feiticeira se inclinou sobre ele, aproximando-se cada vez mais, até o rosto dela ser a única coisa que via e o hálito dela lhe escaldar as faces. «Se é o único com medo, coelho escanzelado, é o único com bom senso», rosnou. E abriu a boca para gargalhar, mas não tinha língua e o interior da sua boca era tão amarelo e macio quanto o queijo.

 

VER PARA CRER

Rowan acordou ofegante, tremendo, todo transpirado. Não fazia idéia que horas eram. O sonho pareceu du­rar horas, mas podiam ter decorrido apenas alguns se­gundos. Annad continuava dormindo tranqüilamente, a boca ligeiramente aberta, uma mão segurando o seu bukshah de pelúcia. Pelo menos, ela não estava com pesadelos. Mas, só de pensar que tinha de voltar a dormir, Rowan sentia-se aterrorizado. Atirou as cobertas para trás e pulou da cama. Estava muito frio. O ar frio da noite soprava na janela e tinha a camisa de dormir completamente encharcada. Des­piu-a e começou rapidamente a vestir as roupas que dei­xara numa pilha no chão quando se trocara para ir para a cama.

Por baixo da roupa, estava o pau que Sheba lhe atirara. Sem pensar, levara-o para casa e para o quarto. Pegou nele e percorreu-o com os dedos. Era um pau bom: reto e grosso, e tão liso como se tivesse sido polido, com exceção da pequena protuberância no meio. Fora possivelmente aquilo que lhe provocara o corte na testa, decidiu Rowan, passando a ponta do polegar sobre a saliência. Não havia dúvida que era dura e afiada.

Foi então que a protuberância se moveu! Deslizou para fora sob o seu dedo. E o pau começou a descascar-se!

Rowan ficou de boca aberta, vendo a superfície lisa sob os seus dedos darem origem a uma folha fina. Fasci­nado, puxou a folha, que foi se desenrolando. Perce­beu então que o «pau» não era um pau afinal. Era um pergaminho fortemente enrolado. A pequena protube­rância no centro era o fecho que o mantinha enrolado.

Lançando um olhar para Annad ainda adormecida, correu para acender o candeeiro. Ela não acordaria e ele tinha de analisar aquela estranha coisa que tinha na mão. Porque, mesmo na escuridão, percebia que o pergaminho não estava em branco. Havia imagens, linhas e palavras. Tinha de ver o que era.

Abriu o pergaminho no chão de madeira e prendeu os quatro cantos com os seus sapatos e os de Annad, evi­tando que se enrolasse. Aproximou depois o candeeiro e observou-o.

Era um mapa da Montanha, com um caminho marcado em vermelho. Rowan tapou a boca com a mão para evitar gritar. Sheba pregara-lhes uma peça. Fingira que não satisfizera o pedido deles, embora sabendo que Rowan tinha na mão exatamente o que necessitavam. Sabendo que eles poderiam nunca descobrir o que ela lhes dera. Como deve ter rido sozinha perante o despeito de Jonn e o desapontamento de Marlie.

Rowan voltou a enrolar cuidadosamente o mapa e tran­cou o fecho. Calçou os sapatos. Ficou imóvel no meio do quarto, os pensamentos num turbilhão.

— Rowan! O que está fazendo? — Voltou-se e fitou os olhos perplexos da mãe. Ela olhava-o da porta. Pestanejou na sua direção. Tal como ele, Jiller estava vestida e pronta para sair.

— Eu... — De língua presa, levantou o mapa enrolado. — Tive um sonho e...

— Oh, Rowan — suspirou Jiller desesperada. — Esses pesadelos! O que vou fazer com você, meu filho? — Por instantes, Rowan pensou ver os lábios dela tremerem. — E agora, esta manhã... — Começou a chorar e levou as mãos ao rosto. Quando as baixou, estava calma outra vez. — Se deseja despedir-se do grupo da Montanha com o restante da aldeia, temos de ir já — afirmou. — Partem ao amanhecer. Deixe esse pau e vá buscar as roupas de Annad. Tenho de acordá-la. — Dirigiu-se à cama da menina.

— Mamãe... — Na sua confusão, Rowan utilizou a palavra infantil sem pensar. Viu-a erguer a sobrancelha e respirar fundo com irritação. — Mãe — continuou rapidamente e num tom tão alto que Annad se mexeu e começou a acordar sozinha. — Mãe, eu tenho o mapa. O mapa da Montanha!

 

— Ele tem o mapa da Montanha — disse Jiller de novo para Jonn Forte, ignorando as exclamações dos aldeãos. Tinha as faces rosadas de excitação e o capuz caído sobre os ombros. Para Rowan, ela estava linda. E talvez Jonn Forte achasse o mesmo, pois olhava-a com admiração.

— Então, rápido, deixe-nos ver! — pediu Bronden, ba­tendo com as botas devido ao frio. — Mas não posso acre­ditar! Por que a mulher haveria de fazer tal truque? Tem certeza que o menino não está se fazendo de bobo?

— Claro que não — respondeu Jiller, tirando o mapa a Rowan e entregando-o. — Veja por si mesma!

Bronden desenrolou o pergaminho e fitou-o por mo­mentos, a respiração criando pequenas nuvens de vapor no ar frio da manhã. Depois, a sua boca descaiu nos cantos ao passar o pergaminho a Jonn e Marlie.

— Então? — Allun, ao lado de Rowan e Jiller, ardia de curiosidade. — O que é? O que o menino encontrou?

Jonn Forte virou o pergaminho para eles. Estava comple­tamente em branco.

— Mas... — começou Rowan. — Estava aí! Um desenho da Montanha. E palavras, e setas... e um caminho mar­cado em vermelho, conduzindo às nuvens e acima dela! Es­tava sim!

Bronden fungou e inclinou a cabeça para a folha em branco ainda na mão de Jonn.

— Ver é acreditar — disse, dando meia volta. — Os meninos pequenos deviam aprender que é um grande erro tentar enganar os mais velhos para conseguir atenção.

— Talvez estivesse sonhando, Rowan — disse Allun, dan­do-lhe uma leve palmada no ombro. — Talvez queijo demais ao jantar? Às vezes, isso me acontece. As coisas parecem reais...

— Isto era real — interrompeu Jiller. Franzia o cenho, fitando o pergaminho como se nem agora acreditasse nos seus olhos. — Rowan me mostrou. Eu própria vi. Estarei também tentando enganar os mais velhos, Bronden?

Seguiu-se uma pausa de embaraço. Jonn Forte mordeu o polegar, pensativamente. Depois, entregou de novo o per­gaminho a Rowan.

— Se Jiller e Rowan dizem que o mapa estava ali acredito neles — afirmou. — Mas o fato é que já não está. Talvez Sheba quisesse aumentar as nossas esperanças, para depois aniquilá-las por completo.

Jiller sorriu-lhe, agradecida.

— Seria algo muito próprio dela — concordou Marlie. — Ela... oh! — O seu queixo caiu e apontou para Ro­wan. — Olhem! Olhem! — pediu.

Rowan, de rosto vermelho e surpreendido, viu todos os olhos postos nele. As pessoas exclamavam e olhavam. O que se passava? O que ele fizera agora? Levou apenas alguns instantes para perceber que não olhavam para ele. Olha­vam para o pergaminho na sua mão. Baixou o olhar e o golpe de choque que recebeu foi de imediato seguido por uma sensação de alívio e alegria. O mapa começava lenta­mente a reaparecer. Formas, palavras... e, por fim, o cami­nho pontilhado em vermelho, subindo sinuosamente. Jonn Forte estendeu a mão.

— Rowan, dê-me aqui — ordenou.

Ansiosamente, Rowan entregou o pergaminho. Jonn pegou-o e levantou-o. Houve um burburinho de excita­ção e depois exclamações de descrença por parte dos aldeãos. Porque, enquanto olhavam, as linhas e setas iam desapa­recendo. O pergaminho não tardou a ficar em branco mais uma vez. Jonn passou-o em volta. As pessoas observa­vam-no ao passar de mão em mão, sem nunca mudar.

— É feitiçaria! — explodiu Neel, atirando-o a Jonn Forte como se fosse venenoso. — Sheba está brincando conosco.

— Parece que sim — afirmou Jonn lentamente. — E o jogo dela é perigoso. — Olhou para Marlie. — Receio que a intenção de Sheba é que eu engula as minhas palavras — disse-lhe.

Voltou a pôr o pergaminho nas nãos de Rowan e viu, com ar sério, as marcas, formas e linhas voltarem a apare­cer na superfície — desbotadas no início, mas tornando-se cada vez mais distintas.

— O que significa isto? — gritou Jiller, apertando o ombro do filho.

Jonn Forte hesitou.

— Ontem à noite, irritada com algo que lhe disse, Sheba disse em relação a Rowan, «Mal não faria se se dei­xasse guiar por ele». Penso que, por malvadeza, ela enfeitiçou o mapa para que só revele os seus segredos nas mãos de Rowan.

— Tem razão. — Marlie pensava em voz alta. — Ela atirou-o a ele a noite passada. A intenção era que ele o descobrisse. Ela queria que isto que se passou aqui acon­tecesse realmente. — Fez uma pausa. — Sheba quer que o menino nos acompanhe na viagem à Montanha.

— Não! — As palavras saíram da boca de Jiller antes que as pudesse conter. Mordeu o lábio e recompôs-se. — Quero dizer — prosseguiu, cautelosamente —, Rowan é muito jovem. Jovem demais para ser útil. Ele não pode ir.

— Claro que não! — concordou o professor, Timon. Abriu caminho para a frente. — E eu tenho a solução para este pequeno dilema. Rowan pode segurar o mapa enquanto o copio, com a minha própria tinta no meu pró­prio papel. — Estendeu as mãos. — Pode levar uma hora e os braços de Rowan podem ficar cansados, mas será o melhor para ele. Porque Rowan pode então voltar para casa e para a sua cama, o felizardo, enquanto vocês partem para a sua aventura.

— Sim! — exclamou Marlie. — Vamos ser mais espertos do que Sheba. Ela se esquece que não somos bukshah, para sermos conduzidos como um rebanho.

Mas Sheba nada esquecera. Porque, fosse o que fosse que Timon fizesse, não conseguia copiar o mapa. Sempre que tentava, as canetas que utilizava e substituía uma após a outra deslizavam pelo papel como se estivessem untadas com manteiga, embora funcionassem perfeitamente se tentasse desenhar qualquer outra coisa. Decorrida uma hora, não conseguira ainda produzir uma só linha com alguma utilidade. Por fim, atirou fora a sua última caneta com uma exclamação indignada e sentou-se sobre os calcanhares entre um monte de papéis.

— Já chega! — disse Jonn. — Mesmo sem o mapa, já estávamos dispostos a ir. Nada mudou. Vamos agora partir sem o mapa. — Anuiu para Rowan, evitando cuidadosa­mente o olhar de Jiller. — Estamos gratos — disse. — Pelo menos, vimos segmentos do caminho. Vamos recor­dar uma grande parte, o que irá nos ajudar. Agora, vá para casa, com a sua mãe.

— Mas, isso não faz sentido! — exclamou Bronden. — O mapa pode assegurar o nosso sucesso e segurança. Temos que levá-lo conosco. E se, fruto de um feitiço qualquer, o mapa e o menino estão associados, temos que levar conosco o menino. Qualquer um pode substituí-lo na guarda dos bukshah. Seja como for, a ligação dele com os animais é uma tolice.

— Concordamos com Bronden — disse Val. O irmão, ao lado, anuiu. — A aldeia depende disto. Não há lugar para covardias aqui.

— O menino não pode ir — insistiu Jonn Forte. — Há perigos demais. Além de que é muito novo.

— Ou será que a mãe dele é muito bonita? — observou Bronden com conhecimento de causa. — Não estará pensando com o coração e não com a cabeça, Jonn do Pomar?

O rosto de Jonn ficou vermelho. Rowan sentiu o braço de Jiller contrair-se e viu-a erguer o queixo enquanto duas manchas lhe coloriam as faces.

— Mamãe, o que se passa com Jonn? — murmurou Annad, puxando a saia da mãe. — Por que está todo vermelho?

Jiller não respondeu. Rowan olhava de um para o outro e, lentamente, numa sensação doentia, compreendeu a verdade. Estavam ali outras crianças da idade dele. Se aquilo tivesse acontecido a qualquer uma delas, não haveria discussão. Seria considerado como um fato con­creto por Jonn e Timon, pelos seus pais e por toda a gente, que elas iriam. Assim como elas iriam querer ir. Seria a maior aventura das suas vidas. A oportunidade de compro­varem que eram heróis.

Era pelo fato de ser quem era que Jonn Forte estava tomando aquela posição. Porque — percebia agora — Jonn Forte amava a sua mãe e tentava-lhe poupar a vergonha e sofrimento.

Rowan começou a tremer. As palavras de Sheba ecoa­vam na sua cabeça. A Montanha não irá testar a tua força. Irá destruí-la. Por que ela lhe fizera aquilo? Se a Montanha podia destruir a coragem de alguém como Jonn Forte, que nada temia, o que podia fazer a Rowan dos Bukshah, que tudo receava?

Sentia-se simultaneamente invadido pelo medo, solidão e vergonha. Não conseguia suportar. Não conseguia suportar os olhos pesarosos dos aldeãos sobre ele. Eles também deveriam estar pensando: Porquê ele? Logo a criança mais deplorável de Rin. Que infeliz casualidade o tornou no salvador escolhido daquela aldeia, quando só os deixava ficar mal?

Voltou-se para a mãe, pronto a enterrar o rosto na saia dela e, naquele instante, surgiu-lhe uma imagem na mente. Viu a si mesmo nos campos dos bukshah, com o focinho quente de Estrela inclinado sobre a sua mão e os outros a pastar à sua volta, grandes, calmos e confiantes.

Nunca desapontara os bukshah. Nunca desapontara a eles. Nas manhãs frias ou no pico do calor, quando esta­vam feridos, ou dando à luz as suas crias, ou quando necessi­tavam de conforto quando o dragão rugia, sempre estivera lá.

Agora precisavam de água. E eles não esperavam que ele os desapontasse. Para os bukshah, ele não era um fracote amedrontado. Para eles, era líder, guia e amigo. Deposi­tavam toda a sua confiança nele. Esse pensamento fluiu por ele como um leite quente e rico.

Ergueu a cabeça e olhou diretamente para Jonn Forte.

— Eu vou — disse. O mapa que tinha nas mãos oscilava na leve brisa que sempre chegava antes da alvorada. — Eu vou com vocês para a Montanha.

 

A MONTANHA

Há horas que seguiam junto ao leito seco do riacho, tendo deixado a aldeia muito para trás. Rowan já não conseguia sequer avistar as altas paredes de pedra do moinho, o edifício mais elevado, por se encontrar oculta atrás das árvores.

Na frente deles, como um muro maciço, erguia-se a Montanha. Mais duas horas, disseram os outros, e chega­riam a ela. O mapa mostrava claramente que tinham de iniciar a subida no local onde a água irrompia do seu túnel subterrâneo, formando o riacho. Ali chegando, descansa­riam um pouco e consultariam o mapa antes de prossegui­rem.

Rowan estava muito cansado. O saco que levava pro­vocava-lhe dores nas costas e doíam-lhe as pernas. Mas sabia que tinha de continuar a andar e que não podia lamentar-se. Os outros tentavam facilitar-lhe as coisas para que pudesse segui-los, mas percebia que o passo lento estava irritando Bronden e Val, pelo menos. Era difícil dizer o que Ellis sentia, porque raramente falava. Mesmo quando passaram pelo moinho e pela grande roda de ma­deira parada, num canal próprio do leito do riacho seco, ele nada dissera. Limitara-se a olhar e depois virara a ca­beça para a Montanha.

Rowan observava-o agora, seguindo na dianteira do grupo. Levava com a maior facilidade o seu fardo e ainda o peso adicional de uma pesada corda, um pequeno machado e uma série de archotes. A irmã seguia-o logo atrás.

Eram um par estranho e silencioso. Rowan ouvira Jiller dizer para Jonn Forte que era como se eles vivessem num mundo só deles. Um mundo habitado apenas por duas pessoas. Pareciam tão vigorosos e imutáveis quanto as paredes de pedra do seu moinho. Tinham sensivelmente a mesma idade de Jiller e Rowan conhecia-os desde que nascera. Para ele, faziam apenas parte da vida normal do dia a dia da aldeia, tal como todos os outros adultos. No entanto, ultimamente, tomara consciência que Val e Ellis eram de fato incomuns. E que a mãe, e pessoas como Jonn Forte e Allun também o consideravam.

Atrás de Val, uma cabeça mais baixa, mas corpulenta e determinada, caminhava Bronden. Seguia-se Marlie, sorrindo ocasionalmente para Allun ao seu lado, asso­biando e cantando como se estivesse num passeio no campo.

Rowan era o penúltimo da fila, ocupando Jonn Forte a última posição. De vez em quando, Jonn falava com ele. «Está tudo bem, Rowan?», perguntava com simpatia. Ou, «Estamos quase lá, meu amigo». Rowan anuía e murmu­rava uma resposta sem grande convicção. Sabia que Jonn pouco se importava com o que ele sentia. Sentia-se apenas responsável por ele.

Jonn tinha um bom coração e era agradável para toda a gente. Era o seu modo de ser. E sempre fora simpático para Rowan. Mas isso era diferente de gostar. Preocupa­va-se com Annad — era algo visível. Contudo, com Rowan, nunca se descontraía. Esforçava-se demais para ser simpático. Ninguém precisa de se esforçar quando se gosta realmente de alguém. Rowan sabia isso. E, por vezes, Jonn chamava-o de «coelho escanzelado» e ria dele por ter medo das coisas.

Jonn falava agora com ele por causa de Jiller. Rowan ouvira a mãe sussurrar, «Cuide dele» quando se despe­dira do homem grande antes de partirem. E Jonn pega­ra-lhe as mãos e dissera, «Assim farei, Jiller. Juro, pela minha vida, que o trarei de volta para casa».

Ao recordar isto, Rowan sentiu algum ressentimento. Que direito tinha Jonn Forte de olhar assim para a mãe? Que direito tinha ele de lhe segurar as mãos assim como se fosse algo mais do que o amigo do seu falecido marido? Fora um choque para ele quando percebeu, na praça do mercado, que Jonn podia sentir mais pela sua mãe do que simples amizade. Fora horrível pensar que ele poderia sequer planejar tornar-se um dia marido dela. Ninguém podia ocupar o lugar do pai, pensou Rowan amar­gamente. Ninguém.

Foi se arrastando, olhando em frente. Jonn devia real­mente sentir-se responsável por aquela confusão, pensou. Foram as brincadeiras de Jonn que irritaram Sheba e a levaram a tornar Rowan o guardião do mapa. Fora por culpa de Jonn que Rowan se vira forçado a tornar-se o sétimo membro fraco e indesejado do grupo.

Os pensamentos de Rowan mudaram então de sentido e a sua raiva acalmou-se. Questionou-se se Jonn e Marlie se recordavam das palavras de Sheba: Sete corações a viagem encetarão... De sete formas, os corações sofrerão. Eles nada disseram, mas certamente que pensaram nisso, tal como ele. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Sheba nunca podia ter sabido com antecedência qual seria o número daquele grupo. A menos que tivesse tido uma visão do futuro quando se recostou na cadeira, de olhos meio cerrados. E se essa parte da profecia se tornara verda­deira... o que aconteceria em relação ao restante? Rowan baixou a cabeça para observar o terreno sob os seus pés. Não queria olhar para a Montanha.

Durante a última hora de caminhada e à medida que as rochas da Montanha se tornavam cada vez maiores e aguçadas, Rowan começava a sentir o sol quente nas costas. Há algum tempo que se mantinha de pé apenas impul­sionado por pensamentos nos bukshah. Enquanto Jiller lhe preparava a trouxa para a viagem, dera uma escapada aos campos para se despedir. Encontrara os animais agi­tados no pasto que circundava a lagoa de água lamacenta.

— Vamos ajudá-los — dissera-lhes Rowan, movendo-se de um para o outro, afagando-os, absorvendo o seu cheiro animal, familiar e quente. — Não tardará a haver água doce de novo. Já não falta muito.

Deixou Estrela para o fim. Abraçou-lhe o pescoço até onde os seus braços conseguiam chegar e pousou a cabeça na lã fofa.

— Adeus, Estrela — dissera. — Espere por mim. Hei de trazer a água de volta. Não vou te deixar mal.

Sabia que Estrela não conseguia entender as palavras dele, mas ela roncara e grunhira-lhe como que reconfortada pelo tom de sua voz.

— Annad e a mãe vão cuidar de você enquanto estiver fora — dissera-lhe. — Se a Alvorada tiver a cria durante a minha viagem, elas ajudarão. Prometeram-me isso.

Um abraço final e teve de ir embora. Mas a confiança e força de Estrela permaneceram com ele, mesmo quando os joelhos tremeram de cansaço e a respiração se tornou difícil no peito.

— Ei, Ellis! — O grito de Jonn Forte interrompeu os pensamentos de Rowan. Allun e Marlie pararam na sua frente. Rowan estacou e olhou para cima. Perante ele erguia-se uma escarpa rochosa. Ao seu lado, o leito seco do riacho transformara-se num buraco redondo e fundo, de onde corria ainda um pouco de água lamacenta. Havia uma abertura negra na escarpa logo acima do buraco. Em toda a volta, havia vegetação e musgo que secavam. Era dali então que a água saía.

— Habitualmente, a água corre dali — dizia Jonn Forte para Val e Ellis, apontando para a abertura. Quando corria como devia, não se podia estar ali sem ficar molhado pelos borrifos.

Bronden desceu para o charco vazio e andou de um lado para o outro, batendo com os pés na lama macia. Em seguida, inclinou-se por cima da rocha para olhar para a abertura na face da escarpa, como que na esperança de encontrar ali uma resposta.

— Sheba disse que a resposta estava no topo da Montanha — disse Marlie, que parecia não se conter de se sentir irritada com Bronden. — Não há nada para ver aí.

— Também não há mal nenhum em dar uma olhada, Marlie Tecelã — retorquiu Bronden. Esfregou a mão na rocha, enfiando o braço no buraco da escarpa até onde conseguiu. — Um túnel redondo. O chão, pa­redes e teto são perfeitamente lisos — informou, lim­pando as mãos lodosas na roupa antes de voltar a subir para a margem. — Sem dúvida que as superfícies irre­gulares foram desgastadas pela água em movimento.

— Como seria de esperar — respondeu Marlie.

Rowan deixou-se cair no chão. Os joelhos não o agüen­tavam mais. Tirou o saco pesado e procurou nele a garrafa de água.

— Beba um pouco, mas não muito — avisou Allun, ajoelhando-se ao lado dele. — Não sabemos quanto tempo as nossas provisões vão ter que durar. Poderemos não en­contrar água na Montanha.

Rowan engoliu um trago da água quente e com sabor de metal. Era deliciosa! Poderia ter facilmente esvaziado a garrafa. Mas forçou-se a colocar a tampa e, quando o fez, as lágrimas surgiram-lhe nos olhos. Estava tão exausto. E a verdadeira jornada ainda nem sequer se iniciara.

Os outros membros do grupo lançaram os seus sacos ao chão e espreguiçaram-se. Depois, um a um, eles também se atiraram ao chão.

— O mapa, Rowan — pediu Allun. — Mostre-nos agora. Mas terá de segurá-lo com firmeza. As figuras aparecendo e desaparecendo perturbam-me o estômago.

Rowan tirou o mapa do saco e abriu-o sobre o chão, prendendo os cantos com pedras. Os outros reuniram-se em volta.

— Estamos aqui, vêem? — afirmou Jonn Forte, os dedos pairando sobre a superfície. — Segundo as marcações em vermelho, teremos de começar a subir exatamente neste ponto. O caminho sobe por cima da caverna de onde o riacho flui e continua até onde a Montanha se torna nivelada e as árvores começam. Ali em cima. — Apontou para um aglomerado de folhas verdes e ondulantes muito acima deles.

— Uma subida íngreme — resmungou Val. — O menino vai ter dificuldades.

— Nesse caso, vamos ter que ajudá-lo — respondeu Jonn Forte vivamente.

Allun olhava intrigado para o mapa.

— O que são estas seções em branco? — inquiriu, apontando um dedo para vários locais no pergaminho.

Marlie franziu o cenho.

— Situam-se todas ao lado do caminho. Seis, no total. Será que Sheba apagou alguma coisa importante, só para nos enganar?

— Dela, tudo é de se esperar — afirmou Jonn Forte. — Mas, afinal, o mais importante é o caminho e esse, pelo menos, é visível.

— Certo — disse Bronden, espreguiçando-se e bocejando. — De nada serve preocuparmo-nos com o que não esteja associado à tarefa em mãos.

Mas Rowan fitava as seções em branco no mapa com um sentimento crescente de ansiedade. Por que não reparara naquilo antes? Agora que as vira, parecia que se projetavam para ele. Espaços em branco espaçados de forma quase regular ao longo do caminho, o último exatamente no topo. Espaços em branco numa superfície com­pletamente coberta com cores e linhas. O que significariam? O primeiro espaço situava-se no ponto onde o caminho penetrava nas árvores. Não tardariam a descobrir o que aquilo significava.

— Pelo que parece, primeiro vamos passar pela floresta — continuava Bronden. — Uma caminhada reta, no sentindo oeste. Isso deve ser fácil, embora como é óbvio, vamos levar mais tempo por causa do menino. — Suspirou pesadamente e regressou ao mapa.

— As instruções são claras. Quando terminarem as árvores da floresta, voltamos para noroeste e atravessamos este território mais baixo. Uma distância curta, não deve­mos demorar muito a cobri-la. E sempre adiante, até ao topo. Simples! Felizmente trago uma bússola. Tal como sei que Marlie e Jonn também trazem uma, pois negociamos juntos na nossa última viagem à costa. — Voltou-se para Val e Ellis. — Vocês deviam participar nestas viagens ao mercado, meus amigos. Há coisas tão interessantes para ver e coisas úteis para trocar comercialmente.

Val encolheu os ombros.

— O moinho não pode parar de funcionar, Bronden. Não podemos fechá-lo para ir passear quando nos apetece.

— Mas, um de vocês podia ir e o outro ficar — sugeriu Allun, mastigando uma erva e pestanejando para o céu.

Val ficou muito quieta.

— Isso não seria adequado para nós — respondeu Ellis. — Não é assim que agimos.

— Você também nunca vai à costa, Allun — salientou Marlie. — Diz sempre que está muito ocupado. É tão mau quanto Val e Ellis!

Bronden abriu a boca para dizer algo, mas pensou melhor.

— Seja como for — observou, algum tempo depois —, as bússolas são uma maravilha. O povo Maris utiliza-as quando navegam no mar aberto. Vão nos facilitar muito a vida, pois podemos também seguir os marcos do terreno. Estaremos de volta em casa amanhã no meio da tarde, prestem atenção às minhas palavras.

— Se fosse assim tão simples, não teria sido preciso trazer o mapa conosco, Bronden. — Marlie inclinou-se para a frente. — A Montanha é um local perigoso. Um local a recear. Não podemos assumir que tudo será fácil.

— Como bem sabe, Marlie Tecelã, esse não é o meu caso, pois só acredito no que os meus olhos vêem — res­pondeu Bronden. — E, se tem medo, não devia fazer parte deste grupo. Já é suficientemente ruim termos de arrastar o menino conosco, tremendo todo.

— Não se esqueça, Bronden, que foi você quem insistiu nisso — exclamou Jonn Forte.

Bronden encolheu os ombros e virou-se.

— Seria melhor se esquecêssemos as nossas divergên­cias — disse Allun calmamente. — Depois, sentou-se para cima e abriu muito os olhos. Estendeu as mãos, fazendo-as tremer com violência. — E se a questão é o medo, assegu­ro-lhes que estou aterrorizado! — gritou. Deixou-se cair de novo no chão, sacudindo a cabeça e batendo os dentes.

Jonn Forte e Marlie riram e até Rowan esboçou um sorriso. Mas Val e Ellis fitaram Allun em silêncio e depois entreolharam-se. Bronden resfolegou.

— Bom, se Allun puder sair desse seu estado de terror, acho que devemos começar — afirmou Marlie, retirando uma corda grossa do saco. — Vamos subir com cordas, não é? Posso não sentir o medo de que sou acusada, mas não me agrada uma queda nestas rochas.

Quando os alimentos escasseavam em Rin, Rowan tinha de subir nas árvores, dobrando para baixo os ramos de folhas para que as bocas ávidas dos bukshah esfomeados chegassem até eles. Mas sentia tonturas e palidez mesmo em cima dos ramos mais baixos. Não tinha cabeça para as alturas. A subida que se seguiria era para ele o pior dos pesadelos.

Uma corda prendia-o a Marlie, a Allun e aos outros por cima e a Jonn Forte por baixo. Quando tropeçava, o que estava sempre acontecendo, o seu corpo leve, puxado para baixo pelo peso do seu saco, ficava oscilando no espaço, até onde a corda permitia. O céu girava sobre ele, o solo girava por baixo dele. Os seus próprios gritos aterrorizados ecoavam nos seus ouvidos. Ficava com as costelas esma­gadas pela corda que o salvava. Depois, o seu corpo batia nas rochas com estrondo. E tinha de subir de novo.

Isto, só por si, já era mau. Mas o pior era o receio que o mesmo descuido acontecesse a um dos outros. Se Jonn escorregasse, o peso poderia arrastar a todos para a morte nas rochas em baixo. Se um dos outros escorregasse, talvez nem Jonn poderia conseguir segurá-los.

Irritado, tremendo e com dores em todos os músculos, Rowan seguiu caminho. Quando, por fim, o arrastaram para o topo da escarpa, e ele se atirou ao chão suado e ofegante, o mundo pareceu vermelho aos seus olhos um momento antes de desmaiar.

 

A FLORESTA

Estrela lambia as faces e testa de Rowan com a sua língua rugosa e fria. Rowan sorriu.

— Pára com isso, Estrela! Deixe-me em paz — mur­murou. Rolou a cabeça de um lado para o outro no chão.

— Está delirando — alguém disse com desdém.

A imagem de Estrela dissolveu-se lentamente. Rowan abriu os olhos e viu-se olhando para o rosto sério de Jonn Forte. Por momentos, hesitou. Depois, com uma sensação de desapontamento, percebeu onde estava. Não em casa, nos campos dos bukshah com Estrela, que o amava. Mas na Montanha com Jonn Forte, que não gostava dele, Marlie e Allun, que tinham pena dele, e Bronden, Val e Ellis, que o desprezavam.

— Está delirando — repetiu Val com impaciência. — Pela minha vida, como estamos sendo sobrecarregados por este menino. Olhem para o sol! Já devem ser quase onze.

Jonn retirou o pano molhado com o qual umedecera o rosto de Rowan.

— Já está acordado — disse. — E fraco ou não, superou aquela escarpa com bravura, Val Moleira. — Superou-a até a exaustão. — Levantou-se e afastou-se, inclinando para trás o saco cheio.

Rowan permaneceu imóvel, fitando o céu. Sentia o corpo pesado, mas a cabeça muito leve. Tinha um suave zumbido nos ouvidos. Val estava certa. O sol estava alto. Devia estar deitado ali a bastante tempo. Dormindo. Sonhando com a sua casa, como uma criancinha. O seu rosto começou a corar e esforçou-se para se sentar.

— Calma, calma, Rowan — sorriu Allun, ajoelhando-se ao lado dele e apoiando-lhe as costas. — Tem que engatinhar antes de andar. Tome. — Aproximou um frasco dos lábios de Rowan, que bebeu agradecido.

— Quando se sentir melhor — prosseguiu Allun, olhando expressivamente para os outros —, avançaremos para a floresta. Tome! — Arrastou o saco de Rowan na direção dele. — Podemos aproveitar o tempo para segurar o mapa, enquanto o estudamos outra vez.

— Já vimos o caminho que temos que fazer — disse Bronden, franzindo o cenho. — Não precisamos do mapa.

— Ah, juventude, juventude! Não deve esquecer que sou três anos mais velho, Bronden — sorriu Allun. — E a minha fraca memória começa a falhar.

Rowan sabia que Allun estava apenas lhe dando algo para fazer enquanto descansava, mas retirou o mapa do saco e desenrolou-o lentamente. Não faria mal estudá-lo de novo. Os seus olhos seguiram a linha pontilhada vermelha. Avançaram pelo leito do rio desenhado, o buraco de onde habitualmente brotava a água, a abertura na escarpa, a escarpa propriamente dita, a entrada para a floresta junto a um rochedo alto e projetado não muito distante do local onde se encontravam agora, o caminho por entre...

Rowan pestanejou, olhou e pestanejou outra vez. Tentou falar e quase sufocou.

Allun olhou rapidamente para ele e depois para o pergaminho. Exclamou algo em tom baixo. Depois, gritou:

— Jonn!

Jonn deu meia volta e correu para eles, enquanto os outros membros do grupo esticavam os pescoços para ver.

Rowan apontava para o mapa, sem falar. No local junto ao início do caminho da floresta, onde antes havia um es­paço em branco, havia seis linhas escritas em preto.

Allun leu as palavras em voz alta:

 

«Que os braços fiquem quietos e as vozes baixas,

Um milhão de olhos os observam.

A sedosa porta termina o seu caminho,

E aí o fogo e a luz serão vossos amigos.

Vejam-se então a si mesmos como os outros os vêem,

E captem o olho do meio-dia para transpor o seu caminho».

 

— Que bobagem é esta? — perguntou Val. — Quem se fez de espertinho?

— Ninguém tocou no mapa, Val — respondeu Marlie. — As palavras aparecerem desde a última vez que olhamos para ele.

— Isso é impossível! — disse Bronden. Inclinou-se sobre o mapa, observando as palavras como que tentando encontrar uma pista sobre a forma como apareceram ali.

— Pouco importa de onde vieram — exclamou Allun. — A pergunta é, o que significam?

Jonn Forte pigarreou.

— Seja o que for com que estamos lidando — afirmou —, o certo é que as palavras não chegaram até nós por acaso. Dão instruções e um aviso.

— As palavras sugerem que não agitemos os braços nem falemos em voz alta — observou Allun. — Isso é claro. Seguirei o conselho à risca.

— Isso pode ser difícil para você, Allun — retorquiu Marlie secamente.

— As palavras também fazem referência ao meio-dia. — Jonn Forte estava sério. — Sugiro que iniciemos a viagem pela floresta o mais rápido possível. Será meio-dia dentro de uma hora, calculo.

Estendeu uma mão a Rowan e puxou-o para cima.

— Enrole esse mapa e enfie-o no cinto, por hora, menino — afirmou rudemente. — A minha carga não está equili­brada, como percebi, e preciso levar o seu saco e o meu para contrabalancear o peso, se não se opuser.

Não esperou pela resposta, mas colocou ambos os sacos aos ombros e começou a avançar para o rochedo projetado. Os outros apressaram-se a segui-lo. Rowan, liberto do peso do saco nas costas, descobriu que conseguia manter facilmente o passo deles, apesar das feridas.

Fizeram uma pausa junto do rochedo projetado e espreitaram para as primeiras árvores. A luz do sol filtrava-se por entre as folhas oscilantes e incidia no chão da floresta. Havia um caminho sinuoso diante deles, que se perdia de vista no meio da vegetação.

— O local parece agradável — disse Allun. — Posso seguir na frente desta vez? A gravidade da tarefa poderá ajudar-me a conter a língua como o verso ordena. Já acon­teceram coisas mais estranhas.

— Com certeza, siga na dianteira — resmungou Bronden. — Qualquer sossego da sua conversa infernal será uma bênção.

Avançaram para a floresta. Rowan reparou que todos eles, independentemente do que sentiam em relação às instruções do mapa, mantinham os braços sossegados junto ao corpo. E ninguém falou. Alguns minutos depois, o caminho virou e deixaram de poder ver o topo da es­carpa por onde tinham chegado.

À medida que se infiltravam na floresta, as árvores tornavam-se mais altas e mais próximas entre si, envoltas em trepadeiras e rodeadas por arbustos irregulares. A luz ficou mais fraca. E o silêncio! Rowan, mantendo-se perto de Marlie e escutando os passos firmes de Jonn Forte atrás dele, pensou que nunca estivera num lugar tão silencioso. Onde estavam os pássaros? E os grilos e lagartos e outras pequenas criaturas que habitualmente habitavam arvoredos assim?

Foi então que ouviu. Um leve som de esvoaçar provinha do caminho em algum lugar à frente deles. Uma grande colônia de pequenos pássaros, pelo que parecia. Rowan conhecia bem todos os pássaros de Rin, mas nunca ouvira um som assim. Aquelas pequenas criaturas deviam pertencer a uma espécie que não se aventurava no vale. Não deveriam estar construindo ninhos naquela altura do ano, mas mesmo assim, estava ansioso para vê-los esvoaçar e saltitar de um lado para o outro. Sentiu-se animado só de pensar nisso.

O som foi ficando cada vez mais alto. Allun começou a andar mais depressa, como se ele também estivesse inte­ressado no que havia à frente. Não tardou a deixar Marlie para trás. Ela estalou a língua e correu para se juntar a ele. Rowan, esticando as pernas para manter o passo, tentou espreitar sobre o ombro de Marlie quando o cami­nho formava uma nova curva. Tropeçou e quase caiu quando ela trombou em Allun, que permanecia imóvel e quase invisível na obscuridade. O som agora era ensurdecedor.

Jonn Forte agarrou no braço de Rowan e não o deixou cair, franzindo o cenho quando Val, Ellis e Bronden trombaram nele por sua vez. E Allun continuava sem se mover.

— Allun, seu cabeça dura, o que está fazendo? — per­guntou Bronden.

O esvoaçar foi abruptamente interrompido. Em seu lugar, surgiu um som murmurante, rastejante e arrepiante.

Allun olhou para trás para eles, o rosto extremamente pálido na luz fraca. Mas não respondeu. Limitou-se a mover a cabeça, muito cuidadosamente, de um lado para o outro.

Foi então que viram o que ele vira. De ambos os lados do estreito caminho. Aranhas. Aos milhares. Aranhas enormes, negras e aveludadas, tão grandes como as mãos de Jonn Forte, rastejando por cima de vastas teias de seda branca que revestiam de tal forma as árvores que não se avistavam as cascas nem folhas. Os seus olhos reluziam. Um milhão de olhos. A pele de Rowan começou a arrepiar-se. Iam ter que atravessar aquelas teias, as aranhas gigantescas ouvindo-os, tentando tocar-lhes.

— Ugh! — Rowan ouviu alguém conter uma excla­mação atrás dele. As aranhas imobilizaram-se e depois começaram a se mover de novo, na direção do som.

Jonn Forte esticou o braço por cima do ombro de Rowan e empurrou Marlie suavemente, num sinal para avan­çarem. Esta, por sua vez, empurrou Allun e este começou a caminhar, fazendo o menos possível de movimentos. Contudo, tinham apenas dado alguns passos quando ouviram um gemido atrás deles. Val puxou pela manga de Jonn Forte.

— Ellis — murmurou. — Ele... não consegue.

Jonn, Rowan, Marlie e Allun voltaram-se, incrédulos.

Para lá do rosto preocupado de Val, avistavam a forma maciça de Ellis, os punhos cerrados sobre o peito. O rosto reluzia de transpiração. Respirava com dificuldade e tremia e, ocasionalmente, um gemido baixo libertava-se de seus lábios.

— Aranhas — disse a irmã baixinho. — Ele não as suporta. Desde criança que não as suporta. Em casa, não pode haver um grão de poeira ou uma folha seca num canto sombrio, caso uma aranha procurar ali o seu abrigo. Até a menor é um verdadeiro terror para ele. E estas... estão para lá de qualquer coisa...

— Ellis? — chamou Jonn Forte. — Então, homem. Não é longe. Elas não estão no caminho. Se tivermos cuidado...

— Não... não. — O homem enorme balbuciou as pa­lavras. Abruptamente, voltou-se e passou por Bronden, quase a empurrando para fora do caminho e para cima de uma teia. Seguiu pelo trilho por onde tinham vindo. Contornou depois a curva e deixaram de vê-lo. Mas ouvi­ram o som dos pés dele... correndo. Correndo para fora da floresta.

— Vamos! — murmurou Val, a voz violenta com preo­cupação e vergonha. — Vamos! Ele não vai voltar.

Em silêncio, obedeceram. Alguns minutos depois, o perturbador som elevou-se de novo. As aranhas estavam mais uma vez se comunicando, esfregando lentamente as patas traseiras como grilos venenosos. O ruído era estranho e horrível, agora que sabiam de onde provinha. Rowan foi avançando atrás de Marlie, respirando lentamente, tor­nando-se menor quanto possível. Tentando não olhar de um lado para o outro. Tentando não pensar nas pega­josas cortinas brancas que envolviam as árvores, nas enormes aranhas rastejantes e no milhão de olhos tão próximos.

Permitir-se falar ou gritar seria atrair outra vez as aranhas. Tocar naquela seda branca espessa seria atraía-las para ele. Já vira muitos insetos apanhados em teias para saber disso. Teria de continuar a andar e a conter o medo. Teria de pensar, recordar as últimas linhas do verso: A sedosa porta termina o seu caminho, e aí o fogo e a luz serão vossos amigos. Vejam-se então a si mesmos como os outros os vêem, e captem o olho do meio-dia para transpor o seu caminho.

A sedosa porta... o olho do meio dia. Devia ser quase meio-dia.

Deu um salto nervoso quando Jonn Forte lhe tocou no ombro. Olhou para cima. Encontravam-se numa pequena clareira. Na frente deles, estava a porta sedosa. Era uma enorme teia branca, tão espessa que não se conseguia ver o outro lado. Na sua superfície, havia galhos e folhas presos nos fios pegajosos. Estendia-se de um lado ao outro do caminho, bloqueando-o por com­pleto. Ao seu redor, centenas de aranhas. Aguardando.

Allun virou-se cautelosamente para os seus compa­nheiros.

— E agora? — disse, em voz muito baixa.

— O verso — afirmou Marlie.

— O verso não tem sentido nenhum — retorquiu Bronden. — Corte a teia e vamos acabar com isto, Allun. Se não tiver coragem para isso, deixe-me passar e eu mesma o farei.

As aranhas agitaram-se e avançaram para a teia.

— Não! — sussurrou Jonn Forte. — Não com tantas aranhas em volta da teia. Assim que tocarmos nela, cairão sobre nós. Não podemos correr esse risco.

— Podem ser inofensivas — disse Val.

— Ou não — retorquiu Marlie. — Como Jonn diz, não podemos arriscar. Já perdemos um elemento do grupo.

— O que faremos então? — Bronden estava irritada. O fato de Ellis ter fugido da floresta fora um grande choque para ela. Como podia um homem grande e forte ter uma fraqueza de criança como aquela? Estava perplexa. Tentava não olhar para Val. Como devia se sentir enver­gonhada.

A luz mudou. Diretamente acima deles, um raio de sol penetrou na penumbra da floresta, banhando-os de calor. As aranhas em redor começaram a gorjear e a retroceder.

— Elas não gostam da luz — exclamou Rowan. — O verso dizia-o: «O fogo e a luz serão vossos amigos».

— Fogo! — murmurou Bronden. — Atirem um archote contra a teia!

— Era Ellis quem trazia os archotes — afirmou Val sombriamente.

Allun apalpou as algibeiras e tirou uma caixa de fósforos.

— Quem tem alguma coisa que arda facilmente? Nem que seja por breves instantes.

— Não façam nenhum movimento brusco — alertou Jonn Forte, de olhos nas aranhas.

Marlie levou a mão à algibeira do casaco. Tirou a bússola, um pente, um espelho — e um lenço. Estendeu o lenço para Allun. Este deu-lhe um nó e pegou um fósforo.

— Estou pronto! — avisou.

Ateou fogo ao tecido e arre­messou-o para o centro da barreira branca.

A teia chiou e encolheu enquanto o lenço ardia. As aranhas guincharam e dispersaram. Mas apenas por alguns instantes. Alguns segundos depois, antes que algum do grupo tivesse dado mais do que um passo em frente, a chama morrera e as aranhas estavam de volta. Havia agora um buraco na teia. Contudo, por entre a fumaça que ainda se libertava dos contornos enegrecidos, centenas de aranhas rastejavam. E havia mais a caminho.

— Estão fiando — exclamou Allun. — Já! Estão remen­dando o buraco.

— Temos que afastá-las! — Jonn Forte olhava em volta desesperado. — Tem de haver uma forma.

— Elas não gostam da luz — disse Rowan de novo. — Não gostam do sol.

— Não temos aqui materiais para fazer um archote, Rowan — respondeu Marlie. — Não temos nada que faça o fogo arder o tempo suficiente para manter afastadas as criaturas.

Mas Jonn Forte agarrara no ombro de Rowan.

— Rowan... o verso. Diga as últimas linhas outra vez.

Rowan repetiu em voz baixa:

— «Vejam-se então a si mesmos como os outros os vêem, e captem o olho do meio-dia para transpor o seu caminho». — Ocorreu-lhe um pensamento e olhou rapida­mente para Marlie.

— «O olho do meio dia»... o sol! — Allun olhou para cima. — Mas aqui não há sol, onde nos encontramos. A teia está na sombra.

— O que é, Rowan? — perguntou Marlie, fitando-o. — Porque está olhando para mim?

— O espelho — murmurou Rowan. — O seu espelho. Num espelho, vê-se a si mesma como os outros a vêem. E o sol...

— Sim! — Jonn Forte cerrou os punhos. — Mas, rápido, rápido! Antes que a luz vá embora. Estamos aqui há tempo demais.

Marlie passou-lhe o espelho. Jonn segurou-o na sua frente, virando-o até este refletir a luz do sol sobre a teia. As aranhas afastaram-se da sua obra junto ao buraco, ocultando-se nas sombras.

— Dê-me isso aqui! — gritou Val. Tirou o espelho da mão de Jonn. Manobrou o vidro, captou o sol e a luz forte dançou ao redor da porta sedosa. Empurrou Bronden à sua frente.

— Vão! — gritou. — Vão agora!

Rowan correu com os outros, os olhos fixos no buraco na teia, avistando verde do outro lado. A luz do meio dia começava a enfraquecer. Alcançou a teia e saltou para o outro lado, enquanto um milhão de olhos reluziam enraivecidos nas sombras, enganados pelas suas presas.

 

SONHOS

Jonn Forte e Bronden caíram no chão ao lado de Rowan e puseram-se de pé.

— Val! — chamou Jonn, retrocedendo para o buraco na teia. — Val! Agora! Antes que o sol se mova! — Es­preitou pela abertura. — Está ali imóvel! — murmurou, surpreso. — Não pára de olhar para o caminho, por onde Ellis foi embora.

— Jonn, obrigue-a a vir! — gritou Allun. — Não tarda, o sol...

— Val! — gritou Jonn Forte, colocando as mãos em forma de concha sobre a boca. — Precisamos de você. Tem de vir. Rápido!

Ouviu-se um grito do outro lado da teia e o som de pés correndo. Val passou então pelo buraco de contornos ne­gros, batendo com estrondo no chão, e Jonn Forte, Marlie e Allun batiam os pés em volta dela enquanto das suas roupas e cabelos caíam aranhas.

Val sentou-se, esfregando nervosa o rosto, os ombros e a nuca.

— Não, não! — exclamou Marlie. — Está tudo bem, Val. Só havia algumas e agora estão mortas.

Val olhou cautelosamente em volta, assimilando o que se passava. Abriu depois a mão fechada e olhou para o espe­lho. Surpreendentemente, ainda estava intacto.

— Foi bastante útil, mas só consegui manter a luz sobre a teia enquanto permanecia ao sol — disse. — Saltei de longe, mas algumas das criaturas já tinham regressado ao buraco antes que eu pudesse alcançá-lo. — Entregou o espelho a Marlie e ficou sentada, de ombros caídos, fitando o nada.

— Parece que, aqui, estamos em segurança. — Allun indicou as árvores envolventes. — Pelo menos das aranhas. O território delas parece terminar na porta sedosa. Que outras surpresas esta floresta tem para oferecer, não posso adivinhar.

— Se recordo corretamente o mapa, estamos pratica­mente no fim — respondeu Bronden. — Por isso, sugiro que avancemos agora, e que descansemos e comamos quando estivermos livres dela. É um lugar detestável.

Concordando silenciosamente, voltaram a partir. Para oeste, ao longo do caminho. Eram agora seis, e não sete, e todos sentiam esse fato. Ellis mal proferira dez palavras ao longo da viagem, mas a ausência da sua enorme figura entre eles fazia parecer o grupo muito menor e fraco. A irmã estava particularmente afetada. Era como se metade da sua força tivesse se desvanecido, caminhando como alguém que estivesse doente ou exausto.

Escassos cinco minutos depois, repararam que as ár­vores começavam a rarear. Mais cinco minutos e deixa­ram-nas para trás, virando para noroeste como o mapa indicava. Embora a Montanha continuasse a erguer-se íngreme perante eles, deslocavam-se no sentido descen­dente e não para cima. O mato era agora verde e espesso, e o terreno ia se tornando gradualmente mais plano.

— Vamos parar aqui — disse Jonn Forte. — Parece que estamos avançando para uma zona baixa que poderá ser pantanosa. Comeremos com maior conforto fora da umidade.

Agradecido, Rowan sentou-se. Jonn atirou-lhe o saco e percebeu subitamente que estava esfomeado. Tirou a garrafa de água e o pão e queijo, e começou a comer avidamente. A mãe arranjara-lhe aquela comida na cozinha nessa mesma manhã, pensou, admirado. Fora nessa mesma manhã! Custava a acreditar que estava afastado da aldeia há tão pouco tempo. Acontecera-lhe tanta coisa que parecia que tinham passado dias, não horas, desde a última vez em que afagara Estrela e falara com ela; desde que abraçara Annad e se despedira da mãe com um beijo.

A caminhada para fora da aldeia, em que se sentira tão estranho e tímido. A terrível escalada pela escarpa. Depois, a floresta. As aranhas, gorjeando, rastejando... O rosto de Ellis, rígido de medo, antes de dar meia volta e fugir. Rowan estremeceu. O pão e queijo permaneciam na sua boca, insípidos. Pretendia cuspi-los, mas bebeu um trago de água e forçou-se a engolir.

Sheba dissera que as coisas seriam assim. Dissera que a Montanha questionaria a coragem deles e os seus corações. Bom, já pusera em causa a coragem de Ellis. De um modo que nunca ninguém teria previsto. Partira, deixando seis corações entregues à missão. Iriam ceder também? Seria Rowan o próximo? Se a viagem continha em si tantos perigos, o que dizer do final da viagem... e do dragão?

Rowan estremeceu de novo. Não podia pensar nisso. Um passo de cada vez, ou seria vencido pelos seus medos. Um passo...

O mapa! Rowan tirou-o do cinto e desenrolou-o. Meio entusiasmado, meio receoso, olhou para o segundo espaço em branco.

Continha algo.

 

«Aqui, nada é o que parece;

Os sonhos são verdades e as verdades sonhos.

Tape os ouvidos aos clamores daqueles de quem gosta,

Morrerá se acreditar nos teus olhos.

Prenda com cordas a tua carne e ossos,

E deixe o teu guia ser feito de madeira».

 

Rowan olhou para os versos.

— O mapa... — começou, timidamente. — Uma men­sagem...

Jonn colocou-se de imediato atrás dele, espreitando por cima do seu ombro. Allun e Marlie também correram. Bronden juntou-se a eles mais devagar, resmungando um pouco. E Val permaneceu onde estava, encostada a uma rocha.

— Este verso é mais confuso do que o último! — ex­clamou Allun.

— Mas sabemos que o último era importante para nós — disse Marlie. — Tal como este deve ser. — Leu e franziu o cenho. — «Tapa os ouvidos aos clamores daqueles de quem gosta». — Olhou para Allun. — Ao que parece, vamos enfrentar o perigo de novo.

— Desde o início que sabíamos — disse Jonn Forte —, que assim seria em cada parte da viagem. — Esfregou o queixo, pensativo. — «Prenda com cordas a tua carne e ossos, e deixe o teu guia ser feito de madeira». Desta vez, o líder do grupo é importante. Temos de decidir o que fazer sobre isso. O que significa «feito de madeira»?

— A madeira é dura — disse Marlie. — Dura... macia... fria...

— Sem sangue — acrescentou Allun. — Sem senti­mentos. Incapaz de sentir dor.

— Forte — acrescentou Bronden. — Robusta. Natural. Da terra.

— Sim. — Jonn Forte esfregou de novo o queixo. — Portanto, o menos emocional do nosso grupo. Aquele que melhor consegue resistir aos gritos dos outros. Aquele com menores ligações a coisas de carne e osso. Essa pessoa de­verá liderar-nos.

— Bom, eu não sou, seguramente — afirmou Allun, determinado. — E claro que não é Rowan. E atrever-me-ia a dizer que não é você, Jonn Forte. Pelo menos, não nos dias que correm. — Lançou um olhar matreiro a Rowan, que virou a cabeça. Não queria pensar em Jonn Forte e na sua mãe. Não agora. Nem nunca.

— Penso que, dos três que restam, a mais provável sou eu — replicou Bronden. — Porque não tenho família, nem entes queridos. Trabalho todos os dias com a madeira, o que considero ser agradável. Acredito apenas no que vejo com os meus olhos. Eu irei na frente.

E assim ficou decidido.

Trinta minutos mais tarde, alimentados e repousados, encetaram de novo a caminhada, no sentido noroeste, conforme indicado pela bússola. Não havia agora um caminho visível. Satisfeita por seguir na frente, Bronden estava bem disposta pela primeira vez desde o início da viagem. Val seguia atrás, ainda estranhamente silenciosa, arrastando os pés. Seguiam-se Allun e Marlie. Depois Rowan e Jonn Forte, que carregava de novo o saco do menino «para equilibrar a carga». Todos paravam obedientemente quando Bronden o decretava, para ajudar a cortar as pontas espinhosas das árvores que cheiravam a pinheiro e que cresciam ao longo do caminho. Bronden afirmou que, mais tarde, aquelas pontas podiam ser reunidas para fazerem de archotes, substituindo aqueles que Ellis levara ao fugir.

Continuavam a descer e o terreno ia se tornando mais úmido. O mato verde desaparecera e as botas começavam a afundar ligeiramente na lama.

Allun cheirou o ar e franziu o nariz.

— Pântano! — disse, com repugnância.

As árvores ali eram diferentes — de folhas escuras e imóveis. Dos seus troncos úmidos e retorcidos, brotavam raízes carnudas e brancas. Amontoados de fungos luzidios projetavam-se das cascas das árvores como línguas. A lama tornou-se mais macia. As botas de Rowan patinhavam em cada passo que dava.

Depois surgiu a neblina. Bronden inclinou-se sobre a bússola, franzindo o cenho nos seus esforços para guiá-los enquanto esta os envolvia, espessa e amarelada. Ro­deava também as árvores e erguia-se como vapor da lama lustrosa e canaviais que se estendiam de todos os lados. À medida que os minutos passavam, foi se intensificando.

Por fim, parecia que estavam enclausurados num mundo silencioso e secreto. Um mundo de neblina e lama. O único som era o chapinhar dos seus pés enquanto avan­çavam. Pela frente, por trás e ao redor, a neblina rodo­piava, mudando de forma e direção por vontade própria, pelo que parecia, dado que nem uma brisa agitava as árvores.

Depois, Rowan viu algo mover-se a seus pés. Algo grande e negro. Abrandou, esforçando-se para conseguir ver por entre a neblina irrequieta, disfarçando a forma. A forma de...

Rowan soltou um grito. Era a Estrela! Estrela, respirando com dificuldade num charco de lama que a sugava para baixo. A neblina dissipou-se e viu-a rolar os olhos em pâ­nico, mexendo o pescoço de um lado para o outro no pântano viscoso e sufocante.

Sem pensar, saltou em socorro dela, ignorando o grito de surpresa de Jonn. Ouvia-a agora, balindo de medo. Pedindo-lhe ajuda.

— Estou indo, Estrela! — gritou.

Mas a lama sugava-o, puxando-o para baixo. Não conseguia encontrar um local para colocar os pés. Não havia terreno firme. Afundava-se cada vez mais na lama que não tinha fim. Gritou de novo e bateu os braços na lama. E Estrela não parava de chamar por ele. E a lama subia-lhe até à cintura, ao peito...

— Já o agarrei! Puxem!

A voz de Jonn Forte despertou-o do seu sonho de terror. Os braços de Jonn Forte agarraram-no por baixo dos braços e puxaram-no, com um horrível som de sucção, da lama. E Bronden e Val, agarrando nos tornozelos de Jonn, arrastaram os dois para segurança. Caíram amontoa­dos sobre o solo lodoso.

— Que menino tolo! Que idiotice foi aquela? — bradou Bronden.

— A Estrela! — gritou Rowan, debatendo-se nos braços de Jonn Forte, soluçando e batendo no peito molhado e enlameado de Jonn Forte. — A minha Estrela... a minha bukshah! Ela está ali. Oh, ajudem-me. Está se afogando. Está morrendo! Escutem-na!

— Não há nada ali, Rowan. — Jonn Forte falava alto e lentamente. — Nada! Pense, garoto, pense! Como a Estrela poderia estar ali? É impossível.

Rowan deixou de se debater. Ficou em silêncio. Olhou para o local onde Estrela estivera. A lama estava imóvel e imperturbada. A neblina pairava sobre ela como antes. Esfregou os olhos.

— Pareceu... pareceu tão real — disse, hesitante.

— Você... — começou Bronden, inclinando-se sobre ele de forma ameaçadora. — Real ou não, poria as nossas vidas e a nossa missão em perigo pela porcaria de um animal? Que valor existe na vida de um bukshah, com­parado com uma vida humana? Que loucura...?

— Deixe o menino em paz, Bronden — interrompeu Jonn. — Tem razão para dizer o que disse, eu sei. Mas nem todos partilham a sua opinião.

— O mapa — disse Marlie rapidamente, enquanto Bronden respirava fundo. — O mapa alertou-nos para isto. Falava de sonhos que pareciam reais e de quem se gostava a chamar por nós. Há espíritos que não nos desejam bem aqui.

O mapa! Rowan apalpou ansiosamente o cinto. O mapa ainda estava lá. Coberto de lama, mas pelo menos, não perdido para sempre.

— Espíritos! — desdenhou Bronden. — Tem passado tempo demais com o seu amigo meio Viajante, Marlie Tecelã. Não dê ouvidos às histórias dele. É filha de Rin e devia ser uma pessoa de bom senso.

Bronden fez uma careta e virou as costas. Allun e Jonn entreolharam-se.

— Vamos avançar — sugeriu Allun. — Perdemos tempo. E teremos de perder ainda mais enquanto Rowan e Jonn secam as roupas. Que necessitam — tapou o nariz —, de alguma atenção, no meu ponto de vista.

— Vamos tomar muito cuidado com o lugar onde pomos os pés — alertou Jonn Forte. — A lama é uma armadilha. Podemos não ter tanta sorte da próxima vez.

Foram avançando a passo de caracol, a lama arrastando-se sob os seus pés. A neblina tornou-se mais densa em volta deles, enchendo-lhes as bocas e narizes com o sabor e cheiro do pantanal. Rowan seguia de cabeça baixa. A sujeira úmida que se pegava às roupas e lhe enchia as botas aumentavam-lhe o peso e faziam-no abrandar. Mesmo assim, Estrela não lhe saía da cabeça. Não se atrevia a olhar. Não queria vê-la de novo, debatendo-se no pântano. Questionou-se por que razão Bronden teria sido tão severa com ele. Seguramente que compreendia...

Sem propriamente ver, sentiu que Marlie começava a agitar as mãos e a esfregar as faces e a nuca.

— Alguém está me tocando... sinto-o — disse, olhando para trás. — Dedos. Dedos gelados no meu rosto e pes­coço, e...

— E só a neblina, Marlie — tranqüilizou Allun. — Apenas... — Subitamente, estacou. O pescoço dele estre­meceu e ele também olhou para trás, olhando por cima do ombro de Jonn Forte. Os outros viraram-se com curiosi­dade para ver o que ele observava. Mas não havia nada.

— O que...? — Allun abrira a boca. Começou a retro­ceder pelo caminho de onde tinham vindo, passando por Jonn e Rowan, fitando a neblina. — Como... Mãe? Mãe! Espere! — Os pés dele chapinharam na lama macia e sugadora.

— Não, Allun — gritou Marlie. — Não há ninguém aí! Jonn, faça-o parar! — Em seguida, abanou violentamente a cabeça. — Oh, parem com isso! Parem de me tocar! — Deu de novo palmadas no pescoço e braços, e esfregou o rosto.

Perdida na dianteira por entre a neblina, Bronden gritou, apenas uma vez.

Jonn segurou no casaco de Allun e puxou-o para trás. Allun voltou-se para ele, furioso.

— Largue-me, Jonn — gritou. — É a minha mãe, seu idiota! Está me chamando. Está perdida no pântano. Tenho que encontrá-la. — Começou a debater-se, tentando libertar-se de Jonn Forte, atirando socos contra o seu rosto.

— Não, Allun, não! — gritou Jonn, abanando-o. — É uma visão! Uma visão! A sua mãe está em casa, homem!

— O que se passa? — chamou Val mais à frente no caminho. — Por que não vêm? Oh, a minha vida, socorro! Ellis! Oh, Ellis! Marlie! Jonn! Ajudem-me! Bronden... Bronden está... e não consigo segurá-la. Ajudem!

 

CARNE E OSSO

Marlie e Rowan correram em direção à voz de Val. Jonn seguiu-os, arrastando Allun, que ainda se debatia, mas que começava a parecer confuso e não pro­priamente zangado.

Encontraram Val deitada no chão junto a um canavial, os pés em solo firme, o corpo na lama, os braços em torno da cintura de Bronden. E Bronden lutava com ela. Lu­tando em silencio e determinação para se libertar — esti­cando os dedos para algo que só ela via, enquanto o pântano a engolia.

— Ela deu um grito súbito e atirou-se para a lama — disse Val. — Não consigo tirá-la. Não quer me escutar. Oh, se ao menos Ellis estivesse aqui. Eu... eu não consigo pensar sem ele.

Marlie tirou uma corda enrolada do saco.

— Segure-me, Rowan — disse e atirou-se para o chão, ao lado de Val.

Rowan segurou os tornozelos de Marlie e viu-a alon­gar-se pelo canavial, esticando a mão para Bronden. Marlie era alta, mas não tão alta quanto Val. Quando esta pene­trou mais na lama, Rowan foi puxado para a frente até ele próprio ficar deitado de barriga no caminho. Os seus músculos distenderam-se enquanto Marlie empurrava as mãos por baixo das de Val e colocava a corda à volta da cintura de Bronden. Val também gemia. Estava há muito tempo suportando o peso de Bronden. Não iria suportar muito mais.

— Para trás! Rowan, tente me puxar agora para trás — gritou Marlie. — Consegue?

Rowan puxou com toda a força, mas Marlie era pesada e os tornozelos estavam escorregadios da lama. Para seu horror, viu que as suas mãos começavam a soltar-se.

— Jonn — gritou, em desespero. — Ajude a Marlie! Não consigo...

— Marlie! — Ouviram-se passos atrás dele. Depois, duas mãos magras e fortes sobrepuseram-se às suas e a voz de Allun disse, «Já te agarrei, Marlie», ao mesmo tempo que a içava para local seguro, com a corda que salvara a vida de Bronden, presa na mão.

Foi necessário o esforço dos três para libertarem Bron­den, enquanto Val caía exausta no chão e Rowan perma­necia ali perto, impotente. A lama agarrava-se com rapidez à sua vítima e a própria Bronden debatia-se com eles. Mesmo depois de a terem em segurança e de pé, ela conti­nuava a gemer e a chorar, tentando regressar ao buraco que quase a tragara para sempre.

— Minna — chorava. — Minna, Minna, Minna!

— Quem é Minna? — murmurou Rowan para Jonn Forte. Ele já ouvira aquele nome, mas não sabia onde. — Quem é a pessoa que Bronden viu?

Jonn abanava a cabeça tristemente, fitando a mulher angustiada.

— Já tinha me esquecido da pequena Minna — disse. — Tinha me esquecido completamente dela até que Bronden ficou tão zangada contigo por pensar nos bukshah. Acho que Bronden também a esquecera, exceto em alguma zona secreta da sua mente. Mas este lugar...

— Quando todos nós éramos crianças, Rowan — disse Allun —, e eu ainda novo em Rin, Bronden tinha uma amiga. Uma amiga. Minna, a guardadora dos bukshah daqueles dias. Uma menininha tão calma, gentil e temerosa quanto Bronden era viva, extrovertida e valente. Nunca se separavam. Para Minna, só havia Bronden e os bukshah. Para Bronden, só havia Minna.

— Recordo-me de Minna — disse Marlie suavemente.

— Tal como a sua mãe deve se recordar, Rowan. Todos andamos à procura dela, mesmo as crianças, na noite em que desapareceu.

Bronden gemeu e olhou para Val, inclinada sobre ela ansiosamente.

— Minna está aqui, Val — disse. — Eu a vi. Ouvi a voz dela. Senti a mão dela em meu rosto. Mas, Val... — O seu rosto forte vacilou e as lágrimas rolaram-lhe dos olhos. — Val, ela continua a ser uma menininha. Nunca cres­ceu. Tem vagado por aqui, todos estes anos, completa­mente só. Por que não me deixou ir até ela?

Jonn Forte ajoelhou-se junto dela.

— Minna morreu, Bronden — disse, gentilmente. — Acabaram encontrando os ossos dela, e da cria que ela tentava salvar, na velha mina. Você se recorda.

Rowan ficou pensando. Minna fora alguém calmo e tímido, como ele. Minna morrera quando procurava um bukshah perdido. Seria por isso que...

— Não sabemos se era Minna que foi encontrada com a cria — gemeu Bronden. — Não sabemos com toda a certeza. Sempre me questionei...

Jonn afagou-lhe a testa. O rosto dele transmitia a pena que sentia.

— Minna morreu, Bronden. Minna está em segurança, repousando no cemitério. Os espíritos do pântano pre­garam-te uma terrível peça, para te obrigarem a sair do solo firme. Tal como aconteceu com Rowan e o seu bukshah. E como tentaram fazer com Allun e a mãe.

— Não acredito nessas coisas. — Bronden olhou à sua volta com olhos aterrorizados. — Contudo, deve estar falando a verdade, porque Minna não pode ter só dez anos ainda. Mas eu a vi. Senti. Ouvi. — Agarrou nas mãos fortes de Jonn Forte. — Jonn! Não permita que me toquem outra vez! Não permita que os ouça! Não suportaria. — Pôs-se de pé, com dificuldade. A neblina pairava à sua volta e Bronden olhava para todo o lado como um animal amedrontado.

— Anda, Bronden — disse Jonn Forte, ainda naquela voz gentil. — Anda comigo. — Começou a conduzi-la.

— Não! — Bronden enterrou os pés, os olhos negros de medo. — Não! Não posso!

— Bronden, tem de vir!

— Não! — Libertou-se dele, ofegante, e começou a correr no sentindo de onde tinham vindo, os polegares sobre os ouvidos e as mãos tapando-lhe os olhos.

— Bronden — gritou Val. — Volte!

Mas Bronden não voltou nem hesitou. Não tardou a deixar de ser vista.

Agora eram cinco, pensou Rowan.

— As aranhas! — gemeu Val. — Ela nunca conseguirá atravessar a floresta!

— Tem os ramos que cortou para fazer archotes — disse Allun. — Quando chegar lá, há de tratar disso, pois o medo acabará e retomará o bom senso. Deste lado, pode queimar a porta sedosa e atravessá-la em segurança. Ela é forte. Ficará bem. Há de regressar à aldeia, como Ellis.

Val começou a estremecer. Parecia encolhida e exausta.

— Ellis não regressou a Rin — murmurou. — Está à minha espera, na orla da floresta. Sinto-o. Eu sei. Sempre soube. Nunca estivemos separados tanto tempo. Nunca nas nossas vidas, desde os nossos tempos de berço. Tenho-me esforçado tanto para não pensar nisso, mas...

— Vamos embora — disse Jonn Forte pesadamente. — Vamos nos atar uns aos outros. Não podemos confiar em nenhum de nós.

Prende com cordas a tua carne e ossos.

Mas as lágrimas rolavam pelo rosto enlameado de Val.

— Não posso seguir em frente — afirmou. — Percebi quando chamei por Ellis, enquanto Bronden se debatia nos meus braços. Lamento, lamento muito. Mas não posso prosseguir com vocês. — Enterrou o rosto nas mãos. — Vocês não podem compreender. Vão pensar mal de mim. Não os censuro. Mas não consigo continuar sozinha. Falta uma metade de mim. Ellis está à espera. Precisa de mim e tenho de ir ao seu encontro.

Virou-se.

— Também tenho archotes para fazer — disse. — Vou andar depressa e apanhar Bronden. Iremos juntas.

Rowan, Jonn, Allun e Marlie viram-na a afastar-se em silêncio, de ombros caídos. Não olhou para trás.

— É verdade — disse Marlie por fim. — Foi como se metade de Val tivesse partido com Ellis. Ela ainda se es­forçou corajosamente, mas não conseguiu continuar sem ele. É estranho. Ambos pareciam tão fortes, como se nada pudesse tocá-los.

Quatro, pensou Rowan. Agora só restamos quatro. Em tão pouco tempo.

— A Montanha está fazendo bem o seu trabalho — disse Jonn Forte, ecoando os pensamentos de Rowan. — E ainda temos muito para avançar.

Allun sorriu tristemente.

— Ainda bem que aqueles que são amigos continuam juntos. Vamos embora.

— Allun... cante — acrescentou Marlie. — Por hora, não quero ouvir mais nada.

Colocaram a corda de Marlie em volta das cinturas e for­maram uma linha. Jonn, Rowan, Allun e Marlie. Seguiram em frente, sem olhar para a esquerda ou para a direita, mantendo os olhos no chão, os ouvidos cheios com a canção de Allun. A voz dele era agradável, mas parecia pouco intensa e triste na neblina, pelo que pouco desfrutaram dela.

— Foi uma sorte ter recuperando a consciência, Allun Padeiro, bem a tempo de impedir que me afundasse na lama e arrastasse o pobre Rowan comigo — observou Marlie, algum tempo depois.

— Ouvi a voz de Rowan a chamar por você — disse Allun, abanando a cabeça. — Foi como se estivesse acordando de um sonho.

Ouviu-se um grito abafado de Jonn Forte na dianteira. Cambaleou para trás, debatendo-se no terreno traiçoeiro onde mergulhara.

— O caminho noroeste terminou — disse. — Não sei qual a profundidade do pântano. Vamos ter que encontrar outro caminho.

Apalpou cautelosamente o terreno em volta. Mas, para onde se virasse, a lama afundava-se sob os seus pés.

— O que vamos fazer? — gritou Rowan.

— O aviso do mapa dizia «E deixe o teu guia ser feito de madeira» — começou Marlie hesitante. — Pensamos que isso significava que o guia devia ser uma pessoa que não tivesse sentimentos profundos sobre os outros. — Refletiu por alguns instantes. — Mas talvez as palavras tenham um significado completamente diferente. Talvez queiram dizer exatamente o que dizem. E tenham como objetivo ajudar-nos exatamente neste momento.

Foi assim que as instruções do mapa foram finalmente compreendidas e executadas. Voltaram atrás e cortaram o ramo mais reto que conseguiram encontrar numa das árvores. Avaliaram-no em relação a Rowan, o menor do grupo, e marcaram-no pela altura do ombro dele. E aquele ramo, aquela madeira, tornou-se no guia deles.

Jonn enfiava o ramo na lama à frente deles. Quando tocava no chão firme e a lama atingia um ponto abaixo da marca, avançavam. Quando se afundava tão fundo que a lama se erguia acima da marca, tentava de novo e de novo até encontrar um trilho seguro.

Pé ante pé, foram avançando, por vezes atolados até o peito em lama espessa e pegajosa. O progresso foi dolo­rosamente lento. E sempre a neblina branca amarelada flutuando em volta deles. Por vezes, formas esvoaçavam perante o grupo e vozes murmuravam. Mas eles olhavam apenas em frente, tapando os ouvidos aos gemidos e gritos que os tentavam, segurando-se firmes à corda que os unia.

Por fim, surgiu uma altura em que, de todos os lados, o ramo se afundava tão baixo que a marca ficava coberta. Allun e Marlie então colocaram nos ombros a carga de Jonn e este colocou Rowan nas costas. E avançaram mais uma vez, apalpando o terreno, sempre no sentido noroeste, até a lama começar a tornar-se firme sob os seus pés e o terreno começar a elevar-se. Souberam então que a terrível parte da viagem estava praticamente no fim.

Esbaforidos e exaustos, saíram do pântano e da neblina, passaram pelas árvores retorcidas de folhagem negra e penetraram em terra onde o mato crescia de novo. Toma­ram um caminho ascendente, onde o ar tinha um cheiro adocicado e o sol brilhava. Ali, atiraram-se finalmente ao chão e dormiram.

 

SEGUINDO EM FRENTE

Rowan despertou tremendo. O céu estava laranja e vermelho em volta da Montanha coberta de nuvens e o ar começava a esfriar. Jonn, Marlie e Allun dormiam ainda, estendidos no chão à sua volta. Todos eles, até Jonn Forte, pareciam mais novos e mais desamparados. As suas roupas, tal como as de Rowan, ainda estavam úmidas e mal cheirosas do pântano. As mãos e rostos esta­vam imundos, os cabelos molhados e empastados de lama. Como estava diferente aquele pequeno grupo. Como estava diferente daquele que partira com tamanha valentia naquela manhã. E como ele se sentia de forma tão dife­rente em relação àquele lugar.

Rowan observou os três adultos dormindo, e admirou-se com a sensação de afeto que sentia dentro de si por todos eles. Antes, embora conhecesse bem a todos desde a mais tenra idade, tinha medo deles. Agora, confiava neles. Não apenas para cuidarem dele, mas também — quase — para gostarem dele. Pensou nisso com surpresa.

Marlie abriu os olhos, e pestanejou sonolenta por mo­mentos. Viu que Rowan olhava para ela e sorriu. Sentou-se e passou os dedos pelos cabelos pegajosos.

— É melhor acordarmos os outros — disse. — Acenda uma fogueira. Parece que se decidiu que iremos passar a noite aqui.

Mais tarde, os quatro estavam em volta da fogueira, deliciando-se com pão torrado e queijo derretido, frutos secos, mel, bolos de aveia e os melhores caramelos de Solla. Es­tava escuro e frio agora. A lua reluzia branca num céu pontilhado de estrelas, por trás de um véu brumoso de nuvens.

Enquanto comiam em torno da fogueira, Allun, Marlie e Jonn conversaram sobre a aldeia, contaram histórias de tempos antigos e coisas que os fizeram rir. Era como se estivessem sentados em volta do fogão de Jiller em Rin.

Rowan estava sentado ouvindo tal como fazia em casa e questionou-se por que seria que, subitamente, as coisas pareciam tão naturais e descontraídas. Foi então que per­cebeu. Era porque Bronden, Val e Ellis já não estavam com eles, e Allun baixara a guarda. Continuava a conversar e a brincar como habitualmente, mas já não se sentia contraído, satisfeito por simplesmente ficar sentado em tranqüilidade, remexendo o fogo.

Rowan ouvira Jiller contar que, quando todos eram crianças, ela decidira que o comportamento jocoso e brin­calhão de Allun formava uma armadura mais forte do que os músculos de ferro de Val e Ellis, ou o mau tempera­mento de Bronden. De certa forma, e embora Allun fosse agora um homem, Rowan percebia que a armadura estava sempre a postos. E bem precisava, porque era claro que para alguns aldeãos — como os três que tinham partido hoje — Allun nunca seria um deles. Nunca seria total­mente aceito, por muito que o desejasse ser e por muito que se esforçasse, devido ao fato do pai ter sido um Viajante.

Rowan, observando o rosto moreno e magro de Allun à luz da fogueira, percebeu que, de certa forma, estava no meio de dois povos. Pelo menos, no seu modo de ver.

A consciência disso mantinha-o em guarda. Mas ocasio­nalmente, com amigos de confiança, podia ser verdadeira­mente ele.

Rowan ouviu os outros conversando, sentindo-se reconfortado com a presença deles. Ninguém se referiu a Bronden, Val ou Ellis. Ninguém olhou para o mapa enquanto permaneceu estendido junto ao fogo, para secar. Ninguém falou sobre o pântano, nem aranhas ou no que ainda os aguardava.

Não obstante, depois de guardarem os alimentos e de construírem tochas para o dia seguinte com os ramos verdes de Bronden, e do fogo ter diminuído para brasas incandescentes, as pesadas trevas começaram a cair sobre eles. Gradualmente, foram ficando em silêncio. Rowan moveu-se desconfortável. Tinham secado as roupas o melhor possível, e escovado os cabelos sujos, mas não puderam se lavar. A água contida nas garrafas tinha de ser poupada para ser bebida.

Rowan teria dado tudo por um banho quente e longo. A mãe haveria de rir com isso, pensou. Estou sempre a me queixando quando chega a hora do banho. Foi imediatamente invadido por um sentimento de solidão.

Nessa altura, Ellis, Bronden e Val estariam muito perto de casa. Quase certeza que não se deixariam deter pela escuridão. Entrariam em Rin na altura em que as pessoas estariam pensando em apagar os candeeiros e ir dormir. Annad já deveria estar dormindo, no pequeno quarto que ela e Rowan partilhavam. Jiller estaria sentada junto à lareira, no piso de baixo. Lendo, talvez, ou costurando qualquer coisa. Estaria pensando nele? O que sentiria, quando soubesse do regresso dos outros?

Allun olhou para o seu rosto triste.

— Sabe, a mesma lua está brilhando sobre Rin — murmurou, apontando para o céu. — Pense nisso.

— Não vale a pena guardar este último caramelo, Rowan — disse Marlie, estendendo o pacote. — Tenho certeza que pode acabar com ele.

— O mapa já deve estar seco. Não lhe parece, Rowan? — perguntou Jonn casualmente, quase no mesmo instante.

Rowan teve consciência que todos eles, à sua maneira, tentavam confortá-lo.

Sorriu timidamente para Allun, pegou o caramelo que Marlie lhe dava e anuiu para Jonn Forte.

— Vou olhar para o mapa — disse.

Sacudiu a lama seca do pergaminho. Traçou o caminho com o dedo e encontrou o local onde estavam acam­pados. Parecia que tinham concluído um terço da viagem. A partir dali, tinham de virar de novo para oeste, subindo até atingirem o que parecia um penhasco íngreme. Ali, a linha vermelha elevava-se abruptamente. Rowan sentiu um aperto no coração só de pensar noutra terrível escalada.

Procurou o terceiro espaço em branco no mapa. Ali estava. Ou melhor, estava o local onde antes estivera. Incli­nou-se sobre o pergaminho e leu hesitantemente as palavras na fraca luz da fogueira:

 

«Procure a mão que aponta a direção,

E siga pelo caminho onde as crianças brincam.

Depois, onde o rosto com respiração que suspira

Se curva para admirar os seus brilhantes olhos,

O teu caminho está marcado por linhas de luz

Que representam a fuga da noite interminável».

 

— Crianças — exclamou Allun. — Vamos encontrar pessoas neste lugar? Ah, pessoas significa água, Marlie! E banheiras quentes para os banhos. E camas macias. E tigelas de sopa!

— Talvez — disse Marlie. — Mas não se esqueça que pessoas também significam armas e medo de estranhos. Há de haver muitos, e nós somos poucos.

Jonn Forte olhou para cima, para a Montanha negra e silenciosa.

— Se há uma aldeia tão próxima, está bem escondida — disse. — Veremos. Agora, vamos repousar. Partimos assim que amanhecer. Será bom sermos visitantes madrugadores, se vamos ser visitantes.

Apesar do cansaço, Rowan permaneceu acordado algum tempo, depois de terem desejado boa noite uns aos outros. Os outros estavam calmamente deitados, Jonn e Allun enro­lados como lagartas nos seus cobertores, Marlie estendida de comprido com a sua manta por cima. Ela iria ter frio durante a noite, pensou. Ele estava quente e a fogueira estava bem viva e reluzente. Mas as palavras do verso no mapa não paravam de surgir em sua mente, terminando sempre da mesma forma. Da mesma forma assustadora que o fazia despertar e iniciar o processo mais uma vez.

Noite interminável... noite interminável... noite intermi­nável...

 

Acordou com a cabeça pesada e ao som de Marlie atirando terra em cima da fogueira e Allun a assobiar. Estava ainda bastante escuro, mas o céu estava menos negro e ouviam-se pássaros a cantar em algum lugar. Rowan pensou em Estrela e nos outros bukshah, deslocando-se para a lagoa para beberem pela manhã com Jiller e Annad. Imaginou os sons que fariam, surpresos por encontrarem a água ainda mais baixa do que antes. Nessa altura, já deveriam estar com muita sede. Iriam provar aquele líquido enla­meado e abanariam as cabeças pesadas e raspariam o chão com as patas. E interrogar-se-iam por onde é que ele andava.

Estamos avançando o mais rápido que conseguimos, Estrela. Rowan fechou os olhos e pensou nas palavras com toda a força que conseguiu, como se assim a sua mensagem al­cançasse a amiga. Não tardaremos a chegar ao topo da Montanha. Faremos a água correr outra vez. Em breve...

Recordou-se então, e os seus olhos abriram-se de novo, cheios de horror. Amanhã — ou no dia seguinte —, alcan­çariam o topo da Montanha. E... o dragão. O seu coração afundou-se e sentiu-se mal. Tanta coisa lhe acontecera, tivera tanto medo no decurso desta viagem que, por algum tempo, esquecera de fato o maior dos seus medos. Até àquele instante. Ocorreu-lhe então outra coisa. Mais um dia. Mais uma alvorada. E a Montanha estava em silêncio, com exceção dos pássaros. Mais uma vez, o dragão não rugira.

Ponderava ainda sobre isto quando partiram, para oeste, começando a subir.

— Allun — disse, timidamente —, acha que o dragão pode estar morto? Ou que partiu para outro lugar?

— Espero que sim — respondeu Allun animado. — Depois de ter pensado seriamente no assunto, decidi que preferia não encontrá-lo.

— Não veio nenhum som do topo da Montanha esta manhã — acrescentou Marlie.

— Não, tal como a noite passada — concordou Jonn Forte. Olhou para Rowan. — É claro que muitos afirmam — acrescentou —, que não existe dragão nenhum no topo da Montanha. Nunca ninguém o viu. Não temos nenhuma prova de que as velhas histórias são verdadeiras.

— Bronden não acreditava nelas, lá isso é verdade — disse Marlie.

Instantaneamente, ocorreu o mesmo pensamento a todos. Bronden não acreditava em nada que não tivesse visto com os próprios olhos. E Bronden descobrira como estava errada. Muito errada.

Jonn Forte começou a caminhar um pouco mais de­pressa. Levava de novo o saco de Rowan, mas mesmo sem esse fardo suplementar, Rowan teve de se esforçar para conseguir acompanhá-los. Passado algum tempo, deixou de ter energia para pensar fosse no que fosse a não ser no íngreme percurso na sua frente. Tal como talvez Jonn tivesse pretendido.

Alcançaram um grupo de arbustos no topo. Allun soltou uma exclamação e Marlie murmurou algo para si. Rowan olhou para cima. Acima dos cumes das árvores logo na frente deles, erguia-se, quase na perpendicular, um penhasco de rocha de um vermelho dourado que reluzia aos primeiros raios da manhã. Conteve a respiração e observou-o, fascinado.

Percebeu que já vira aquele lugar antes, muitas vezes, quando cuidava dos bukshah ao nascer do sol. Só que, nessa altura, era pequeno e distante. Depois, olhando para o cume da Montanha, avistava-se uma massa de verde, depois outra faixa vermelho dourado e a seguir a nuvem que escondia o topo da Montanha. Mas agora o penhasco erguia-se diante dele e Rowan via que este baixava da nuvem como uma parede — uma parede tão lisa e reta quanto a parede lateral do moinho de Rin.

Ele não conseguiria escalá-la. Sabia que não conseguiria. Só a visão em si o enchia de terror. Comprimiu os lábios para não gritar e sentiu-se invadido pelo desespero. Tinham vindo de tão longe, tinham superado tantas dificuldades, para acabarem sendo derrotados pela Montanha.

Não era só ele que não conseguia escalar aquele pe­nhasco. Quanto mais se aproximavam, mais se apercebia que ninguém conseguiria escalar. Não havia apoios para os pés. Não havia nada onde uma pessoa pudesse se agarrar naquela pedra vermelho-dourado. Nem uma planta, nem um orifício, nem uma rocha saliente. Nada.

— Temos um problema — observou Allun.

— Parece que sim — disse Jonn Forte. Analisou atenta­mente o penhasco.

— Não devemos desesperar — disse Marlie, limpando a transpiração da testa e tremendo ao mesmo tempo. O ar estava frio agora e soprava um vento gélido em volta deles. — Talvez o caminho seja mais perceptível quando chegarmos lá.

Allun e Jonn mostravam-se preocupados ao retomarem a marcha. Rowan percebia que eles não partilhavam as esperanças de Marlie.

Contudo, quando, meia hora depois, saíram das árvores e viram o que existia na base do penhasco, perceberam a sensatez das palavras dela.

— Uma gruta! — disse Jonn. Espreitou para a abertura escura que era como uma porta na rocha. — É bem profunda. Poderá ser...? Rowan!

Reuniram-se em círculo enquanto Rowan desenrolava o mapa. Era verdade que a linha vermelha seguia um sentido ascendente bastante abrupto. Mas não tão abrup­tamente quanto o penhasco se erguia para as nuvens.

— Que maravilha! — cantarolou Allun. — Um cami­nho fácil. E ainda por cima interior, fora da ação do tempo! — Voltou-se para Marlie. — Que alívio!

Ela forçou um sorriso.

— De fato — respondeu. Mas Rowan percebeu que o rosto dela ficara pálido.

Acenderam um dos archotes que tinham feito na noite anterior. Este pegou fogo e manteve uma chama estável. Marlie seguiu na frente, segurando o archote com rigidez, e entraram na caverna.

Foram saudados por guinchos penetrantes. Guinchos e o esvoaçar de milhares de asas como couro quando centenas de morcegos, perturbados no seu repouso diurno, se lançaram do teto e os rodearam, batendo-lhes nos rostos.

Gritando, inclinaram as cabeças e abaixaram-se no chão arenoso, protegendo os olhos com os braços. Rowan ouvia-se a gritar juntamente com os outros. Pareceu decorrer uma eternidade até os guinchos altos se calarem e as criaturas em pânico terem partido. Só então Marlie, Jonn Forte, Allun e Rowan se levantaram lentamente, ofegantes como se estivessem estado a correr. Olharam uns para os outros e depois Allun sorriu.

— Quem acham que se assustou mais? Nós ou os morcegos?

Gargalhadas de alívio ecoaram nas paredes rochosas. O archote estremecia, emitindo sombras altas.

— Olhem! — disse Rowan.

No fundo da caverna, junto a uma abertura larga e arqueada que parecia conduzir a outra câmara, havia uma pedra alta, isolada e de aspecto estranho. Era mais estreita junto à base e no topo, e dela apontava um longo e estreito dedo de pedra.

Procure a mão que aponta a direção...

Com o archote bem erguido no ar, passaram pela zona arqueada, penetrando mais fundo na Montanha.

 

NOITE INTERMINÁVEL

Estava escuro como breu. E muito frio. Marlie erguia o archote e Rowan abria a boca de assombro. Incon­táveis lanças de pedra, com as cores do arco-íris, pendiam do teto alto da câmara. Formas estranhas e atarracadas erguiam-se do chão em grupos e linhas. A caverna era enorme. Não se avistava o fundo.

Jonn deu um passo a frente, consultou a bússola e depois hesitou.

— A agulha da bússola está oscilando — disse. — Há algo fazendo interferência.

— Talvez metal na rocha — sugeriu Marlie.

O archote emitia uma luz amarela no rosto dela. Estava inquieta, movendo-se de um pé para outro.

— Talvez. Seja como for, não podemos confiar dema­is na bússola. Mas, assim, como vamos encontrar o caminho que devemos seguir? Podemos facilmente nos perder neste labirinto.

— «E siga pelo caminho onde as crianças brincam» — disse Rowan. — Foi o que o mapa nos indicou.

— Só uma criança muito corajosa se aventuraria por estas paragens — observou Allun.

Rowan olhou à sua volta, pondo-se nas pontas dos pés e esticando o pescoço até ver aquilo que procurava.

— Acho que, talvez... — começou, mas calou-se. Talvez estivesse sendo idiota. Não queria levá-los por caminhos errados nem que rissem dele.

— Fale, Rowan — incentivou Jonn Forte. — Esta não é a hora para alguém com algum plano se manter calado.

— Podem... podem ser as pedras — afirmou Rowan. Apontou. — Aquelas pedras que são menores que as outras. Ali. Há um espaço entre elas, como um trilho. E a forma delas...

— É claro! — Allun tirou o archote da mão de Marlie e conduziu-os para o local. Eram visíveis ali duas linhas de pedras estranhas, curvas e salientes, estendendo-se para as trevas. Entre elas, um trilho nítido e arenoso.

— Temos então o caminho marcado — disse Jonn com satisfação, guardando a bússola. — E agora...

— Procuramos um rosto que respira e suspira e com olhos brilhantes — riu Allun. — Isso vai ser interessante.

Conduziu-os pelo caminho, o archote iluminando o caminho na sua frente. Olhando para trás, Rowan viu a caverna ficar mergulhada na escuridão. Noite interminável. Estremeceu.

Foram avançando. Para cima. Sempre para cima. Su­biam pelas entranhas da Montanha. Rowan tentou não pensar nas toneladas de rocha e terra que os rodeavam, pressionando-os, impedindo a entrada de luz e ar. Caso se perdessem, ninguém nunca os encontraria. Iriam perambular na noite interminável até morrerem, e a Montanha seria o seu túmulo. Tentou controlar o medo, mas este aumentou e comprimiu-lhe o ventre e o coração, tornando-lhe difícil respirar.

Foram subindo sempre, de uma câmara para outra. De ambos os lados, as pedras do caminho inclinavam-se e estendiam-se num jogo que não terminava. O grupo pouco falava, porque o caminho era íngreme. O silêncio que os envolvia era tão intenso quanto as trevas. Rowan escutava o som sibilante do archote, a sua própria respiração, o arfar de Marlie atrás dele e o som das botas de Jonn cal­cando a areia e batendo nas rochas em frente.

— Outra caverna! — A voz de Allun chegou até eles, ecoando de paredes que não conseguiam ver. Ouviram-no seguir em frente e a luz do archote desapareceu. — O rosto! — exclamou. — O rosto é... — A voz dele desva­neceu-se.

— Allun, o que se passa? — gritou Marlie, avançando. — Allun, responda! Allun, traga a luz. Não conseguimos ver!

— O rosto — disse ele. A voz dele tinha um som es­tranho, como se estivesse sufocando. — Está aqui. Venham. Mas devagar.

A luz do archote reapareceu e, cautelosamente, avan­çaram para ela. Allun encontrava-se junto a uma larga abertura na rocha. Não sorriu quando eles chegaram junto dele, mas enfiou o archote na abertura.

— Vejam vocês mesmos — disse. — Mas, tenham cuidado.

Introduziram-se pela abertura e entraram na caverna. Havia pedaços pontiagudos de pedra branca e amarela suspensos do teto, mas o chão negro e luzidio por baixo da projeção horizontal onde se encontravam era liso como o vidro. À sua frente, do lado oposto, havia uma parede rochosa. Uma parede com uma saliência bojuda no centro. Uma saliência em forma de rosto, olhando para baixo. Viram o nariz retorcido e rochoso, faces inchadas, boca rasgada, queixo largo. E olhos reluzentes que lançavam feixes de luz sobre o chão. O teu caminho está marcado por linhas de luz.

Ali, também havia som. Um som de suspiro, de sibilar, de respiração.

— Respira — murmurou Marlie. — O rosto respira, tal como previa o verso.

— Uma passagem daquele lado deve conduzir ao ar livre — exclamou Jonn. — É o ar exterior que ouvimos, Marlie! Percorremos uma longa distância nestas cavernas. Quase com certeza, estamos chegando ao fim da nossa viagem.

— Receio — afirmou Allun, ainda numa estranha voz — que, pelo menos eu, alcancei o fim da minha viagem.

Estava encostado à parede da caverna e, quando olha­ram para ele, deslizou para o chão até ficar sentado.

— Allun, levante-se! — ordenou Marlie. — Que brinca­deira é essa?

— Não teria vindo, se soubesse — disse Allun, desgas­tado. — Mas, como poderia ter sabido? Quem poderia ter pensado que tal coisa seria possível? — Esfregou os olhos, abanando a cabeça.

— Allun, não sabemos do que está falando? Vamos! Temos de continuar. — Jonn Forte franziu o cenho e virou-se. Nesse momento, a sua bota bateu num seixo, que foi cair no chão negro e brilhante.

Ouviu-se um som e o seixo desapareceu. Alastrou-se uma ondulação silenciosa, círculos que foram aumen­tando na superfície lisa daquilo que eles erradamente julgaram tratar-se de chão sólido.

— Água — disse Allun. Parecia esmorecido. — A ca­verna está meio cheia de água. Água profunda, porque é negra e fria e não se consegue ver o fundo.

— E daí? — perguntou Marlie. — Suportamos o frio e nadamos.

Allun ergueu a sobrancelha.

— A questão, Marlie, minha querida, é que não sei nadar.

— O quê? — Todos olharam para ele e ele devolveu-lhes o olhar, desafiador.

— Os Viajantes não ensinam essa destreza aos seus filhos — afirmou. — Os Viajantes deixam a natação para o povo Maris. Afinal, são eles que ganham a vida no mar, e têm pés e mãos adaptados para tornar essa função mais eficaz. Os Viajantes recusam-se a ter alguma coisa a ver com a água em quantidades superiores à de uma banheira.

— Mas, em Rin, todos aprendemos a nadar — irrompeu Rowan. — Temos de aprender. Mal começamos a andar, praticamente. Temos de ir à costa ou ao rio na planície especialmente para aprender. — Estremeceu, recordando-se dessas lições no rio. Acabara aprendendo a nadar. Mas não fora algo que tivesse apreciado.

Allun sorriu amargamente.

— Ah, sim. Em Rin é diferente. Em Rin, têm de dominar todas as destrezas físicas, é claro, para não serem encarados como inúteis. Mesmo para quem vive bem no interior. Nem que tenham que viajar um dia e uma noite para praticar natação, e possam não nadar no ano seguinte, ou mesmo alguma vez na vida, mas têm de saber nadar. Tal como têm de saber escalar, lutar, correr, e por aí afora. Essas coisas, em Rin, são consideradas impor­tantes.

— São importantes — exclamou Marlie. — Uma pessoa deve estar preparada para o que possa vir a encontrar. Como é o caso agora, Allun! — Olhou para ele, em de­sespero. — Então não aprendeu a nadar quando criança. É uma pena. Mas, por que não aprendeu quando chegou a Rin?

Allun fitou-a.

— Eu já não era uma figura de divertimento e ridículo? Eu, o menino de aspecto estranho e magricela, um Viajante, que nunca usara sapatos e que nada sabia dos costumes da sua aldeia? Aos dez anos, é muito difícil suportar os insultos das outras crianças. Rowan pode confirmar-lhes isso. — Olhou para Rowan, que anuiu em silêncio. Quer dizer que estava certo. Allun compreendia de fato o que ele sentia.

Marlie pegou o braço de Allun.

— Compreendo, Allun. Mas podia ter pedido lições de natação...

Ele inclinou-se sobre ela.

— Não, não compreende. Ia me tornar ainda mais palhaço do que já era, deixar que aqueles rufiões debaixo da árvore-escola conhecessem a minha fraqueza? Não podia ensinar a mim mesmo em segredo. Não há água em Rin a não ser o riacho e a lagoa dos bukshah. Teria de ter pedido que me levassem ao rio da planície para ter lições com os pequenos de três anos! Ellis teria gostado muito disso. — Encolheu os ombros, retorcendo o rosto numa máscara cômica. — Como pode imaginar, quanto mais esperava, mais impossível se tornava — continuou. — Antes que eu percebesse, tornara-me no impensável: um adulto de Rin que não sabia nadar. — Sorriu. — Não importava, é claro — continuou, suavemente. — Não importava nada mesmo. Até este momento.

Jonn Forte abanou a cabeça.

— Tem de haver uma forma — começou. — Se você...

— Jonn, tem de aceitar isto, tal como eu aceitei. Não sei nadar. Nem sequer dar uma braçada — afirmou Allun com firmeza. — Por isso, se está pensando em levar este pato contigo, puxando-o talvez por uma asa, é melhor não pensar. A água está gelada. Vocês já terão dificuldades sufi­cientes para se manterem flutuando, sem tentarem impedir que me afogue. As cordas não chegam do outro lado. Por isso, tirem também isso da cabeça.

— Foi por isso que nunca aproveitou a oportunidade para visitar a costa em dias de mercado, Allun. — Jonn olhou para ele, pensativamente. — Sempre me questio­nei...

— Bom, já pode deixar de se questionar — sorriu Allun. Mas virou a cabeça para o lado.

Marlie mordeu o lábio.

— Não pode voltar agora para Rin sozinho, Allun — acabou dizendo. — O pântano vai ser seguramente a sua morte, sem um companheiro.

— Já pensei nisso. — Allun sacudiu o casaco, como se remover a lama seca ali existente fosse a única coisa im­portante para ele. — Vou acampar junto à entrada para a gruta. Vou esperar por vocês ali. — Riu amargamente. — Pensei em ser um herói de Rin. Mostrar-lhes o que o meio Viajante podia fazer. Quem pensaria que esta pe­quena fraqueza seria o meu mal? Que, devido ao meu estúpido orgulho, iria desapontar os meus amigos? — Não olhou para Jonn Forte. — Daria tudo para que as coisas não fossem assim. Perdoem-me.

Sete corações a viagem encetarão. De sete formas os corações sofrerão.

Mas Jonn levantou a mão.

— Não há nada a perdoar, velho amigo. Espere pelo nosso regresso. Faça mais archotes, se conseguir encon­trar uma boa madeira. Iremos precisar deles. — Hesitou e disse, num tom baixo, desviando a cabeça de Rowan, mas mesmo assim este ouviu o que ele disse —, Se não regressarmos dentro de três dias, Allun, não deve esperar mais. Tem de conseguir regressar a Rin, de alguma forma. Para junto daqueles que nos amam. É melhor saberem o pior do que não terem notícia nenhuma. Está combinado?

— Combinado. — Allun estendeu a mão a Jonn e aper­tou calorosamente a dele.

— Vamos então — disse Marlie. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Abraçou Allun. — Vamos voltar — mur­murou. — Tome cuidado.

— Você também, Marlie.

Jonn, Rowan e Marlie descalçaram as botas e despiram a roupa exterior, que guardaram dentro dos sacos. Depois, tremendo, entraram na água e começaram a nadar.

Estava, de fato, terrivelmente gelada. De tal forma gelada que a carne de Rowan começou primeiro a doer e depois ficou entorpecida. A água penetrava-lhe na boca, pungente e amarga. Foram avançando pelo lago negro, deslizando como caranguejos ao longo das linhas de luz, nadando com as mãos direitas, segurando os sacos com as esquerdas para que fossem arrastados atrás deles, meio dentro e meio fora de água.

Coisas inomináveis roçavam pelos pés e pernas de Rowan enquanto nadava. Cerrou os dentes ao pensar no que seriam, mas continuou a avançar com um braço que se tornava cada vez mais pesado e lento a cada braçada. Não tardou a ficar em agonia, mas pior do que a dor de prosseguir era a idéia de se afundar naquele buraco negro e calmo, para não mais voltar a ver a luz e o ar.

Foi então que a sua mão tocou em rocha e, com uma sensação de alívio, percebeu que já tinha pé. Olhou para cima. O enorme rosto de pedra estava por cima dele. Marlie já saía do lago, ofegante e pingando. Atrás dele, Jonn Forte içou o saco para fora da água quando, também ele, alcançou terreno firme. Todos eles se viraram e chamaram por Allun, que aguardava ansiosamente do outro lado. Encontravam-se num local sombrio, pelo que não podia vê-los, mas ele ergueu o archote em resposta aos seus gritos. Pelo menos, sabia que estavam em segurança.

Marlie inclinou-se e ofereceu uma mão para puxar Rowan para junto dela. Batia os dentes de tal forma que não conseguia falar. Deu saltos para se aquecer. Com dedos frios e desajeitados, Marlie abriu o saco dele e retirou a roupa que ele despira antes de se lançar na água.

— Tire essas coisas geladas e vista estas antes que morra de frio — aconselhou ela. — Estão um pouco úmidas, mas é melhor do que nada.

Rowan sabia que não conseguiria fazê-lo. Nunca em frente de Marlie. Ele já nem sequer se despia diante da mãe. Hesitou.

— Pela minha vida, Rowan! — exclamou Marlie diver­tida, com a própria roupa nos braços. — Já foi ameaçado por aranhas gigantes, quase foi engolido num pântano, quase morreu afogado e gelado, e agora está com vergo­nha de despir a roupa diante de mim! Não lhe parece ridí­culo?

— Nem tanto — sorriu Jonn Forte, surgindo de trás deles. — Compreendo perfeitamente. Há coisas que um homem não consegue fazer. Sugiro que vire as costas, Marlie. A intimidade poderá assim ser preservada e todos podemos ficar mais quentes sem demora.

 

A ARMADILHA

Os archotes estavam úmidos, mas conseguiram acender um deles. O mapa, enrolado e envolto em segurança nas roupas de Rowan durante a travessia, tinha sobrevivido. Jonn e Marlie abaixaram-se ao lado de Rowan, enquanto este o desenrolava e o abria sobre os joelhos.

As linhas vermelhas continuavam a subir, num sentido sinuoso. E, no espaço em branco seguinte, surgiu o verso que Rowan esperava:

 

«Esquerda ou direita, por onde seguirá?

Pois ambas farão o teu coração sofrer.

Uma é cruel, uma é aprazível,

Uma, passagem, uma, armadilha.

Opte por aquela que a luz oculta,

E descobrirá que esse é o caminho certo».

 

Todos olharam para o enorme rosto de pedra. Os olhos reluzentes ainda faziam incidir os seus feixes sobre a água e agora que se encontravam exatamente por baixo destes, percebiam que os olhos eram ocos. Eram entradas. Para o quê? Qual seria a porta que conduzia ao topo da Mon­tanha? Rowan inclinou de novo a cabeça sobre o mapa. O traçado não fornecia qualquer pista. Não havia nenhuma marca que indicasse passagens duplas. As únicas pistas estavam nos versos.

— Vamos ver as duas e decidir então — disse Jonn. No entanto, quando subiram pelo rosto de pedra e espreitaram para o interior dos olhos, descobriram que am­bas as cavernas pareciam semelhantes. As paredes dos dois lados reluziam com um estranho fungo de um branco azulado que luzia no escuro. Ambas tinham sensivelmente o mesmo tamanho e forma, embora a da esquerda fosse ligeiramente mais alta e larga do que a da direita. E de ambas provinha um som de suspiro e respiração.

— O que quererá dizer «Uma é cruel, uma é aprazível»? — inquiriu Marlie. — São ambas iguais!

— Diz que devemos optar por aquela que oculta a luz — salientou Rowan. — Talvez seja melhor experimentar uma de cada vez, para ver onde o archote se apaga.

Marlie moveu-se desconfortavelmente, afastando os cabelos molhados dos olhos.

— Concordo — disse Jonn Forte. — Vamos primeiro experimentar a da direita. Quem sabe se a última linha do verso diz a verdade absoluta, tal como no pântano. Diz «esse é o caminho certo». Talvez signifique simplesmente isso.

Ergueram o archote para Allun e viram-no levantar o dele em resposta e virar-se para começar a sua solitária caminhada de regresso à entrada da gruta. Em seguida, esgueiraram-se para a passagem à direita. Fazia uma curva logo de imediato, depois outra, e Rowan não tardou a perder o sentido de direção.

Conseguia caminhar reto, mas Marlie e Jonn tinham de inclinar um pouco a cabeça, porque o teto era baixo. Foram avançando, tropeçando no chão rochoso e a chama do archote ardia com a intensidade de sempre. Subita­mente, estacaram. Diante deles, a passagem estreitava-se num túnel baixo, com uma largura que só permitiria rastejar ao longo dele.

— Assunto encerrado — disse Marlie. — Tem de ser uma armadilha. Vamos agora experimentar a da esquerda. Seria esperar demais de um conselho de Sheba.

Na passagem da esquerda era mais fácil de se caminhar. Era reta, no início, e mais larga do que a anterior, além de que o chão estava coberto de areia. Contudo, a chama do archote não estremeceu ali tam­bém. Seguiram sempre em frente, virando curva após curva, cada vez mais surpreendidos. O mapa nunca os enganara antes.

O som de respiração era agora mais forte. Penetra­va-lhes nos ouvidos e sussurrava em volta deles. E Rowan sentia o cheiro de algo. Um cheiro de mofo e umidade e trevas frias e espessas.

No início, pensou ser a sua imaginação. Ou dos fungos reluzentes nas paredes. Passou os dedos e cheirou-os. Não. Tanto quanto percebia, os fungos não tinham cheiro.

Jonn Forte, que seguia na dianteira, abrandou e acabou parando quando o túnel fez nova curva.

— Anda, Jonn — disse Marlie, impaciente. — Quando mais depressa avançarmos, mais depressa saímos daqui!

— O túnel começa a descer de forma bastante acentuada agora — disse Jonn. — As paredes são lisas, sem ter nada onde nos agarrarmos, e a areia vai tornar difícil não escorregarmos.

— Não gosto deste lugar — murmurou Rowan. — Pa­rece aprazível, como diz o verso. Mas dá a sensação de ser perigoso.

Uma é cruel, uma é aprazível, uma, passagem, uma, arma­dilha...

O medo invadia-lhe o peito.

— Que bobagem — retorquiu Marlie. — Não temos alternativa. O outro caminho está bloqueado.

— Não está totalmente bloqueado — disse Jonn, virando-se para ela. — Há espaço para rastejar. Será um percurso cruel, mas talvez seja o caminho afinal. Lem­bre-se, o verso associa «aprazível» a «armadilha». E concordo com Rowan. Este lugar cheira a morte.

— Vocês dois são absurdos! — Respirando em fôlegos rápidos, Marlie passou por Rowan. Tirou o archote da mão de Jonn, passou por ele, deu dois passos e escorre­gou. Debateu-se na areia, tentando pôr-se de pé, enquanto o archote escorregava pelo caminho íngreme, saltando e rodopiando.

Foi então que caiu. Caiu pelo terrível abismo que existia no fundo do túnel. Tombava e tombava enquanto Marlie gritava. Por fim, atingiu o fundo com um estalar doentio.

Puxaram por Marlie e saíram do túnel, quase correndo, os corações batendo desordenados ao pensarem no destino a que tinham escapado. Mais um minuto — meio minuto — e eles também teriam escorregado indefesos para a morte naquele penhasco subterrâneo. Quando desfizeram a última curva, caíram de joelhos na entrada do túnel.

Marlie tremia.

— Desculpem. Desculpem — disse, vezes sem conta. Rowan também tremia. O rosto marcado pelo tempo de Jonn estava abatido, mas levantou-se com esforço.

— Vendo as coisas pelo lado positivo, como Allun teria dito — afirmou, tentando sorrir —, pelo menos, agora sabemos que a passagem da direita tem de ser de fato o caminho. O túnel é estreito, mas se deixarmos os sacos e levarmos apenas o que conseguirmos nas algibeiras, pode­mos conseguir. Teremos de rastejar. E rezar para que não seja muito comprido.

Rowan engoliu em seco, pensando naquele buraco confinado e escuro que viram na caverna da direita. A idéia de se enfiar nele, sem idéia para onde ia ou quando a provação terminaria, era deveras assustador. A linha ver­melha no mapa era longa. Muito longa. Mas nada disse. A outra alternativa era de fato uma armadilha. Quase os matara. Para atingirem o topo da Montanha, teriam de rastejar. Que assim fosse.

Acenderam outro archote e meteram-se pela passagem da direita. Tal como antes, seguiram pelas curvas sinuosas, deixando rapidamente de ver o lago reluzente. Rowan con­teve a respiração quando percebeu a verdade. Opte por aquela que a luz oculta. Era aquela luz que o verso se referia. Não a do archote, como pensaram, mas da luz refletida no lago, que deixavam de ver devido à curva existente no túnel da direita, mas claramente visível durante vários minutos no túnel direito e agradável da esquerda. Mais uma vez, interpretaram erradamente as palavras. Opte por aquela que a luz oculta, e descobrirá que esse é o caminho certo. Por duas vezes, a resposta estivera ali, à vista de todos. Apesar de tudo, tinham se enganado.

Quando alcançaram o local onde a passagem se estreitava, Jonn, Marlie e Rowan abriram os sacos e come­çaram a transferir as suas posses mais importantes para as algibeiras e a atar uma corda em volta das cinturas. Era evi­dente que nenhuma bagagem passaria por aquele estreito buraco. Jonn Forte e Marlie quase preenchiam o espaço existente e o rastejar seria lento e desconfortável, sem possi­bilidades de voltar atrás.

— Vamos comer antes de começar — disse Jonn, apon­tando para a comida que tinham posto de lado. — Não sabemos quando teremos outra oportunidade.

Rowan sentou-se no chão e começou a mordiscar um pouco de pão e queijo. Tinha o estômago vazio, mas tam­bém a fazer barulho devido ao medo e à água que engolira no lago negro. Pensou que nunca tivera tão pouco prazer com uma refeição antes.

Marlie estava inclinada sobre o seu saco, respirando com dificuldade. Ignorou a comida que Jonn lhe ofereceu. Rowan questionou-se se ela estaria doente. Não parecia a mesma desde que entrara nas cavernas, exceto no curto espaço de tempo em que nadaram. Agora, era evidente que estava em agonia. Havia gotas de suor na sua testa e mordia os lábios ao tirar para fora o cobertor de dormir e ao atirá-lo para o lado com dedos trêmulos.

— Marlie. — A voz de Jonn Forte era calma. Ela parou, mas não levantou a cabeça. — Marlie — disse ele de novo. — É o túnel, não é? São as pequenas dimensões do túnel que te preocupam.

— Não tenho medo — respondeu Marlie, em voz alta. Apesar de tudo, continuava sem olhar para cima.

— Quando começarmos, não vamos conseguir voltar — afirmou Jonn. — Se sente que não consegue fazer isto, deve dizê-lo agora. Está nervosa desde que entramos nas cavernas. Todos percebemos isso. Tem medo de es­paços fechados.

— Não tenho nada! Não tenho medo — disse Marlie outra vez. Mas a voz estava perturbada. Lançou a cabeça para trás e fitou Jonn nos olhos. Tremia de medo e tensão.

— Estou pronta — afirmou. — Vamos começar.

Dirigiu-se à estreita abertura e atirou-se para o chão.

Lentamente, começou a contorcer-se para o túnel. Viram a cabeça e ombros dela desaparecerem na escuridão, depois o corpo, depois as pernas e pés. Sentiam a sua ago­nia como se fosse uma coisa viva. Mas nada podiam fazer senão esperar. Só quando ela desabou, quando come­çou a gritar e a bater nas paredes de rocha é que puderam agir. Só então puderam retirá-la da prisão sufocante que o medo dela criara e ajudá-la a respirar de novo e a acal­mar-lhe os gritos.

— Pensei que podia dominá-lo — soluçou. — Tinha certeza que, desta vez, devido à importância da missão, eu iria conseguir. Mas é mais forte do que eu, Jonn. Como sempre foi. — Enterrou o rosto nas mãos.

— Não faz mal, Marlie. Marlie... acalme-se — tranqüilizou-a Jonn.

— Não suporto lugares enclausurados — murmurou Marlie. — Mas, quando não consigo levantar a cabeça e os ombros, quando não consigo mover livremente os braços, é como se não conseguisse respirar. Nem consigo sequer me embrulhar num cobertor, com medo. — Levantou a cabeça e respirou várias vezes.

— Percebi isso, ontem à noite — disse Jonn, sorrindo. — Pensei que talvez não sentisse frio.

— Quase congelei! — Marlie conseguiu responder ao sorriso dele. — Jonn, lamento tanto. E Rowan... O que vamos fazer agora?

— Faremos o que tem que ser feito — disse Jonn simplesmente. — Eu continuarei. Você tem uma bússola. Ro­wan tem o mapa. Vocês dois vão se juntar a Allun e re­gressam a Rin. Se seguirem o caminho que fizemos com muito cuidado, e se recordarem...

Marlie olhou para ele, horrorizada.

— Mas, não pode ir sozinho! Jonn, não pode!

— Marlie, tem de ser. Sabe que tem de ser.

— Não! — Rowan escutou a sua própria voz, ecoando alta no espaço da caverna. Sentia o rosto a arder. — Não pode me mandar para casa. Eu tenho o mapa. Precisa do mapa. Ainda há dois espaços em branco. Dois versos de aviso ainda por aparecer. Precisa saber o que dizem, Jonn Forte. Tem de me levar com você.

— Não posso fazer isso, Rowan. — Jonn abanou a cabeça.

— Não vou voltar — gritou Rowan. — Não pode me obrigar. — Correu para a estreita passagem e sentou-se em frente. — Tenho de segurar o mapa — disse. — Tenho de encontrar a água para os bukshah. Prometi-lhes. — Fez uma expressão determinada.

Jonn mirou-o em silêncio. Marlie meio sorriu.

— Parece que encontrou um parceiro à altura, Jonn Forte. Quer o filho quer a mãe. — Olhou para Rowan com curiosidade. — Quem teria imaginado?

Jonn hesitou, acabando por ceder.

— Muito bem — suspirou. — O que tem que ser, será, e terá de ser feita a vontade de Sheba. — Pousou uma mão enorme no ombro de Marlie. — Adeus, Marlie. Boa sorte na sua viagem de regresso para casa. Lembre-se de tudo o que fomos descobrindo. Desta vez, irá enfrentar os perigos bem preparada. Há de sobreviver. Diga a Allun que nós quatro nos encontraremos em Rin. — Com duas passadas, ficou ao lado de Rowan. — Vamos, antes que algum de nós mude de idéia, coelho escanzelado. Você primeiro.

— Tenham cuidado — disse Marlie, quando desapare­ceram no túnel. — Tenham cuidado, Jonn Forte e Rowan dos Bukshah.

A voz dela ecoou na caverna atrás deles, desvanecendo-se no silêncio.

Agora, pensou Rowan no meio da escuridão, somos dois.

 

O CORAÇÃO MAIS VALENTE

Rowan rastejava com os olhos bem fechados. Descobrira que era preferível a enfrentar as trevas em frente. As mãos sangravam — esfoladas e cortadas pela rocha. As pernas doíam de exaustão. Podia ouvir Jonn Forte a avançar por trás, gemendo com o esforço enquanto se debatia com as paredes que lhe comprimiam os ombros largos. Há muito que tinham deixado de conversar.

A passagem descrevera um círculo e virara para trás por diversas vezes. Rastejavam e descansavam, rastejavam e descansavam, num padrão de pesadelo que se repetiu vezes sem conta. Adormeceram em duas ocasiões e desper­taram na escuridão, gritando para o outro em pânico. Já não sabiam há quanto tempo estavam no túnel. Não sabiam se era dia ou noite. Tudo o que sabiam é que esta­vam subindo. Para cima, sempre para cima.

Sete corações a viagem encetarão. De sete formas os corações sofrerão. As palavras de Sheba rodopiavam no cérebro exausto de Rowan. A Montanha atacara cinco vezes. De cinco formas diferentes, cinco corações valentes se viram forçados a desistir da missão, envergonhados. Ellis, Bron­den, Val, Allun, Marlie. Todos se foram. Restavam apenas ele e Jonn. Os dois últimos corações aguardando o sofri­mento que a Montanha lhes destinava.

O túnel estreitou-se e alcançou nova curva. Em desespero, ouviu o arranhar das botas e roupas de Jonn Forte contra a rocha, as exclamações de esforço quando Jonn se impulsionava para a frente e depois permanecia quieto. Cada movimento de Jonn era dificultado pelas paredes do túnel que o continham. Durante todo esse tempo, não conseguira colocar as mãos na sua garrafa, nem na de Rowan, para beber. Estava à beira da exaustão. Tal como Rowan. Se deparassem com alguma forma de bloqueio — uma rocha caída, qualquer coisa —, estavam condenados. Rowan sabia que não tinha forças para movê-lo. E Jonn estava confinado no espaço de que dispunha atrás dele. Sentiu-se invadido pelo pânico, tal como tantas vezes acontecera desde que a viagem se iniciara. Fechou os olhos com mais força e respirou fundo. Descobrira que isso ajudava.

Tal como Estrela ajudava. Rowan continuou a rastejar pelo túnel, pensando em Estrela, a coisa mais calma e ado­rável que conhecia. Imaginou-se caminhando ao lado dela até à lagoa dos bukshah ao fim do dia, a mão na crina dela, a brisa fresca soprando-lhe no rosto. O medo desapareceu. A imagem na sua mente intensificou-se. Agora, quase que conseguia ver a lagoa dos bukshah e Estrela inclinando a cabeça para beber. Quase conseguia cheirar o mato pisado, o pomar florido. E quase podia sentir a brisa fria no rosto. Sorriu no meio das trevas. Era extraordinário. Podia mesmo sentir aquela brisa. Como se...

Rowan abriu os olhos. Ficou olhando, lambeu os lábios e gritou quando a brisa fria, a brisa gelada lhe soprou diretamente no rosto.

— Jonn — gritou. — Venha! Já chegamos! Já chegamos! — Rastejou mais depressa, pouco se importando com as mãos em sangue e as pernas doloridas, em direção à fonte daquele vento gelado e o brilho branco que cinti­lava para ele. Atrás dele, num último e desesperado es­forço, Jonn rastejava.

Alguns agonizantes minutos depois, encontravam-se no chão de uma gruta baixa que se abria para o ar. Estava muito frio. No exterior, o vento uivava e a neve resplan­decia iluminada pela lua.

— Água — pediu Jonn Forte através de lábios gretados.

Levando a garrafa à boca de Jonn, Rowan olhou para ele assustado. A roupa de Jonn fora rasgada pelas rochas em diversos lugares e a pele por baixo desta estava arranhada e sangrava. Tinha o rosto pálido. Os olhos fechados. A água borbulhava-lhe na boca e pingava para o chão. Tremia sem parar.

Num canto da gruta, havia paus e folhas secas soprados pelo vento. Rowan reuniu-os, encontrou a caixa de fósforos de Jonn e conseguiu acender uma fogueira. Soltava fumaça e crepitava, mas ao menos, oferecia um pouco de calor.

Jonn Forte permanecia imóvel. Rowan esperou ansioso, de mãos juntas. Algum tempo depois, começou a aparecer um pouco de cor no rosto do homem. Mexeu-se a abriu os olhos.

— Estamos acima das nuvens, Rowan — murmurou. — Acho que estivemos dentro da Montanha por uma noite e um dia, e parte de uma outra noite. Nesta altura, se estiverem em segurança, Allun e Marlie já devem estar de volta a Rin. E nós estamos praticamente no final da nossa viagem. O mapa...

Rowan desenrolou o mapa. Seguiu com o dedo o caminho que fizeram, traçou o percurso acima das nuvens.

— Estamos quase no topo da Montanha — disse, lentamente. — Aqui perto, muito perto, deve haver outra gruta, ou algo parecido. Muito grande. Muito funda. A linha vermelha termina aí... — Engoliu em seco. Os seus olhos tinham avançado para o penúltimo espaço em branco.

— E o verso? — A voz de Jonn era muito fraca. — Leia o verso.

Rowan leu-o em voz alta, o mapa tremendo nas suas mãos nervosas.

 

«Fogo, água, terra e ar

Todos se encontram no antro do dragão.

Seis corajosos corações o teste falharam,

Um prossegue com a missão.

Recorde bem as palavras que conhece,

Quando for ao encontro do teu destino».

 

— Ora bem — disse Jonn e fechou de novo os olhos. O coração mais valente seguirá em frente...

— Mas, Jonn, o verso não está correto! — exclamou Rowan. — Somos dois. Dois!

Jonn umedeceu os lábios com a língua.

— Não, Rowan. Estou acabado. Tem de me deixar aqui e, ao amanhecer, partir sozinho. Tal como Sheba previu. — Virou a cabeça.

Quando o sono é morte, e a esperança decadente. O fogo crepitou pela última vez e extinguiu-se. O sono é morte...

— Jonn! — Rowan gritou, aterrorizado. Abanou com força os ombros de Jonn e o homem grande agitou-se e gemeu. — Jonn, não adormeça! Está frio demais. Está fraco demais! Vai morrer congelado! Vai morrer! Jonn, levante-se! — Jonn não se moveu. Rowan soluçou, batendo no chão. — Jonn, não posso ir sozinho! Sabe que não posso! Sheba não previu isto! Sheba disse que o coração mais valente seguiria em frente. Foi isso o que ela disse. E eu não sou o coração mais valente. Tenho medo de tudo! De tudo!

Os lábios pálidos de Jonn curvaram-se.

— Sim, coelho escanzelado. É verdade — murmurou. — Com medo, subiu à Montanha. Com medo, enfrentou os seus perigos. E, com medo, seguiu em frente. Isso é verdadeira coragem, Rowan. Só os tolos é que não têm medo. Sheba sabia isso. Sheba sabia tudo, desde o início.

Rowan mirou-o. E, lentamente, uma calma gelada ins­talou-se nele. Sabia o que tinha de fazer.

— Durma agora — murmurou. — Eu cuido de você.

Rowan rastejou para a entrada da gruta. Despiu o casaco e envolveu as mãos nele. Enfiou-as então na neve e começou a formar uma parede de neve em volta da entrada, preenchendo o espaço até restar apenas um pequeno orifício por onde penetrava o ar. Foi necessário bastante tempo e, apesar do casaco, sentia as mãos enregeladas quando, por fim, se deu por satisfeito.

Jonn Forte estava enroscado junto às cinzas da fogueira. Já estava mais quente no interior da gruta, mas ainda não o suficiente para ficarem em segurança. Rowan vestiu o casaco. Arrastando-se devido ao cansaço, reuniu algumas pedras e colocou-as sobre as cinzas, deitando depois sobre elas os dois archotes que ele e Jonn tinham trazido com eles. Acendeu os archotes e viu-os arder lentamente. Dei­tou-se ao lado de Jonn, aconchegando-se a ele e aquecendo-o com o seu corpo.

Os archotes iriam aquecer o ar. Iriam aquecer as pedras. As pedras iriam manter o calor quando o fogo se apagasse. E a esperança decadente... Não, o verso não contara com ele. Ainda tinha coração, e esperança. Com alguma sorte, a alvorada iria encontrá-lo a ele e a Jonn com vida. Depois se veria.

Por fim, Rowan fechou os olhos e adormeceu.

O sono foi profundo e sem sonhos. Quando acordou, pensou de início que não tinha se passado tempo nenhum. Mas reparou então na luz pálida que penetrava na gruta através do orifício na parede de neve e tornou-se consciente do silêncio. A manhã chegara e o vento cala­ra-se.

Rowan sentou-se e, com o coração acelerado, olhou para Jonn. Estava quente... e respirava.

Gentilmente, Rowan abanou-lhe o ombro.

— Jonn — sussurrou. — Jonn! Acorde. Já é de manhã. Temos de partir. Juntos.

 

Foram avançando pela neve, Jonn Forte apoiado ao ombro de Rowan. As botas afundavam-se na brancura macia ao caminharem, esmagando-a em covas que reluziam num azul gelado. As pegadas de animais que tinham procurado comida durante a noite cruzavam-se com o caminho deles, mas nunca avistaram nenhum animal. Em certa ocasião, Rowan pensou ter visto um nariz mexer numa toca mas, num abrir e fechar de olhos, fosse o que fosse desapareceu.

Nuvens cerradas flutuavam em volta. Acima deles, ele­vava-se apenas uma leve neblina e, através dela, conse­guiam ver o céu. Estava límpido, de um rosa pálido. Um dia excelente em Rin, pensou Rowan, olhando para trás, embora sabendo que nada conseguiria ver. Rin ficava em algum lugar lá em baixo, mas a nuvem ocultava-a de vista. Sentiu a bússola de Jonn na algibeira e o mapa no cinto. Com isto, encontrarei o caminho de volta, prometeu a si mesmo. Pode levar muito tempo, mas levarei Jonn Forte de volta a Rin. Voltarei a ver a minha mãe, Estrela e a lagoa dos bukshah pela manhã. Voltarei!

Olhou em frente para a nuvem, esforçando-se para ver. Jonn avançava com dificuldade atrás dele, a respiração pesada e rápida. Apoiava-se agora mais no ombro de Ro­wan, mas seguia em frente sem um queixume. Rowan estava cheio de pena pelo sofrimento dele e maravilhado com a sua coragem.

— Tudo bem, Jonn? — perguntou, no tom mais ani­mado possível. — Estamos quase lá. — Recordou-se repentinamente de algo. Um eco da voz de Jonn Forte, dizendo-lhe exatamente essas palavras. Exatamente da mesma forma, naquela primeira manhã, quando deixavam Rin. Rowan conteve a respiração. Teria o coração de Jonn sofrido por ele nessa altura como o dele sofria agora por Jonn? E pelos mesmos motivos? Estaria ele nessa altura errado, totalmente errado, em relação a Jonn?

— Rowan! — Jonn agarrou-lhe o ombro. — Acho que estou vendo qualquer coisa.

No interior da nuvem, erguia-se uma forma atrás de uma parede natural de rochas cobertas de neve. Era branca nas extremidades e de um azul reluzente no centro. Era enorme, alta e larga. Acima dela, havia apenas o céu.

— Estamos no topo — disse Rowan. O coração dispa­rou. — Mas...?

Lentamente, aproximaram-se. Nesse instante, com­preenderam. Todo o cume da Montanha era oco, criando uma enorme caverna de rochas, neve e gelo. As paredes da caverna erguiam-se para os céus, brilhando ao sol como luz branca. Fogo e água, terra e ar... Um espesso manto de neve solta cobria o solo desde a entrada até à parede de rocha onde se encontravam.

Rowan olhou perplexo. Não havia qualquer som. Nenhum rastro marcava aquele manto de neve. Nada, mas nada, passara por aquele local há pelo menos um dia. Tal­vez muitos dias.

Ajudou Jonn a passar por cima das rochas, dirigindo-se ambos à entrada da caverna e espreitaram cautelosamente para o interior. Branco. Nada a não ser um branco alvo e um azul sombrio. Enormes pingentes de gelo decoravam a entrada e o teto. Estranhas formas de gelo cobriam as paredes e erguiam-se do solo. Por todo o lado havia neve. Estavam fascinados. Avançaram, pestanejando, passando por cima de fendas e saliências que cobriam o chão, perfei­tamente surpreendidos.

Rowan voltou-se para Jonn para falar. Viu o rosto dele alterar-se. O olhar de horror...

Foi então que o solo irrompeu debaixo dos pés deles. A neve esvoaçou quando uma poderosa cauda fustigou o ar, fazendo Rowan cair de costas e arremessando Jonn Forte contra a parede. Rowan, aos gritos, viu o fundo da caverna adquirir vida, abrir os olhos raiados de sangue e atirar-se a ele, sacudindo neve e gelo das reluzentes escamas bran­cas e revelando os dentes gotejantes. Enorme. Velho. Terrí­vel. O dragão da Montanha.

 

A RESPOSTA

Rowan gritou, ficando à espera do hálito quente, as presas e garras que representariam a morte. Mas não vieram. Com medo, descobriu os olhos. O dragão estava muito próximo. Observava-o. Os seus olhos rasgados, se­melhantes ao das cobras, fitavam-no, atraindo-o.

— Jonn — chamou Rowan em voz baixa, sem desviar o olhar. — Jonn Forte?

— Estou aqui — veio a resposta. — A cauda da criatura me prendeu à parede. Não consigo me mexer. Rowan, salve-se, se puder.

O dragão rosnou. Virou a cabeça na direção da voz de Jonn e depois voltou-se de novo para Rowan. Sacudiu o corpo enorme e passou a pata pelo lugar macio no pes­coço, onde o sangue seco criara crostas em feridas feitas há vários dias. Os seus olhos eram lagos vermelhos de cólera... e de outra coisa. Rowan percebeu-o e, surpreso, reconhe­ceu do que se tratava: pura dor animal.

Pôs-se lentamente de pé, sem nunca desviar o olhar.

— O que o está afligindo? — disse calmamente, na voz que utilizava para os bukshah.

O dragão baixou a cabeça e abriu as mandíbulas. Ge­meu, bem lá no fundo. Dentes aguçados como agulhas pin­garam sangue aquoso sobre a neve, aos pés de Rowan.

Um hálito quente e impressionante atingiu-lhe o rosto. Rowan encolheu-se, mas o dragão não atacou.

— Rowan! — chamou Jonn Forte. — Retroceda lenta­mente e saia. Tem o mapa e a bússola. Pode voltar à aldeia. Tem chance para isso. Aproveite!

Rowan mal o ouviu. Olhava para as marcas de garras no pescoço do dragão. Uma idéia que se formou na sua mente tornou-se subitamente clara. Olhou em torno da caverna. Não havia ossos nem carne. Apenas neve branca e fresca.

— Não tem comido — disse para o dragão, como se falasse com Estrela. — Não tem saído para caçar. Mas está pondo sangue pela boca. — Enfrentou os olhos do dragão. Há muito tempo atrás, num local muito diferente, e num par de olhos muito distinto, já vira aquela expressão. Se conseguisse ganhar a confiança do animal... Tomou a de­cisão e respirou fundo. — Acho que sei o que se passa. E posso ajudá-lo — disse. — Sou amigo. Amigo.

O dragão olhou-o, sem pestanejar.

— Fique quieto — pediu Rowan.

Aproximou-se. Olhou para a boca vermelha que pin­gava e depois inclinou-se para o seu interior, cada vez mais fundo, até encontrar o que procurava.

Mire o rosto feroz do terror, e veja a resposta com clareza e fulgor.

O osso era aguçado e branco. Enfiara-se entre um dente no fundo da garganta do dragão, tal como o fragmento de um galho ficara preso na garganta de Estrela. Rowan reti­rara esse galho. Podia remover aquele osso.

Atuou com gentileza, sabendo a agonia que a criatura sentia. O dragão rosnou. Um movimento em falso, e aquelas terríveis mandíbulas se fechariam. Pouco a pouco, Rowan foi libertando o osso. Por fim, com um abanar delicado, retirou-o. Saiu para fora da boca do dragão e em direção a Jonn Forte, segurando o osso nas mãos.

— Agora, deixe-nos ir — disse, suavemente. — Já está bem. Pode caçar. Deixe-nos...

Os olhos do dragão reluziram. Ergueu-se nas patas traseiras. Bateu as asas brancas escamosas. Finalmente, estava livre daquela dor terrível que lhe silenciara o rugido e lhe extinguira o fogo durante tantos dias. A dor que impedira que fosse caçar, de voar pelos céus acima do seu reino nas nuvens. Estava livre... e esfomeado.

Rugiu, e o som foi como um trovão, ecoando pelas paredes do antro. Caíram pingentes de gelo do teto da caverna, esmagando-se e espalhando-se pelo chão, e o próprio solo tremeu. Rugiu de novo e as colunas de fogo soltaram-se das suas narinas e boca, derretendo a neve e gelo, fazendo elevar-se vapor para o ar que se misturou com chamas e uma fumaça sufocante.

Virou-se então para Jonn. A fome ardia nos seus olhos vermelhos. Nunca iria atacar o menino que o curara com tão gentis mãos. Mas o homem, essa era uma história dife­rente.

— Não! — gritou Rowan. Correu para o lado de Jonn, escorregando e deslizando no chão agora gelado do antro. Atirou-se para cima do homem indefeso e protegeu-o com o corpo.

O dragão agitou-se e rugiu, e Jonn gritou em agonia quando o movimento o esmagou ainda mais contra a parede da caverna. Rowan puxou a navalha e apunhalou desesperadamente a cauda do dragão, mas a lâmina da navalha dobrou-se e partiu-se quando atingiu as brilhantes escamas brancas. Era inútil. O dragão rosnou de raiva e cuspiu uma coluna de chamas que chamuscou os cabelos e sobrancelhas de Rowan. Foram atingidos várias vezes pelas chamas expelidas. Permaneceram os dois compri­midos um contra o outro.

— Rowan — disse Jonn.— Está tentando assustá-lo. Agora só quer a mim. Saia daqui enquanto pode, pense em Jiller, pelo menos. Rowan, eu prometi. Suplico-te. Vá!

Mas Rowan não cedia. Tinha que obrigar o dragão a mover a cauda para que Jonn se libertasse e pudesse correr. Tinha de fazê-lo antes que o dragão perdesse a paciência e matasse aos dois. Mas não dispunha de nenhuma arma.

— O que vou fazer? — exclamou. — Não sei o que fazer!

Recorde bem as palavras que conhece...

— Que palavras? Que palavras? — lamentou-se Rowan. — Oh, por favor...

— O mapa. — A voz de Jonn Forte chegou débil até si. — Rowan...

Abaixando-se, Rowan tirou o mapa do cinto e desenrolou-o.

Recorde bem as palavras que conhece.

O último espaço em branco estava preenchido. As pala­vras moveram-se perante os seus olhos. As palavras que conhecia de fato. As palavras que ouvira pela primeira vez com um arrepio de medo, as palavras que lhe sobressaltaram os sonhos e que lhe assombraram os pensamentos desde então:

 

«Sete corações a viagem encetarão.

De sete formas os corações sofrerão.

O coração mais valente seguirá em frente

Quando o sono é morte, e a esperança decadente.

Mire o rosto feroz do terror

E veja a resposta com clareza e fulgor,

Esqueça então todos os pensamentos de teu lar

Pois só então a tua missão pode terminar».

 

Todas as profecias se concretizaram, com exceção da úl­tima. A última e mais terrível. E chegara a hora agora.

Rowan enrolou o mapa e tirou a bússola de Jonn da algibeira. Aguardou pelo seu momento.

Esqueça então todos os pensamentos de teu lar...

O dragão atirou a cabeça para trás e rugiu de novo a sua raiva. O seu pescoço frágil, arranhado e rasgado pelas suas próprias garras na tentativa de retirar o osso e acabar com a dor, cintilava pálido e exposto.

Com toda a força e desespero do seu medo, Rowan arremessou a bússola contra o alvo branco e macio. Esta bateu nele como se fosse uma pedra dura e o dragão gritou e agitou-se em dor e fúria, atirando a cabeça de um lado para o outro, levantando a cauda de cima de Jonn Forte.

Apenas por alguns instantes. O suficiente para Rowan puxar por Jonn, arrastá-lo, deslizando, sobre o chão ge­lado, para a entrada do antro. O tempo suficiente para se virar e atirar com força o mapa enrolado, diretamente e a girar, mais uma vez contra o pescoço exposto. O dragão voltou a rugir e, por preciosos segundos, desviou a cabeça deles.

Esqueça então todos os pensamentos de teu lar...

E desataram a correr. Fugindo do antro. Para encontrar um local para se esconderem, para se ocultarem como ani­mais noturnos, longe da cólera do dragão.

Pois só então a tua missão pode terminar. Sim, a missão es­tava terminada. Terminada, e perdida. Tal como eles.

— Mãe... Estrela... — soluçou Rowan. Sentia uma dor no coração. Mas continuava a correr.

Mas a neve em frente do antro derretera com o fogo do dragão e, agora, a superfície plana era um lençol de gelo. Rowan e Jonn escorregaram e caíram, agitando as mãos no ar, os pés deslizando sob eles enquanto tentavam levantar-se para correr.

Os olhos vermelhos do dragão ardiam. Levantou-se, enraivecido. Colunas de fogo, quentes como centenas de fornalhas, irromperam da sua boca e nariz, chamuscando-lhes os pés, derretendo o gelo numa massa de água e vapor. Rowan e Jonn rolaram, rastejaram, debatendo-se com o gelo em fusão, retorcendo os corpos para se salvarem.

Depois, com um som de estalar, o gelo partiu-se debaixo deles, o gelo que se formara e que não derretera durante os longos dias em que o dragão estivera em sofrimento. Sentia agora por fim a sensação do calor das suas chamas e cedia. A água fria e doce da neve derretida fluiu por entre o gelo para o canal subterrâneo, o seu escape habi­tual do topo da Montanha. Também com ela caíram Jonn e Rowan, arfando e sufocando, atirados como cortiça na corrente borbulhante. Rowan respirou fundo e tentou colocar-se de pé. Encontravam-se por baixo do solo. Por baixo do gelo. Já não conseguia ver o dragão. Já não conse­guia ver o céu. A água empurrava-o. Não conseguia resistir.

À sua volta, tudo eram trevas e rochas lisas, água gelada e o ruído de água em precipitação. Rowan chamou por Jonn e agarrou-lhe a mão. Percebeu de imediato o que se passara. Tinham descoberto o segredo do riacho. A água doce fazia espuma à sua volta, levando-os consigo. Ti­nham-na libertado do seu cativeiro de gelo. Podia agora fluir livremente. E era o que iria acontecer, ao longo do extenso e íngreme túnel que atravessava o coração da Mon­tanha. E ela arrastava-os com ela. Montanha abaixo, até à aldeia de Rin.

 

Val e Ellis tinham sido acordados antes do raiar do dia por um bater suave à porta do moinho. Abriram-na e depararam com um pesadelo — Allun e Marlie, todos sujos e em farrapos, quase desmaiando de exaustão e sede. Le­varam os amigos para dentro, trataram-lhes das feridas e deram-lhes de comer e de beber. Ouviram então os amigos a narrar parte da temível viagem que ambos partilharam, ao fazerem o caminho de regresso pelo pântano e floresta até ao topo do penhasco, descendo então para o sopé da Montanha. Trocaram olhares de preocupação quando sou­beram o que se passara nas cavernas.

— Jonn Forte era um homem corajoso — disse Val por fim.

— Fala como se ele estivesse morto! — exclamou Allun, afastando a xícara.

— Se não está — respondeu Val, impassível —, não demora a estar. E Rin morrerá com ele. Está na Mon­tanha, sozinho. Agora não irá conseguir levar a missão até o fim. E não poderá sobreviver.

— Ele não está só — contrapôs Marlie. — Rowan está com ele.

Val e Ellis olharam para ela como se estivesse louca.

— E que utilidade tem para Jonn um frangote como Rowan? — inquiriu Val. — Ele necessita de um compa­nheiro forte e corajoso para...

— Ele teve cinco companheiros fortes e corajosos. — Allun levantou a cabeça e fitou-a diretamente nos olhos. — Todos fugiram.

Marlie enterrou o rosto nas mãos. Ellis acabou por dizer:

— Está amanhecendo. Temos de ir falar com Jiller — mur­murou. — Deve estar nos campos dos bukshah, cuidando das criaturas. Temos de lhe contar o que se passou.

Com corações pesados, os quatro deixaram o moinho. O céu tinha uma tonalidade de um dourado rosado quando alcançaram a lagoa seca. Ali avistaram Jiller com Annad, com o xale colocado sobre a cabeça. Olhava para a Mon­tanha, tremendo sob a ação do vento frio. Foi então que se virou e os avistou. A tristeza no seu rosto transformou-se em terror. Gritou.

— Allun! Marlie! O que aconteceu? Onde está Rowan? Onde está Rowan?

Naquele momento, chegou um ruído estrondoso do topo da Montanha. Ruído que se prolongou, prolongou.

 

Estrela levantou a cabeça e chamou por Annad e Jiller. Annad não ouviu. Tinha os braços em volta da nova cria de Alvorada, tranqüilizando-a enquanto tremia com o som do dragão. Jiller, com fortes olheiras sob os olhos verme­lhos, estava imóvel e rígida entre Allun e Marlie. Tudo o que ouvia era o som estrondoso bem acima deles na Mon­tanha, nada via a não ser o fogo reluzente que acendia o céu acima da nuvem.

Val e Ellis permaneceram em silêncio, ali perto. Junto deles estava Bronden e todos os habitantes da aldeia. To­dos acorreram quando ouviram o som. Todos observavam agora, os seus rostos verdadeiras máscaras de pavor e medo. Nenhum deles prestou atenção ao chamado de Estrela.

Estrela afastou-se da lagoa vazia e começou a subir ao longo do leito do riacho seco. Não sabia por que estava sendo atraída para ali. Sabia apenas que tinha de ir. E rapida­mente.

Uma vedação bloqueou-lhe o caminho. Afastou-a com o ombro, passou por cima dela sem olhar para trás e prosseguiu o caminho.

Ouviu o grito de Jiller atrás dela, e outras vozes, mas não olhou para trás. O chamado silencioso era agora mais forte. Lançou-se numa corrida pesada.

— Estrela! O que foi? — Corriam atrás dela. Ouvia a voz lamentosa de Jiller e o som de muitos pés. Correu mais depressa.

O leito do riacho estendia-se castanho e vazio ao seu lado. Terra, mato e flores esmagavam-se sob os seus cascos.

O moinho ficava mais à frente, do outro lado. A grande pedra de moagem, com a enorme roda de madeira, que permanecia silenciosa há tantos dias.

Mas... Estrela esticou as orelhas. Ouvia algo. Um som crepitante. E um som ondulado e precipitado. Água! A sua garganta seca ansiava por água. Mas havia um outro som. Uma voz. Uma voz que conhecia.

— Estrela! Estrela! Estrela!

Estrela respondeu ao chamado. Atirou-se para o leito do riacho seco. Correu para o local de onde o som provi­nha: o canal da moagem mais à frente, onde a grande roda rangia e era forçada. Água doce! As suas narinas cheira­vam-na agora. Pois a água chegava, numa onda que se elevava cada vez mais, em cada segundo que passava, lançando-se por entre as margens do riacho, empurrando as pás de madeira da roda do moinho, precipitando-se por entre ela em direção a Rin.

Estrela enfrentou a onda de peito cheio. Atirou a cabeça para a frente e forçou-se a avançar através da espuma, igno­rando os paus e rochas que batiam nas suas pernas, ignorando a vontade de parar para encher a boca resse­quida. Atravessou a margem para o canal do moinho que corria ao lado do riacho. E, mugindo com carinho, alívio e prazer, alcançou a roda de moagem e enfiou o focinho na mão estendida do menino que ali se agarrava.

Inclinou a cabeça para suportar o peso que ele fez inci­dir nas suas costas largas e sentiu mãos agarrarem-se à sua crina. Lenta e cuidadosamente, arrastou-se para o riacho, atravessou-o e passou para a margem oposta, não olhando para trás quando a enorme roda cedeu à pressão da água e começou a girar, esmagando os ramos e paus capturados entre as suas pás. Saiu com dificuldade da água. Sentiu as mãos de Rowan agarrarem o seu pêlo, arrastando-se ao lado dela. Ouviu a voz de Rowan no seu ouvido.

Falava com ela, como sempre fizera. E falava com o homem deitado no dorso dela. Dizendo a ambos: «Está tudo bem. Estamos salvos... Estamos em casa...».

 

Rowan passou os dedos ainda mais profundamente pelos pêlos macios e molhados de Estrela.

— Em casa — disse de novo, saboreando a palavra na língua. A sua mente rodopiava. Tudo acontecera tão depressa. A viagem desde Rin ao antro do dragão durara longos dias e longas noites. O regresso, aquela aterroriza­dora descida ao longo do riacho subterrâneo, levara apenas alguns minutos.

Parecia inacreditável estar ali, em segurança no vale, com o mato sob os pés e a brisa matinal no rosto. Cerrou os olhos com força, receando subitamente que tudo não passasse de um sonho, e que se encontrasse ainda no topo da Montanha com o fogo, o gelo, o terror e o desespero. Mas, quando voltou a abri-los, os verdes campos de Rin ainda estavam lá, tal como Estrela, e o riacho borbulhando ao seu lado. Era verdade. Estavam em casa. A água re­gressara a Rin. E eles vieram com ela.

— Rowan! Rowan! — Ouviu-se um grito ao longe. Rowan olhou para cima. Uma figura corria para eles, junto à margem do riacho. Era Jiller, chamando-o, os braços abertos. Annad corria atrás dela e, à distância, avistava-se uma multidão. Parecia que toda a aldeia estava ali, correndo para ele. À medida que as pessoas foram se aproximando, Rowan percebeu que davam vivas, gritavam e riam de alegria. Mas os seus olhos lacrimejavam e não distinguia os rostos delas com clareza. Avistou apenas Jiller quando esta finalmente chegou até ele, o agarrou e abraçou como se nunca mais quisesse soltá-lo.

Rowan cingiu-a com os braços, escutou as palavras que ela lhe repetiu vezes sem conta, sentindo o seu extremo alívio e agradecimento pelo regresso da criança que pensara ter perdido, e o seu amor, que por fim ele com­preendia. Nesse momento, a velha, velha dor no seu cora­ção derreteu-se como neve sob a ação do fogo, sem deixar qualquer vestígio.

Juntos, retiraram Jonn do dorso de Estrela e ajoelha­ram-se ao lado dele.

— Acho que está com a perna quebrada — disse Rowan em voz baixa. — Está com dores. Mas está vivo.

Os olhos de Jonn abriram-se e olhou os dois rostos preocupados que se inclinavam sobre ele. Tão diferentes, mas ao mesmo tempo, tão parecidos. Tentou dizer algo, esfor­çou-se para se erguer, mas caiu para trás com um gemido.

— Jonn, fique quieto — pediu Jiller. — Não tente falar. Não há necessidade.

O homem ferido umedeceu os lábios ressequidos com a língua.

— Há necessidade — disse. Rowan percebia que cada palavra representava um esforço extremo para ele, mas estava determinado a prosseguir. — Há algo que preciso lhe dizer, Jiller. Prometi... prometi que lhe traria de volta o seu filho. Mas foi Rowan que me trouxe de volta. Obri­gou-me a continuar quando, de bom grado, me teria dei­xado cair e morrer. Lutou contra o frio e o fogo por mim, quando podia ter se salvado. Enfrentou o dragão sozinho.

Rowan estava agachado no chão, uma mão na de Jiller, a outra pousada sobre o peito de Jonn. Não ouvira as pessoas se reunindo atrás dele. Não percebeu as expressões de surpresa nos rostos delas ao escutarem as palavras de Jonn. Mas Jonn viu. Com grande esforço, au­mentou o tom da voz.

— E graças a Rowan que o riacho corre de novo — afirmou. — Ele nunca desistiu. Nunca pensou em tal coisa. O menor e mais fraco de entre nós revelou-se, no fim, o mais forte e o mais corajoso. Rin está em dívida para com ele.

Seguiu-se silêncio. Um pequeno pássaro chilreou numa árvore próxima. Ouviu-se então um som a tremer. Rowan voltou-se, surpreso. Viu pessoas aclamando-o, à sua volta. Ali estavam Allun e Marlie, os rostos ainda man­chados de lama, gritando e rindo, e dando palmadinhas nas costas um do outro. Ali estavam Bronden, batendo palmas, e os moleiros, Val e Ellis, fitando-se perplexos. Ali estava Neel, o oleiro, a boca rasgada num vasto sorriso, as pessoas dos jardins, e Timon, o professor. E todos os outros.

— Rowan! Rowan! — entoavam. — Rowan dos bukshah! Rowan de Rin!

Jonn sorriu.

— Coelho escanzelado — murmurou e, bem satisfeito, viu Rowan começar a rir.

Estrela mugiu. Calmamente, afastou-se e aproxi­mou-se do riacho, agora cheio até a borda com água cristalina, doce e corrente. Pôs-se à escuta. Chegaram até ela mugidos baixos e satisfeitos vindos da aldeia. A água alcançara a lagoa dos bukshah.

O rebanho estava a salvo. Rowan estava a salvo. O riacho corria de novo.

Tudo estava como devia estar. Por fim, Estrela baixou a cabeça para saciar a sede.

 

                                                                                            Emily Rodda

 

 

                      

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